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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA Brutus Abel Fratuce Pimentel PAUL VALÉRY Estudos filosóficos São Paulo 2008

P A U L V A L É R Y

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Page 1: P A U L V A L É R Y

UNIVERSIDADE DE SAtildeO PAULOFACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIEcircNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIAPROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM FILOSOFIA

Brutus Abel Fratuce Pimentel

P A U L V A L Eacute R YE s t u d o s f i l o s oacute f i c o s

Satildeo Paulo2008

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Brutus Abel Fratuce Pimentel

P A U L V A L Eacute R YE s t u d o s f i l o s oacute f i c o s

Tese apresentada ao programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Filosofia sob a orientaccedilatildeoda Profa Dra Olgaacuteria Matos

Satildeo Paulo2008

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Brutus Abel Fratuce Pimentel

Paul Valeacutery - Estudos filosoacuteficos

Tese apresentada ao programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Filosofia sob a orientaccedilatildeo da Profa Dra Olgaacuteria Matos

COMISSAtildeO EXAMINADORA

Prof(a) Dr(a) ________________________

Instituiccedilatildeo ___________________________ Assinatura _____________________

Prof(a) Dr(a) ________________________

Instituiccedilatildeo ___________________________ Assinatura _____________________

Prof(a) Dr(a) ________________________

Instituiccedilatildeo ___________________________ Assinatura _____________________

Prof(a) Dr(a) ________________________

Instituiccedilatildeo ___________________________ Assinatura _____________________

Prof(a) Dr(a) ________________________

Instituiccedilatildeo ___________________________ Assinatura _____________________

Satildeo Paulo _____ de ____________ de _____

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A LUTO PIMENTEL HURTADO

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Il faut ecirctre leacuteger comme lrsquooiseau et non comme la plumePaul Valeacutery

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SUMAacuteRIO

RESUMO7ABSTRACT8

AGRADECIMENTOS9

ABREVIATURAS10

1 DIRETRIZES ESPIRITUAIS1111 Caracterizaccedilatildeo a escritura do fragmento (Introduccedilatildeo) 11

111 Da crise agrave autarquia espiritual 191111 O culto ao Iacutedolo do intelecto o eu puro 28 1112 Fazer sem crer 41

2 PERSONAGENS (Escoacutelios)4721 Modos de vida 47

211 Leonardo da Vince 50 2111 O fazer 55

212 Edmond Teste 66 2121 O possiacutevel 70

3 SABER E PODER8031 Sob o signo da ciecircncia 80

311 Criacutetica agrave histoacuteria 894 CRIacuteTICA Agrave FILOSOFIA95

41 O primado da linguagem 95411 Insuficiecircncia convenccedilatildeo transitoriedade 99

4111 Automatismo verbal 113412 Filosofia como forma 121 413 Filosofia como literatura 128

5 POEacuteTICA13251 Poesia criacutetica 132

511 Poesia pura 1346 DIAacuteLOGOS SOCRAacuteTICOS (Escoacutelios)145

61 A reinvenccedilatildeo de um gecircnero 145611 A danccedila de Athiktecirc 151612 No mundo dos mortos 159

6121 A oraccedilatildeo de Eupalinos 1666122 Anti-Soacutecrates 174

613 No mundo dos vivos (Conclusatildeo) 178

BIBLIOGRAFIA183Obras de Paul Valeacutery 183 Obras de Paul Valeacutery em portuguecircs 183 Obras coletivas sobre Paul Valeacutery 183Obras individuais sobre Paul Valeacutery 184 Artigos sobre Paul Valeacutery 185Obras diversas 185

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RESUMO

Brutus Abel Paul Valeacutery - Estudos filosoacuteficos Tese (Doutorado)Departamento de Filosofia Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2008

No intuito de realizar um laquoeu puroraquo (laquomoi pureraquo) o poeta Paul Valeacutery (1871-1945) dedica-se ao culto do laquoIacutedolo do intelectoraquo (laquoIdole de lrsquointellectraquo) a um meacutetodo ceacutetico de auto-consciecircncia expresso numa escrituraccedilatildeo extremamente fragmentada sobre os processos mentais e o fazer artiacutestico (na sua obra puacuteblica e principalmente nos seus Cahiers) Uma das principais consequumlecircncias desse meacutetodo eacute uma digressiva e ambiacutegua critica agrave filosofia a qual esta Tese postula e desenvolve mediante os seguintes estudos sobre a elaboraccedilatildeo de um modo de vidarelativamente autocircnomo simultaneamente praacutetico e contemplativo(principalmente nos seus ensaios sobre Leacuteonard de Vinci e Edmond Teste) sobre a diferenccedila entre filosofia e ciecircncia na perspectiva de que todo saber eacute poder sobre a compreensatildeo dos problemas metafiacutesicos como contra-sensos como resultados dolaquoautomatismo verbalraquo (laquoautomatisme verbalraquo) da falta de consciecircncia do funcionamento da linguagem sobre a poeacutetica da poesia pura como aboliccedilatildeo do reacutecite conciliaccedilatildeo entre poesia e pensamento abstrato sobre a inversatildeo do platonismo em obras hiacutebridas de ficccedilatildeo (principalmente nos seus diaacutelogos socraacuteticos como Lrsquoacircme et la danse e Eupalinos - Ou lrsquoarchitecte) Em todos esses estudos a filosofia eacute compreendida natildeo como uma ciecircncia mas tal como a poesia como um gecircnero artiacutestico uma forma pessoal de organizar esteticamente o caos do mundo

Palavras-chave Paul Valeacutery auto-consciecircncia linguagem filosofia e esteacutetica

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ABSTRACT

Brutus Abel Paul Valeacutery - Philosophical studies Thesis (Doctoral)Departamento de Filosofia Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2008

In order to realize a laquopure selfraquo (laquomoi pureraquo) the poet Paul Valeacutery (1871-1945) dedicates to the laquointellect Idolraquo (laquoIdole de lrsquointellectraquo) cult a self-consciousness skeptic method expressed in an extremely fragmented writing about the mental processes and the artistic making (in his public work and mainly in his Cahiers) One of the main consequences of this method is a digressive and ambiguous critic of philosophy which the present Thesis postulates and develops through the following studies about the elaboration of a relatively autonomous life style at the same time practical and contemplative (mainly in his Leacuteonard de Vinci and Edmond Teste essays) about the difference between philosophy and science understanding that all knowledge is power about the comprehension of metaphysical problems as nonsense as result of the laquoverbal automatismraquo (laquoautomatisme verbalraquo) the lack of the language operation consciousness about the pure poetry poetic as the reacutecit abolition and conciliation between poetry and abstract thought about the Platonism inversion in hybrids works of fiction (mainly in his socratic dialogues as Lrsquoacircme et la danse and Eupalinos - Ou lrsquoarchitecte) In all these studies philosophy is understood not as a science but such as poetry as an artistic gender a personal form of organizing aesthetically the world chaos

Keywords Paul Valeacutery self-consciousness language philosophy aesthetic

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AGRADECIMENTOS

A CAPES pelo indispensaacutevel apoio financeiro Agrave profa Dra Olgaacuteria Matos pela confianccedila no estudo sobre um autor pouco explorado em filosofia pela seguraorientaccedilatildeo pela amizade e delicadeza Aos professores Dr Franco Moretti Dr Horaacutecio Costa Dr Jorge de Almeida Dr Leon Kossovitch Dr Franklin de Matos Dra Marilena Chaui e Dr Seacutergio Cardoso com os quais tive a oportunidade de conviver como aluno A todos os funcionaacuterios da Biblioteca e do Departamento de Filosofia mantenedores do indispensaacutevel suporte material aos alunos de graduaccedilatildeo e poacutes-graduaccedilatildeo colegas da vida acadecircmica Do Exame de Qualificaccedilatildeo participaram os professores Dra Maria das Graccedilas e Dr Franklin Leopoldo a eles pela paciecircncia e pelas generosas consideraccedilotildees e sugestotildees Agrave profa Dra Anne Shirley pela iniciaccedilatildeo na pesquisa acadecircmica AgraveMadame Suzanne Roger pelas preciosas aulas Ao saudoso prof Dr Joatildeo Alexandre Barbosa pelas conversas e pelo conselho em natildeo deixar de compreender Valeacutery como poeta Enfim a Tereza Thiago e Max minha famiacutelia

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ABREVIATURAS

As citaccedilotildees usadas na Tese procuram ser fieacuteis ao texto original apresentam portanto as lacunas e a pontuaccedilatildeo das quais Paul Valeacutery se serve

OBRAS DE PAUL VALEacuteRY

A mdash Alphabet org Michel Jarrety Le Livre de Poche - Classique Paris 1999C1 C2 etc mdash Caheirs I-XXIX fac-simileacute CNRS Paris 1957-1961C1rsquo amp C2rsquo mdash Caheirs I (1973) II (1974) choix de textes org Judith Robinson-Valeacutery

Bibliothegraveque de la Pleacuteiade Gallimard ParisC1rsquorsquo C2rsquorsquo etc mdash Cahiers 1894-1914 I (1987) II (1988) III col Blanche (1990) org

Nicole Ceylerette-Pietri amp Judith Robinson-Valeacutery IV 1900-1901 (1992) V 1902-193 (1994) VI 1903-1904 (1997) org Nicole Ceylerette-Pietri VII 1904-1905 (1999) VIII 1905-1906 (2001) IX 1907-1909 (2003) org Nicole Ceylerette-Pietri amp Robert Pickering Gallimard Paris

CC mdash Une chambre conjecturale - Poegravemes ou proses de jeunesse par Paul Valeacutery Fata Morgana Montpellier 1981

CL mdash laquo Carnet de Londres raquo 1894 carnet ineacutedit org Florence de Lussy Bibliothegraveque de la Pleacuteiade Gallimard Paris 2005

CR mdash Cartesius redivivus in Cahier Paul Valeacutery no 4 publications de la Societeacute Paul Valeacutery org Jean Levaillant amp Agathe Rouart-Valeacutery Gallimard Paris 1986

CVF mdash amp FOURMENT Gustav Correspondance 1887-1933 org Octave Nadal Gallimard Paris 1957

CVG mdash amp GIDE Andreacute Correspondance 1890-1942 org Robert Mallet Gallimard Paris 1955

LQ mdash Lettres agrave quelques-uns LrsquoImaginaire Gallimard 1997Œ1 mdash Œuvres I Bibliothegraveque de la Pleacuteiade Gallimard Paris 1997Œ2 mdash Œuvres II Bibliothegraveque de la Pleacuteiade Gallimard Paris 1993Π mdash Περὶ τῶν τοῦ θεοῦ - ou des choses divines org Julia Peslier Kimeacute Paris

2005PA mdash Les Priacutencipes drsquoan-archie pure et appliqueacutee Gallimard Paris 1984V mdash Vues La Petite Vermillon La Table Ronde Paris 1948

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1 DIRETRIZES ESPIRITUAIS

11 CARACTERIZACcedilAtildeO A ESCRITURA DO FRAGMENTO

INTRODUCcedilAtildeO

Para si mesmoMarco Aureacutelio Meditaccedilotildees

A Modernidade eacute frequumlentemente caracterizada como um periacuteodo de intensas transformaccedilotildees sociais natildeo raro contraditoacuterias entre si no qualdimensotildees simultaneamente espirituais e praacuteticas como Religiatildeo Arte Ciecircncia e Poliacutetica outrora relativamente unificadas numa ordem ontoloacutegica de sentido e valor se autonomizam e adquirem outras formas de complexidade e poder instaurando assim a laicizaccedilatildeo de modo aparentemente irreversiacutevel E todo esse processo ocorre sob o imperioso signo do desenvolvimento da classe burguesaassentada sobretudo na possibilidade da dinacircmica de seu status social e do sistema capitalista que no intento de expandir as formas de produccedilatildeo e acumulaccedilatildeo fortemente condiciona todas essas dimensotildees Religiatildeo Arte Ciecircncia e Poliacutetica No plano do pensamento o Racionalismo e o Empirismo instaurando o primeiro a cesura entre mundo coisificado e sujeito pensante e o segundo a influecircncia indeleacutevel desse mundo no proacuteprio sujeito podem ser compreendidos como consequumlecircncias simboacutelicas a todo esse desenvolvimentopois contribuiacuteram para a separaccedilatildeo a autonomizaccedilatildeo dessas dimensotildees para a especializaccedilatildeo do proacuteprio saber para a legitimaccedilatildeo da proacutepria accedilatildeo do ser humano frente agrave natureza e ao proacuteprio ser humano Uma accedilatildeo que eacute sobretudo de controle sobre a mateacuteria Doravante eacute com o Iluminismo que tais concepccedilotildees e perspectivas se acentuam e se difundem natildeo raro acompanhadas por uma grande feacute nas capacidades transformadoras da razatildeo do intelecto humano e noirrefreaacutevel progresso da civilizaccedilatildeo na mudanccedila e na mudanccedila para o melhor

A Modernidade no plano do pensamento afirma-se deve afirmar-se portanto como uma constante ruptura Uma ruptura com relaccedilatildeo agraves tradiccedilotildees nas quais por vezes o conhecimento eacute postulado mais como recapitulaccedilatildeo do que invenccedilatildeo Nela faz-se assim presente uma dupla consciecircncia consciecircncia histoacuterica na medida em que as eras satildeo compreendidas como singulares e irreversiacuteveis e consciecircncia psicoloacutegica posto que centrada na primazia do sujeito em sua interioridade no modo como recebe e constroacutei o mundo E isso a tal grau que na literatura surge um tipo de autor um tipo de escritor cujo espiacuterito natildeo mais sentindo a necessidade a obrigaccedilatildeo de ser exclusivamente fiel agrave tradiccedilatildeo na qual foi criado ou a qualquer outra tradiccedilatildeo manifesta essa dupla consciecircncia manifesta-a na sua proacutepria escritura na medida em que afirma como sendo tatildeo-

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somente por ele escrita e ele um sujeito condicionado ao seu proacuteprio tempoDesenvolve-se por conseguinte na Modernidade o escritor natildeo apenas criacuteticodo mundo mas criacutetico de si mesmo o escritor que natildeo apenas concebe e executa obras mas tambeacutem compraz-se em comentaacute-las em analisar e destrinccedilar seus proacuteprios procedimentos seus proacuteprios mecanismos e operaccedilotildees seus proacuteprios segredos em negar-se e afirmar-se em questionar-se mediante aquilo que escreve ou deixa de escrever em filosofar e isso a tal grau que por vezes asua proacutepria obra adquire o estatuto paradoxal ela mesma de uma criacutetica a uma obra jamais feita mas tatildeo-somente sonhada

Quanto a esse insigne comportamento o poeta francecircs Paul Valeacutery (Segravete 30101871-Paris 20071945) mdashfilho da cultura mediterracircnea e admirador do Iluminismo e do sensualismo-materialista do seacuteculo XVIIImdash eacute paradigmaacutetico Ofoco de seus interesses voltava-se confessadamente mais para a forma do que para o conteuacutedo mais para a composiccedilatildeo de textos do que para os proacuteprios textos para a accedilatildeo para o fazer que estes representam o meio lhe era mais importante do que o fim o meacutetodo mais do que a meta1 Compreensiacutevel portanto que sua obra seja hiacutebrida e amiuacutede considerada como uma das mais estranhas da Literatura Moderna2 Dois aspectos a caracterizam a diletante variedade temaacutetica e a incompletude A literatura e a criacutetica literaacuteria a poesia e a poeacutetica a pintura a escultura a arquitetura as relaccedilotildees entre as artes as desventuras da histoacuteria e da poliacutetica o peso das condiccedilotildees da vida contemporacircnea sobre o resultado dos projetos humanos o misteacuterio dos sonhos as relaccedilotildees entre corpo e espiacuterito a psicologia e a fiacutesica a ldquonaturezardquo da matemaacutetica e da loacutegica a psicologia a consciecircncia o eu a memoacuteria o tempo a linguagem o saber e o poder a miacutestica Todos esses e outros tantos temas satildeo abordados e refletidos mas de modo intensamente digressivo atraveacutes de cortes e de desvios de evasotildees abruptas atraveacutes de inuacutemeras repeticcedilotildees e atualizaccedilotildees circularmente muitas vezes de um modo bastante difuso e vago como se tudo doravante devesse ser retomado relido e reescrito como se tudo fosse perpeacutetuo rascunho a um escrito porvir Quando um determinado tema eacute assim evocado e analisado este se liga ou se funde a tantos outros e como que momentaneamente desaparece deixando espaccedilo para algo inicialmente oculto e quiccedilaacute mais importante Diferentemente dagrande parte dos sistemas filosoacuteficos natildeo haacute sequumlecircncias cronoloacutegicas ou didaacuteticas natildeo haacute hierarquias fixas de sentido e raras satildeo as categorias centrais

1 Cf JARRETY Michel Valeacutery Paul (1871-1945) in Dictionnaire de la litteacuterature franccedilaise XXe siegravecle in Enciclopaeligdia Universalis amp Albin Michel Paris 20002 Cf BOISDEFFRE Pierre de Paul Valeacutery ou lrsquoimperialisme de lrsquoesprit in Meacutetamorphose de la litteacuterature - De Proust agrave Sartre - Proust Valeacutery Cocteau Anouilh Sartre Camus - Essais de psychologie litteacuteraire suivis de deux eacutetudes sur lsquoLa geacuteneacuteration du demi-siegraveclersquo et lsquoLa condition de la litteacuteraturersquo II Editions Alsatia Paris s d

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palavras-chave que possam ser destacadas estudadas interpretadas e usadas em separado Sob o conceito a sombra da duacutevida sempre incide

O segmento dessa obra que primeiro veio a puacuteblico aquele que desencadeou a precoce celebridade do poeta e a primeira fase de sua fortuna criacutetica constitui-se sobretudo de riacutegida poesia metafiacutesica herdeira de umSimbolismo com aspiraccedilotildees musicais e esoteacutericas3 presente em poemas hoje canocircnicos como La jeune parque Eacutebauche drsquoun serpent e Le cimetiegravere marin constitui-se tambeacutem de criacuteticas discursos e prefaacutecios de ensaios aforismos contos e diaacutelogos todos formas breves como Introduction agrave la meacutethode de Leacuteonard de Vinci Monsieur Teste e diaacutelogos socraacuteticos como Lrsquoacircme et la danse e Eupalinos - Ou lrsquoarchitecte Se vaacuterios desses escritos foram concebidos sob a forccedila das circunstacircncias isto eacute comissionados para leitores ou puacuteblicos determinados e restritos isso se deve tanto agrave judiciosa resistecircncia agrave publicaccedilatildeo quanto ao extremo preciosismo do poeta daiacute as inuacutemeras versotildees de um mesmo poema por vezes consideradas contraditoacuterias Conta-se que demorava muito para revisar e reescrever como estavasta summa de interpretaccedilotildees e criacuteticas de reflexotildees sobre obras alheias sobre a arte a literatura e a filosofia que compotildeem a sua Varieacuteteacute Nesta num texto exemplar de poeacutetica moderna Au sujet du lsquoCimetiegravere marinrsquo ele chega a se referir auma laquoEacutetica da forma que conduz ao trabalho infinitoraquo ao laquotrabalho pelo trabalhoraquo agrave laquoretomada indefinidaraquo concebendo qualquer composiccedilatildeo escrita por mais organizada que aparentemente esteja como nunca verdadeiramente acabada mas simplesmente abandonada devido a um acidente qualquer4 Porque a finitude das obras eacute determinada pelas contingecircncias da vida natildeo pela intenccedilatildeo daquele que a vive

Da obra de Valeacutery haacute ainda um outro segmento dir-se-ia secreto no qual essas caracteriacutesticas a diletante pluralidade temaacutetica e a incompletude se acentuam ao grau extremo do paroxismo os seus Cahiers5 Publicados postumamente redefiniram a sua crescente fortuna criacutetica ao mostrar um maior leque de seus interesses e obsessotildees Preenchidos diariamente por volta das seis agraves nove da manhatilde de 1894 a 1945 numa espeacutecie de riacutegida disciplina monaacutestica por palavras frases e paraacutegrafos soltos por esboccedilos desenhos e aquarelas6 esses 261 dossiecircs podem ser compreendidos como uma coleccedilatildeo de reflexotildees e de foacutermulas

3 Cf todos os ensaios de Meacutemoires du poegravete in Œ1 pp 1447-15124 Œ1 p 14975 Os Cahiers tambeacutem foram por vezes denominados por inteacuterpretes iniciais de Carnets (Jean Preacutevost) ou de Notes (Maurice Beacutemol) termos hoje um tanto em desuso (Cf PREVOST Jean amp VALEacuteRY Paul Marginalia - Rhumbs - Et autres org Michel Jarrety Eacuteditions Leacuteo Scheer 2006 cf BEacuteMOL Maurice Paul Valeacutery G de Bussac Clermont-Ferrand 1949)6 Sobre a funccedilatildeo e o estatuto dos esboccedilos desenhos e aquarelas no pensamento de Valeacutery cf PICKERING Robert V Inscriptions alternatives in Paul Valeacutery - La page lrsquoeacutecriture Centre de Recherchessur Les Litteacuteratures Modernes et Contemporaines Association des Publications de la Faculteacute de Lettres et Sciences Humaines de Clermont-Ferrand Universiteacute Blaise-Pascal 1996 pp 227-280

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de esquemas a representar aquilo que foi denominado de laquoComeacutedia Intelectualraquo7

(laquoComeacutedie Intellectuelleraquo) mdashcomeacutedia proposta inicialmente em seus ensaios sobre Leonardo mas que natildeo deixaraacute de ser atualizada direta ou indiretamenteem outras obras de ficccedilatildeo e poesia8mdash laquoAutodiscussatildeo infinitaraquo9

(laquoAutodiscussion infinieraquo) laquoA teoria de si-mesmoraquo10 (laquoLa theacuteorie de soi-mecircmeraquo) laquoObra de arte feita com os fatos do proacuteprio pensamentoraquo11 (laquoŒuvre drsquoart faite avec les faits de la penseacutee mecircmeraquo) satildeo outras tantas significativas expressotildees usadas pelo proacuteprio poeta para tentar definir esse idiossincraacutetica empresa por vezes tambeacutem uma espeacutecie de canteiro de experimentaccedilotildees para futuros projetos Daiacute textos autocircnomos prenhes de sarcaacutesticos aforismos e reflexotildees como Meacutelange Tel Quel Mauvaises penseacutees et autres e Regards sur le monde actuel et autres essais serem em determinado aspecto derivaccedilotildees ou recortes dos proacuteprios Cahiers

O procedimento empregado nos Cahiers difere entretanto da simples anotaccedilatildeo comentada de fatos e acontecimentos do tradicional diaacuterio ou journal como os que foram escritos por um Amiel12 disposto a revelar as intimidades e as anguacutestias da vida cotidiana e um Gide13 resoluto tambeacutem em representar o panorama social no qual o escritor se engaja laquoEu natildeo escrevo meu ldquodiaacuteriordquoraquo confessa o poeta laquomdash Seria aborrecido escrever AQUILO que eu viria a esquecer AQUILO que natildeo custa nada mais do que o tormento imenso de escrever o que natildeo vale nadaraquo14 Valeacutery desenvolve assim a disciplina de uma escrituraccedilatildeo natildeo sobre a sua vida pessoal natildeo sobre os eventos exteriores e particulares pelos quais passa mas sobre o seu proacuteprio espiacuterito e as leis que o regem sobre os variados temas que lhe satildeo caros na medida em que estes possam principalmente esclarecer sobre essas proacuteprias leis Isso tambeacutem se devea uma confessa ldquofraquezardquo ou ldquodeficiecircnciardquo mnemocircnica a uma incapacidade emse recordar de eventos de detalhes ou de minuacutecias15 ou em outras palavras a um idiossincraacutetico desapego ao proacuteprio passado o que talvez iraacute se refletir em certa medida nas suas reflexotildees sobre a aspiraccedilatildeo da histoacuteria em ser uma disciplina positiva ou cientiacutefica O poeta natildeo busca reconstituir tampoucolamenta aquilo que passou aquilo que natildeo realizou ou deixou de realizar aquilo que simplesmente natildeo se pode mudar Para ele o tempo jamais eacute um ldquotempo

7 Œ1 p 12018 Cf BARBOSA Joatildeo Alexandre A comeacutedia intelectual de Paul Valeacutery Iluminuras Satildeo Paulo 2007 especialmente o capiacutetulo Paul Valeacutery e a lsquocomeacutedia intelectualrsquo9 C1rsquo p 510 C1rsquo p 511 C1rsquo p 512 Cf AMIEL Henri-Freacutedeacuteric Journal Intime - Janvier-juin 1854 Texte inteacutegral publieacute par la premiegravere fois avec une postface des notes et un index par Philippe M Monnier Bibliothegraveque Romande Lausanne 197313 Cf GIDE Andreacute Journal - 1939-1949 - Souvenirs Bibliothegraveque de la Pleacuteiade Gallimard Paris 198814 C1rsquo p 1315 Œ2 pp 1508-1510

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perdidordquo laquoNatildeo busco o tempo perdidoraquo afirma laquoque eu antes rejeitaria Meu espiacuterito soacute se compraz na accedilatildeoraquo16 Daiacute que por vezes considerou-se e foi considerado no panorama da Literatura Moderna como uma espeacutecie de ldquoantagocircnicordquo de Proust17 principalmente no que diz respeito tanto agraves idiossincrasias como aos programas literaacuterios de ambos O seu pensamento eacute sobretudo voltado para este jogo constante entre generalidades e particularidades entre imaginaccedilotildees e abstraccedilotildees entre siacutembolos e iacutecones sem que haja uma hierarquia vertical de valores entre essas polaridades e sobretudo para o tempo presente um tempo presente prenhe de possibilidades laquoOs acontecimentos satildeo a espuma das coisasraquo escreve em tom altamente metafoacuterico laquoMas eacute o mar que me interessa Eacute no mar que se pesca eacute sobre ele que se navega eacute nele que se mergulharaquo18

Ademais o poeta constantemente revela que em seus Cahiers aspirou e ateacute mesmo tentou construir uma espeacutecie de laquoSistemaraquo19 (laquoSystegravemeraquo) por ele compreendido paradoxalmente ora como filosoacutefico ora como natildeo filosoacuteficoEm todo caso seria um Sistema que representasse uma totalidade uma arquitetocircnica soacutelida finita e fechada uma cosmovisatildeo uma doutrina um discurso contiacutenuo coeso e coerente cujas proposiccedilotildees constitutivas se conectariam entre si por uma riacutegida loacutegica e todas a um uacutenico princiacutepio um uacutenico indiviacuteduo um laquoponto individualraquo (laquoEuraquo)20 (laquopoint individuel (laquoMoiraquo)) e impessoal Esse Sistemaseria tambeacutem uma laquoteoria do funcionamentoraquo21 (laquotheacuteorie du fonctionnementraquo)uma forma de explicar o todo natildeo mais atraveacutes de noccedilotildees consideradas propiacutecias a obscuridades e confusotildees metafiacutesicas como as noccedilotildees de causa realidade tempo e espaccedilo mas atraveacutes da noccedilatildeo de funcionamento22 uma forma de explicar o todo mdashpor vezes compreendido pelo poeta atraveacutes de trecircs principais categorias amiuacutede referidas laquoCorporaquo (laquoCorpsraquo) laquoEspiacuteritoraquo (laquoEspritraquo) e laquoMundoraquo (laquoMonderaquo) comumente designadas pela sigla CEM23mdash natildeo mais atraveacutes da noccedilatildeo de substacircncia mas atraveacutes da noccedilatildeo de funcionamento natildeo mais um substancialismo mas um funcionalismo Esse modo de abordar o todo no qual se busca responder o como e natildeo o porquecirc das coisas e dos agenciamentos das coisas revela o caraacuteterpositivo ou cientiacutefico do pensamento valeacuteryano caraacuteter que seraacute uma constante principalmente quando a linguagem e a filosofia estiverem em pauta

16 Œ1 p 120317 Para uma comparaccedilatildeo entre as concepccedilotildees artiacutesticas de Valeacutery e Proust cf ADORNO Theodor WMuseu Valeacutery Proust in Prismas - Criacutetica cultural e sociedade trad Augustin Wernet amp Jorge Mattos Brito de Almeida Aacutetica Satildeo Paulo 1998 pp 173-18518 Œ2 pp 150919 Cf C1rsquo pp 773-86520 C1rsquo p 81221 C1rsquo p 81522 Cf C1rsquo p 81223 Cf C1rsquo pp 1119-1149

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Todavia toda essa acircnsia em compreender a totalidade sofre no labiriacutentico e lacunar transcurso dos Cahiers sucessivas contraccedilotildees sucessivas derrotas reduzindo consequumlentemente a abrangecircncia da ambiccedilatildeo ldquoinicialrdquo por vezes o Sistema aparece como meacutetodo (ou literatura potencial) aparece como uma estrateacutegiade laquoimagens funcionaisraquo24 (laquoimages fonctionnellesraquo) que seria na perspectiva valeacuteryana laquouma forma capaz de receber todas as descontinuidades todas as heterogeneidades da consciecircnciaraquo25 uma forma capaz de axiomatizar a si mesmoseus pensamentos atraveacutes de uma espeacutecie de notaccedilatildeo ou de uma linguagem perfeita uma linguagem pura com a qual se representariam todas as coisas sem deformidades uma laquoGeometria do Todoraquo26 (laquoGeacuteomeacutetrie du Toutraquo) tal como a geometria analiacutetica de Descartes trata as figuras geomeacutetricas27 por vezes o Sistema aparece ainda simplesmente mais como um modo de organizar e utilizarseu proacuteprio pensamento que lentamente se acumula nas inuacutemeras paacuteginas que coleciona laquoO problema no qual eu me encontro cada vez mais encurraladoraquo anota por fim laquoeacute o problema de organizar meus pensamentos e de os organizar natildeo exteriormente mas organicamente e utilmenteraquo28 Daiacute tambeacutem a intenccedilatildeo de estruturar os Cahiers mdashque agora podem muito bem ser compreendidos em parte como o resultado desse Sistema natildeo feitomdashcomo uma espeacutecie de dicionaacuteriofilosoacutefico gecircnero que lhe eacute caro e ao qual sempre se refere como o mais adequado(ou o menos problemaacutetico) agrave organizaccedilatildeo de seus escritos Passar os seus pensamentos escritos do caos agrave ordem eis o que acaba sendo ao fim o que simplesmente pretende ou o que simplesmente pode pretender laquoProjeto meu Dicionaacuterio Filosoacutefico ou o meio mais simples de me expor agrave mateacuteria desses cadernos mdash e de me poupar o mal os defeitos e o iacutentimo ridiacuteculo (de mim mesmo) de um Sistemaraquo29 Ou ainda laquoMinha filosofia mdash eacute necessaacuterio resolver fazer esses cadernos por secccedilotildees e temasraquo30

O comportamento de Valeacutery eacute portanto de uma estranha ambiguumlidadeApesar da aspiraccedilatildeo e das inuacutemeras tentativas em construir um Sistema se realmente eacute possiacutevel se referir a tentativas genuiacutenas ele parece natildeo fazer muito esforccedilo para concretizaacute-lo formalmente em uma doutrina ou em um livro acabado Ao mesmo tempo em que o persegue como uma possiacutevel siacutentese de suas reflexotildees rejeita-o como se ele natildeo tivesse tanta importacircncia como se fosse um projeto propositadamente nascido para ser irrealizado Quiccedilaacute ele intua a forte e imperiosa condiccedilatildeo de uma sociedade que por mais que exija o ato de concluir

24 Cf C1rsquo p 80725 Cf C1rsquo p 80726 C1rsquo p 81327 Cf C1rsquo p 812 28 C1rsquo p 829 C1rsquo p 1430 C1rsquo p 8

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tambeacutem o impede a Ciecircncia Moderna o espiacuterito positivo e a laicizaccedilatildeoconstrangem mediante agrave concepccedilatildeo de que o saber eacute uma dinacircmica e natildeo uma estaacutetica os impulsos agrave siacutentese totalizadora que cedem lugar agrave anaacutelise parcial mais pragmaacutetica e propiacutecia a dar resultados efetivos e utilizaacuteveis no campo da praacutetica a vida torna-se cada vez mais uma celerada sucessatildeo de lacunas difiacuteceis de serem preenchidas pelo sujeito que se encontra diante de inuacutemeras e divergentes concepccedilotildees de mundo diante de outras formas de pensar O sentido do todo se esvai ou se relativiza pateticamente confrontando-se com outros tantos sentidos e o sistema torna-se assim um caminho difiacutecil e problemaacutetico Pois por mais que se tente forte eacute a compreensatildeo que haacute sempre um mais aleacutem no mundo algo que as teorias humanas natildeo datildeo conta Como Kierkegaard e Nietzsche como Wittgenstein e Cioran o poeta tambeacutem escreve apoacutes odesencanto do pensamento filosoacutefico para com os grandes edifiacutecios filosoacuteficos e para com as possibilidades de se fazer da metafiacutesica uma ciecircncia das coisas transcendentes um saber e desse saber um absoluto O periacuteodo do Racionalismo Claacutessico de um Descartes um Espinosa e um Leibniz do Idealismo Alematildeo de um Hegel parece jaacute haver passado tampouco o projeto de uma obra de arte total siacutentese aglutinante de todas as outras como o que ainda se propocircs um Wagner tambeacutem foi minado Abarcar a totalidade numa forma de representaccedilatildeo plenamente organizada fazer com que o mundo ou melhor uma representaccedilatildeo do mundo se acomode numa hierarquia fixa de valores e sentidos revelou-se um sonho utoacutepico que por vezes conteacutem mesmo que sub-repticiamente intenccedilotildees totalitaacuterias A identificaccedilatildeo nem sempre verdadeira e justa entre sistema e dogma faz-se agora mais recorrente e por vezes intoleraacutevel Hoje soam falsase pretensiosas as filosofias que se apresentam como sistemas totais

Entretanto natildeo eacute apenas pelo prisma eacutetico que a aspiraccedilatildeo ao sistema seproblematiza mas tambeacutem pelo prisma gnosioloacutegico O proacuteprio Valeacuterydemonstra consciecircncia disso Em seu ceacutelebre ensaio Au sujet drsquolsquoEurecirckarsquo no qual versa sobre este que eacute um dos textos que mais marcou seu proacuteprio pensamento a excecircntrica cosmogonia de Edgar Allain Poe Eureka - A prose poem ele executauma dura criacutetica agrave crenccedila num princiacutepio absoluto agrave crenccedila na criaccedilatildeo douniverso e no proacuteprio universo enquanto totalidade ontoloacutegica plenamente apreendida pelo sujeito considerando-o como uma laquoexpressatildeo mitoloacutegicaraquo31

31 Œ1 p 866 Aquilo que o seminal contista norte-americano se propocircs nesse escrito que flana audaciosamente entre o ensaio filosoacutefico e o conto fantaacutestico eacute sobretudo a construccedilatildeo da imagem de um universo ldquopanteiacutestardquo relativamente distinto do apresentado pelos mitos de origem da tradiccedilatildeo judaico-cristatilde um universo maravilhosamente regido por leis naturais que se interconectam e que axiomatizadas se reduziriam agrave atraccedilatildeo e agrave repulsatildeo um universo vasto mas espacialmente finito cujo comportamento se assemelha a um coraccedilatildeo pulsante e divino expandindo-se e contraindo-se fragmentando-se e unificando-se e assim sucessivamente Note-se que jaacute pelo subtiacutetulo (A prose poem) e pelas paacuteginas iniciais Eureka natildeo foi estabelecida por Poe simplesmente como um escrito cientiacutefico mas como uma obra artiacutestica baseada na ideacuteia de que a ldquoverdaderdquo cientiacutefica identifica-se com a ldquobelezardquo (Cf

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(laquoexpression mythologiqueraquo) Ao fim todo sistema soacute poderaacute ser um sistema pessoal soacute poderaacute funcionar de modo pleno para aquele que nele crecirc e a ele aderepara aquele que o cria e dele se utiliza porque seria necessaacuterio sair de si mesmo eser todos e cada um porque seria necessaacuterio contemplar cada coisa por todas as perspectivas por todos os acircngulos para se construir verdadeiramente um sistema total Em uacuteltima instacircncia o sujeito eacute capaz de pensar conceitualmente o todo mas natildeo eacute capaz de verificar se esse pensamento conceitual sobre o todo corresponde agrave realidade

O poeta desconfia deve desconfiar portanto da possibilidade de explicar a realidade e a si mesmo o corpo o espiacuterito e o mundo (CEM) por um uacutenicoprinciacutepio por uma uacutenica obra cativo da intuiccedilatildeo de que a verdade mdashtermo significativamente raro em seus escritos em favor do termo possibilidademdash mesmo sendo em determinada definiccedilatildeo una soacute pode ser enunciada de modo incompleto como perspectiva laquoEsses cadernos satildeo o meu viacutecio Eles satildeo tambeacutem anti-obras anti-finsraquo assim confirma denunciando tambeacutem a artificialidade de todo gecircnero literaacuterio laquoNo que concerne ao ldquopensamentordquo as obras satildeo falsificaccedilotildees pois elas eliminam o provisoacuterio e o natildeo-reiteraacutevel o instantacircneo e a mistura pura e impura desordem e ordemraquo32 Dessarte o Sistema ou melhor a meta em se constituir um Sistema a acircnsia de compreender a totalidade acaba se tornando nada mais do que um artifiacutecio heuriacutestico Um artifiacutecio cujo resultado eacute a mais intensa soma de ldquofracassosrdquo de ldquotentativasrdquo e ldquoesterilidadesrdquo33 de repeticcedilotildees e atualizaccedilotildees de experimentaccedilotildees de paraacutegrafos e frases incompletas de palavras soltas de um pensamento que natildeo se quis completar em obra a mais intensa e desconcertante fragmentaccedilatildeo Eis no que se materializa quase tudo aquilo que escreve o material bruto sempre disperso e fluido no qual o inteacuterprete cumpre estudar e cuidar para natildeo falsear em uma ordem (entre tantas outras possiacuteveis) jamais intencionada pelo poeta Os Cahiersnascem assim como um vitral estilhaccedilado um quebra-cabeccedila Satildeo inuacutemeras as peccedilas as passagens ou potencialidades agrave espera que outros executem as suas possiacuteveismontagens e interpretaccedilotildees Se interpretar um conjunto de escritos eacute umconstante ir e vir um diaacutelogo ou uma dialeacutetica entre as partes e o todo entatildeo

POE Edgar Allan Eureka - A prose poem Prometheus Books Nova York 1997) Esse inventivo modo de interpretar e atualizar um antiquumliacutessimo gecircnero literaacuterio ou miacutetico numa eacutepoca cientiacutefica e com alusatildeo a teorias cientiacuteficas marcou profundamente o pensamento de Valeacutery principalmente na compreensatildeo da unidade entre ciecircncia e arte e no caraacuteter esteacutetico das construccedilotildees metafiacutesicas (Cf dois ensaio de Jean Starobinski um que versa sobre Eureka Edgar Poe ldquoEurekardquo outro que versa sobre os conceitos de atraccedilatildeo e repulsatildeo e sobre a influecircncia de Eureka no pensamento de Valeacutery laquoSoy reaccioacuten a lo que soyraquo (Paul Valeacutery) ambos in STAROBINSKI Jean Accioacuten y reaccioacuten - Vida y aventuras de una pareja t Eliane Casenave Tapieacute Isoard Fondo de cultura econoacutemica Meacutexico 2001)32 C1rsquo pp 11-1233 Cf BOISDEFFRE Pierre de Paul Valeacutery ou lrsquoimperialisme de lrsquoesprit in Meacutetamorphose de la litteacuterature - De Proust agrave Sartre - Proust Valeacutery Cocteau Anouilh Sartre Camus - Essais de psychologie litteacuteraire suivis de deux eacutetudes sur lsquoLa geacuteneacuteration du demi-siegraveclersquo et lsquoLa condition de la litteacuteraturersquo II Editions Alsatia Paris s d

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interpretar o pensamento de Valeacutery tambeacutem pressupotildee primeiramente juntar determinados fragmentos que legou numa linha coerente de sentido mas sempre consciente de que o objeto interpretado eacute sobretudo um estado extremamenteprovisoacuterio e fraacutegil laquoTudo o que eacute escrito nesses cadernos meus tem a caracteriacutestica de natildeo querer jamais ser definitivoraquo34 laquoFalta-me um alematildeo que conclua as minhas ideacuteiasraquo35 assim expressa-se o poeta numa irocircnica referecircncia aos gigantescos sistemas do Idealismo Alematildeo Natildeo terminar recusar-se a cumprir o dever mdashexigecircncia tatildeo presente no capitalismo burguecircsmdash de resultar em algo veio a ser uma espeacutecie de deliacutecia para esse escritor que se concentrava no fluir de todas as coisas e agrave possibilidade de formular na loacutegica desse fluir Dizia assim em uma de suas recorrentes metaacuteforas sobre sua escritura que seu trabalho como escritor era anaacutelogo ao de uma fiel Peneacutelope a fazer e a desfazer o manto e a esperar por um aventureiro Odisseu36 Desse modo atraveacutes do fragmento ele pode maisfacilmente transitar de frase em frase de palavra em palavra sem nunca se entregar ao perigo de uma conclusatildeo final e abordar com mais desenvoltura e rapidez os seus variados temas Isso implica naturalmente a ocorrecircncia quase inevitaacutevel de uma seacuterie de contradiccedilotildees Mas o poeta natildeo as nega e natildeo as esconde ao contraacuterio natildeo raro as incita e as valora de modo positivo Pois elas natildeo representam hesitaccedilotildees recuos arrependimentos culpas mas sobretudo etapas a serem cumpridas laquoNossas contradiccedilotildeesraquo lucidamente escreve laquosatildeo o testemunho e os efeitos da atividade de nosso pensamentoraquo37

A arte que se pratica eacute portanto a arte do ensaio Ensaio cujo iniacutecio se desconhece e cujo fim foi interrompido A escritura de Valeacutery eacute assimrelativamente anaacuteloga agravequela que Michel de Montaigne inaugurou apesar do distanciamento cronoloacutegico que o separa do fidalgo com quem parece natildeo ter muitas afinidades temaacuteticas38 ele poderia muito bem dizer laquoNatildeo retrato o ser Retrato a passagemraquo39 Todavia trata-se agora de retratar a dimensatildeo mais abstrata mais eteacuterea da passagem uma dimensatildeo em ruiacutenas de retratar a si mesmoum espiacuterito que ao refletir e escrever mdashou ao menos tentar refletir e escrevermdashsobre inuacutemeros temas com isso frequumlentemente aspira por um lado agrave sua proacutepria dissoluccedilatildeo enquanto escritor e por outro a sua proacutepria construccedilatildeo enquanto eu Os escritos de Valeacutery configuram-se como uma anti-obra

111 DA CRISE Agrave AUTARQUIA ESPIRITUAL

34 C1rsquo p 635 C5 p 16736 Cf C1rsquo p 9 cf C1rsquo p 1137 Œ1 p 37738 Cf C1rsquo p 20639 MONTAIGNE Michel de Cap II - Do arrependimento in Os Ensaios III trad Rosemary Costhek Abiacutelio Martins Fontes Satildeo Paulo 2001 p 27

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Convencer eacute infrutiacuteferoWalter Benjamin Rua de matildeo uacutenica

Contudo toda essa diletante variedade temaacutetica e incompletude toda essa fragmentaccedilatildeo natildeo resultam apenas da resposta mecacircnica agraves limitaccedilotildees e possibilidades impostas por um contexto histoacuterico e pela desconfianccedila nobeneplaacutecito do sistema Haacute tambeacutem em Valeacutery em seu oscilante itineraacuterio espiritual o peso de um confesso e estranho periacuteodo de crise40 cujas consequumlecircncias fazem-se presentes reverberam em reflexotildees sobre si mesmo e sua atividadecomo escritor sobre sua concepccedilatildeo acerca da linguagem e sua criacutetica agrave filosofia sobre grande parte desse seu proceder de seu meacutetodo e meta41 O aacutepice desse periacuteodo eacute frequumlentemente datado (sem muita precisatildeo42) da noite do dia 4 ao dia 5 de Outubro do ano de 1892 o local um quarto de um ex-convento restauradoem apartamentos um dos quais pertencente a sua tia e a seu tio os Cabella na Salita di san Francesco uma ruela em Gecircnova43 onde juntamente com sua matildee Fanny e seu irmatildeo Jules Valeacutery o poeta empreendia uma viajem agrave Itaacutelia de seus antepassados (pelo lado materno seu avocirc era genovecircs e sua avoacute triestina) Amiuacutede foi batizada pelo proacuteprio poeta de laquoNoite de Gecircnovaraquo44 (laquoNuit de Gecircnesraquo) ou sugestivamente adjetivada de laquoGolpe de estadoraquo45 (laquoCoup drsquoeacutetatraquo) expressatildeo esta bastante recorrente em seus escritos

Os relatos dessa noite satildeo pelo suposto impacto sofrido pateacuteticos edesconexos como soem ser frequumlentemente todas os momentos de crises todos os iniacutecios Mas o inteacuterprete natildeo pode deixar de descartar que haja neles muito de dramatizaccedilatildeo e exagero de mise en scegravene dir-se-ia que faz parte da lenda

40 BERTHOLET Denis Chapitre 5 - Crise (1891-1892) amp Chapitre 6 - Coup drsquoeacutetat (1892-1894) in Paul Valeacutery - 1871-1945 Biographies Plon Paris 1995 JARRETY Michel Chapitre VIII - Salita di san Francesco in Paul Valeacutery Fayard 200841 O modo como um autor define ou usa um determinado conceito em seus primeiros escritos natildeo eacute necessariamente o mesmo que em seus uacuteltimos ele pode moldaacute-lo refazecirc-lo de acordo com os contextos e as frases que engendra de acordo com seus objetivos imediatos e contingentes de acordo com a sua proacutepria trajetoacuteria de vida Pressupotildee-se portanto que haja nisso uma evoluccedilatildeo talvez ateacute mesmo uma espeacutecie de progresso rumo a algo inicialmente desconhecido Daiacute natildeo raro uma obra poder ser encarada como o registro de um movimento limitado no tempo e no espaccedilo da vida que a executa A historicidade opera assim tanto entre as geraccedilotildees e as tradiccedilotildees quanto internamente no pensamento vivido e no pensamento escrito de uma soacute pessoa Valeacutery todavia natildeo foge a essa regra Contudo haacute uma particularidade jaacute foi dito por natildeo mais de um criacutetico que ele parece ter ldquonascido prontordquo tal o grau de maturidade de seus primeiros escritos Suas variadas obsessotildees e mesmo o seu estilo continuam basicamente os mesmos ao longo de toda sua vida Em grande medida sua obra eacute portanto composta por revisotildees e atualizaccedilotildees sobre temas em grande parte determinados em sua juventude Esses temas permanecem o que muda ou pode vir a mudar eacute o modo como o poeta os compreende (Cf CIORAN Emile Valeacutery faces agrave ses idoles in Œuvres Quarto Eacuteditions Gallimard 1995especialmente p 1566)42 Cf Œ2 p 143543 Cf JARRETY Michel Chapitre VIII - Salita di san Francesco in Paul Valeacutery in Paul Valeacutery Fayard 2008 especialmente pp 111-11244 Cf C1rsquo pp 86 113 145 190 e 1447 C2rsquo pp 460 e 87545 Cf C2rsquo p 460

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do poeta lenda que ele mesmo sentiu em vida e natildeo quis dissipar46 laquoNoite horriacutevelraquo assim escreve Valeacutery num ceacutelebre relato laquopermaneccedilo sentado sobre minha cama Tempestade por todo lado Meu quarto me assombra a cada claratildeo E todo o meu destino se concentra em minha cabeccedila Eu estou entre eu e eu Noite infinita CRIacuteTICA Talvez seja o efeito desta tensatildeo do ar e do espiacuterito E essas violentas rebentaccedilotildees redobradas do ceacuteu essas bruscas iluminaccedilotildees sofreadas entre os muros puros de cal nua Eu me sinto OUTRO esta manhatilde Mas mdash sentir-se Outro mdash isso natildeo pode durar mdash [] que o novo homem absorva e anule o primeiroraquo47

Haacute doravante um outro relato justamente no iniacutecio do ensaio Au sujet drsquolsquoEurecirckarsquo no qual Valeacutery descreve de modo mais preciso o seu estado de espiacuterito no periacuteodo de crise e ao redor da Noite de Gecircnova eacute uma compreensatildeo de si nada condescendente que revela o quanto o entusiasmo acerca das ideacuteias torna-se na oscilante juventude ldquofogo-de-palhardquo nasce e morre com grande facilidade laquoEu tinha vinte anos e acreditava no poder do pensamento Sofria estranhamente de ser e de natildeo ser Por vezes sentia infinitas forccedilas Elas caiacuteamante os problemas e a fraqueza de meus poderes positivos me desesperava Eu era taciturno ligeiro faacutecil em aparecircncia duro no fundo extremo no desprezo absoluto na admiraccedilatildeo faacutecil de impressionar impossiacutevel de convencer Tinha feacute em algumas ideacuteias que vieram a ter comigo Eu tomava a conformidade que elas tinham com meu ser que as haviam engendrado por uma marca de seu valor universal aquilo que se aparecia tatildeo nitidamente ao meu espiacuterito parecia invenciacutevel o que engendra o desejo eacute sempre o que resulta mais claro Conservava essas sombras de ideacuteias como segredos de Estado Tinha vergonha de suas estranhezas tinha medo que fossem absurdas sabia o que elas eram e o que elas natildeo eram Eram vatildes por si mesmas poderosas pela forccedila singular que me davam a confidecircncia que me guardava A inveja desse misteacuterio de debilidade me inundava de uma espeacutecie de vigor Havia deixado de fazer versos quase natildeo lia As novelas e os poemas me pareciam apenas aplicaccedilotildees particulares impuras e semi-inconscientes de algumas propriedades aplicadas a esses famosos segredos que acreditei encontrar um dia somente por esta garantia sem relaxamento que eles deveriam necessariamente existir Quanto aos filoacutesofos os quais havia apenas frequumlentado me irritava sobre esse pouco que eles natildeo respondiam nunca a nenhuma das dificuldades que me atormentavam Soacute me produziam aborrecimentos jamais o sentimento de que comunicassem qualquer poder verificaacutevel E ademais me parecia inuacutetil especular sobre abstraccedilotildees que natildeo se houvera definido anteriormente [] Havia metido o nariz em alguns 46 BERTHOLET Denis Paul Valeacutery - 1871-1945 Biographies Plon Paris 1995 p 91 JARRETY Michel Chapitre VIII - Salita di san Francesco in Paul Valeacutery Fayard 2008 pp 116-11747 Œ2 pp 1435-1436

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miacutesticos Resulta impossiacutevel criticaacute-los pois neles soacute se encontra o que se colocaraquo48

O que desencadeou o periacuteodo de crise e a Noite de Gecircnova mdashesta que para a Histoacuteria da Literatura Moderna eacute menos como um fato e mais como um siacutembolo como a concentraccedilatildeo de todo uma transformaccedilatildeo e um raacutepido amadurecimentomdashfoi em parte e segundo alguns comentadores a paixatildeo natildeo declarada a uma tal dama de Rovira Mme de Rovira49 baronesa catalatilde mas tambeacutem natildeo se pode descartar uma seacuterie de outros acontecimentos que desde haacute muito se acumulavam na vida do jovem e hipersensiacutevel poeta o doloroso serviccedilo militar50 o teacutermino de seus estudos universitaacuterios e as incertas perspectivas profissionais (incertezas que sempre formam uma sombra em sua biografia51) a releitura de Eureka de Poe e a leitura de Illuminations de Rimbaud os estudos matemaacuteticos e cientiacuteficos a lhe revelarem um mundo de ldquoprecisatildeordquo e ldquorigorrdquo diferente do ldquovagordquo mundo da literatura e da miacutestica a morte do pai a doenccedila da matildee um primeiro contato com as ruas os cafeacutes os salotildees de uma efervescente Paris52

Entretanto todos esses acontecimentos pertencem mais agrave ordem factual da vida do que espiritual Nesta a mais importante o periacuteodo de crise e a Noite de Gecircnova ambos podem muito bem ser interpretados como o resultado e a conscientizaccedilatildeo de uma tensatildeo Tensatildeo que indeleacutevel natildeo cessaraacute de todo e marcaraacute a pessoa e todo o pensamento de Valeacutery entre dois poacutelos dois impulsos dois desejos entre o sentimento e a inteligecircncia entre a pessoalidade e a impessoalidade entre um lado emocional facilmente excitaacutevel e um lado intelectual que aspira por um maior grau de consciecircncia e por controle Como confessa o proacuteprio poeta numa frase exemplar que em muito sintetiza o teor do seu espiacuterito e obra laquoEu penso como um racionalista arqui-puro Eu sinto como um miacutesticoraquo53 (laquoJe pense en rationaliste archi-pur Je sens en mystqueraquo) Ou ainda laquoPor um lado eu considero e julgo as coisas com uma extrema e 48 Œ1 pp 854-85549 Cf CVG p 107 CVF p 28 e 125 BERTHOLET Denis Paul Valeacutery - 1871-1945 Biographies Plon Paris 1995 pp 77-78 e 85-88 JARRETY Michel Chapitre VII - Madame de R in Paul Valeacutery Fayard 200850 Sobre a questatildeo fisioloacutegica ou ldquomuscularrdquo em Valeacutery cf C1rsquo pp 130-13151 Apesar de ter estudado na Faculteacute de Droit de Montpellier Valeacutery diferentemente de seu irmatildeo Jules nunca exerceu ou pretendeu exercer a advocacia De 1897 a 1900 serviu como funcionaacuterio puacuteblico no Ministegravere de la Guerre depois trabalhou como secretaacuterio particular de um dos principais administradores da Agence Havas M Eacuteduard Lebey para quem entre outras atividades lia e comentava jornais e revistas profissatildeo que muito provavelmente lhe auxiliou a formar o repertoacuterio necessaacuterio para as suas constantes reflexotildees sobre a Modernidade presente em todos esses escritos Depois contando com sua celebridade palestrou e ministrou conferecircncias pela Europa e jaacute em idade avanccedilada lecionou poeacutetica no Collegravege de France (Cf Œ1 pp 24-25 e 27 respectivamente BERTHOLET Denis Paul Valeacutery - 1871-1945 Biographies Plon Paris 1995 JARRETY Michel Paul Valeacutery Fayard 2008)52 BERTHOLET Denis Paul Valeacutery - 1871-1945 Biographies Plon Paris 1995 pp 36-102 JARRETY Michel Chapitre VII - Madame de R amp Chapitre VIII - Salita di san Francesco in Paul Valeacutery Fayard 2008 53 C2rsquo p 418

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assustadora frieza por outro eu as sinto terrivelmente E entre essas coisas a idade as outras pessoasraquo54 Essa tensatildeo ainda se multiplicaraacute e se desdobraraacute em sua obra em outras tantas particularizaacuteveis no plano epistemoloacutegico entre a abstraccedilatildeo e a concretude o siacutembolo e o iacutecone entre um espiritualismo racionalista e um sensualismo empirista ou ainda como diz Maurice Blanchot entre laquoA abstenccedilatildeo criadora e a presenccedila invencivelmente atual entre o desejo do espiacuterito de estar separado e sua necessidade de perguntar ao corpo a prova de seus poderes entre o nada que eacute a vida da consciecircncia e o nada da consciecircncia que eacute vivaraquo55 no plano eacutetico entre o desengajamento e o engajamento entre a vita contemplativa e a vita ativa

Soma-se a essa tensatildeo mistura-se a ela a partir do periacuteodo de crise e da Noite de Gecircnova a aquisiccedilatildeo de uma consciecircncia extrema visceral bem aos moldes do Ceticismo Antigo do quanto agrave realidade esta eacute composta e mediada por convenccedilotildeeshumanas demasiado humanas por arbitrariedades sejam estas fiacutesicas ou psiacutequicas eacuteticas ou esteacuteticas sejam essas necessaacuterias ou desnecessaacuterias do quanto tudo eacute relativo Para usar de uma reflexatildeo que soa ao estilo de Leibniz se haacute um espanto filosoacutefico valeacuteryano esse espanto natildeo eacute ante o haver alguma coisa ao inveacutes do nada (como geralmente ocorre no registro do Cristianismo) mas ante as coisas serem assim e natildeo de outro modo (como geralmente ocorre no registro da Antiguumlidade Claacutessica) laquomdash O impressionante natildeo eacute que as coisas sejam mas que elas sejam dessa maneira e natildeo de outraraquo56 O delirante pensamento mdashde que ldquotudo pode ser realmente diferente natildeo de modo metafoacuterico mas literalrdquomdash eacute uma possibilidade ldquouniversalrdquo E eacute essa possibilidade uma das fontes mais poderosas do insone pensamento de Valeacutery

Aquilo que outrora num mundo menos laicizado poder-se-ia ser compreendido como morte e renascimento espiritual a superaccedilatildeo do periacuteodo de crise e da Noite de Gecircnova o conduziu a um progressivo aniquilamento de todas essas tensotildees ou ao menos a uma conciliaccedilatildeo possiacutevel entre as polaridades que a constituem conduziu-o tambeacutem a uma progressiva conversatildeo a si mesmo O que haacute que se dizer natildeo impediu que ele sofresse outras tantas crises de menor impacto jaacute que tudo se constitui como uma tentativa A partir de entatildeo na esfera privada o poeta busca suprimir estoicamente as ilusotildees causadas pelas ldquopaixotildeesrdquo e na esfera puacuteblica suspende ao menos provisoriamente a escritura de poesias57 escritura agrave qual posteriormente retomaraacute mais por interesse na poeacutetica ou na loacutegica da estrutura verbal do poema do que pelo poema em si e se

54 C1rsquo p 9955 BLANCHOT MauriceValeacutery et Faust in La part du Feu Nrf Gallimard 1949 p 28256 Œ1 p 122157 Esse periacuteodo seraacute compreendido pela criacutetica com o Grande Silecircncio (Cf BEacuteMOL Maurice Paul Valeacutery G de Bussac Clermont-Ferrand 1949 p 27 e pp 30-60)

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afasta em definitivo dos pressupostos parnasianos e de um misticismo idealista-romacircntico do tipo fin-de-siegravecle decadentista que anterior aderira e doravantedenunciou como inadequados a seu novo caminhar a partir de entatildeo ele define aquilo que seraacute denominado aqui como uma espeacutecie de programa deautoconsciecircncia58 cuja manifestaccedilatildeo exterior mais contundente se expressa em seus Cahiers e em menor grau em sua obra puacuteblica

Esse programa de autoconsciecircncia mdashque obviamente natildeo pode ser estabelecidocomo um planejar o caminho antes de caminhar mas um planejar o caminho no proacuteprio caminharmdash inicia-se com extremo radicalismo com uma espeacutecie de tabula rasa ou ao menos uma tentativa (e tatildeo-somente tentativa) de comeccedilar ou recomeccedilar de um postulado zero eacute inicialmente um aspirar um almejar aquilo que aqui pode ser denominado de autarquia intelectual de autarquia espiritual eacute umtornar o seu espiacuterito o mais distanciado o mais autocircnomo o mais livre possiacutevel do legado de problemas de uma tradiccedilatildeo literaacuterio-filosoacutefica Pois esses problemas natildeo satildeo necessariamente considerados como problemas por aquele que os recebe Se ele o poeta os aceita sem refletir sem analisaacute-los ou destrinccedilaacute-los sem sentir ou intuircomo tais entatildeo ele os aceita comodamente com automatismo mdashe automatismo eacutejustamente aquilo que deve ser evitado sendo um estado contraacuterio ao exigido pelo seu proacuteprio programa de autoconsciecircnciamdash A adesatildeo a uma ideacuteia tal processo deve ocorrer portanto com extremo cuidado se realmente deve ocorrer Porque ao fim o caminho espiritual ou intelectual de um homem somente pode ser caminhado por ele e tatildeo somente por ele Natildeo se pode pensar o que um outro pode pensar natildeo de modo idecircntico porque entatildeo ambos seriam o mesmo do mesmo modo que natildeo se pode viver o que um outro pode viver natildeo de modo idecircntico porque entatildeo ambos seriam o mesmo Haacute no maacuteximo analogias paralelismos parentescos influecircncias um caminhar junto mas jamais identidades absolutas entre pensamentos ou entre sistemas de pensamentos assim como entre trajetoacuterias de vida Tudo o que vem de fora tudo o que vem dos outros todas as ideacuteias todas as crenccedilas e doutrinas todos os dogmas e aporias todas as perguntas e respostas todas as certezas e duacutevidas que durante largo tempo foram se configurando e por vezes se cristalizando ao grau de serem natildeo rarointrojetadas como condiccedilotildees naturais intriacutensecas natildeo deveriam ser aceitas a partir de entatildeo displicente e comodamente como se o espiacuterito fosse apenas um vasto depositaacuterio relativamente passivo daquilo que outros inventaram e

58 A expressatildeo mdashprograma de autoconsciecircnciamdash natildeo eacute gratuita o termo ldquoprogramardquo evoca a ideacuteia de que haacute uma disciplina a ser cumprida agrave qual toda uma obra futura deveraacute estar condicionada algo portanto consoante ao espiacuterito valeacuteryano avesso ao improviso e amante do treino jaacute o termo ldquoautoconsciecircnciardquo evoca a ideacuteia de lucidez e controle sobre si mesmo e estaacute presente nos proacuteprios escritos de Valeacutery que o escreve em inglecircs ldquoself-consciousnessrdquo remetendo-se tambeacutem assim agraves exigecircncias de racionalidade no fazer literaacuterio preconizadas por Edgar Allan Poe (Cf C1rsquo p 317 cf C2rsquo p 318)

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legaram e natildeo um poderoso crivo e um transformador criacutetico de tudo aquilo que recebe

Eis porque natildeo raro Valeacutery que tanto apreciava as definiccedilotildees metafoacutericas e sinteacuteticas frequumlentemente refere-se a si mesmo como um Robson Crusoeacute do espiacuterito59 O fantaacutestico e paradigmaacutetico personagem de Daniel Defoe vasto siacutembolo de uma ambiacutegua e engenhosa vontade civilizadora do homem que a partir da natureza bruta inventa suas proacuteprias artificialidades e problemas representa para o poeta natildeo apenas a teacutecnica que lhe permite accedilatildeo no mundo exterior mas sobretudo a teacutecnica que lhe permite accedilatildeo no mundo interior isto eacute um homem que inventa seus proacuteprios problemas teoacutericos e tenta solucionaacute-los com os proacuteprios meios de que dispotildee sem recorrer a outros laquoSou um miseraacutevel Robinsonraquo descreve-se laquonuma ilha de carne e de espiacuterito rodeado por todas as partes de ignoracircncia e fabrico generosamente meus utensiacutelios e minhas artesraquo60 Assim se manifesta o ldquoindividualismordquo o ldquoegotismordquo valeacuteryanocomo uma poderosa feacute em si mesmo um insistente querer fazer as coisas por simesmo e independente dos outros e do que os outros iratildeo pensar ou julgar

Um exemplo dessa incisiva atitude encontra-se de modo exagerado e paradoxal num breve diaacutelogo socraacutetico intitulado Orgueil pour orgueil Nesse diaacutelogo cuja estrutura remete agrave eriacutestica sofiacutestica Anaxaacutegoras confronta-se com Soacutecrates mas um Soacutecrates relativamente distinto daquele que seraacute apresentado nosgrandes diaacutelogos Eupalinos e Lrsquoacircme et la danse

laquoANAXAacuteGORAS Se vocecirc tem razatildeo posto que eu natildeo sou vocecirc vocecirc natildeo pode ter verdadeiramente razatildeo oacute Soacutecrates Eacute necessaacuterio entatildeo que eu ainda reflita Eacute necessaacuterio que retomando o que vocecirc me disse e partindo do estado no qual vocecirc colocou o meu pensamentotendo combatido e vencido eu encontro finalmente uma razatildeo em mim que por sua vez conteacutem a sua proacutepria e justifique entretanto minha opiniatildeo precedente E isso sob pena de minha morte Pois de outro modo ao que rimaria minha existecircncia SOacuteCRATES Que orgulho Anaxaacutegoras O orgulho eacute o sentimento de ser nascido para alguma coisa que somente noacutes podemos conceber e esta coisa [eacute] mais grande e mais importante que todas as outras [] A coisa que eu quero deve ser sempre superior agravequela que quer qualqueroutro Tal eacute o orgulho Ele natildeo emana das coisas feitas nem daquilo que se eacute Mas meu ideal eacute infinitamente acima do seu pois ele eacute meu unicamente porque ele eacute meuraquo61

O assunto desse diaacutelogo natildeo aparece nem necessita aparecer pois o que estaacute em jogo eacute a relaccedilatildeo entre seus dois personagens ou vozes Note-se que Soacutecrates e Anaxaacutegoras concordam que as suas respectivas razotildees satildeo verdadeiras masapenas para cada um deles mesmo que o outro natildeo as aceite como tal Na terminologia de Valeacutery o orgulho que eacute uma espeacutecie de servilismo a si mesmo impede que ambos sejam seduzidos pela vaidade que eacute uma espeacutecie deservilismo aos outros62 Haacute assim a concepccedilatildeo de que cada um foi feito mdashque

59 Cf C1rsquo p 41 126 157 158 196 e 440 cf C2 p 49 473 649 cf Œ2 pp 411-420 60 Œ1 p 96161 Œ1 p 36062 Cf C1rsquo p 284

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cada um deve se fazermdash para seguir o seu proacuteprio caminho para cumprir o seu proacuteprio papel no teatro do mundo

A aspiraccedilatildeo por uma autarquia intelectual uma autarquia espiritual e a concepccedilatildeo de um itineraacuterio irredutiacutevel a outrem o orgulho de si coadunam-seharmonizam-se por conseguinte com a perspectiva criacutetica de Valeacutery frente a qualquer forma ou qualquer ato de proselitismo63 O proseacutelito eacute contraacuterio ao correto pensar Ser intelectualmente livre tambeacutem implica ser necessariamente livre do desejo de doutrinar de convencer ou ateacute mesmo de compartilhar com o outro algo que natildeo se sabe ser verdadeiro ou falso Daiacute toda a intenccedilatildeo naturalmente jamaiscumprida do poeta em escrever uma obra de caraacuteter privado e ateacute mesmo inventar uma linguagem de caraacuteter privado uma linguagem pura como se com isso fosse possiacutevel viver uma vida toda privada totalmente enclausurada em seus proacuteprios problemas e soluccedilotildees laquoO proselitismo eacute inimigo da honestidaderaquo insistentemente anota o poeta laquomdash Seus meios satildeo todos impuros (Seduzir espantar embrulhar as coisas) Eu tenho horror dele de querer dar minha opiniatildeo a quem natildeo a quer daquele que quer substituir pela sua O homem honesto diz seu pensamento e estabelece como para si-mesmo [] Ainda sobre o fato mesmo de o comunicar eu aplicaria a sentenccedila de S[t] Paulo sobre o casamento Natildeo temos desejo de conquistar ningueacutem quando damos conta que o uacutenico que devemos conquistar estaacute em noacutes mesmos [Grifo do autor] Lave seus peacutes antes de batizar os outrosraquo64 E mais laquoEu natildeo quero convencer ningueacutem nem por ningueacutem ser convencidoraquo65 laquoRepugna-me a todos que querem me convencer mdashUm partido uma religiatildeo em procura adeptos que desejam o nome e a propagaccedilatildeo satildeo cheios (para mim) de ignomiacutenia Uma doutrina deve para ser nobre em nada ceder ao desejo de ser compartilhada Que ela seja como ela eacute ou que ela natildeo seja Eu natildeo desejo fazer aos outros o que eu natildeo quero que me faccedilam [] mdash Ter razatildeo Desejo de ter razatildeo mdash Propagar Desejar convencer Isso conduz aos milagres agrave ldquopublicidaderdquoraquo66 Entretanto toda essa radical recusa em praticar proselitismo tambeacutem encontra explicaccedilatildeo numa confessa e compreensiacutevel ldquotentaccedilatildeordquo de por em praacutetica as ideacuteias de colocaacute-las diante deprovas de passar da dimensatildeo da especulaccedilatildeo para a da accedilatildeo especialmente em questotildees poliacuteticas e pedagoacutegicas como se pode constatar agraves vezes em seus escritos sobre anarquia e sobre educaccedilatildeo laquoPor vezes eu me sinto como que exasperado = desesperadoraquo confessa Valeacutery laquopela sensaccedilatildeo de natildeo poder fazer agir minhas ideacuteias no mundo quando eu as sinto justasraquo67 Mas senti-las justas

63 C1rsquo p 6564 C1rsquo pp 78-7965 C1rsquo p 10666 C1rsquo pp 132-13367 C25 p 182

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natildeo garante que elas sejam para outros justas tampouco legitima que elas sejam propagadas como verdades tampouco lhe daacute o direito de doutrinar

Natildeo eacute por acaso que em sua obra puacuteblica e em maior grau em seus CahiersValeacutery se propocircs algo raras vezes tentado na Histoacuteria da Filosofia Ocidental algo que possui raiacutezes iacutentimas com essa sua expliacutecita e recorrente recusa em praticar proselitismos intelectuais ele se propocircs a considerar os pensamentos como conjetura como especulaccedilatildeo como algo eminentemente pessoal ele se propocircs a escrevecirc-los a representaacute-los independentemente de crer ou descrer na importacircncia no valor deles independentemente de os considerar corretos ou incorretos independentemente deles poderem corresponder objetivamente a alguma verdade ou a realidade Por que deveria se preocupar em provar ou refutar o que escreve Natildeo bastaria a utilidade de um escrito para si mesmo por que deveria tambeacutem ser uacutetil a outro ou a todos Desejar universalizar o seu pensamento qual o verdadeiro motivo a impulsionar tal comportamento Tudo se passa como se o poeta natildeo mais necessitasse sentir apego ou aversatildeo ao que pensa e escreve mdashe de tudo o que pensa e escreve ele vem a ser um mero contempladormdash laquoAquilo que me vem ao espiacuteritoraquo confidencia Valeacutery laquonatildeo se torna verdadeiramente ldquomeu pensamentordquo minha opiniatildeo mdash meu projeto mdash que depois de estar controlado aceito adotado ao menos provisoriamente e destinado a uma elaboraccedilatildeo ou a uma conservaccedilatildeo ou a uma aplicaccedilatildeo mdash mdash Assim o que eu escrevo aqui [nos Cahiers] eacute muitas vezes escrito natildeo como meu ldquopensamentordquo mas como pensamento possiacutevel que seraacute meu ou natildeo e [depois poderaacute ser] eliminadoraquo68

laquoEu escrevo aqui as ideacuteias que me vecircm Mas isso natildeo quer dizer que eu as aceite Eacute o seu primeiro estado Ainda mal despertoraquo69 Dessarte natildeo se pode considerar de modo estrito ou totalmente literal as reflexotildees de Valeacutery como sendo a traduccedilatildeo exata ou necessaacuteria das suas proacuteprias ldquocrenccedilasrdquo daquilo que ele considera verdadeiro ou correto daquilo a que ele aderiu aceitou ou refutou Daiacute tambeacutem toda a dificuldade e todo o cuidado em se interpretar as consideraccedilotildees que tece sobre um determinado tema laquoNesses cadernosraquo sentencia laquoeu natildeo escrevo minhas ldquoopiniotildeesrdquo mas eu escrevo minhas formaccedilotildeesraquo70

A sua obra puacuteblica e em maior grau os seus Cahiers natildeo satildeo enfim simplesmente uma soma de ensaios e de fragmentos sobre variados temas eles tambeacutem satildeo sobretudo um aacutelbum mdashde rastros e vestiacutegios de espoacutelios do que sobroumdash no qual registra o seu processo o seu programa de autoconsciecircncia de autarquia espiritual Eacute uma ascese intelectual o que enfim Valeacutery pratica Com esses ou atraveacutes desses escritos ele almeja ser primeiramente servil agrave obra maior oculta invisiacutevel aquela que verdadeiramente importa aquela que opera 68 C1rsquo p 769 C1rsquo p 770 C1rsquo p 7

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em seu proacuteprio espiacuterito O puacuteblico os criacuteticos todos aqueles que possivelmente a leratildeo todos aqueles que possivelmente a interpretaratildeo satildeo apenas um plausiacutevel desdobramento sobre os quais ele natildeo tem nem quer ter controle natildeo constituem e natildeo devem constituir a sua motivaccedilatildeo Sem desprezar a ldquonaturezardquo comunicativa de toda liacutengua a possibilidade de ser compreendida a meta daquele que escreve natildeo deve ser o outro a meta daquele que escreve deve ser o proacuteprio ato de escrever pois esse ato esse processo a atenccedilatildeo e o esforccedilo em se registrar pensamentos em formas verbais auxilia o escritor mdashque natildeo deixa de ser um ser humanomdash a realizar uma maior consciecircncia de si mesmo de suas possibilidades a realizar um maior grau de lucidez

Para Valeacutery escrever era escrever-se fazer era fazer-se laquoEscrever mdash para se conhecer mdash eis tudoraquo71 Que a filosofia e a literatura como qualquer forma de pensamento e arte como qualquer atividade executada de modo asceacutetico comatenccedilatildeo e esforccedilo com sacrifiacutecios pode ser um veiacuteculo material para se atingir um fim espiritual (religiosos ou laico) eacute algo relativamente praticado desde haacute muito mesmo que isso tenha sido constrangido ou escamoteado na Modernidade Atualizando essa possibilidade o poeta assume a antiga concepccedilatildeo de que o conhecimento do mundo eacute mdashpara ser efetivado na sua maior amplitude e siacutentesemdash inseparaacutevel do conhecimento de si Poder-se-ia dizer portanto que afunccedilatildeo capital de sua insone e estranha escritura por vezes reconhecida e almejada como privada72 eacute ser enfim parte de seu meacutetodo o culto ao Iacutedolo do intelecto cuja meta eacute o eu puro a purificaccedilatildeo do espiacuterito

1111 O CULTO AO IacuteDOLO DO INTELECTO O EU PURO

A despersonalizaccedilatildeo como a grande objetivaccedilatildeo de si mesmo A maior exteriorizaccedilatildeo a que se chegaClarice Lispector A paixatildeo segundo G H

A palavra espiacuterito muitos satildeo os significados dados a ela muitos satildeo os usos que sofre muitas satildeo suas nuances e variaccedilotildees especificaccedilotildees e ampliaccedilotildees Na Antiguumlidade Claacutessica aquelas que semanticamente mais dela se aproximam e que

portanto se compreende como sinocircnimos satildeo as palavras ψυχή e anima ambas

frequumlentemente traduzidas por alma a substacircncia intelectual e incorpoacuterea quesobrevive supostamente agrave morte do corpo como ocorre em doutrinas espirituais platocircnicas e neo-platocircnicas como ocorre no Cristianismo ou num outro aspecto natildeo tatildeo distante deste a uma espeacutecie de energia que vivifica que 71 C2rsquo p 99172 Cf BOURJEA Serge Paul Valeacutery - Le sujet de lrsquoeacutecriture LrsquoHarmattan Codeacute-sur-Noireau 1997 cf PIKCERING Robert Genegravese du concept valeacuterryen laquo pouvoir raquo et laquo conquecircte meacutethodique raquo de lrsquoeacutecriture laquo Archives Paul Valeacutery raquo 8 Archives des Lettres Modeacuternes 234 Lettres Modernes Paris 1990 amp Paul Valeacutery - La page lrsquoeacutecriture Litteacuteratures Centre de Recherches sur Les Litteacuteratures Modernes et Contemporaines 1996

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anima o corpo mas que natildeo necessariamente lhe sobrevive como ocorre emcertas vertentes do aristotelismo e do estoicismo Essa acepccedilatildeo perdura com enorme forccedila e resistecircncia apesar das inuacutemeras variaccedilotildees que adquire ateacute a Modernidade verificando-se na linguagem ordinaacuteria e nas crenccedilas do senso-comum marcou profundamente todas as outras acepccedilotildees possiacuteveis da palavra mesmo quando talvez de modo mais metafoacuterico do que literal designa por exemplo e com influxos idealistas a caracteriacutestica ou as caracteriacutesticas centrais o cerne ou o conteuacutedo de alguma disciplina ou instituiccedilatildeo assim como quando se diz ldquoo espiacuterito da fiacutesicardquo ou ldquoo espiacuterito de um povordquo Entretanto o conceito de espiacuterito (ou de alma) como eu como consciecircncia de si como consciecircncia de que se eacute uma consciecircncia pensante e relativamente distinta das demais e do mundo eacute raronos escritos e por inferecircncia no pensamento da Antiguumlidade Claacutessica e mesmo no Medievo e na Renascenccedila Em todos esses largos periacuteodos as mentalidadesoperam grosso modo a partir da concepccedilatildeo segundo a qual o cosmo eacute umaldquounidaderdquo ontologicamente sustentada e consequumlentemente haveria umainterdependecircncia entre todas as coisas teologias visionaacuterias como as de Santo Agostinho e Lutero certamente acenam para concepccedilotildees relativamente mais modernas mas em ambas o homem mesmo quando volta a si mesmo ainda eacute criatura e Deus o criador

Somente com o advento da burguesia um aspirar agrave ascensatildeo social e riqueza somente com o advento de um pensar que se quer autocircnomo e livre em relaccedilatildeo agraves instituiccedilotildees e tradiccedilotildees religiosas um aspirar agrave criaccedilatildeo artiacutestica filosoacutefica e cientiacutefica natildeo necessariamente dependente de esquemas consideradosimutaacuteveis somente com essas convulsas transformaccedilotildees o conceito de espiacuterito como eu comeccedila a se fazer mais presente e atuante A visatildeo do homem deixa de ser pouco a pouco totalmente cosmocecircntrica do todo para a parte e passa a ser centrada no proacuteprio homem no sujeito da parte para o todo O polifacetadopensamento de Montaigne essa espeacutecie de antropologia de si mesmo e de suas idiossincrasias constitui um preluacutedio a esse novo paradigma histoacuterico73doravante na cesura filosoacutefica que promove na aspiraccedilatildeo a uma ciecircncia laica Descartes mesmo mantendo-se relativamente fiel ao Cristianismo foi o mais ceacutelebre e polecircmico de seus arautos Com ele o subjetivismo moderno pode finalmente se desenvolver de modo sistemaacutetico e a concepccedilatildeo do espiacuterito como eu como consciecircncia e consciecircncia de si ou mais especificamente como razatildeo eintelecto se cristaliza deixando margem para o posterior desenvolvimento do conceito de indiviacuteduo Trata-se entretanto da compreensatildeo do espiacuterito natildeo maiscomo totalmente participante ou dependente da ordem coacutesmica natural mas de

73 Cf MONTAIGNE Michel Os ensaios I-III trad Rosemary Costhek Abiacutelio Martins Fontes Satildeo Paulo 2000

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algum modo relativamente separado ou apartado dela trata-se da compreensatildeo do espiacuterito como substacircncia como algo em si Em Descartes haacute que se dizer ele ainda guardaria certo ponto-de-contato certo grau de atuaccedilatildeo no corpo e no mundo74 mas posteriormente em certas linhas mais exacerbadas do Cartesianismo nascente como no Ocasionalismo de Malebranche no qual eacute sempre Deus o mediador que atua define-se realmente como totalmente separado do corpo e do mundo

Todavia como se sabe esse espiacuterito autocircnomo acabou por se revelar mais como um ideal como uma utopia ou um sonho como um grito por liberdadedo que um fato E mesmo as inuacutemeras especulaccedilotildees do Idealismo Alematildeo notadamente de Hegel em atualizar o cosmocentrismo claacutessico e cristatildeo emdistinguir espiacuterito finito (o intelecto) do espiacuterito objetivo (as instituiccedilotildees) e do espiacuteritoabsoluto (arte filosofia e religiatildeo) todos manifestaccedilotildees e instrumentos da Ideacuteia ou da Razatildeo Infinita tampouco essas distinccedilotildees que parecem eliminar o livre-arbiacutetrio jamais excluem o fato de que o ser humano seu espiacuterito eacute aquele que sempre vive o que vive e sofre o que sofre e natildeo raro culpa-se pelo que faz oudeixou de fazer A vontade de viver de Schopenhauer e a vontade de potecircncia deNietzsche o inconsciente de Freud esses e outros tantos conceitos representam tentativas teoacutericas modernas de explicar aquilo que sempre se operou na praacutetica aquilo que a arte e a literatura sempre representaram de modo simboacutelico que o espiacuterito o espiacuterito humano por mais que tente natildeo eacute senhor absoluto de si mesmo e que natildeo somente forccedilas exteriores e materiais o condicionam como a seus proacuteprios pensamentos mas tambeacutem forccedilas consideradas irracionais subterraneamente o controlam e o escravizam

Intuindo que toda essa trajetoacuteria semacircntica e ideoloacutegica eacute um dos iacutendicesmais significativos da trajetoacuteria mesma da Modernidade na medida em que estanatildeo deixa de ser em grande medida uma grave acentuaccedilatildeo do espiacuterito como eu e como indiviacuteduo Valeacutery natildeo deixa de dar continuidade a ela transformando-a esempre se resguardando em preservar a sua proacutepria idiossincrasia Em seus escritos tanto em prosa quanto em poesia a palavra espiacuterito mdashtalvez aquela a qual a sua imagem puacuteblica ficou mais livre e imprecisamente associadamdash ocorre quase sempre como na tradiccedilatildeo francesa racionalista-cartesiana da qual natildeo deixa de ser direta e simultaneamente herdeira e criacutetica com a acepccedilatildeo geral de eu deconsciecircncia e consciecircncia de si de intelecto ou mais propriamente de inteligecircncia Uma inteligecircncia capaz de analisar o mundo exterior e o mundo interior e note-segenericamente inteligecircncia eacute um termo mais facilmente associado agrave palavra francesa ldquoespritrdquo do que agrave palavra portuguesa ldquoespiacuteritordquo Todavia o que soacutei

74 Cf DESCARTES Reneacute As paixotildees da alma trad J Guinsburg e Bento Prado Juacutenior Os Pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1979

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constituir a diferenccedila central em relaccedilatildeo a essa tradiccedilatildeo e mesmo em relaccedilatildeo a todas as demais tradiccedilotildees do periacuteodo preacute-moderno e do Idealismo Alematildeo reside no fato de que o conceito de espiacuterito com o qual o poeta mais constitui e opera raramente designa ou alude agrave alma imortal e o que eacute deveras mais importante jamais se insere em algum sistema metafiacutesico-idealista a ambicionar expandir por exemplo o conceito de espiacuterito a ponto de por vezes tornaacute-louma espeacutecie de divindade reguladora limitando assim o seu uso praacutetico fisioloacutegico ou psicoloacutegico

Ademais Valeacutery poeta apoliacuteneo do mar do sol e da luz eacute deveras reticentecom relaccedilatildeo agraves teorias modernas mdashirracionalismo psicanaacutelise etcmdash segundo agraves quais o espiacuterito seria regido por forccedilas irracionais subconscientes Mas reticentenatildeo significa aqui necessariamente contraacuterio ao sentido geral da criacutetica dessas teorias significa antes uma divergecircncia quanto ao modo de compreender o ser humano e por conseguinte a si mesmo como absoluta e totalmente controlado e escravizado por irracionalidades por inconsciecircncias etc sem que haja nenhuma possibilidade mdashe sempre haacute possibilidadesmdash de escapatoacuteria ou de superaccedilatildeodessa condiccedilatildeo O naturalismo o determinismo dessas teorias eis o que verdadeiramente se questiona Porque Valeacutery natildeo nega natildeo pode negar tudo aquilo que condiciona o espiacuterito mas ele simplesmente ldquoapostardquo na possibilidadedeste vir a ser em determinado sentido e atraveacutes de determinado meacutetodo senhor de si mesmo E mais natildeo credita exagerada fetichizada sacralizada importacircncia agraveirracionalidade ao inconsciente mdashnote-se que inconsciente eacute um termo que ele busca conscientemente utilizar o miacutenimo possiacutevelmdash como fatores ou causas que estariam subterraneamente impulsionando a accedilatildeo o fazer Para o poeta a parte obscura a parte do espiacuterito que natildeo eacute iluminado pela razatildeo pela consciecircncia tem naturalmente seu papel na vida jaacute que toda a memoacuteria todas as lembranccedilas todas as representaccedilotildees das experiecircncias passadas aiacute supostamente se preservam o que natildeo implica que essa parte seja totalmente determinante mdashmas tatildeo somente condicionantemdash para as decisotildees para as escolhas que o proacuteprio espiacuterito toma no momento presente O inconsciente natildeo eacute um territoacuterio movediccedilo uma danccedila de imagens ocultas regida por afetividades e desejos mas meramente um armazenamento e num sentido quase mecacircnico laquoEstou convencidoraquo escreve de um modo um tanto categoacuterico laquoque se pudeacutessemos penetrar desenvolver o famoso subconsciente [inconsciente] noacutes apenas veriacuteamos miseacuteria ou algumas leis simples afetando os elementos e os comandos daquilo que faz sentimentos ideacuteias e vontades daquilo que daacute valor perspectiva agraves coisas Tudo eacute superfiacutecieraquo75 Natildeo se caminha na escuridatildeo absoluta tudo que o humano realizaeacute de algum modo resultado de racionalidade de consciecircncia mesmo que haja

75 C2rsquo p 238

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mescla com fatores obscuros E aumentar o grau de racionalidade de consciecircncia eacute a tarefa que o poeta se impotildee projetar luz sobre tudo Pois laquonatildeo haacute ldquogecircniordquo puramente inconsciente Mas o homem de gecircnio eacute ao contraacuterio aquele que aproveita das figuras lanccediladas pelo acaso Ele retira delas uma fonte infinita vasta como o mundo [] Gecircnio = consciecircncia das inconsciecircnciasraquo76 Isso porque eacute somente com consciecircncia que se eacute capaz de guiar a accedilatildeo o fazer um espiacuterito totalmente inconsciente nada agiria nada faria um ser totalmente inconsciente simplesmente natildeo existiria laquoA consciecircncia eacute a possibilidade de atosraquo77 E laquoldquooinconscienterdquo eacute talvez capaz de fornecer uma soluccedilatildeoraquo diz o poeta laquoMas assegurar que essa soluccedilatildeo eacute boa mas colocar o problema mdash natildeoraquo78 Por conseguinte o proacuteprio sonho mdashse compreendido como espeacutecie de portal de acesso agrave parte obscura do espiacuteritomdash natildeo pode ser explicado reduzido a uma uacutenica teoria o sonho suas imagens e sensaccedilotildees seus signos dispersos natildeo se transforma em mateacuteria prima utilizaacutevel se natildeo for dado agrave consciecircncia se natildeo for racionalizado79 E eacute nesse sentido todo que a perspectiva ldquoapoliacuteneardquo de Valeacutery mais explicitamente se manifesta e partir do qual o seu conceito de espiacuterito pode ser enfim compreendido

Quando o poeta o evoca natildeo se refere portanto a um eu substancial em si mas a um eu funcional em relaccedilatildeo Ele eacute como que um elemento ou um fenocircmeno do mundo A separaccedilatildeo promulgada pelo Racionalismo entre rescogitans e res extensa entre pensamento de um lado e corpo e mundo de outro inexiste e consequumlentemente todos os intrincados e quase insoluacuteveis problemas em se articular esse radical dualismo Dir-se-ia que para o poeta inclinado a uma espeacutecie de ambiacuteguo ldquosensualismo materialistardquo esse dualismo natildeo opera espiacuterito e mateacuteria satildeo em uacuteltima instacircncia a mesma coisa contemplada atraveacutes de diferentes perspectivas laquoa organizaccedilatildeo a coisa organizada o produto dessa organizaccedilatildeo e o organizador satildeo inseparaacuteveis ldquoO espiacuteritordquo eacute inseparaacutevel da mateacuteria mdash e reciprocamente Por outro lado essa distinccedilatildeo depende doobservadorraquo80

76 C2rsquo p 990 77 C1rsquo p 91178 C2rsquo p 21479 Nesse sentido Valeacutery se posiciona sim contraacuterio agrave Psicanaacutelise suas criacuteticas a Freud satildeo diretas laquoSe as teorias de Freud tecircm um valor terapecircutico mdash eacute uma grande probabilidade que elas natildeo tenham nenhum valor ldquocientiacuteficordquoraquo (C1rsquo p 995) Quanto ao sonho Valeacutery chega inclusive a duvidar da possibilidade de se representaacute-lo atraveacutes de palavras atraveacutes da narrativa do reacutecit o que a Psicanaacutelise faria nesse sentido seria tatildeo somente a anaacutelise da narrativa do sonho natildeo do sonho logo de uma mediaccedilatildeo que pode muito bem falsear o proacuteprio sonho laquoO que me prova que as teorias do sonho agrave la Freud satildeo vatildes eacute que a anaacutelise ai se comporta sobre as coisas descritiacuteveis em termos ordinaacuterios mdash entretanto o sonho deveria ser indescritiacutevel mdash ou descritiacutevel por contradiccedilotildees ou particcedilotildees (como mdash havia um cavalo mas eu sabia que natildeo era um cavalo mdash mdash)raquo (C2rsquo p 177) Sobre a Psicanaacutelise cf ainda C2rsquo pp 527-52880 C1rsquo p 562

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Assim na praacutetica na praacutetica da vida Valeacutery compreende o espiacuterito ou melhor o expotildee como algo sempre em circunstacircncia em situaccedilatildeo num dado tempo e espaccedilo em sua fragilidade real extremamente condicionado a si mesmo aos outros e ao mundo Daiacute aludir que apenas fez o que pode fazer natildeo aquilo quenecessariamente desejava fazer laquoApoacutes tudo eu fiz o que eu puderaquo81 Assim se ele aspira a uma accedilatildeo a um fazer cumpre num primeiro momento considerar o espiacuterito na uacutenica perspectiva em que eacute passiacutevel de ser realmente percebido ou vivido somente por aquele que o eacute em sua forma empiacuterica concreta com todas as suas crenccedilas e descrenccedilas com todas as suas verdades e mentiras com todas as suas contradiccedilotildees com todos os seus momentos com todas as suas limitaccedilotildees e possibilidades mdashdadas tanto por si mesmo como pelo mundo no qual eacutecircunstanciado situadomdash E para representar toda essa intensa oscilaccedilatildeo e fluxo toda essa impermanecircncia esse incessante saltar de um assunto a outro de umarepresentaccedilatildeo a outra Valeacutery cunha a expressatildeo laquoself-varianceraquo82 que pode ser parcamente traduzida como auto-variaccedilatildeo variaccedilatildeo-do-ser variaccedilatildeo-de-si etc Essa expressatildeo comumente designa a caracteriacutestica considerada a mais importante no espiacuterito o espiacuterito mesmo o fato deste ser no plano da consciecircncia pensamento e portanto pura variaccedilatildeo um processo ou um devir um movimento interior que virtualmente natildeo tem fim uma seacuterie dinacircmica e mutaacutevel de representaccedilotildees ou signos mas que apesar de todas as mudanccedilas e mutaccedilotildees eacute sempre a variaccedilatildeo de um mesmo a variaccedilatildeo que natildeo elimina a unidade daconsciecircncia-de-si ou melhor a identidade pois por mais que o espiacuterito pense distraia-se e vagueie manteacutem a consciecircncia de que eacute sempre ele que pensa o que pensa percebe o que percebe faz o que faz A laquoself-varianceraquo indicia portanto o tempo a temporalidade que o proacuteprio espiacuterito cria e atua na medida em que ospensamentos deste natildeo passam de uma corrente que opera quase instantaneamente por similaridades e contiguumlidades o que lhe possibilita qualificaacute-los hierarquizaacute-los dar sentido e valor a eles configurar um destino Haacute certamente recorrecircncias padrotildees e obsessotildees nessa contiacutenua atividade interior mas jamais um teacutermino tudo eacute retomada e reinvenccedilatildeo (Note-se que aescritura fragmentada do poeta natildeo deixa de ser em determinado sentido uma representaccedilatildeo mais condizente mais icocircnica a um espiacuterito assim descrito)

Consequumlentemente da concepccedilatildeo mdashou simplesmente da constataccedilatildeomdashdo espiacuterito como laquoself-varianceraquo haacute duas implicaccedilotildees duas caracteriacutesticas mais ou menos impliacutecitas nos fragmentos de Valeacutery

81 C2rsquo p 38882 Cf C1rsquo pp 837 969-970 1051-1052 e 1351 cf C2rsquo p 9

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Primeira a dificuldade ou mesmo a impossibilidade do espiacuterito pensar em uma laquoideacuteia fixaraquo83 (laquolrsquoideacutee fixeraquo) isto eacute uma representaccedilatildeo natildeo passiacutevel de ser fragmentada indivisiacutevel atocircmica que para o poeta soacute pode ser postuladaartificialmente na dimensatildeo da palavra da linguagem convencional e simboacutelica que em certa medida a falseia pois nenhuma ideacuteia nenhum estado mental nenhum pensamento e sentimento nem mesmo o prazer ou a dor existe como uma unidade ou como uma linha homogecircnea mas como um fenocircmeno contiacutenuo que ocorre em matizes em gradaccedilotildees de maior ou menor intensidade de maior ou menor distraccedilatildeo ou atenccedilatildeo Para o poeta a ideacuteia fixa eacute portanto um conceito que simplesmente natildeo condiz com o comportamento mental laquoTodo conhecimento toda representaccedilatildeo eacute compostaraquo escreve laquoToda consciecircncia eacute incessantemente mutaacutevelraquo84 O instante esse ldquoponto virtualrdquo entre o passado e o futuro natildeo eacute passiacutevel de ser capturado ou melhor eacute um contra-senso pensar que se possa capturaacute-lo pois ele soacute existe no ou como devir e o devir por sua vez soacute existe no ou como instante que se precipita no futuro Essa concepccedilatildeo natildeo estaacute longe da concepccedilatildeo de Bergson segundo a qual o ser humano natildeo vive numtempo homogecircneo quantitativo matemaacutetico ou mecacircnico mas no tempo heterogecircneo e qualitativo da consciecircncia na dureacutee85

Segunda implicaccedilatildeo a dificuldade ou mesmo a impossibilidade do espiacuterito apreender perceber ou captar a si mesmo de forma absoluta total como se por um momento supremo pudesse reter o todo de sua memoacuteria o todo de suaslembranccedilas o todo das representaccedilotildees das suas experiecircncias passadas como se por um momento supremo pudesse pensar um pensamento oniabrangente edefinitivo algo que enquanto ideacuteia parece ter fascinado ao poeta e a tantos outros pois mesmo que haja consciecircncia-de-si mesmo que haja unidade-de-si essa consciecircncia e essa unidade soacute satildeo dadas como ou no fluxo como ou no devir jaacute que soacute eacute possiacutevel pensar um pensamento ou um panorama de pensamento de cada vez jaacute que muitas das percepccedilotildees mesmo captadas pelo corpo escapam agrave consciecircncia esta o espiacuterito costuma se ater ao que lhe importa e lhe interessa Como diz insistentemente o poeta laquoNatildeo existe pensamento que extermina o poder de pensar e o conclui mdash uma certa posiccedilatildeo da linguumleta que

83 Cf Lrsquoideacutee fixe ou deux hommes agrave la mer in Œ2 pp 195-275 Essa obra eacute um estranho e fictiacutecio diaacutelogo beira-mar dir-se-ia solar e terapecircutico entre Valeacutery e um convicto meacutedico que tece reflexotildees sobre a filosofia o pensamento e a representaccedilatildeo a intelecccedilatildeo e a intuiccedilatildeo a transitoriedade do mundo e principalmente sobre o conceito de saber como poder de previsatildeo fenomenoloacutegica e de accedilatildeo sobre o mundo O interlocutor imaginaacuterio do poeta eacute como parte de seus personagens um homem que permanece na tensatildeo entre a accedilatildeo e a contemplaccedilatildeo De feacuterias longe de seus pacientes que tanto o instigam ele procura fazer algo que jamais conseguiu nada fazer Dizia possuir o mal da atividade constata que isso eacute entretanto impossiacutevel pois ateacute mesmo o pensamento eacute uma forma de accedilatildeo de accedilatildeo interior84 C6rsquorsquo p 22685 BERGSON Henri Chapitre II - De la multipliciteacute des eacutetats de conscience lrsquoideacutee de dureacutee in Essai sur les donneacutees immeacutediates de la conscience Presses Universitaires de France Paris 2005

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fecha definitivamente a fechadura Natildeo nada de pensamento que seja para o pensamento uma resoluccedilatildeo nascida de seu proacuteprio desenvolvimento como acordo final dessa dissonacircncia permanenteraquo86 laquoNatildeo existe absolutamente uacuteltimo pensamento em si e por si Em alguns insetos machos haacute um uacuteltimo ato que eacute de amor apoacutes o qual morrem Mas natildeo haacute pensamento que esgote a virtualidade do espiacuteritoraquo sentencia Valeacutery para logo em seguida concluir com esta estranha frase de caraacuteter heuriacutestico laquoExiste no entanto uma estranha tendecircncia (em todos os espiacuteritos de uma certa ordem) que eacute avanccedilar sempre para natildeo sei que ponto de natildeo sei que ceacuteuraquo87 Mas esse ceacuteu natildeo tem fim eacute apenas um ideal ao qual o pensamento sempre tende

Dessarte como Soacutecrates ou Platatildeo ao poeta agrada pensar o pensamento

(διάνοια) qualificaacute-lo como uma espeacutecie de conflito de dialeacutetica de diaacutelogo

interior como uma espeacutecie de laquodissonacircncia permanenteraquo de jogo ldquoininterruptordquo de laquopergunta-respostaraquo (laquodemande-reponseraquo) laquoP-Rraquo (laquoD-Rraquo) Jogo no qual quem pergunta e quem responde eacute sempre o mesmo o mesmo que se multiplica em dois ou em mais para poder assim chegar sempre a si mesmo e assim sucessivamente Pensar conduz portanto a uma espeacutecie de separaccedilatildeo a dividir-se a ser outro mesmo sendo si mesmo a jamais manter uma uacutenica identidade a deslocar-se a multiplicar-se laquoA linguagem interior cria um Outro no Mesmoraquo88 Por vezes Valeacutery tambeacutem chega ao extremo de dizer que todo pensamento natildeo deixa de ser uma forma de adaptaccedilatildeo (laquoPensar mdash eacute se adaptarraquo89) tanto a um pensamento preteacuterito quanto ao meio-ambiente no qual pensa portanto uma soma de respostas a uma soma de demandas ou ainda um sistema espiritual de ato-reflexo Essa visatildeo seraacute recorrentemente atualizada e personificada transformada em literatura quando da formulaccedilatildeo de seus personagens como Leonardo e Teste e em seus diaacutelogos socraacuteticos

Todavia diante dessa laquoself-varianceraquo Valeacutery natildeo entra em ldquodesesperordquo quanto a isso sua atitude eacute de controle Pois a partir do periacuteodo de crise e da Noite de Gecircnova ele determina precisa o seu programa de autoconsciecircncia o seu meacutetodo agravequilo que foi compreendido pelo proacuteprio poeta em trabalhos de ficccedilatildeo e de criacutetica como o culto ao espiacuterito o culto ao laquoIacutedolo do intelectoraquo90 (laquoIdole de lrsquointellectraquo) mdashatraveacutes do qual ele supostamente chegou ou pode chegar ao proacuteprio conceito de laquoself-varianceraquomdash91 Esse culto pode ser postulado aqui natildeo como um deixar o pensamento solto a flanar e distrair-se de laacute para caacute em busca deste ou daquele desiderato fugaz mas sobretudo como uma forma de meditaccedilatildeo eacute um manter um 86 Œ1 pp 1219-122087 Œ1 pp 1219-122088 C1rsquo p 46189 C1rsquo p 90190 Œ2 p 3791 Cf Œ2 p 37

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sustentar com esforccedilo e sacrifiacutecio o maior grau de lucidez controle e rigor o maior grau de consciecircncia possiacutevel durante qualquer accedilatildeo durante qualquer fazer durante qualquer processo mental seja este iacutentimo seja visando findar em arte filosofia ou ciecircncia eacute a constante tentativa de atentar-se e controlar a si mesmo o mecanismo dos proacuteprios processos mentais de um modo reto eliminando do pensamento as oscilaccedilotildees e o supeacuterfluo Valeacutery sonha com um estado de eterna vigiacutelia Em seu itineraacuterio o sacrificium intellectus seria um ato de preguiccedila ecovardia Ao ecircxtase natildeo se entregaria se tivesse que abandonar a razatildeo Mas esseculto ao Iacutedolo do intelecto natildeo se restringe apenas agrave meditaccedilatildeo analiacutetica de si mesmotambeacutem se manifesta exteriormente como a anaacutelise da gecircnese ou dos processos das obras humanas suas ou de outros (Seus escritos de criacutetica literaacuteria e artiacutestica partem desse princiacutepio e por isso quase sempre vatildeo aleacutem da mera interpretaccedilatildeo do objeto interpretado apresentando tambeacutem inuacutemeras reflexotildees pessoais) Acompanhar mesmo que na imaginaccedilatildeo mesmo que de modo conjetural os passos de algueacutem que cria filoacutesofo artista ou cientista interpretar e criticar obras alheias vem a ser um modo de cultuar de meditar sobre si mesmo Interpretar eacute interpretar-se

Grande parte do que o Valeacutery escreveu ou deixou de escrever em sua obrapuacuteblica e principalmente em seus Cahiers essa sua diletante variedade temaacutetica eincompletude pode ser compreendida como o resultado dessa inaudita concepccedilatildeolaquoSomente o nosso proacuteprio funcionamentoraquo escreve laquoeacute que pode ensinar alguma coisa sobre toda e qualquer coisa Nosso conhecimento no meu entender tem por limite a consciecircncia que podemos ter de nosso ser mdash e talvez do nosso corpo Quem quer que seja X o pensamento que tenho dele se eu o aprofundar tende para mim quem quer que seja eu Pode-se ignoraacute-lo ou conhececirc-lo suportaacute-lo ou desejaacute-lo mas natildeo haacute escapatoacuteria natildeo haacute outra saiacuteda A intenccedilatildeo de todo o pensamento estaacute em noacutesraquo92 Em certo sentido poder-se-ia dizer que para profunda e verdadeiramente compreender o mundo exterior eacute necessaacuterio compreender o mundo interior um e outro satildeo pois solidaacuterios e inseparaacuteveis A ceacutelebre maacutexima mdashconhece a ti mesmomdash natildeo deixa de estar longe daquilo que Valeacuterybusca praticar todavia dentro das condiccedilotildees dos limites e possibilidades postos pela Modernidade sem esperanccedila alguma de realmente conhecer todavia refrataacuterio a qualquer doutrina metafiacutesica a qualquer substancialismo a qualquer ideacuteia de salvaccedilatildeo ou prediccedilatildeo a qualquer poacutes-morte Se haacute um autoconhecimentono pensamento do poema este soacute pode ocorrer materialmente fisicamente no aqui e no agora

Naturalmente para que esse culto ao Iacutedolo do intelecto realmente venha a se efetivar faz-se necessaacuterio um contiacutenuo e disciplinado exerciacutecio de atenccedilatildeo e esforccediloda proacutepria vontade quando posta numa accedilatildeo num fazer Ele pode ser difiacutecil de ser

92 Œ1 pp 1232-1233

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mantido por periacuteodos prolongados ele pode ser aacuterduo doloroso mas eacute o uacutenico meio de educar e de fortalecer o proacuteprio espiacuterito laquoEu aprecio em todas as coisasraquo escreve Valeacutery laquoapenas a facilidade ou a dificuldade em conhececirc-la em consumaacute-la Ponho um cuidado extremo em medir esses degraus a natildeo me apegar E que me importa aquilo que estou farto de saberraquo93 Entretanto quando o espiacuterito eacute constantemente constrangido forccedilado a atuar no mundo exterior a ter que se envolver com as exigecircncias do corpo e principalmente daqueles que o cercam isso se torna verdadeiramente problemaacutetico principalmente nas condiccedilotildees do mundo atual que segundo Valeacutery constantemente propagam a ilusatildeo de que as obras satildeo engendradas justamente sem atenccedilatildeo e esforccedilo o que se torna bastante grave para a delicada economia do proacuteprio espiacuterito laquoA vida moderna tende a poupar-nos o esforccedilo intelectual como o faz com o esforccedilofiacutesicoraquo escreve laquoEla substitui por exemplo a imaginaccedilatildeo pelas imagens o raciociacutenio pelos siacutembolos e pela escrita ou por mecanismos e frequumlentemente por nada Ela nos oferece todas as facilidades todos os meios curtos para se atingir o objetivo sem ter percorrido o caminho E isso eacute oacutetimo mas muito perigoso Isso se combina com outras causas que natildeo vou enumerar para produzir como direi uma certa diminuiccedilatildeo geral dos valores e dos esforccedilos na ordem do espiacuterito Gostaria de estar enganado mas infelizmente minha observaccedilatildeo eacute fortalecida pelas de outras pessoas Com a necessidade de esforccedilo fiacutesico diminuiacuteda pela maacutequina o atletismo veio felizmente salvar e ateacute exaltar o ser muscular Talvez fosse preciso sonhar com a conveniecircncia de se fazer para o espiacuterito o que se faz para o corpo Natildeo tenho a ousadia de dizer que tudo o que natildeo solicita esforccedilo seja apenas tempo perdido Mas existem alguns aacutetomos de verdade nessa foacutermula atrozraquo94

Contudo Valeacutery natildeo apenas delineia o culto ao Iacutedolo do intelecto e a atenccedilatildeo e o esforccedilo que este exige ele ainda faz uma distinccedilatildeo entre dois tipos de espiacuterito dois tipos de eu95 (Haacute que se dizer todavia que ao fazer essa distinccedilatildeo assim como outras ele natildeo eacute muito fiel a elas as suas proacuteprias terminologias e o leitor deve ter cuidado ao lecirc-las pois natildeo raro ao escrever a palavra ldquoespiacuteritordquo ou ldquoeurdquo ele pode estar se referindo a um determinado tipo ou a outro) Ele se refere natildeo apenas a um espiacuterito enquanto eu (moiacute) empiacuterico a self-variance mas tambeacutem a umespiacuterito enquanto eu puro (moi pure) por vezes denominado simplesmente de eu(moi) ao qual muitas vezes vem a ser um constante alvo de suas reflexotildees a sua meta a qual o culto ao Iacutedolo do intelecto tende Esse uacuteltimo conceito talvez seja ao mesmo tempo um dos mais instaacuteveis mais problemaacuteticos do poeta um dos mais difiacuteceis de ser compreendido pois eacute expresso em passagens demasiadas 93 Œ2 p 1994 Œ1 p 113795 Cf CELEYRETTE-Pietri Nicole Valeacutery et le moi - Des Cahiers agrave lrsquoŒuvre Klincksieck Paris 1979

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obscuras de um modo tatildeo fragmentaacuterio tatildeo incompleto tatildeo solto tatildeo contraditoacuterio e paradoxal que facilmente se intui se tratar de algo que nem mesmo para o proacuteprio Valeacutery eacute claro e satisfatoacuterio embora ele intua ser por vezes de importacircncia capital E isso se deve principalmente porque eacute extremante difiacutecil falar ou escrever sobre o espiacuterito sobre o mundo interior com os meios disponiacuteveis na linguagem verbal as palavras aiacute entram em terreno movediccedilo Em seu ensaio Descartes o poeta assim escreve sobre laquoa extrema dificuldade que nos opotildee a linguagem quando queremos obrigaacute-la a descrever os fenocircmenos da mente Que fazer com esses termos que natildeo podemos precisar sem recriaacute-los Pensamento a proacutepria mente razatildeo inteligecircncia compreensatildeo intuiccedilatildeo ou inspiraccedilatildeo Cada um desses nomes eacute ao mesmo tempo um meio e um fim um problema e uma soluccedilatildeo um estado e uma ideacuteia e cada um deles eacute em cada um de noacutes suficiente ou insuficiente segundo a funccedilatildeo que lhe outorgue a circunstacircnciaraquo96 Daiacute o uso recorrente de distorccedilotildees de metaacuteforas e ldquoconsequumlentementerdquo uma maior abertura agraves ambiguumlidades e indeterminaccedilotildees

De qualquer modo eacute possiacutevel constatar que o conceito de eu puro valeacuteryanopossui certamente fortes ecos do conceito de eu substancial racionalista e cartesiano e numa leitura raacutepida e descontextualizada das passagens que versam sobre ele ainda tambeacutem pode evocar o conceito de eu absoluto do Idealismo Alematildeo notadamente de um Fichte e de um Schelling Mas uma leitura mais acurada indica que natildeo haacute equivalecircncia entre o primeiro e os dois uacuteltimosconceitos afinal o termo ldquopurordquo natildeo eacute em todos os casos sinocircnimo do termoldquosubstancialrdquo ou ldquoabsolutordquo Duas satildeo aqui as instacircncias ou momentospossiacuteveis desse eu puro momentos naturalmente sempre provisoacuterios e que natildeo se excluem mutuamente mas que se complementam e demonstram asindeterminaccedilotildees os avanccedilos e os recuos as oscilaccedilotildees do proacuteprio poeta diante dafragilidade das suas proacuteprias formulaccedilotildees

A primeira refere-se ao eu puro como sendo simplesmente a laquoinvariacircnciaraquo97

(laquoinvarianceraquo) o laquoinvarianteraquo98 (laquoinvariantraquo) aquilo que no espiacuterito natildeo varia natildeo muda laquoO eu mdash eacute um invariante que resulta de toda a produccedilatildeo de fenocircmenos suficientemente consciente e complexaraquo99 laquoO E[u] eacute invarianteraquo assim se repete Valeacutery laquoorigem meio ou campo eacute uma propriedade funcional da consciecircnciaraquo100 Esse eu pode ser compreendido portanto numa imagem geomeacutetrica como um nuacutecleo duro ou como um ponto ou um centro ao redor do qual todo o resto toda a esfera movente do espiacuterito suas lembranccedilas e aspiraccedilotildees suas

96 Œ1 p 79797 Cf C2rsquo p 29598 Cf C2rsquo p 330 cf C2rsquo p 31299 C2rsquo p 312100 C2rsquo p 315

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representaccedilotildees seus pensamentos e desejos gravitam Valeacutery que tinha uma excecircntrica fascinaccedilatildeo pela matemaacutetica costuma simbolizaacute-lo como iluminou Ulrike Heetfeld101 com os seguintes siacutembolos matemaacuteticos 0 1 e infin 0 eacute o signo da negaccedilatildeo a resposta que sempre eacute negada no sistema dialoacutegico de laquoperguntas-e-respostasraquo (laquodemande-reponseraquo) do espiacuterito 1 eacute o signo da unidade do espiacuterito ante as possibilidades e infin eacute o signo da pura possibilidade do espiacuterito Em todo esse estranho simbolismo o eu puro eacute estabelecido sempre como heuriacutestico como uma virtualidade natildeo como uma realidade laquoA palavra Eu designa sempre virtualidades mdash Natildeo haacute Eu redutiacutevel ao atualraquo102 laquoO eu (como eu o entendo)raquo escreve Valeacutery laquomdash eu o olho como uma propriedade fundamental da consciecircncia mdash um ponto virtual [] para o qual [] o meu conhecimento se ordenaraquo103

A segunda instacircncia ou momento do conceito de eu puro refere-se sobretudo ao eu como o que aqui pode ser denominado de um estado de espiacuteritoao qual o eu ou o espiacuterito empiacuterico e singular valeacuteryano aspira e tende um possiacutevelque deve ser sobretudo conquistado realizado estabelecido no agir no fazerEsse estado pode ser postulado da seguinte maneira o eu puro valeacuteryano eacute o espiacuterito quando este cumprindo o seu culto ao Iacutedolo do intelecto encontra-se totalmente purificado mdashe o conceito de pureza seraacute extremamente recorrente no pensamento valeacuteryano aplicado a muitas dimensotildeesmdash de todas as ldquoemoccedilotildeesrdquo e de todos os ldquosentimentosrdquo de todas as ldquopaixotildeesrdquo104 de todos os iacutedolos outros desnecessaacuterios de tudo aquilo que o poeta considera como empecilhos a um pensar livre de opiniotildees e de subjetividades livre de metafiacutesicas e portanto reduzido assim a mais pura inteligecircncia ao mais puro intelecto o eu puro eacute o eu sem a pessoa o eu puro eacute o espiacuterito quando este se encontra num estado de totaldespersonalizaccedilatildeo ou para usar termo mais radical num estado de totaldesumanizaccedilatildeo silenciado tranquumlilo esvaziado sem anguacutestias porque sem esperanccedilas sem sofrimentos porque sem desejos105 laquoNada mais IMPESSOAL que este EUraquo106 laquoEacute preciso sair da personalidade para entrar no euraquo107 assim formula o poeta pois a personalidade mdashcomo o proacuteprio eacutetimo da palavra 101 HEETFELD Ulrike La conception matheacutematique du laquo Moi pur raquo das les lsquoCahiersrsquo in GIFORD Paul amp STIMPSON Brian (orgs) Paul Valeacutery - Musique Mystique Matheacutematique Presses Universitaires de Lille Lille 1993 especialmente pp195-196102 C23 p 311103 C2rsquo p 284104 laquoToda emoccedilatildeo todo sentimento eacute uma marca de defeito de adaptaccedilatildeoraquo (C2rsquo p 354) laquoToda a vida afetiva natildeo passa de besteira e circulo viciosoraquo (C2rsquo p 382)105 Essa despersonalizaccedilatildeo essa desumanizaccedilatildeo parece jaacute estar esboccedilada quando Valeacutery escreve com mais tranquumlilidade sobre a fatiacutedica Noite de Gecircnova sobre aquilo em que seu meacutetodo vem a se constituir laquoFoi um periacuteodo muito duro e muito fecundo mdash Uma luta com os diabos Noite de Gecircnova em out[ubro] de [18]92 Paris em novembro E tudo isso me conduziu ao meu ldquomeacutetodordquo mdash o qual era pureza mdash separaccedilatildeo dos domiacutenios φ [filosofia] e ψ [psicologia]raquo (C1rsquo p 190)106 C2rsquo p 315107 C2rsquo p 299 cf C2rsquo p 312

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indicamdash eacute uma maacutescara uma ilusatildeo uma espeacutecie de acuacutemulo ou excesso sobre o espiacuterito sobre este espiacuterito que almeja a ser eu puro Gostos e desgostos alegrias e tristezas emoccedilotildees e sentimentos tudo isso se configura como personalidade porque laquoa personalidade eacute uma probabilidade QUE PODE MUDARraquo108 Daiacutetambeacutem o poeta distinguir em certas passagens poeacuteticas o laquoeuraquo (laquomoiraquo) como superior ao laquomimraquo (laquomienraquo) porque este possui ego e aquele natildeo O eu puro eacute portanto natildeo um ldquoeu pensordquo e a consciecircncia de se estar pensando mas um ldquopensa-serdquo e a consciecircncia de se estar pensando

Haacute que se dizer por conseguinte que Valeacutery natildeo confere confessadamente ao eu puro assim como a grande parte de seus conceitos epropostas valores morais ao menos natildeo em sentido estrito certo enrijecimento do haacutebito a moral tambeacutem deve ser superada posto que a poderosa distinccedilatildeo entre bem e mal entre o certo e o errado soacute ocorre na dimensatildeo da personalidade das convenccedilotildees e da cultura No fundo esse conceito essa proposta o eu puro representa enfim uma forma de neutralidade e de incondicionalidade mas uma neutralidade e incondicionalidade que natildeo se estabelecem de modo transcendente fora do mundo mas de modo imanente nomundo com tudo o que este estabelecer de limites e possibilidades Pois comoMaurice Blanchot diz de modo luminoso e paradoxal agrave respeito do poeta e dos personagens deste laquoO grande espiacuterito eacute [] unicamente em si e unicamente fora de si absolutamente separado e absolutamente presente ao mundoraquo109 Haacute ainda uma passagem extremamente laminar nos Cahiers que evoca toda essa ideacuteia de um eu como neutro e incondicional laquoO verdadeiro Deus eacute intima uniatildeo com o eu [] O eu puro eacute como a foacutermula de Deusraquo110

Ante uma tal concepccedilatildeo torna-se relativamente faacutecil associar o pensamento de Valeacutery ao dos miacutesticos associaccedilatildeo que apesar de todo o distanciamento criacutetico do poeta com relaccedilatildeo agrave religiatildeo institucionalizada (seu paradigma eacute quase sempre o Catolicismo com quem tem ambiacuteguas relaccedilotildees111) eacute entretanto

108 C2rsquo p 312109 BLANCHOT Maurice Valeacutery et Faust La part du Feu Nrf Gallimard 1949 p 281110 C2rsquo p 293111 Natildeo se pode superestimar a influecircncia do Catolicismo sobre Valeacutery Eacute fato que numa carta a Pierre Louis ele escreve duras e polecircmicas consideraccedilotildees sobre suas ambiacuteguas inclinaccedilotildees religiosas Consideraccedilotildees que alguns criacuteticos natildeo tardariam supostamente em interpretar como anti-semitas qualificativo este que por vezes realmente pairou sobre a imagem do poeta laquoCom relaccedilatildeo agrave Biacutebliaraquo escreve ele laquoeu creio que vocecirc despreza o objeto de minhas preferecircncias miacutesticas Eu sou sobretudo catoacutelico quase idoacutelatra e detesto todo calvinismo e jansenismo isto eacute todas as seitas inartiacutesticas () Eu natildeo gosto dos Judeus pois eles natildeo tecircm arte Das raccedilas vizinhas eles pilharam tudo em mateacuteria de arquitetura etcraquo (LQ p 13) Contudo jaacute nesse trecho citado haacute obviamente muito de ironia pois o valor das religiotildees eacute dado pelo aspecto esteacutetico e natildeo pelo eacutetico pela forma e natildeo pelo conteuacutedo mdashprocedimento que seraacute recorrente no poetamdash Ademais essa carta foi escrita em 1890 portanto dois anos antes do periacuteodo de crise e da Noite de Gecircnova a partir das quais ante qualquer religiatildeo Valeacutery adotaum agnosticismo lato particular posiccedilatildeo epistemoloacutegica que natildeo deixa de ser derivada ou anaacuteloga ao seu ceticismo geral

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relativamente legiacutetima A obsessatildeo pelo Uno de um Plotino os oxiacutemoros poeacuteticos de um Satildeo Joatildeo da Cruz ou a rigidez militar de um Sto Inaacutecio de Loyola todos esses e outros registros estatildeo relativamente presentes em seus escritos todas essas figuras satildeo em certa medida admiradas mas sempre com estrateacutegica cautela Pois o que o poeta preza na via miacutestica eacute menos a possibilidade do ecircxtase ou da realizaccedilatildeo da dimensatildeo sagrada sem mediaccedilotildees e mais o treinamento os aacuterduos exerciacutecios de meditaccedilatildeo praticados exerciacutecios de algum modo relativamente semelhantes aos seus proacuteprios exerciacutecios compreendidos no seu programa de autoconsciecircncia O poeta conjectura que a disciplina que a via miacutestica mdashnesse caso natildeo haacute muitas diferenccedilas com relaccedilatildeo agrave via asceacuteticamdash instaura relativamente estranha agrave mentalidade e aos interesses pragmaacuteticos da Modernidade natildeo deve ser de todo desprezada deve ser antes reinventada e continuada atualizada justamente para tempos mais positivos e cientiacuteficos logo sem necessariamente almejar a visatildeo ou a uniatildeo com o suposto Deus sem aesperanccedila ou a feacute de outrora laquoTudo o que foi encontrado de bom e de belo pela via miacutesticaraquo escreve laquodeve poder ser encontrado pela via realraquo112 Assimse haacute uma miacutestica ou uma ascese em Valeacutery ela soacute seraacute compreendida paradoxalmente em sentido secular ou laico dessacralizada e metaforizadaDesprovida de qualquer desejo de transcendecircncia eacute uma miacutestica ou ascese formal a sua autoconsciecircncia Uma miacutestica ou uma ascese que natildeo deseja realizar Deus mas tatildeo-somente realizar-se e realizar-se sem fim laquoO problema capital na vidaraquo escreve Valeacutery laquomdash eacute o da ascese que eu entendo como possessatildeo de si e tambeacutem como exploraccedilatildeo Natildeo haacute que duvidar que a busca do progresso interior (como dizem os miacutesticos) eacute o Uacutenico objeto possiacutevel e as ciecircncias natildeo deixam de ser uma particularizaccedilatildeo dessa buscaraquo113 Essas palavras parecem enfim sintetizar o cerne de grande parte do pensamento de Valeacutery Haacute uma ascese intelectual a ser cumprida postulada e exigida pelo sujeito a si mesmo eque na Modernidade natildeo deve recusar as ciecircncias e as artes justamente porqueas ciecircncias e as artes mdashque por princiacutepio natildeo se distinguem umas das outrasmdashpodem ser tanto como praacuteticas quanto pelo que contribuem agraves especulaccedilotildees do espiacuterito meios dessa proacutepria ascese

1112 FAZER SEM CRER

O ceacutetico eacute o homem menos misterioso que existe e entretanto a partir de um certo momento ele natildeo pertence mais a esse mundo

Emile Cioran O mau demiurgo

112 Π Folio 109113 C6 p 738

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Haacute toda uma seacuterie de recorrecircncias desconexa e plural de ldquocrise e conversatildeo espiritualrdquo na Histoacuteria da Filosofia e da Literatura Ocidental Satildeo Paulo e Santo Agostinho Pascal Rousseau e Kant Tolstoi Wronksi Jacques e Raiumlssa Maritain todos eles e tantos outros passaram em maior ou menor grau de acordo com suas idiossincrasias e os contextos histoacutericos em que viviam por modificaccedilotildees abruptas em suas respectivas formas de pensar por cesuras Oitineraacuterio espiritual de Valeacutery com o periacuteodo de crise e a Noite de Gecircnova natildeo deixa de ser uma variaccedilatildeo desse recorrente acontecimento de ordem simultaneamente privada e puacuteblica remete agrave Crise de Tournon (29 de marccedilo a 6 de abril de 1866) de seu mestre Mallarmeacute114 da qual consciente ou inconscientemente talvez tenha buscado alguma filiaccedilatildeo115 Mas eacute sobretudo passiacutevel de ser posto aqui em comparaccedilatildeo e paralelismo com o itineraacuterio espiritual deste outro filoacutesofo que tambeacutem sofreu ou diz ter sofrido uma transiccedilatildeo abrupta em seu pensamento (10a 11 de novembro de 1619) e marcou seja por contraste ou identidade indistintamente todo o pensamento do poeta assim como toda a tradiccedilatildeo moderna Descartes A insatisfaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo de seu tempo com uma intransigente Escolaacutestica como um proceder que amiuacutede encara o conhecimento como uma eterna recapitulaccedilatildeo e o intento de alcanccedilar ldquoideacuteias claras e distintasrdquo um saber verdadeiramente seguro116 natildeo deixa de ser um movimento relativamente anaacutelogo ao do poeta mdashe quanto a isso a influecircncia natildeo parece gratuitamdash Tambeacutem ele demonstrou insatisfaccedilatildeo apoacutes o periacuteodo de crise e a Noite de 114 As reflexotildees de Valeacutery sobre a Crise de Tournon de Mallarmeacute in Œ1 p 676-679 especialmente 677 A crise de Mallarmeacute eacute mais de ordem poeacutetica laquoInfelizmente escavando os versos a este ponto eu encontrei dois abismos que me desesperamraquo diz ele laquoUm eacute o Nada ao qual cheguei sem conhecer o budismo e eu estou ainda bastante desolado para poder inclusive acreditar em minha poesia e me lanccedilar ao trabalho que esse pensamento esmagador me fez abandonarraquo (MALLARMEacute Steacutephane Œuvres completes I org Bertrand Marchal Bibliothegraveque de la Pleacuteiade Gallimard Paris 1998 p XLIX)115 Cf JARRETY Michel Paul Valeacutery Fayard 2008 p 119116 Cf DESCARTES Reneacute Discurso do meacutetodo trad J Guisnburg e Bento Prado Juacutenior Os Pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1979 pp 25-113 Em seu ensaio Une vue de Descartes Valeacutery escreve sem pudor sobre o filoacutesofo do cogito como se escrevesse sobre si mesmo sobre o seu periacuteodo de crise e a sua Noite de Gecircnova sobre o seu programa de autoconsciecircncia laquoO conjunto desse dia 10 de novembro e a noite que se seguiu constituem um drama intelectual extraordinaacuterio Suponho que Descartes natildeo nos enganou e que o relato que nos faz eacute tatildeo certo quanto uma lembranccedila carregada de sonhos natildeo haacute razatildeo para duvidar de sua sinceridade Conheccedilo muitos outros exemplos de tais iluminaccedilotildees do espiacuterito posteriores a longas lutas interiores a tormentos anaacutelogos a dores do parto De golpe a verdade de algueacutem se faz e brilha nele A comparaccedilatildeo luminosa se impotildee pois nada daacute uma imagem mais justa desse fenocircmeno iacutentimo que a intervenccedilatildeo da luz num meio escuro no qual soacute eacute possiacutevel mover-se a apalpadelas Com a luz aparece a caminhada em linha reta e a relaccedilatildeo imediata das coordenaccedilotildees do caminhar com o desejo e o fim O movimento se converte numa funccedilatildeo de seu objeto [] no caso de Descartes eacute toda uma vida que se ilumina na qual todos os atos seratildeo a partir de agora ordenados para a obra que seraacute seu fim A linha reta estaacute balizada Uma inteligecircncia descobriu ou projetou aquilo para o qual foi criada formou de uma vez por todas o modelo de todo o seu exerciacutecio futuro [Grifo do autor] Natildeo se deve confundir creio esses golpes de Estado intelectuais com as conversotildees na ordem da feacute que tanto se assemelham aos tormentos preliminares e pela suacutebita declaraccedilatildeo do ldquohomem novordquo Encontro efetivamente uma notaacutevel diferenccedila entre esses modos de transformaccedilatildeo transcendente Enquanto na ordem miacutestica a modificaccedilatildeo pode se produzir em qualquer idade na ordem intelectual ela parece ter lugar geralmente entre dezenove e vinte quatro anos ao menos assim foi com as poucas ldquoespeacuteciesrdquo conhecidas por mimraquo (Œ1 pp 814-815)

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Gecircnova com grande parte do que lhe concedia a filosofia a arte e a literatura de seu tempo atividades que lhe pareciam extremamente fundamentadas emimprecisotildees arbitrariedades e gratuidades

Mas entre o filoacutesofo e o poeta haacute uma diferenccedila crucial Enquanto Descartes aspirando superar o ceticismo utiliza-se da duacutevida metoacutedica da duacutevida heuriacutestica como um momento ou etapa de uma linha de raciociacutenio que levaraacute agrave supostamente inviolaacutevel certeza do cogito e agraves reflexotildees sobre o meacutetodo Valeacuteryconstroacutei seu pensamento sempre com algum grau de negatividade E portantoabre-se a reformulaccedilotildees a inuacutemeras reformulaccedilotildees Ele se fez conduzir portanto natildeo agrave crenccedila ou agrave adesatildeo a alguma doutrina dada por outros ou formulada por si mesmo natildeo a uma certeza inviolaacutevel sagrada e em grande medida consoladora mas diferentemente a um constante e idiossincraacutetico ceticismo117 Esse ceticismo eacute lato isto eacute natildeo se filia e natildeo pode se filiar a nenhuma escola ou doutrina especifica Refere-se direciona-se sobretudo a um estado que de acordo com o texto em questatildeo adquire maior ou menor intensidade deduacutevida mdashcaracterizada menos como riacutegida descrenccedila e mais como simplesdesconfianccedilamdash frente a qualquer pensamento filosoacutefico que extrapole em demasia os limites legitimados pela experiecircncia frente a qualquer forma de metafiacutesica particularmente a qualquer forma de idealismo frente agrave universalidade e agrave veracidade dos problemas metafiacutesicos quando estes satildeo sobretudocompreendidos analisados por uma perspectiva puramente funcionalista puramente formal e linguumliacutestica a qual o poeta sempre buscou adotar laquoDesconfie sem cessarraquo118 (laquoMeacutefie-toi sans cesseraquo) Eis uma das inuacutemeras e poderosas divisas que toma para si escrevendo-a e afixando-a no seu quarto de estudante

O pensamento de Valeacutery quando contemplado pela perspectiva dessa desconfianccedila natildeo raro se aproxima do desafiador Pirronismo Claacutessico na medida em que sempre se ateacutem ao conceito de possibilidade que seraacute tatildeo bem encarnado pelas personagens Leonardo da Vince e principalmente Edmond Teste Pois natildeo adentra no paradoxal ceticismo dogmaacutetico que nega por princiacutepio qualquer possibilidade de se formular alguma verdade ou algum criteacuterio de verdade desde que entretanto essas possibilidades sejam proposiccedilotildees bem formuladas precisas Aproxima-se tambeacutem dos momentos ceacuteticos de Montaigne na medida em que mesmo assentando-se na eacutepoche na suspensatildeo do assentimento (conceito relativamente anaacutelogo e incluso ao de culto ao Iacutedolo do intelecto) e na busca por uma ataraxia por uma tranquumlilidade da alma (conceito relativamente anaacutelogo e incluso ao de eu puro) natildeo deixa de na dimensatildeo socialdo conviacutevio humano do senso-comum emitir juiacutezos de valor de referir-se a seus

117 Cf CHARNEY Hanna K Le scepticisme de Valeacutery Dider Paris 1969118 BERTHOLET Denis Paul Valeacutery - 1871-1945 Biographies Plon Paris 1995 pp 39 e 92

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gostos e desgostos aos seus caprichos as suas obsessotildees de ironizar de criticarde contestar de refutar de tomar partido de defender uma ideacuteia ao inveacutes de outra Comportamento esse que pode muito bem ser contemplado em seus ensaios sobre literatura e arte assim como em seus ensaios de poliacutetica

Todavia entre todas as vertentes da tradiccedilatildeo preacute-moderna a qual o pensamento de Valeacutery pode estar relativamente filiado ou elucidado a dos tatildeo excessivamente criticados antigos sofistas parece ser uma das mais recorrentes e confessas laquoO retoacuterico e o sofista sal da terraraquo anota o poeta laquoIdoacutelatras satildeo todos os outros que trocam as palavras pelas coisas e as frases pelos atosraquo119 A ceacutelebre maacutexima de Protaacutegoras mdashO homem eacute a medida de todas as coisas da existecircncia das coisas que satildeo e da natildeo-existecircncia das coisas que natildeo satildeo120mdash eacute uma divisa operante e amiuacutede citada direta ou indiretamente em seus escritos Todavia para atualizar essa maacutexima ao vocabulaacuterio valeacuteryano dir-se-ia agora que o eu eacute a mediada de todas as coisas ou mais exatamente o eu que sou eacute a medida de todas as coisas Pois o homem no que afirma e no que nega no que sente e no que natildeo sente estaacute circunscrito a sua esfera de percepccedilotildees e a sua esfera de pensamentos ao seu proacuteprio horizonte estaacute circunscrito a sua proacutepria perspectiva que em parte recebe do mundo exterior e em parte cria de acordo com suas proacuteprias categorias Se ele crecirc que o mundo eacute deste modo ou de outro se ele crecirc que sua crenccedila natildeo pode ser qualificada como crenccedila posto consideraacute-la uma verdade objetiva e universalmente vaacutelida uma cosmovisatildeo correta essa certeza em nadamuda o ldquofatordquo o insistente ldquofatordquo de que para o outro para ele a verdade alheia pode continuar sendo crenccedila ou um erro Dir-se-ia que eacute toda uma concepccedilatildeoldquoantropocecircntricardquo ou melhor ldquoegocecircntricardquo que eacute todo um ldquorelativismordquo ou melhor um ldquoperspectivismordquo o prisma atraveacutes do qual grande parte do pensamento de Valeacutery se estabelece E isso natildeo porque ele confere importacircnciaao homem ou a si mesmo mas ao contraacuterio justamente porque desconfia do ldquohumanismordquo porque sente uma certa ldquoindiferenccedilardquo um certo ldquodesprezordquo com relaccedilatildeo ao humano compreendendo este como uma soma de subjetividades quenatildeo raro obliteram a compreensatildeo do funcionamento do proacuteprio espiacuterito laquoNofundoraquo diz ele laquoaquilo que pode ser a raiz da minha incredulidade essencial substancial mdash eacute a ideacuteia ou o sentimento bastante depreciativo que eu tenho do homem a impossibilidade de dar a ele uma importacircncia metafiacutesicaraquo121 Em seu pensamento a noccedilatildeo geneacuterica de uma natureza humana a habitar os homens seus coraccedilotildees em todos as eras e geografias tornando-os substancialmente idecircnticoseacute algo a ser evitado por um pensamento que se quer livre inclusive de si mesmo

119 Œ2 p 619120 PLATO Theaetetus no 123 trad Harold North Fowler org Jeffrey Henderson Loeb Classical Library 152 A p 40-41121 C2rsquo p 610

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Displicentemente forjado numa tradiccedilatildeo laica de racionalismo empirismo e positivismo Valeacutery natildeo pode mais operar com o conceito de uma essecircncia perpeacutetua imutaacutevel imanente agraves coisas ao mundo e principalmente ao homem Homem que em suas matildeos esvaziou-se tornou-se puro devir pura linguagemEsfacelou-se Para o poeta jaacute natildeo haacute natildeo faz sentido haver mais a Verdade masapenas verdades jaacute natildeo haacute mais o Ser mas apenas seres

Dessarte a questatildeo fundamental do ldquoceticismordquo ou do ldquorelativismordquo de Valeacutery natildeo se refere agrave questatildeo da verdade ou da possibilidade ou natildeo de se alcanccedilar agrave verdade refere-se sobretudo agrave questatildeo do estatuto da crenccedila isto eacute da importacircncia e do valor da funccedilatildeo que esta adquire para o espiacuterito que crecirc ou descrecirc para o espiacuterito que a ela adere e ou dela se utiliza E o conceito de crenccedila eacute amiuacutede em seus escritos compreendido ou reduzido a tudo aquilo que estaacute numa primeira instacircncia aleacutem do que pode ser verificado ou corroborado pela experiecircncia logo posto em relativa oposiccedilatildeo ao conceito mesmo de saberCrenccedila eacute toda adesatildeo a uma conjetura a uma especulaccedilatildeo agravequilo que natildeo se comprova ou ainda natildeo foi comprovado laquoEu creio que noacutes natildeo podemos crer somente sem o saberraquo122 escreve Valeacutery um tanto taxativamente Estado natildeo muito distante do ldquosentimentordquo estado que talvez seja tatildeo-somente ldquosentimentordquo crer eacute portanto uma espeacutecie de excesso de exagero do espiacuterito que supostamente natildeo se contentando com a realidade fenomecircnica presente almeja por um futuro por um transcender e se inclina por esse transcender que pode ou natildeo se revelar posteriormente uma ilusatildeo na medida em que natildeo eacute suficientemente sustentado ou legitimado por nenhuma experiecircncia real nesse sentido eacute sempre laquouma concessatildeo mdash um estado provisoacuterioraquo123 laquoCrer natildeo eacute no fundo que sentirraquo124 A crenccedila assim compreendida eacute um estado que deve ser evitado

Haacute quanto a essa recusa uma poderosa e desconcertante maacutexima mdashamiuacutede citada entre tantas outras que cultivou e repetiumdash que sem pudor algum reza laquoFazer sem crerraquo125 (laquoFaire sans croireraquo) Essa maacutexima mdashquiccedilaacute outro modo de compreender o estado representado pelo conceito de eu puromdashpode ser explicada interpretada da seguinte forma Quatildeo difiacutecil eacute para o senso comum e mesmo para muitas filosofias crer que se possa agir sem crer crer que se possa agir sem ter esperanccedila ou medo que essa accedilatildeo resulte crer que se possa agir sem que haja um princiacutepio para accedilatildeo que remeta ao sujeito da proacutepria accedilatildeoPois supostamente dentro de um padratildeo psiacutequico relativamente corriqueiro a descrenccedila absoluta levaria como que naturalmente agrave paralisia absoluta da accedilatildeo

122 Π Folio 134123 Π Folio 75124 Π Texte 7 (VIII 428)125 Cf C1rsquo p 131

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do fazer Todavia para Valeacutery mdashassim como para grande parte dos ceacuteticos antigosmdash isso nem sempre ocorre E mais o contraacuterio se faz necessaacuterio Toda a accedilatildeo todo o fazer cumpre ser conduzida pelo mais puro desinteresse Agir fazerrequer desapego laquoQuem faz o bem por dever o faz mal e o faz sem arteraquo126 sentencia o poeta E eacute nessa sentido que o seu culto ao Iacutedolo do intelecto eacute um meacutetodo atraveacutes do qual o espiacuterito trabalha para se tornar um eu puro mas um meacutetodo que exclui a esperanccedila um meacutetodo que jaacute eacute meta Pois natildeo eacute necessaacuterio nada aleacutem do processo

Talvez seja por isso por todo esse modo de se comportar e por tantas

outras excecircntricas regras intelectuais aplicadas a si mesmo que agrave respeito dos

inuacutemeros qualificativos que foram consagrados ao poeta Edgar Degas tenha lhe

reservado um dos mais enigmaacuteticos e afetuosos mas tambeacutem um dos mais

precisos o pintor costumava chamaacute-lo de Senhor Anjo127 Encantado Valeacutery

aceita tal qualificativo e o interpreta obviamente natildeo como a designaccedilatildeo de um

mensageiro da vontade divina mas como a designaccedilatildeo de um estrangeiro um

estranho um solitaacuterio que em meio aos tortuosos e contraditoacuterios caminhos da

Modernidade vive a estudar o mundo e a si mesmo mas tambeacutem a constatar

como um Soacutecrates desencantado sua contiacutenua ignoracircncia laquoTudo o que eacute humano

me eacute estranhoraquo128 diz enigmaticamente quiccedilaacute evocando o seu espiacuterito

funcionalista Note-se que a figura do anjo eacute como na poesia de Rilke

relativamente recorrente na sua proacutepria E natildeo deixa de ser providencial que um

de seus uacuteltimos escritos um poema em prosa intitulado Lrsquoange de 1945 no qual

um anjo admirando todo este mundo humano de erracircncia e contradiccedilotildees finde

com esta poderosa frase laquoE durante uma eternidade ele natildeo cessou de conhecer e de natildeo

compreenderraquo129 (laquoEt pendant une eacuteteacuterniteacute il ne cessa de connaicirctre et de ne pas comprendreraquo)

126 C1rsquo 1973 p 620 127 C1rsquo p 131128 C2rsquo p 320129 Œ1 p 206

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2 PERSONAGENSESCOacuteLIOS

Hoje jaacute natildeo tenho personalidade quanto em mim haja de humano eu o dividi entre os autores vaacuterios de cuja obra tenho sido o executor Sou hoje o ponto de reuniatildeo de uma pequena humanidade soacute minha

Fernando Pessoa A gecircnese dos heterocircnimos

21 MODOS DE VIDA

Na Histoacuteria da Filosofia Ocidental o laborioso artifiacutecio da personificaccedilatildeo foi recorrentemente utilizado apesar de ser considerado por vezes um devaneio excessivo e arriscado supostamente prejudicial agrave universalidade almejada pelo pensamento racional Afinal como diz o proacuteprio poeta laquoA possibilidade de ser muitos eacute necessaacuteria agrave razatildeo mas eacute a desrazatildeo que a utilizaraquo130 Todavia os exemplos satildeo canocircnicos Mesmo antes do pleno desenvolvimento do poderoso conceito de indiviacuteduo Platatildeo em seus diaacutelogos transformou-se em dissonantes vozes e polemizou com seus contemporacircneos posteriormente Kierkegaard em suas imensas digressotildees em estranhos pseudocircnimos como Johannes Climacus e Anti-Climacus posteriormente Nietzsche na corrosiva poeacutetica de seus aforismos em um errante Zaratustra e em um alegre Dioniacutesio

Em certa consonacircncia com esses filoacutesofos Valeacutery tambeacutem natildeo deixou de brincar de ser outro de forjar suas maacutescaras e de propositadamente confundir-se com elas O seu programa de autoconsciecircncia e o fato de jamais abandonar por mais que ambiacutegua e ironicamente dissesse pretender o sempre fantasioso plano da literatura e da poesia o conduz a reinventar-se a multiplicar-se laquoEle conteacutemraquo confessa sobre si mesmo na sugestiva terceira pessoa do singular em um texto poacutestumo breve e autobiograacutefico intitulado Moi laquomuitos e diversos personagens e uma testemunha principal que observa todos esses fantoches se agitaremraquo131

Como William Butler Yeats e seu anti-eu132 como Ezdra Pound e suas personaelig133 como Fernando Pessoa na invenccedilatildeo de seus ceacutelebres e desconcertantes heterocircnimos134 como parte desta restrita Modernidade que arduamente se desencanta frente a uma religiatildeo predominante Valeacutery desconfia da unidade do sujeito daquele que amiuacutede diz saber com absoluta certeza e secreto orgulho o que pensa e o que deseja todavia natildeo ao ponto de dilaceraacute-lo sua preciosa e ideal unidade empiacuterica em valores e crenccedilas demasiadamente contraditoacuterios em doutrinas totalmente divergentes E se apesar de estrategicamente dizer (ou 130 C1rsquo p 407131 LQ p 22132 Cf YEATS W B Autobiographies Macmillian amp Co Ltda London Toronto 1961 amp A vision Papermac Pan Macmillian Publishers London Basingstone Hong Kong 1992133 Cf POUND Ezdra Personaelig - Collected shorter poems of Ezra Pound Faber and Faber Londres mcmlii 134 Cf PESSOA Fernando Os outros eus in Obras em prosa Em um volume Nova Aguilar Rio de Janeiro 1985

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justamente por isso) que seu laquoponto de vista filosoacutefico eacute a diversidade de pontos de vistaraquo135 ele diferentemente do plural poeta portuguecircs com quem tem tantas afinidades artiacutesticas principalmente no gosto pela dissimulaccedilatildeo natildeo se multiplica para ser literariamente outro mas para ser literalmente si mesmo laquoEu tenho o espiacuterito unitaacuterio em mil pedaccedilosraquo136 assim revela ou ainda mantendo certa relaccedilatildeo com a heranccedila cartesiana laquoEm suma eu sou uma transformaccedilatildeo que conserva uma certa probabilidade de mdash conservaccedilatildeoraquo137 Essa atitude natildeo deixa de estar tambeacutem relacionada agrave vontade ou agrave necessidade em praticar mesmo que diletantemente uma multiplicidade de outras atividades em adentrar um nuacutemero variado de registros para cumprir adequadamente aquilo que primeiramente se propotildee laquose o loacutegico nunca pudesse ser algo aleacutem de loacutegicoraquo diz laquoele natildeo seria e natildeo poderia ser loacutegico e que se o outro [o poeta] nunca fosse algo aleacutem de poeta sem a menor esperanccedila de abstrair e de raciocinar ele natildeo deixaraacute atraacutes de si qualquer traccedilo poeacutetico Penso muito sinceramente que se cada homem natildeo pudesse viver uma quantidade de outras vidas que natildeo a sua ele natildeo poderia viver a suaraquo138 laquoEu natildeo seria eu se eu natildeo pudesse ser um outroraquo139

Leonardo da Vinci e Edmond Teste satildeo as duas mais recorrentes e exemplares dessas personificaccedilotildees desses outros Extrapolando os limites dos escritos que foram inteiramente consagrados a esses homens imaginaacuterios estatildeo tambeacutem presentes em outras partes da obra de Valeacutery que frequumlentemente deles se serve como pretextos ou veiacuteculos para expressar algo diverso como siacutembolos Em diferentes circunstacircncias culturais e econocircmicas ambos representam variaccedilotildees possiacuteveis deste espiacuterito apoliacuteneo luacutecido predisposto a iluminar o todo do mundo e de si mesmo intelectualmente autaacuterquico a que o poeta buscou constantemente construir natildeo raro em oposiccedilatildeo agraves opressotildees da vida social Ambos satildeo postulados como aqueles que buscam agir independente das filosofias alheias independente do meio que os cercam e com um maacuteximo de atenccedilatildeo e controle sobre suas proacuteprias atividades sejam estas meramente psiacutequicas ou fiacutesicas encarnam e sintetizam assim o proacuteprio programa de autoconsciecircncia de Valeacutery mas em perspectivas distintas o primeiro numa miacutetica Renascenccedila eacute a potencialidade que se transforma em ato pois trabalha a si mesmo atraveacutes dos mecanismos do mundo exterior o uacuteltimo numa miacutetica Modernidade a potencialidade que permanece potencialidade pois trabalha a si mesmo atraveacutes dos mecanismos do mundo interior Natildeo satildeo opostos um eacute quiccedilaacute a exacerbaccedilatildeo do outro a sua continuidade o seu desdobramento ao extremo

135 C1rsquo p 494136 C1rsquo p 26137 C1rsquo p 1022138 Œ1 p 1320139 C2rsquo p 285

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numa realidade tambeacutem mais extrema porque mais fragmentada e menos propiacutecia agraves obras que exigem o labor virtualmente infinito labor segundo Valeacutery necessaacuterio ao desenvolvimento espiritual mas notadamente desvalorizado na pragmaacutetica sociedade moderna que seduzida pelas facilidades teacutecnicas e regida por uma feacuterrica administraccedilatildeo frequumlentemente exige um fim artificial e um resultado objetivo e rentaacutevel a todo trabalho humano

Como graves antagonistas dessa intransigente realidade Leonardo e Teste personificam sobretudo e respectivamente mdashmas nunca de modo a isto se reduziremmdash um dos dois principais conceitos mediante os quais a consciecircncia restringe-se em operar se soacutei torna-se autoconsciecircncia se soacutei compreender a si mesmo o seu funcionamento ldquoo fazerrdquo e ldquoo possiacutevelrdquo Ambos podem ser enquadrados portanto natildeo apenas na categoria de personagens literaacuterias mas tambeacutem na de personagens conceituais140 na medida em que expressam ou encarnam explicitamente questotildees ditas filosoacuteficas em escrituras que procuram eliminar o recurso da narrativa do reacutecit Condensando em breves espaccedilos textuais uma enorme variedade de discursos ocultos de subentendidos esse procedimento eacute bastante eficaz para desconstruir para matizar ou relativizar a pretensatildeo de validade universal de determinadas doutrinas relativamente dominantes Ao inveacutes de descrever abstratamente uma eacutetica ou uma esteacutetica descreve-se concretamente um indiviacuteduo imaginaacuterio que cumpre ou negue total ou parcialmente essa eacutetica ou essa esteacutetica iluminando assim as ldquovirtudesrdquo e os ldquodefeitosrdquo destas e consequumlentemente o simples e natildeo raro escamoteado fato de que nem todos aderem aos mesmos valores e crenccedilas de que nem todos operam com os mesmos conceitos e a mesma loacutegica Logo um personagem conceitual expressa sobretudo um modo de vida um modo de vida possiacutevel entre tantos e tatildeo diversos outros uma alteridade No caso de Valeacutery natildeo satildeo naturalmente tipos-ideais a representar determinadas classes ou grupos sociais a que se quer estudar louvar ou depreciar mas singularidades a representar indiviacuteduos 140 Uma postulaccedilatildeo mais dramaacutetica dessa expressatildeo encontra-se em Gilles Deleuze autor do conceito segundo o qual os personagens conceituais (personnages conceptuels) laquosatildeo os ldquoheterocircnimosrdquo do filoacutesofo e o nome do filoacutesofo o simples pseudocircnimo de seus personagens Eu natildeo sou mais eu mas aptidatildeo do pensamento para se ver e se desenvolver atraveacutes de um plano que me atravessa em vaacuterios lugares O personagem conceitual nada tem a ver com uma personificaccedilatildeo abstrata um siacutembolo ou uma alegoria pois ele vive ele insiste O filoacutesofo eacute a idiossincrasia de seus personagens conceituais E o destino do filoacutesofo eacute de transformar-se em seu ou seus personagens conceituais ao mesmo tempo em que esses personagens se tornam eles mesmos coisa diferente do que satildeo historicamente mitologicamente comumente [] O personagem conceitual eacute o devir e o sujeito de uma filosofia [] Os atos de fala na vida comum remetem a tipos psicossociais que testemunham de fato uma terceira pessoa subjacente eu decreto a mobilizaccedilatildeo enquanto presidente da repuacuteblica eu te falo enquanto pai Igualmente o decircictico [decircitico] filosoacutefico eacute um ato de fala em terceira pessoa em que eacute sempre um personagem conceitual que diz Eu [] Na enunciaccedilatildeo filosoacutefica natildeo se faz algo dizendo-o mas faz-se o movimento pensando-o por intermeacutedio de um personagem conceitual Assim os personagens conceituais satildeo verdadeiros agente de enunciaccedilatildeo Quem eacute eu eacute sempre uma terceira pessoaraquo (DELEUZE Gilles amp GUATTARI Feacutelix O que eacute a filosofia trad Bento Prado Jr amp Alberto Alonzo Muntildeos Editora 34 Rio de Janeiro 2000 pp 86-87)

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distintos e excecircntricos cujos comportamentos contrastam com o ditado pelo senso comum Atraveacutes de seus personagens conceituais o poeta expotildee natildeo apenas a sua proacutepria dissonacircncia com relaccedilatildeo ao mundo mas tambeacutem a sua recusa em natildeo se sujeitar a esse mundo imaginando e descrevendo a si mesmo mas a si mesmo num grau mais potencializado mais evoluiacutedo explorando ao maacuteximo o limite das suas proacuteprias idiossincrasias e propoacutesitos Ele os considera seus ldquoalter egosrdquo seus ldquoalter egosrdquo futuros um outro eu para o amanhatilde A rara arte em imaginaacute-los e em descrevecirc-los eacute sobretudo a rara arte em forjar natildeo para os outros mas para si mesmo determinados modelos de perfeiccedilatildeo de pureza

Leonardo e Teste podem ser compreendidos como seres a quem se almeja imitar modos de vida a serem mdashse natildeo de modo literal ao menos heuristicamentemdash realizados141 Correspondem a uma meta a um projeto de vir-a-ser a um destino possiacutevel a ser cumprido por aquele que os constroacutei Em outros tempos e lugares o magro e obstinado asceta buscava integrar-se ao seu inefaacutevel e poderoso avatar todavia no pensamento eliacuteptico do poeta o asceta e o avatar se transformam naquilo que desde sempre satildeo na mesma pessoa142

211 LEONARDO DA VINCE

Ao se evocar um nome ceacutelebre repetidamente surge uma seacuterie de qualificativos que podem ser usados para raacutepida e sinteticamente descrevecirc-lo qualificaacute-lo ou desqualificaacute-lo Diz-se este foi filoacutesofo pois filosofou aquele artista pois criou obras de arte O indiviacuteduo eacute assim reduzido agrave atividade na qual mais se exercitou e pela qual mais admiraccedilatildeo ou repulsa causou mesmo que natildeo tenha com ela se identificado mesmo que tenha praticado inuacutemeras outras Tal procedimento eacute frequumlente quiccedilaacute seja de um pragmatismo didaacutetico uacutetil para aquietar num primeiro momento a consciecircncia que deseja julgar rapidamente Mas o autor nunca deixa de ser uma idealizaccedilatildeo posterior agrave obra uma construccedilatildeo realizada por leitores e comentadores por editores por todos aqueles que possuem voz e se fazem ouvir os que verdadeiramente definem a estatuto do texto na tradiccedilatildeo A pessoa por detraacutes de um nome nunca eacute completamente atingida talvez nem mesmo por aqueles que a conheceram pessoalmente e sua imagem sempre varia no transcorrer da histoacuteria

Oportunamente Valeacutery iluminava esse jogo laquoDa obra natildeo se pode jamais remontar um verdadeiro autorraquo escreve laquoMas um autor fictiacutecioraquo143 laquoNatildeo se pode jamais concluir da obra um autor mdash mas da obra uma maacutescara mdash e da

141 STAROBISNKI Jean laquoSoy reaccioacuten a lo que soyraquo (Paul Valeacutery) in Accioacuten y reaccioacuten - Vida y aventuras de una pareja trad Eliane Casenave Tapieacute Isoard Fondo de Cultura Econoacutemica Meacutexico 2001142 Cf LUSSY Florence de Introduction in CL p 21143 C2rsquo p 1194

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maacutescara uma maacutequinaraquo144 Numa perspectiva puramente positiva soacute se conclui apenas uma seacuterie de procedimentos a engenhosidade natildeo o engenheiro As obras laquosatildeo sempre falsificaccedilotildees arranjosraquo reitera laquonunca sendo o autor felizmente o homem A vida deste natildeo eacute a vida daquele acumulem todos os detalhes que puderem sobre a vida de Racine natildeo tiraratildeo dele a arte de fazer seus versos Toda criacutetica estaacute dominada por esse princiacutepio superado o homem eacute a causa da obra mdash assim como o criminoso aos olhos da lei eacute a causa do crime Eles satildeo antes o seu efeito Mas esse princiacutepio pragmaacutetico alivia o juiz e a criacutetica a biografia eacute mais simples do que a anaacutelise [] A verdadeira vida de um homem sempre mal definida mesmo para seu vizinho mesmo para si mesmo natildeo pode ser utilizada numa explicaccedilatildeo de suas obras a natildeo ser que seja indiretamente e mediante uma elaboraccedilatildeo muito cuidadosaraquo145 laquoA vida do autor natildeo eacute a vida do homem que ele eacuteraquo146 Naturalmente natildeo eacute porque assim seja que Valeacutery se privou de escrever retratos a fabulosa ideacuteia de uma literatura despersonalizada feita apenas de tiacutetulos de obras e sem que nome algum seja referido ele que a intuiu natildeo a cumpre Contudo haacute que se ter consciecircncia de que todo exerciacutecio criacutetico natildeo deixa de ser tambeacutem um exerciacutecio literaacuterio Nada impede que um autor (como qualquer personagem histoacuterica) seja tratado natildeo como uma realidade mas como uma espeacutecie de ficccedilatildeo como uma personagem pertencente a esta literatura chamada Histoacuteria da Literatura a esta filosofia chamada Histoacuteria da Filosofia O interesse a afinidade eletiva o apreccedilo ou o desprezo o fetiche pela suposta personalidade do artista e por sua obra eacute transformado em um princiacutepio de criaccedilatildeo Que diferenccedila haacute entre um autor imaginaacuterio e um autor real quando eacute o pensamento mdashpara aleacutem da concretude do seu portadormdash o que verdadeiramente importa Dessa maneira quando escreve sobre um outro autor e uma outra obra Valeacutery pouco explicita aquilo que pertence ao seu pensamento daquilo que pertence ao alheio Haacute natildeo raro uma iacutentima fusatildeo entre sujeito e objeto em seus escritos justificada pela moderna concepccedilatildeo de que como qualquer escritor o criacutetico ao criticar tambeacutem se revela tambeacutem critica a si mesmo e a proacutepria criacutetica que faz O inteacuterprete ao interpretar interpreta-se O outro eacute um atalho para se chegar a si mesmo laquoPensamos o que ele pensou e podemos reencontrar entre suas obras esse pensamento que lhe eacute dado por noacutes podemos refazer esse pensamento a imagem do nossoraquo147

Valeacutery raramente permanece portanto no seguro e cocircmodo limite das hipoacuteteses Ultrapassando o territoacuterio onde estas satildeo passiacuteveis de serem comprovadas ou refutadas lanccedilava-se a conjeturas Natildeo praticava somente a

144 Œ2 p 581145 Œ1 pp 1230-1231146 Œ1 p 1230147 Œ1 p 1153

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interpretaccedilatildeo mas sobretudo a invenccedilatildeo148 Pouco lhe interessava o que um criador quis ou natildeo verdadeiramente dizer com o que criou antes entregava-se a descrever o que tal criaccedilatildeo suscita agrave consciecircncia que o estuda A criacutetica por ele praticada era baseada em suas proacuteprias intenccedilotildees como pensador afim portanto ao modo como Baudelaire a compreendia como tarefa subjetiva e semioacutetica que implica em criaccedilatildeo e natildeo em neutralidade laquoEu creio sinceramenteraquo dizia o poeta das Les fleurs du mal laquoque a melhor criacutetica eacute a que eacute divertida e poeacutetica natildeo aquela fria e algeacutebrica que com o pretexto de tudo explicar natildeo sente nem oacutedio nem amor e se despoja voluntariamente de qualquer espeacutecie de temperamento [] [] a melhor anaacutelise de um quadro poderaacute ser um soneto ou uma elegia [] para ser justa isto eacute para ter sua razatildeo de ser a criacutetica deve ser parcial apaixonada poliacutetica isto eacute feita a partir de um ponto de vista que abra o maior nuacutemero de horizontesraquo149

O exemplo mais contundente e mais excessivo de todo esse ousado e polecircmico procedimento exegeacutetico mdashpoder-se-ia ainda evocar os diversos estudos dedicados a Descartes Mallarmeacute e Degas pois Valeacutery tambeacutem fez desses outros ldquoheroacuteis do espiacuteritordquo um espelho para o seu pensamento todavia em menor grau quiccedilaacute pela iacutentima proximidade biograacutefica que o unia aos dois uacuteltimos e pela secura filosoacutefica do primeiro pouco dado agraves questotildees da linguagem e da artemdash encontra-se principalmente nos escritos dedicados agrave emblemaacutetica e misteriosa figura de Leonardo cujos famosos e idiossincraacuteticos manuscritos e desenhos o poeta teve a oportunidade de estudaacute-los na Biblioteca Nacional jaacute

148 Essa praacutetica interpretativa na qual ldquotudo ou quase tudo eacute vaacutelidordquo na criacutetica literaacuteria e de artes foi denominada de laquoniilismo hermenecircuticoraquo em claro tom de ressalva por Gadamer (GADAMER Hans-Georg Verdade e meacutetodo - Traccedilos fundamentais de uma hermenecircutica filosoacutefica trad Flaacutevio Paulo Meurer nova revisatildeo da trad Enio Paulo Giachini Vozes amp Editora Universitaacuteria Satildeo Francisco Petroacutepolis amp Braganccedila Paulista 2004 p 146) Em seu ensaio sobre poeacutetica Au sujet du lsquoCeacutemitiegravere Marinrsquo no qual discute uma aula e as explicaccedilotildees dadas sobre o seu poema em questatildeo Valeacutery formula a ceacutelebre justificaccedilatildeo dessa praacutetica para ele sempre pessoal mas haacute que se dizer ele a formula referindo-se muito mais agrave interpretaccedilatildeo de poesia (na perspectiva da poesia pura) do que a de prosa laquoQuanto agrave interpretaccedilatildeo da letra []raquo escreve laquonatildeo haacute sentido verdadeiro de um texto [il nrsquoy a pas de vrai sens drsquoum texte] Natildeo haacute autoridade do autor Seja o que for que tenha pretendido dizer escreveu o que escreveu Uma vez publicado um texto eacute como uma maacutequina que qualquer um pode usar agrave sua vontade e de acordo com seus meios natildeo eacute evidente que o construtor a use melhor que os outros Do resto se ele conhece bem o que quis fazer esse conhecimento sempre perturba nele a perfeiccedilatildeo daquilo que fezraquo (Œ1 p 1507) Cite-se tambeacutem o debate sobre os limites da interpretaccedilatildeo no qual Umberto Eco evoca uma clara distinccedilatildeo que permeia o senso comum entre interpretaccedilatildeo (o que uma obra legitimaria que dela seja dito) e uso (o que uma obra natildeo legitimaria que dela seja dita) (Cf ECO Umberto Lector in fabula - A cooperaccedilatildeo interpretativa nos textos narrativos trad Attiacutelio Cancian Estudos Perspectiva Satildeo Paulo 2004 pp 43-44) Usando a terminologia do semioacutetico italiano eacute certamente mais um uso do que uma interpretaccedilatildeo aquilo que Valeacutery faz de Leonardo da obra deste assim como tambeacutem em muitos outros escritos de criacutetica mas eacute justamente isso que o poeta conscientemente se propotildee fazer para ele o registro da leitura de uma obra deve ser tambeacutem uma outra obra149 BAUDELAIRE Charles Salatildeo de 1846 in Poesia e prosa vol uacutenico org Ivo Barroso trad Cleone Augusto Rodrigues Joana Angeacutelica DrsquoAacutevila Melo Marcella Mortara Pliacutenio Augusto Coelho amp Suely Cassal Nova Aguilar Rio de Janeiro 2002 p 673

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em 1891150 Sem reserva alguma quanto a possiacuteveis criacuteticas a exigir uma fidelidade historiograacutefica ele que natildeo cessa de referir-se aos seus proacuteprios procedimentos assim confessa laquonatildeo encontrei coisa melhor eu atribuir ao desafortunado Leonardo minhas proacuteprias agitaccedilotildees transportando a desordem de meu espiacuterito para a complexidade do seu Infligi-lhe todos os meus desejos a tiacutetulo de coisas possuiacutedas Atribuiacute-lhe muitas das dificuldades que me acossavam naquele tempo como se ele as houvesse encontrado e superado Transformei meus embaraccedilos no seu poder suposto Ousei considerar-me sob seu nome e utilizar sob minha pessoa Isso era falso mas vivo No final das contas natildeo deve um jovem curioso de mil coisas parecer bastante com um homem da Renascenccedilaraquo151

Os artigos Leacuteonard de Vinci e Lrsquoœuvre eacutecritte de Leacuteonard de Vinci152 determinadas passagens dos Cahiers a trilogia de ensaios Introduction agrave la meacutethode de Leonard de Vinci Note et digression e principalmente Leacuteonard et les philosophes - Lettre agrave Leacuteo Ferrero satildeo apesar de breves virtuoses escritos compostos por longas digressotildees atraveacutes dos quais Valeacutery buscou desde os 23 anos e por mais de trecircs deacutecadas de desenvolvimento a construccedilatildeo de uma personagem que fosse a encarnaccedilatildeo mais perfeita do laquohomem completoraquo153 (laquohomme completraquo) ou para usar uma expressatildeo mais conhecida do espiacuterito universal com o qual sempresonhou construir todavia nunca realmente terminou e isso a tal ponto que mdashcioso tanto da imagem do livro quanto da imagem que um texto adquire na paacutegina a ser lida no livromdash lateralmente ao corpo central desses seus trecircs principais escritos sobre Leonardo ele acrescentou em publicaccedilotildees posteriores muitas notas laterais aforismos e fragmentos que desenvolvem e por vezes criticam determinadas ideacuteias suas anteriormente expressas

laquoNa realidade denominei homem e Leonardo o que me surgia entatildeo como o poder do espiacuteritoraquo154 laquoO meu propoacutesitoraquo assim expotildee Valeacutery numa ceacutelebrepassagem laquoeacute imaginar um homem de quem teriam aparecido accedilotildees tatildeo distintas que se eu vier a lhes atribuir um pensamento natildeo existiraacute outro de maior extensatildeo E pretendo que ele tenha da diferenccedila das coisas um sentimento infinitamente vivo [grifo do autor] cujas aventuras poderiacuteamos muito bem chamar de anaacutelise Vejo que tudo o orienta eacute no universo que ele pensa e no rigor Ele eacute feito para natildeo esquecer nada do que entra na confusatildeo do que eacute nenhum arbusto Desce agrave profundeza do que pertence a todo mundo afasta- 150 Numa carta a Gustave Fourmet Valeacutery escreve laquoOntem eu fui bem sucedido ao me introduzir na Biblioteca [Nacional] sem carteira Eu folheei os manuscritos de da Vice Albert Duumlrer e Mallarmeacuteraquo(Cf CVF p 122) Cf BERTHOLET Denis Paul Valeacutery - 1871-1945 Plon Biographies Paris 1995 p 81151 Œ1 p 1232152 Cf V pp 217-227153 Cf Œ1 p 1011154 Œ1 p 1155

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se dele e se olha Atinge os haacutebitos e as estruturas naturais trabalha-os por todos os lados e acontece-lhe ser o uacutenico que constroacutei enumera emociona Deixa de peacute igrejas fortalezas executa ornamentos cheios de doccedilura e de grandeza mil engenhos e as figuraccedilotildees rigorosas de muitas pesquisas Abandona os destroccedilos de natildeo sei que grandes jogos Nesses passatempos que se misturam agrave sua ciecircncia a qual natildeo se distingue de uma paixatildeo tem o encanto de parecer que estaacute sempre pensando em outra coisaraquo155 laquoVia neleraquo posteriormente historia com maior poder de siacutentese laquoa personagem principal dessa Comeacutedia Intelectual [laquoComeacutedie Intellectuelleraquo] que ateacute agora natildeo encontrou o seu poeta e que seria para meu gosto muito mais preciosa do que A comeacutedia humana e ateacute do que A divina comeacutedia Sentia que esse senhor dos seus meios esse possuidor do desenho das imagens do caacutelculo havia encontrado a atitude central [grifo do autor] a partir da qual as empresas do conhecimento e as operaccedilotildees da arte satildeo igualmente possiacuteveis as trocas felizes entre as anaacutelises e os atos singularmente provaacuteveis pensamento maravilhosamente excitanteraquo156

Para que a construccedilatildeo desse espiacuterito universal assim se realize Valeacutery prefere naturalmente ater-se natildeo agrave pessoa de Leonardo agrave qual as biografias tentam dar conta de modo sempre incompleto laquoO que eacute mais verdadeiro a cerca de um indiviacuteduo e mais Ele Mesmoraquo sentencia laquoeacute seu possiacutevel mdash que sua histoacuteria resgata apenas de maneira incerta O que lhe acontece pode natildeo inferir daiacute o que ele ignora de si mesmo Um sino que nunca foi tocado natildeo libera o som fundamental que seria o seu Por isso eacute que minha tentativa foi antes conceber agrave minha maneira o Possiacutevel de um Leonardo que o Leonardo da Histoacuteriaraquo157

laquoAmava nas minhas trevas a lei iacutentima desse grande Leonardo Natildeo queria sua histoacuteria nem apenas produccedilotildees de seu pensamento Dessa fronte carregada de coroas sonhava somente com a amecircndoaraquo158

Avesso ao registro das filigranas da vida cotidiana Valeacutery nunca pretendeu atuar como historiador praacutetica agrave qual concebia ser mais uma construccedilatildeo subjetiva do que objetiva nunca pretendeu portanto referir-se agrave concepccedilatildeo de um homem tiacutepico do Renascimento Tal concepccedilatildeo eacute apesar de ainda hoje vulgarmente difundida e aceita ao menos fora das academias algo que tende a falsear em muito a imagem de um determinado periacuteodo histoacuterico de um determinado recorte convencional de um passado em grande medida tambeacutem convencional Leonardo natildeo era o homem tiacutepico da Renascenccedila assim como Platatildeo natildeo era o homem tiacutepico da Antiguidade Claacutessica assim como Valeacutery mdashque sempre desconfiou das riacutegidas periodizaccedilotildees e do culto de personalidades

155 Œ1 p 1155156 Œ1 p 1201157 Œ1 pp 1203-1204158 Œ1 p 1204

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histoacutericas apesar de ter se servido desses procedimentos meramente como ficccedilotildees uacuteteismdash natildeo era o homem tiacutepico da Modernidade Pois esses homens todos natildeo representam uma maioria antes a exceccedilatildeo do que a regra eles satildeo mdashe eacute justamente esta interpretaccedilatildeo a qual o poeta trabalhamdash determinadas possibilidades de ser numa determinada eacutepoca com todos as facilidades e dificuldades que esta lhes impotildee

O excecircntrico propoacutesito de Valeacutery nunca deixou de ser afinal uma variaccedilatildeo da sua proacutepria idiossincrasia Almejava contemplar inventar em Leonardo no espiacuterito universal a laquoatitude centralraquo um meacutetodo E meacutetodo mdashtermo cartesiano e que entatildeo ficaraacute ligado agrave imagem do poetamdash representa natildeo os procedimentos das ciecircncias ou das artes particulares mas algo mais abrangente e vital um caminho como filologicamente foi estabelecido um modo de se relacionar de comungar com o mundo real atraveacutes de um pensamento extremamente praacutetico que se exterioriza em projetos que possam transformar o mundo e ao projetartransformar a si mesmo159 A incessante busca em tornar-se senhor de seus proacuteprios processos intelectuais de si mesmo enfim o programa de autoconsciecircnciavaleacuteryano desenvolve-se com o advento de um Leonardo imaginaacuterio atraveacutes da accedilatildeo do fazer

2111 O FAZER

Sonho algum encobre-lhe as proacuteprias coisas subentendido algum traz-lhe certezas e natildeo lecirc seu destino em alguma imagem favorita como o abismo de Pascal [Leonardo] Natildeo lutou contra os monstros descobriu seus mecanismos desarmou-os pela atenccedilatildeo e os reduziu agrave condiccedilatildeo de coisas conhecidas () faz o que quer passa agrave vontade do conhecimento agrave vida com uma elegacircncia superior Nada fez onde natildeo soubesse o que fazia e a operaccedilatildeo da arte como o ato de respirar ou de viver natildeo ultrapassa seu conhecimento Encontrou a ldquoatitude centralrdquo a partir da qual eacute igualmente possiacutevel conhecer agir e criar porque a accedilatildeo e a vida tornada exerciacutecios natildeo satildeo contraacuterias ao desinteresse do entendimento Eacute um ldquopoder intelectualrdquo o ldquohomem do espiacuteritordquo

Maurice Marleau-Ponty A duacutevida de Ceacutezanne

O enigmaacutetico inventor que escrevia ao inverso encarnou o projeto de Valeacutery em construir um espiacuterito universal com espantosa providecircncia Haacute como que uma filiaccedilatildeo entre o habitual modo de proceder do artista e o do poeta o primeiro tanto por sua misteriosa recusa em ater-se agrave religiatildeo e agrave metafiacutesica como por seuinteresse pela natureza e pelos sentidos que a captam prefigura a Modernidade mas natildeo a cumpre o uacuteltimo a cumpre mas a critica no que ele tem de mais brutal o aprisionamento do indiviacuteduo constrangido a resultar em algo fixo e determinado Ambos satildeo incapazes da completude do acabamento e soacute podem se expressar atraveacutes de rupturas e de digressotildees de saltos e de desvios de fragmentos ambos sofriam de uma abundante criatividade maior que o tempo

159 Cf MACKAY Agnes Ethel The universal self - A study of Paul Valeacutery University of Toronto Press Toronto 1961 especialmente pp 76-82

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de vida que tinham para concretizaacute-la Acidentes e convenccedilotildees os prazos eram apenas as datas do provisoacuterio abandono de suas obras estavam como que condenados a tudo pensar e nada concluir Talvez sustentassem exigecircncias que superavam a capacidade humana de cumpri-las Daiacute os manuscritos de ambos apresentarem semelhanccedilas expliacutecitas e o poeta ser o ldquoplagiadorrdquo consciente do artista Os escritos e os esboccedilos mais do que as escassas pinturas e esculturas ainda fragilmente preservadas de Leonardo fantasias que pareciam se mostrarem suas gecircneses e intenccedilotildees fascinam Valeacutery porque este estava confessadamente mais interessado no formalismo dos meacutetodos do que no conteuacutedo das metas no contiacutenuo dos processos laquoDesses milhares de notas e de desenhosraquo explicita num trecho que pode ser compreendido como uma descriccedilatildeo de seus proacuteprios Cahiers laquoeu guardava impressotildees extraordinaacuterias de um conjunto alucinante de fagulhas arrancadas pelos golpes mais diversos de alguma fantaacutestica fabricaccedilatildeo Maacuteximas receitas conselhos a si mesmo tentativas de um raciociacutenio que se retoma agraves vezes uma descriccedilatildeo acabada outras vezes fala a si mesmo e se tuteiaraquo160 Contudo esse Leonardo natildeo se caracteriza apenas por esse aspecto formal tampouco apenas pela celebrada versatilidade e facilidade na praacutetica de muitas aacutereas da ciecircncia e da teacutecnica pela polivalecircncia161 muito menos pela vasta erudiccedilatildeo agrave qual do abuso do excesso Valeacutery cuja obra evita citaccedilotildees e referecircncias era notoacuterio criacutetico laquoTento dar uma visatildeo sobre o detalhe de uma vida intelectualraquo escreve laquouma sugestatildeo dos meacutetodos que qualquer criaccedilatildeo implica uma escolhida entre a multidatildeo de coisas imaginaacuterias modelo que adivinhamos grosseiro mas de qualquer forma preferiacutevel agraves sequumlecircncias de anedotas duvidosas aos comentaacuterios dos cataacutelogos de coleccedilotildees agraves datas Tal erudiccedilatildeo soacute iria falsear a intenccedilatildeo totalmente hipoteacutetica deste ensaio [Introduction agrave la meacutethode de Leonard de Vinci]raquo162

O que assim se torna mais relevante eacute principalmente o meacutetodo como o artista exerce todas as inuacutemeras atividades agraves quais se propotildee natildeo desvinculando natildeo separando de todo de modo absoluto mdashtal qual estados ou momentos completamente autocircnomos ou intercambiaacuteveismdash o pensamento simboacutelico e o pensamento conceitual a imaginaccedilatildeo e a razatildeo como frequumlentemente ocorre nas filosofias ou metafiacutesicas racionalistas em muito justamente fundamentadas por essas inuacutemeras separaccedilotildees Porque o pensamento simboacutelico e o pensamento conceitual a imaginaccedilatildeo e a razatildeo talvez sejam apenas plenamente distinguiacuteveis plenamente separaacuteveis no acircmbito do discurso e natildeo no acircmbito da realidade Quiccedilaacute para o espiacuterito para a consciecircncia empiacuterica mdashna qual o proacuteprio pensamento ocorre de modo constante fluido passando rapidamente de um 160 Œ1 p 1202161 V p 219162 Œ1 p 1156

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signo a outro atraveacutes de uma fusatildeo de contiguumlidades e analogiasmdash todas as faculdades mentais sejam necessaacuterias umas agraves outras imanentes umas agraves outrascada uma delas isoladamente natildeo existiria A distinccedilatildeo entre o simbolizar e o conceituar entre o imaginar e o raciocinar soacute pode ocorrer portanto mediante um determinado didatismo ou artificialismo mediante uma convenccedilatildeoConvenccedilatildeo que se tornou ao menos ateacute determinadas filosofias romacircnticas como as de um Schelling e um Novalis dogmaticamente excessiva e acompanhada de uma quase inevitaacutevel valoraccedilatildeo hieraacuterquica do conceito sobre a

imagem da razatildeo sobre a imaginaccedilatildeo ou indo mais longe do loacutegos (λόγος) sobre

o mito (μύθος) Desde a criacutetica de Xenoacutefanes e Platatildeo aos antropomoacuterficos e

destemperados deuses gregos essas distinccedilotildees todas se acentuam com maior ou menor intensidade sobretudo com o advento do Iluminismo quando entatildeo se almeja a construccedilatildeo de um pensar plenamente racional infaliacutevel universalmente correto ou verdadeiro

Mas o Leonardo valeacuteryano em suas accedilotildees ou no resultado de suas accedilotildees parece simplesmente desconsiderar ou desconhecer o problemaacutetico dualismodessas distinccedilotildees laquoUsando indiferentemente do desenho do caacutelculo da definiccedilatildeo ou da descriccedilatildeo pela linguagem a mais exata ele parece ignorar as distinccedilotildees didaacuteticas que noacutes colocamos entre as ciecircncias e as artes entre a teoria e a praacutetica a anaacutelise e a siacutentese a loacutegica e a analogia distinccedilotildees essas todas exteriores que natildeo existem na atividade iacutentima do espiacuterito quando ele ardentemente se liberta para a produccedilatildeo do conhecimento que ele deseja [] [] Criar construir eram para ele indivisiacuteveis do conhecer e do compreenderraquo163 Comportando-se como cientista ou engenheiro multiplicando seus estudos de oacutetica e anatomia simplesmente para pintar um uacutenico quadro164 uma uacutenica folha ou flor o artista assim natildeo separa a dimensatildeo da arte da dimensatildeo do saber E se a convencional e riacutegida divisatildeo entre ambas as praacuteticas fez-se outrora como hoje necessaacuteria ao desenvolvimento da proacutepria Ciecircncia Moderna isso natildeo implica que natildeo possam ser derivadas de uma mesma fonte e compreendidas como formas de linguagem sistemas de signos com fundamentos comuns mas com funccedilotildees sociais relativamente especiacuteficas Ao posicionar-se sempre nessa compreensatildeo eminentemente semioacutetica do mundo o Leonardo valeacuteryano jamais se submete agravequilo que posteriormente iraacute ser com justa insistecircncia denominado e criticado de logocentrismo165 Seja porque atua num periacuteodo histoacuterico no qual magia e ciecircncia alquimia e quiacutemica astrologia e astronomia ainda se confundiam seja porque sinta a natureza de uma outra

163 V pp 218-219164 Cf C1rsquo p 358165 Cf DERRIDA Jaques Qual quelle - Les sources de Valeacutery in Marges de la philosophie Minuit Paris 1972

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forma de modo mais holiacutestico ele demonstra ter a singular consciecircncia de que nem todo o conhecimento eacute ou precisa ser exclusiva e necessariamente logoteoacuterico fundamentado na suposta supremacia do pensamento racional consciecircncia de que a linguagem verbal a liacutengua natildeo eacute a uacutenica e exclusiva expressatildeo das interpretaccedilotildees e das crenccedilas das cosmovisotildees que as pessoas fazem da realidade consciecircncia que todo o artificialmente produzido do alfinete agrave cidade do poema agrave teoria pode ser compreendido como exteriorizaccedilatildeo de um pensamento que se faz representar na particularizaccedilatildeo de atividades as mais variadas Pois a poesia a danccedila a muacutesica a cenografia a ornamentaccedilatildeo o desenho a pintura a escultura a arquitetura a urbaniacutestica a engenharia a ciecircncia todas essas e tantas outras atividades tambeacutem satildeo usadas para transmitir interpretaccedilotildees e crenccedilas cosmovisotildees sejam estas coletivas ou individuais e cujos efeitos na mentalidade alheia satildeo efetivos muitas vezes tatildeo ou mais efetivos quanto o comunicar atraveacutes da linguagem verbal da liacutengua

Uma das principais ldquovantagensrdquo mdasha expressatildeo natildeo eacute a mais adequada mas de algum modo exprime a intenccedilatildeo aqui preteridamdash de Leonardo sobre os Filoacutesofos mdashe Valeacutery compraz-se em comparaacute-los e assim criticar a proacutepria filosofiamdash eacute simplesmente esta natildeo se limitar natildeo limitar o pensamento natildeo condicionaacute-lo apenas agrave expressatildeo pela proacutepria linguagem verbal pela liacutengua falada ou escrita Enquanto os uacuteltimos costumam proceder desse modo seja pela crenccedila na sacralidade ou no caraacuteter civilizador da palavra seja pela precisatildeo e abrangecircncia que esta supostamente concede o primeiro quiccedilaacute nunca satisfeito com o que pode expressar com o que pode realizar pensa e almeja a transmissatildeo do pensamento atraveacutes de inuacutemeras outras formas como se devesse explodir estilhaccedilar-se por todos os lados

Eis portanto o espiacuterito do Leonardo valeacuteryano essa vontade demanifestar-se atraveacutes de todas as linguagens disponiacuteveis em sua eacutepoca e em seu meio sendo capaz de conjeturar e inventar outras se assim for necessaacuterio essa vontade de manifestar-se atraveacutes de todas as inuacutemeras possibilidades derepresentaccedilatildeo do pensamento Porque somente assim ao dispor-se a experimentar a colocar esse seu pensamento em uma determinada accedilatildeo em um determinado fazer seraacute possiacutevel afirmaacute-lo ou negaacute-lo verificaacute-lo ou falseaacute-lo justificaacute-lo ou simplesmente continuar a desenvolvecirc-lo Para o artista o horizonte de suas praacuteticas natildeo finda apenas na anaacutelise mas continua na transformaccedilatildeo que pode executar a partir dessa anaacutelise Cumpre a praacutetica dar continuidade agraveinterpretaccedilatildeo cumpre a praacutetica tambeacutem ser interpretaccedilatildeo Potencialidade que sempre se atualiza que sempre se exterioriza em realizaccedilotildees Leonardo revela-se nesse sentido uma inteligecircncia isto eacute uma maacutequina de ponderaccedilotildees de escolhas e de decisotildees que diante do real natildeo se acanha ou se intimida e estaacute sempre a

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calcular as concretas possibilidades de accedilatildeo de feitura Retirar das circunstacircncias nas quais sempre se encontra sejam estas favoraacuteveis ou desfavoraacuteveis o maacuteximo possiacutevel vencecirc-las e natildeo ser por elas vencido fazer da fraqueza uma forccedila da queda uma ascensatildeo do erro um acerto do presente um futuro nunca esperar e sempre fazer esse eacute o ldquosegredordquo de sua existecircncia devotada agrave expressatildeo agrave realizaccedilatildeo mdashmesmo que os resultados sejam apenas uma soma de incontaacuteveis fragmentosmdash laquoNada de revelaccedilotildees para Leonardo Nada de abismo aberto agrave sua direita Um abismoraquo insiste Valeacutery mais de uma vez laquofaacute-lo-ia pensar numa ponte Um abismo poderia servir para experiecircncias com algum grande paacutessaro mecacircnicoraquo166 laquoseu pensamento se desenvolve cada vez mais sobre o controle perpeacutetuo das resistecircncias exteriores Nada de real lhe parece indigno de ocupar sua poderosa atenccedilatildeoraquo167 Diante dos fenocircmenos ele se concentra simplesmente nos projetos e construccedilotildees que esses fenocircmenos legitimam e evocam no espiacuterito na consciecircncia O real natildeo eacute para ser posto como um altar a ser simplesmente contemplado com espanto o real eacute para ser usado

Eacute atraveacutes dessa perspectiva que o artista passa a representar portanto para o poeta uma espeacutecie de siacutembolo da proacutepria accedilatildeo do proacuteprio fazer Fazer que eacute tanto o resultado quanto o aperfeiccediloamento de um saber seja este compreendido como arte ou ciecircncia168 laquoMeu primeiro movimento de espiacuterito foi sonhar com o Fazerraquo confessa Valeacutery em um trecho memoraacutevel o quanto esse conceito geneacuterico lhe eacute tatildeo caro laquoA ideacuteia de Fazer eacute a primeira e a mais humana ldquoExplicarrdquo nunca eacute mais que descrever uma maneira e fazer eacute apenas refazer atraveacutes do pensamento O Porquecirc e o Como que satildeo apenas expressotildees do que eacute exigido por essa ideacuteia inserem-se a todo instante ordenando que os satisfaccedilamos a qualquer preccedilo A metafiacutesica e a ciecircncia somente desenvolvem sem limites essa exigecircncia Ela pode ateacute levar-nos a supor que ignoramos o que sabemos quando o que sabemos natildeo se reduz claramente a alguma habilidade Eacute isso recuperar os sentidos na sua fonteraquo169 Entretanto soacute se deve agir soacute se deve fazer com rigor com laquoobstinado rigorraquo (laquohostinato rigoreraquo)170 Esta eacute uma das maacuteximas divisas de

166 Œ1 p 1210167 V p 219168 Maurice Blanchot em seu ensaio sobre a peccedila Mon Faust de Valeacutery compara estes trecircs personagens Fausto Teste e Leonardo e ousa ir ainda mais longe na interpretaccedilatildeo do uacuteltimo encarando-o natildeo apenas como um paradigma para o indiviacuteduo mas como um paradigma para toda a humanidade laquoO homem real segundo da Vinci aplica sua vida agrave conquista e ao exerciacutecio de todos os meios de fazer o real eacute tudo aquilo que ele pode Leonardo eacute um siacutembolo porque ele figura no limite um homem para o qual toda a realidade eacute consagrada ao possiacutevel que transforma tudo o que ele eacute em operaccedilotildees realizaacuteveis e verificaacuteveis e tem assim a sua disposiccedilatildeo sob a forma de uma capacidade infinita de atos toda a sua histoacuteria e esta da humanidaderaquo (BLANCHOT Maurice Valeacutery et Faust in La part du feu Nrf Gallimard 1949 p 275)169 Œ1 pp 891-892170 Œ1 p 1155 Como Leonardo Valeacutery tambeacutem escreve a palavra italiana ostinato (obstinado) com ldquohrdquo quando o registro corrente eacute sem segundo uma interpretaccedilatildeo relativamente frequumlente o italiano (como

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Leonardo agrave qual Valeacutery constata e adere buscando cumpri-la em todos os aspectos de sua obra e de sua vida Para se passar do pensamento agrave accedilatildeo para se passar do pensamento ao fazer para que o espiacuterito se insira atraveacutes da praacutetica por ele escolhida no devir do mundo o seu cultivo cotidiano obstinado e obsessivo o seu culto faz-se necessaacuterio A sua exigecircncia natildeo eacute mero preciosismo Compreendido como tenacidade e exatidatildeo e natildeo como falta de flexibilidade o rigor proposto eacute o modo mesmo pelo qual se busca obter entendimento clareza luminosidade na obra e no processo de elaboraccedilatildeo daproacutepria obra171 pelo qual o espiacuterito a consciecircncia busca laquonatildeo sei que total possessatildeo de sua maacutequina de agir a elegacircncia ideal da accedilatildeo criadoraraquo172 Natildeo por acaso Walter Benjamim descrever o Leonardo valeacuteryano e consequumlentemente o proacuteprio Valeacutery justamente como laquoo artista que em nenhum momento de sua obra desiste de alcanccedilar uma noccedilatildeo maximamente exata de seu trabalho e de sua maneira de executaacute-loraquo173

Dessarte ao almejar assim proceder o Leonardo valeacuteryano deve comeccedilarrecusando o modo como as pessoas em geral contemplam o mundo atraveacutes de um pensamento que abstrai e julga precipitadamente Pois elas estatildeo muito carregadas inflacionadas de conceitos a cultura pesa sobre elas como uma segunda natureza natildeo como uma convenccedilatildeo da qual elas possam facilmente se livrar ou trocar Supotildee-se que ao longo de incontaacuteveis processos histoacutericos e biograacuteficos na sedimentaccedilatildeo e na cristalizaccedilatildeo de interpretaccedilotildees e afirmaccedilotildees elas se esqueceram de conviver com a realidade que os sentidos lhes oferecem jaacute natildeo podem mais percebecirc-la sem a espessa lente dos valores e das crenccedilas das palavras Suas especulaccedilotildees as lanccedilam para outros mundos que natildeo este quiccedilaacute ilusoriamente mais controlaacuteveis e consoladores quiccedilaacute mais suportaacuteveis laquoA maioria das pessoas vecirc atraveacutes do intelecto com uma frequumlecircncia bem maior do que atraveacutes dos olhosraquo diagnostica Valeacutery laquoAo inveacutes de espaccedilos coloridos tomam conhecimento de conceitos Uma forma cuacutebica esbranquiccedilada em relevo e trespassada por reflexos de vidros imediatamente eacute uma casa para eles Lar Ideacuteia complexa acordo de qualidades abstratas Se se deslocam o movimento das filas de janelas a translaccedilatildeo das superfiacutecies que desfigura continuamente suas sensaccedilotildees escapam mdash pois o conceito natildeo muda Percebem mais de acordo com parte dos humanistas de seu tempo) buscava ser fiel agrave linguagem popular e assim distanciar-se da linguagem erudita171 Referindo-se retoricamente a esse seu Leonardo que almeja tudo iluminar Valeacutery se pergunta laquoO que haacute de mais sedutor do que um deus que repele o misteacuterio [] que natildeo direciona seus prestiacutegios para o mais obscuro para o mais terno para o mais sinistro de noacutes mesmos que nos forccedila a concordar e natildeo a se submeter e cujo milagre eacute esclarecer-se cuja profundidade uma perspectiva bem deduzida Existe melhor marca de um poder autecircntico e legiacutetimo do que natildeo se exercer debaixo de um veacuteuraquo (Œ1 p 1201)172 V p 219173 BENJAMIM Walter Sobre a atual posiccedilatildeo do escritor francecircs in Walter Benjamin trad Flaacutevio R Kothe Sociologia Aacutetica Satildeo Paulo 1985 p 179

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o leacutexico do que segundo a retina aproximam tatildeo mal os objetos conhecem tatildeo vagamente os prazeres e os sofrimentos de ver que inventaram os belos locais Ignoram o resto Mas quando isso acontece regalam-se com um conceito que formiga de palavrasraquo174 E tudo isso porque o laquodemocircnio da generalizaccedilatildeoraquo175

raramente dorme laquoFaacutecil cosa egrave farsi universale Eacute faacutecil universalizar-seraquo176 Difiacutecil eacute fazer com que o pensamento natildeo adentre universalizaccedilotildees extremas demasiado extremas difiacutecil eacute portanto natildeo ousar filosofar e filosofar somente atraveacutes do pensamento racional atraveacutes da linguagem verbal da liacutengua de palavras Pois o espiacuterito a consciecircncia mdashdiferentemente do olho que em certo sentido sempre vecirc mais diferentemente de qualquer outro sentido fiacutesico que sempre percebe ou recebe maismdash tende a agrupar a conjugar a aglutinar como que natural e imediatamente num mesmo conceito sob uma mesma designaccedilatildeo uma infinidade de fenocircmenos sempre diferentes e sempre fluidos como se esquecesse das diferenccedilas para compreender para gerar conhecimento faz-se necessaacuterio falsificar ficcionar

Todavia o Leonardo valeacuteryano assim aprende laquopor esse estudo constante rigoroso e amoroso das coisas da natureza que natildeo haacute detalhes na realidade [grifo do autor] e que se [o nosso] espiacuterito nos obriga a abstrair e a simplificar a confundir os seres inominaacuteveis sob quaisquer pobres nomes e a substituir a sua variedade infinita os ldquoconceitosrdquo as classes e as entidades isso natildeo passa de uma necessidade de nosso entendimento [] Noacutes percebemos bem mais do que podemos conceberraquo177 Eis portanto como o Leonardo valeacuteryano emcontraste com esse impulso ou ambiccedilatildeo relativamente natural de abstrairconceitualmente principia qualquer accedilatildeo qualquer fazer suspendendo provisoriamente a ideacuteia a especulaccedilatildeo sobre o suposto valor ontoloacutegico dos fenocircmenos a funccedilatildeo e a hierarquia que estes possam ter no cosmo para pensaro maior tempo possiacutevel as impressotildees primeiras os fenocircmenos simplesmente Disciplinando o pensamento e purificando a percepccedilatildeo o espiacuterito universal deve assim comeccedilar mdashironicamentemdash pelas particularidades Ele escreve Valeacutery laquotambeacutem comeccedila simplesmente contemplando e volta sempre a impregnar-se de espetaacuteculos Retorna aos ecircxtases do instinto particular e agrave emoccedilatildeo dada pela menor coisa realraquo178 Sente laquoa embriaguez dessas coisas particulares das quais natildeo existe ciecircncia179 [] [Sente] como uma delicadeza especial a voluacutepia da

174 Œ1 p 1165175 Œ1 p 1503176 Œ1 p 1160177 V pp 219-120178 Œ1 pp 1164-1165179 Essa ideacuteia natildeo estaacute muito distante do que posteriormente Roland Barthes sugestivamente denominou de laquoMathesis singularisraquo referindo-se agrave fotografia como uma ciecircncia das coisas particulares portanto como uma ciecircncia impossiacutevel (Cf BARTHES Roland La Chambre Claire in Œuvres Completes III 1974-1980 org Eacuteric Marty Eacuteditions du Seuil 1995 sect 3 p 1114)

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individualidade dos objetos [] Nada eacute mais poderoso na vida imaginativa O objeto escolhido torna-se como que o centro de associaccedilotildees cada vez mais numerosas conforme esse objeto seja mais ou menos complexo No fundo essa faculdade natildeo pode ser outra coisa senatildeo um meio de excitar a vitalidade imaginativa de transformar uma energia potencial em atualraquo180 Que se vaacute primeiro aos fenocircmenos particulares e que depois se adentre no perigoso e sedutor labirinto da abstraccedilatildeo conceitual pois assim se aventurar eacute da ldquonaturezardquo mesma do pensamento que opera por distanciamentos por excessos e economias mas tambeacutem que se traga o precioso fio que reconduz a dele sair que os peacutes se mantenham na terra e a cabeccedila no ceacuteu Esse eacute aqui o estranho princiacutepio para a construccedilatildeo de um saber relativamente mais purgado de especulaccedilotildees de preconceitos de ilusotildees metafiacutesicas Eacute por isso que as ldquoaparecircnciasrdquo as imagens as artes plaacutesticas que tradicionalmente copiam os fenocircmenos particulares que tradicionalmente os representam por semelhanccedilas como o desenho e a pintura satildeo tatildeo caras tatildeo necessaacuterias ao Leonardo valeacuteryano181 para este como afirma o poeta a pintura substitui a filosofia182 Porque olhar um objeto eacute uma coisa olhaacute-lo desenhando-o e pintando-o fazendo-o na representaccedilatildeo artiacutestica eacute outra Fazendo-o na representaccedilatildeo artiacutestica eacute descobrir algo no mundo que o espiacuterito a consciecircncia dispersa em suas especulaccedilotildees natildeo descobriria A representaccedilatildeo artiacutestica que aiacute se faz da realidade eacute icocircnica portanto composta de uma fidelidade direta com o abstraiacutedo atenta agrave proacutepria realidadepercebida a um aspecto dela

E isso faz com que Valeacutery mdashatraveacutes desse seu Leonardo em quem opensamento simboacutelico e o pensamento conceitual a imaginaccedilatildeo e a razatildeo se fundemmdash sonhe com um projeto de estudo futuro o qual o poeta denomina delaquoloacutegica imaginativaraquo183 (laquologique imaginativeraquo) ou de laquoanaloacutegicaraquo184 (laquoanalogiqueraquo) 180 Œ1 pp 1170-1171181 Note-se que o proacuteprio Leonardo histoacuterico daacute grande valor agrave pintura o que eacute naturalmente bastante caracteriacutestica da cultura humaniacutestica do Renascimento a valorar relativamente fiel ao pensamento da Antiguumlidade Claacutessica que atualiza e reinventa uma determinada arte pela maior ou menor capacidade de imitaccedilatildeo que esta tem do mundo sensiacutevel material Tal criteacuterio obviamente jaacute natildeo mais poderaacute ser sustentado na Modernidade na qual a fotografia e o cinema por exemplo passam a existir e em massa mas ele teve a sua razatildeo de ser na medida em que era mais ou menos servil a uma doutrina neo-platocircnica supostamente conhecida por Leonardo que dir-se-ia muito ambiacutegua e frouxamente a ela adere mais agrave parte que teoriza a arte como mimese e menos agrave parte que teoriza o mundo sensiacutevel material como corruptiacutevel O que corrobora as ousadas intuiccedilotildees e usos de Valeacutery laquoA pinturaraquo escreve o artista laquoserve a um mais digno sentido que a poesia pois representa com maior verdade as obras da natureza que o poeta E satildeo muito mais dignas as obras da natureza que as palavras as quais satildeo obra do homem pois tal desproporccedilatildeo existe entre as obras do homem e as obras da natureza com aquela que existe entre Deus e o homem Daiacute ser mais digno imitar as obras da natureza verdadeiras semelhanccedilas em ato que imitar com palavras os fatos e os ditos dos homensraquo (LEONARDO da Vince Os escritos de Leonardo da Vince sobre a arte da pintura trad Eduardo Carreira Imprensa Oficial amp Editora Universidade de Brasiacutelia Satildeo Paulo 2000 p 59)182 Cf Œ1 p 1261 183 Œ1 p 1194184 Œ1 p 1267

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Tambeacutem derivado das experiecircncias poeacuteticas do Simbolismo esse projeto seria uma verdadeira investigaccedilatildeo da poderosa capacidade espiritual de fazer analogias de abstrair graficamente elementos semelhantes de fenocircmenos postos em comparaccedilatildeocomo um modo eficaz de representar e compreender a realidade e de ater-se a ela Isso porque a analogia jaacute seria um dado imprescindiacutevel na vida e nas proacuteprias praacuteticas humanas algumas dessas seriam impossiacuteveis se a analogia natildeo fossesistematizada e convencionada como certa arquitetura feita a partir de projetos que a representam no espaccedilo e certa muacutesica feita a partir de partituras que a representam no tempo jaacute que como diz o poeta de modo preciso laquoO graacutefico eacute capaz do contiacutenuo de que a palavra eacute incapazraquo185

A arte revela-se portanto na concepccedilatildeo do Leonardo valeacuteryano como essa praacutetica de ir aos fenocircmenos particulares cujo desenvolvimento daacute-se sobretudopela analogia pela metaacutefora a arte revela-se portanto como um saber em estado nascente A sua muacuteltipla e irredutiacutevel ldquofunccedilatildeordquo (se o termo funccedilatildeo lhe eacute aplicaacutevel) mesmo quando inserida em uma forte heteroniacutemia religiosa mesmo que em contradiccedilatildeo com o impulso ao transcendente natildeo deixa de ter um caraacuteter eminentemente a-metafiacutesico posto ser frequumlentemente uma relaccedilatildeo muito proacutepria e iacutentima com a realidade sensiacutevel material Se a filosofia e a ciecircncia tenderiam mdashmenos por si mesmas e mais pela ideoloacutegica imagem que delas se fazemmdash a afastar as pessoas das coisas a arte as aproximaria delas se a tarefa do filoacutesofo e a do cientista torna-se em grande parte a construccedilatildeo de mundos cujas abstraccedilotildees satildeo gerais a tarefa do artista eacute a construccedilatildeo de mundos cujas abstraccedilotildees satildeo particulares laquoUtilidade dos artistasraquo assim define Valeacutery em breves e capitais aforismos laquoConservaccedilatildeo da sutileza e da instabilidade sensoriais Um artista moderno deve perder dois terccedilos de seu tempo tentando ver o que eacute visiacutevel e principalmente natildeo ver o que eacute invisiacutevel Com muita frequumlecircncia os filoacutesofos expiam a culpa de terem agido ao contraacuterioraquo186 laquoUma obra de arteraquo dizia laquodeveria ensinar-nos sempre que natildeo haviacuteamos visto o que vemosraquo187 laquoA educaccedilatildeo profunda consiste em desfazer a educaccedilatildeo primitivaraquo188

Mediaccedilatildeo a desconstruir mediaccedilotildees a arte seria justamente uma meditaccedilatildeoprodutiva sobre os fenocircmenos particulares A sua praacutetica enquanto criacutetica pode ser usada assim como um poderoso meio para purificar as especulaccedilotildees para purificar os valores e as crenccedilas as palavras que obliteram a proacutepria percepccedilatildeo do real para quebrar haacutebitos mentais A consequumlecircncia mais relevante desse estranho ideaacuterio o qual Valeacutery doravante reelaboraria e ampliaria de um modo

185 Œ1 p 1266 laquoEacute necessaacuterio prover-se de instrumentos reais como o desenho e o poder do desenhoraquo enigmaticamente afirma Valeacutery laquoPor quecirc mdash Sobretudo contra a metafiacutesicaraquo (C1rsquo p 331)186 Œ1 p 1165187 Œ1 p 1165188 Œ1 pp 1165-1166

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ainda mais poeacutetico principalmente em seus diaacutelogos socraacuteticos eacute por conseguinte uma reconciliaccedilatildeo com o mundo sensiacutevel material189 A exigecircncia do pensamento de Leonardo sentencia o poeta laquoo reconduz ao mundo sensiacutevel e sua meditaccedilatildeo tem por saiacuteda o apelo agraves forccedilas que constrangem a mateacuteria O ato do artista superior eacute o de restituir atraveacutes das operaccedilotildees conscientes o valor dasensualidade e o poder emotivo das coisasraquo190

O meacutetodo do Leonardo valeacuteryano pode ser compreendido sintetizado enfim como a conjunccedilatildeo perfeitamente harmocircnica entre dois siacutembolos maacuteximos e indissociaacuteveis do proacuteprio poeta a Matildeo (que age que faz) e o Olho (que contempla a realidade passiacutevel de sofrer accedilotildees feituras)191 Naturalmente essemeacutetodo mdashque natildeo passa na esfera do espiacuterito da consciecircncia de uma idiossincrasia de uma fidelidade a si mesmo aos seus processosmdash possui no pensamento de Valeacutery ainda uma outra e capital funccedilatildeo aumentar pela proacutepria atenccedilatildeo e esforccediloque exige do espiacuterito da consciecircncia que pratica alguma arte ou ciecircncia a proacutepria autoconsciecircncia seu mais raacutepido e pleno desenvolvimento e purificaccedilatildeo jaacute que esta se adquire na perspectiva do Leonardo valeacuteryano natildeo na especulaccedilatildeo circular e

189 Um outro exemplo de como Valeacutery infligia seus proacuteprios pensamentos em seus escritos de criacutetica literaacuteria e artiacutestica de como eram recorrentes suas obsessotildees de seu laquoniilismo hermenecircuticoraquo faz-se oportuno o que ele diz sobre o seu Goethe tambeacutem eacute igual e surpreendentemente vaacutelido para o seu Leonardo laquoGoethe eacute o grande apologista da Aparecircncia Presta ao que acontece na superfiacutecie das coisas um interesse e um valor nos quais encontro uma fraqueza e uma determinaccedilatildeo das mais importantes Compreendeu que se percebemos uma infinidade de sensaccedilotildees inuacuteteis em si eacute delas entretanto por mais indiferentes que sejam que retiramos atraveacutes de uma curiosidade inteiramente gratuita e uma atenccedilatildeo de puro luxo todas as nossas ciecircncias e artes Penso algumas vezes que existe para alguns como para ele uma vida exterior de intensidade e de profundidade no miacutenimo iguais as que emprestamos agraves trevas iacutentimas e aos segredos descobertos dos ascetas e dos sufis Que revelaccedilatildeo deveser para um cego nato as primeiras as dolorosas e maravilhosas tonalidades do dia na retina E que progressos firmes e definitivos sente estar fazendo aos poucos em direccedilatildeo ao conhecimento limite mdash a nitidez das formas e dos corpos E ao contraacuterio o mundo interior estaacute sempre ameaccedilado por uma confusatildeo de sensaccedilotildees obscuras de lembranccedilas de tensotildees de palavras virtuais onde o que queremos observar e apreender altera corrompe de alguma forma a proacutepria observaccedilatildeo Quase natildeo podemos conceber e esboccedilar o que significa pensar o pensamento e a partir desse segundo grau desde que tentemos elevar nossa consciecircncia a essa segunda potecircncia imediatamente tudo se perturba Goethe observa contempla e ora nas obras de arte plaacutestica ora na Natureza persegue a forma tenta ler a intenccedilatildeo de quem traccedilou ou modelou a obra ou o objeto que examina O mesmo homem capaz de tanta paixatildeo de tanta liberdade dos caprichos do sentimento e das criaccedilotildees imprevistas do espiacuterito poeacutetico transforma-se deliciosamente em um observador com uma paciecircncia inesgotaacutevel [] Mas o amor pela forma natildeo se limita para Goethe ao deleite contemplativo Qualquer forma viva eacute um elemento de uma transformaccedilatildeo e qualquer parte de alguma forma eacute talvez uma modificaccedilatildeo de alguma outraraquo (Œ1 pp 542-543)190 V p 220191 Para o Leonardo histoacuterico o olho era realmente um oacutergatildeo essencial para o desenvolvimento das artes e das ciecircncias para que a matildeo possa executar laquoO olho abarca a beleza do mundo todo Ele eacute senhor da astrologia ele cria a cosmografia ele endireita todas as artes humanas ele eacute priacutencipe das matemaacuteticas e suas ciecircncias satildeo acertadiacutessimas mede a distacircncia [] descobre os elementos e as suas posiccedilotildees [] engendra a arquitetura a perspectiva e a divina pintura [] Janela do corpo humano que atraveacutes de si reflete a beleza do mundo e nela goza por ele a alma se alegra em sua prisatildeo humana sem a qual a vida seria tormento Por ele a humana induacutestria descobriu o fogo graccedilas ao qual o olho recupera o que entatildeo lhe eacute arrebatado pelas trevas Ele ornou a natureza com a agricultura e com os jardins deliciososraquo (LEONARDO da Vince Os escritos de Leonardo da Vince sobre a arte da pintura trad Eduardo Carreira Imprensa Oficial amp Editora Universidade de Brasiacutelia Satildeo Paulo 2000 pp 69-70)

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esteacuteril mas essencialmente na proacutepria accedilatildeo no proacuteprio fazer Algo que seraacute fortemente explicitado por um outro personagem conceitual o Soacutecrates valeacuteryano no fim do diaacutelogo Eupalinos E eacute por isso por buscar manter-se com rigor nesse meacutetodo nesse caminho que o Leonardo valeacuteryano foi facilmentequalificado natildeo apenas de gecircnio (o termo eacute demasiado idealista e romacircntico para o poeta) mas tambeacutem de monstro192 Um monstro que compreende a si mesmocomo uma unidade de intelecto e corpo destinada agrave praacutetica sem fim O proacuteprio poeta assim escreve laquoEm relaccedilatildeo aos nossos haacutebitos Leonardo parece como que um monstro um centauro ou uma quimera por causa da espeacutecie ambiacutegua que ele representa para espiacuteritos empenhados demais em dividir a nossa natureza [grifo do autor] e em considerar filoacutesofos sem matildeos e sem olhos artistas com cabeccedilas tatildeo reduzidas que natildeo possuem nelas nada mais que instintosraquo193

Todavia feliz ou infelizmente esse monstro talvez jaacute natildeo possa mais ser Aquilo que outrora constituiacutea muito de seu poder hoje provavelmente constituiria muito de sua fraqueza a polivalecircncia natildeo raro seria denominada de dispersatildeo o rigor de intransigecircncia O espiacuterito universal talvez esteja fadado a morrer em longa e pateacutetica agonia Nada ou muito pouco concretizaria num mundo no qual a especializaccedilatildeo a divisatildeo do trabalho e do saber se alastraram por grande parte das esferas sociais no qual as relaccedilotildees demandam um fim determinado e por vezes uacutenico Nunca a ciecircncia dependeu de tantos esforccedilos conjuntos nunca se soube tanto com relaccedilatildeo agrave quantidade de conhecimento do passado e tatildeo pouco com relaccedilatildeo agrave quantidade de conhecimento do presente nunca a memoacuteria humana esse acumular de lembranccedilas e de contiacutenuas deformaccedilotildees subjetivas apresentou-se tatildeo fraacutegil e tatildeo incapaz de abarcar todo o diversificado conhecimento que a humanidade constantemente reformula e incrementa Dir-se-ia que o espiacuterito universal se restringiu cada vez mais a ser universal em algumas em poucas atividades e assim sucessivamente ateacute o limite

192 Segundo Emile Cioran frequumlentemente exagerado em suas afirmaccedilotildees laquoum monstro que possui todos os poderes os que natildeo temos e os que gostariacuteamos de ter Responde a essa necessidade de nos vermos acabados realizados em algueacutem que imaginamos e que representa o resumo ideal de todas as ilusotildees que criamos a nosso respeito heroacutei que venceu suas proacuteprias impossibilidadesraquo (CIORAN Emile Valeacutery face agrave ses Idoles in Œuvres Quarto Eacuteditions Gallimard 1995 p 1566) e segundo Marleau-Ponty sempre mais contido em suas afirmaccedilotildees laquoum monstro de liberdade pura sem amantes credor anedota aventurasraquo (Cf MERELAU-PONTY Maurice A duacutevida de Ceacutezanne trad Marilena de Souza Chauiacute Nelson Alfredo Aguilar amp Pedro de Souza Moraes Os Pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1980 p 123) Note-se ainda que parte do programa filosoacutefico de Marleau-Ponty mdasha compreensatildeo da esteacutetica como o resgate desta dimensatildeo relativamente negligenciada pela filosofia tradicional o mundo dos fenocircmenos sensiacuteveis materiais isto eacute o mundo do corpo do corpo natildeo mais submetido agrave suposta superioridade da almamdash eacute relativamente muito proacuteximo ao de Valeacutery Natildeo agrave toa o filoacutesofo francecircs utilizar-se do poeta francecircs e o seu Ceacutezanne ter muitas semelhanccedilas com o Leonardo do outro os personagens de ambos viam na arte natildeo apenas um modo de expressatildeo mas tambeacutem um modo de conhecimento e objetivaccedilatildeo do mundo (Cf MERELAU-PONTY Maurice A duacutevida de Ceacutezanne trad Marilena de Souza Chauiacute Nelson Alfredo Aguilar amp Pedro de Souza Moraes Os Pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1980)193 Œ1 p 1261

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no qual soacute pode vir a ser o especialista daquilo que mais ningueacutem eacute por princiacutepio capaz de ser de si mesmo Situado nos antiacutepodas de Leonardo este outro monstro valeacuteryano Edmond Teste vem a ser tal especialista Ele talvez seja na Modernidade o uacutenico espiacuterito universal possiacutevel aquele que renunciou a accedilatildeo aquele que renunciou ao proacuteprio fazer para somente dedicar-se a se fazer

212 EDMOND TESTE

A solitaacuteria e por vezes sofrida relaccedilatildeo do ser humano com aquilo que ohabita com sua proacutepria interioridade natildeo foi na perspectiva laica amiuacutede representada pelos gecircneros narrativos da literatura ateacute o desenvolvimento da sociedade burguesa com sua heterogecircnea cultura cientiacutefica e teacutecnica na qual o prestigioso conceito de indiviacuteduo se cristaliza e se manifesta se impotildee com mais veemecircncia e constacircncia conceito que tem em filoacutesofos como o transigente Montaigne os racionalistas Descartes e notadamente Leibniz seus principais arautos e em Soacutecrates e Santo Agostinho nobres precursores de uma antiguidade em muito voltada para uma ldquointerioridaderdquo regida pelo divino voltada natildeo para os homens em suas singularidades mas para o homem em sua generalidade A descriccedilatildeo de tipos ideais frequumlente em registros orais e na passagem destes para os escritos faz-se a partir de entatildeo menos constante e necessaacuteria Personagens singulares especiacuteficos por vezes anocircnimos distantes do restrito ciacuterculo das decisotildees poliacuteticas e econocircmicas marginais por opccedilatildeo ou por destino mergulhados numa sombria monotonia de iacutentimas cogitaccedilotildees agora tambeacutem podem ser eleitos protagonistas A transformaccedilatildeo de um indiviacuteduo suas epifanias e ecircxtases seus desesperos e crises ou mesmo as suas paralisias essas intensas metamorfoses agraves quais como que inevitavelmente todos passam natildeo precisam necessariamente ocorrer ou serem descritas em cenaacuterios monumentais em qualquer lugar em qualquer periacuteodo e em qualquer circunstacircncia elas podem surgir Anaacuterquicos na escolha de suas temaacuteticas muitos dos autores modernos mdashque tambeacutem se posicionam como indiviacuteduos principalmente quando se posicionam como autoresmdash descobrem aquilo que sempre souberam que toda trajetoacuteria pode ser contada que uma existecircncia exterior e ordinaacuteria pode ocultar uma existecircncia interior e extraordinaacuteria que a literatura assim como qualquer arte assim como a proacutepria filosofia pode se utilizar e se apropriar de qualquer elemento de uma visatildeo ou lampejo de um miacutenimo fragmento de realidade outrora supostamente fraacutegil e insignificante Natildeo haacute detalhes natildeo precisa haver tudo importa porque tudo agora vem a ser motivo e momento para a proacutepria criaccedilatildeo tudo agora vem a ser propiacutecio A vida do espiacuterito revela uma aventura igualmente excelsa quanto agrave vida do corpo Um drama pode ser estaacutetico uma

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vida imoacutevel Do sonhador cavaleiro andante de Cervantes aos desesperadospersonagens de Dostoieacutevski passando pelos pateacuteticos burgueses de um Balzac e chegando agraves aniquiladas quase-personagens de um Kafka e um Beckett tal parece ter sido uma das mais constantes orientaccedilotildees da Literatura Moderna

Ao herdaacute-las Valeacutery tambeacutem as radicaliza a um plano de abstraccedilatildeo extrema isso naturalmente faz parte desse recorrente jogo em jamais aceitar o que lhe eacute dado sem conscientemente crivaacute-lo transformaacute-lo ou mesmo distorcecirc-lo Grande parte de sua obra natildeo deixa de ser simplesmente o registro verbal de uma ou de parte de uma intensa interioridade de uma interioridade a fazer-se ou a querer fazer-se sempre e cada vez mais luacutecida e objetiva Nela tudo se passa como se jaacute natildeo fosse mais necessaacuterio explicitar elementos que a todos fossem comuns Por que registrar o exato momento em que a matildeo foi cortada quando eacute a dor que interessa e o que essa dor suscita Dando importacircncia relativa agraves localidades e datas o poeta prefere dizer como o espiacuterito eacute afetado pela comida ou pela bebida do que dizer o que comeu e bebeu prefere registrar a reflexatildeo sobre o fato do que o fato pois este apesar de necessaacuterio eacute de ordem contingente e aquele pode servir de elemento para a formulaccedilatildeo de uma lei interna Preferecircncia essa que natildeo implica na abertura para uma generalizaccedilatildeo excessiva ou para uma universalizaccedilatildeo dada a partir da crenccedila em uma natureza humana comum facilmente propagada pela filosofia mas que implica sobretudo em avaliar a si mesmo como um fenocircmeno um fenocircmeno qualquer nem mais nem menos importante nem superior nem inferior a qualquer outro fenocircmeno exterior Como reescreve num tipo de siacutentese que lhe eacute muito proacutepria Jorge Luis Borges acerca da lucidez daquele que talvez tenha sido um de seus secretos mestres laquoOs fatos para ele soacute valem como estimulantes do pensamento pensamento para ele soacute vale enquanto o podemos observar a observaccedilatildeo tambeacutem lhe interessaraquo194 E assim sucessivamente num processo circular que o contista argentino muito bem poderia simbolizar na forma de um labirinto sem fim

Composta ao longo de grande parte da vida de Valeacutery La soireacutee avec Monsieur Teste ou simplesmente Monsieur Teste (a primeira ediccedilatildeo data de 1925 doravante outros trechos foram continuamente acrescentados e publicados postumamente afora as referecircncias diretas ou indiretas presentes nos Cahiers e nas Histoiresbriseacutees) natildeo deixa de ser entre os seus outros escritos um caso limite de todo esse modo de proceder Numa primeira aproximaccedilatildeo o leitor poderia julgar estar diante de um romance de algum modo indiretamente aparentado com os romances filosoacuteficos praticados por Voltaire ou Diderot Entretanto essa obra

194 BORGES Jorge Luis Paul Valeacutery in Textos Cautivos in Obras Completas 4 1923-1949 Emenceacute Editores Buenos Aires 2005 p 263

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estranhiacutessima inclusive para contexto experimental da literatura do seacuteculo XX dificilmente seraacute assim classificada Fragmentada ao extremo eacute provaacutevel que tenha sido deliberadamente estruturada como antiacutepoda a uma forma que apesar de extremamente resistente e plaacutestica constituiacuteda por um subjetivo prosaiacutesmo mais propiacutecio a destrinccedilar os conflitos psicoloacutegicos do que a objetividade poeacutetica da epopeacuteia veio a se tornar inadequada para conter os extremos graus de enleio abstraccedilatildeo e rigor almejado por um escritor que jamais se propocircs a romancear mas registrar os movimentos de um espiacuterito singular Note-se que Valeacutery natildeo valora o proacuteprio romance como grande parte da criacutetica literaacuteria de sua eacutepoca tampouco como os romancistas Proust ou Gide Considerava-o um gecircnerodemasiado impuro voltado agraves inuacutemeras filigranas cotidianas aos prazeres e desprazeres da vida e por conseguinte segundo a sua proacutepria concepccedilatildeo de literatura como um exerciacutecio ideal de precisatildeo e de siacutentese irredutiacutevel agrave expressatildeo de elementos aleatoacuterios e gratuitos Elementos em muito oriundos de um automatismo a ser superado pelo escritor que almeja uma literatura pura logo poeacutetica laquoPara fazer romancesraquo diz ele de um modo talvez excessivamente criacutetico laquoeacute necessaacuterio considerar os homens como unidades ou elementos bem definidosraquo195 Ou ainda laquoO romance responde a uma necessidade bem mais ingecircnua que o poema mdash Pois ele demanda crenccedila credulidade abstenccedilatildeo de si mdash e o poema exige colaboraccedilatildeo ativaraquo196

Assim se haacute um gecircnero em que essa obra esse anti-romance de um hibridismo avassalador possa ser compreendido de um modo lato talvez seja o do retrato Os incisivos moralistas do seacuteculo XVII e XVIII que enquanto estilistas tanto apreciavam essa forma hoje relativamente esquecida possuem certa filiaccedilatildeo com o tipo da criacutetica que Valeacutery em Monsieur Teste costuma lanccedilar sobre a moral vigente todavia este diferentemente daqueles natildeo busca pintar a maacutescara que uma ldquocelebridaderdquo adquire perante os seus num determinado ciacuterculo social nem a sua suposta decadecircncia e queda suas pateacuteticas excentricidades mas principalmente um homem extremo envolvido em praacuteticas intelectuais extremas A obra debruccedila-se assim no perfil e na exposiccedilatildeo do pensamento deste personagem o Senhor Edmond Teste um discreto e pacato burguecircs a viver de modestas aplicaccedilotildees na bolsa de valores no iniacutecio do seacuteculo XX numa Paris somente esboccedilada mas sempre presente em suas raacutepidas e

195 C2rsquo p 1206196 C2rsquo p 1206 Ainda quanto a essa criacutetica haacute uma curiosa ldquoanedotardquo Dizem que Andreacute Breton sabia de cor Monsieur Teste e no Premier manifeste du Surreacutealisme revela que Valeacutery mdasha quem chegou a considerar seu mestre vindo posteriormente a dele se desvincularmdash lhe disse que jamais escreveria a seguinte frase laquoA marquesa saiu agraves cinco horasraquo (CHARPIER Jacques amp SEGHERS Pierre (orgs) Lrsquoart poeacutetique Editions Seghers Paris 1956 p 580) Se isso eacute verdade ou natildeo natildeo eacute possiacutevel confirmar De qualquer modo uma tal ldquoanedotardquo acaba demonstrando em certa medida como Valeacutery realmente compreendia a arte literaacuteria como uma praacutetica que natildeo deve conter arbitrariedades Por que a marquesa saiu agraves cinco horas e natildeo agraves quatro ou agraves seis

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convulsivas transformaccedilotildees urbanas e sociais A obra se constitui de requintada e hermeacutetica prosa (ou poesia posto que a diferenccedila entre uma e outra nela se dilui)de estilo filiado ao do Simbolismo sem entretanto estar aprisionada por essa corrente tampouco pelo procedimento do monoacutelogo interior do fluxo daconsciecircncia (stream of consciousness) de um James Joyce ou de uma Virginia Woolf ao qual um autor que se proponha na Modernidade narrar a vida de uma uacutenicapersonagem poderia facilmente adotar A obra Monsieur Teste natildeo pode serenquadrada numa corrente estiliacutestica especiacutefica responde mais a princiacutepios esteacuteticos pessoais do que coletivos a uma iacutentima exigecircncia a siacutentese de um princiacutepio a partir do qual a reflexatildeo e a criaccedilatildeo se desenvolvem e se identificam laquoMeu ldquoCogitordquoraquo revela Valeacutery a grande importacircncia que lhe deu laquomdash ele estaacute inscrito na Soireacute avec M Testeraquo197 laquoSr Teste eacute meu espantalho quando eu natildeo sou saacutebio eu penso neleraquo198 Entre os trechos que o compotildee (dez capiacutetulos miacutenimos todos aparentemente incompletos e que podem ser lidos aleatoriamente) natildeo haacute um plano definido uma sequumlecircncia cronoloacutegica previamente estabelecida A estrutura causal dos eventos que se sucedem como aneacuteis de uma corrente mdashtatildeo caracteriacutestico no desdobramento de uma histoacuteria dita linearmdash natildeo eacute intencionada a trama o plot em sentido estrito natildeo existe ou eacute reduzida a um miacutenimo necessaacuterio A reflexatildeo a quase tudo preenche e uma certa monotonia se faz presente

O que essencialmente a caracteriza entretanto natildeo eacute mais a iluminaccedilatildeo dos processos da consciecircncia atraveacutes de uma accedilatildeo um fazer e que parte de uma contemplaccedilatildeo ou meditaccedilatildeo exterior como ocorre nos escritos sobre Leonardo mas atraveacutes de uma recusa em agir em fazer e que parte de uma contemplaccedilatildeo ou meditaccedilatildeo interior portanto uma devoccedilatildeo para com a vida da consciecircncia em suainterioridade aquietada e para com as natildeo convencionais e desconcertantes maacuteximas de conduta daquele que a vive uma laquomitologia do espiacuteritoraquo199 diraacute ironicamente Valeacutery compreendo que se trata de uma empresa que natildeo se furta agrave estilizaccedilatildeo e ao exagero Enquanto obra simultaneamente herdeira e criacutetica de uma sequumlecircncia histoacuterica literaacuteria Monsieur Teste eacute um verdadeiro eacutepico ao avesso como que substitui a civilizaccedilatildeo pela pessoa e pela pessoa em seu mais deliberado distanciamento e introspecccedilatildeo apartada laquoDe que sofri maisraquo pergunta-se essa personagem laquoTalvez do haacutebito de desenvolver todo o meu pensamento mdash de ir ateacute o final de mimraquo200 E isso com tal intensidade que para ele jaacute natildeo basta mais alcanccedilar os abismos de sua proacutepria interioridade cumpre superaacute-los cumpre negaacute-los201 A

197 C1rsquo p 196198 C1rsquo p 21199 C1rsquo p 202 200 Œ2 p 45201 Cf MACKAY Agnes Ethel Monsieur Teste in The universal self - A study of Paul Valeacutery University of Toronto Press Toronto 1961

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existecircncia como soacutei ser concebida deixa de ser assim referida e valorada com os habituais criteacuterios morais e passa a ser concebida por Teste apenas como pura possibilidade

2121 O POSSIacuteVEL

[Teste] representa o mais alto poder de agir ligado a mais completa maestria de si mesmo ele pode tanto o que ele quer e seu poder natildeo eacute uma capacidade vaga mais uma virtualidade de poderes definidos determinados e mesuraacuteveis anaacutelogos agravequeles de uma maacutequina na qual o rendimento faz o objeto de caacutelculos exatos Dizemos de um tal homem que se ele se virou contra o mundo o poder regular de seu espiacuterito laquonada lhe resistiriaraquo Mas a sua superioridade natildeo eacute somente da sua maestria ela estaacute na indiferenccedila em relaccedilatildeo a essa superioridade no anonimato que ela guarda Senhor Teste deve permanecer desconhecido senatildeo ele se perde ele se rebaixa a ser Ceacutesar ou Deus (laquoA divindade eacute faacutecilraquo diz ele com um suntuoso desprezo) Do mesmo modo ele natildeo faz nada

Maurice Blanchot Valeacutery e Fausto

Valeacutery natildeo se propocircs por conseguinte a descrever um teatro mas um ator que se recusa a atuar a participar desta trageacutedia sentimental que eacute a vida da sociedade para se manter na comeacutedia intelectual que eacute a vida do espiacuterito A contemplaccedilatildeo ou a meditaccedilatildeo tem primazia Na esfera social isso se reflete naturalmente em um certo quietismo em uma certa recusa em agir em fazer uma recusa em se engajar ativamente no mundo Dessarte Teste se desliga progressivamente do desejo de concretizar de pocircr agrave prova seus proacuteprios talentos e capacidades os quais supostamente satildeo muitos e extraordinaacuterios do desejo em produzir obras de qualquer espeacutecie artiacutesticas filosoacuteficas ou cientiacuteficas em deixar um legado em ser reconhecido contemporacircnea ou postumamente Diz que chegou a escrever diletantemente algumas paacuteginas natildeo se sabe que prosas e poemas em algum tempo de sua vida Todavia agora declina-se mdashalgo que o proacuteprio Valeacutery parece ter tambeacutem buscado a sua proacutepria aniquilaccedilatildeo como literato como escritormdash a ser artista filoacutesofo ou cientista a se dedicar a esta ou aquela atividade ou especialidade a ser um fazedor como o eacute tatildeo intensamente Leonardo Ademais tambeacutem procura reduzir ao miacutenimo os conflitos com o outro As tumultuadas relaccedilotildees regidas por afetos e por desafetos frequumlentes na vida cotidiana e familiar parecem-lhes desgastantes em demasia desagradaacuteveis em demasia totalmente desnecessaacuterias Como um bom ceacutetico Teste compreende que grande parte dos problemas existenciais eacute apesar de intensamente operante oriunda de uma espeacutecie de esquecimento das convenccedilotildeesque fundamentam a sociedade Convenccedilotildees que ao se cristalizarem em crenccedilas e desejos satildeo aceitas amiuacutede como se inerentes agrave proacutepria natureza natildeo como arbitrariedades natildeo como artificialidades inventadas com o passar das geraccedilotildees e passiacuteveis de serem modificadas ou destruiacutedas

Contudo isso natildeo faz dele um misantropo ou um eremita tampouco um preguiccediloso do contraacuterio teria filiaccedilatildeo com estas estranhas personagens da

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literatura russa os homens superficiais como um Eugene Onegin de Pushkin ou umOblomov de Goncharov A sua recusa eacute mais espiritual do que corporal eacute uma adequaccedilatildeo uma adaptaccedilatildeo da conduta Pois ele natildeo deixa de frequumlentar as festas os salotildees e as oacuteperas as instituiccedilotildees e as convenccedilotildees mas tudo de um modo bastante distanciado controlado e neutro Faz-se presente sem participar Parece que tem certo apreccedilo em observar como um ciacutenico antropoacutelogo de seu proacuteprio meio social todas as encenaccedilotildees de futilidade da vida burguesa o que natildeo implica na falta de discernimento para com as atividades que visam alimentar uma vaidade sempre vatilde Na carta de um amigo seu lecirc-se como esse meio social a Europa intelectual e literaacuteria da deacutecada de 1920 eacute compreendido prenhe de interesses e egoiacutesmos no qual cada um se preocupa menos com o que faz e mais com o que iraacute ser dito daquilo que faz laquoParis enclausura e combina consome e consuma a maior parte dos infortunados com o brilho que o destino chamou agraves profissotildees delirantes Chamo assim agraves profissotildees que tecircm o principal instrumento na opiniatildeo que fazemos de noacutes proacuteprios e cuja mateacuteria-prima eacute a opiniatildeo dos outros sobre noacutes Votadas a uma candidatura eterna as pessoas que as exercem satildeo necessaacuteria e permanentemente afligidas por um determinado deliacuterio degrandezas que um determinado deliacuterio da perseguiccedilatildeo trespassa e atormenta sem treacuteguas Neste povo de uacutenicos impera a lei de fazer aquilo que nunca ningueacutem fez nem faraacute Eacute pelo menos assim a lei dos melhores quer dizer dos que estatildeo empenhados em querer com muita clareza qualquer coisa de absurdo Soacute vivem para conseguir e fazer duraacutevel a ilusatildeo de estar a soacutes mdash pois a superioridade natildeo passa de solidatildeo levada aos atuais limites de uma espeacutecie Cada qual alicerccedila a existecircncia sobre a inexistecircncia dos outros a quem temos no entanto de arrancar um consentimento para natildeo existiremraquo202

Todavia natildeo eacute porque compreenda as contradiccedilotildees e as hipocrisias humanas que Teste se propotildee a ser o profeta de uma outra e redentora moralidade Ele natildeo estaacute em luta contra ningueacutem natildeo se desespera diante dos comportamentos alheios da condiccedilatildeo social da pobreza e da miseacuteria da injusticcedila natildeo imagina desnorteado diagnoacutesticos a serem relatados ou utopias a serem realizadas natildeo eacute um Hamlet imerso em dramas e remorsos nem um Quixote em ideais e sonhos Diferente desses outros seres imaginaacuterios que povoam os sonhos da Literatura Universal ele talvez saiba que as accedilotildees cometidas com drama ou com comeacutedia com desesperanccedila ou com esperanccedila com qualquer sentimento extremo pouco ou nada resultam Definitivamente natildeo eacute um revolucionaacuterio203 Quanto a isso as enigmaacuteticas palavras de Benjamim parecem certeiras laquoPois quem eacute Monsieur Teste se natildeo o sujeito que jaacute estaacute a

202 Œ2 p 49203 VALEacuteRY Franccedilois Paul Valeacutery et la politique in PA pp 185-211

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ponto de transpor o umbral da histoacuteria para aleacutem do qual o indiviacuteduo harmonicamente constituiacutedo e auto-suficiente se prepara a fim de se transformar em teacutecnico e em especialista pronto para em seu devido posto e lugar inserir-se num grande planejamento Transpor essa ideacuteia de planejamento do campo da obra de arte para o da comunidade humana eacute algo que Valeacutery natildeo foi capaz de fazer O umbral natildeo foi transposto aiacute o intelecto continua sendo privado e este eacute o melancoacutelico segredo de Monsieur Teste Dois ou trecircs dececircnios antes Lautreacuteamont dissera ldquoA poesia deve ser feita por todos Natildeo por um soacuterdquo Essas palavras natildeo chegaram a Monsieur Testeraquo204

Essas palavras tambeacutem natildeo chegaram e talvez nunca chegariam ao poeta para quem a poesia no sentido moderno cumpre ser realmente feita por um soacute natildeo porque lhe faltava ouvido para ouvi-las mas porque nunca se propocircs na sua desconfianccedila para com toda forma de proselitismo transpor o umbral da histoacuteria passar na perspectiva poliacutetica da contemplaccedilatildeo para a accedilatildeo para o fazer O ensimesmado Teste natildeo deixa de ser a mais bem acabada encarnaccedilatildeo dessa posiccedilatildeo A sua proacutepria existecircncia revela em contraste com aqueles que os cercam como vultos quase imperceptiacuteveis os perigos em se voltar apenas para o engajamento sem estar munido da negatividade da criacutetica205 Ele eacute aquele que natildeo faz de seu pensamento servil a um pragmatismo inconsequumlente mesmo que para isso tenha que escolher um modo de vida para muitos um tanto extremado e anacrocircnico pois difiacutecil eacute natildeo participar quando todos participam pois difiacutecil eacute dizer natildeo quando todos dizem sim A sua recusa eacute uma renuacutencia206 Natildeo deixa de ser tambeacutem uma forma de resistecircncia estranhamente paciacutefica agraves exigecircncias morais de uma sociedade que parece estar cada vez mais arraigada numa programaacutetica instrumentaccedilatildeo do indiviacuteduo Ao se negar a viver a vida que lhe eacute imposta ele vive ao se negar a ser ele eacute Porque agraves vezes eacute necessaacuterio abjurar o mundo para melhor compreendecirc-lo assim como a si mesmo Preferindo ser somente aquele que observa aquele que presencia e contempla laquoO Sr Teste eacute o testemunhoraquo207 O sacrifiacutecio da accedilatildeo do fazer em prol do espiacuterito Intrigante saber as supostas etimologias do seu estranho nome no francecircs antigo teste designa 204 Cf BENJAMIM Walter Sobre a atual posiccedilatildeo do escritor francecircs in Walter Benjamin trad Flaacutevio R Kothe Sociologia Aacutetica Satildeo Paulo 1985 p 178205 laquoNesse pontoraquo escreve Adorno laquoValeacutery natildeo aceitou ingenuamente a posiccedilatildeo do artista isolado e alienado nem fez abstraccedilatildeo da histoacuteria tampouco criou ilusotildees sobre o processo social que levou agrave alienaccedilatildeo Contra os arrendataacuterios da interioridade privada contra a astuacutecia que frequumlentemente preenche sua funccedilatildeo no mercado simulando a pureza daqueles que natildeo sabem o que se passa Valeacutery cita uma beliacutessima frase de Degas ldquoMais um desses ermitotildees que sabem o horaacuterio dos trensrdquo (p 1217) Com toda a dureza possiacutevel sem nenhum ingrediente ideoloacutegico mais radicalmente que qualquer teoacuterico da sociedade poderia fazer Valeacutery exprime a contradiccedilatildeo do trabalho artiacutestico nas condiccedilotildees sociais da produccedilatildeo material que reinam hoje na sociedaderaquo (ADORNO Theodor W La fonction vicariante du funambule in Notes sur la littteacuterature trad Sibylle Muller Flammarion Paris 1984 p 77)206 Teste chega ao limite de dizer laquoO espiacuterito natildeo deve se ocupar das pessoas De personis non curandumraquo (Œ2 p 70)207 Œ2 p 64

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cabeccedila e no latim testis espectador testemunha Valeacutery natildeo deixa de descrever assim a estaacutetica aventura desse seu personagem conceitual pelo sentido da existecircncia sentido que natildeo deve ser encontrado na religiatildeo ou na filosofia tampouco na histoacuteria mas que deve ser sobretudo construiacutedo inventado nele e talvez em todos por um disciplinado difiacutecil e natildeo raro doloroso programa de autoconsciecircncia

Teste tambeacutem o pratica o cumpre objetivando uma evoluccedilatildeo E nisso eacute o duplo de seu criador que a ele ou a si mesmo assim se refere laquoA imensa diferenccedila entre os Stendhal os Amiel e eu ou o S Teste mdash eacute que eles se interessam por seus estados e por si mesmos em funccedilatildeo do conteuacutedo dos seus estados enquanto que eu me interesso ao contraacuterio por aquilo que nesses estados natildeo eacute ainda pessoal pois os conteuacutedos a pessoa me parecem subordinadas a duas condiccedilotildees 1o a consciecircncia impessoal 2o a mecacircnica e a estatiacutesticaraquo208 Pergunta-se laquomdash Mas natildeo eacute esta afinal a procura do Sr Teste retirar-se do eu mdash do eu vulgar tentando constantemente diminuir combater compensar a desigualdade a anisotropia da consciecircnciaraquo209 Teste luta portanto para manter seu pensamento o mais reto possiacutevel e para manter-se ausente a qualquer ldquoemoccedilatildeordquoou ldquosentimentordquo sereno imperturbaacutevel ante as seduccedilotildees e os desvios do mundo Sua meta tambeacutem eacute fazer-se um eu puro Trata-se portanto mais uma vez de um processo de despersonalizaccedilatildeo de desumanizaccedilatildeo Algo que foi indiciado desde aepiacutegrafe do primeiro capiacutetulo La soireacutee avec Monsieur Teste como uma vida cartesiana laquoVita Cartesii est simplicissimaraquo210 Naturalmente ao evocar o nome deDescartes Valeacutery natildeo almeja discutir sobre questotildees gnosioloacutegicas como a idealidade do conhecimento se o mundo exterior existe realmente ou se eacute uma representaccedilatildeo da consciecircncia mas sobre o singular egotismo mdashracionalista ou melhor analiacutetico e por vezes no limiar do solipsismomdash praticado por seupersonagem conceitual laquoConfesso que fiz um iacutedolo do meu espiacuteritoraquo este assim confessa numa ceacutelebre passagem laquosendo tambeacutem verdade que natildeo encontrei outro Tratei-o com oferendas com injuacuterias Natildeo como coisa que me pertencesseraquo211 O programa de autoconsciecircncia de Teste revela assim um radicalismo muito mais intenso do que aquele praticado por seu proacuteprio criador pois ocorreparadoxalmente por um constante exerciacutecio intelectual de negaccedilatildeo de natildeoidentificaccedilatildeo

O modo como Valeacutery expressa essa negatividade essa natildeo identificaccedilatildeo eacute bastante inventivo Assemelha-se ao modo como amiuacutede eacute descrito a vida e o pensamento dos semi-miacuteticos ldquofundadoresrdquo das grandes religiotildees atraveacutes de

208 C1rsquo p 119209 Œ2 p 66210 Œ2 p 15211 Œ2 p 37

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breves e simboacutelicas biografias de compilaccedilotildees de uma perspectiva sempre singular pessoal e incompleta Naturalmente um suposto evangelho de Teste nada exigiria de ningueacutem Seus discursos seus ditos sempre circunstanciaisfrases esparsas e miacutenimas que aqui e ali aparecem seus pensamentos a solta satildeo demasiado esoteacutericos e costumam assumir a aporia e a contradiccedilatildeo como imanentes agrave loacutegica que os rege outros tambeacutem deixam seus testemunhos reflexos de uma tentativa infausta de compreendecirc-lo Dir-se-ia que quase tudo o que dele se pode saber repousa nos dizeres e nos escritos alheios em lembranccedilas e interpretaccedilotildees alheias nos disciacutepulos que o representam e natildeo o seguem isto eacute em mediaccedilotildees Satildeo os outros que se referem a ele mais do que ele mesmo a si mesmo um desconhecido que discursa sobre um primeiro encontro na oacutepera e uma luacutecida noite de conversa a carta de sua esposa Eacutemilie Teste na qual esta confessa entre tantas revelaccedilotildees o estranho amor que a une ao esposo a carta de um amigo um diaacutelogo fragmentos

Todavia essas descriccedilotildees todas satildeo por demais evasivas hermeacuteticas revelam a impossibilidade de se manter durante muito tempo uma imagem fixa e segura sobre essa personagem conceitual Fica-se apenas com flutuaccedilotildees com dominacircncias e movimentos com padrotildees laquoNatildeo existe imagem certa do Sr Teste Os seus retratos satildeo todos diferentesraquo laquoNa verdade natildeo se pode dizer nada dele que natildeo seja inexato no mesmo instanteraquo212 Teste revela-se para usar a feliz e ambiacutegua expressatildeo titular de Robert Musil sobre Ulrich o protagonista de seu mais vasto romance Der Mann ohne Eigenschaften213 um homem sem qualidades sem atributos um homem indefinido indefinido justamente porque laquoO homem ldquointeligenterdquo repugna se sentir uma pessoa um senhor bem definidoraquo214 Natildeo por acaso Benjamim dizer que ele laquoeacute uma personificaccedilatildeo do intelecto que lembra muito o Deus de que trata a teologia negativa de Nicolau de Cusa Tudo o que noacutes podemos saber de Teste desemboca na negaccedilatildeoraquo215 Em uacuteltima instacircncia o inteacuterprete valeacuteryano se encontra encurralado pois natildeo pode dizer categoricamente o que ele realmente eacute mas tatildeo-somente o que ele natildeo eacuteDefini-lo portanto eacute uma aproximaccedilatildeo sempre imperfeita ou incompleta Natildeo apenas porque a totalidade de uma pessoa sempre escapa agraves representaccedilotildees de seus contemporacircneos mesmo dos mais proacuteximos e iacutentimos mesmo de si mesmo mas principalmente porque Teste mdashnatildeo dando relevacircncia alguma ao que os outros julgam sobre simdash aceita a self-variance e se propotildee a negar a natildeo se identificar com nada nem com o mundo nem com o si mesmo nem com os

212 Œ2 p 29213 Cf MUSIL Robert O homem sem qualidades trad Lya Luft amp Carlos Abbenseth Nova Fronteira Rio de Janeiro 1989214 C2rsquo p 331215 BENJAMIN Walter Paul Valeacutery - Pour son soixantiegraveme anniversaire in Œuvres II trad Maurice de Gandillac Rainier Rochlitz amp Pierre Rusch Folio Essais Gallimard 2000 p 325

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fenocircmenos exteriores que estatildeo sempre a mudar nem com os fenocircmenos interiores que tambeacutem estatildeo sempre a mudar Tatildeo logo pense ser algo ele busca contemplar em que sentido o pensamento de ser algo ldquoopostordquo ou ldquoextremordquo tambeacutem eacute vaacutelido tatildeo logo pense ser algueacutem ele busca contemplar em que sentido o pensamento de ser um outro tambeacutem eacute vaacutelido216 laquoNatildeo sou toloraquo diz resumindo duramente esse seu procedimento capital laquoporque todas as vezes que me encontro tolo nego-me mdash mato-meraquo217

Teste conjura portanto ldquocontrardquo si mesmo executando uma espeacutecie dereduccedilatildeo fenomenoloacutegica de si mesmo uma espeacutecie de epocheacute de si mesmo Supor-se-ia que desse modo almeje realizar um estado uacuteltimo e absoluto no qual seu espiacuterito seria incapaz de negar aquilo que entatildeo contemplaria realmente ser uma espeacutecie de evidente irrefutaacutevel e inefaacutevel verdade Mas isso se constitui apenas como um procedimento heuriacutestico218 Pois seu intuito natildeo eacute realizar um egotranscendental apartado do mundo com o qual Descartes e Husserl sonham seu intuito eacute simplesmente permanecer em devir em devir negativo e portanto controlado laquoSr T[este] que eu concebiraquo diz Valeacutery laquomdash inuacutemeras vezes mdash seraacute o tipo de poliacutetica do pensamento mdash em frente a elemdash e inclusive contra ele O fim dessa poliacutetica eacute a manutenccedilatildeo e a extensatildeo e a ideacuteia que noacutes temos de noacutes mesmos Preparar incessantemente o momento do acaso afastar toda a definiccedilatildeo prematura de si mesmo [] mdash adquirir o poder de desdenhar nada menos do que cada fase de si mesmo mdash servir-se das ideacuteias e natildeo servi-las mdash eis o quadroraquo219 Daiacute tambeacutem ter sido denominado por seu proacuteprio criador em raras ocasiotildees de Teste Apocaliacuteptico220 (Apocalypte Teste) laquomdashBem (diz S Teste) O essencial eacute contra a vidaraquo221 Natildeo ter apego a nenhum estado de espiacuterito de consciecircncia natildeo ter apego a nenhuma representaccedilatildeo mental a nenhum pensamento eis portanto o simples procedimento adotado no seu itineraacuterio ao eu puro agrave despersonalizaccedilatildeo agrave desumanizaccedilatildeo

216 laquoSenhor Teste tinha adquirido o estranho haacutebito de se considerar como uma peccedila de seu jogo ou bem como uma peccedila de certo jogo Ele se via Ele se colocava sobre a mesa Por vezes ele se desinteressava da partida O emprego sistemaacutetico de um Eu (Moi) como um Ele (Lui)raquo (C1rsquo p 94 e 95)217 Œ2 p 45218 Eis uma estranha oraccedilatildeo de Teste que corrobora essa interpretaccedilatildeo laquoSenhor eu estava no nada infinitamente calmo Fui perturbado desse estado para ser lanccedilado a um estranho carnaval e a cuidados vossos ser dotado do necessaacuterio para sofrer fruir compreender e enganar-me atributos desiguais poreacutem Considero-vos senhor deste negro que vou olhando enquanto penso e sobre o qual haacute-de inscrever-se o derradeiro pensamento Concedei oacute Negro mdash concedei o supremo pensamento Mas o pensamento qualquer pensamento pode ser todo ele laquosupremo pensamentoraquo De outro modo a ser supremo em si e por si poderiacuteamos tecirc-lo por reflexatildeo ou acaso e uma vez tido deviacuteamos morrer Seria isto poder morrer de um pensamento determinado e apenas por natildeo haver outro que o prolongasseraquo (Œ2 p 37)219 C1rsquo p 236220 Cf C1rsquo p 1206 cf C2rsquo p 386 704 e 1356221 C2rsquo p 1424

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Consequumlentemente para Teste qualquer pensamento por mais sedutor poderoso e verdadeiro que possa aparentar natildeo deve ser tatildeo-somente um fim mas tambeacutem um meio um caminho no qual o pensante ininterruptamente caminha doravante quando eacute chegado o propiacutecio momento deve se ter coragem de abandonaacute-lo se assim necessaacuterio for sem remorso nas longiacutenquas margens da memoacuteria Ele sabe que o seu valor reside sobretudo no seu poder de alterar no que pode contribuir para a evoluccedilatildeo do espiacuterito natildeo se deve portanto querer cristalizaacute-lo paraacute-lo laquoAs ldquoIdeacuteiasrdquo [] satildeo meios de transformaccedilatildeoraquo afirma laquomdashe por consequumlecircncia partes ou momentos de alguma mudanccedilaraquo222 as ideacuteias satildeo pontes que levam a outras pontes Cumpre ao pensamento fazer daquele quepensa mais autaacuterquico Daiacute tambeacutem a sua justificada busca por tudo o que demanda esforccedilo por tudo o que eacute difiacutecil pois o difiacutecil exige da consciecircncia ser consciente o faacutecil em contrapartida eacute tudo aquilo que eacute executado inconscientemente automaticamente laquoSeja qual for a coisaraquo dizia laquosoacute aprecio a facilidade ou a dificuldade em conhececirc-la em consumaacute-la [] Que me importa aquilo que estou farto de saberraquo223 Para Teste os pensamentos satildeo etapas deuma transformaccedilatildeo mas tambeacutem catalizadores de maior ou menor eficaacutecia dessa transformaccedilatildeo

E eacute justamente por isso que a precisa personagem do Abade (ou do PadreMosson224) suposto confessor de sua esposa se escandaliza com a sua maneira de ser assustadoramente neutra amoral jamais submetida a um padratildeo de comportamento baseado e constrangido em direitos e deveres em recompensas e castigos laquoAbstrai-se pavorosamente do bemraquo diz o Abade (o Padre) laquomas felizmente abstrai-se do mal Haacute nele natildeo sei que assustadora pureza que distanciamento que incontaacuteveis forccedilas e luz Nunca vi uma falta de perturbaccedilotildees e duacutevidas como esta numa inteligecircncia trabalhada tatildeo a fundo Ele eacute terrivelmente calmo Natildeo se lhe pode atribuir nenhuma doenccedila de alma nenhumas sombras interiores mdash e nada aliaacutes que derive dos instintos do medo e da cobiccedila Mas nada se orienta para a Caridaderaquo225 Para Teste o movimento do mundo e de si mesmo um dos grandes problemas da filosofia grega claacutessica tampouco a justificaccedilatildeo moral e teleoloacutegica da existecircncia de todas as coisascriadas que natildeo raro resulta em doutrinas soterioloacutegicas um dos grandes problemas da filosofia cristatilde constituem realmente questotildees a serem postas e resolvidas Seu interesse seu foco eacute justamente outro eliminar qualquer busca por uma suposta essecircncia das coisas e por uma suposta moralidade universalmente vaacutelida e inscrita nas coisas pois muitas vezes tais intentos o

222 Œ2 p 71223 Œ2 p 19224 Œ2 p 31225 Œ2 pp 33-34

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modo mesmo de assim pensar oblitera a percepccedilatildeo da realidade na medida em que a idealiza ou a falseia em termos absolutos seja por uma constacircncia ontoloacutegica seja pelas problemaacuteticas categorias de bem e de mal A esse tipo de preocupaccedilatildeo de crenccedila a esse tipo de metafiacutesica dualista Teste eacute refrataacuterio prefere antes questionar-se natildeo sobre o que deve ou natildeo deve fazer natildeo sobre o que lhe eacute ou natildeo socialmente permitido fazer mas sobre o que pode ou natildeo podefazer e isso mesmo que depois nada faccedila prefere questionar-se sobre a relaccedilatildeo entre as circunstacircncias nas quais se encontra e as escolhas que a partir delas eacute capaz de tomar sem que haja nenhuma intermediaccedilatildeo nenhuma crenccedila a limitar ou a restringir essa mesma relaccedilatildeo Atualizando uma de suas principais questotildees Valeacutery assim se pergunta imperiosamente laquoQue pode um homemraquo226 Eis a suprema questatildeo inuacutemeras vezes repetida e reformulada a uacutenica quiccedilaacute que pode ser verdadeiramente respondida Teste eacute assim inventado desde o iniacutecio como laquoo democircnio mesmo da possibilidade [] Ele soacute conhece dois valores duas categorias da consciecircncia reduzida aos seus atos o possiacutevel e o impossiacutevelraquo227

Qualquer outra forma de pensar que natildeo se estabeleccedila dentro desse criteacuterio por essas duas simples ldquocategoriasrdquo lhe parece um contra-senso esteacuteril228 As perguntas mdashldquoO que seirdquo e ldquoO que devo fazerrdquomdash satildeo como que substituiacutedas por uma mais pragmaacutetica mais dura mas tambeacutem mais humilde ldquoO que posso fazerrdquo Teste poderia muito bem dizer ldquoEu natildeo sou o que sou eu sou o meu futurordquo229 laquoQuem eacute vocecircraquo pergunta-se retoricamente laquoEu sou o que eu posso eu me digoraquo230

Entretanto Valeacutery natildeo pocircde desprezar o fato de que o ser humano eacute condicionado e finito que esquecimento e morte fazem parte de seu horizonte Assim apesar da intenccedilatildeo em descrever uma personagem conceitual no mais alto grau de interioridade de despersonalizaccedilatildeo de desumanizaccedilatildeo imperturbaacutevel ante a miseacuteria ele natildeo pode descrevecirc-la furtando-se totalmente agraves leis naturais agraves

226 C1rsquo p 196227 Œ2 p 14228 Eacute por isso que em algumas passagens dos Cahiers Valeacutery chega a compreender seu personagem conceitual como o siacutembolo da reforma de maneiras de pensar da passagem de um operar com essecircncias para um operar com funccedilotildees Teste anota o poeta de modo um tanto obscuro laquobusca reformar maneiras de pensar mdash maneiras de sentir que tem milhotildees de anos de possessatildeo de estado que satildeo impostas pela linguagem pelo decoro porque haacute mais poder sobre um homem [] Pois por maneira de pensar eu natildeo entendo as ideacuteias sozinhas Ele natildeo muda opiniotildees Ele busca uma educaccedilatildeo outramente profunda despedaccedilamentos reais mdash manobras de uma delicadeza incomum como de guardar os poderes devidos a uma ilusatildeo mesmaraquo (C1rsquo pp 331-332) Ou ainda laquoSr Teste mdash demonstra ao Abade [ao Padre] que seu sistema eacute mais puro que toda a religiatildeoraquo (C2rsquo p 1332)229 laquoldquoQue pode um homemrdquoraquo lecirc-se numa passagem dos Cahiers laquo(Teste) eacute decididamente a mais grande questatildeo Mas poder tem 2 sentidos mdash um passivo e outro ativo Eu POSSO entender sentir suportar ser modificado sofrer etc mdash eacute o sentido ldquopropriedaderdquo mdash e o aspecto sensibilidade Eu POSSO fazer agir modificar mdash eacute o sentido faculdade mdash e o aspecto accedilatildeoEntre os dois duas possiacuteveis misturas Eu posso me lembrar mdash e eacute necessaacuterio acrescentar a isso todas as accedilotildees que satildeo ora reflexas ora voluntaacuteriasraquo (C1rsquo p 371)230 Œ2 p 1513

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necessidades e limites do corpo veiacuteculo de prazer e dor Em algum momento cedo ou tarde o sofrimento deve em Teste fazer-se presente como fenocircmeno e tema a ser enfrentado231 Do contraacuterio comprometer-se-ia a concepccedilatildeo que dele faz natildeo um ser acabado mas um ser em processo laquoOacute Meuraquo exclama num poema que revela justamente esse processo laquomdash que ainda natildeo eacutes inteiramente Euraquo232 laquoEacute muito curiosoraquo ainda confessa laquode repente fico-me visiacutevel distingo o fundo das minhas camadas de carne sinto zonas de dor aneacuteis poacutelos coroas de dor Estaacute a ver estas figuras vivas a geometria do meu sofrimento [] Luto contra tudo mdash salvo o sofrimento do meu corpo para laacute de uma determinada grandeza Portanto por aiacute eacute que eu devia comeccedilar Porque sofrer eacute prestar uma atenccedilatildeo suprema a qualquer coisa e de certa forma sou um homem da atenccedilatildeoraquo233

Teste refere-se aiacute ao sofrimento fiacutesico ante o qual ele natildeo se furta em aceitar e analisar Quanto ao sofrimento espiritual este eacute ao fim consequumlecircncia dosproacuteprios pensamentos ou mais precisamente da maneira como em geral o espiacuterito a consciecircncia com eles se relacionam como uma coisa a ser possuiacuteda enatildeo plasmada Daiacute todo o seu esforccedilo para negaacute-los para natildeo se identificar com eles e consequumlentemente para natildeo se entregar agrave esperanccedila Porque a esperanccedilafaz parte da predisposiccedilatildeo geral da personalidade da humanidade em crer e julgar subjetivamente os acontecimentos o tempo e em dar uma importacircncia demasiada agrave proacutepria identidade uma predisposiccedilatildeo da qual o medo o sofrimento tambeacutem participariam Isso natildeo implica todavia que Teste tatildeo desumanizado expresse-se desumanamente Eacute novamente a sua proacutepria esposa que assim paradoxalmente sintetiza laquoNa linguagem que usa tem natildeo sei que forccedila capaz de fazer ver e ouvir o que haacute de mais oculto E no entanto que frases humanas as suas e soacute humanas interioriacutessimas formas de feacute e mais nada reconstituiacutedas por artifiacutecio e articuladas maravilhosamente por um incomparaacutevel espiacuterito em audaacutecia e profundidade Explorou a frio dir-se-aacute a alma fervente Mas recompondo assim o meu coraccedilatildeo em chamas e a sua feacute falta-lhe pavorosamente a essecircncia que eacute esperanccedila Natildeo haacute um gratildeo de esperanccedila em toda a substacircncia do Sr Teste e eacute por isso que eu sinto um certo mal-estar com o exerciacutecio de seu poderraquo234

Como natildeo necessita de explicaccedilotildees religiosas filosoacuteficas ou metafiacutesicas que o guiem e que o consolem ele que almejava contemplar o mundo e a si mesmosem deformaccedilotildees Teste foi encarado pelo Abade (ou Padre) numa expressatildeo extremamente sinteacutetica e paradoxal como um laquomiacutestico sem Deusraquo235 (laquomystique sans

231 STAROBISNKI Monsieur Teste face agrave la douleur in JARRETY Michel (org) Valeacutery por quoi Les Impressions Nouvelles Paris 1987232 Œ2 p 43233 Œ2 p 25234 Œ2 p 35235 Œ2 p 34

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Dieuraquo) Um miacutestico sem Deus porque pratica seu programa de autoconsciecircncia sem esperanccedila alguma de realizaacute-lo plenamente porque para ele a palavra Deus natildeo designa um ser transcendente mas o si mesmo laquoDeus natildeo estaacute longeraquo afirmalaquoEacute o que haacute de mais pertoraquo236 O laquoSr Testeraquo confirma Valeacutery em seus Cahiers laquoeacute um miacutestico e um fiacutesico da auto-consciecircncia mdash pura e aplicadaraquo237

236 Œ2 p 65237 C1rsquo p 263

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3 SABER E PODER

31 SOB O SIGNO DA CIEcircNCIA

Os escritos que versam sobre Leonardo e Teste natildeo se desenvolveram de modo totalmente arbitraacuterios ou isolados devem-se ao proacuteprio programa de autoconsciecircncia desencadeada em grande medida pelo periacuteodo de crise e pela Noite de Gecircnova e consequumlentemente ao crescente e genuiacuteno interesse de um jovem Valeacutery pela Matemaacutetica e pela Ciecircncia Moderna Interesse jaacute iniciado com o primeiro contato com Eureka de Poe e com as aulas e discussotildees que nos anos de estudo na Faculteacute de Droit de Montpellier tinha com seu grande amigo Pierre Feacuteline238 e que uma vez desenvolvido jamais o abandonou Data dessa eacutepoca uacuteltima deacutecada do seacuteculo XIX as suas primeiras leituras e estudos dos trabalhos de cientistas como Michael Faraday James Clerk Maxwell Lord Kelvin Bernard Riemann Henri Poincareacute Albert Einstein e natildeo menos significativo do excecircntrico matemaacutetico polonecircs Hoeumlneacute Wroński239 Este com seu messianismo com sua busca por um saber supremo parece ter influenciado em muito o pensamento de Valeacutery (que o considerava um louco mas um louco genial) notadamente com a La philosophie de lrsquoinfini e Messianisme ou reforme absolu du savoire humain Aquele que pode ser considerado o primeiro de todos os Cahiers um ldquoproto-cahierrdquo iniciado talvez natildeo por acaso no mesmo periacuteodo da composiccedilatildeo dos escritos sobre Leonardo e Teste o pequeniacutessimo Carnet de Londres de 1890 quando de uma viajem a Inglaterra revela natildeo apenas o registro da leitura dessa obra mas tambeacutem a crescente fascinaccedilatildeo pela Matemaacutetica e pela Ciecircncia Moderna e em breves lampejos a intrincada gecircnese desses dois personagens capitais

A compreensatildeo do pensamento de Leonardo como natildeo fundamentado no verbalismo e como precursor do espiacuterito empirista contemporacircneo os ditos espirituosos e polecircmicos de Teste sobre a importacircncia da ignoracircncia da duacutevida e do pensamento negativo na formulaccedilatildeo e no avanccedilo do saber todas essas colocaccedilotildees somadas agraves inuacutemeras e incompletas reflexotildees sobre epistemologia e teoria do conhecimento em seus Cahiers contribuiacuteram doravante para aldquoexageradardquo imagem de Valeacutery como um grande ldquoentendedorrdquo da Matemaacutetica e da Ciecircncia Moderna da complexidade e do esoterismo destas como algueacutem

238 Cf FEacuteLINE Pierre Souvenirs sur Paul Valeacutery Mercure de France 321 1954 cf BERTHOLETDenis Paul Valeacutery - 1871-1945 Biographies Plon Paris 1995 pp 38-39 cf CELEYRETTE-PIETRI Valeacutery Valeacutery et Wronski in GIFFORD Paul amp STIMPSON Brian (orgs) Paul Valeacutery - Musique Mystique Matheacutematique Presses Universitaires de Lille Lille 1993 pp 147-162 239 Cf BERTHOLET Denis Paul Valeacutery - 1871-1945 Biographies Plon Paris 1995 p 85

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capaz de discutir de explicar com desenvoltura a Termodinacircmica e a Teoria da Relatividade ou mesmo problemas de uma posterior Neurociecircncia240

Todavia haacute que se dizer aqui que o interesse e os estudos do poeta seratildeo e continuaratildeo sendo mdashapesar de todos os seus inuacutemeros insights sobre o funcionamento do fazer cientiacuteficomdash extremamente diletantes para natildeo dizer amadores Supotildee-se que seus conhecimentos sobre a Matemaacutetica e a Ciecircncia Moderna aacutereas cada vez mais desdobraacuteveis e especiacuteficas nunca foram realmente tatildeo aprofundados como parte da criacutetica de divulgaccedilatildeo por vezes induz a crer E disso o poeta tinha plena consciecircncia que o saber ou melhor a diversidade dos saberes das ciecircncias especiacuteficas na Modernidade jaacute natildeo eacute passiacutevel de ser dominada por uma uacutenica pessoa e por conseguinte a formulaccedilatildeo de uma siacutentese relativa a esses saberes torna-se muito mais complicada Haacute que se dizer aqui mais uma vez que Valeacutery jamais pretendeu ser um especialista fazer ciecircncia oufilosofia da ciecircncia O que pretendeu foi antes algo mais proacuteprio a um literatoque escreve numa sociedade jaacute transformada e traumatizada pelo advento do espiacuterito positivo deixar-se contaminar pelo rigor e pela impessoalidade patente daMatemaacutetica e da Ciecircncia Moderna e transpor essas ldquoqualidadesrdquo essas ldquovirtudesrdquo para a sua praacutetica de escrituraccedilatildeo para o seu proacuteprio programa de autoconsciecircncia241 jaacute que num movimento que poderia muito bem ser denominado de cartesiano a literatura de sua eacutepoca adquiriu para ele para as suas exigecircncias um caraacuteter de vagueza e de gratuidade que em parte o impedia de praticaacute-la da maneira como ateacute entatildeo era praticada Daiacute todo o vasto imaginaacuterio cientiacutefico emsua obra seja em prosa ou poesia e esta escrituraccedilatildeo hiacutebrida um tanto inclassificaacutevel estranha mescla de ldquocaacutelculordquo e ldquoversordquo242 A ciecircncia lhe interessa sim mas talvez muito mais como uma especulaccedilatildeo Uma especulaccedilatildeo que diferentemente das especulaccedilotildees filosoacuteficas ou metafiacutesicas resulta em algo que funciona mas que tambeacutem eacute capaz de lhe fornecer sobretudo imagens Imagens poeacuteticas sobre o mundo ou sobre partes do mundo mateacuteria-prima para a reflexatildeo Porque toda forma de pensamento para Valeacutery acaba se tornando em uacuteltima instacircncia uma deacutelice E eacute enquanto deliacutecia mdashnatildeo enquanto verdademdash quepode ser um auxiliar no programa de autoconsciecircncia na ascese do espiacuterito Daiacute o irocircnico adaacutegio bem ao gosto do poeta segundo o qual a ciecircncia eacute uma ficccedilatildeo mas uma ficccedilatildeo que funciona laquoQuanto a mimraquo escreve ele laquoadmito facilmente ignorar o

240 Cf ROBINSON-VALEacuteRY Judith (org) Fonctions de lrsquoesprit - treize savants redeacutecouvrent Paul Valeacutery Hermann Paris 1983241 Cf ROBINSON-VALEacuteRY Judith Chapter 4 - The fascination of science in GIFFORD Paul amp STIMPSON Brian (orgs) Reading Paul Valeacutery - Universe in Mind Cambridge University Press Cambridge 1998 pp 70-84 especialmente p 70242 Cf VIRTANEN Reino Lrsquoimagerie scientifique de Paul Valeacutery Librarie philosophique J Vrin Paris 1975

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que ignoro [] Se a hipoacutetese eacute sedutora ou se a teoria eacute bela deleito-me sem pensar na verdaderaquo243

Eacute nessa perspectiva relativamente irocircnica que a concepccedilatildeo valeacuteryana desaber se constroacutei Para ele todo saber mdashtodo saber que eacute ciecircnciamdash corresponde necessariamente a uma controlada e rigorosa praxis a um laquoconjunto de receitas e procedimentos que sempre datildeo certo a uma foacutermula de atosraquo244 E o termo receita mdashrecorrente no pensamento do poetamdash eacute como uma representaccedilatildeo de atos possiacuteveis de sequumlecircncias de atos possiacuteveis que se posta em praacutetica se seguida leva a um determinado resultado previsto logo natildeo haacute na compreensatildeo do poeta nenhuma noccedilatildeo como do conceito de saber como ldquoconhecimento do objetordquo mas simplesmente como ldquoconhecimento de relaccedilotildees de funccedilotildees possiacuteveisrdquo conhecer algo eacute saber o que se pode fazer com esse algo e isso implica conhecer as relaccedilotildees possiacuteveis ao redor imediato desse algo Dessarte o poeta inuacutemeras vezes escreveu e reescreveu atualizou e insistiu que a uacutenica garantia do saber real eacute o poder poder de prever e de fazer mdashe que todo o resto natildeo passa de literaturamdash245 Dir-se-ia um tanto exageradamente que para Valeacutery saber eacute saber agir saber eacute saber fazer E isso implica consequumlentemente na anaacutelise dos fenocircmenos do mundo implica na fusatildeo ou na conciliaccedilatildeo entre racionalismo e empirismo essa dialeacutetica esse jogo entreir a experiecircncia e ir ao intelecto que a analisa assim propondo modelos e leis a partir da interpretaccedilatildeo da regularidade dos fenocircmenos naturais Note-se que em sentido geral a concepccedilatildeo valeacuteryana de saber natildeo eacute de modo algum nova Foi consagrada e difundida a partir do seacuteculo XVII particularmente a partir daprogramaacutetica filosofia de Francis Bacon segundo o qual o objetivo do saber transformado em teacutecnica era libertar a humanidade cada vez mais das necessidades materiais246 a partir da filosofia de Descartes que rompe com a tradiccedilatildeo Escolaacutestica e a Magia da Renascenccedila laicizando o pensamento247 Haacute que se dizer assim que juntamente com o espiacuterito cartesiano o espiacuterito baconiano estaacute mesmo que sub-reptiacuteciamente bastante presente no pensamento de Valeacutery acerca da ciecircncia o poeta rariacutessimas vezes cita o autor da inacabadaInstauratio Magna ao contraacuterio do autor do Discours de la Meacutethode inuacutemeras vezes referido

Soma-se a isso um certo positivismo Um positivismo que entretantodiferentemente da versatildeo de Auguste Comte laiciza-se adquire uma maiorflexibilidade uma maior plasticidade excluindo o impulso pelas categorizaccedilotildees

243 Œ1 p 899244 Œ1 p 1253245 Cf Œ1 p 1253246 Cf BACON Francis The new organon org Lisa Jardine amp Michael Silverthorne Cambridge University Press Cambridge 2000247 Cf DESCARTES Reneacute Discurso do Meacutetodo Meditaccedilotildees Objeccedilotildees e respostas amp As paixotildees da alma Cartas trad J Guinsburg e Bento Prado Juacutenior Os Pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1979

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demasiado fixas em prol da plasticidade do discurso fragmentado Pois para Valeacutery se o saber eacute verdadeiramente saber isto eacute cientiacutefico entatildeo deve sempre se referir de algum modo a uma realidade mesmo que essa realidade natildeo seja percebida pelos sentidos mesmo que natildeo esteja na dimensatildeo ou na escala dos sentidos mesmo que seja uma seacuterie de acumuladas e fabulosas inferecircncias248

Mas tambeacutem deve ser ldquoem mimrdquo e ldquonum outrordquo uma representaccedilatildeo que possa ser transmitida compreendida aceita e compartilhada e sobretudo de um mesmo modo E eacute isso que confere na perspectiva social o seu caraacuteter de ldquoobjetividaderdquo Logo eacute com relaccedilatildeo a uma comunidade uma comunidade cientiacutefica que o saber tambeacutem se instaura e natildeo somente aos seus pressupostos internos Nesse sentido jaacute se disse que para Valeacutery aquilo que eacute verbal logoteoria natildeo eacute ou natildeo pode ser cientiacuteficoporque o que eacute verbal logoteoacuterico implicaria na possibilidade de muitas e distintas interpretaccedilotildees implicaria em muitas ambiguumlidades isto eacute na imprecisatildeo na falta de um acordo com relaccedilatildeo agraves definiccedilotildees e agraves significaccedilotildees do que estaacute em jogo na medida em que uma proposiccedilatildeo verbal estaacute muito mais sujeita a ser apropriada a ser interpretada por diversas e contraditoacuterias maneiras do que umaequaccedilatildeo matemaacutetica ou fiacutesica agrave qual parece natildeo ter senatildeo funcionalidade Isso talvez seja um belo exagero jaacute que no pensamento do poeta eacute possiacutevel encontrarnatildeo apenas a ideacuteia da possibilidade de um saber cientifico mas tambeacutem da possibilidade de um saber humaniacutestico

Por outro lado todo esse modo de compreender o saber pode induzir facilmente a interpretar que Valeacutery postula ou busca postular uma linha ou um limite um criteacuterio preciso de demarcaccedilatildeo de cesura epistemoloacutegica entre o que eacute ciecircncia de um lado e o que natildeo eacute ciecircncia de outro e que o poder (e nada mais) eacute justamente esse criteacuterio que o saber soacute eacute saber porque se desdobra em poder real ou potencial ou ainda que todo poder corresponderia a um saber etc Em certo sentido essa eacute uma interpretaccedilatildeo possiacutevel e bastante compreensiacutevel jaacute que muitas passagens dos escritos valeacuteryanos tomadas mais isoladamente realmente a legitimam Ademais o poeta tambeacutem se refere constantemente agrave ideacuteia de que na Ciecircncia Moderna deve haver mesmo que natildeo de todo sistematizada algum tipo de verificaccedilatildeo ou de controle pensamento este relativamente compartilhadocom o Positivismo loacutegico do Wiener Kreis 248 Em Lrsquoideacutee fixe - ou deux hommes agrave la mer Valeacutery atraveacutes da voz ou personagem do meacutedico refere-se por exemplo agrave necessidade que a Ciecircncia Moderna tem de criar novos meios de representaccedilatildeo para fenocircmenos que natildeo satildeo diretamente captados pelos sentidos (como o demasiado grande e o demasiado pequeno) mas somente inferidos mediante novos instrumentos de captaccedilatildeo e novas teorias de anaacutelise laquoas investigaccedilotildees nos conduziram com bastante prontidatildeo fora do domiacutenio primitivo de nossas percepccedilotildees Encontramos novos meios de ver e de atuar Mas tais meios satildeo indiretos [] Haacute que se interpretar ou ilustrar suas indicaccedilotildees mediante imagens ou ideacuteias necessariamente tomadas de nosso depoacutesito fundamental e invariaacutevel [] Como imaginar um mundo no qual eacute impensaacutevel o ver o tocar em que natildeo existam a figura nem as categorias no qual ateacute as noccedilotildees de posiccedilatildeo e movimento satildeo de certo modo incompatiacuteveis Os fiacutesicos tratam de sair adiante mediante incriacuteveis sutilezasraquo (Œ2 p 269)

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Todavia a intenccedilatildeo em postular ou buscar postular um criteacuterio preciso de demarcaccedilatildeo de cesura epistemoloacutegica parece entrar em ldquocontradiccedilatildeordquo com a proacutepria concepccedilatildeo sustentada por Valeacutery segundo a qual arte e ciecircncia (e mesmo todas as atividades espirituais) satildeo variaccedilotildees exteriores por vezes apenas nominais de um mesmo interior249 Essa ldquocontradiccedilatildeordquo em certa dimensatildeo interpretativapermanece em seus escritos como uma oscilaccedilatildeo de maior ou menor intensidade agraves vezes ele a afirma agraves vezes a matiza agraves vezes simplesmente a ignora250 Pode ser compreendida como consequumlecircncia dos ambiacuteguos impulsos ou momentos mais positivistas de Valeacutery de seu apreccedilo ldquocartesianordquo ou ldquoracionalistardquo pela Matemaacutetica e pela Ciecircncia Moderna por formas cristalinas de representar os fenocircmenos do mundo Entretanto o que talvez esteja em jogo nessa contradiccedilatildeo nessa oscilaccedilatildeo pode ser assim posto e resolvido se por um lado eacute possiacutevel distinguir entre a ciecircncia e a natildeo ciecircncia por outro natildeo eacute possiacutevel precisar a fronteira de demarcaccedilatildeo entre a ciecircncia e a natildeo ciecircncia se existe se eacute necessaacuterio existir para este ou aquele sistema de pensamento essa fronteira sofre de imprecisatildeo Ela natildeo pode ser nitidamente distinguiacutevel E isso se deve tanto pela dinacircmica das proacuteprias ciecircncias especiacuteficas que estatildeo sempre se reinventando de acordo com as novas descobertas e teorias assim como pela variada idiossincrasia daqueles que epistemologicamente as dimensionam e precisam

Cumpre dizer tambeacutem e principalmente que contemplando os escritos do poeta na sua totalidade e verificando o quanto de subentendidos de ironia eretoacuterica estes encerram de experimentalismos compreende-se que muitas vezes o que ele pretende eacute simplesmente constatar mdashveementemente constatar e quase nada maismdash uma espeacutecie de impulso de predisposiccedilatildeo espiritual dele e de grande parte da mentalidade operante na Modernidade em comumente compreender e aceitar o saber como poder E isso devido principalmente aos inuacutemeros efeitos praacuteticos suas consequumlecircncias e seus impactos da CiecircnciaModerna quando esta se revela uma espeacutecie de ldquoadivinhaccedilatildeordquo baseada em experiecircncias e inferecircncias rigorosas quanto esta se identifica se transmuta e se desdobra em teacutecnica e consequumlentemente acaba operando de um modo quiccedilaacute irrefutaacutevel na vida cotidiana E nesse sentido o alvo de Valeacutery mdashrelativamente anaacutelogo ao proacuteprio espiacuterito baconiano que em parte natildeo deixa de aspirar a umaespeacutecie de sociologia do sabermdash natildeo eacute tanto a ciecircncia em sentido interno com relaccedilatildeo aos seus proacuteprios pressupostos mas muito mais a ciecircncia em sentido externo com 249 Cf PIETRA Reacutegine Valeacutery et la reflexion eacutepisteacutemologique dans les dix derniers anneacutees du XIXe siegravecle ndash Valeacutery et Poincareacute in CELEYRETTE-PIETRI Nicole amp SOULEZ Antonia (orgs) Valeacutery la logique et le langage Sud - Revue litteraire bimestrielle Val de Marne le 29 novembre 1986 Universiteacute Paris XII Paris 1988 p 54 250 Note-se que essa ldquocontradiccedilatildeordquo ocorre agraves vezes num mesmo escrito sobretudo nos escritos sobre Leonardo nos quais Valeacutery afirma que o artista italiano eacute aquele cujo meacutetodo natildeo separa a ciecircncia da arte o compreender do criar mas tambeacutem aquele que sempre estaacute pensando no poder no poder de agir de fazer

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relaccedilatildeo agrave sociedade na qual eacute feita e da qual transforma e eacute transformada dir-se-ia assim que satildeo os resultados dela que ldquoinduzemrdquo que ldquoconvidamrdquo a pensaacute-la mais como poder e menos como conhecimento Pois numa sociedade que se estabelece em grande medida num ldquopragmatismordquo num ldquoimediatismordquo numa intensa racionalidade e burocratizaccedilatildeo dos meios o que estaacute em jogo eacute sobretudo a funcionalidade ou melhor a eficaacutecia das construccedilotildees intelectuais humanas e muito pouco a possibilidade de serem representaccedilotildees ldquocorretasrdquo da realidade ou dos fenocircmenos da realidade a possibilidade de serem ldquoverdadesrdquo

Valeacutery simplesmente atenta portanto para aquilo que a ciecircncia sempre foi e ainda eacute para o ser humano que dela se utiliza que dela se apropria um tipo de saber que fornece um controle ou domiacutenio mesmo que relativamente limitado sobre o mundo sensiacutevel material Mundo que natildeo pode refutar e que portanto anseia por dominaacute-lo O que se torna patente justamente em seus ensaios e fragmentos sobre Descartes nos quais avalia propositadamente menos a filosofia deste e mais o impacto do Cartesianismo dessa acircnsia desmesurada natildeo raro ldquofalsificadorardquo em estender a matemaacutetica como modelo uacutenico para todos os campos do saber Num desses ensaios lecirc-se estas certeiras palavras laquoEste mundo estaacute penetrado das aplicaccedilotildees da medida Nossa vida se encontra cada vez mais ordenada segundo determinaccedilotildees numeacutericas e tudo aquilo que escapa agraverepresentaccedilatildeo atraveacutes dos nuacutemeros todo conhecimento natildeo mesuraacutevel eacute castigado com uma sentenccedila de depreciaccedilatildeo Nega-se cada vez mais o nome de ldquoCiecircnciardquo a todo saber intraduziacutevel em cifras Eis a singular observaccedilatildeo sobre a que se remataraacute esta concepccedilatildeo o caraacuteter eminente desta modificaccedilatildeo da vida que consiste em organizaacute-la segundo o nuacutemero e o tamanho tatildeo pura quanto seja possiacutevel de tal modo que o verdadeiro dos modernos relacionado exatamente ao seu poder de accedilatildeo sobre a natureza parece opor-se mais e mais agravequilo que nossa imaginaccedilatildeo e nossos sentimentos quisessem que fossem verdadeiroraquo251

As esparsas consideraccedilotildees que Valeacutery tece sobre o saber referem-se portanto natildeo apenas ao impacto teacutecnico mas tambeacutem ao impacto espiritualsobre o modo de pensar e de se comportar da sociedade em geral mdashmesmo que isso ocorra (e ocorre) de um modo relativamente fantasioso e leve a uma problemaacutetica mitificaccedilatildeo do proacuteprio saber a um cientificismo cujo caraacuteter natildeo deixe de ser por vezes ilusoacuteriomdash O desenvolvimento da Matemaacutetica e da Ciecircncia Moderna e as inuacutemeras imagens ou idealizaccedilotildees os inuacutemeros sonhos que delas se fizeram projetar acabaram contribuindo em muito para o processo de laicizaccedilatildeo e racionalizaccedilatildeo da Modernidade acabaram minando ou transformando seja no todo ou em determinadas partes vaacuterias concepccedilotildees de mundo vaacuterias crenccedilas e descrenccedilas vaacuterias religiotildees e metafiacutesicas Estas foram

251 Œ1 pp 843-844

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obrigadas a natildeo raro se adaptar ou abandonar muitas de suas concepccedilotildeesoutrora por vezes consideradas certas e perenes Desenvolve-se adquire dominacircncia todo um modo de refletir sobre a realidade menos ldquoespeculativordquo menos ldquofantasiosordquo porque em certo sentido mais ldquolimitadordquo mais ldquohumilhadordquo pelo que legitima as dimensotildees da experiecircncia e da razatildeo ambasrigorosamente conduzidas focadas mais cioso no que se propotildee a pesquisar e a teorizar Um modo de refletir que natildeo busque o ldquoporquecircrdquo mas somente o ldquocomordquo das coisas que natildeo alimente pretensotildees de fornecer representaccedilatildeo de sentidos ou de essecircncias O que consequumlentemente favoreceu em grande medida o desenvolvimento de uma poderosa consciecircncia criacutetica e analiacutetica aplicaacutevel a todas as aacutereas do saber humano e da qual Valeacutery se posiciona neste caso como um singular herdeiro particularizando-a no seu programa deautoconsciecircncia no seu exerciacutecio cotidiano que busca iluminar os seus proacuteprios processos e representaccedilatildeo Poder-se-ia dizer seguindo o caraacuteter do seu pensamento avesso agrave rigidez das crenccedilas cristalizadas e mesmo a toda a crenccedilaque conforme o ser humano amplia seus poderes de atuaccedilatildeo no mundo e sobre o mundo conforme inventa a sua ciecircncia e as suas teacutecnicas as suas crenccedilas do que seja o proacuteprio mundo a isso tendem a se adaptar a se transformar haacute portanto uma espeacutecie de dialeacutetica entre o que se eacute capaz de agir de fazer e o que se crecirc Daiacute a primazia que o poeta daacute a accedilatildeo a feitura A accedilatildeo a feitura condicionantes crivos do pensamento

Assim em particular sobre a filosofia mdashisto eacute sobre a metafiacutesicamdash duas consequumlecircncias se apresentam e se imbricam

Primeira conforme as ciecircncias especiacuteficas se desenvolviam a princiacutepio as naturais como a fiacutesica e a biologia para depois as humanas como a sociologia e psicologia haacute como que uma amarga constataccedilatildeo de que a proacutepria filosofia da qual essas mesmas ciecircncias especiacuteficas em grande medida se depreenderam vai gradualmente como que perdendo seus objetos de reflexatildeo vai gradualmente se esvaziando Isso porque quando constroem abordagens particulares sobre seu objeto particular uma epistemologia suficientemente riacutegida e positiva as ciecircncias especiacuteficas adquirem relativa autonomia e dinacircmica E nesse mesmo processo proacuteprio da racionalizaccedilatildeo na Modernidade a filosofia esvaziada acaba muitas vezes se tornando um modo particular de abordar e analisar seus objetos sejam estes cientiacuteficos ou artiacutesticos torna-se tambeacutem natildeo raro uma disciplina particular e especiacutefica entre tantas outras disciplinas particulares e especiacuteficas O que naturalmente pode trazer natildeo apenas malefiacutecios mas benefiacutecios agrave proacutepria filosofia forccedilada a buscar novas formas de abordagem e novos objetos a concentrar-se e inventar-se no que lhe eacute mais proacutepria

Segunda consequumlecircncia a filosofia deixa de ser novamente identificada em parte ou no todo com a ciecircncia ou melhor com o saber como era no periacuteodo

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em que seu eacutetimo foi fixado identificaccedilatildeo essa ainda relativamente patente no conturbado seacuteculo XVII quando todo o processo de particularizaccedilatildeo do proacuteprio saber teve iniacutecio de modo sistemaacutetico e crescente Isso porque na perspectiva valeacuteryana a filosofia natildeo fornece natildeo pode fornecer justamente nenhuma ou quase nenhuma teacutecnica de verificaccedilatildeo de controle nenhuma teacutecnica de previsibilidade e de accedilatildeo de feitura sobre a natureza exterior materialmente moldaacutevel a filosofia natildeo fornece nenhum poder252 mdashao menos natildeo de modo estritamente positivomdash Com ela nada ou muito pouco se pode fazer com ela as coisas permanecem como estatildeo serve talvez mdasho que jaacute eacute muitomdash agraves elucidaccedilotildees dos labirintos mentais do proacuteprio filoacutesofo que a filosofa Pergunta-se O que fazer com as Ideacuteias de Platatildeo ou as Categorias de Aristoacuteteles o que fazer com o Uno de Plotino ou a Trindade de Santo Agostinho o que fazer com o Deus de Espinosa ou as Mocircnadas de Leibniz o que fazer com o Espiacuterito de Hegel Como objetivar tais ldquoinvenccedilotildeesrdquo Como compartilhaacute-lasverdadeiramente Situada paradoxalmente aqueacutem ou aleacutem do universo que as experiecircncias legitimariam aqueacutem ou aleacutem das possibilidades da experiecircncia portanto fora do alcance de ser objetivamente comprovada ou refutada a filosofia enquanto metafiacutesica foi doravante natildeo raro compreendida como uma construccedilatildeo ilusoacuteria quimera incapaz de revelar qualquer elemento a ser objetivamente transmitido Em grande medida Valeacutery compartilha desse modo de compreendecirc-la E toda a sua criacutetica agrave filosofia ou melhor a sua desconfianccedila a sua refraccedilatildeo agrave filosofia estaacute dessarte sob o imperioso impacto sob o signo da Matemaacutetica e da Ciecircncia Moderna Hoje como ele mesmo diz laquotoda a metafiacutesica e mesmo uma teoria do conhecimento quaisquer que sejam elas encontram-se brutalmente separadas e distintas daquilo que todos mais ou menos conscientemente consideram o uacutenico saber real mdash exigiacutevel em outroraquo253

[Grifo do autor]Diante de todo esse estado de coisas diante do impacto da Ciecircncia

Moderna e da Matemaacutetica tatildeo duramente diagnosticado pelo poeta e por outros chegou-se inclusive a anunciar a morte da filosofia Numa passagem dos seus Cahiers Valeacutery tendo em mente o espiacuterito funcionalista de seu Sistemajamais cumprido vai por exemplo ainda mais longe talvez demasiado longe numa espeacutecie de profecia criacutetica extrema acerca do destino da filosofia laquoEm suma todas as noccedilotildees que natildeo permitem combinar exatamente mdash e que natildeo se referem a observaccedilotildees permanentes satildeo maacutes noccedilotildees Haveraacute um tempo (isto eacute um homem) mdash no qual as palavras de nossa filosofia pareceratildeo antiguidades e soacute seratildeo conhecidas por eruditos Noacutes natildeo falaremos mais de pensamento Hoje a

252 Œ1 p 1256253 Œ1 p 1240

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palavra Beleza natildeo tem ou quase natildeo tem mais uso filosoacutefico Os proacuteprios nomes de filosofia de psicologia seratildeo como o da alquimiaraquo254

Naturalmente qualquer diagnoacutestico desse tipo mdashseja pelo vieacutes marxista a proclamar a necessidade do pensamento vir a ser praacutexis criacutetica e transformadora da sociedade ou pelo vieacutes da anaacutelise linguumliacutestica a desconfiar da veracidade dos problemas metafiacutesicos etcmdash ateacute hoje revelou-sehistoricamente falso Falso natildeo na medida em que tais posiccedilotildees natildeo possam ser adotadas porque elas satildeo mas na medida em que na perspectiva social sob o termo ldquofilosofiardquo se agrupam ontem e hoje praacuteticas plurais natildeo raro divergentes contraditoacuterias entre si um sem-nuacutemero de propostas que por vezes se assemelham numa mesmice excessiva e por vezes se distanciam umasdas outras a ponto de natildeo serem reconhecidas como praacuteticas designadas pelo mesmo termo Ademais e principalmente os seres humanos mdashcomo quesupostamente insatisfeitos com o estado presente do saber e da ordem do mundo condicionados pelo nascer e pelo morrer pela dor e pelo sofrimento por uma existecircncia que natildeo revela seu sentido nem ao menos se possui ou natildeo sentidomdash continuam simplesmente a duvidar e a desejar crer a se questionar a se colocar as mesmas velhas questotildees e outras novas a se colocar as mesmasvelhas respostas e outras novas num processo de atualizaccedilotildees e descobertas que perpetuam os seus itineraacuterios espirituais O termo ldquofilosofiardquo pode ateacute deixar de ser usado isso pouco ou nada importa Mas a praacutetica que ela ainda hoje representa continua sob uma miriacuteade de outros nomes ou misturada a outras tantas praacuteticas de uma forma ou de outra A filosofia permanece porque permanece o humano

Apesar das suas irocircnicas reflexotildees quanto ao futuro da proacutepria filosofia o poeta tambeacutem tem consciecircncia dessa permanecircncia No diaacutelogo Lrsquoideacutee fixe ou deux hommes agrave la mer ele escreve atraveacutes da voz ou personagem doidiossincraacutetico meacutedico sobre a diferenccedila entre o homem e o animal O animal como que preso agrave dimensatildeo das necessidades imediatas natildeo pode fazer absolutamente nada que natildeo for uacutetil mas o homem ao ser capaz de sedistanciar da dimensatildeo das necessidades imediatas inventou religiotildees artes filosofias e ciecircncias concepccedilotildees de mundo e outros mundos Inventou 254 C1rsquo p 574 Natildeo deixa de ser intrigante ler num dos fragmentos dos Cahiers a seguinte passagem confissatildeo da vontade de imaginar um homem para aleacutem inclusive de Leonardo e Teste que viveria e pensaria apenas com categorias meramente funcionais isto eacute um homem puramente ldquopositivordquo ldquocientiacuteficordquo laquoEu imagino com bastante frequumlecircncia um homem que seria em possessatildeo de tudo o que noacutes sabemos feito de operaccedilotildees precisas e de receitas mas inteiramente ignorante de todas as noccedilotildees e de todas as palavras que natildeo nos datildeo imagens claras nem natildeo despertam atos uniformes e [que] podem ser repetidos Ele jamais entendeu [o que eacute] falar de espiacuterito de alma de pensamento de substacircncia de liberdade de vontade de tempo de espaccedilo de forccedilas de vida de instintos de memoacuteria de causa de deuses nem de moral nem de origens e em suma ele sabe tudo o que noacutes sabemos e ignora tudo o que noacutes ignoramos Mas ele disso ignora inclusive os nomes [] eu o coloco em movimento e eu o solto no meio das circunstacircnciasraquo (C1rsquo p 573-574)

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portanto o inuacutetil Mas esse inuacutetil eacute todo um vasto e complexo tesouro de riquezas simboacutelicas laquosob pressatildeo exterior ou orgacircnica imediata a vaca vecirc as estrelas e natildeo extrai uma astronomia como a caldeacuteia nem uma moral como a de Kant nem uma metafiacutesica como a de todo mundo [] Se um objeto novo a espanta ela o deixa e nunca sentiraacute a tentaccedilatildeo de voltar a ele com precauccedilatildeo e concupiscecircncia intelectual para identificaacute-lo e classificaacute-lo em seu sistema de mundoraquo255

311 CRIacuteTICA Agrave HISTOacuteRIA

Todavia natildeo apenas a filosofia sofre com o desenvolvimento da Matemaacutetica e da Ciecircncia Moderna com o desenvolvimento da concepccedilatildeo do saber como poder mas tambeacutem as proacuteprias Ciecircncias Humanas as Ciecircncias doEspiacuterito e em particular a histoacuteria Dando sempre mais importacircncia aoindiviacuteduo do que ao coletivo professando na dimensatildeo poliacutetica uma espeacutecie deparadoxal anarquismo aristocraacutetico256 Valeacutery continua sempre um racionalista e como tal relativamente desconfiado de um pensamento histoacuterico ou que se apegue a tradiccedilotildees demasiada riacutegidas Possui por conseguinte particular predileccedilatildeo em criticar as ilusotildees na qual a histoacuteria mdashenquanto disciplinaatividademdash opera e resulta257 sobretudo em Discours de lrsquohistoire e outras passagens de seus Essais quasi politiques Trata-se entretanto de uma criacutetica cujorepertoacuterio eacute uma praacutetica herdeira de historiadores-pensadores como HyppolyteTaine e Alexis de Tocqueville e principalmente Jules Michelet (a cuja obra o poeta eacute bastante avesso258) Uma praacutetica herdeira dos seacuteculos XVIII e XIX ainda muito atrelada a perspectivas idealistas romacircnticas e positivistas natildeo raro operando atraveacutes da crenccedila de uma filosofia da histoacuteria em bases metafiacutesicas da crenccedila que haacute um destino natildeo apenas individual mas coletivo a reger tudo o que pode ser designado por grandiosas e geneacutericas palavras como raccedila sociedade civilizaccedilatildeo humanidade Logo natildeo se pode compreender o pouco que Valeacutery mdashnesse aspecto bastante nominalistamdash escreve sobre a histoacuteria pela perspectiva do que foi produzido posteriormente a ele as propostas teoacutericas da Eacutecole des Annalesde um Marc Bloch e um Lucien Febvre de um Georges Duby e um Jacques Le

255 Œ2 p 230256 Cf PA257 Numa carta a Anatole de Monzie o poeta chega a fazer a distinccedilatildeo entre Histoacuteria com H maiuacutescula e histoacuteria com h minuacutesculo a primeira designa um mito o mito que nasce ao se personificar um termo abstrato em tornaacute-lo uma espeacutecie de deus mito que eacute exemplificado em expressotildees como a laquoHistoacuteria nos ensinaraquo a laquoHistoacuteria julgaraacuteraquo a segunda a histoacuteria enquanto praacutetica do historiador enquanto disciplina atividade E eacute nesse segundo aspecto que sua reflexatildeo realmente mais se desdobra (Cf Œ2 p 1549)258 Œ2 p 1549

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Goff escapam em grande medida agrave criacutetica valeacuteryana jaacute que em parte coadunam-se com esta

O pressuposto do qual o poeta parte eacute relativamente simples e tem como criteacuterio naturalmente a sua proacutepria concepccedilatildeo de saber como poder Nunca ensinando nada ou muito pouco a histoacuteria eacute para o poeta laquoa ciecircncia das coisas que natildeo se repetemraquo259 dos acontecimentos que ao acontecer acontecem uma uacutenica vez singularmente Portanto dos acontecimentos que num sentidopositivo natildeo satildeo passiacuteveis de serem representados de serem sintetizados de um modo preciso e seguro sob o signo de uma mesma lei geral induzida ou abstraiacuteda pelo espiacuterito que analisa os documentos ou os rastros que supostamente os representam Consequumlentemente soacute com muito cuidadopodem ser usados como modelos para a anaacutelise da sua ocorrecircncia no presente ou da previsatildeo da sua ocorrecircncia no futuro como frequumlentemente ocorre nas ciecircncias naturais Eacute certo que haacute acontecimentos que satildeo denominados por exemplo pela esfera semacircntica de uma mesma palavra como a palavra guerramas nenhuma guerra eacute igual agrave outra guerra e natildeo o eacute a tal ponto que natildeo se pode construir uma lei geral de todas as guerras como se todas devessem seguir um plano preacute-determinado e fora do tempo um mesmo padratildeo de desenvolvimento de surgimento e desaparecimento Dir-se-ia assim que os acontecimentoshistoacutericos natildeo satildeo passiacuteveis de serem compreendidos como tendo a mesma intensidade de semelhanccedila que os acontecimentos naturais os primeiros nos quais o elemento humano eacute central satildeo como que plaacutesticos em demasia os uacuteltimos nos quais o elemento humano parece ausentar-se satildeo como que riacutegidos o suficiente Algumas palavras que Valeacutery escreve sobre o desenvolvimento da Ciecircncia Moderna e sobre a poliacutetica exemplificam essa concepccedilatildeo laquoEnquanto que nas ciecircncias da natureza as pesquisas multiplicadas depois de trecircs seacuteculos nosrefizeram uma maneira de ver e substituiu a visatildeo e a classificaccedilatildeo ingecircnua de seus objetos por sistemas de noccedilatildeo especialmente elaborados noacutes permaneciacuteamos na ordem histoacuterica-poliacutetica no estado de consideraccedilatildeo passiva e de observaccedilatildeo desordenada O mesmo indiviacuteduo que pode pensar [a] fiacutesica ou [a] biologia com instrumentos de pensamento comparaacuteveis a instrumentos de precisatildeo pensa a poliacutetica [e a histoacuteria] atraveacutes de meios impuros de noccedilotildees variaacuteveis de metaacuteforas ilusoacuteriasraquo260

Desse modo para um poeta que almeja uma independecircncia com relaccedilatildeo agraves crenccedilas passadas uma autarquia intelectual que compreende o saber como poder como poder utilizaacutevel torna-se compreensiacutevel toda a sua desconfianccedila com relaccedilatildeo ao que a histoacuteria possa realmente vir a lhe oferecer laquoQue me

259 Œ1 p 1135260 Œ2 p 920

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importa [] o que acontece apenas uma vez A histoacuteria eacute para mimraquo confessa laquoum excitante e natildeo um alimento O que ela informa natildeo se muda em tipos de atos em funccedilotildees e operaccedilotildees de nosso espiacuterito Quando o espiacuterito estaacute bem desperto tem necessidade apenas do presente e de si mesmoraquo261 Todavia Valeacutery tambeacutem reconhece que a histoacuteria pode sim ser utilizaacutevel Natildeo agrave coletividademas somente ao indiviacuteduo mediante a inserccedilatildeo no passado particular desseindiviacuteduo laquoO melhor meacutetodo para se ter uma ideacuteia do valor e do uso da histoacuteria mdash a melhor maneira de aprender a lecirc-la e a servir-se dela mdashraquo escreve laquoconsiste em tomar como modelo de acontecimento acontecimentos realizados sua experiecircncia proacutepria e em acolher no presente o modelo de nossa curiosidade pelo passado O que vimos com nossos proacuteprios olhos aquilo por que passamos em pessoa o que fomos o que fizemos mdash eis o que deve nos fornecer o questionaacuterio deduzido de nossa proacutepria vida que proporemos em seguida agrave histoacuteria para que preencha e ao qual ela deveraacute se esforccedilar em responder quando a interrogamos sobre eacutepocas em que natildeo vivemos Como era possiacutevel viver naquela eacutepoca Esta eacute no fundo toda a questatildeo Todas as abstraccedilotildees e noccedilotildees encontradas nos livros satildeo inuacuteteis se natildeo lhes fornecerem o meio de reencontraacute-las a partir do indiviacuteduoraquo262 Ou ainda de modo mais direto a laquoHistoacuteria deveria ser a tentativa de responder atraveacutes de documentos a uma taacutebua de questotildees formadas a partir da anaacutelise do presenteraquo263

A partir dessa perspectiva avessa a todo historicismo a toda proposta de compreender o passado posicionando-se no passado a subsequumlente criacutetica de Valeacutery agrave histoacuteria pode ser compreendida ou sintetizada em dois momentos que se imbricam e se complementam

O primeiro momento mais abrangente refere-se ao modo como em gerala histoacuteria eacute expressa pelos historiadores e natildeo deixa de ser algo distante da criacuteticavaleacuteryana agrave literatura de caraacuteter narrativo e realista como o romance Enquantodisciplina enquanto atividade a histoacuteria natildeo se refere agrave ldquomemoacuteria coletivardquo isto eacute aos signos compartilhados por uma coletividade a histoacuteria refere-se sobretudo a uma intenccedilatildeo almeja a construccedilatildeo a representaccedilatildeo de um determinado passado de um determinado periacuteodo do passado Representaccedilatildeogeralmente composta de palavras de discursos verbais composta portanto a partir de uma escritura264 que se transforma num texto cuja forma dominante eacute a narrativa o reacutecit265 A histoacuteria nessa perspectiva apresenta-se como uma ordem cronoloacutegica natildeo raro linear de uma seacuterie de representaccedilotildees dos acontecimentos 261 Œ1 pp 1202-1203262 Œ1 pp 1133-1134263 C13 p 519264 Cf JARRETY Michel 8 - Ecritures de lrsquoHistoire in Valeacutery devant la litteacuterature - Mesure de la limite PUF Paris 1991 pp 351-389265 C23 p 507

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de uma seacuterie de causas e efeitos entre as representaccedilotildees dos acontecimentos Assim procedendo aqueles que a escrevem os historiadores intentariam sobretudo a realizaccedilatildeo de um maior realismo dar um caraacuteter de verdade ou melhor de verossimilhanccedila aos seus proacuteprios escritos de plausibilidade E eacute por isso que Valeacutery afirma que laquoA histoacuteria eacute feita de 2 ingredientes essenciais do papel escrito e da faculdade de crer no que haacute sobre esse papelraquo266 Todavia tudo isso eacuteartificial demasiado artificial ateacute mesmo falso Porque a narrativa o reacutecit porque as causas e os efeitos todos esses procedimentos ou subterfuacutegios natildeo passam de postulaccedilotildees de ligaccedilotildees e concatenaccedilotildees de interpretaccedilotildees feitas mdashposteriormentemdash pelos historiadores mediante a anaacutelise de documentos mais ou menos liacutecitos Consequumlentemente haveria pouca diferenccedila entre a literatura propriamente dita e a histoacuteria a qual o poeta natildeo tardaria em qualificar como laquoa forma mais ingecircnua de literaturaraquo267 Pois laquoningueacutem jamais poderia definir a diferenccedila que haacute no estado de espiacuterito de um leitor de Balzac e de um leitor de Michelet A meu ver tudo estaacute aiacute Eacute o mesmo ilusionismo Resultado [do fato] de que nada distingue quanto ao efeito produzido um documento verdadeiro de um documento falso que acreditamos ser verdadeiro Etcraquo268

Por conseguinte o ideaacuterio positivista em representar em resgatar o passadointegralmente tal qual foi como se fosse possiacutevel ressuscitar os mortos acaba se tornando uma esperanccedilosa ilusatildeo um contra-senso Pois na praacutetica da histoacuteriatudo eacute representaccedilatildeo e uma representaccedilatildeo natildeo do acontecimento que jaacute natildeo eacute mais mas de uma representaccedilatildeo que dele ou de um aspecto dele permaneceu logo uma reduccedilatildeo e uma interpretaccedilatildeo Uma laquohistoacuteria puraraquo uma histoacuteria factual seria portanto laquocompletamente insignificante pois os fatos por si natildeo tecircm significado Algumas vezes dizem Isso eacute um fato Inclinem-se diante do fato Eacute a mesma coisa dizer Creiam Creiam pois aqui o homem natildeo interveio e satildeo as proacuteprias coisas que falam Eacute um fato Sim Mas o que fazer com um fato Nada se parece tanto com um fato quanto os oraacuteculos de Piacutetia ou entatildeo quanto os sonhos reais que os Joseacutes e os Danieacuteis na Biacuteblia explicam aos monarcas espantados Na histoacuteria [] o que eacute positivo fica ambiacuteguo O que eacute real presta-se a uma infinidade de interpretaccedilotildeesraquo269 Baseada portanto no poder da imaginaccedilatildeo e da linguagem em representar algo que natildeo existe mais portanto algo que simplesmente natildeo existe a histoacuteria para Valeacutery natildeo estaacute longe de operar dentro de uma espeacutecie de paradoxo pois laquosupotildee um observador impossiacutevel cujos resultados de observaccedilatildeo satildeo inverificaacuteveisraquo270

266 C22 p 66267 C14 p 829268 Œ2 p 1549 269 Œ1 p 1133270 C23 p 773

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O segundo momento da criacutetica de Valeacutery agrave histoacuteria que se insere no primeiro refere-se agrave questatildeo do valor E o ato de laquovalorarraquo de ldquoavaliarrdquo qualquer coisa que seja eacute segundo Valeacutery laquoo grande negoacutecio do sistema que pensaraquo271relativamente ausente na praacutetica da Matemaacutetica e das Ciecircncias Naturais mas extremamente presente na praacutetica da histoacuteria Esta pressupotildee uma seacuterie deescolhas tanto do recorte temaacutetico e temporal a ser estudado quanto dosacontecimentos ou melhor das representaccedilotildees de acontecimentos a serem expostos hierarquizados e interpretados a serem estruturados em uma narrativaum reacutecit E todo esse processo eacute ele mesmo uma vasta tentativa de fixar valores como se com isso o passado viesse a ser elucidado em expressar quais acontecimentos satildeo mais ou menos importantes mais ou menos relevantes quais acontecimentos devem ser expostos agrave luz e quais devem ser condenados agravesombra O que implica necessariamente um sujeito um sujeito humano que assim valore Para o poeta natildeo eacute possiacutevel portanto separar laquoo observador do objeto observado e a histoacuteria do historiadorraquo272 Daiacute tambeacutem as inuacutemeras abordagens de um mesmo tema e temporalidade e uma historiografia sempre crescente e contraditoacuteria Levados por este ou aquele sistema de crenccedilasideologias preferecircncias ou interesses uns iratildeo dar mais peso a um dadoacontecimento e outros menos uns iratildeo valorar positivamente um dado acontecimento e outros negativamente O acuacutemulo de um sem-nuacutemero de versotildees de explicaccedilotildees de um mesmo tema e temporalidade torna-se inevitaacutevel O que incitaria o leitor de um livro de histoacuteria a fazer estas questotildees quem historia de onde se historia e para quem se historia O que o levaria a intuir que aquele que escreve sobre o passado tambeacutem escreve por vias indiretas sobre o presente e sobre si mesmo Toda essa falta de impessoalidade de neutralidade na praacutetica da histoacuteria eacute o que em muito caracteriza a sua natildeo cientificidade dela e de muitas das Ciecircncias Humanas Mas tambeacutem natildeo deixa de expressar mesmo que implicitamente o desejo tatildeo humano em dar um sentido aos acontecimentos e agrave vida ou ainda se o pressuposto eacute a crenccedila em um destino que a tudo concatena e justifica em encontrar nos acontecimentos e na vida um sentido

Eis como se expressa Valeacutery laquoTodo mundo concorda que Luiacutes XIV morreu em 1715 Mas em 1715 passou-se uma infinidade de outras coisas observaacuteveis que tornaria necessaacuteria uma infinidade de palavras de livros e mesmo de bibliotecas para conservaacute-las por escrito Eacute preciso portanto escolher ou seja convencionar natildeo apenas a existecircncia como tambeacutem a importacircncia do fatoe essa convenccedilatildeo eacute vital A convenccedilatildeo de existecircncia significa que os homens soacute podem crer no que lhes parece menos afetado pelo humano e que consideram

271 Œ2 p 222272 Œ1 p 1130

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esse acordo como muito provaacutevel para eliminar suas personalidades seus instintos seus interesses sua visatildeo singular fontes de erro e forccedila de falsificaccedilatildeo Mas jaacute que natildeo podemos guardar tudo e que precisamos retirar do infinito alguns fatos pelo julgamento de sua utilidade posterior relativa essa decisatildeo sobre a importacircncia introduz de novo e inevitavelmente na obra histoacuterica exatamente aquilo que acabamos de tentar eliminar [] a importacircncia eacute completamente subjetiva A importacircncia estaacute para o nosso discernimento assim como o valor dos testemunhos Racionalmente pode-se pensar que a descoberta das propriedades do quinina eacute mais importante que um tal tratado concluiacutedo aproximadamente na mesma eacutepoca e na realidade em 1932 as consequumlecircncias desse instrumento diplomaacutetico podem estar totalmente perdidas e como que difusas no caos dos acontecimentos enquanto a febre eacute sempre reconheciacutevel as regiotildees pantanosas do globo satildeo cada vez mais visitadas ou exploradas e oquinina foi talvez indispensaacutevel para a prospecccedilatildeo e para a ocupaccedilatildeo da Terra toda que eacute a meu ver o fato dominante do nosso seacuteculo Vejam que eu tambeacutem estou fazendo minhas convenccedilotildees de importacircnciaraquo273

Toda a criacutetica de Valeacutery agrave histoacuteria pode portanto ser sintetizada pela constataccedilatildeo de que a histoacuteria enquanto praacutetica eacute sobretudo uma forma especiacutefica de literatura e de linguagem e de que os historiadores escondem frequumlentemente as convenccedilotildees das quais se servem ao escrevecirc-la274 Contudo o poeta sabe que laquotodas essas convenccedilotildees satildeo inevitaacuteveisraquo275 do contraacuterio talvez a proacutepria histoacuteria natildeo seria possiacutevel enquanto praacutetica laquoMinha uacutenica criacutetica eacute a negligecircncia que natildeo as torna expliacutecitas conscientes sensiacuteveis ao espiacuterito Lamento que natildeo se tenha feito com a histoacuteria o que as ciecircncias exatas fizeram consigo mesmas quando revisaram seus fundamentos pesquisaram com maior cuidado seus axiomas enumeraram seus postulados Talvez seja porque a histoacuteria eacute principalmente Musa e porque preferimos que a seja [] Eu reverencio as Musas Isso acontece tambeacutem porque o Passado eacute algo totalmente mental Ele eacute apenas imagens e crenccedilasraquo276 A histoacuteria portanto natildeo iraacute apontar necessariamente os caminhos do Futuro Ela nada legitima Tudo pode ser incerto Todavia o ser humano natildeo tem outro material com o qual conjeturar e projetar a natildeo ser essas laquoimagensraquo e laquocrenccedilasraquo como sumariza Valeacutery sempre muito cuidadoso no exerciacutecio de profetizar laquoentramos no futuro de marcha agrave reacuteraquo277

273 Œ1 pp 1130-1131274 Cf JARRETY Michel 8 - Ecritures de lrsquoHistoire in Valeacutery devant la litteacuterature - Mesure de la limite PUF Paris 1991 pp 351-389275 Œ1 p 1132276 Œ1 p 1132277 Œ1 p 1135

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4 CRIacuteTICA Agrave FILOSOFIA

SOacuteCRATES Quando algueacutem diz ldquoferrordquo ou ldquopratardquo natildeo eacute verdade que todos entendemos o mesmoFEDRO CertamenteSOacuteCRATES E quando algueacutem diz ldquojustordquo e ldquobomrdquo Natildeo vai cada um por um lado e discordamos uns com os outros e tambeacutem com noacutes mesmosFEDRO CertamenteSOacuteCRATES Entatildeo em algumas questotildees estamos de acordo e em outras natildeoFEDRO CertamenteSOacuteCRATES E em quais dessas duas questotildees somos mais suscetiacuteveis de ser enganados e em quais a retoacuterica tem mais forccedilaFEDRO Evidentemente naquelas que haacute vaguidadeSOacuteCRATES Entatildeo aquele que se propotildee adquirir a arte da retoacuterica deve primeiramente adquirir clareza e fazer uma divisatildeo metoacutedica dessas duas classes de questotildees aquela na qual as pessoas tecircm necessariamente ideacuteias vagas e aquela na qual natildeo FEDRO Oacute Soacutecrates aquele que isso soubesse racionaria a partir de um excelente princiacutepioSOacuteCRATES Depois penso ante um caso particular natildeo ignoraraacute mas perceberaacute com clareza a qual dessas duas classes pertence agrave questatildeo de que se vai falar

Platatildeo Fedro

41 O PRIMADO DA LINGUAGEM

Em contraste com o pensamento antigo dir-se-ia que o pensamento moderno estaacute sob o signo da linguagem A linguagem se tornou natildeo raro um importante baluarte ao redor do qual gravitam antigas reflexotildees e problemas agora atraveacutes de novas abordagens A essa mudanccedila de interesse de foco alguns pensadores ousaram mdashreferindo-se primeiramente agrave filosofia analiacuteticamdash historiaacute-la como uma contundente reviravolta ou giro linguumliacutestico278 (linguistic turn) A concepccedilatildeo de que eacute impossiacutevel filosofar sem passar quase que necessariamente por uma reflexatildeo sobre a linguagem tornou-se em alguns pensadores hoje canocircnicos de uma recorrecircncia proliacutefera e polecircmica Precursores capitais como Mauthner e Wittgenstein propunham-se cada um a seu modo a fazer da filosofia das suas filosofias uma criacutetica da linguagem279 (Sprachkritik) ateacute mesmo aqueles com fortes inclinaccedilotildees metafiacutesicas devedores da tradiccedilatildeo teoloacutegica e miacutestica como Heidegger natildeo escaparam a essa atitude e dela fizeram um dos seus principais motes Posteriormente o pensamento sobre o sentido e a escrituraccedilatildeo natildeo regidos por uma loacutegica exclusivamente fundamentada na razatildeotradicional de um Deleuze e um Derrida a ela tambeacutem se coaduna Essa geneacuterica tendecircncia natildeo se restringe entretanto a uma uacutenica disciplina Tornou-se um espiacuterito do tempo (Zeitgeist) sintoma de toda uma eacutepoca Tambeacutem as ciecircncias humanas particulares que em maior ou menor grau lutam por um ldquotardiordquo reconhecimento epistemoloacutegico em comparaccedilatildeo com as naturais compreendem 278 Cf RORTY Richard M (org) The linguistic turn - Essays in philosophical method - With two retrospective essays The University of Chicago Press Chicago amp Londres 1992279 Cf WITTGENSTEIN Ludwing Tratactus logico-philosophicus ed biliacutenguumle trad apresentaccedilatildeo e ensaio introdutoacuterio Luis Henrique Lopes dos Santos intr Bertrand Russell EDUSP Satildeo Paulo 1994 sobretudo sect 40031 pp 164-165 cf MAUTHNER Fritz Contribuciones a uma criacutetica del lenguage trad Joseacute Moreno Villa Herder Barcelona 2001

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a linguagem como de importacircncia capital natildeo raro posicionando-a como o proacuteprio objeto de estudo ou como um importante vieacutes pelo qual os demais fenocircmenos sociais podem ser estudados A consagrada frase do hermeneuta Gadamer mdashlaquoO ser que pode ser compreendido eacute a linguagemraquo280mdash pode ser assim considerada tanto como uma proposta quanto uma constataccedilatildeo

Tambeacutem a arte da linguagem verbal a literatura na Modernidade trilha caminhos relativamente anaacutelogos Seus produtores os literatos parecem amiuacutede ter encontrado na proacutepria liacutengua (ou liacutenguas) da qual se utilizam muito da mateacuteria-prima para as obras agraves quais se propotildeem a executar transformando-as em sedutores desafios para a leitura e para a exegeacutetica Do hermetismo poeacutetico de Mallarmeacute aos malabarismos verbais de Joyce passando pelos devaneios dos surrealistas as sempre e naturalmente excessivas praacuteticas da poesia e da ficccedilatildeo buscam romper insistente e propositadamente com os procedimentos tradicionais do discurso e da narrativa buscam inusitadas formas de expressatildeo Aliacutengua essa gigantesca e maleaacutevel forma de arte cujo anocircnimo autor eacute a soma dasgeraccedilotildees pode ser compreendida por vezes como uma espeacutecie de personagem central ldquoonipresenterdquo no universo imaginaacuterio da ficccedilatildeo senhora e escrava daqueles que a manipulam Em grande medida passou-se portanto do registro ontoloacutegico para o registro linguumliacutestico O que natildeo implica que o primeiro tenha sido abolido pelo uacuteltimo tampouco desqualifica a plural totalidade do pensamento antigo no que concerne a uma suposta falta de preocupaccedilatildeo de consciecircncia da linguagem Conjetura-se simplesmente que outrora natildeo havia necessidade em manifestar explicitamente essa consciecircncia Generalizando o pensamento antigo parece natildeo ter muitas duacutevidas sobre o que discursa e sobre o que narra em contrapartida o pensamento moderno mdashque pode ser compreendido como um ldquoromantismo desencantadordquomdash natildeo procede do mesmo modo e deseja explicitar natildeo apenas o objeto com o qual se ocupa mas tambeacutem a forma como o analisa e o compreende a tal ponto de chegar a duvidar no transcurso de sua anaacutelise se o proacuteprio objeto existe A Antiguumlidade quando reflete sobre a linguagem mdashrepare-se no Craacutetilo de Platatildeo e para ir mais aleacutem na questatildeo dos universais da Escolaacutesticamdash dificilmente reprime suas esperanccedilas ontoloacutegicas dificilmente deixa de aderir ou formular uma metafiacutesica de mesclar-se imiscuir-se confundir-se com abrangentes concepccedilotildees de mundo com a frequumlente ideacuteia de que a existecircncia eacute separada em duas dimensotildees uma espiritual e outra material sejam quais forem as variaccedilotildees que se decircem a essa divisatildeo Esse princiacutepio de fundamentaccedilatildeo religiosa a restrita Modernidade laica e fragmentada em saberes particulares frequumlentemente o abandona na busca de uma maior 280 GADAMER Hans-Georg Verdade e meacutetodo - Traccedilos fundamentais de uma hermenecircutica filosoacutefica I trad Flaacutevio Paulo Meurer nova revisatildeo da trad Enio Paulo Giachini Vozes amp Editora Universitaacuteria Satildeo Francisco Petroacutepolis amp Braganccedila Paulista 2004 p 612

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autonomia de suas disciplinas e meacutetodos e isso se reflete por conseguinte nos modos como a proacutepria linguagem eacute nela compreendida

A obra de Valeacutery no campo da literatura talvez seja um dos exemplos mais caracteriacutesticos desse ldquonovordquo registro Sobre a linguagem suas reflexotildees se dispersam em seus escritos Todavia o poeta as desenvolveu de modo relativamente autocircnomo paralelo agraves denominadas modernas filosofias da linguagem e epistemologias Diferentemente do positivismo loacutegico (desenvolvido a partir do Wiener Kreis) e da filosofia analiacutetica (desenvolvida a partir do Cambridge-Oxford philosophy) diferentemente do estruturalismo ao qual por vezes eacute hojefacilmente associado281 principalmente numa ldquosupostardquo radical concepccedilatildeo de mundo anti-metafiacutesica anti-histoacuterica e anti-pessoal a uma busca pela enunciaccedilatildeo objetiva que a todos em maior menor grau relativamente caracterizariam o poeta apesar do paralelismo possiacutevel entre o seu pensamento com o dessas correntes natildeo adquire o que aqui se cunhou de consciecircncia da linguagem mdashisto eacute dos seus mecanismos e da relaccedilatildeo que esta tem com o pensamento do modo como ambos se confundem e se condicionam mutuamentemdash tatildeo somente a partir de reflexotildees consideradas eminentemente epistemoloacutegicas derivadas em grande medida do fasciacutenio pelo rigor e precisatildeo da Matemaacutetica e das Ciecircncias Naturais modernas282 das obras de um Ernst Mach um Henri Poincareacute ou de obras como a La Science du langage de Max Muumlller283 Tambeacutem a poesia contribui e com enorme peso nessa aquisiccedilatildeo notadamente o Simbolismo francecircs as poesias e as poeacuteticas simultaneamente ldquoracionaisrdquo e ldquoespirituaisrdquo ldquoanaliacuteticasrdquo e ldquosinteacuteticasrdquo de um Poe um Baudelaire um Mallarmeacute284 Dir-se-ia portanto que uma e outra dessas atividades do espiacuterito que ldquorigorrdquo e ldquoretoacutericardquo ldquociecircnciardquo e ldquopoesiardquo

281 Nos escritos de Valeacutery natildeo haacute referecircncias diretas a essas correntes apesar de realmente haver vaacuterios pontos em comum Sabe-se hoje pelo inventaacuterio de sua biblioteca e pelas notas deixadas em alguns de seus livros prenhes de apontamentos trabalho feito por Judith Robinson-Valeacutery que ele chegou ao menos a ter contato com a produccedilatildeo do Wiener Kreis Tambeacutem segundo relato de seu filho Franccedilois Valeacutery o proacuteprio poeta teria afirmado a existecircncia de determinadas afinidades entre o seu pensamento e o dos radicais epistemoacutelogos vienenses Entretanto isso parece ter ocorrido somente apoacutes a deacutecada de 1930 portanto num periacuteodo tardio jaacute mais proacuteximo da Segunda Guerra Mundial da tomada de Paris e da velhice do poeta (Cf ROBINSON-VALERY Judith Valeacutery et le Cercle de Vienne - Lectures affiniteacutes et diffeacuterences in CELEYRETTE-PIETRI Nicole amp SOULEZ Antonia (orgs) Valeacutery la logique et le langage Sud - Revue litteraire bimestrielle Val de Marne le 29 novembre 1986 Universiteacute Paris XII Paris 1988 pp 31-46 especialmente pp 41-42)282 Cf VIRTANEN Reino Lrsquoimagerie scientifique de Paul Valeacutery Essais drsquoArt et de Philosophie Librarie Philosophique J Vrin Paris 1975283 Sobre a influencia de Poincareacute no pensamento de Valeacutery cf PIETRA Regina Valeacutery et la reacuteflexion eacutepisteacutemologique das les dix derniegraveres anneacutees di XIXe siegravecle - Valeacutery et Poincareacute in CELEYRETTE-PIETRI Nicole amp SOULEZ Antonia (orgs) Valeacutery la logique et le langage Sud - Revue litteraire bimestrielle Val de Marne le 29 novembre 1986 Universiteacute Paris XII Paris 1988 pp 47-68 sobre a influecircncia de Max Muumlller notadamente a concepccedilatildeo da linguagem como um um sistema loacutegico imperfeito cf SCHMIDT-RADEFELDT Juumlrger Paul Valeacutery lecteur de Max Muumlller in CELEYRETTE-PIETRI Nicole amp SOULEZ Antonia (orgs) Valeacutery la logique et le langage Sud - Revue litteraire bimestrielle Val de Marne le 29 novembre 1986 Universiteacute Paris XII Paris 1988 pp 69-82284 ELIOT T S De Poe a Valeacutery in Ensaios escolhidos org e trad Maria Adelaide Ramos Cotovia Lisboa 1992

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intensamente influenciam ou direcionam o pensamento de Valeacutery285 a sua tensatildeo o seu desenvolvimento em direccedilatildeo a essa consciecircncia da linguagem mdasha qual natildeo difere da consciecircncia de si mesmomdash

Contudo ele eacute muito cuidadoso (por vezes refrataacuterio) com relaccedilatildeo agraves influecircncias que recebe Assim quanto a esse comeccedilar pela linguagem o seu percurso eacute sobretudo como sempre quis e esforccedilou-se para ser pessoal e privado o mais autocircnomo ou o mais livre possiacutevel das crenccedilas alheias tal qual um Robinson do intelecto cumpre percorrer Deriva tambeacutem de uma necessidade iacutentima e natildeo apenas de uma resposta a influecircncias confessas ou inconfessas a pressotildees ou exigecircncias alheias a um deixar-se levar pela tendecircncia ou modismos do tempo presente Logo essa consciecircncia da linguagem em grande medida nele nasce e se desenvolve (assim pode ser rastreada) de modo geral de seu proacuteprio programa de autoconsciecircncia e de modo especiacutefico de sua atividade como poeta e como escritor que natildeo deixa de ser a partir do periacuteodo de crise e da Noite de Gecircnova uma derivaccedilatildeo ou continuidade daquele agora com claras intenccedilotildees de praticar um ascetismo intelectual Eacute a escrituraccedilatildeo que revela as questotildees da escrituraccedilatildeo286 a questatildeo da linguagem escrever exige mdashexige-lhe ele faz exigirmdash um cuidadodiferenciado com as palavras e as frases com os inuacutemeros jogos que com essas palavras e frases se pode jogar Eacute portanto muito mais uma accedilatildeo um fazer o fazerpoesia (o poema) e o refletir sobre o fazer poesia (a poeacutetica) muito mais o exerciacutecio de uma constante e incompleta escrituraccedilatildeo sobre assuntos os mais diversos e sobre si mesmo exemplificada principalmente na fragmentaccedilatildeo de seus Cahiers que o conduz a pensar a analisar a destrinccedilar toda e qualquer ideacuteia sua ou alheia sempre pelo modo como esta eacute enunciada mediada representada pelo vieacutes pelo prisma ldquoonipresenterdquo da linguagem Eacute o que Valeacutery denominou principalmente num dos seus mais ceacutelebres e fundantes ensaios de poeacutetica Poeacutesie et penseacutee abstraite conferecircncia proferida na Universidade de Oxford em 1939 com a feliz expressatildeo laquolimpeza da situaccedilatildeo verbalraquo (laquonettoyage de la situation verbaleraquo) expressatildeo que representa um pressuposto de qualquer meacutetodo de abordagem laquoQuanto a mimraquo escreve laquotenho a estranha e perigosa mania de querer em qualquer mateacuteria comeccedilar pelo comeccedilo (ou seja por meu comeccedilo individual) o que vem a dar em recomeccedilar em refazer uma estrada completa como se tantos outros jaacute natildeo houvessem traccedilado e percorrido Essa estrada eacute a que nos eacute oferecida ou imposta pela linguagem Em qualquer questatildeo e antes de qualquer exame sobre o conteuacutedo olho para a linguagem tenho o costume de agir como

285 KOumlHLER Hartmut Paul Valeacutery poeacutesie et connaissance lrsquoœuvre lyrique agrave la lumiegravere des lsquoCahiersrsquo trad Colette Kowalski Klincksieck Paris 1985286 Cf BOURJEA Serge Paul Valeacutery - Le sujet de lrsquoeacutecriture LrsquoHarmattan Codeacute-sur-Noireau 1997

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os meacutedicos que purificam primeiro suas matildeos e preparam seu campo operatoacuterio Eacute o que chamo de limpeza da situaccedilatildeo verbalraquo287

Propor compreender cada palavra cada proposiccedilatildeo ou frase como condicionada a um contexto para soacute depois observar se haacute ou natildeo um real problema a ser enfrentado uma tal abordagem tem grandes consequumlecircncias ou relaccedilotildees diretas para como o poeta frequumlentemente encara e critica a filosofia mdashcriacutetica desenvolvida principalmente nos seus Cahiers nos seus ensaios sobre poeacutetica e nesta siacutentese de seu pensamento filosoacutefico que eacute o uacuteltimo ensaio da trilogia sobre Leonardo Leacuteonard et les philosophesmdash assim como todas as demais atividades do espiacuterito e a si mesmo Essa criacutetica natildeo deixa de ser resultado de um impulso ceacutetico e pode ser compreendida como uma variaccedilatildeo ou derivaccedilatildeo deste constante interesse e atenccedilatildeo que Valeacutery nutre pelo aspecto formal de todas as atividades humanas e de toda a realidade

411 INSUFICIEcircNCIA CONVENCcedilAtildeO TRANSITORIEDADE

Apesar de ser um obsessivo formulador de definiccedilotildees Valeacutery natildeo se prende muito a elas termina sempre por reformulaacute-las e assim sucessivamente sem esperanccedila alguma que esse trabalho tenha virtualmente algum fim Dessarte ele tambeacutem natildeo costuma fazer uma distinccedilatildeo muito precisa mdashhoje um tanto mais frequumlente pelo desenvolvimento mesmo da linguumliacutestica moderna e da semioacuteticamdashentre linguagem e liacutengua (palavras que muitas vezes satildeo sinocircnimas) Em seus escritos por vezes esses dois conceitos satildeo identificados e compreendidos como idioma como linguagem verbal por vezes somente o uacuteltimo eacute assim compreendido e o primeiro como um conceito mais abrangente como uma aptidatildeo humana geral para desenvolver sistemas de representaccedilotildees ou comunicaccedilotildees os mais variados e distintos sejam quais forem as formas empiacutericas adotadas verbais ou natildeo Diante dessa falta de discriminaccedilatildeo haacute que se dizer que definiccedilotildees tambeacutem satildeo questotildees semacircnticas natildeo raro prenhes de arbitrariedade e de ideologia que muitas vezes dilatando-se ou contraindo o significado de um conceito restringindo-o ou ampliando-o pode-se dizer que ldquoA eacute Brdquo num determinado caso e que ldquoA eacute natildeo Brdquo em outro sem que com isso o representado ou o conhecimento que dele se tenha venha a mudar significativamente Por isso diante da pergunta mdashlaquoSe eacute possiacutevel pensar sem linguagemraquomdash Valeacutery pondera laquoMas a linguagem eacute tal liacutengua mdash aprendida Tudo depende das definiccedilotildees escolhidas p[ara] pensar e p[ara] linguagemraquo288 O pensamento pode ser definido como linguagem verbal ou como linguagem

287 Œ1 p 1316288 C1rsquo p 448

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verbal e natildeo verbal assim como a linguagem pode ser definida como linguagem verbal ou como linguagem verbal e natildeo verbal E isso de acordo com asabordagens adotadas que podem manifestar diferenccedilas reais de concepccedilatildeo ou meras diferenccedilas semacircnticas Logo a resposta agrave pergunta mdashldquoeacute possiacutevel pensar sem linguagemrdquomdash estaacute condicionada aos pressupostos dos quais a reflexatildeo parte

De qualquer modo poder-se-ia dizer que para Valeacutery o pensamento jaacute eacute linguagem uma forma de linguagem dada pela natureza Porque amiuacutede compreende todas as coisas natildeo apenas como coisas mas tambeacutem para o espiacuterito para a consciecircncia que as percebe como signos ou possibilidade de signos e por conseguinte todas as atividades humanas por mais diferenciadas que possam parecer ser de uma linguagem verbal convencional como formas variadas de linguagem Daiacute a proacutepria linguagem nesse sentido tambeacutem ser compreendida como laquoobjeto de eterna meditaccedilatildeoraquo laquopois eacute o universo do pensamentoraquo289 E o pensamento como uma abstraccedilatildeo um resumo da realidade percebida laquoTodas as coisas se substituemraquo escreve laquomdash natildeo seria isso a definiccedilatildeo das coisasraquo290 Para corroborar ainda mais essa perspectiva gnosioloacutegica haacute uma outra frase laminar do poeta que demonstra a forte compreensatildeo do caraacuteter eminentemente representacional do proacuteprio pensamento e que remete agraves inuacutemeras definiccedilotildees de signo formuladas por Peirce291 laquoTodo pensamento exige que se tome uma coisa por uma outra um segundo por um anoraquo292 A sua concepccedilatildeo de mundo poderia ser portanto muito bem denominada hoje de semioacutetica

Valeacutery atenta natildeo apenas para os limites ou possibilidades do pensamento mas tambeacutem para os limites ou possibilidades da representaccedilatildeo exterior do proacuteprio pensamento de um modo dir-se-ia cientiacutefico Daiacute expressar certo ldquodesconfortordquo certa ldquoinsatisfaccedilatildeordquo para com a suposta insuficiecircncia a suposta carecircncia da linguagem mdashno caso da liacutengua jaacute que ele principalmente escreve utiliza-se de palavrasmdash para tal Ele natildeo se furta em dizer mdashe por vezes eacute nisso bastante enfaacutetico e radicalmdash o quanto ela eacute imperfeita impura para aquele que como ele almeja um expressar ou comunicar mais rigoroso e preciso possiacutevel laquoeu vejo que me falta um sistema de representaccedilatildeoraquo insistentemente confessa laquoA linguagem ordinaacuteria natildeo me permite especular sobre os elementos pois ela natildeo institui nenhuma relaccedilatildeo (de construccedilatildeo) entre esses elementos Cada palavra eacute construiacuteda agrave parte e as relaccedilotildees entre palavras natildeo permitem transformaccedilotildees de uma em outrasraquo293 laquoA linguagem comum natildeo coincide com aquela de nossos

289 C1rsquo p 416290 Œ1 p 1225291 Cf PEIRCE Charles S Logic as semiotic the theory of signs in Philosophical writings of Peirce org Jusus Buchler Dover Publications New York 292 Œ1 p 1264293 C1rsquo p 382

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meios reais de pensamento Ela natildeo a divisa nem a compotildee exatamenteraquo294

Reflexotildees como essas obscuras e opacas satildeo patentes nos Cahiers E eacute por isso que Valeacutery tambeacutem costuma evocar mdashmas de um modo

bastante vago e inconstantemdash o antigo intento em ldquodescobrirrdquo ou em inventar uma linguagem perfeita uma linguagem pura295 Diz ele que tinha a princiacutepio a ideacuteia de laquoconceber uma linguagem artificial fundada sobre o real do pensamento linguagem pura sistema de signos mdash explicitando todos os modos de representaccedilatildeo mdash que satildeo para a linguagem natural aquilo que a geom[etria] cartes[iana] eacute para a g[eometria] dos Gregos excluindo a crenccedila nos significados dos termos em si estipulando a composiccedilatildeo dos termos complexos definindo e enumerando todos os modos de composiccedilatildeoraquo296 E isso partindo sempre de si mesmo das suas proacuteprias questotildees da concepccedilatildeo de que a laquoLinguagem verdadeira eacute esta na qual noacutes reconhecemos todos os termos como nossos isto eacute como se n[oacute]s os tiveacutessemos criados por nossas necessidades e por eles Eles satildeo da nossa vozraquo297

Feliz ou infelizmente o poeta natildeo fornece muitos dados do que realmente seria essa linguagem perfeita essa linguagem pura Tudo permanece extremamente nebuloso Todavia determinadas revelaccedilotildees dos Cahiers o haacutebito em criar notaccedilotildees pessoais em traduzir simbolicamente uma estrutura linguumliacutestica numa estrutura matemaacutetica e ou loacutegica essas idiossincrasias permitem especular a intenccedilatildeo geneacuterica de axiomatizar ou formalizar o discurso verbal de construir uma espeacutecie de linguagem formal como as que foram esboccediladas por Ramon Llull e sua Ars magna generalis e principalmente por Leibniz e sua Elementa characteristicaeuniversalis298 mas mais plenamente desenvolvida no universo circunscrito da loacutegica-matemaacutetica por Frege e Russel Mas Valeacutery parece ter buscado algo ainda mais abrangente valorizou antes e sobretudo a construccedilatildeo de uma linguagem

294 C1rsquo p 427295 Para uma abordagem geral do desenvolvimento histoacuterico desse ideaacuterio cf ECO Umberto A busca da liacutengua perfeita na cultura europeacuteia trad Antonio Angonese Edusc Bauru 2002 para uma abordagem da problemaacutetica filosoacutefica desse ideaacuterio cf MARLEAU-PONTY Maurice O fantasma de uma liacutengua pura in A prosa do mundo trad Paulo Neves Cosac amp Naify Satildeo Paulo 2002296 C1rsquo p 425297 C1rsquo p 455298 As referecircncias ao teoacutelogo da Catalunha e ao filoacutesofo de Leipzig satildeo relativamente constantes nos Cahiers naturalmente diferente desses dois pensadores o poeta natildeo buscou a formulaccedilatildeo de uma linguagem perfeita de uma linguagem pura com o intuito de provar as supostas verdades da religiatildeo cristatilde e com isso colaborar numa mais eficaz conversatildeo de infieacuteis (Cf C1rsquo p 384) De qualquer modo frases como esta mdashlaquoEu soube que minha ambiccedilatildeo literaacuteria era (tecnicamente) organizar minha linguagem de modo a fazer dela um instrumento de exposiccedilatildeo e de deduccedilatildeo de descobertas e de observaccedilotildees rigorosasraquo (C1rsquo p 386)mdash remetem em muito agraves especulaccedilotildees do filoacutesofo das mocircnadas Valeacutery tambeacutem chega a mencionar Descartes quanto agrave formulaccedilatildeo de uma linguagem perfeita de uma linguagempura Possivelmente ele se refira agrave correspondecircncia do filoacutesofo com o Padre Mersenne especialmente a de 20-11-1629 (DESCARTES Reneacute Œuvres de Descartes - Correspondences - avril 1622-feacutevrier 1638 I org Charles Adam amp Paul Tannery Librairie Philosophique J Vrin Paris 1996 pp 76-82) na qual se encontra a reflexatildeo sobre uma linguagem da razatildeo que pudesse representar toda a filosofia

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perfeita de uma linguagem pura que representasse de modo rigoroso preciso e exato as percepccedilotildees do mundo exterior e do mundo interior por conseguinte todos os processos da vida do espiacuterito da consciecircncia e de um espiacuterito de uma consciecircncia particular purgada dos estados psicoloacutegicos emotivos e sentimentaisEsse seu intento natildeo deixa de ser portanto uma derivaccedilatildeo da proacutepria e inconclusa ideacuteia de Sistema que reduz tudo a funccedilotildees assim como da proacutepria e inconclusa ideacuteia de eu puro uma linguagem perfeita uma linguagem pura seria supostamente a linguagem desse eu puro uma linguagem privada

Todavia o poeta natildeo cumpre doravante com esse intento Implicitamente duas satildeo as possiacuteveis razotildees para tal Primeira Valeacutery jamais abdica jamais pode abdicar da questatildeo dos significados significados sempre presentes no pensamento e na vontade que o executa e quanto a isso uma linguagem formal mesmo tendo certas regras semacircnticas miacutenimas mesmo natildeo sendo um sistema logiacutestico puro algo que seria apenas sintaxe eacute sempre bastante restrita Segunda toda linguagem sempre pressupotildee o outro uma linguagem perfeita uma linguagem pura como linguagem privada seria a linguagem de um soacute e isso natildeo seria simplesmente linguagem nenhuma Em suma ao pretender referir-se ao mundo exterior e ao mundo interior aos processos da consciecircncia do espiacuterito a linguagem deve funcionar deve comunicar deve ser um sistema passiacutevel de ser por outros compreendido usado e transformado e portanto deve carregar um sem-nuacutemero de subentendidos e estar sujeita ateacute certo grau agraves interpretaccedilotildees agraves variaccedilotildees agraves indeterminaccedilotildeessemacircnticas desses outros a linguagem se linguagem deve ser portanto imperfeita impura Assim Valeacutery acaba compreendendo que para os seus estranhos propoacutesitos uma linguagem perfeita uma linguagem pura no padratildeo das linguagens naturais natildeo eacute realmente possiacutevel mdashassim como tambeacutem natildeo o eacute em termos puramente empiacutericos o eu puro e a poesia puramdash Eacute apenas uma ilusatildeo ou um sonho continuamente acalentado um absurdo um contra-senso talvez laquoMeu projeto primitivo mdash de me fazer uma linguagem proacutepria mdashraquo ele assim confessa laquoeu natildeo pude desenvolvecirc-lo Dele soacute me restou apenas a abstenccedilatildeo de certas palavras (quanto eu penso para mim) e o haacutebito de compreender as palavras somente como expedientes individuais Eu coloco o significado somente nos indiviacuteduos determinadosraquo299 Como todo escritor que se impotildee secretas regras de uso linguumliacutestico Valeacutery acaba assim se contentando apenas em ter uma escrita altamente idiossincraacutetica permeada de pausas e lacunas e em como diz abster-se do uso de certas expressotildees e palavras as quais considera demasiadaimprecisas e recorrentes no uso metafiacutesico demasiada desgastadas ele acaba optando por uma espeacutecie de navalha de Ockham uma censura aplicada aos vocaacutebulos a um index verborum prohibitorum que apesar de nem sempre ser

299 C1rsquo p 428

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operante na sua escritura revela-se sobretudo como uma regra de construccedilatildeoestiliacutestica como um procedimento de escritura

Em contrapartida em Valeacutery sempre permaneceraacute a ldquoinsatisfaccedilatildeordquo com relaccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo agrave impureza da linguagem300 O que natildeo deixa de ser algoproacuteprio dos literatos e dos poetas em geral a expressarem consciecircncia dos limites e possibilidades da proacutepria linguagem a expressarem suas dificuldades suas anguacutestias e seus tormentos em escolher palavras ou em desenvolver frases suas experiecircncias interiores a luta para representar aquilo que inicialmente segundo Tiacutetiro personagem ou voz do Dialoge de lrsquoarbre se supotildee como a laquofonte do pranto O INEFAacuteVEL Pois nosso pranto a meu ver eacute a expressatildeo de nossa incapacidade de exprimir ou seja de nos livrar pela palavra da opressatildeo daquilo que somosraquo301 Por isso que Valeacutery tanto o prosador quanto o poeta apresenta em seus escritos estas duas caracteriacutesticas tatildeo presentes na tradiccedilatildeo miacutestica o pensamento negativo e a manifestaccedilatildeo da impossibilidade da linguagem em representar experiecircncias que natildeo satildeo comuns a todos mdashposto que todo signo que cumpre com sua funccedilatildeo comunicativa como a palavra pressupotildee hipoteticamente uma experiecircncia compartilhada entre dois ou mais espiacuteritos um ponto de contato que possibilite a comunicaccedilatildeomdash O que natildeo raro acaba por desembocar na praacutetica de uma escritura sempre fragmentada e incompleta que se utiliza frequumlentemente de figuras de linguagem contraditoacuterias e paradoxais como uma tentativa de transmitir o que o outro natildeo vivencia

Desse modo o sonho de uma linguagem perfeita de uma linguagem pura eacute no pensamento do poeta passiacutevel de ser interpretada natildeo como uma utopia positiva mas como uma utopia negativa natildeo como uma meta que se espera ser realmente realizada mas como uma meta cuja funccedilatildeo eacute sobretudo heuriacutestica um ideal que sendo a sua concretizaccedilatildeo impossiacutevel ou absurda serve ao menoscomo um artifiacutecio ou um subterfuacutegio um alvo inexistente ao qual o presente trabalho de escrituraccedilatildeo seja prosaico ou poeacutetico deve se balizar e ao menos tentar ser um como se Afinal o que eacute escrever mdashradicalmentemdash senatildeo a tentativa de escrever e de escrever o que natildeo eacute passiacutevel de o ser Haacute assim algo de paradoxal em tudo isso Pois partindo da ldquoinsatisfaccedilatildeordquo com relaccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo agrave impureza da linguagem e conjeturando construir uma linguagem perfeita linguagempura Valeacutery acaba portanto por ldquoconceberrdquo que a proacutepria imperfeiccedilatildeo a proacutepriaimpureza da linguagem revela-se natildeo apenas como um dos fatores que a possibilitam mas tambeacutem como um dos fatores da sua constante renovaccedilatildeo

300 Quanto a isso Valeacutery chegou a se questionar inclusive da possibilidade ou natildeo de acrescentar outras formas de notaccedilatildeo na proacutepria liacutengua o que supostamente faria com que esta adquirisse um maior ou mais exato poder de representaccedilatildeo laquoPor que natildeo signos como os que haacute na muacutesica (na qual faltam alguns tambeacutem)raquo questiona-se laquoSignos de vitalidade fortemente articulados mdash de paradas de diferentes duraccedilotildees De ldquovivacerdquo ldquosolennerdquo staccato scherazandoraquo (C1rsquo p 574)301 Œ2 p 183

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pois favorece o impulso criador o desenvolvimento da poesia e da filosofia e num sentido mais extremo do proacuteprio pensamento laquoSe a linguagem fosse perfeitaraquo escreve de modo excessivo laquoo homem cessaria de pensar A aacutelgebra dispensa o raciociacutenio aritmeacuteticoraquo302 Porque a linguagem mdashnatildeo sendo formal e privadamdash eacute sobretudo coisa puacuteblica ou passiacutevel de ser coisa puacuteblica uma construccedilatildeo social e contiacutenua porque a linguagem eacute portanto uma convenccedilatildeo

Natildeo haacute como representar a realidade sem usar-se de convenccedilatildeo natildeo haacute como viver em sociedade sem servir-se dela Daiacute tambeacutem a enorme dificuldade em se precisar em se separar o que eacute no variado comportamento do ser humano realmente o natural e o artificial o que eacute dado e o que eacute inventado Sempre flanando com o ceticismo e o relativismo Valeacutery jamais hipostasia as pretensotildees agrave universalidade absoluta e compreende a civilizaccedilatildeo como fundada sobretudo sobre um tenso circuito de convenccedilotildees convenccedilotildees natildeo raro invisiacuteveis e sedimentadas mas que cumprem serem reveladas303 Dentre elas a linguagem pode ser compreendida como uma das mais complexas e perturbadoras um sistema que se baseia num acordo taacutecito num pacto ou contrato inaudito mas fortemente interiorizado naturalizado entre seus praticantes Afinal todo dizer eacute sempre uma ldquoapostardquo mdashuma aposta que quase natildeo se sente mas que haacutemdash que o outro compreenda de algum modo relativamente anaacutelogo agrave intenccedilatildeo daquele que diz o dito Como bom racionalista e iluminista o poeta natildeo credita por conseguinte na hipoacutetese de uma protolinguagem de uma linguagem adacircmica original aniquilada ou esquecida apoacutes a suposta confusio linguarum babeacutelica apoacutes o distanciamento da unidade divina na qual todos harmonicamente se entenderiam e comungariam questotildees de ldquoorigemrdquo304 que comumente fazem evocar qualquer forma de platonismo ou realismo a partir da qual as coisas se originam ou degeneram satildeo por elesimplesmente compreendidas como faacutebulas ou ficccedilotildees305

Seu convencionalismo possui entretanto relaccedilotildees com o estranho pensamento de Mallarmeacute em parte natildeo deixa de ser uma continuidade uma ecircnfase uma acentuaccedilatildeo de reflexotildees poeacuteticas jaacute contidas em estudos como a Petite philologie agrave lrsquousage des classes et du monde les mots anglais e Notes sur le langage nos quais o autor de Un coup de deacutes descreve seu iacutentimo envolvimento com o idioma que lecionava o inglecircs especialmente o goacutetico e o anglo-saxatildeo e com a linguagem em geral principalmente com a sonoridade das palavras relevante para a poesia Simbolista Forte eacute a ligaccedilatildeo do pensamento dos dois poetas menos com a

302 C1rsquo p 400303 CHARNEY Hanna K Le Scepticisme de Valeacutery Dider Paris 1969 cf Œ1 p 1132304 Œ2 pp 177-194305 Cf DERRIDA Jaques Qual quelle - Les sources de Valeacutery in Marges de la philosophie Minuit Paris 1972 pp 327-363

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tradiccedilatildeo do verbum na Teologia Cristatilde e mais como Gerard Gennette exemplarmente iluminou306 com a poderosa tradiccedilatildeo propagada a partir do Craacutetlio - ou da justeza (exatidatildeo) das palavras de Platatildeo o diaacutelogo seminal sobre filosofia da linguagem na Antiguumlidade Claacutessica307 Duas teorias ambas referindo-se sobre como deve se dar sobre qual criteacuterio deve se dar agrave justeza (exatidatildeo) daspalavras a relaccedilatildeo entre estas e o que elas representam satildeo confrontadas nesse diaacutelogo a defendida por Craacutetilo a naturalista segundo a qual cada objeto do mundo recebe um nome justo de acordo com uma conveniecircncia natural e a defendida por Hermoacutegenes a convencionalista segundo a qual cada objeto do mundo recebe um nome de acordo com uma convenccedilatildeo uma conveniecircncia artificial Portanto uma defende a adequaccedilatildeo entre linguagem e mundo a outra natildeo uma defende a mimese mdasha imitaccedilatildeo ou a representaccedilatildeo icocircnicamdash entre linguagem e mundo a outra natildeo O trunfo da argumentaccedilatildeo de Craacutetilo satildeo as palavras compostas por outras palavras ldquoderivadasrdquo o que daacute a impressatildeo de que estas se auto-explicam o de Hermoacutegenes a existecircncia de palavras que natildeo se decompotildeem em outras ldquoprimitivasrdquo o que daacute a impressatildeo que estas satildeo meramente arbitraacuterias Todavia usando-se da dialeacutetica e ao fim interessado mais na formulaccedilatildeo de uma teoria do conhecimento do que no inquirir etimologias Soacutecrates acaba tambeacutem esboccedilando uma terceira teoria mescla ou negaccedilatildeo das outras duas segundo a qual haveria sim uma conveniecircncia natural entre palavras e coisas todavia natildeo de modo onomatopaico como insiste Craacutetilo mas de modo essencial Nesse sentido se a ceacutelebre Teoria das Ideacuteias308 estiver em pauta as palavras mdashsupostamentemdash representariam ou deveriam representar (porque de fato natildeo o fazem de modo perfeito) mais as Ideacuteias do que as proacuteprias coisas sensiacuteveis a adequaccedilatildeo a justeza das palavras deve ter portanto como criteacuterio o conhecimento que no ideaacuterio platocircnico natildeo raro se identifica com a dimensatildeo ontoloacutegica e natildeo fenomecircnica Tambeacutem reconhecendo a insuficiecircncia da linguagem para tanto Soacutecrates conjetura que o conhecimento deve ser antes adquirido pelo pensamento e independentemente das palavras guias falhos e perigosos Haacute que se partir da realidade e natildeo daquilo que a imita ou a representa As suas instigantes reflexotildees entretanto permanecem bastante

306 Cf GENETTE Geacuterard Au deacutefaut des langues in Mimologiques - Voyage en Cratylie Eacuteditions du Seuil Paris 1976 cf MOTTA Leda Tenoacuterio da O abismo da palavra in Catedral em Obras - Ensaios de Literatura Iluminuras Satildeo Paulo 1995307 Note-se que o Platonismo seraacute enquanto paradigma filosoacutefico constantemente criticado nos escritos de Valeacutery principalmente em seus diaacutelogos socraacuteticos308 Cumpre dizer que a Teoria das Ideacuteias no Craacutetilo eacute somente esboccedilada inicialmente pelo proacuteprio Craacutetilo e ao fim por Soacutecrates ainda natildeo se apresenta de modo plenamente desenvolvida como no Feacutedon diaacutelogo posterior agravequele no qual a separaccedilatildeo entre mundo das Ideacuteias de um lado e mundo sensiacutevel concreto de outro se acentua assim como todos os problemas que essa separaccedilatildeo acarreta (Cf PLATO Cratylus IV no 167 trad Harold North Fowler org G P Goold Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 1992 cf PLATO Phaedo I no 36 trad Harold North Fowler org Jefrey Henderson Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 2005)

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obscuras ao fim ele abandona o diaacutelogo com seus interlocutores e como decostume nada conclui309

O espiacuterito desse diaacutelogo reverberou doravante na Escolaacutestica especialmente na questatildeo dos universais A ldquodisputardquo talvez menos loacutegico-linguumliacutestica e mais ontoloacutegica entre realistas (creditando numa universalia ante rem) e nominalistas (creditando numa universalia sunt realia) com todas as minuciosas variaccedilotildees que entre um e outro se formularam tambeacutem ressoam nas reflexotildees de Mallarmeacute e principalmente como Michel Jarrety elucida310 em ValeacuteryInteressado no modo como uma liacutengua se comporta ou se desdobrafilologicamente evolui e eacute contaminada por outras liacutenguas e por si mesma o primeiro acaba atentando para o possiacutevel limite do caraacuteter convencional das liacutenguas foneacuteticas estas tambeacutem produzem palavras por analogia por semelhanccedila foneacutetica por iconicidade e natildeo apenas por mera convenccedilatildeo laquocriando as analogias das coisas pelas analogias dos sonsraquo311 (laquoen creacuteant les analogies des choses par les analogies des sonsraquo) assim escreve Ele enfatiza um processo para manter o termo grego mimeacutetico todavia relativamente restrito e preciso a mimese do signo verbal com relaccedilatildeo a outro signo verbal natildeo com relaccedilatildeo direta ao que representam a mimese no interior de uma linguagem ou entre linguagens natildeo portanto com relaccedilatildeo direta agrave realidade que representam Eacute o caso da semelhanccedila por vezes simultaneamente semacircntica e foneacutetica entre palavras de idiomas de mesmo tronco ou num mesmo idioma Esse evidente fenocircmeno linguumliacutestico faz com que Mallarmeacute vaacute mais aleacutem e busque (idiossincraticamente) revelar certa constacircncia certa leientre a semacircntica e a foneacutetica das palavras da liacutengua inglesa ao atribuir ou encontrar valores semacircnticos semelhantes a um conjunto de palavras de foneacutetica semelhantes quiccedilaacute tambeacutem tendo como intenccedilatildeo que a aliteraccedilatildeo um dos grandes recursos da poesia natildeo se decirc apenas como uma seacuterie de sons semelhantes mas tambeacutem como de significados semelhantes

Doravante desconfiando de qualquer explicaccedilatildeo que aponte aessencialidades natildeo compartilhando das teorias de Craacutetilo (ldquoingecircnuardquo demais) oude Soacutecrates (ldquoplatocircnicardquo demais) Valeacutery por sua vez eacute em certo sentido muito mais nominalista do que seu mestre que natildeo deixa de acenar para um platonismo de caraacuteter miacutestico como se depreende por esta bela e enigmaacutetica frase laquoO Verbo atraveacutes da Ideacuteia e do Tempo que satildeo ldquoa negaccedilatildeo idecircntica da essecircnciardquo do

309 Cf PLATO Cratylus IV no 167 trad Harold North Fowler org G P Goold Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 1992310 Sobre o nominalismo de Valeacutery cf JARRETY Michel 1 Nominalisme et imaginaire in Valeacutery devat la litteacuterature - Mesure de la limite PUF Paris 1991311 MALLARMEacute Steacutephane Œuvres completes I org Bertrand Marchal Gallimard Bibliothegraveque de la Peacuteiade Paris 1998 p 506

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Devir torna-se a Linguagemraquo312 (laquoLe Verbe agrave travers lrsquoIdeacutee et le Temps qui sont ldquola negation identique agrave lrsquoessence rdquo du Devenir devient le Langageraquo) O disciacutepulo natildeo nega obviamente que as palavras se formem tambeacutem por analogia a outras desconfia tatildeo-somente que tal fenocircmeno legitime a formulaccedilatildeo de uma lei substancial ademais foi ele que tambeacutem cogitou a formulaccedilatildeo de uma espeacutecie de laquoloacutegica imaginativaraquo ou laquoanaloacutegicaraquo jamais inferiorizando o pensamento por analogia por semelhanccedila por iconicidade em comparaccedilatildeo com o pensamento por contiguumlidade como se depreende em seus escritos sobre Leonardo Dir-se-ia assim simplesmente que para Valeacutery natildeo faz mais sentido buscar ou formular um criteacuterio de adequaccedilatildeo de justeza para as palavras (e nisso ele natildeo se coaduna com Hermoacutegenes) Constata-se apenas que elas satildeo engendradas por um processo imperfeito impuro por mimese (relaccedilatildeo entre signo e signo) e por convenccedilatildeo (relaccedilatildeo entre signo e objeto) dependendo do aspecto que se contemple mas natildeo por uma seacuterie de regras e relaccedilotildees absolutamente riacutegidas e substanciais Com efeito para Valeacutery a parte convencional eacute justamente a relaccedilatildeo entre a foneacutetica e a semacircntica (e nisso ele se coaduna com Hermoacutegenes) a palavra se configura sobretudo como laquouma montagem instantacircnea de um some um sentido sem qualquer relaccedilatildeo entre elasraquo313 Natildeo haacute ao menos nas liacutenguas foneacuteticas como o francecircs e o portuguecircs (a referecircncia eacute obviamente sempre agraves do tronco hindo-europeu e natildeo agraves que se utilizam tambeacutem de ideogramas ou hieroacuteglifos) uma necessaacuteria ligaccedilatildeo mimeacutetica de representaccedilatildeo icocircnica entre o representante e o representado Com relaccedilatildeo ao objeto que represente ou agrave funccedilatildeo que tenha o signo linguumliacutestico eacute realmente arbitraacuterio essa eacute sua marca mais patente como insiste Valeacutery consoante nesse aspecto com a linguumliacutestica de Saussure314

E poder-se-ia natildeo sem um pouco de exagero ir ainda mais aleacutem em todo esse insone raciociacutenio Pelo que se interpreta mais pela totalidade de seus escritos do que por frases soltas a linguagem para o poeta natildeo se caracterizaria como sendo consequumlecircncia de um princiacutepio ontoloacutegico de uma relaccedilatildeo isomoacuterfica com arealidade Por detraacutes dela natildeo haacute um substrato ou uma loacutegica essencial simetricamente perfeita com relaccedilatildeo a um suposto substrato ou loacutegica essencial do mundo O que em grande medida tambeacutem descartaria a possibilidade de construccedilatildeo de uma gramaacutetica geral ou universal matriz gerativa a partir da qual todas as demais seriam variaccedilotildees empiacutericas e natildeo apenas a possibilidade de uma

312 MALLARMEacute Steacutephane Œuvres completes I org Bertrand Marchal Gallimard Bibliothegraveque de la Peacuteiade Paris 1998 p 506313 Œ1 p 1328314 Cf SAUSSURE Ferdinand Cours de linguistique geacuteneacuterale orgs Charles Bally Albert Sechehaye amp Albert Riedlinger (colab) Eacutedition critique preacutepareacute par Tullio de Mauro Payothegraveque Payot Paris 1982

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linguagem perfeita uma linguagem pura315 Natildeo haacute portanto a Linguagem haacute tatildeo-somente linguagens ou para usar o conceito central do segundo Wittgenstein haacute inuacutemeros jogos de linguagens316 semelhantes entre si mas natildeo construiacutedos sob ou a partir de um uacutenico princiacutepio ontoloacutegico que se desenvolve e se multiplica como uma aacutervore Tudo eacute uma vasta trama que cresce e se contorce em vaacuterias direccedilotildeesuma trama sem raiz

Isso talvez explique o porquecirc Valeacutery de um lado constate a imperfeiccedilatildeo a impureza da linguagem e conjeture a formulaccedilatildeo de uma linguagem perfeita pura e por outro interprete como Mallarmeacute os diversos usos e apropriaccedilotildees falas e escritas das linguagens particulares das liacutenguas naturais como uma espeacutecie de intensa reforma ou reinvenccedilatildeo como um contiacutenuo aperfeiccediloamento Aperfeiccediloamento engendrado pelos propoacutesitos usuaacuterios que ao receber tais liacutenguas da tradiccedilatildeo as adaptam agraves suas idiossincrasias e modos de ser Processoque ocorre naturalmente de um modo bastante informal e natildeo finalista Desse modo o proacuteprio qualificativo de imperfeiccedilatildeo atrelado agrave linguagem adquire por conseguinte aqui menos o significado hodierno de algo defeituoso do que de incompleto de inacabado e portanto de uma forccedila evolutiva A metaacutefora mdashessa poderosa figura de linguagem que natildeo deixa de ser um dos mais conhecidos

315 Roland Barthes em 1977 na ceacutelebre aula inaugural para o curso de semiologia literaacuteria no Collegravege de France na mesma sala onde Valeacutery havia professado sua Premiegravere leccedilon du cours de poeacutetique (1937) (Œ1 p 1828) refere-se a um ideaacuterio similar presente natildeo apenas na linguagem mas tambeacutem na proacutepria literatura laquoDesde os tempos mais antigos ateacute as tentativas de vanguarda a literatura se afaina na representaccedilatildeo de alguma coisaraquo diz o semioacutelogo laquoO quecirc Direi brutalmente o real O real natildeo eacute representaacutevel e eacute porque os homens querem constantemente representaacute-lo por palavras que haacute uma histoacuteria da literatura Que o real natildeo seja representaacutevel mdash mas somente demonstraacutevel mdash pode ser dito de vaacuterios modos quer o definamos com Lacan como o impossiacutevel o que natildeo pode ser atingido e escapa ao discurso quer se verifique em termos topoloacutegicos que natildeo se pode fazer coincidir uma ordem pluridimensional (o real) e uma ordem unidimensional (a linguagem) Ora eacute precisamente a essa impossibilidade topoloacutegica que a literatura natildeo quer nunca quer render-se Que natildeo haja paralelismo entre o real e a linguagem com isso os homens natildeo se conformam e eacute essa recusa talvez tatildeo velha quanto a proacutepria linguagem que produz numa faina incessante a literatura Poderiacuteamos imaginar uma histoacuteria da literatura ou melhor das produccedilotildees de linguagens que seria a histoacuteria dos expedientes verbais muitas vezes louquiacutessimos que os homens usaram para reduzir aprisionar negar ou pelo contraacuterio assumir o que eacute sempre um deliacuterio isto eacute a inadequaccedilatildeo fundamental da linguagem ao real Eu dizia haacute pouco a respeito do saber que a literatura eacute categoricamente realista na medida em que ela sempre tem o real por objeto de desejo e direi agora sem me contradizer porque emprego a palavra em sua acepccedilatildeo familiar que ela eacute tambeacutem obstinadamente irrealista ela acredita sensato o desejo do impossiacutevel Essa funccedilatildeo talvez perversa portanto feliz tem um nome eacute a funccedilatildeo utoacutepica Reencontramos aqui a Histoacuteria Pois foi na segunda metade do seacuteculo XIX num dos periacuteodos mais desolados da infelicidade capitalista que a literatura encontrou pelo menos para noacutes franceses Mallarmeacute sua figura exata a modernidade mdash que entatildeo comeccedila mdash pode ser definida por este fato novo nela se concebem utopias delinguagem Nenhuma ldquohistoacuteria da literaturardquo (se ainda se escrever alguma) poderia ser justa se se contentasse como no passado com encadear escolas sem marcar o corte que potildee a nu um novo profetismo o da escrituraraquo (BARTHES Roland Leccedilon in Œuvres Completes III 1974-1980 org Eacuteric Marty Eacuteditions du Seuil 1995 pp 806-807) laquoO uacutenico real na arte eacute a arteraquo (Œ1 p 613) assim tambeacutem jaacute escrevia Valeacutery em La Tentation de (Saint) Flaubert no qual critica o ideaacuterio do Realismo que natildeo raro baseando-se em erudiccedilatildeo documental descreve os objetos e os acontecimentos com grande profusatildeo de detalhes pretendendo com isso dar uma suposta objetividade agrave representaccedilatildeo literaacuteria 316 WITTGENSTEIN Investigaccedilotildees filosoacuteficas trad Joseacute Carlos Bruni Os pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1979

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resultados da capacidade de analogia da consciecircncia uma forma de compararrepresentaccedilotildees para com isso conotar outrasmdash eacute uma dos exemplos mais patentes dessa reinvenccedilatildeo da linguagem no interior da proacutepria linguagem da qual a poesia vem a ser um dos grandes paradigmas Revela-se muitas vezes como um modo de precisar o dizer ou ateacute mesmo o uacutenico modo de dizer aquilo que de modo literal direto natildeo seria possiacutevel Pois a precisatildeo natildeo se refere apenas ao literal agraves vezes o metafoacuterico o que eacute dito pelo desvio vem a ser o mais preciso Toda a reflexatildeo linguumliacutestica de Valeacutery acaba mostrando portanto o lado positivo do convencionalismo a capacidade de inventar signos convencionais siacutembolos de multiplicaacute-los e de relacionaacute-los eacute a capacidade mesma de representar abstraccedilotildees Com os siacutembolos tornou-se possiacutevel representar de um modo abstrato natildeo apenas o mundo exterior mas tambeacutem o mundo interior o espiacuterito a consciecircncia e o que nesse espiacuterito nessa consciecircncia se conjetura e desejatornou-se possiacutevel representar inclusive aquilo que natildeo existe ou ao menos aquilo que eacute tatildeo somente especulado ou experimentado por um soacute laquoO maior progresso foi feito no dia em que os signos convencionais apareceramraquo assim exclama o poeta317

Conjetura-se que a invenccedilatildeo de signos convencionais a invenccedilatildeo da linguagem adveio sobretudo pela necessidade ou pelo desejo humano de interaccedilatildeo com os outros e com o mundo de construir um instrumento de comunicaccedilatildeo isto eacute um instrumento comum Entretanto esse instrumento tambeacutem pode ser usado mdashcomo que num segundo momento heuristicamente conjeturadomdash para expressar perplexidades filosoacuteficas Poder-se-ia dizer assim que a filosofia seria uma espeacutecie de desvio de desvirtuamento de abuso da funccedilatildeo agrave qual a linguagem estaria a princiacutepio destinada O que se constata tambeacutem na complexa formaccedilatildeo do vocabulaacuterio filosoacutefico frequumlentemente de grande abstraccedilatildeo este se inicia em grande medida a partir do vocabulaacuterio utilizado cotidianamente pragmaacutetico construiacutedo imediatamente atraveacutes de uma direta relaccedilatildeo com o mundo sensiacutevel concreto que entatildeo eacute manipulado ou reformulado resignificado quando inserido nas mais diversas especulaccedilotildees Supotildee-se que assim os seres humanos comeccedilam a representar os objetos da realidade que percebem com determinadas palavras cunhadas para tal para entatildeo depois passarem a representar objetos de realidades que conjeturam atraveacutes dessas mesmas palavras agora transformadas distorcidas em metaacuteforas ocultas318 laquoTodas

317 C1rsquo p 418 cf C1rsquo p 457318 Semelhante reflexatildeo foi desenvolvida por Nietzsche em sua criacutetica ao conceito de verdade este assim se pergunta laquoO que eacute a verdade Um batalhatildeo moacutevel de metaacuteforas metoniacutemias antropomorfismos enfim a soma de relaccedilotildees humanas que foram enfatizadas poeacutetica e retoricamente transpostas enfeitadas e que apoacutes longo uso parecem a um povo soacutelidas canocircnicas e obrigatoacuterias as verdades satildeo as ilusotildees das quais se esqueceu que o satildeo metaacuteforas que se tornaram gastas e sem forccedila sensiacutevel moedas que perderam a sua efiacutegie e agora soacute entram em consideraccedilatildeo como metal natildeo mais

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as nossas abstraccedilotildees tecircm essas experiecircncias pessoais e singulares como origemraquodiscursa informalmente Valeacutery laquotodas as palavras do pensamento mais abstrato satildeo palavras retiradas do uso mais simples mais comum que corrompemos para filosofar com elas Vocecircs sabiam que a palavra latina da qual tiramos a palavra mundo significa simplesmente ldquoornamentordquo mas certamente vocecircs sabem que as palavras hipoacutetese ou substacircncia alma ou espiacuterito ou ideacuteia as palavras pensar ou entender satildeo nomes de atos elementares como colocar pocircr pegar respirar ou ver que aos poucos foram se carregando de sentidos e ressonacircncias extraordinaacuterias ou ao contraacuterio foram se despojando progressivamente ateacute perderem tudo o que teria impedido de combinaacute-las com uma liberdade praticamente ilimitada A noccedilatildeo de pesar natildeo estaacute presente na noccedilatildeo de pensar e a respiraccedilatildeo natildeo eacute mais sugerida pelos termos do espiacuterito e da almaraquo319

Contudo haveria um entrave em todo esse processo linguumliacutestico Se no plano da linguagem ordinaacuteria todos os interlocutores em geral se entenderiamde modo mais faacutecil no plano da linguagem filosoacutefica haveria os maiores desentendimentos os maiores desacordos e disputas Quanto a isso as reflexotildees de Valeacutery satildeo incisivas e assumem um caraacuteter jaacute claacutessico remetem tanto a Santo Agostinho quanto a Wittgenstein laquoVocecircs jaacute notaram [] de que tal palavra perfeitamente clara quando a ouvem ou empregam na linguagem normalraquo assim pergunta o poeta laquonatildeo oferecendo a menor dificuldade quando comprometida no andamento raacutepido de uma frase comum torna-se magicamente problemaacutetica introduz uma resistecircncia estranha frustra todos os esforccedilos de definiccedilatildeo assim que vocecircs a retiram de circulaccedilatildeo para examinaacute-la agrave parte procurando um sentido apoacutes tecirc-la subtraiacutedo agrave sua funccedilatildeo momentacircnea Eacute quase cocircmico perguntar-se o que significa ao certo um termo que se utiliza a todo instante e obter satisfaccedilatildeo total Por exemplo escolhi [] a palavra Tempo Essa palavra era totalmente liacutempida precisa honesta e fiel ao seu serviccedilo enquanto desempenhava a sua parte em um propoacutesito e era pronunciada por algueacutem que queria dizer alguma coisa Mas ei-la sozinha presa pelas asas Ela se vinga Faz-nos acreditar que tem mais sentidos que funccedilotildees Era apenas um meio e ei-la transformada em fim transformada no objeto de um terriacutevel desejo filosoacutefico Permuta-se em enigma em abismo em tormento para o pensamento Acontece o mesmo com a palavra Vida e com todas as outras320 Esse

como moedaraquo (NIETZSCHE Friedrich Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral trad Rubens Rodrigues Torres Filho Os pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1974 p 84)319 Œ1 pp 1093-1094320 A ceacutelebre reflexatildeo de Santo Agostinho mdashlaquoO que eacute portanto o tempo se ningueacutem me pergunta eu sei se quiser explicar a quem me fizer a pergunta natildeo seiraquo (laquoQuid est ergo tempus Si nemo ex me quaerat scio si quaerenti explicare velim nescioraquo (SantrsquoAGOSTINO Le confessioni in Opere di SantrsquoAgostino I Edizione latino-italiana Nuova Biblioteca Agostiniana Cittagrave Nuoava Editrice Roma 1993 Liber XI sect 14 pp 380-381))mdash denuncia que a consciecircncia desse fenocircmeno eacute bastante antiga (cf a epiacutegrafe deste capiacutetulo) Wittgenstein que a cita logo em seguida pondera laquoAquilo que se sabe quando

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fenocircmeno facilmente observaacutevel adquiriu um grande valor criacutetico para mim Fiz dele aliaacutes uma imagem que me representa bastante bem essa estranha condiccedilatildeo de nosso material verbal [] cada uma das palavras que nos permite atravessar tatildeo rapidamente o espaccedilo de um pensamento e acompanhar o impulso da ideacuteia que constroacutei por si mesma sua expressatildeo parece-me uma dessas pranchas leves que jogamos sobre uma vala ou sobre uma fenda na montanha e que suportam a passagem de um homem em movimento raacutepido Mas que ele passe sem pesar que passe sem se deter mdash e principalmente que natildeo se divirta danccedilando sobre a prancha fina para testar a resistecircncia A ponte fraacutegil imediatamente oscila ou rompe-se e tudo se vai nas profundezas Consultem sua experiecircncia e constataratildeo que soacute compreendemos os outros e que soacute compreendemos a noacutes mesmos graccedilas agrave velocidade de nossa passagem pelas palavras Natildeo se deve de forma alguma oprimi-las sob o risco de se ver o discurso mais claro decompor-se em enigmas em ilusotildees mais ou menos eruditasraquo321

Esse discurso revela em siacutentese como o poeta compreende enfim a linguagem como um vasto sistema em devir como algo eminentemente provisoacuterio como algo eminentemente transitoacuterio Uma transitoriedade naturalmente feita de padrotildees de regras de normas E a palavra mdashe laquoNatildeo haacute palavra isolaacutevelraquo322mdash eacute apenas um elemento dessa transitoriedade um anel pertencente a uma correnteque se rompida pode acabar por obscurecer toda a compreensatildeo do que se intentou comunicar ela natildeo deve ser uma estaccedilatildeo-final mas uma estaccedilatildeo na qual se paacutera se permanece por pouco tempo depois se parte e assim sucessivamente num processo que virtualmente natildeo tem fim A palavra eacute assim como uma moedapossui valor de troca valor dependente somente da confianccedila nela depositada valor fiduciaacuterio Seu significado natildeo eacute dado por ela mas pelo que eacute possiacutevel ou natildeo se fazer com ela pelo seu uso ou numa outra perspectiva pelo seu contexto pelo contextoproposicional ou pela forma de vida para usar a expressatildeo do segundo Wittgenstein323 pelo tempo e pelo espaccedilo na qual se insere laquoEacute a frase que esclarece a palavraraquo324 A teoria semacircntica que o poeta sustenta eacute portanto um contextualismo semacircntico Nesse contextualismo o modo como uma palavra eacute frequumlentemente apropriada usada ou significada mdashcom padrotildees que se repetemanalogamentemdash daacute a ela uma suficiente estabilidade semacircntica para manter o poder de comunicaccedilatildeo da linguagem na medida em que impediria uma alteraccedilatildeo caoacutetica e

ningueacutem nos interroga mas que natildeo se sabe mais quando devemos explicar eacute algo sobre o que se deve refletir (E evidentemente algo sobre o que por alguma razatildeo dificilmente se reflete)raquo (WITTGENSTEIN Ludwing Investigaccedilotildees filosoacuteficas trad Joseacute Carlos Bruni Os pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1979 p 49)321 Œ1 pp 1317-1318322 C1rsquo p 454323 Cf WITTGENSTEIN Ludwing Investigaccedilotildees filosoacuteficas trad Joseacute Carlos Bruni Os Pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1979324 C1rsquo p 433

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arbitraacuteria dos seus proacuteprios usos ou significados Um usuaacuterio (um falante ou um escritor) se almeja ser compreendido natildeo pode querer fazer o que bem quiser com ela Natildeo pode querer usaacute-la ou significaacute-la sempre do mesmo modo o que se configuraria como um dogmatismo semacircntico absoluto assim como natildeo se pode querer usaacute-la ou significaacute-la sempre de modo diferente o que configuraria um ceticismo semacircntico absoluto Em ambos os casos a comunicaccedilatildeo no plano cotidiano ou ordinaacuterio estaria no miacutenimo prejudicada Toda palavra assim como todo signo tem portanto algum grau de determinaccedilatildeo semacircntica ou algum grau deindeterminaccedilatildeo semacircntica natildeo possui fixidez nem fluidez absolutas mdashe isso a faz funcionarmdash Uma laquolinguagem supotildee uma criaccedilatildeo estatiacutestica constante [Grifo do autor]raquo sintetiza Valeacutery laquocada qual potildee nela algo de si mesmo a desfigura a enriquece a capta e a comunica a sua maneira [] A necessidade de muacutetua compreensatildeo eacute a uacutenica normativa que atenua e retarda sua alteraccedilatildeo e esta eacute tatildeo soacute possiacutevel em virtude da natureza arbitraacuteria das correspondecircncias de signos e de sentido que a constituemraquo325

E eacute por isso que Valeacutery tambeacutem chega a se referir relativamente anaacutelogo agraves reflexotildees de um Rousseau326 e de um Condillac327 agrave linguagem como sendo mdashao menos ldquooriginalmenterdquomdash derivada do corpo do gesto e do grito328 o que significa que se almeja cumprir plenamente com seu objetivo pragmaacutetico deve morrer e morrer no outro no entendimento do outro o outro que a faraacute renascer laquoA linguagem articulada verbal parte do gesto mdash e o exige uma vez por todasraquo329 assim escreve laquoEnsaiar se exprimir por gestos Isto eacute tocar o cerne da linguagem ordinaacuteria)raquo330 Em uacuteltima instacircncia Valeacutery como ele mesmo confessa a compreende mdashum modo que poderia ser denominado de ldquopositivordquo ou ldquocientiacuteficordquomdash primordialmente como instrumento como laquofunccedilatildeoraquo331 natildeo como ldquocoisardquo ou ldquoessecircnciardquo O que talvez seria mais condizente a um poeta de poesias metafiacutesicas mas natildeo o eacute porque Valeacutery tambeacutem compreende a poesia natildeo raro como um retorno a esse gesto e a esse grito agora respectivamente transformados purificados em danccedila e em canccedilatildeo laquoO poeta que multiplica as figurasraquo escreve laquonada mais faz do que reencontrar em si mesmo a linguagem em estadonascenteraquo332 Nesse sentido ateacute mesmo o seu ldquonominalismordquo se relativiza pois em 325 Œ2 pp 480-481326 Cf ROUSSEAU Essais sur lrsquoorigine des langues org Jean Starobinski Folio - Essais Gallimard Paris 1993327 Cf CONDILLAC Eacutetienne Bonnot de Essai sur lrsquoorigine des connaissances humaines ndash Ouvrage ougrave lrsquoon reacuteduit agrave un seul principe tout ce qui concerne lrsquoentendement org Raymond Lenoir Librairie Armand Colin 1924328 Sobre a linguagem como gesto cf SOULEZ Antonia La phrase-geste - Valeacutery et Wittgenstein in CELEYRETTE-PIETRI Nicole amp SOULEZ Antonia (orgs) Valeacutery la logique et le langage Val de Marne le 29 novembre 1986 Universiteacute Paris XII Paris 1988 pp 135-155329 C1rsquo p 457330 C1rsquo p 410331 C1rsquo p 458332 Œ1 p 1440

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seu pensamento jaacute natildeo estaacute mais em jogo nenhuma preocupaccedilatildeo ontoloacutegica Todo substancialismo eacute substituiacutedo por um funcionalismo um funcionalismo contextualista porque a linguagem deve ser o que sempre foi uma accedilatildeo um fazer

4111 AUTOMATISMO VERBAL

mdash Vocecirc estaacute seguro de que esta eacute a traduccedilatildeo correta em palavras de seus pensamentos sem palavrasLudwing Wittgenstein Investigaccedilotildees filosoacuteficas

As palavras que possuem caraacuteter denotativo que se referem a algo as palavras ldquocategoremaacuteticasrdquo quiccedilaacute com exceccedilatildeo dos nomes e dos nuacutemeros podem ser compreendidas como generalia como signos gerais Representam um conjunto uma infinidade de objetos concretos ou abstratos subjetivos ou objetivos reais ou irreais que na perspectiva supostamente constante e natural da percepccedilatildeo e ou da intelecccedilatildeo humana se assemelham num tal extremo que satildeo postas como iguais e eacute justamente por essa ldquoigualdaderdquo por uma convencional desconsideraccedilatildeodas diferenccedilas do vasto grau de matizes da realidade que inuacutemeros objetos podem ser denominados por uma mesma palavra e assim tambeacutem para com todos os demais Natildeo haacute nada de igual passiacutevel de ser pelos sentidos percebido na realidade exterior ou intuiacutedo na realidade interior ao menos ateacute hoje natildeo se constatou que houvesse Nenhuma pedra eacute igual agrave outra pedra no entanto todas satildeo denominadas pedras nenhuma tristeza eacute igual agrave outra tristeza no entanto todas satildeo denominadas tristezas De algum modo e quiccedilaacute por se estar envolto com preocupaccedilotildees metafiacutesicas e religiosas por se almejar essecircncias um ir aleacutem do que se percebe tal relaccedilatildeo entre linguagem e realidade pode ldquofacilmenterdquo induzir ou incitar mdashe isso eacute meramente uma hipoacutetesemdash a crer que haveria natildeo apenas um objeto primordial e perfeito a partir do qual todos os outros seriam versotildees incompletas imperfeitas mas tambeacutem que haveria um significado correto absoluto verdadeiro referente como o jaacute acenado por Soacutecrates no Craacutetilo natildeo aos diversos objetos percebidos ou intuiacutedos que satildeo denominados por uma mesma palavra mas antes ao objeto primordial e perfeito333 A antiga concepccedilatildeo mdashplatocircnica ou realistamdash segundo a qual a palavra manifestaria a verdadeira essecircncia da coisa que representa explicita em muito essa crenccedila mdashe quanto a isso natildeo deixa de ser instigante saber que no Grego Claacutessico uma das palavras

para palavra (ὄνομα) tambeacutem designa o conceito de nomemdash Entretanto hoje

quando tal crenccedila natildeo se faz tatildeo presente quando o espiacuterito nominalista (e ldquomaisrdquo cientiacutefico) parece ter relativamente se imposto ao espiacuterito realista (e ldquomaisrdquo metafiacutesico) o que ainda ocorre mais explicita e precisamente eacute como

333 Cf NIETZSCHE Friedrich Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral trad Rubens Rodrigues Torres Filho Os Pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1974 p 84

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que um apego um apego a um determinado significado ou gama de significados a um determinado discurso O que muitas vezes prejudica ou inviabilizaria o diaacutelogo com outros a formularem outros significados ou gama de significados o diaacutelogo com outros discursos

Todo esse modo categorial de compreender as palavras e por conseguinte a linguagem modo que Valeacutery natildeo tardaria em julgar supostamente como ldquoantigordquo como ldquoanacrocircnicordquo posto desenvolvido numa eacutepoca preacute-cientiacutefica miacutetica seria um dos erros mais incisivos e recorrentes mais pateacuteticos da filosofia Esta opera constroacutei-se natildeo raro subestimando mdashesquecendo ou ignorandomdashesse constante e imperioso caraacuteter polissecircmico plaacutestico volaacutetil das palavras compreendido como muito mais vasto e complexo do que as preciosas definiccedilotildees enumeraccedilotildees que os dicionaacuterios proporcionam e que compreensivelmente natildeo abarcam todas as possibilidades334 ou dito com mais precisatildeo subestimando os variados usos ou significados que as pessoas tanto na linguagem cotidiana como na linguagem filosoacutefica tanto na prosa como na poesia concedem com maior ou menor rigor agraves proacuteprias palavras o grau de indeterminaccedilatildeo semacircntica que elas podem sofrer A filosofia tende a compreenderque se existe muitos usos ou significados de uma mesma palavra somente um ou uma gama muito limitada ou restrita deles deve ser o correto o absoluto o verdadeiro Mas como para o poeta a linguagem caracteriza-se sobretudo como insuficiente convencional e transitoacuteria como uma laquocriaccedilatildeo estatiacutestica constanteraquo como as palavras natildeo mascaram ou encobrem essecircncias laquonatildeo encobrem misteacuterios mdash mas embaraccedilos incoerecircncias acasosraquo335 natildeo haacute natildeo faz sentido haver por conseguinte o significado correto absoluto verdadeiro mas tatildeo somente inuacutemeros usos ou significaccedilotildees possiacuteveis E isso porque definiccedilotildees isto eacute tentativas de dar contornos ou limites semacircnticos fixidez agraves palavras natildeo satildeo representaccedilotildees de uma realidade ontoloacutegica para aleacutem dos espiacuteritos das consciecircncias

A filosofia ldquopecardquo portanto por um dogmatismo semacircntico ou pelo que aqui pode ser denominado de platonismo semacircntico ou realismo semacircntico a ilusoacuteria crenccedila no significado em si a ilusoacuteria crenccedila na palavra em si336 a ilusoacuteria crenccedila que haacute um em si representado pelo signo verbal No discurso que promove no discurso que eacute ela a filosofia cristaliza fixa as significaccedilotildees que adquire ou formula para ou estaca nas palavras em geral as mais abstratas (consequumlentemente as mais propiacutecias e relevantes ao pensamento metafiacutesico) quando estas devem ser ou soacute podem ser compreendidas como pontes como partes de frases de textos e de contextos e assim sucessivamente a filosofia faria portanto justamente aquilo que Valeacutery considera ser extremamente ldquoperigosordquo e ldquoesteacuterilrdquo isola as palavras e isoladas elas 334 C1rsquo p 391335 C1rsquo p 390336 Cf C1rsquo p 460-461

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se tornam laquoincompletasraquo laquoionizadasraquo337 isoladas elas se tornam portas para o enigma inesgotaacuteveis fontes de especulaccedilotildees filosoacuteficas de antinomias A palavra torna-se aquilo que o fazedor de poemas intuitivamente sabe que pode ocorrerum laquoabismo sem fimraquo338 laquoQuando noacutes nos interrogamos sobre o significado de uma palavra mdash o que eacute a atitude do fazedor de dicionaacuterios ou do ldquofiloacutesofordquo ou do criacutetico etc mdash noacutes somos conduzidos inconscientemente a inventar um significado ldquoidealrdquo e falso Pois 1o noacutes consideramos a palavra isoladamente 2o noacutes recusamos o significado dessa palavra quando a observamos no uso imediato e que parece incompleta ou absurda ou peticcedilotildees de princiacutepio Noacutes supomos que cada palavra possui um significado mdash determinado que natildeo seja o seu e que corresponde a qualquer coisa mdash correspondecircncia uniforme mdash e que o sistema perfeito de palavras eacute em alguma parte mdash a disposiccedilatildeo de um espiacuterito bastante poderoso e sutil para o esperarraquo339 laquoO filoacutesoforaquo portanto escreve o poeta laquocrecirc na palavra em si mdash e seus problemas satildeo problemas de palavras em si de palavras que se obscurecem pelo imobilismo e isolamento mdash e que ele esclarece de seu melhor criando-as de seu melhor e artificialmente por uma voz refletida e imaginativa aquilo que precisamente suas paradas e suas duacutevidas o levaram mdashseu caraacuteter de transiccedilatildeo mdash via de comunicaccedilatildeoraquo340 Segundo Valeacutery os filoacutesofos viveriam muito mais a disputar tatildeo-somente definiccedilotildees significaccedilotildees de palavrassemacircnticas do que proposiccedilotildees construccedilotildees que se atenham a ldquofenocircmenos reaisrdquo eacute justamente nesse sentido que ele chega a dizer ironicamente que toda a filosofia inclina-se a ser tatildeo-somente uma laquoDivinizaccedilatildeo do verbo serraquo341 (Esse comportamento filosoacutefico eacute de algum modo bastante compreensiacutevel supondo a tendecircncia tatildeo caracteriacutestica do pensamento da Antiguumlidade Claacutessica a fundamentar e influenciar grande parte da Tradiccedilatildeo Filosoacutefica Ocidental em buscar algum princiacutepio algum ldquoserrdquo ontologicamente inscrito sob a desesperadora transitoriedade do mundo Transitoriedade que de modo algum natildeo perturba o poeta)

Dessarte da criacutetica ao modo como os filoacutesofos frequumlentemente utilizam-sedas palavras fixando-se nelas da falta de consciecircncias da linguagem destes342 o poeta amiuacutede considera consequumlentemente que tambeacutem a grande parte ou a totalidade

337 C1rsquo p 438338 Œ1 p 686339 C1rsquo pp 438-439340 C1rsquo p 430341 C1rsquo p 620342 O modo como Valeacutery escreve em geral sobre a filosofia eacute realmente bastante sedutor Assim quando Emile Cioran o critica como um escritor que tambeacutem se deixou levar pela doenccedila da linguagem imagina-se que ao contraacuterio o elogia irocircnico nega-o para afirmaacute-lo confessando por quem se deixou influenciar laquoO horror que tinha do jargatildeo filosoacutefico eacute tatildeo convincente tatildeo contagiante que dele partilhamos para sempre soacute podemos ler um filoacutesofo seacuterio com desconfianccedila ou repugnacircncia e nos recusarmos daiacute em diante a todo termo falsamente misterioso ou eruditoraquo (CIORAN Emile Valeacutery face agrave ses idoles Œuvres Quarto Eacuteditions Gallimard 1995 p 1567)

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dos problemas que a filosofia ou a metafiacutesica inventa e lega agrave tradiccedilatildeo tanto filosoacutefica ou metafiacutesica quanto o que talvez seja mais problemaacutetico e polecircmico para aleacutem dela constitui-se natildeo de erros mas simplesmente de falsos problemas de contra-sensos de ilusotildees de quimeras ou de abusos a partir dos quais na acircnsia de resolvecirc-los de realizaacute-los muitas vezes satildeo arquitetados e construiacutedos verdadeiros mundos de fantasia laquoToda a filosofia nasceu de ilusotildees sobre o saber que satildeo ilusotildees sobre a linguagemraquo343 laquoNatildeo existe um uacutenico problema em filosofiaraquo escreve de modo irocircnico e taxativo laquoque natildeo se tenha podido enunciar de maneira tal que natildeo subsista qualquer duacutevida sobre a sua existecircnciaraquo344 Entretanto natildeo se trata assim pode ser interpretado de um ceticismo positivo ou dogmaacutetico natildeo eacute mais uma questatildeo tanto de crer ou de descrer nesses problemas na legitimidade ou ilegitimidade de acreditar na veracidade ou na falsidade deles na concordacircncia com a realidade que dispotildeem representar Porque eles satildeo justamente apenas falsos problemas contra-sensos isto eacute eles simplesmente natildeo tecircm sentido eles simplesmente natildeo existem para fora do universo linguumliacutestico no qual se inserem Constituem-se antes em ilusotildeesgramaticais Afinal natildeo se pode duvidar de algo mal enunciado impreciso natildeo se pode duvidar de algo que se intui natildeo ser compreendido nem mesmo por aqueles que o enunciam mdashargumento esse naturalmente deveras subjetivomdash laquoA maior parte dos problemas da filosofia satildeo contra-sensosraquo escreve Valeacutery tambeacutem se referindo ao devir do saber cientiacutefico laquoeu quero dizer que eacute geralmente impossiacutevel de os ldquocolocarrdquo de uma maneira precisa sem os destruir Assim esses problemas geralmente natildeo resultam de um estudo direto mas satildeo engendrados por teorias ou modos de expressatildeo mais antigos que ao se tornarem insuficiente e em desacordo com os fatos ou com uma anaacutelise mais fina fizeram nascer paradoxos Eacute assim que o argumento sobre a divisibilidade do tempo e do espaccedilo repousa sobre a imprecisatildeo desta operaccedilatildeo Haacute somente que voltar ao que se passa quando se o divide seja fisicamente seja (de uma maneira bastante diferente) intelectualmente para anular o argumentoraquo345

343 C1rsquo p 413344 Œ1 pp 1264-1265345 C1rsquo pp 532-533 Essa concepccedilatildeo se coaduna com a concepccedilatildeo do que vem a ser a filosofia para Wittgenstein uma atividade cujo fim natildeo eacute a resoluccedilatildeo mas a eliminaccedilatildeo dos problemas filosoacuteficos a diferenccedila mais marcante entre os dois pensadores eacute mais de caraacuteter semacircntico este se colocava dentro da filosofia como filoacutesofo e Valeacutery fora dela como natildeo filoacutesofo Jaacute na sua primeira obra o loacutegico austriacuteaco escreve laquoA maioria das questotildees e proposiccedilotildees dos filoacutesofos proveacutem de natildeo entendermos a loacutegica de nossa linguagem (Satildeo da mesma espeacutecie que a questatildeo de saber se o bem eacute mais ou menos idecircntico ao belo) E natildeo eacute de admirar que os problemas mais profundos natildeo sejam propriamente problemasraquo (Cf WITTGENSTEIN Ludwing Tratactus logico-philosophicus trad Luiz Henrique Lopes dos Santos EDUSP Satildeo Paulo 1994 sect 4003 pp 164-165) Essas aacuteridas palavras poderiam muito bem ser de Valeacutery compare-se tambeacutem tanto na forma fragmentada como no conteuacutedo os Cahiers de um e as Philosophische Untersuchungen do outro

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Extrapolando toda essa criacutetica da esfera filosoacutefica e estendendo-a toda ateacute a esfera social chegar-se-ia ao ponto extremo em que se poderia afirmar ser qualquer crenccedila natildeo apenas as tecnicamente filosoacuteficas ou metafiacutesicas uma maacute formulaccedilatildeo linguumliacutestica que natildeo raro assume um valor capital na vida daquele que crecirc O lema mdashlaquoFaire sans croireraquomdash tambeacutem natildeo deixe de estar relacionado a isso pois talvez para Valeacutery toda crenccedila tenha no fundo um caraacuteter filosoacutefico-metafiacutesico e seja portanto ilusoacuteria Tal concepccedilatildeo pode parecer de uma brutalidade de um niilismo epistemoloacutegico visceral principalmente quando se contempla o quanto a grande parte das pessoas facilmente adere ou se submete natildeo raro miseravelmente a qualquer sistema de valores relativamente fechado que o vasto mercado das ideacuteias oferece e vende especialmente os que se encontram nas religiotildees institucionalizadas em busca de consolo psicoloacutegico e de esperanccedilas Isso natildeo implica obviamente que natildeo se possa compreender a importacircncia e a funccedilatildeo das crenccedilas para uma determinada sociedade para a vida e continuidade de uma determinada sociedade para aqueles que as aceitam e as seguem como sempre observava Kant a considerar a razatildeo praacutetica como mais importante para a vida do que a razatildeo pura Disso o poeta apresenta plena consciecircncia Considerava impossiacutevel ou ao menos muito improvaacutevel a construccedilatildeo de uma civilizaccedilatildeo que prescinda de crenccedilas de princiacutepios natildeo verificaacuteveis de representaccedilotildees vagas imprecisas e ldquomal formuladasrdquo de aspiraccedilotildees de sonhos e ilusotildees Pois em uacuteltima instacircncia laquoA metafiacutesica eacute a base das sociedadesraquo346

Numa passagem mais generosa e condescendente Valeacutery matiza assimessa sua proacutepria criacutetica quanto aos problemas filosoacutefico-metafiacutesicos serem contra-sensos referindo-se ao teor pessoal dessa criacutetica As palavras diz ele laquopassaram por tantas bocas por tantas frases por tantos usos e abusos que as precauccedilotildees mais delicadas se impotildeem para evitar uma enorme confusatildeo em nossos espiacuteritos entre o que pensamos e tentamos pensar e o que o dicionaacuterio os autores e de resto todo o gecircnero humano desde a origem da linguagem querem que pensemos [] Confesso ter o costume de distinguir nos problemas do espiacuterito aqueles que eu teria inventado e que exprimem uma necessidade real sentida por meu pensamento e os outros que satildeo problemas alheios Entre esses uacuteltimos haacute muitos [] que me parecem natildeo existir ser apenas aparecircncia de problemas eu natildeo os sinto E quanto ao resto haacute muitos que me parecem mal enunciados Natildeo estou dizendo que eu tenho razatildeo Estou dizendo que vejo em mim o que se passa quando tento substituir as formas verbais por valores e significados natildeo verbais que sejam independentes da linguagem adotada [Grifo do autor] Encontro aiacute impulsos e imagens ingecircnuas produtos brutos de minhas necessidades e de minhas experiecircncias pessoais Eacute a minha vida que se espanta Eacute ela que deve me fornecer se

346 Π folio 94 recto

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puder minhas respostas pois eacute somente nas reaccedilotildees de nossa vida que pode residir toda a forccedila e a necessidade de nossa verdade O pensamento que emana dessa vida nunca se serve com ela mesma de certas palavras que lhe pareccedilam boas para o uso externo nem de outras nas quais natildeo veja o conteuacutedo e que soacute pode enganaacute-lo sobre sua forccedila e valores reaisraquo347

Mediante essas palavras facilmente se constroacutei aqui uma estrateacutegia de argumentaccedilatildeo Supotildee-se que se os problemas filosoacutefico-metafiacutesicos fossem enunciados com proposiccedilotildees mais exatas ou precisas simplesmente natildeo existiriam se estivessem em outro registro ordenadas a partir de outros princiacutepios postos em uma outra loacutegica simplesmente natildeo viriam a ser simplesmente natildeo seriam pensados e ou creditados pois a existecircncia desses problemas mdashenquanto enunciados objetivos de validade universalmdash estaacute intimamente condicionada agrave proacutepria linguagem agraves convenccedilotildees estatiacutesticas (e por conseguinte agrave proacutepria cultura) com as quais natildeo simplesmente se vestem massatildeo por vezes inteiramente constitutivos Como o pensamento tende a condicionar a sua forma de expressatildeo exterior assim como a forma de expressatildeo exteriortende a condicionar o pensamento um problema filosoacutefico-metafiacutesico genuiacuteno (se isso ainda for possiacutevel no pensamento do poeta se isso natildeo for demasiado idealista) deveria existir deveria poder se sustentar independentemente dos veiacuteculos ou dos meios no qual se corporifica e se lanccedila como mensagem exterior agraves interpretaccedilotildees alheias E a partir disso eacute liacutecito formular uma espeacutecie de ldquoregrardquo simples e laminar indispensaacutevel a uma laquonettoyage de la situation verbaleraquo que se faz realmente rigorosa Um problema filosoacutefico enunciado de uma outra forma transposto em um outro sistema de signos sem a mediaccedilatildeo ou sem a vestimenta por exemplo das palavras da linguagem verbal permaneceria como problema e como problema filosoacutefico Um problema filosoacutefico o que dele sobra retirada a sua forma exterior Essa muacuteltipla questatildeo acena aqui para um crivo o crivo daquilo que se pode denominar aqui de traduccedilatildeo semioacutetica (natildeo meramente entre linguagens verbais mas sobretudo entre linguagens entre formas distintas de representaccedilatildeo) acena para o que pode ser cuidadosamente designado aqui de pensamento puro de semiose pura isto eacute de uma representaccedilatildeo mental natural ou natildeo convencional como o substrato mais adequado para a reflexatildeo verdadeiramente autocircnoma pensamento livre mdasheis o que enfim se buscamdash das convenccedilotildees das amarras da linguagem verbal do idioma livre justamente porque consciente delas no ato mesmo de expressaacute-las Livre de todo o laquoautomatismo verbalraquo (laquoautomatisme verbalraquo)

Plenamente formulada em Leacuteonard et les philosophes essa expressatildeo mesmo que natildeo abundantemente repetida eacute um dos mais significativos conceitos-chave do pensamento de Valeacutery siacutentese do que ele realmente critica na filosofia ou

347 Œ1 pp 1318-1319

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metafiacutesica348 Pois compreendendo o itineraacuterio de seus escritos como um todoeacute justamente contra o automatismo contra o automatismo de qualquer espeacutecie seja em qualquer esfera na vida privada ou puacuteblica seja consigo mesmo ou com os outros seja com relaccedilatildeo agraves crenccedilas que a sociedade natildeo raro exige seja com relaccedilatildeo a um mero problema teoacuterico que ele sempre se empenhou em se precaver e contra o qual lutar mesmo reconhecendo que isso em termos absolutos seja talvez impossiacutevel Eis a passagem na qual a expressatildeo laquoautomatismoverbalraquo eacute mais eloquumlentemente formulada laquoO filoacutesofo descreve aquilo que pensou Um sistema de filosofia se resume numa classificaccedilatildeo de palavras ou num quadro de definiccedilotildees A loacutegica eacute apenas a permanecircncia das propriedades desse quadro e a maneira de usaacute-lo Eis a que estamos acostumados e porque temos que dar agrave linguagem articulada um lugar todo especial e todo central no regime de nossos espiacuteritos Eacute bem verdade que esse lugar eacute devido e que essa linguagem [] eacute quase noacutes mesmos Quase natildeo podemos pensar sem ela e natildeo podemos sem ela dirigir conservar retornar nosso pensamento e sobretudo prevecirc-lo de alguma maneira Mas olhemos um pouco mais de perto examinemos em noacutes mesmos Mal nosso pensamento tende a se aprofundar isto eacute a se aproximar de seu objeto tentando operar sobre as proacuteprias coisas (por mais que seu ato produza coisas) e natildeo mais sobre signos quaisquer que excitam as ideacuteias superficiais das coisas mal vivemos esse pensamento sentimo-lo separar-se de toda a linguagem convencional Por mais intimamente que seja tramada em nossa presenccedila e por mais densa que seja a distribuiccedilatildeo de suas chances por mais sensiacutevel que seja essa organizaccedilatildeo adquirida e por mais pronta que ela esteja a intervir podemos por esforccedilo por uma espeacutecie de aumento e por uma maneira de pressatildeo de duraccedilatildeo separaacute-la de nossa vida mental pertinaz Sentimos que nos faltam as palavras e percebemos que natildeo existe razatildeo para encontrar algumas que nos correspondem isto eacute que nos substituam porque o poder das palavras (de onde elas tiram a sua utilidade) eacute nos fazer voltar a passar pela proximidade de estados jaacute experimentados regularizar ou instituir a repeticcedilatildeo e eis que natildeo se repete nunca Talvez isso mesmo eacute que seja pensar profundamente o que natildeo quer dizer pensar mais utilmente mais exatamente mais completamente que de costume eacute apenas pensar longe pensar o mais longe possiacutevel do automatismo verbal [penser le plus loin possible de lrsquoautomatisme verbal] Sentimos entatildeo que o vocabulaacuterio e a gramaacutetica satildeo dons estranhos res inter alios actas Percebemos diretamente que a linguagem por mais orgacircnica e indispensaacutevel que seja natildeo pode acabar nada no mundo do pensamento onde nada fixa sua natureza

348 A expressatildeo laquoautomatismo verbalraquo tambeacutem natildeo estaacute longe do que o segundo Wittgenstein denominou de enfeiticcedilamento da linguagem escreve ele que laquoA filosofia eacute uma luta contra o enfeiticcedilamento do nosso entendimento pelos meios da nossa linguagemraquo (WITTGENSTEIN Ludwing Investigaccedilotildees filosoacuteficas trad Joseacute Carlos Bruni Os pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1975 p 54)

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transitiva Nossa atenccedilatildeo distingue-a de noacutes Nosso rigor como nosso fervor nos opotildeem a elaraquo349

O pensar profundamente eis a meta Na medida em que o pensamento se ldquoapegardquo agrave linguagem verbal mdashlinguagem que o artificializa ao operar com as palavras incapazes de representar a sua transitoriedademdash naturalizando-a como as roupas ao corpo ao grau de natildeo raro ser incapaz de pensar atraveacutes de outras formas e por si soacute faz-se necessaacuterio uma espeacutecie de ldquodes-automatizaccedilatildeo do verbordquo uma purificaccedilatildeo Purificaccedilatildeo que ocorre no proacuteprio programa de autoconsciecircncia valeacuteryano na lucidez na atenccedilatildeo e no esforccedilo que este demanda e do qual a praacutetica dos Cahiers e como se veraacute da poesia pura satildeo exemplos praacuteticos Purificaccedilatildeo que eacute portanto a aquisiccedilatildeo de uma consciecircncia radical do funcionamento do pensamento sobretudo durante o processo mesmo de agir de fazer algo Conhecer as relaccedilotildees entre o pensamento e a linguagem deveria ser assim se postula uma prerrogativa primeira a qualquer filosofia ou a qualquer filoacutesofo e por extensatildeo a qualquer formulaccedilatildeo teoacuterica Isso garantiria que natildeo se fosse levado a crer que determinadas palavras devem necessariamente representar objetos reais porque a existecircncia de um signo natildeo eacute a prova ou a contra-prova da existecircncia daquilo que esse signo representa O espiacuterito a consciecircncia que almeja um poder de transformaccedilatildeo real sobre o mundo e sobre si mesmo deve ater-se agraves ligaccedilotildees entre o real e as representaccedilotildees do real deve garantir-se vigilante e constantemente laquocontra o perigo de parecer perseguir um objeto puramente verbalraquo350 Esse espiacuterito essa consciecircncia encarna-se naturalmente nos principais personagensconceituais de Valeacutery Leonardo e Teste seriam justamente aqueles que diferentemente dos filoacutesofos possuiriam atraveacutes do meacutetodo de um ou da negatividade do outro uma maior consciecircncia da linguagem buscando natildeo se deixarenredar pelo automatismo verbal ou por qualquer outra forma de automatismo

Consequumlentemente libertados do dogmatismo semacircntico do platonismo ou realismo semacircnticos libertados desse automatismo verbal plenamente inseridos num registro cientiacutefico e teacutecnico plenamente inseridos na Modernidade dir-se-ia que agora jaacute natildeo eacute mais a tarefa a de Valeacutery a do pensador (seria este agora denominado de filoacutesofo) saber o que eacute o Tempo o Deus o Ser o Signo ou o Amor etc mas muito mais a de verificar os diversos usos ou significados que as palavras tradicionalmente propiacutecias agrave especulaccedilatildeo metafiacutesica como Tempo Deus Ser Signo ou Amor etc podem adquirir num determinado discurso numa determinada forma num determinado tempo e espaccedilo Por vezes a tarefa tambeacutem eacute a de natildeo usar ou significar essas palavras ou a de propor outros usos ou significados a elas Porque natildeo haacute mais valores constantes mas valores funcionais

349 Œ1 pp 1263-1264350 Œ1 p 1268

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porque natildeo haacute mais sentido responder portanto uma das questotildees outrora fundamentais para o Pensamento Ocidental ldquoo que uma coisa eacuterdquo faz muito mais sentido responder ldquoo que uma coisa pode serrdquo O que implicaria em avaliaras possibilidades passadas e a partir delas conjeturar possibilidades futuras em resultados efetivos e reais Com efeito que as palavras e as frases sejam mudadasque se conceda e se aceite tambeacutem os usos ou os significados que o outro faz das palavras e das frases e determinados desacordos se revelariam ilusoacuterios porque entatildeo se perceberia que por vezes as pessoas dizem a mesma coisa por meios distintosSe o almejado eacute uma possiacutevel conciliaccedilatildeo entre as reflexotildees de um e outro cumpre aceitar os subentendidos as referecircncias e os ocultamentos as generalizaccedilotildees e as exceccedilotildees os excessos e as retoacutericas que nos discursos habitam cumpre aceitar ainda que nem todos se utilizam dos mesmos meios das mesmas formas das mesmas palavras mdashou mesmo de palavrasmdash para seus discursos

Compreende-se enfim sob que pressuposto a criacutetica agrave filosofia de Valeacutery se erige na concepccedilatildeo de que natildeo haacute uma hierarquia entre os diversos sistemas de signos de que a linguagem verbal natildeo eacute superior nem inferior agraves outras formas de linguagem na tarefa de representar o pensamento e principalmente que o saber natildeo se reduz agrave palavra Por conseguinte denuncia-se mais uma vez como nos escritos sobre Teste e principalmente sobre Leonardo o logocentrismo351 o idealismo restritivo da ideologia que tradicionalmente encara o logos mdasho discurso conceitualmdash como o uacutenico caminho seguro para a verdade natildeo raro em detrimento de todas as outras formas de representaccedilatildeo Apesar dos quase incontestaacuteveis poderes de comunicaccedilatildeo que possui apesar de ser instrumento indispensaacutevel para a comunicaccedilatildeo cotidiana e para a ciecircncia a linguagem verbal possui sim precisatildeo mas relativa e natildeo absoluta estaacute circunscrita a sua aacuterea aquilo a que foi proposta Ela natildeo poderaacute dizer o que outras formas de comunicaccedilatildeo dizem assim como as outras formas de comunicaccedilatildeo natildeo poderatildeo dizer o que ela diz Natildeo haacute equivalecircncias natildeo haacute traduccedilotildees absolutas porque toda representaccedilatildeo natildeo deixa de ser uma abstraccedilatildeo ou reduccedilatildeo do representado do contraacuterio seria o proacuteprio representado Na concepccedilatildeo de Valeacutery a filosofia mdashquando definida apenas por sua forma verbalmdash seria enfim um fenocircmenocultural uma modalidade uma forma de pensamento entre tantas outras possiacuteveis e irredutiacuteveis entre si

412 FILOSOFIA COMO FORMA

351 Eacute nesse sentido que Derrida em seu ensaio sobre Valeacutery Qual quelle - Les sources de Valeacutery refere-se a este como um pensador eminentemente escritural diferentemente da tradiccedilatildeo que vai de Descartes a Husserl laquoValeacutery faz lembrar ao filoacutesofo que a filosofia se escreve E que o filoacutesofo eacute filoacutesofo pelo tanto que esqueceraquo (DERRIDA Jaques Qual quelle - Les sources de Valeacutery in Marges de la philosophie Minuit Paris 1972 p 346)

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Filoacutesofo Valeacutery jamais se considerou ou quis se considerar dizia natildeo ter a honra de o ser como dizia em determinadas ocasiotildees tambeacutem natildeo ser literato e ateacute mesmo poeta mdashtal atitude naturalmente faz parte da sua negatividademdashDoravante muitas de suas reflexotildees mesmo fragmentadas satildeo hoje cada vez mais comumente denominadas de filosoacuteficas (justamente porque a proacutepria filosofia transformou-se tornou-se mais analiacutetica) e a sua imagem ultimamente tende a ser pela heterogecircnea evoluccedilatildeo de sua crescente fortuna criacutetica mais a do pensador do que a do poeta352 O que constitui um surpreendente paradoxohistoriograacutefico posto que natildeo raro para o poeta poesia e pensamento abstrato natildeo satildeo necessariamente excludentes e o proacuteprio pensamento quando operando na mais intensa autoconsciecircncia possiacutevel pode ser compreendido como um processo artiacutestico Eacute por tal discrepacircncia que a criacutetica que ele lanccedila a filosofia atraveacutes dasua laquonettoyage de la situation verbaleraquo tambeacutem deve ser aqui restringida erelativizada

Essa criacutetica tem como alvo as obras que se estendem grosso modo ateacute este periacuteodo da Histoacuteria do Pensamento no qual o Idealismo Alematildeo em geral e o monumental sistema de Hegel em particular erigem-se simultaneamente como aacutepice e fim no qual a proacutepria filosofia mdashagrave parte o sempre presente incocircmodo dos ceacuteticos e empiristas agrave qual o poeta por vezes facilmente se aproxima353mdash eacute amiuacutede identificada com uma metafiacutesica idealista com uma construccedilatildeo que almeja compreender o mundo em uma totalidade de sentido fechada e orgacircnica e cumpre dizer natildeo com epistemologia anaacutelise linguumliacutestica ou criacutetica social caminhos estes mais prementes e fecundos no desiludido seacuteculo XX Valeacutery teve relativo contato com correntes a ele contemporacircneas portanto com hodiernas formas de pensamento que natildeo se estabelecem que natildeo se constroem apesar das compreensiacuteveis divergecircncias entre si a partir de um princiacutepio ontoloacutegico mas

352 Cf como um criacutetico como Edmund Wilson considera entre as deacutecadas de 1930 e 1950 a prosa de Valeacutery algo inferior agrave sua poesia (WILSON Edmund Paul Valeacutery in O castelo de Axel - Estudo dobre a literatura imaginativa de 1870 a 1930 trad Joseacute Paulo Paes Companhia das Letras Satildeo Paulo pp 85-108) Muito em funccedilatildeo da publicaccedilatildeo e divulgaccedilatildeo dos Cahiers hoje a tendecircncia eacute justamente contraacuteria Por um lado a criacutetica atual o posiciona cada vez mais como aquele pensador refinado que se interessa em observar seus proacuteprios procedimentos e em avaliar o impacto da Modernidade cientiacutefica e teacutecnica na arte e na vida por outro relega a sua posiccedilatildeo de poeta a um plano por vezes secundaacuterio posto que sua poesia mescla de elementos do Classicismo e Simbolismo eacute considerada de um rigor e hermetismo um tanto anacrocircnico difiacutecil para o ouvido moderno jaacute habituado ao sedutor verso livre (Cf KLUBACK William Paul Valeacutery a philosopher for philosophers - The sage Peter Lang New York 2000)353 Haacute que se lembrar dessas tradiccedilotildees das quais Valeacutery eacute em certa medida herdeiro o Ceticismo e o Empirismo portanto de um tipo de pensamento que apesar de tambeacutem bastante variado apresenta a possibilidade em se abster da formulaccedilatildeo de uma metafiacutesica Isso porque de algum modo a historiografiafilosoacutefica tende a reduzir a filosofia agrave metafiacutesica ou ao menos a dar importacircncia central a ela Daiacute que por exemplo o poeta tenha considerado que o pensamento de um Montaigne com quem tem muitas e ambiacuteguas afinidades dificilmente seria considerado filosoacutefico laquoNela [na filosofia] natildeo figura mais Montaigne Um homem que respondesse Natildeo sei a todas as questotildees de um formulaacuterio filosoacutefico natildeo seria considerado filoacutesofo E no entantoraquo (Œ1 p 1251)

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principiam por uma determinada perspectiva e recorte da realidade empiacuterica uma concretude social e linguumliacutestica As escassas tradiccedilotildees filosoacuteficas que amiuacutede fazem-se explicitamente presentes em seus escritos raramente ultrapassam esse periacuteodo Referecircncias diretas a Alain (um de seus primeiros inteacuterpretes) a filoacutesofos evolucionistas e espiritualistas como Henri Bergson e Teilhard de Chardin podem ser consideradas exceccedilotildees quiccedilaacute devido agrave amizade ou correspondecircncia que com estes o poeta cultivava

Os filoacutesofos aos quais se refere nos mais polecircmicos e divertidos comentaacuterios principalmente em seus Cahiers (nos quais sempre se daacute maior liberdade em dizer disparates em ser mais aacutecido do que em sua obra puacuteblica) pertencem a esse registro anterior que ele natildeo demora em qualificar de ldquoantigordquo os Preacute-socraacuteticos satildeo caricaturados como grifos cujos laquofragmentos [] nos fazem sonhar com vestiacutegios de touros alados cabeccedilas de leatildeo extraordinaacuterias coacutepulas de profundidade e de absurdoraquo354 Platatildeo apesar da expliacutecita influecircncia formal ou literaacuteria natildeo recebe muito creacutedito como um dos Pais do Ocidente sobretudo pelas consequumlecircncias da Teoria das Ideacuteias355 Aristoacuteteles poucas satildeo as foacutermulas que do filoacutesofo de Estagira se pode reter Plotino e Espinosa dois dos grandes monistas sofrem de uma tremenda ldquoingenuidaderdquo metafiacutesica e Kant eacute um laquoatordoadoraquo (laquoeacutetourdiraquo) que apesar da intrincada cesura epistemoloacutegica que instaura natildeo foi radical o suficiente em suas criacuteticas356 Pascal eacute certamente um dos mais atacados natildeo simplesmente porque desgosta da pintura masprincipalmente porque diferentemente de Leonardo divide o espiacuterito a consciecircncia em meacutetodos distintos357 Quanto a Hegel Valeacutery diz com ldquocerto orgulhordquo que jamais o leu Em contrapartida pensadores (tambeacutem sistecircmicos) como Santo Tomaacutes de Aquino (por natildeo separar de todo o corpo e a alma e por natildeo rebaixar a razatildeo) como Llull e Leibniz (de ambos pela forccedila analiacutetica e pela conjetura de uma linguagem perfeita pura) possuem outro e relativo estatuto na sua contraditoacuteria hierarquia de valores e gostos Tambeacutem os que se estabelecem num registro de desconstruccedilatildeo da Metafiacutesica Ocidental como Marx Schopenhauer e Nietzsche parecem receber entretanto alguma e contida admiraccedilatildeo Das Kapital e Die Welt als Wille und Vorstellung lhe pareceram performances esplecircndidas e a aforiacutestica e contraditoacuteria obra do criador do

354 C1rsquo p 503 cf PEITRA Regina An art of rethinking Valeacutery lsquonegative philosophyrsquo in GIFFORD Paul amp STIMPSON Brian (orgs) Reading Paul Valeacutery - Universe in mind Cambridge Studies in French Cambridge University Press Cambridge 1998 p 90355 Cf Œ2 p 77-147 cf PEITRA Regina An art of rethinking Valeacutery lsquonegative philosophyrsquo in GIFFORD Paul amp STIMPSON Brian (orgs) Reading Paul Valeacutery - Universe in mind Cambridge Studies in French Cambridge University Press Cambridge 1998 pp 90-91356 Cf PEITRA Regina An art of rethinking Valeacutery lsquonegative philosophyrsquo in GIFFORD Paul amp STIMPSON Brian (orgs) Reading Paul Valeacutery - Universe in mind Cambridge Studies in French Cambridge University Press Cambridge 1998 pp 90-91357 Œ1 pp 458-473

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Zaratustra moderno se natildeo lhe era um alimento era-lhe um verdadeiro excitante358

Todavia sobre os filoacutesofos as consideraccedilotildees de Valeacutery revelam toda a sua ambiguumlidade quando ele se refere a Descartes a ceacutelebre foacutermula ldquocogito ergo sumrdquo certeza primeira e momento de superaccedilatildeo do ldquoceticismo metoacutedicordquo natildeo possuipara o poeta ldquosentidordquo algum pois demonstra o quanto um homem pode ser laquoldquomedusadordquo pelo verbo Serraquo359 jaacute que o verbo ldquoserrdquo quando nada conecta tambeacutem carece de sentido todavia possui um grande ldquovalorrdquo natildeo eacute um ldquosilogismordquo ou um ldquopostuladordquo eacute um ldquoGolpe de estadordquo intelectual a afirmaccedilatildeo daquilo que ele denominou de egotismo cartesiano a afirmaccedilatildeo da consciecircncia do Eu que confia na sua proacutepria capacidade em formular um conhecimento seguro sobre si e sobre o mundo360 Egotismo do qual Valeacutery eacute herdeiro Enumerando-se assim o que ele escreveu sobre filoacutesofos especiacuteficos361 suas avaliaccedilotildees soam profundamente injustas quase crueacuteis Entretanto parece haver uma espeacutecie de burla de ironia e cinismo quanto a essas qualificaccedilotildees quando o leitor depara-se com frases como esta laquoEacute necessaacuterio ser profundamente injusto Senatildeo natildeo se misture nisso mdash Seja justoraquo362

A importacircncia dessas irocircnicas consideraccedilotildees sobre filoacutesofos especiacuteficos reside em grande medida no conceito que Valeacutery formula sobre a ldquonaturezardquo ouldquopraacuteticardquo da filosofia e natildeo apenas nas suas severas criacuteticas a ela Para o poeta laquotoda Filosofia eacute uma questatildeo de formaraquo mdashesse eacute um dos seus mais caracteriacutesticos leitmotivmdash laquoa forma mais compreensiacutevel que um determinado indiviacuteduo pode dar ao conjunto de suas experiecircncias internas ou externas e isso independente dos conhecimentos que possa possuir esse homemraquo363 isto eacute a organizaccedilatildeo que um determinado indiviacuteduo pode dar pelo discurso pela representaccedilatildeo verbal natildeo raro sistecircmica e doutrinaacuteria de tudo o que percebe conjetura e sonha de todas as suas lembranccedilas e esquecimentos de tudo o que pode condensar resumir A filosofia eacute nesse sentido uma tentativa de se passar no plano da representaccedilatildeodo caos agrave ordem ou melhor de dar ordem a certo caos uma tentativa de se hierarquizar em escalas de valores a realidade enquanto totalidade e unidade de

358 Cf PEITRA Regina An art of rethinking Valeacutery lsquonegative philosophyrsquo in GIFFORD Paul amp STIMPSON Brian (orgs) Reading Paul Valeacutery - Universe in mind Cambridge Studies in French Cambridge University Press Cambridge 1998 pp 90-92 cf GAEDE Edouard Valeacutery et Nietzsche Gallimard Paris 1962359 C1rsquo p 619360 Cf Œ1 pp 785-853 cf CR361 Cf MACKAY Agnes Ethel 3 - Valeacutery and the philosophers in The universal self - A study of Paul Valeacutery University of Toronto Press Toronto 1961 cf KAHN Gilbert Valeacutery et les philosophes in Paul Valeacutery 8 Un noveau regard sur Valeacutery orgs Nicole Celeyrette-Pietri amp Brian Stimpson La revue des lettres modernes Lettres Modernes Paris 1995362 C4 p 368 cf PEITRA Regina An art of rethinking Valeacutery lsquonegative philosophyrsquo in GIFFORD Paul amp STIMPSON Brian (orgs) Reading Paul Valeacutery - Universe in mind Cambridge Studies in French Cambridge University Press Cambridge 1998 p 91363 Œ1 pp 1238-1239

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sentido364 laquoA vasta empreitada da filosofia considerada no proacuteprio coraccedilatildeo do filoacutesofo consiste [] numa tentativa de transmutar tudo o que sabemos no que gostariacuteamos de saber e essa operaccedilatildeo exige ser efetuada ou ao menos apresentaacutevel numa certa ordemraquo365 Em qualquer lugar ou periacuteodo que ocorra a filosofiaadveacutem das leituras e das interpretaccedilotildees das escutas e das conversas dessa divisatildeo e anaacutelise dessa soma e siacutenteses de sensaccedilotildees e reflexotildees sobre as experiecircncias dos sofrimentos daqueles e somente daqueles que a empreenderam eacute portanto consequumlecircncia de uma relaccedilatildeo relaccedilatildeo entre uma pessoa temperamentoou idiossincrasia frente agraves circunstacircncias particulares nas quais essa mesma pessoa inevitavelmente se insere a cada momento Daiacute a ecircnfase no seu caraacuteter eminentemente pessoal Contudo isso eacute justamente aquilo que a filosofia natildeo deseja ser Seu laquoviacutecio fundamentalraquo eacute a sua pretensatildeo agrave pura impessoalidade objetividade e universalidade a ser vaacutelida para todos e em qualquer periacuteodo ou lugar laquoEla eacute uma coisa pessoal e natildeo quer secirc-lo Ela quer formar como a ciecircncia um capital transmissiacutevel sempre crescente Daiacute os sistemas que pretendem ser de ningueacutemraquo366

E essa pretensatildeo se explicita principalmente nas sempre fracassadas tentativas do filoacutesofo por vezes movido por boa-feacute ou por outros escamoteados interesses em fazer da sua filosofia uma Eacutetica e uma Esteacutetica e destas natildeo apenas disciplinas teoacutericas e hermenecircuticas mas doutrinas natildeo apenas descriccedilotildeese reflexotildees mas normas e regras Ele almeja laquoconstruir para si uma ciecircncia dos valores da accedilatildeo e uma ciecircncia dos valores da expressatildeo ou da criaccedilatildeo das emoccedilotildees mdash uma EacuteTICA e uma ESTEacuteTICA mdash como se o Palaacutecio do seu Pensamento tivesse de parecer-lhe imperfeito sem essas duas alas simeacutetricas nas quais seu Eu todo-poderoso e abstrato poderia manter cativa a paixatildeo a accedilatildeo a emoccedilatildeo e a invenccedilatildeo Todo o filoacutesofo depois que terminou com Deus com Si-Mesmo com Tempo o Espaccedilo a Mateacuteria as Categorias e as Essecircncias volta-se para os homens e suas obras Por conseguinte assim como havia inventado o Verdadeiro o Filoacutesofo inventou o Bem e o Belo e assim como havia inventado as regras de consonacircncia do pensamento isolado consigo mesmo do mesmo modo ocupou-se em prescrever regras de conformidade da accedilatildeo e da expressatildeo a preceitos ou a modelos subtraiacutedos aos caprichos e agraves duacutevidas de cada um pelaconsideraccedilatildeo de um Princiacutepio uacutenico e universal que ele precisa portanto antes de qualquer coisa e independente de toda a experiecircncia particular definir ou designar [] da mesma forma que ainda estamos bastante presos agrave ideacuteia de uma ciecircncia pura desenvolvida com todo rigor a partir de evidecircncias locais cujas propriedades

364 Cf REY Jean Michel Paul Valeacutery - Lrsquoaventure drsquoune œuvre La Librairie du XXe siegravecle Eacuteditions du Seuil 1991365 Œ1 p 1237366 Œ1 p 1164

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poderiam estender-se indefinitivamente de identidade em identidade estamosainda meio convencidos da existecircncia de uma Moral e de uma Belezaindependentes dos tempos dos lugares das raccedilas e das pessoasraquo367 Em outras palavras apoacutes ter formulado a sua ordem isto eacute a sua filosofia o filoacutesofo volta-semdashcomo tatildeo bem intuiu Nietzschemdash para o querer normatizar e regrar para o querer disciplinar controlar e comandar natildeo apenas a si mesmo mas tambeacutem e principalmente o outro o modo como o outro deve agir (Eacutetica) e o modo como o outro deve se expressar (Esteacutetica)

Todavia para Valeacutery todo esse movimento parte de um falso pressuposto Pois juiacutezos de valor como os representados pelas categorias de bem e mal de belo e feio soacute existem em relaccedilatildeo a um determinado tipo de sujeito que estabelecendo criteacuterio de distinccedilotildees o enuncia e que supostamente aceita para si para seu mundo a operacionalidade de tais juiacutezos Apesar de poderem ser culturalmente compartilhados juiacutezos de valor eacuteticos ou esteacuteticos ou melhor o significado e o valorde um modo de agir e de um modo de exprimir pertencem agrave esfera da subjetividade Aquele que manteacutem a pretensatildeo de fornecer ou de impor uma filosofia aplicaacutevel a todos os outros ignora ou finge ignorar que os outros natildeo precisam aderir necessariamente agraves mesmas crenccedilas Eacutetica e Esteacutetica soacute podem ser disciplinas teoacutericas e hermenecircuticas descriccedilotildees e reflexotildees do contraacuterio configuram-secomo laquoproblemas de legislaccedilatildeo de estatiacutestica de histoacuteria ou de fisiologia em ilusotildees perdidasraquo368 Para o poeta toda filosofia natildeo deixa de ser assim consciente ou inconscientemente uma autobiografia cuidadosamente velada do proacuteprio filoacutesofo que a faz e todos os problemas filosoacuteficos antropomorfismosnatildeo raro falseados em verdades

Eacute vatildeo toda a pretensatildeo em desejar tornar pura impessoal objetiva e universal a forma a ordem pessoal que constitui qualquer filosofia Porque afinal o mundo eacute prenhe de cores e contrastes de diferenccedilas E em cada momento o outro a existecircncia do outro a existecircncia de modos de pensar e de viver diferentes daquele que se crecirc como o correto e o verdadeiro denuncia a extrema fragilidade das filosofias enquanto doutrinas universais e incita naturalmente a adesatildeo a um maior ldquorelativismordquo laquoNa verdade a existecircncia dos outros eacute sempre inquietante para o esplecircndido egoiacutesmo de um pensador Pode acontecer no entanto que ele natildeo se choque com o grande enigma que o arbitraacuterio de outrem lhe propotildee O sentimento o pensamento o ato de outrem quase sempre nos parecem arbitraacuterios Toda preferecircncia que damos aos nossos noacutes a fortificamos mediante uma necessidade da qual acreditamos ser o agente Mas afinal o outro existe e o enigma nos oprimeraquo369 Daiacute Valeacutery reconhecer que natildeo eacute possiacutevel ou ao menos 367 Œ1 pp 1238-1239368 Œ1 p 1240369 Œ1 pp 1237-1238

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extremamente difiacutecil o consenso absoluto a compatibilidade exata entre os variados sistemas ou doutrinas filosoacuteficas entre as variadas eacuteticas e esteacuteticas370 daiacute tambeacutem dizer natildeo sem ironia considerar um laquoproblema capital da filosofiaraquo a seguinte pergunta astuta e relativamente proacutexima do tropo ceacutetico da diaphocircnia das opiniotildees laquoComo isto pode acontecer que exista mais de uma filosofiaraquo371 [Grifo do autor] Que esta entatildeo seja aquilo que natildeo pode deixar de ser forma ou ordempessoal

Assim sendo o poeta natildeo pode deixar de considerar a filosofia tambeacutem como um modo de vida Sabe entretanto que na Modernidade este tende a se dissociar daquela algo pouco frequumlente no pensamento da Antiguumlidade Claacutessicae do Oriente Um estoacuteico um ceacutetico e um ciacutenico um Soacutecrates e um Dioacutegenes um platocircnico todos ou quase todos aqueles que se integravam agraves escolas filosoacuteficas natildeo compreendiam as doutrinas como separadas como isoladas da vida Para esses homens tatildeo distantes da fragmentada vida moderna treinados a pensar o mundo como racionalmente ordenado a filosofia seu centro localizava-se muito mais numa determinada e correta atitude ante o mundo ante o outro e ante si mesmo natildeo apenas em sua interpretaccedilatildeo e compreensatildeo em sua teorizaccedilatildeo Era realmente um modo de vida associado ou relativo a uma formaou ordem pessoal de compreender o mundo e natildeo apenas uma forma ou ordem pessoal de compreender o mundo Com isso revela-se algo fundamental na condiccedilatildeo de grande parte do pensamento da Modernidade o filoacutesofo (agora mero autor ou escritor) pode ser algo totalmente dissociado e dissonante de sua proacutepria filosofia (agora mera obra ou escritura) Mas Valeacutery mdashao menos no que se depreende de seuproacuteprio programa de autoconsciecircnciamdash natildeo credita que essa dissociaccedilatildeo seja necessariamente adequada ou salutar para o sujeito o pensamento cumpre ser sim um instrumento para a vida mdashpois ele jaacute eacute uma resposta para a vidamdash

Por isso e por tantas foacutermulas paradoxais sobre a impermanecircncia do espiacuterito da consciecircncia e do mundo alguns criacuteticos o aproximaram natildeo apenas do Pensamento Antigo mas tambeacutem do pensamento do Oriente em particulardo Budismo372 segundo o qual a ldquofilosofiardquo natildeo passa de um veiacuteculo tal qual um

370 Semelhante reflexatildeo pode tambeacutem ser evocada da leitura do poema em prosa Le visionaire laquoO anjo me deu um livro e me disse laquoEste livro conteacutem tudo o que tu podes desejar saberraquo E ele partiu E euabri este livro que era medianamente grosso Estava escrito numa escritura desconhecida Os saacutebios o traduziram mas cada um deu-lhe uma versatildeo totalmente diferente das outras E eles diferiam de opiniatildeo quanto ao proacuteprio significado da leitura Natildeo concordando nem sobre o alto nem sobre o baixo nem sobre o comeccedilo nem sobre o fim Perto do fim desta visatildeo pareceu-me que este livro se fundia com o mundo que nos cercavaraquo (Œ1 p 333)371 CR p 59372 Sobre os paralelos entre o pensamento de Valeacutery e o Budismo cf TSUNEKAWA Kunio Paul Valeacutery est-il bouddhiste in GIFFORD Paul PICKERING Robert amp SCHMIDT-RADEFELDT (orgs) Juumlrgen Paul Valeacutery agrave tous points de vue - Hommage agrave Judith Robinson-Valeacutery LrsquoHarmattan Paris 2003 cf GIFFORD Paul amp STIMPSON Brian (orgs) Paul Valeacutery - Musique Mystique Matheacutematique Presses Universitaire de Lille Lille 1993

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barco usado para atravessar um rio mas que deve ser abandonado na outra margem jaacute que de nada serviria carregaacute-lo em terra Para o poeta toda laquoFilosofia eacute vatilde quando natildeo tende a modificar os filoacutesofos em profundidade - ou mais filoacutesofo (no meu sentido) eacute aquele que tende a se modificar em profundidade atraveacutes de exerciacutecios [] de atos propriamente emanados do espiacuteritoraquo373 O valor do pensamento ou de uma teoria reside menos na verdade que esse pensamento e essa teoria possam conter e como Leonardo e sobretudo Teste demonstram mais nos efeitos que possam causar no espiacuterito na consciecircncia na capacidade em modificar ou eliminar crenccedilas haacutebitos mentais laquoO verdadeiro valor das lsquoteoriasrsquorsquo natildeo eacute o valor teoacuterico Mas antes os efeitos reaisraquo374 A mera reflexatildeo sobre o mundo possui relativa importacircncia se natildeo tem como fim fazer daquele que reflete cada vez mais senhor de si mesmo consciente de seus poderes de suas possibilidades de sua accedilatildeo de seu fazer

413 FILOSOFIA COMO LITERATURA

O modo como Valeacutery encara a filosofia eacute portanto extremamente ambiacuteguo Se por um lado ele a repudia a condena sem poupar duras criacuteticas como uma praacutetica esteacuteril natildeo cientiacutefica e verbal natildeo raro desprovida da consciecircncia dessas caracteriacutesticas e por isso fadada a um labirinto de falsos problemas por outro como nas passagens finais de Leacuteonard et les philosophes a resgata a salva mdashe o que eacute surpreendente natildeo raro justamente pelo mesmo motivo justamente pelos mesmos argumentos por ser natildeo cientiacutefica e verbalmdash natildeo apenas como um modo devida o que na Modernidade eacute para ele bastante difiacutecil mas tambeacutem e explicitamente como um laquogecircnero literaacuterio particularraquo na medida em que ela natildeo deixa de ser como a poesia da qual natildeo deseja se identificar um uso particular das palavras distante do pragmaacutetico uso cotidiano ordinaacuterio A filosofia laquodefinida por sua obra que eacute obra escritaraquo assim sintetiza Valeacutery laquoeacute objetivamente um gecircnero literaacuterio particular caracterizado por certos assuntos e pela frequumlecircncia de certos termos e de certas formas Esse gecircnero tatildeo particular de trabalho mental e de produccedilatildeo verbal tem pretensotildees no entanto a uma situaccedilatildeo suprema pela generalidade de seus propoacutesitos e de suas foacutermulas mas como ele eacute destituiacutedo de toda e qualquer comprovaccedilatildeo exterior como natildeo culmina na instituiccedilatildeo de nenhum poder como essa generalidade mesma que evoca natildeo pode e nem deve ser considerada transitoacuteria como meio nem como expressatildeo de resultados comprovaacuteveis devemos colocaacute-lo natildeo muito afastado da poesiaraquo375

373 Π 1938-1939 Texte 57 (XXII 635) [fin de page]374 PA p 132375 Œ1 p 1256

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Essas palavras revelam a polecircmica perspectiva a siacutentese na qual desemboca o mdashporque natildeo dizer contraditoacuteriomdash pensamento do poeta acerca da filosofia o qual tambeacutem pode ser assim enunciado ao criticar a filosofia Valeacutery a estetiza a compreende como arte ao criticar o filoacutesofo Valeacutery o compreende como artista um artista que em geral se ignora que natildeo possui consciecircncia do caraacuteter ficcional ou ao menos dos elementos ficcionais do seu proacuteprio pensamento Nessa valoraccedilatildeo talvez resida uma outra e uacuteltima estrateacutegia da sua proacutepria criacutetica mais humorada mas tambeacutem muito mais desconcertante do que simplesmente apontar as supostas ilusotildees nas quais adentra afilosofia seus possiacuteveis contra-sensos Pois diante de qualquer argumento pode-se muito bem contra-argumentar diante de uma proposiccedilatildeo pode-se muito bem apresentar a proposiccedilatildeo contraacuteria mas diante de um ldquojuiacutezo esteacuteticordquo diante de uma confissatildeo de uma assertiva de caraacuteter pessoal que reza simplesmente desconfiarda verdade de uma doutrina e em contrapartida tambeacutem reza sentir a harmoniae a beleza dessa mesma doutrina o jogo torna-se outro Dir-se-ia que natildeo se pode refutar o que um outro sente ou diz sentir natildeo se pode refutar o que um outro aprecia ou diz apreciar natildeo se pode simplesmente porque mdashse for dado creacutedito a esse outromdash natildeo faz sentido refutar a interioridade alheia Interioridade somente acessiacutevel agravequele eu que a vive

Contudo a justificativa para tal valoraccedilatildeo se baseia em grande medida numa certa ldquoconsciecircncia histoacutericardquo na compreensatildeo das possibilidades e impossibilidades do tempo presente no tipo de escrita que eacute hoje passiacutevel de ser escrita e no tipo de crenccedila que eacute hoje passiacutevel de ser creditada Porque talvez somente laquouma interpretaccedilatildeo esteacuteticaraquo poderia realmente resgatar salvar a filosofia do processo de laicizaccedilatildeo da Modernidade do desenvolvimento da Matemaacutetica e da Ciecircncia Moderna e do desenvolvimento do espiacuterito que analisaminuciosamente tudo pelo prisma da linguagem somente assim poder-se-ia laquosubtrair agrave ruiacutena de seus postulados mais ou menos ocultos aos efeitos destrutivos da anaacutelise da linguagem e do espiacuterito os veneraacuteveis monumentos da metafiacutesicaraquo376 Afinal o que restaria dessa atividade tatildeo intensamente praticadaidolatrada e vituperada mas laquoassediada obsedada por descobertas cuja imprevisibilidade deu origem agraves maiores duacutevidas sobre sua virtude e sobre os valores das ideacuteias e das deduccedilotildees do espiacuterito reduzido Em que se transforma quando pressionada oprimida atravessada surpreendida a cada instante pela furiosa atividade das ciecircncias fiacutesicas [] hostilizada e ameaccedilada em seus haacutebitos os mais antigos os mais tenazes (e talvez os mais lamentaacuteveis) pelo trabalho lento e minucioso dos filoacutelogos e dos linguumlistas Em que se transforma Eu penso e em que se transforma Eu existo O que se torna ou o

376 Œ1 p 1247

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que volta a ser esse verbo SER que fez uma carreira tatildeo grande no vazioraquo377 A perspectiva de Valeacutery como notou Jean Sebeski378 aproxima-se assim da perspectiva de Carnap segundo o qual o metafiacutesico eacute um laquomuacutesico sem talento musicalraquo379 Mas haacute uma diferenccedila capital Enquanto o filoacutesofo parte para o desdenho no intento positivista de purgar o pensamento racional de toda a preocupaccedilatildeo e de todo elemento ontoloacutegico o poeta encara a proacutepria metafiacutesica como uma forma de arte realmente genuiacutena O poeta ousa inclusive comparaacute-la agraves grandes estaacutetuas de distantes eacutepocas cuja funccedilatildeo maacutegico-ritual foi pouco a pouco abolida e substituiacuteda por uma funccedilatildeo esteacutetica quando entatildeo o que eacute deveras caracteriacutestico da Modernidade laica a estaacutetua do deus tornou-se obra de arte laquoo iacutedolo se fez beloraquo380 laquoPoderia eu sem chocarraquo pergunta-se Valeacutery laquosem irritar cruelmente o sentimento filosoacutefico comparar essas verdades tatildeo adoradas esses princiacutepios essas Ideacuteias esse Ser essas Essecircncias essas Categorias esses Nuacutemenos esses Universo toda essa infinidade de noccedilotildees que parecem sucessivamente necessaacuterias aos iacutedolos de que eu estava falando Indaguem-se agora que filosofia seria para a filosofia tradicional o que eacute uma estaacutetua do seacuteculo V para as divindades sem rosto dos seacuteculos muito remotosraquo381 Em outras palavras se a filosofia se dessacraliza se a crenccedila no conteuacutedo nos conceitos de uma filosofia desaparece ou se transforma radicalmente entatildeo que ao menos permaneccedila a sua forma que ao menos permaneccedila reabilitadacomo forma laquoSeraacute possiacutevel que o filoacutesofo pense que uma Eacutetica ou uma Monadologia sejam coisas mais seacuterias que uma suite em reacute menorraquo382 o poeta novamente se pergunta laquoSe refutarmos um Platatildeo um Espinosa natildeo restaraacute pois nada de suas espantosas construccedilotildees Natildeo resta absolutamente nada se natildeo restarem obras de arteraquo383 Exposta assim de modo intenso dramaacutetico essa concepccedilatildeo remete mais ao estetismo de um Oscar Wilde do que de um Novalis e sobretudo de um Mallarmeacute para quem mdashlaquoo mundo foi feito para terminar num belo livroraquo384 (laquole monde est fait pour aboutir agrave un beau livreraquo)mdash

A proposta em estetizar a filosofia natildeo deixa de ser fruto de uma concepccedilatildeo de mundo que preza ou priorize o lado formal da existecircncia (em contraposiccedilatildeo aos ldquoidealismosrdquo e ldquoessencialismosrdquo) o lado loacutegico ou semioacutetico Proposta essa que

377 Œ1 p 1255378 SEBESKI Jean Confluenes valeryennes in CELEYRETTE-PIETRI Nicole amp SOULEZ Antonia (orgs) Valeacutery la logique et le langage - Revue Litteraire Bimestrielle Val de Marne le 29 novembre 1986 Universiteacute Paris XII Paris 1988 pp 24-24379 CARNAP Rudolph Le deacutepassement de la meacutetaphysique par lrsquoanalyse logique du langage in SOULEZ Antonia (org) Manifeste du Cercle de Vienne et autres eacutecrists PUF Paris 1985 p 177380 Œ1 p 1248381 Œ1 p 1248382 Œ1 p 1236383 Œ1 p 1250384 Frase dita a HURET Jules in Enquecircte sur lrsquoeacutevolution litteacuteraire in lthttpwwwuni-duisburg-essendelyriquetheorietexte1891_hurethtmlgt 2008

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reverberou numa determinada genealogia da literatura posterior Basta pensar nas obsessotildees metafiacutesicas de um Jorge Luis Borges e nos jogos metalinguumliacutesticos de um Iacutetalo Calvino autores confessadamente influenciados por Valeacutery385 basta pensar nesse tipo de ficccedilatildeo e poesia por vezes denominada Poacutes-moderna na qual haacute uma permanecircncia tanto de referecircncias a diversas tradiccedilotildees de pensamento quanto de questionamentos acerca da estrutura ontoloacutegica da realidade Estetizar a filosofia aponta assim para um ideaacuterio literaacuterio possiacutevel cujo objetivo eacute sobretudo transformar ou encarar a proacutepria filosofia seus sistemas ou doutrinas seus filosofemas suas perguntas e respostas suas problemaacuteticas assim como as problemaacuteticas gnosioloacutegicas e epistemoloacutegicas em literatura ou melhor em literatura fantaacutestica Os poemas os personagens conceituais e os diaacutelogos socraacuteticos de Valeacutery assim como suas Histoires briseacutees e em seus projetos de contos contidos em seus Cahier natildeo deixam de ser exemplos praacuteticos dessa proposta386

laquoDecirc-me uma pluma um papelraquo provocava o poeta laquomdash que eu vos escreverei um livro de histoacuteria um texto sagrado como o Alcoratildeo ou os Vedas Eu inventarei um rei da Franccedila uma cosmogonia uma moral e uma gnose O que preveniria um ignorante e uma crianccedila que eu os engane Em que eacute diferente a imaginaccedilatildeo excitada por textos falsos da imaginaccedilatildeo excitada por textos autecircnticosraquo387

O estetismo de Valeacutery estaacute portanto intimamente relacionado com essa sua desconfianccedila ante as pretensotildees da filosofia agrave pura impessoalidade objetividade e universalidade ante as pretensotildees dos filoacutesofos a modificar a vida Escrever literatura fazer arte tambeacutem acaba se tornando para o poeta um natildeo pretender dogmatizar reflexotildees metafiacutesicas um natildeo passar a valorar conjeturascomo verdades Ele compreende e faz compreender enfim que o pensamento deve ser livre do opressivo dever de buscar pela proacutepria verdade (o que natildeo impede de se ir buscaacute-la) que laquoo ensinamento da filosofia quando natildeo eacute acompanhadodo ensinamento da liberdade de cada espiacuterito natildeo soacute com relaccedilatildeo agraves doutrinasmas tambeacutem com relaccedilatildeo aos proacuteprios problemas eacute a meu ver antifilosoacutefico Trata-se de criar a necessidade de uma voluacutepia de filosofarraquo388 Se a filosofia natildeo cumpre ser feita por prazer cumpre ser feita com prazer 385 Leiam-se as palavras do escritor italiano laquoEntre os valores que gostaria que fossem transferidos para o proacuteximo milecircnio estaacute principalmente este o de uma literatura que tome para si o gosto da ordem intelectual e da exatidatildeo a inteligecircncia da poesia juntamente com a da ciecircncia e da filosofia como a do Valeacutery ensaiacutesta e prosador [] Se tivesse de apontar quem na literatura realizou perfeitamente o ideal esteacutetico de Valeacutery da exatidatildeo de imaginaccedilatildeo e de linguagem construindo obras que correspondem agrave rigorosa geometria do cristal e agrave abstraccedilatildeo de um raciociacutenio dedutivo diria sem hesitar Jorge Luis Borgesraquo (CALVINO Iacutetalo Seis propostas para o proacuteximo milecircnio trad Ivo Barroso Companhia das Letras Satildeo Paulo 1998 p 133)386 Natildeo agrave toa uma Simone Weil considerar Paul Valeacutery natildeo um ceacutetico mas um metafiacutesico naturalmente ela se referia mais ao poeta do que ao prosador (Cf LUSSY Florence de Paul Valeacutery et Simone Weil deux natures mystiques deus penseacutees antitheacutetiques in GIFFORD Paul amp STIMPSON Brian (orgs) Paul Valeacutery musique mystique matheacutematique Presses Universitaires de Lille Lille 1993)387 Œ2 p 903388 Œ1 pp 1249-1250

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5 POEacuteTICA

Agrave anulaccedilatildeo da razatildeo como caminho para aquele autecircntico humano preferiu o excesso de razatildeo de trabalho intelectual na luta pelo autecircntico

Joatildeo Cabral de Melo Neto Joan Miroacute

51 POESIA CRIacuteTICA

A Poeacutetica Claacutessica de Platatildeo a Horaacutecio e outros passando por Aristoacuteteles possui em geral um caraacuteter descritivo e ou um caraacuteter prescritivo em outras palavras almeja respectivamente descrever a poesia feita ateacute entatildeo teorizaacute-la em termos de passado ou prescrever regras do que seria a boa poesia teorizaacute-la em termos de futuro Naturalmente essa distinccedilatildeo mais didaacutetica do que efetivaocorre por vezes de um modo natildeo muito preciso Uma mesma obra poeacuteticapode ser ambiguamente tanto normativa quanto prescritiva dependendo das passagens que se escolha e interprete

Doravante esse duplo caraacuteter permanece na Poeacutetica Moderna apesar desta ser natildeo raro mais refrataacuteria agrave formulaccedilatildeo de regras fixas para o proacuteprio fazer poeacutetico consciente do problemaacutetico dogmatismo que frequumlentemente surge quando o filoacutesofo ou o teoacuterico se propotildee a guiar o poeta ou qualquer forma de arte Entretanto com o desenvolvimento na histoacuteria da poesia da necessidade em se expressar uma consciecircncia criacutetica de um eu ou uma voz cada vez mais expliacutecito e de um impulso por vezes confessional e autobiograacutefico por parte dos poetas desenvolve-se e acentua-se um terceiro caraacuteter que natildeo raro mescla-se e se confunde aos outros dois de um modo por vezes indissociaacutevel agora com umainsistente frequumlecircncia natildeo satildeo apenas os filoacutesofos ou os teoacutericos que teorizamsobre o fazer poeacutetico mas tambeacutem os proacuteprios poetas os proacuteprios fazedores de poemas E estes diferentemente daqueles amiuacutede fazem uma poeacutetica na qualnatildeo somente descrevem padrotildees poeacuteticos passados e ou futuros natildeo somente descrevem e ou prescrevem mas tambeacutem chegam a refletir mdashe ousam revelarmdashas suas opccedilotildees esteacuteticas os seus itineraacuterios os seus processos as suas consideraccedilotildees pessoais acerca da poesia e por vezes o que eacute mais significativo os seus proacuteprios modos de fazer o poema as suas proacuteprias operaccedilotildees durante o fazer o poemaOs avanccedilos e os retrocessos os acertos e os erros os acreacutescimos e os cortes as inuacutemeras decisotildees os acasos os arrependimentos as noites de vigiacutelia toda uma seacuterie de eventos outrora relativamente ocultados ou esquecidos tambeacutem agora podem ser expostos agrave luz sem que isso venha necessariamente enfraquecer a poesia do poeta que expotildee tais eventos seja atraveacutes de obras teoacutericas em prosa ou mesmo em poemas Os poetas tornam-se ou melhor revelaram ser mdashem palavras em escritosmdash o que sempre foram comentadores e inteacuterpretes criacuteticos de si mesmos de suas proacuteprias criaccedilotildees pois laquotodos os poetas verdadeiros satildeo

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necessariamente criacuteticos de primeira ordemraquo389 A poesia se revela extremamente criacutetica

Poe pode ser considerado como um dos principais arautos dessa concepccedilatildeo do que seja a poeacutetica a Poeacutetica Moderna seus ensaios The poetic principle e Philosophy of composition390 tornaram-se canocircnicos quanto a isso mesmo que soem para alguns leitores contemporacircneos relativamente artificiosos O paradigma que nesses ensaios se encerra influenciou em muito uma plural linhagem de poetasmodernos altamente conscientes das possibilidades e dos limites da liacutengua que vai de Baudelaire a Mallarmeacute e chega a Valeacutery o qual acentua e modifica essas caracteriacutesticas a um grau extremo A laquoera de autoridade nas artes haacute muito tempo estaacute terminadaraquo lecirc-se na sua Premiegravere leccedilon du cours de poeacutetique laquoe a palavra ldquoPoeacuteticardquo soacute desperta agora a ideacuteia de prescriccedilotildees incocircmodas e antiquadas Acreditei entatildeo poder resgataacute-la em um sentido que contempla a etimologia sem ousar contudo pronunciaacute-la Poiumleacutetique [palavra] da qual a fisiologia se serve quando fala de funccedilotildees hematopoeacuteticas ou galactopoeacuteticas Mas eacute enfim a noccedilatildeo bem simples de fazer que eu queria exprimir O fazer o poiumlein do qual desejo me ocupar eacute aquele que termina em alguma obra e que eu acabarei restringindo em breve a esse gecircnero de obras que se convencionou chamar de obras do espiacuterito Satildeo aquelas que os espiacuteritos fazem para seu proacuteprio uso empregando para esse fim todos os meios fiacutesicos que possam lhe servirraquo391

Questions de poeacutesie Poeacutesie et penseacutee abstraite Propos sur la poeacutesie Neacutecessiteacute de la poeacutesie Celepin drsquoun poegravete Fragments des meacutemoires drsquoun poegraveme Le prince et la Jeune Parque Au sujet du lsquoCimetiegravere Marinrsquo Commentaire de lsquoCharmesrsquo etc assim como certas paacuteginas dos Cahiers satildeo outros tantos escritos nos quais esse caraacuteter eminentemente pessoal eacute assumido A reflexatildeo sobre a poesia e sobre o fazer poeacutetico mdashisto eacute a poeacutetica como aqui entatildeo se compreendemdash transforma-se ou se expande nesses escritos como que inevitavelmente em um discurso sobre a linguagem (natildeo por acaso que muito da criacutetica agrave filosofia tecida pelo poeta tambeacutem neles se encontram e com ela se confundem) revelando assim toda a concepccedilatildeo ldquoesteacuteticardquo valeacuteryana esta que mdashparticularizaccedilatildeo de sua concepccedilatildeo geral das atividades humanasmdash preza mais laquoa accedilatildeo que faz do que a coisa feitaraquo392 o fazer do que o resultado do fazer a feitura do poema do que o poema Concepccedilatildeo que tambeacutem pode ser sintetizada pela seguinte maacutexima inuacutemeras vezes atualizada laquoEacute a execuccedilatildeo de um poema que eacute um poemaraquo393 (laquoCrsquoest lrsquoeacutexecution du poegraveme qui

389 Œ1 p 1335390 Cf POE Edgard Allan O princiacutepio poeacutetico amp Filosofia da composiccedilatildeo in Poemas e ensaios trad Oscar Mendes e Milton Amado revisatildeo e notas Carmen Vera Cirne Lima Globo Satildeo Paulo 1999391 Œ1 p 1342392 Œ1 p 1343393 Œ1 p 1350

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est le poegravemeraquo) Porque eacute na execuccedilatildeo das coisas que para o poeta o valor das coisas adquire legitimidade

511 POESIA PURA

O poeta diz e ao dizer faz Este fazer eacute sobretudo um fazer-se a si mesmo a poesia natildeo eacute soacute autoconhecimento mas tambeacutem autocriaccedilatildeo

Octaacutevio Paz Os filhos do limbo

A Antiguumlidade Claacutessica frequumlentemente compreende a poesia como o resultado de uma tendecircncia natural agrave imitaccedilatildeo mas apresenta divergecircncias significativas quanto ao estatuto desta seu lugar na hierarquia de valores das atividades humanas No capiacutetulo X da Repuacuteblica Platatildeo contemplando a capacidade da poesia em excitar as emoccedilotildees notadamente do verso dramaacutetico condena-a e expulsa-a da cidade ideal por perturbar a alma que natildeo deve ser escrava mas senhora das paixotildees394 Na Poeacutetica Aristoacuteteles contemplando a capacidade da poesia em representar o universal notadamente da trageacutedia valora-a como verdade todavia uma verdade que estaacute agrave meia distacircncia entre a historiografia inferior a ela e a filosofia superior a ela395 De qualquer modo seja em qual gecircnero ou forma encarne seja a que propoacutesito sirva a poesia seu estatuto hieraacuterquico dado pelo pensamento filosoacutefico raramente foi de igual ou superior valor ao proacuteprio pensamento filosoacutefico este quase sempre se considerou um aacutepice entre todas as inuacutemeras modalidades do pensar dir-se-ia natildeo sem muito exagero que aquele que trabalha atraveacutes da ldquorazatildeordquo daacute-se o direito de ter razatildeo Concomitantemente a faculdade da imaginaccedilatildeo amiuacutede associada ao trabalho poeacutetico apesar de ser um ldquoveiacuteculordquo poderoso na manutenccedilatildeo da memoacuteria e da identidade tambeacutem natildeo deixou de ser valorada de um modo relativamente anaacutelogo Quiccedilaacute somente com o pensamento de Vico confessadamente avesso ao racionalismo cartesiano e sensiacutevel agrave forccedila poeacutetica do mito na formaccedilatildeo e no destino das civilizaccedilotildees e em certas vertentes doRomantismo como no caso do pensamento de Schiller que chega a identificar o estado poeacutetico com o absoluto eacute que essa perspectiva no cenaacuterio do Pensamento Ocidental comeccedila a se transformar As emoccedilotildees natildeo satildeo mais compreendidas apenas por uma perspectiva estoacuteica como estados necessariamente negativos e a poesia passa a ser julgada natildeo mais como uma verdade parcial incompleta imperfeita mas como um mundo de sentido pleno

394 PLATO Book X in Republic - Books 6-10 trad Paul Shorey Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 2006395 ARISTOTLE Poetics trad Stephen Halliwell Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 2005

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Todavia mesmo natildeo sendo mais considerada como inferior ao pensamento filosoacutefico haacute toda uma mentalidade uma corrente relativamente dominante que a compreende e julga como contraacuteria ao proacuteprio pensamento filosoacutefico como algo pouco racional ou puramente irracional como sendo o resultado direto de emoccedilotildees sem a mediaccedilatildeo do intelecto e como tal visando despertar no outro no ouvinte ou leitor de poesia emoccedilotildees relativamente anaacutelogas a poesia como um objeto verbal feito pela faculdade da imaginaccedilatildeo e para a faculdade da imaginaccedilatildeo e nada mais a poesia como um furor verbal e nada maisConsequumlentemente o poeta tambeacutem acaba sendo estereotipado e muito como uma idiossincrasia contraacuteria agrave do filoacutesofo como relativamente incapaz de um pensamento rigoroso e analiacutetico conceitual em se ater demoradamente no caminho da razatildeo posto cegamente entregue ao intenso mundo dos sentimentos e das emoccedilotildees das imagens

Eacute justamente contra essa mentalidade contra essa corrente que a poeacutetica de Valeacutery se insurge396 laquoEu aspiro uma arte toda fundada sobre a inteligecircnciaraquo escreve ele laquomdash isto eacute natildeo excluindo os inconscientes (o que natildeo faria sentido) mas os evocando [] segundo a ocasiatildeo e sobretudo os provocando assinalando-lhes os problemasraquo397 Sem jamais adentrar na perspectiva de Vicoatrelada a preocupaccedilotildees teoloacutegicas e a do Romantismo que na sua perspectivanatildeo raro exagera e eleva a poesia e o poeta a patamares miacuteticos e divinos ele compreende de um outro modo a arte que praticou com tanta precisatildeo e preciosismo como uma ativaccedilatildeo das potencialidades do intelecto como uma laquofesta do Intelectoraquo398 Dir-se-ia que ele concilia mdashou reconcilia posto ser legiacutetimo pensar que ldquooriginalmenterdquo havia uma unidade das esferas de sentidos e atividadesmdash a poesia e o pensamento ou nas suas proacuteprias palavras a poesia (poeacutesie) e o pensamentoabstrato399 (penseacutee abstraite) conceitual a praacutetica do poeta e a praacutetica do pensador a razatildeo e a imaginaccedilatildeo a razatildeo de Teste e a imaginaccedilatildeo de Leonardo Essa conciliaccedilatildeo mdashnatildeo distante ou mesmo complementar a da empreendida entre corpo e alma executada nos seus diaacutelogos socraacuteticosmdash estaacute sob o signo do conceito ou do ideaacuterio esteacutetico daquilo que comumente se designa com a polecircmica expressatildeo poesia pura (poeacutesie pure) E esta pode ser interpretada aqui atraveacutes dedois ideais que no fundo satildeo indissociaacuteveis o que postula aquilo que o poema deve se tornar e o que postula aquilo que o fazer o poema deve se tornar

Com relaccedilatildeo ao primeiro ideal a poeacutetica de Valeacutery natildeo deixa de ser herdeirae criacutetica de uma variada corrente de poetas e artistas aquela que iraacute determinar 396 Cf KOumlHLER Hartmut Chapitre III - La connaissance corroboreacutee par elle-meme une poeacutetique anticipeacutee in Paul Valeacutery poeacutesie et connaissance lrsquoœuvre lyrique agrave la lumiegravere des lsquoCahiersrsquo trad Colette Kowalski Klincksieck Paris 1985397 C1rsquo p 336398 Œ2 p 546399 Cf Œ1 pp 1314-1339

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em muito o destino da Modernidade literaacuteria do seacuteculo XX o Simbolismo As intensas leituras de poetas como Poe e Baudelaire Verlaine e Rimbaud e posteriormente quando jaacute morando Paris o haacutebito de frequumlentar mdashtal como W B Yeats Rainer Maria Rilke Stefan George Oscar Wilde e Andreacute Gidemdash na Rue Rome400 agraves terccedilas-feiras as soireacutees no salatildeo de seu mais querido e enigmaacutetico mestre Mallarmeacute que promovia discussotildees interminaacuteveis acerca do trabalho e do destino do mundo artiacutestico e filosoacutefico401 eis o que talvez tenha alimentado num jovem poeta da proviacutencia uma certa imagem da poesia e o ldquoencorajourdquo mdashnote-semdash natildeo agrave escritura de poemas mas a empreender reflexotildees a escreversobre o fazer poeacutetico (Haacute que se dizer que o primeiro encontro de Valeacutery com Mallarmeacute ocorreu justamente logo apoacutes o periacuteodo de crise e a Noite de Gecircnova portanto logo apoacutes a decisatildeo natildeo cumprida em abandonar a poesia mas tambeacutem logo apoacutes a decisatildeo em escrever sobre o espiacuterito)

Entretanto segundo o proacuteprio poeta402 soacute muito dificilmente o Simbolismo pode ser compreendido como uma escola Falta-lhe coerecircncia Osseus protagonistas pareciam estar trilhando caminhos proacuteprios e irredutiacuteveisexercitavam-se em invenccedilotildees e experimentaccedilotildees as mais diversas e natildeo rarodivergentes entre si Contudo se os simbolistas natildeo possuiacuteam uma esteacuteticacomum possuiacuteam uma eacutetica comum e eacute somente a partir dessa eacutetica que padrotildees e procedimentos estiliacutesticos podem ser hoje relativamente depreendidos e estudados O que os une eacute antes uma devoccedilatildeo religiosa e asceacutetica para com a poesia como exerciacutecio verbal extremo Uma devoccedilatildeo num tal grau queldquodesconsiderardquo o puacuteblico leitor a comunicaccedilatildeo clara popular frequumlentemente almejada por correntes relativamente antagocircnicas como o Realismo e o Naturalismo das quais Valeacutery sempre se distanciou Dir-se-ia que por essa eacutetica cumpre ao poeta escrever um poema sobre um objeto qualquer mas jamais revelar qual objeto eacute esse cumpre ao poeta escondecirc-lo atraveacutes do poema este se torna portanto como que o ocultamento daquilo a que se refere o siacutembolo de algo jamais dito jamais profanado jamais maculado e que ao fim pode representar para os muacuteltiplos leitores muito mais objetos do que originalmente intuiu o poeta ao compocirc-lo se realmente ele o intuiu ou se apenas o escreveu e nada mais O poeta pinta natildeo a coisa mas a sua ausecircncia o efeito que ela produz ou pode produzir e a poesia torna-se por conseguinte um artefato verbalextremamente hermeacutetico difiacutecil diante do qual o leitor eacute como que convidado a agir como uma espeacutecie de decifrador de adivinho a adivinhar o que estaacute

400 Sobre o primeiro encontro de Valeacutery com Mallarmeacute cf BERTHOLET Denis Paul Valeacutery - 1871-1945 Biographies Plon Paris p 81401 Cf LALOU Reneacute Lrsquoideacutee de poeacutesie pure em France in Deacutefense de lrsquohomme (intelligence et sensualiteacute) Sagitaire Simon Kra Paris 1926402 Cf Œ1 pp 686-706

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sempre a lhe fugir Nessa perspectiva o Simbolismo acaba se tornando como que uma incessante busca atraveacutes de diversos caminhos em representar verbalmente o que natildeo eacute passiacutevel de ser representado verbalmente algoindiziacutevel inefaacutevel Natildeo agrave toa compreender de modo geneacuterico a metaacutefora em contrapartida com a rigidez semacircntica da alegoria como o centro ou a partiacutecula uacuteltima da poesia que preze pela musicalidade pelo espiritualismo e pelo misticismo

Eacute nesse contexto que o conceito de poesia pura nasce e se desenvolve Jaacute presente nas poeacuteticas de Poe Baudelaire e Mallarmeacute403 como sendo justamente essa poesia musical espiritual e miacutestica refrataacuteria agrave interpretaccedilatildeo que parte deuma loacutegica tradicional adquire em Valeacutery mdashprincipalmente a partir de seu ceacutelebre Avant-propos agrave la Connaissance de la deacuteesse404 livro de Lucien Fabremdash forccedilateoacuterica e novos contornos Refere-se na perspectiva do que um poema deve se tornar a um afastamento a um distanciamento da prosa mais especificamente da prosa narrativa em outras palavras a poesia pura seria a realizaccedilatildeo do poemapurgado das formas prosaicas e narrativas purgado do reacutecit poema que assim ficaria reduzido simplificado a um estado puramente poeacutetico a poesia pura seria o estado de pura poesia405

Essa concepccedilatildeo claramente moderna acaba considerando consequumlentementegecircneros poeacuteticos claacutessicos como o mito a faacutebula a eacutepica e a trageacutedia poemas impuros (o que naturalmente natildeo quer dizer que tenham um valor hierarquicamente inferior) jaacute que estes satildeo tambeacutem narrativos passiveis natildeo raro de serem recontados e recontados de um outro modo Mas tambeacutempressupotildee por conseguinte a distinccedilatildeo ideal relativamente riacutegida no pensamento valeacuteryano entre prosa e poesia Em termos riacutegidos a prosa seria o discursoverbal que tende a adquirir uma significaccedilatildeo a mais uniacutevoca possiacutevel que prezamais pelo significado do que pelo som no qual elementos gratuitos entrariam em jogo e consequumlentemente quando parafraseada manteria o propoacutesito de sua mensagem a poesia ao contraacuterio seria um discurso verbal que tende a uma significaccedilatildeo a mais plural possiacutevel que preza tanto pelo significado como pelo som (e por vezes mais pelo som) no qual nenhum elemento gratuito entraria em jogo e consequumlentemente quando parafraseado deixaria de ser Para usar derecorrentes metaacuteforas a prosa eacute como uma linha ou um caminhar a poesia como um ciacuterculo ou uma danccedilar

403 Cf ZAMBRANO Mariacutea Filosofia y poesiacutea Fondo de cultura econoacutemica Meacutexico D F 1996 pp 120-121404 Cf Œ1 pp 1269-1280405 Henry Bremond em seu conhecido escrito La poeacutesie pure tambeacutem se refere ao conceito de poesia pura mas a este acrescenta ressonacircncias religiosas Apesar da confessa influecircncia simbolista Bremond apresenta portanto uma poeacutetica relativamente distinta da proposta por Valeacutery que se ateacutem sobretudo aos procedimentos formais e ao que esses procedimentos podem suscitar no espiacuterito do poeta (Cf BREMOND Henry La poeacutesie pure in CHARPIER Jacques amp SEGHERS Pierre (orgs) Lrsquoart poeacutetique Editions Seghers Paris 1956)

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Daiacute Valeacutery constantemente refletir que laquoNatildeo se pode resumir um poema como se resume um ldquouniversordquo Resumir uma tese eacute reter-lhe o essencial Resumir (ou substituir por um esquema) uma obra de arte eacute perder-lhe o essencial Vecirc-se o quanto essa circunstacircncia (se se compreender o seu alcance) torna ilusoacuteria a anaacutelise do estetaraquo406 A ceacutelebre e por vezes didaacutetica divisatildeo entre forma e conteuacutedotenderia assim a desaparecer no poema (ou na obra de arte) quando este aspira a ser poesia pura (ou na obra de arte pura) laquoNo universo liacutericoraquo continua Valeacutery laquocada instante deve consumir uma alianccedila indefiniacutevel entre o sentido e o significado Resulta daiacute que a composiccedilatildeo eacute de alguma forma contiacutenua e natildeo pode se isolar em um outro tempo que natildeo aquele da execuccedilatildeo Natildeo haacute tempo para o ldquoconteuacutedordquo e um tempo para a ldquoformardquo e a composiccedilatildeo nesse gecircnero se opotildee natildeo somente agrave desordem ou agrave desproporccedilatildeo mas tambeacutem agrave decomposiccedilatildeo Se o sentido e o som (ou se o conteuacutedo e a forma) podem ser facilmente dissociados o poema se decompotildee Consequumlecircncia fundamental as ldquoideacuteiasrdquo que aparecem em uma obra poeacutetica natildeo desempenham o mesmo papel natildeo satildeo absolutamente valores da mesma espeacutecie que as ldquoideacuteiasrdquo da prosaraquo407 Diferentemente desta o poema mdashque no fundo soacute ocorre no ato presente da leitura na relaccedilatildeo entre autor e leitor mediado pelo texto408mdash torna-se ou revela-se assim no sucessivo de suas interpretaccedilotildees uma espeacutecie de fecircnix verbal renasce em cada declamaccedilatildeo em cada leitura sempre o mesmo e sempre o outro laquonatildeo morre por ter vivido ele eacute feito expressamente para renascer de suas cinzas e vir a ser indefinidamente o que acabou de ser A poesia reconhece-se por esta propriedade ela tende a se fazer reproduzir em sua forma ela nos excita a reconstituiacute-la identicamenteraquo409 Natildeo haveria portanto um objeto uacutenico ao qual o poema estaria representando Este eacute simplesmente um resultado fruto de uma accedilatildeo de um fazer E laquose me interrogarem se se inquietarem (como acontece e agraves vezes intensamente) sobre o que eu ldquoquis dizerrdquo em tal poemaraquo diz Valeacutery numaceacutelebre e polecircmica passagem laquorespondo que natildeo quis dizer e sim quis fazer e que foi a intenccedilatildeo de fazer que quis o que eu disseraquo410 Dessarte o poema deveria ser tal como uma maacutequina Uma maacutequina a causar os mais diversos divergentes e

406 Œ1 p 1244407 Œ1 p 1505408 Cf JARRETY Michel Chapter 6 - The poetics of practice and theory in GIFFORD Paul amp STIMPSON Brian (orgs) Reading Paul Valeacutery - Universe in mind Cambridge Studies in French Cambridge University Press Cambridge 1998 pp 105-137409 Œ1 p 1331410 Œ1 p 1503 Valeacutery se repete laquoO filoacutesofo natildeo concebe facilmente que o artista passa quase indiferentemente da forma ao conteuacutedo e do conteuacutedo agrave forma que lhe ocorra um tipo de frase e que em seguida procure completaacute-la e justificaacute-la por um sentido que a ideacuteia de uma forma seja o mesmo para ele que a ideacuteia que requer uma forma Etcraquo (Œ1 p 1244) Ou ainda laquoO filoacutesofo natildeo concebe facilmente que o artista passe de maneira quase indiferente da forma ao conteuacutedo e do conteuacutedo agrave forma que lhe ocorra uma forma antes do sentido que daraacute a ela nem que a ideacuteia de uma forma seja igual para ele agrave ideacuteia que requer uma formaraquo (Œ1 p 1245)

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imprevistos efeitos poeacuteticos nos leitores as mais diversas interpretaccedilotildees usos e significaccedilotildees e como maacutequina todos os seus elementos mdashisto eacute todas as suas palavras os seus sintagmas os seus versos os seus silecircncios etcmdash devem ter uma funccedilatildeo especiacutefica dentro do sistema formal e tatildeo-somente formal que se constroacutei dentro do poema neste natildeo pode haver nada de supeacuterfluo nada de gratuito nenhum elemento poderia ser retirado ou colocado sem que com isso se prejudicasse a sua proacutepria forccedila tudo nele eacute importante Natildeo haacute detalhes na construccedilatildeo poeacutetica A poesia como sonha Mallarmeacute aspira a eliminar o acasoTudo nela aspira a ser necessaacuterio

Naturalmente assim como os conceitos de eu puro e de linguagem pura o conceito de poesia pura mdashe as distinccedilotildees que este implica entre prosa e poesia entre poema e poesiamdash constitui-se nesse sentido mais como um ideal mais como ldquopoesiardquo distinta do poema real Ideal que de algum modo guia o trabalhopoeacutetico conduz o que deve ou natildeo ser feito na escrituraccedilatildeo particular do poetaPois na realidade natildeo haacute poema que seja ou que realize plenamente a poesiapura a ldquopoesiardquo que natildeo contenha elementos prosaicos e narrativos que natildeo seja passiacutevel de ser interpretado mesmo que artificialmente em uma espeacutecie deconteuacutedo e uma espeacutecie de forma Em outras palavras um poema jamais alcanccedilaria o estado de pureza absoluta Ele seria sempre uma tentativa uma tendecircncia a esse estado Porque eacute da sua natureza ou melhor da natureza de todo espiacuterito ser capaz de analisar e decompor de recontar qualquer coisa tudo eacute passiacutevel de compreensatildeo laquoA poesia sem duacutevida natildeo eacute tatildeo livre quanto a muacutesica com relaccedilatildeo a seus meiosraquo assim escreve o poeta laquoSoacute com grande esforccedilo ela pode a seu grado ordenar as palavras as formas os objetos da prosa Se ela a isso alcanccedilar seraacute poesia pura Mas eis um nome que foi fortemente criticado Aqueles que me censuraram esqueceram que eu havia escrito que a poesia pura nada mais eacute do que um limite situado no infinito um ideal do poder de beleza da linguagem Mas eacute a direccedilatildeo que importa a tendecircncia em direccedilatildeo a obra pura Eacute importante saber que toda a poesia se orienta em direccedilatildeo a alguma poesiaabsolutaraquo411 E isso talvez seja um outro fator do porquecirc Valeacutery considerar seusproacuteprios poemas obras inacabadas e perpetuamente inacabadas a um tal ideaacuterio de poesia um poema jamais seria realmente terminado412 Ademais como

411 Œ1 pp 676-677412 Quanto ao natildeo acabamento agrave imperfeiccedilatildeo de todo poema eis uma bela passagem de Valeacutery que poderia muito bem se referir agrave escritura dos seus proacuteprios Cahiers laquoUm poema natildeo estaacute nunca acabadoraquo sempre afirma e reafirma o poeta laquoEacute sempre um acidente o que o termina isto eacute o que o daacute ao puacuteblico Satildeo a lassitude a solicitude do editor o surgir de um outro poema Mas nunca o estado mesmo da obra (se o autor natildeo eacute um imbecil) revela que esta natildeo poderia ser trabalhada modificada considerada como primeira aproximaccedilatildeo ou origem de uma nova busca Eu concebo quanto a mim que o mesmo tema e quase as mesmas palavras poderiam ser indefinidamente revisadas e ocupar toda uma vida ldquoPerfeiccedilatildeordquo eacute trabalhoraquo (Œ2 p 553)

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salientou Joatildeo Alexandre Barbosa413 haacute um descompasso significativo entre os poemas e as ldquoprescriccedilotildeesrdquo de Valeacutery dir-se-ia que ele natildeo eacute muito fiel ao que teoriza ou ao que propotildee como ideal poeacutetico Diferentemente dos radicais experimentos de Mallarmeacute (que dito de modo anacrocircnico parece ter realmente buscado praticar a poeacutetica de Valeacutery) e da revoluccedilatildeo e aceitaccedilatildeo plena do verso livre sua poesia quase sempre se revela sob as riacutegidas formas da tradiccedilatildeo claacutessicanatildeo se afasta tanto assim do reacutecit e apesar de um patente hermetismo constitui em geral numa espeacutecie de concentrado discurso filosoacutefico e criacutetico coadunando-se harmonizando-se assim com a sua ideacuteia de compreender a proacutepria filosofia como literatura414 Todavia esse descompasso natildeo parece ter muita relevacircncia jaacute que o foco de Valeacutery eacute principalmente apoacutes o seu retorno agrave poesia menos o poema e mais o processo poeacutetico ou em outros termos uma transformaccedilatildeo no espiacuterito mediante o proacuteprio processo poeacutetico

Assim com relaccedilatildeo ao segundo ideal o que postula aquilo que o fazer o poema deve se tornar a poeacutetica de Valeacutery sintoniza-se com o longo poema De arte poetica415

de Horaacutecio e com todo o espiacuterito Claacutessico (especificamente Parnasiano) mas tambeacutem e principalmente natildeo deixa de revelar-se como o resultado do seu proacuteprio programa de autoconsciecircncia O que a torna em grande medida relativamente contraacuteria a correntes literaacuterias que creditam em uma espeacutecie de origem ou fonte poeacutetica da qual brotariam como que por encanto as obras poeacuteticas tal como certas vertentes do Romantismo com sua metafiacutesica do sublime e seu ldquoemocionalismordquo tal como o Surrealismo com sua escrita automaacuteticae seus experimentos de livre associaccedilatildeo E isso se revela principalmente na criacutetica valeacuteryana agrave inspiraccedilatildeo

Categoria extremamente problemaacutetica para qualquer abordagem criacutetica mas sempre tentadora a inspiraccedilatildeo pode ser amiuacutede compreendida como um impulso uma forccedila um sopro criador proveniente de deuses e ou dos espiacuteritos como muito da Antiguumlidade costuma creditar ou do Inconsciente como a Modernidade costuma postular O poeta nesse sentido acaba se tornando no todo ou em parte um veiacuteculo uma espeacutecie de meacutedium portanto deixa de ser em grande medida o uacutenico autor da poesia que faz ou o autor consciente da poesia que faz Algueacutem que ouve ou lecirc um poema e o considera admiraacutevel e belo pode logo afirmar que o poeta a quem em geral natildeo conhece o compocircs com inspiraccedilatildeo mas isso eacute apenas uma conjetura e a palavra inspiraccedilatildeo torna-se tatildeo-somente um elogio Um elogio ambiacuteguo mesmo que natildeo se queira pois soa

413 Cf BARBOSA Joatildeo Alexandre Mallarmeacute segundo Valeacutery in A comeacutedia intelectual de Paul Valeacutery Iluminuras Satildeo Paulo 2007 pp 27-51414 Cf GIFFORD Paul PICKERING Robert amp SCHMIDT-RADEFELDT Juumlger (org) Paul Valeacutery agrave tous points de vue - Hommage agrave Judith Robinson-Valeacutery LrsquoHarmattan Paris Budapeste Turim 2003 415 Cf HORACE Ars poeacutetica trad H R Fairclough org Jeffrey Henderson Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 2005

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tambeacutem como se dissesse ldquoningueacutem seria capaz de criar um tal poema sem algum auxiacutelio exterior ningueacutem mereceria ser capazrdquo a inspiraccedilatildeo torna-se assim uma laquoatribuiccedilatildeo gratuita feita pelo leitor ao seu poeta o leitor nos oferece os meacuteritos transcendentes das forccedilas e das graccedilas que se desenvolvem nele Ele procura e encontra em noacutes a causa admiraacutevel de sua admiraccedilatildeoraquo416 Mas haacute algomais problemaacutetico esse tipo de compreensatildeo e valoraccedilatildeo da obra poeacutetica tende a desconsiderar ou ateacute mesmo a escamotear o trabalho e o esforccedilo417 elementos que natildeo raro possuem grande e secreto valor para o poeta para aquele que trabalhou e se esforccedilou Contudo haacute que se fazer justiccedila agrave poeacutetica agrave criacutetica valeacuteryana Estase instaura menos contra a existecircncia ou natildeo do fenocircmeno da inspiraccedilatildeo e maiscontra a crenccedila de que somente com esse fenocircmeno o poema se concretizaria Qualquer um pode realmente sentir-se ou crer-se inspirado qualquer um pode pelo acaso ou pelo destino ser tomado possuiacutedo por um estado criativo mas esse estado pouco ou nada resulta se natildeo houvesse trabalho e esforccedilo se natildeo houvesse previamente um saber adquirido em longas etapas um domiacutenio efetivo da linguagem verbal isto eacute dos meios materiais e convencionais disponiacuteveis para passar da intenccedilatildeo ao ato Um poeta puramente sentimental puramente romacircntico nesse sentido natildeo escreveria natildeo seria capaz de escrever nenhum poema mesmo que tivesse sido tomado pela mais intensa das inspiraccedilotildees O controle faz-se necessaacuterio o controle sobre o poder criador

Haacute um minucioso relato de Valeacutery que desmente a sua recorrente imagem como poeta que rechaccedila necessariamente a existecircncia da inspiraccedilatildeo e explicita sobremaneira essa concepccedilatildeo laquoTinha saiacutedo de casa para descansar de algum trabalho enfadonho atraveacutes da caminhada e dos olhares variados que ela atrai Enquanto ia pela rua em que moro fui tomado de repente por um ritmo que se impunha e que logo me deu a impressatildeo de um funcionamento estranho Como se algueacutem estivesse usando a minha maacutequina de viver Um outro ritmo veio entatildeo reforccedilar o primeiro combinando-se com ele e estabeleceram-se natildeo sei que leis transversais entre essas duas leis (estou explicando da maneira que posso) Isso estava combinando o movimento de minhas pernas andando e natildeo sei que canto eu murmurava ou melhor que se murmurava atraveacutes de mim Essa composiccedilatildeo se tornou cada vez mais complicada e logo ultrapassou em complexidade tudo o

416 Œ1 p 1321417 laquoComo os vestiacutegios do esforccedilo as repeticcedilotildees as correccedilotildees a quantidade de tempo os dias ruins e os desgostos desapareceram apagados pela suprema volta do espiacuterito para a sua obra algumas pessoas vendo apenas a perfeiccedilatildeo do resultado a consideraratildeo o resultado de uma espeacutecie de prodiacutegio denominado INSPIRACcedilAtildeO Fazem portanto do poeta uma espeacutecie de meacutedium momentacircneo Se focircssemos nos deleitar desenvolvendo rigorosamente a doutrina da inspiraccedilatildeo pura as consequumlecircncias seriam bem estranhas Achariacuteamos por exemplo que esse poeta que se limita a transmitir o que recebe ao comunicar a desconhecidos o que sabe do desconhecido natildeo precisa entatildeo compreender o que escreve o que lhe eacute ditado por uma voz misteriosa Ele poderia escrever poemas em uma liacutengua que ignorasseraquo (Œ1 p 1335)

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que eu podia produzir racionalmente de acordo com minhas faculdade riacutetmicas comuns e utilizaacuteveis Nesse momento a sensaccedilatildeo de estranheza da qual falei tornou-se quase penosa quase inquietante Natildeo sou muacutesico ignoro totalmente a teacutecnica musical e eis que estava preso por um desenvolvimento de diversas partes de uma complicaccedilatildeo com a qual nenhum poeta sonhou algum dia Dizia-me entatildeo que havia erro de pessoa que essa graccedila enganava-se de cabeccedila jaacute que eu nada podia fazer com esse dom mdash que em um muacutesico teria sem duacutevida tomado valor forma e duraccedilatildeo enquanto essas partes que se misturavam e desligavam-se ofereciam-me inutilmente uma produccedilatildeo cuja continuaccedilatildeo culta e organizada maravilhava e desesperava minha ignoracircnciaraquo418 A esse relato segue-se um outro mais ceacutelebre e irocircnico mas de mesmo teor laquoO grande pintor Degas muitas vezes me contou essa frase de Mallarmeacute tatildeo justa e tatildeo simples Degas agraves vezes fazia versos e deixou alguns deliciosos Mas constantemente encontrava grandes dificuldades nesse trabalho acessoacuterio de sua pintura (Aliaacutes era homem de introduzir em qualquer arte a dificuldade possiacutevel) Um dia disse a Mallarmeacute ldquoSua profissatildeo eacute infernal Natildeo consigo fazer o que quero e no entanto estou cheio de ideacuteiasrdquo E Mallarmeacute lhe respondeu ldquoAbsolutamente natildeo eacute com ideacuteias meu caro Degas que se fazem versos Eacute com palavrasraquo419 O poeta para Valeacuterysoacute pode ser soacute pode acontecer como um faber poeta natildeo como um vate poeta

Como um verdadeiro artista claacutessico ele concebe assim uma poeacutetica na qual o fazer poeacutetico natildeo atua atraveacutes do improviso e do descontrole mas atraveacutes do rigor e da disciplina o sonho e o devaneio podem ateacute fornecer e certamente fornecem elementos para o poema mas esses elementos devem ser trabalhados e trabalhados na vigiacutelia e na lucidez pois o sonho e o devaneio nada resultam se natildeo forem racionalizados Ou como diz o poeta laquoNem o sonho nem o devaneio satildeo necessariamente poeacuteticos eles podem secirc-los mas figuras formadas ao acaso somente por acaso satildeo figuras harmoniosasraquo420 Porque laquoeacute necessaacuterio estar ldquodespertordquo para expressarraquo421 porque para se passar da intenccedilatildeo agrave accedilatildeo da intenccedilatildeo ao construiacutedo eacute necessaacuterio projetar arquitetar Para o poeta portanto fazer poemas eacute sobretudo o ato de estar constantemente consciente de sua feitura e por 418 Œ1 p 1322419 Œ1 p 1324 Na sequumlecircncia Valeacutery ainda comenta laquoMallarmeacute tinha razatildeo Mas quando Degas falava de ideacuteias pensava em discursos internos ou em imagens que afinal pudessem ser exprimidas em palavras Mas essas palavras mas essas frases iacutentimas que ele chamava de suas ideacuteias todas essas intenccedilotildees e percepccedilotildees do espiacuterito mdash nada disso faz versos Haacute portanto algo mais uma modificaccedilatildeo ou natildeo que se interpotildee necessariamente entre esse pensamento produtor de ideacuteias essa atividade e essa multiplicidade de questotildees e de resoluccedilotildees internas e depois esses discursos tatildeo diferentes do discurso comum os versos extravagantemente ordenados que natildeo atendem a qualquer necessidade a natildeo ser agraves necessidades que devem ser criadas por eles mesmos que sempre falam apenas de coisas ausentes ou de coisas profunda e secretamente sentidas estranhos discursos que aprecem feitos por outro personagem que natildeo aquele que os diz e dirigir-se a outro que natildeo aquele que os escuta Em suma eacute uma linguagem dentro de uma linguagemraquo (Œ1 p 1324)420 Œ1 p 1321421 Œ1 p 881

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conseguinte um exerciacutecio especiacutefico de autoconsciecircncia no caso o exerciacutecio de natildeo se deixar manobrar pelas palavras fazer poemas eacute portanto uma ldquodesautomatismordquo verbal uma ldquodesautomatizaccedilatildeordquo da proacutepria linguagem usada laquoEacute me fazendo estas questotildees ldquoO que eu quero rdquo e ldquoO que eu posso quererrdquoraquo confessa o poeta de modo lacunar laquomdash (essas questotildees comparadas constituem o fundamento da MINHA Sabedoria) que eu orientei apoacutes [19]92 minha vida espiritual [Noite de Gecircnova] E eu entendi natildeo me deixar manobrar pela linguagem [Grifo do autor] Isso eu devo em parte ao trabalho com a poesia em suas condiccedilotildees formais agraves quais induz a tomar as palavras e as ideacuteias por suas maleabilidades materiaisraquo422 O surpreendenteeacute que para Valeacutery o trabalho a experiecircncia com a poesia tambeacutem o tenha conduzido em parte agravequilo que foi por ele compreendido como o pressuposto de qualquer meacutetodo de abordagem agrave laquolimpeza da situaccedilatildeo verbalraquo (laquonettoyage de la situation verbaleraquo) E eacute justamente nesse ponto que sua poeacutetica se entrelaccedila de modo mais veemente com sua criacutetica agrave filosofia Daiacute tambeacutem ele recomendaraos filoacutesofos423 mdashe de um modo que soa menos irocircnico do que sinceromdash se aventurarem ao trabalho poeacutetico ao fazer poesia o que de algum modoexcecircntrico incitaria colaboraria para a aquisiccedilatildeo de uma maior consciecircncia dalinguagem laquoEu gostaria de falar de filoacutesofos mdash e aos filoacutesofosraquo424 escreve um tanto solenemente laquoEu gostaria de lhes mostrar que seria infinitamente mais proveitoso praticar esta laboriosa poesia que conduz insensivelmente a estudar as combinaccedilotildees das palavras natildeo tanto pela conformidade de significaccedilotildees desses grupamentos com uma ideacuteia ou pensamento que noacutes tomamos para exprimir mas ao contraacuterio por seus efeitos uma vez formados entre aqueles que noacutes escolhemos Em geral noacutes tentamos ldquoexprimir seu pensamentordquo isto eacute passar de uma forma impura e misturada de todos os meios do espiacuterito a uma forma pura isto eacute somente verbal e organizada que se reduz a um sistema de atos ou de contrastes arranjados Mas a arte poeacutetica conduz singularmente a visar agraves formas puras nelas mesmasraquo425 laquoAcrescento (mas somente para alguns)raquo depois ainda sintetiza laquoque aquela vontade de natildeo se deixar manobrar por palavras natildeo estaacute totalmente dissociada daquilo que denominei ou acreditei denominar poesiapuraraquo426 Isso natildeo quer dizer naturalmente que os poetas todos estejam isentos de adentrar em ilusotildees gramaticais mas tatildeo somente que a praacutetica poeacutetica pode ser segundo Valeacutery auxiliar agrave ldquodesautomatizaccedilatildeordquo verbal auxiliar agrave proacutepria autoconsciecircncia

422 C1rsquo pp 181-182423 Cf DERRIDA Jaques Qual quelle - Les sources de Paul Valeacutery in Marges de la philosophie Minuit Paris 1972424 Œ1 p 1451425 Œ1 p 1451426 Œ1 p 1246

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Em Valeacutery o conceito de poesia pura adquire assim natildeo mais no ideal que postula o que o poema deve se tornar mas no ideal que postula o que o fazer o poema deve se tornar um outro uso Representa essa poesia mdashessa praacuteticamdash na qual o espiacuterito natildeo se deixaria enredar pela linguagem na qual o espiacuterito mdasho espiacuterito do poeta o espiacuterito daquele que se faz momentaneamente poetamdash seria um pensador da linguagem e como tal senhor e natildeo escravo da linguagem O espiacuterito compreenderia numa accedilatildeo num fazer o quanto as palavras esses ldquoobjetosrdquo com os quais tanto tempo convive no poema que estaacute sendo composto satildeo passiacuteveis de serem transformadas passiacuteveis de serem re-usadas ou re-significadas manipuladas distorcidas servis a este ou aquele discurso a este ou aquele contexto a balizar suas potencialidades semacircnticas o espiacuterito compreenderia portanto o quanto os problemas filosoacuteficos podem ser meros verbalismos Misteacuterios sem misteacuterios os poemas se tornamos discursos os contextos nos quais as palavras poderiam adquirir e adquirem a maior e mais inusitada variaccedilatildeo semacircntica possiacutevel os poemas se tornam os contextos nos quais em teoriatudo o que for possiacutevel fazer com as palavras seraacute feito Os poemas se tornam assim o devir daproacutepria linguagem a sua potecircncia em ato Nesse sentido a idiossincraacutetica poeacuteticavaleacuteryana revela-se toda ela natildeo como legataacuteria da lrsquoart pour lrsquoart da arte desengajada a subordinar a eacutetica agrave esteacutetica tampouco da arte engajada a subordinar a esteacutetica agrave eacutetica427 pois compreende simultaneamente a autonomia do poema como um objeto formal sujeito a muacuteltiplas e divergentes interpretaccedilotildees interpretaccedilotildees para aleacutem das intenccedilotildees do poeta mas tambeacutem postula uma certa funccedilatildeo ao fazer poeacutetico o esclarecimento daquele que o pratica Escrever poemas eacute um treino a si mesmo Todavia haacute que se dizer enfim algo oacutebvio Uma tal poeacutetica sua importacircncia seu valor eacute sempre de caraacuteter eminentemente pessoal O que natildeo poderia ser diferente jaacute que se trata meramente de uma ldquoteoria esteacuteticardquo laquoImagino sobre a essecircncia da Poesiaraquoescreve o poeta consciente disso laquoque ela tenha de acordo com as diversas naturezas dos espiacuteritos valor nulo ou importacircncia infinita o que a assemelha ao proacuteprio Deusraquo428

427 Cf ADORNO Theodor W La fonction vicariante du funambule in Notes sur la littteacuterature trad Sibylle Muller Flammarion Paris 1984428 Œ1 p 1283

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6 DIAacuteLOGOS SOCRAacuteTICOSESCOacuteLIOS

Saibam pois o que eacute a arte o meio para alguns os solitaacuterios de se auto-realizaremRainer Maria Rilke O diaacuterio de Florenccedila

61 A REINVENCcedilAtildeO DE UM GEcircNERO

O diaacutelogo (διάλογος) possui estatuto privilegiado na Antiguumlidade Eacuteconstantemente considerado como uma das formas mais adequadas para a manifestaccedilatildeo do pensamento filosoacutefico Inserido numa tradiccedilatildeo que preza pelos esforccedilos de memorizaccedilatildeo na manutenccedilatildeo dos valores da comunidade filoacutesofos como Platatildeo abrem concessatildeo agrave sua versatildeo escrita a que Sophron de Siracusa supostamente iniciou quiccedilaacute somente pela sua maior verossimilhanccedila agrave proacutepria fala agrave proacutepria oralidade Por natildeo representar o homem no jogo intelectual consigo mesmo um forte caraacuteter poliacutetico tambeacutem foi associado a esse gecircnero Atraveacutes de sua proacutepria disposiccedilatildeo formal o diaacutelogo possibilita expor diferentes opiniotildees e doutrinas num mesmo espaccedilo textual diferentes posiccedilotildees que podem muito bem se contradizer Devido a essa polifocircnica organizaccedilatildeo haacute quem diga que ele representaria consequumlentemente uma genuiacutena forma de toleracircncia Talvez haja nisso um romacircntico exagero Compreensiacutevel na medida em que se deseje identificar uma relaccedilatildeo humana que se abstenha da violecircncia e prefira ser amigaacutevel troca entre razotildees com um gecircnero literaacuterio no qual representaccedilotildees de personagens ou vozes distintas se manifestem em torno de um tema ou uma seacuterie de temas independente de serem ou natildeo partidaacuterias dos mesmos valores Pois nada impede que esse uacuteltimo represente um pensamento cristalizado intransigente pronto a cometer proselitismos

O proacuteprio Platatildeo seu pensamento natildeo deixa de ser exemplar quanto a isso Entre o respeito pela tradiccedilatildeo e o anseio pela reforma ele revela em certas passagens um caraacuteter a que muitos hoje considerariam autoritaacuterio mas que todavia cumpre ser matizado quando inserido na totalidade de sua obra Afinal o conspiacutecuo disciacutepulo de Soacutecrates nunca deixou de ser aquilo que hodiernamente denomina-se de dialeacutetico Se por um lado no Craacutetilo429 a discussatildeo sobre a natureza das palavras permanece inconclusa por outro naRepuacuteblica430 apesar das inuacutemeras digressotildees de seus participantes grande parte das reflexotildees ao fim convergem para uma espeacutecie de utopia avant-la-lettre uma forma de governo que submete os seres humanos a uma sociedade ideal de

429 Cf PLATO Cratylus IV no 167 trad Harold North Fowler org G P Goold Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 1992430 Cf PLATO Republic - Books 6-10 trad Paul Shorey Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 2006

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riacutegidas hierarquias Tomados como uma totalidade os diaacutelogos platocircnicos equilibram-se assim ambiguamente entre a sugestatildeo e a imposiccedilatildeo entre o dogma e a aporia E eacute a lendaacuteria e carismaacutetica personagem ou voz de Soacutecrates uma das causas desse processo pois amiuacutede conduz mediante desconcertantes refutaccedilotildees e perguntas seus interlocutores a um circular labirinto de volaacuteteis definiccedilotildees deixando deliberadamente muitas das respostas e conclusotildees para

um futuro que parece nunca poder se concretizar O elenkos (ἒλεγχος)

socraacutetico pode ser considerado como uma estrateacutegia de argumentaccedilatildeo negativaque parece conter a intenccedilatildeo de fazer o diaacutelogo mdasho dialogarmdash um processo virtualmente infinito Pois toda resposta pode ser negada e a ela posta um sem-nuacutemero de outras respostas referentes a uma mesma pergunta

O desenvolvimento do diaacutelogo enquanto gecircnero filosoacutefico no Ocidente eacute a partir de entatildeo influenciado pelo pensamento socraacutetico-platocircnico O Cristianismo tambeacutem dele se apropria um tanto circunstancialmente doravante jaacute como religiatildeo oficial prefere formas tradicionalmente mais vinculadas agrave interpretaccedilatildeo da doutrina como os tratados as sumas e os comentaacuterios Ceacutelebres ldquoexceccedilotildeesrdquo a essa preferecircncia podem ser encontradas nas obras de Santo Agostinho e Pedro Abelardo Todavia principalmente com o desenvolvimento do Humanismo o diaacutelogo enquanto gecircnero filosoacutefico renova forccedilas devido a enorme idealizaccedilatildeo e valorizaccedilatildeo do passado claacutessico surgem inuacutemeros imitadores de Platatildeo na Renascenccedila Quando ainda natildeo se diferenciava de todo do pensamento filosoacutefico a Ciecircncia Moderna emergente tambeacutem dele se utilizou Giordano Bruno e Galileu Galilei o praticam esteacabou no caacutercere privado aquele na fogueira Diante desse quadro histoacuterico e a partir da relaccedilatildeo entre a intenccedilatildeo de um escrito e a sua recepccedilatildeo hodierna poder-se-ia conjeturar que o diaacutelogo filosoacutefico justamente por estar associado agrave pluralidade de opiniotildees e a aceitaccedilatildeo dessa pluralidade tenderia a florescer em eacutepocas de maior liberdade de expressatildeo Assim sempre sob o quase onipresente peso do estilo platocircnico431 Descartes Leibniz Berkeley Hume Shaftsebury e Diderot tambeacutem o praticaram mas cuidadosamente entre a antiga tradiccedilatildeo metafiacutesica e o impacto da Ciecircncia Moderna Contudo frente aos pressupostos de objetividade que esta exige o diaacutelogo enquanto gecircnero filosoacuteficovem a ser considerado por vezes um modelo quase anacrocircnico relativamenteinadequado ao saber positivo Tendo em vista tambeacutem a sua diferenciaccedilatildeo das peccedilas de teatro ou daqueles que naturalmente se inserem em outros gecircneros literaacuterios ele mais raramente se sustenta na Modernidade de modo autocircnomo

431 Cf COSSUTTA Freacutedeacuteric (org) Le dialogue introduction agrave un genre philosophique Press Universitaires du Septentrion Paris 2004

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Poucos possuem o mesmo tipo de recepccedilatildeo que por exemplo um romanceum reacutecit

Prezando pela entonaccedilatildeo pela presenccedila da voz na literatura escrita Paul Valeacutery foi nas deacutecadas de 20 e 30 do seacuteculo XX um dos autores que como Alain e Claudel atualizaram e reinventaram o diaacutelogo filosoacutefico notadamente do tipo socraacutetico e de ldquoinspiraccedilatildeordquo humaniacutestica mesmo que na moderna praacutetica das formas breves432 Interessa-o sobretudo a lucidez e a plasticidade a possibilidade de contraccedilatildeo e de dilataccedilatildeo desta que considera a laquomais flexiacutevel da formas de expressatildeoraquo433 (laquola plus souple des formes drsquoexpressionraquo) interessa-o a sedutora e difiacutecil ideacuteia de suspender a presenccedila do sujeito da pessoa atraveacutes do mascaramento em personagens ou vozes diversas algo condizente com a concepccedilatildeo de literatura impessoal ou natildeo-autoral por ele almejada Alguns desconexos e truncados fragmentos sobre Mon Faust em seus Cahiersdemonstram o desejo em se apropriar desse gecircnero em sua autonomia esteacutetica laquoAssim no teatro o diaacutelogo eacute condiccedilatildeo imediata mdash e eu escrevo sem abandonar o diaacutelogo Mas mdash depois de certo uso mdash eu comeccedilo a sentir esta formaindependentemente de toda a aplicaccedilatildeo e a mim se impotildee agrave necessidade de isolar claramente de conservar formalmente sua funccedilatildeo seu lugar numa resoluccedilatildeode certa resistecircncia ou circunstacircncia e suas caracteriacutesticas funcionais completas Eu tenho entatildeo necessidade de uma ldquoideacuteiardquo ou foacutermula que me faccedila do diaacutelogo algo como uma operaccedilatildeo = O diaacutelogo eacute a operaccedilatildeo que transforma os dados por via de trocas (PR) (pergunta-resposta) entre sistemas [] nos quais a desigualdade eacute suposta O nuacutemero de variaacuteveis (desses sistemas) que entram em jogo eacute variaacutevel e define o gecircnero [] [do] diaacutelogo filosoacutefico ateacute ao mais ordinaacuterio Onde o tom etc Na base o diaacutelogo interior mdash Monoacutelogo natildeo existe mdash [] A anaacutelise do tipo diaacutelogo seraacute fecunda Como o ldquopensamentordquo tende a este tipo e natildeo eacute que aparecircncia de monoacutelogo ele seraacute elucidado por aqueleraquo434

Ou ainda laquoTodo monoacutelogo eacute um diaacutelogoraquo435

Dessarte o diaacutelogo seria como que a forma mais ldquonaturalrdquo a mais fiel ao mecanismo do proacuteprio pensamento deste tende a tornar-se um iacutecone Representa aquela divisatildeo interna e o jogo de diferenccedilas entre as partes dessa divisatildeo interna a que Valeacutery frequumlentemente alude quando se refere agrave laquoself-varianceraquo do espiacuterito Sem um outro real ou sem um outro conceitual tanto o diaacutelogo quanto o pensamento natildeo existiriam porque supostamente natildeo haveria o que dizer Seria o puro silecircncio Isso parece se materializar na forma

432 Cf MARX William The Dialogues and lsquoMon Faustrsquo the inner politics of thought in GIFFORD Paul amp STIMPSON Brian (orgs) Reading Paul Valeacutery - Universe in mind Cambridge University Press Cambridge 1998 pp 164-165433 Œ1 p 448434 C1rsquo pp 299-300435 C2rsquo p 519

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com que o proacuteprio poeta concebe as suas personagens ou vozes Estas estatildeo separadas mas num outro plano tambeacutem natildeo deixam de ser uma soacute436 Todos os seus diaacutelogos podem ser considerados como diz o emblemaacutetico tiacutetulo de um deles um Coloacutequio dentro de um ser (Colloque dans un ecirctre437) Eles natildeo se abrem diretamente para o coletivo Natildeo eacute como se o Valeacutery escritor se identificasse com apenas uma de suas personagens ou vozes a que considere a portadora da verdade e fizesse das demais portadoras do equiacutevoco natildeo eacute como se defendesse por contraste com outras ideacuteias uma ideacuteia uacutenica Eacute como se ele fosse realmente todas as suas personagens ou vozes e as possiacuteveis contradiccedilotildees e polecircmicas entre elas Contradiccedilotildees e polecircmicas que ocorrem internamente em uma uacutenica consciecircncia que se multiplica em vaacuterias para melhor ser Como diz Maurice Blanchot acerca de Valeacutery laquoSeu pensamento aspira a dialogarraquo eacute uma laquodiversidade de falas nascidas do eco de uma mesma vozraquo438

Ademais haacute uma relaccedilatildeo extremamente ambiacutegua com a tradiccedilatildeo Apesar de sua chistosa confissatildeo de pouco conhecer a Antiguumlidade a cultura grega e latina de natildeo ter sido um leitor assiacuteduo de Platatildeo considerando a influecircncia deste como laquomdash Puramente imaginaacuteriaraquo439 Valeacutery demonstra mdashsupotildee-se que em grande parte justamente por essa confessa displicecircnciamdash uma quase maliciosa engenhosidade ao escrever seus diaacutelogos socraacuteticos As referecircncias aos elementos filosoacuteficos da Antiguumlidade satildeo taacutecitas natildeo raro indiretas como que propositadamente escondidas todavia presentes para um leitor atento Ele se preocupa muito mais com uma siacutentese abstrata do objeto ou dos objetos queescolhe e analisa do que com referecircncias Nos seus escritos talvez o mais importante natildeo seja o expliacutecito mas o impliacutecito os subentendidos Seus diaacutelogossocraacuteticos satildeo paradigmas desse recorrente procedimento Natildeo deixam de serfieacuteis portanto agrave desconfianccedila de Valeacutery a essa tentativa de legitimar uma ideacuteia atraveacutes da evocaccedilatildeo de autoridades e de documentos passados de provas Como seus escritos sobre Leonardo eles dispensam um determinado tipo de rigor histoacuterico de matriz positivista e instauram-se paralelamente distante de um realismo literaacuterio direto num tempo e num espaccedilo indeterminados laquoO

436 Cf MARX William The Dialogues and lsquoMon Faustrsquo the inner politics of thought in GIFFORD Paul amp STIMPSON Brian (orgs) Reading Paul Valeacutery - Universe in mind Cambridge University Press Cambridge 1998 pp 156-159437 Cf Œ1 pp 360-366438 BLANCHOT Maurice Valeacutery et Faust in La part du Feu Nrf Gallimard 1949 p 273439 laquoEu penso que nesse assuntoraquo acrescenta Valeacutery evocando mais uma vez a sua habitual reticecircncia com relaccedilatildeo agrave Histoacuteria laquoa grandeza dos erros que noacutes cometemos sem informaccedilatildeo eacute sensivelmente a mesma do que aqueles que cometem com informaccedilatildeo Reconstituir uma certa Greacutecia com um miacutenimo de dados e convenccedilotildees homogecircneas natildeo eacute mais criticaacutevel do que reconstituir atraveacutes de uma quantidade de documentos que quanto mais numerosos mais contraditoacuteriosraquo (Cf Œ2 p 1399) Cfo programa de leituras de Valeacutery que inclui uma seacuterie de heterogecircneos autores entre eles Platatildeo in BERTHOLET Denis Paul Valeacutery - 1871-1945 Biographies Plon Paris pp 82-83

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pouco que noacutes sabemos agraves vezes eacute mais ativo e fecundo que o muitoraquo diz provocativamente laquoPois ele excita ou obriga a inventar a falta e esse produto vivo nascente eacute mais ativo mdash por vezes mais ldquoverdadeirordquo que o verdadeiro-morto Certo efeito reproduzido sem causa por inteira conservaccedilatildeo eacute menospoderoso que o efeito semelhante produzido atualmente por qualquer causa anaacuteloga O excessivamente pouco que eu sabia de Platatildeo e que obtive em dez ou quinze linhas me produziu Eupalinos mdash cf Leonardo tambeacutem e Goetheraquo440

Apesar dessas palavras confissatildeo de um escritor cioso de sua capacidade de transformar o pouco em muito Valeacutery era apreciador das formas e do proacuteprio modo de filosofar dos antigos Habituado ao uso de elementos claacutessicos em sua poesia ele contudo natildeo se esquiva de todo do canocircnico paradigma platocircnico-socraacutetico todavia o transporta mais profundamente aos padrotildees esteacuteticos da Literatura Moderna e natildeo o encara como um helenista ou um historiador preso por princiacutepio ao rigor filoloacutegico mas como um literato livre para adentrar o devaneio e a fantasia Atraveacutes do diaacutelogo socraacutetico o poeta posiciona seu pensamento como que nas antiacutepodas de seus antigos e ilustres precursores Diferentemente de grande parte da tradiccedilatildeo desenvolvida a partir de Soacutecrates e Platatildeo natildeo busca pela verdade ou por uma verdade como se esta existisse em algum lugar objetivo porque todo conceito eacute ao mesmo tempo uma limitaccedilatildeo e uma possibilidade porque todo conceito pode ter inuacutemeras definiccedilotildees variando com a perspectiva que se adote com quem o define e para quem eacute definido Assim a aporia se impotildee sobre o dogma o negativo sobre o positivo E isso se personifica no comportamento de seus personagens ou vozes aquela tentativa de convencer inculcar ou mesmo humilhar seu interlocutor em direccedilatildeo a uma determinada concepccedilatildeo sistema ou doutrina se dilui em dimensotildees ambiacuteguas haacute apenas a reflexatildeo conjunta de duas ou mais personagens ou vozes na busca de algo por vezes ainda natildeo verbalizado de

iniacutecio ainda inefaacutevel no estaacutegio em que falam A velha ironia (εἰρωνεία) por

vezes cruel instrumento pedagoacutegico eacute matizada Nesses diaacutelogos socraacuteticos a distinccedilatildeo entre quem eacute o mestre e quem eacute o disciacutepulo tende a desaparecer ou a se inverter Esvaecem-se as estruturas de poder Todos os seus personagens ou vozes aprendem todos ensaiam porque tudo eacute verdadeiramente ensaio Nenhum deles se impotildee em demasia aos demais o que naturalmente natildeo os impede de defenderem argumentos linhas de pensamento Natildeo sendo propostas doutrinaacuterias mas livres intuiccedilotildees de um pensador que natildeo se propotildee inventar teorias em sentido pleno e acabado os diaacutelogos socraacuteticos de Valeacutery tornam-se um instigante exerciacutecio de sugestotildees e de alusotildees Muitas vezes jogam com proposiccedilotildeesabstratas proacuteprias do discurso do filoacutesofo ao inveacutes de imagens concretas

440 C1rsquo p 283

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como seriam relativamente mais presentes nos devaneios de um poeta A belezaeacute a estranha e enigmaacutetica dimensatildeo que natildeo raro verdadeiramente parece ter primazia Valeacutery mdashque jamais deixou de ser um estetamdash parece se deleitar com a frase bem construiacuteda com os achados literaacuterios no fundo ele natildeo deixa de perseguir este procedimento de composiccedilatildeo no qual o conteuacutedo natildeo eacute uma dimensatildeo anterior agrave forma no qual esta natildeo raro evoca e ordena aquele O que no seu caso natildeo o impede de manter o rigor de sempre estar a respeitar a relaccedilatildeo de coerecircncia entre a representaccedilatildeo e o representado seja este real ou imaginaacuterio O estilo natildeo deve matar a precisatildeo assim como a precisatildeo natildeo deve matar o estilo um natildeo pode pesar mais que o outro Eis um lema o qual o poeta Valeacutery poderia muito bem adotar jaacute que na praacutetica o cumpria

Tudo se passa como se apoacutes um longo e aacuterduo aprendizado um desencanto o deus da razatildeo e da luz Apolo sem deixar de lado o refinamento e a coerente loacutegica de sua linguagem aprendesse a arte da prestidigitaccedilatildeo e da fantasia com o deus da embriaguez e da alegria Dioniacutesio um e outro se fundem num jogo sem fim um e outro se cumprimentam um e outro se conciliam Pelo intenso lirismo pelo aacuterduo trabalho entre som e sentido que apresentam os diaacutelogos socraacuteticos de Valeacutery podem ser facilmente considerados como ldquopoemas em prosardquo Quem os comenta quem os analisa ou os destrinccedila natildeo pode deixar de contemplar a recorrente e jaacute referida postura valeacuteryana em estetizar a filosofia Estetizaccedilatildeo que agora natildeo se apresenta apenas de modo teoacuterico mas opera na praacutetica de obras literaacuterias com tudo o que estas possam ter de excentricidades

O diaacutelogo eacute portanto um gecircnero literaacuterio privilegiado na obra de Valeacutery Encontra-se em La Soireacute avec Monsieur Teste encontra-se enquanto fragmentos em Tel quel em Mauvaises penseacutees e naturalmente em seus Cahiers encontra-se na forma de versos na hermeacutetica peccedila ldquoMon Faustrdquo - Eacutebauches e no ldquoteatro lituacutergicordquo de ambiacuteguas referecircncias claacutessicas e catoacutelicas Amphion - Meacutelodrame SeacutemiramisCantate du Narcisse e Colloque pour deux flucirctes encontra-se no ensaio epistemoloacutegico Lrsquoideacutee fixe encontra-se em Meacutelange em Colloque dans un ecirctre em nos breviacutessimos Coloacutequios Orgueil pour orgueil e Socrate et son meacutedicin Nestes dois uacuteltimos jaacute se configura uma problemaacutetica estritamente filosoacutefica Contudo o que soacutei ser aqui de interesse prioritaacuterio satildeo os seus diaacutelogos mais plenamente desenvolvidos agravequeles que correspondem seja por assentimento contraste ou inversatildeo agravedominacircncia do registro metafiacutesico no pensamento da Antiguumlidade Nesse sentido Valeacutery compotildee mdashtodavia como de haacutebito circunstancialmente e sem teacuterminomdash um conjunto de diaacutelogos socraacuteticos que podem ser para fins interpretativos estrategicamente ordenados na seguinte trajetoacuteria Lrsquoacircme et la danse pertencente ao subgecircnero do simpoacutesio refere-se a um Soacutecrates vivo todavia jaacute na dolorosa

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desconfianccedila de que o mundo eacute tatildeo-somente puro movimento e instabilidadeEupalinos - Ou lrsquoarchitecte pertencente ao subgecircnero do dialogo de mortos quiccedilaacute seu mais ceacutelebre e citado diaacutelogo refere-se em contrapartida a um Soacutecrates morto

jaacute na plena perturbaccedilatildeo de suas crenccedilas Περὶ τῶν τοῦ θεοῦ - Ou des choses

divines em puro estado de fragmento talvez o mais ambicioso e hoje o mais desconhecido de seus diaacutelogos eacute aquele que se refere aos conhecidos e aos disciacutepulos de Soacutecrates que logo apoacutes a morte do mestre permanecem em discussatildeo

Todos esses diaacutelogos representam em maior ou menor grau a reinvenccedilatildeo deste personagem Soacutecrates pela sua presenccedila ou ausecircncia em diferentes momentos e que juntamente com Leonardo e Teste pode ser compreendido como um dos emblemas maacuteximos da obra de Valeacutery mas diferentemente destes eacute mais um instrumento criacutetico e menos a personificaccedilatildeo de um ideal a ser seguido Dir-se-ia que o Soacutecrates valeacuteryano eacute humanizado tanto em comparaccedilatildeo a outras personagens suas como em comparaccedilatildeo agrave personagem histoacuterica Numa perspectiva progressista ele natildeo representaria o espiacuterito universal intelectualmenteautaacuterquico ao qual o poeta almeja se tornar representaria antes um processo um caminho a esse ideal o estaacutegio anterior ao de um Teste ou de um Leonardo Estaacutegio no qual o Soacutecrates valeacuteryano adquire consciecircncia criacutetica de sua pateacutetica condiccedilatildeo e do que deve realmente realizar ou deixar de realizar E com isso Valeacutery tambeacutem acaba por distinguir uma diferenccedila capital entre o espiacuterito da Antiguumlidade e o da Modernidade entre a completude e a incompletude

611 A DANCcedilA DE ATHIKTEcirc

Os diaacutelogos platocircnicos apesar dos seus ldquosubtiacutetulosrdquo serem diretos quanto ao tema a ser abordado satildeo em muito devido agrave aporia que os conforma um amaacutelgama de outros ora somente postos ora exaustivamente discutidos A falta de linearidade os desvios as digressotildees configuram uma estranha verossimilhanccedila com o proacuteprio pensamento que natildeo tendo que resultar em texto ou em conclusatildeo segura flana mais livremente entre os objetos que o seduzem natildeo raro de modo desordenado e confuso A inquietaccedilatildeo proacutepria da proacutepria filosofia assim se faz presente O tema central de um diaacutelogo platocircnico por mais que se tente precisar por mais que se tente aprisionaacute-lo em uma uacutenica palavra (seja esta beleza bondade justiccedila alma) natildeo eacute portanto uacutenico e preciso

De lucidez mortal ao mesmo tempo delicado e delirante Lrsquoacircme et la danse (escrito em 1921 e publicado pela primeira vez em 1923) assume esse caraacuteter digressivo ao extremo Descreve as reflexotildees ou as sensaccedilotildees de Soacutecrates e de

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seus companheiros o meacutedico Erixiacutemaco e o jovem Fedro apoacutes um farto banquete Nisso jaacute se evidencia um primeiro paralelo possiacutevel com o Simpoacutesio441

de Platatildeo no qual durante um farto banquete (natildeo agrave toa tambeacutem ser assim intitulado) o amor e a relaccedilatildeo deste com a beleza o bem e o imemorial desejo de vencer a morte satildeo postos e discutidos De um hermetismo muito mais intenso do que o habitual mesmo para os padrotildees de Valeacutery Lrsquoacircme et la dansetoca levemente essas temaacuteticas Todavia como herdeiro do evasivo estilo simbolista natildeo possui um tema central claramente definido do qual parece gravitar sem jamais revelar Configura-se sobretudo como um intrincado labirinto de frases cuja loacutegica explora a contradiccedilatildeo e o paradoxo entre tantos e tatildeo raacutepidos assuntos evocados e dissipados Suas personagens ou vozes na estaacutetica modorra em que se encontram devido agrave digestatildeo de seus estocircmagos refletem sobre uma das mais corriqueiras e necessaacuterias atividades da vida sobre aquilo que acabaram de fazer o ato mesmo de se alimentar tema sub-repticiamente presente em todo o diaacutelogo442 Soacutecrates mdashapoacutes ser ironizado por Erixiacutemaco que dele diz ser um tanto incapaz de ficar sem meditar por conseguinte de ficar sem filosofar e expressar suas ideacuteiasmdash questiona-o se laquoo homem que come eacute o mais justo dos homensraquo443 A duacutevida natildeo eacute vatilde Porque na necessidade assim como na dor e no sofrimento (por vezes atrelados agrave proacutepria necessidade) porque nos incessantes chamados do corpo no clamor da fome do frio e do calor os seres humanos independentemente de suas crenccedilas podem ser fisicamente igualados Aproveitando a oportunidade desse tema tatildeo calcado na concretude da vida Erixiacutemaco como meacutedico discursa sobre os inuacutemeros remeacutedios para o corpo contudo Soacutecrates mdashcuja tendecircncia intelectual principalmente nos diaacutelogos platocircnicos eacute como percebeu Valeacutery refletir a partir de inevitaacuteveis situaccedilotildees cotidianasmdash extrapola e polemiza dizendo que para a alma haacute somente dois

laquoA verdade e a mentira [] Natildeo se comportam entre elas como a vigiacutelia e o sono Natildeo procuras tu o despertar e a nitidez da luz quando um mau sonho te atormenta Natildeo nos ressuscita o sol em pessoa e natildeo nos fortifica a presenccedila de corpos soacutelidos mdash Mas em contrapartida natildeo eacute ao sono e aos sonhos que pedimos que dissolvam as afliccedilotildees e que suspendam as dores que nos aguilhoam no mundo do dia E assim fugimos de um para o outro

441 PLATO Symposium trad W R M Lamb org Jeffrey Henderson amp G P Goold Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 2001442 Essa proposta eacute expressa numa carta de agradecimento de Valeacutery a Lous Seacutechan em agosto de 1930 o trecho que se segue a sintetiza laquoO pensamento constante do Diaacutelogo [Lrsquoacircme et la danse] eacute fisioloacutegico mdash depois dos problemas digestivos do comeccedilo do preluacutedio ateacute a sincope final O homem eacute escravo do simpaacutetico e do [] gaacutestrico Sensaccedilotildees suntuaacuterias movimentos de luxo e pensamentos especulativos existem apenas em favor do valor da tirania da nossa vida vegetativa A danccedila eacute o tipo de escape Quanto agrave forma do conjunto eu tentei fazer do proacuteprio Diaacutelogo uma espeacutecie de baleacute no qual a Imagem e a Ideacuteia satildeo alternativamente os Corifeus O abstrato e o sensiacutevel se conduzem alternativamente e se unem enfim na vertigem Em suma eu natildeo persegui nenhum grau de rigor histoacuterico ou teacutecnico [] Eu fiz intervir livremente o que me precisou para entreter o meu Baleacute e em variar as suas figurasraquo (Œ2 p 1408 ou LQ p 190)443 Œ2 p 149

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invocando o dia no meio da noite implorando ao contraacuterio as trevas enquanto temos a luz ansiosos de saber felizes demais por ignorar procuramos no que eacute um remeacutedio ao que natildeo eacute e no que natildeo eacute um aliacutevio para o que eacute Ora o real ora a ilusatildeo nos recolhe e a alma em definitivo natildeo tem outros meios exceto o verdadeiro que eacute sua arma mdash e a mentira sua armaduraERIXIacuteMACO [] natildeo tens medo caro Soacutecrates de uma certa consequumlecircncia desse pensamento que te ocorreu [] Esta a verdade e a mentira tendem para o mesmo fim Eacute uma mesma coisa que tomando-se diversamente nos faz mentirosos ou veriacutedicos e como ora quente ora frio ora nos atacam ora nos defendem assim o verdadeiro e o falso e as vontades opostas a que se ligam SOacuteCRATES Nada mais certo Nada posso fazer Eacute a proacutepria vida que assim o quer [] Tudo ajuda a vida Erixiacutemaco para que a vida nada conclua Isto eacute concluir apenas a si mesma Natildeo eacute ela esse movimento misterioso que pelo desvio de tudo o que acontece transformou-me incessantemente em mim mesmo e que me devolve bastante raacutepido a este Soacutecrates para que eu o reencontre e que imaginando necessariamente reconhececirc-lo eu exista mdash Ela eacute uma mulher que danccedila e que deixaria de ser uma mulher divinamente se pudesse saltar ateacute as nuvens Mas como natildeo podemos ir ao infinito nem no sono nem na vigiacutelia ela de modo semelhante reconverte-se sempre a si mesma deixa de ser floco paacutessaro ideacuteia mdash de ser enfim tudo que a flauta quis que dela fosse feito pois a mesma Terra que a mandou convoca e entrega-a toda palpitante agrave sua natureza de mulher e a seu amigoraquo444

Nesse momento extremamente fecundo no qual verdade e mentira satildeo estabelecidas como conceitos entrelaccedilados dependentes um do outro e a vida eacute comparada a uma mulher que danccedila surge como que de um ato providencial e emblemaacutetico Athiktecirc com seus prodigiosos e provocativos movimentos Ela eacute imediatamente reconhecida como danccedilarina ceacutelebre considerada como a melhor entre todas ali presentes mas como qualquer outra aparentemente serve para entreter as figuras masculinas dedicadas a uma tarefa tradicionalmente masculina a especulaccedilatildeo filosoacutefica ou metafiacutesica Todavia ante a sua feminina presenccedila o diaacutelogo que rumava para dimensotildees puramente conceituais e abstratas parece entatildeo abruptamente redirecionar-se A escolha da danccedila no diaacutelogo natildeo parece ser gratuita Para Valeacutery essa atividade do corpo enquanto arte difere como a poesia da prosa de outras formas de movimento de accedilatildeo principalmente por ter seu fim em seu proacuteprio meio sua meta em seu proacuteprio meacutetodo por natildeo almejar um resultado que seja exterior a si mesma mas ao seu proacuteprio desenvolvimento445 As personagens ou vozes do

444 Œ2 pp 150-151445 laquoA maior parte de nossos movimentos voluntaacuteriosraquo escreve Valeacutery em seu ceacutelebre ensaio Degas Dance Dessin laquotem uma accedilatildeo exterior como fim alcanccedilar um lugar ou um objeto ou modificar alguma percepccedilatildeo ou sensaccedilatildeo em um ponto determinado Satildeo Tomaacutes dizia muito bem laquoPrimum in causando ultimum est in causatoraquo Atingido o objetivo terminada a atividade nosso movimento que estava inscrito na relaccedilatildeo de nosso corpo com o objeto e com nossa intenccedilatildeo cessa Sua determinaccedilatildeo continha sua exterminaccedilatildeo natildeo se podia nem concebecirc-lo nem executaacute-lo sem a presenccedila e o concurso da ideacuteia de um acontecimento que fosse seu termo [] Se penso em me dirigir da Eacutetoile ao Museu natildeo pensaria nunca que posso tambeacutem realizar meu desiacutegnio passando pelo Pantheacuteon Mas haacute outros movimentos cuja evoluccedilatildeo natildeo eacute excitada nem determinada nem possiacutevel de ser causada e concluiacuteda por nenhum objeto localizado Nenhuma coisa que alcanccedilada traga a resoluccedilatildeo desses atos Cessam apenas mediante alguma intervenccedilatildeo alheia a sua causa sua figura sua espeacutecie e em vez de estarem submetidos a condiccedilotildees de economia parecem ao contraacuterio ter a proacutepria dissipaccedilatildeo por objeto Os saltos por exemplo e as cambalhotas de uma crianccedila ou de um catildeo a caminhada pela caminhada o nado pelo nado satildeo atividades que tecircm como fim apenas modificar nosso sentimento de energia criar certo estado desse sentimento Os atos dessa classe podem e devem multiplicar-se ateacute que uma circunstacircncia completamente diversa de uma modificaccedilatildeo exterior que eles tiverem produzidos intervenha Essa circunstacircncia seraacute uma qualquer em relaccedilatildeo a eles cansaccedilo por exemplo ou convenccedilatildeoraquo Em outra passagem prossegue laquono Universo da danccedila o repouso natildeo tem lugar a imobilidade eacute coisa

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poeta parecem assim na extrema ambiguumlidade que as rege natildeo poder suportar a encantadora danccedila de Athiktecirc Danccedila que natildeo segue natildeo se submete agraves limitadas regras de um raciociacutenio pragmaacutetico a visar consequumlecircncias pragmaacuteticas que natildeo tenha um objetivo plenamente justificado e preciso Nela os filoacutesofosobservam oportunamente um verdadeiro incocircmodo um verdadeiro desafio agrave razatildeo Daiacute o Soacutecrates valeacuteryano desse diaacutelogo (como talvez fizesse a sua versatildeo platocircnica) ousar questionar a inteligecircncia da beldade querendo talvez com isso aproximaacute-la da loucura relativamente contraacuteria agrave lucidez filosoacutefica laquomdash Essa moccedila seraacute talvez uma tolaraquo perguntar-se-aacute ateacute o fim laquomdash E quem sabe que supersticcedilotildees e bagatelas formam sua alma cotidianaraquo446 O natildeo sentido dessasperguntas acaba contudo revelando-se A danccedila de Athiktecirc aqueles que a contemplam e pouco a compreendem constatam como a razatildeo o grande guia intelectual do gecircnero humano natildeo raro voltado a instrumentalizar as generalizaccedilotildees e abstraccedilotildees que executa com o objetivo de conquistar a natureza eacute particularmente deacutebil frente aos sutis e secretos desiacutegnio do corpoSeus limites satildeo configurados pelo tempo e pelo espaccedilo pela experiecircncia sensiacutevel pela materialidade pela corporeidade agrave qual se condiciona intimamente pois surge e se desenvolve a partir de uma incessante relaccedilatildeo com a proacutepria corporeidade para entatildeo buscar natildeo raro e insistentemente desta se depreender Os movimentos da razatildeo e os movimentos do corpo se condicionam mutuamente apesar do constante desejo de autonomia do primeiro com relaccedilatildeo ao segundo Fiel a esse desejo o Soacutecrates valeacuteryano discursa sobre os sonhos da proacutepria razatildeo sobre a possibilidade de compreender o que todos ali contemplam sobre a inteligibilidade das coisas e Erixiacutemaco intui que todos estejam ante algo que remete ao divino

laquoSOacuteCRATES Alma voluptuosa vecircs aqui o contraacuterio de um sonho e o acaso ausente Mas o contraacuterio de um sonho que eacute Fedro senatildeo outro sonho Um sonho de vigilacircncia e de tensatildeo que a proacutepria Razatildeo faria E que sonharia uma Razatildeo mdash Pois se uma Razatildeo sonhasse [] o sonho que ela faria natildeo haveria de ser isso que agora vemos mdash esse mundo de forccedilas exatas e de estudadas ilusotildees mdash Sonho [] inteiro penetrado de simetrias soacute ordem soacute ato e sequumlecircncia Quem sabe quais as Leis augustas sonham aqui ter tomado claras faces e concordado no desiacutegnio de manifestar aos mortais de que modo o real o irreal e o inteligiacutevel se podem fundir e combinar-se conforme o poder das MusasERIXIacuteMACO Eacute bem verdade Soacutecrates que o tesouro dessas imagens eacute inestimaacutevel Natildeo eacutes de opiniatildeo que o pensamento dos Imortais seja precisamente o que estamos vendo e que a infinidade dessas nobres semelhanccedilas as conversotildees as inversotildees as diversotildees inesgotaacuteveis que se respondem e deduzem diante de noacutes nos transportam aos conhecimentos divinosraquo447

imposta e forccedilada estado de passagem e quase violecircncia enquanto os saltos os passos contados as pontas os entrechat ou as rotaccedilotildees vertiginosas satildeo maneiras completamente naturais de ser e fazer Mas no Universo ordinaacuterio e comum os atos satildeo apenas transiccedilotildees e toda a energia que por vezes nele aplicamos soacute eacute empregada para esgotar alguma tarefa sem repeticcedilatildeo e sem regeneraccedilatildeo de si mesma pelo impulso de um corpo sobre-excitado Assim o que eacute provaacutevel em um desses Universos eacute no outro um acaso dos mais rarosraquo (Œ2 p 1172)446 Œ2 p 171447 Œ2 pp 154-155

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Natildeo se trata portanto de permanecer e discursar apenas sobre uma atividade artiacutestica especiacutefica que entatildeo se apresenta Transgredindo as significaccedilotildees da linguagem cotidiana as vozes ou personagens da Lrsquoacircme et la danse fazem da palavra danccedila mais do que um signo da danccedila transformam-naem um siacutembolo um siacutembolo divino cujo objeto se existe natildeo se revela laquoMallarmeacuteraquo o simbolista Valeacutery enigmaticamente registra laquodisse que a bailarina natildeo eacute uma mulher que danccedila pois ela natildeo eacute uma mulher e natildeo danccedilaraquo448 Fedro e Erixiacutemaco possuem assim extremas dificuldades em apreender e interpretar o suposto significado da danccedila de Athiktecirc A princiacutepio cada um de acordo com o seu temperamento procura debilmente compreendecirc-la dir-se-ia que apenas atraveacutes da mediaccedilatildeo do conceito Buscando uma ideacuteia segura e constante ldquoclara e distintardquo pretendem encerraacute-la numa definiccedilatildeo precisa como se isso fosse estritamente necessaacuterio Apesar de jaacute desconfiarem da existecircncia de outros planos de consciecircncia ainda operam portanto com a pretensa razatildeo supostamente onipotente e pura que natildeo se tranquumliliza se natildeo puder compreender se natildeo for capaz de categorizar e hierarquizar os fenocircmenos dentro de um sistema de mundo total no qual cada coisa possui seu lugar e funccedilatildeo Sempre mais idealista e impulsivo Fedro quer que ela a danccedila de Athiktecirc represente aquilo com que sonha o amor sempre mais nominalista e contido Erixiacutemaco quer que ela represente aquilo que percebe apenas um exerciacutecio do corpo

Talvez porque busque uma postura intermediaacuteria entre esses ldquoextremosrdquopossiacuteveis ou intua que tudo pode ser uma maviosa miragem a burla de algum deus oculto e brincalhatildeo Soacutecrates todavia e apesar de sua quase natural tendecircncia em inquirir sobre as profundezas do ser ou da realidade final insiste em permanecer como aquele que ainda estaacute em busca de sabedoria natildeo como aquele que jaacute a possui como um filoacutesofo natildeo como um saacutebio algueacutem que sabe apenas que nada sabe e portanto nada mais pode afirmar com absoluta certeza que faz da sua ignoracircncia uma profissatildeo de feacute e uma via Nesse momento ele eacuteretratado como o tipo ideal ao qual o Ceticismo Antigo costuma elaborar e insistir tipo que adota como poliacutetica do espiacuterito a luacutecida recusa em afirmar ou em negar o que seja a verdade para assentar-se no aacuterido universo do possiacutevel Como outrora em natildeo raros diaacutelogos de Platatildeo Soacutecrates natildeo se decide por esta ou aquela definiccedilatildeo por esta ou aquela teoria e abandona seus interlocutores com suas opiniotildees e duacutevidas Prefere suspender o juiacutezo permanecer na deleitaacutevel contemplaccedilatildeo sem julgamento sem assentimento da danccedila de Athiktecirc prefere aceitar as incessantes mudanccedilas que constituem essa danccedila e aceitar que essas incessantes mudanccedilas talvez natildeo possam ser cristalizadas por

448 Œ2 p 1173

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um conceito uacutenico e preciso mas tambeacutem talvez natildeo precisem ser cristalizadaspor um conceito uacutenico e preciso prefere aceitar que uma coisa possa receber muitos significados e significados contraditoacuterios entre si e que isso natildeo necessariamente precise ser valorado como algo negativo Mesmo considerando a danccedila de Athiktecirc um incocircmodo um desafio agrave razatildeo Soacutecrates ensaia pensar assim como depois seus amigos ensaiaratildeo que o sentido das coisas surge natildeo pela vontade exclusiva do homem no qual habita mas de uma relaccedilatildeo de uma relaccedilatildeo mdashincessantemdash entre o proacuteprio homem e as proacuteprias coisas Pois a compreensatildeo do mundo pode ocorrer natildeo apenas pelo distanciamento racional mas tambeacutem pela consciente entrega ao fluxo do proacuteprio mundo do qual a arte eacute um dos modelos mais representativos

laquoSOacuteCRATES Oacute meus amigos o que eacute verdadeiramente a danccedilaERIXIacuteMACO [] mdash Que queres de mais claro sobre a danccedila aleacutem da danccedila nela mesma []SOacuteCRATES [] Um olhar frio tomaria com facilidade por demente essa mulher bizarramente desenraizada que se arranca sem cessar da proacutepria forma [] Afinal por que tudo isso mdash Basta que a alma se fixe e faccedila uma recusa para soacute conceber a estranheza e o repulsivo dessa agitaccedilatildeo ridiacutecula Se quiseres alma tudo isso eacute absurdo []FEDRO Queres dizer amado Soacutecrates que tua razatildeo considera a danccedila como uma estrangeira cuja linguagem ela despreza cujos costumes lhe parecem inexplicaacuteveis senatildeo chocantes ou ateacute mesmo totalmente obscenosERIXIacuteMACO A razatildeo por vezes me parece ser a faculdade que nossa alma tem de nada entender de nosso corpo [Grifo do autor]FEDRO [] Athiktecirc me parecia representar o amor []ERIXIacuteMACO Fedro quer a todo custo que ela represente alguma coisaFEDRO Que pensas Soacutecrates [] Crecircs que ela representa alguma coisa SOacuteCRATES Coisa nenhuma caro Fedro Mas qualquer coisa Erixiacutemaco [] Natildeo sentis que ela eacute o ato puro das metamorfosesFEDRO [] natildeo posso ouvir-te sem acreditar em ti nem acreditar sem ter prazer em mim mesmo ao acreditar em ti Mas que a danccedila de Athiktecirc nada represente e natildeo seja acima de tudo uma imagem dos transportes e das graccedilas do amor eis o que considero quase insuportaacutevel de ouvirSOacuteCRATES Eu nada disse de tatildeo cruel ainda mdash Oacute amigos nada faccedilo aleacutem de perguntar-vos o que eacute a danccedila um e outro de voacutes parece respectivamente sabecirc-lo mas sabecirc-lo totalmente em separado Um me diz que ela eacute o que eacute e que se reduz agravequilo que nossos olhos estatildeo vendo e o outro insiste em que ela represente alguma coisa e que natildeo existe entatildeo inteiramente nela mesma mas principalmente em noacutes[Grifo do autor] Quanto a mim meus amigos minha incerteza fica intacta Meus pensamentos satildeo numerosos mdash o que nunca eacute bom sinalraquo449

Eacute certo que o proacuteprio Soacutecrates pergunta laquoo que eacute verdadeiramente a danccedilaraquo a tiacutepica pergunta filosoacutefica cuja resposta revelaria atraveacutes de umprocesso dialeacutetico a essecircncia mesma das coisas Doravante tambeacutem se recusa solenemente a respondecirc-la eacute relativamente reticente quanto agrave sua adesatildeo a esta ou aquela interpretaccedilatildeo Talvez abrace a esperanccedila de poder encontrar um meio-termo uma conciliaccedilatildeo possiacutevel entre a o ldquoromantismordquo de Fedro e o ldquopragmatismordquo de Erixiacutemaco entre o objetivismo de um e o subjetivismo do outro Contudo observando a pura metamorfose da danccedila de Athiktecirc Soacutecrates muda aparentemente de assunto e retorna agrave temaacutetica inicial do diaacutelogo Com maliacutecia ele pergunta mdashapesar de jaacute conhecer a resposta a sua respostamdash a Erixiacutemaco se haacute um remeacutedio natildeo para o corpo mas para a alma para a alma

449 Œ2 pp 161-165

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racional para o que agora surpreendentemente denomina de laquoteacutedio de viverraquo para o taedium vitae Um teacutedio que natildeo tem origem em nenhum infortuacutenio particular mas que surge da extrema lucidez ante a vida Aparentemente essa pergunta surge como um surpreendente despropoacutesito um absurdo tanto para o curso do diaacutelogo como para a visatildeo das preocupaccedilotildees tipicamente socraacuteticas laquoPara curar um mal tatildeo racional [o teacutedio de viver] [] nada de mais moacuterbido em si mesmo nada de tatildeo inimigo da natureza do que ver as coisas como elas satildeoraquo diz Erixiacutemaco

laquoUma fria e perfeita clareza eacute veneno impossiacutevel de se combater O real em estado puro paralisa o coraccedilatildeo Basta uma gota dessa linfa glacial para distender numa alma os mecanismos e as palpitaccedilotildees do desejo exterminar todas as esperanccedilas arruinar todos os deuses que estavam em nosso sangue [] A alma surge diante de si mesma como uma forma vazia e mensuraacutevel mdash Eis que as coisas tais quais satildeo se juntam se limitam e se encadeiam de modo mais rigoroso e mais fatal [] o universo natildeo pode suportar um soacute instante ser apenas o que eacute Eacute estranho pensar que aquilo que eacute o Todo natildeo possa ser suficiente a si mesmo Seu pavor de ser o que eacute fez com que criasse e pintasse mil maacutescaras para si natildeo haacute outra razatildeo para as existecircncias dos mortais Por que existem os mortais mdash Ocupam-se de conhecer [] E o que eacute conhecer mdash Eacute assumir natildeo ser o que se eacute mdash Eis entatildeo os humanos delirando e pensando introduzindo na natureza o princiacutepio dos erros sem limite e essa miriacuteade de maravilhas [] Tudo ameaccedila logo perecer e Soacutecrates em pessoa vem me pedir um medicamento para essa caso desesperado de clarividecircncia e teacutedioSOacuteCRATES [] uma vez que natildeo existe medicamento podes dizer-me ao menos que estado eacute o mais contraacuterio a esse horriacutevel estado de desengano puro lucidez assassina e nitidez inexoraacutevelERIXIacuteMACO Vejo inicialmente os deliacuterios natildeo-melancoacutelicos [] A embriaguez e a categoria das ilusotildees devidas aos vapores capitososSOacuteCRATES Bem Mas natildeo haacute formas de embriaguez que natildeo se devem ao vinhoERIXIacuteMACO Sem duacutevida O amor o oacutedio a avidez embriagam O sentimento de poderSOacuteCRATES Tudo isso daacute cor e gosto agrave vida Mas a chance de odiar ou de amar ou de adquirir grandes quantidades de bens estaacute ligada a todos os acasos do real Natildeo vecircs entatildeo Erixiacutemaco que dentre todas as formas de embriaguez a mais nobre e a mais oposta ao grande teacutedio eacute a embriaguez causada pelos atos Nossos atos e singularmente os atos que potildeem nosso corpo em agitaccedilatildeo podem nos introduzir a um estado estranho e admiraacutevel Eacute o estado mais distante desse triste estado em que haviacuteamos deixado o observador luacutecido e imoacutevel que imaginamos a poucoraquo450

Os atos os atos do corpo eis enfim o remeacutedio para o teacutedio esse laquomal tatildeo racionalraquo esse laquotriste estadoraquo A danccedila de Athiktecirc Soacutecrates a compreende como a embriaguez capaz de purificar a proacutepria razatildeo ao momentaneamente afastaacute-la do desejo por uma realidade verdadeira uniacutevoca e imoacutevel agrave qual Erixiacutemaco conjetura ser paralisante e ao aproximaacute-la da realidade sensiacutevel plural e movente

Ao fim numa espeacutecie de febre de deliacuterio miacutestico e altamente hermeacutetico pouco frequumlente em um homem racional Soacutecrates tambeacutem acaba cedendo ao exerciacutecio hermenecircutico de seus companheiros e interpreta aquilo que contempla Entretanto sua interpretaccedilatildeo daacute-se pela negativa natildeo eacute atraveacutes da definiccedilatildeo de uma palavra natildeo eacute a afirmaccedilatildeo categoacuterica de que as coisas sejam deste ou daquele modo mas simplesmente a afirmaccedilatildeo daquilo que um fenocircmeno pode suscitar pode evocar no espiacuterito em seu caso a evocaccedilatildeo poeacutetica de um vasto siacutembolo o siacutembolo da chama Ao comparar esse fenocircmeno natural ao fenocircmeno

450 Œ2 pp 167-169

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cultural da danccedila do movimento ele simplesmente considera que se tudo o que ocorre ocorre singularmente de modo uacutenico inimitaacutevel irrecuperaacutevel que ocorra entatildeo como a mais perfeita forma possiacutevel laquoCoisa divina e vivaraquo declama ferozmente Soacutecrates laquoMas o que eacute uma chama oacute amigos senatildeo o proacuteprio momento [] E uma chama natildeo eacute tambeacutem a forma intangiacutevel e orgulhosa da mais nobre destruiccedilatildeo mdash O que nunca mais aconteceraacute acontece magnificamente diante de nossos olhos mdash O que nunca mais aconteceraacute deve acontecer o mais magnificamente possiacutevel [] Mas como [o corpo] luta contra o espiacuterito Natildeo percebeis que quer vencer em velocidade e variedade a sua alma mdash Tem estranho ciuacuteme dessa liberdade e dessa ubiquumlidade que ele crecirc que o espiacuterito possui Sem duacutevida o objeto uacutenico e perpeacutetuo da alma eacute bem aquilo que natildeo existe o que foi e natildeo eacute mais o que seraacute e natildeo eacute ainda o que eacute possiacutevel o que eacute impossiacutevel mdash satildeo bem esses os assuntos da alma mas nunca nunca aquilo que eacute E o corpo que eacute o que eacute eis que natildeo pode mais se conter na extensatildeo mdash Onde ficar mdash Que mudar mdash Essa unidade aspira ao papel do Todo Quer representar a universalidade da alma Quer remediar sua identidade pelo nuacutemero de seus atos Sendo coisa explode em acontecimentos mdash Exalta-se [] Essa mulher que ali estava foi devorada por figuras inumeraacuteveis Esse corpo em seus rompantes me propotildee um pensamento extremo assim como abandonamos nossa alma a muitas coisas para as quais ela natildeo eacute feita e lhes exigimos que nos esclareccedila que profetize que adivinhe o futuro encarregando-a ateacute de descobrir o Deus mdash assim o corpo que ali estaacute quer atingir uma posse completa de si mesmo e um grau sobrenatural de gloacuteria Mas acontece-lhe o mesmo do que com a alma para qual o Deus e a sabedoria e a profundeza que lhes satildeo exigidas natildeo satildeo e natildeo podem ser senatildeo momentos vislumbres fragmentos de um tempo estrangeiro saltos desesperados para aleacutem de sua formaraquo451 Todavia natildeo eacute de Soacutecrates mas de Athiktecirc providencialmente calada durante toda a danccedila a derradeira palavra laquoAsilo asilo oacute meu asilo Turbilhatildeoraquo ela grita laquomdash Eu estava em ti oacute movimento e fora de todas as coisasraquo452 Natildeo eacute sem motivo que etimologicamente a palavra athiktecirc

(ldquoἄθικτήrdquo) variaccedilatildeo proveniente do grego antigo ἄθικτος refira-se natildeo

apenas agrave casta e agrave virgem mas tambeacutem ldquoagrave intocadardquo ldquoao que natildeo se deve ou natildeo se eacute capaz de tocar por ser sagradordquo Seraacute ela tambeacutem uma sacerdotisa

O diaacutelogo Lrsquoacircme et la danse revela-se assim uma espeacutecie de polifocircnico discurso a versar natildeo apenas sobre a fixidez das formas mas principalmentesobre as variaccedilotildees das formas que incessantemente o espiacuterito a consciecircncia vecirc nascer e morrer num processo que parece natildeo ter fim No digressivo labirinto de

451 Œ2 pp 171-172452 Œ2 p 176

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seu texto haacute uma relaccedilatildeo relativamente simeacutetrica entre a alma atenta ao tempo passado e futuro como siacutembolo da busca pelo que haacute de uno constante

permanente eterno e racional da busca por algum Ser (τὸ ὄν) e a danccedila atenta ao

tempo presente como siacutembolo da entrega ao que haacute de muacuteltiplo inconstante

impermanente temporal e irracional da entrega ao Devir (γίγνεσθαι) Sobre a

intensa relaccedilatildeo de todos esses poderosos pares de conceitos assim polarizados conta-se que Platatildeo mdashque fora disciacutepulo de Craacutetilo que por sua vez fora disciacutepulo de Heraacuteclitomdash professou a princiacutepio a doutrina heraclitiana domovimento substancial e somente depois apoacutes encontrar Soacutecrates acabou tambeacutem por aceitar a ideacuteia da existecircncia de um substrato eterno e imutaacutevel fundindo em sua filosofia tambeacutem o pensamento ldquoimobilistardquo de Parmecircnides Dir-se-ia ainda um tanto excessiva e esquematicamente que parte da Histoacuteria da Filosofia Ocidental a partir de entatildeo pode ser tambeacutem compreendida como um embate uma luta constante e sem teacutermino aparente entre todos esses pares de conceitos polarizados e a todos as outras polaridades que eles evocam atraem e repelem O diaacutelogo Lrsquoacircme et la danse natildeo deixa de ser herdeiro desse embate dessa luta Demonstra atraveacutes desse Soacutecrates valeacuteryano que a alma e a danccedila (ou o corpo que danccedila) talvez aspirem a realizar uma mesma meta imanente a ambos e em ambos designada por expressotildees distintas respectivamente laquodescobrir o Deusraquo ou laquouma posse completa de si mesmoraquo Todavia isso eacute apenas um desejo um ideal pois a alma parece ser incapaz de alcanccedilar algo aleacutem dos fenocircmenos e a danccedila parece ser incapaz de alcanccedilar a sua proacutepria perfeiccedilatildeo Ser torna-se apenas a aspiraccedilatildeo de ser Portanto haacute que se aceitar o Devir o movimento entregar-se a ele ao fluxo incessante do mundo agraves passagens O que conduz agrave seguinte questatildeopor que deveria haver portanto um antagonismo necessaacuterio entre o compreender e o criar entre o filoacutesofo que se distancia das coisas e do corpo e o artista que se entrega agraves coisas e ao corpo Essa questatildeo em grande parte presente no pensamento de Valeacutery eacute esboccedilada nesse diaacutelogo de vivos Lrsquoacircme et la danse mas plenamente desenvolvida no Eupalinos no qual a ldquoverdaderdquo eacute revelada agravequeles que dialogam no qual o teacutedio referido por Soacutecrates se evidencia de modo inevitaacutevel e atroz no qual o foco recai justamente sobre a alma e o corpo na medida em que se trata de um diaacutelogo de mortos

612 NO MUNDO DOS MORTOS

A morte eacute tradicionalmente um dos fenocircmenos naturais que mais instigam agrave reflexatildeo e agrave imaginaccedilatildeo humanas Com frequumlecircncia o medo eacute a ela associado Muitos tendem a encaraacute-la natildeo como um processo contiacutenuo e imanente agrave proacutepria vida mas como oposta a ela como um momento uacutenico a

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findar a existecircncia ou como uma cesura a separar duas modalidades da existecircncia a do corpo pereciacutevel limitado no tempo e no espaccedilo e a da almaque perdura em alguma outra dimensatildeo A partir dessa crenccedila mais ou menos generalizada mais ou menos dominante jaacute foi dito que se natildeo a totalidade ao menos a grande parte das metafiacutesicas (ou grande parte delas das que se mesclam com um pensamento mais estritamente religioso) seriam oriundas consciente ou inconscientemente de uma reflexatildeo sobre a morte ou sobre o apoacutes a morte o que pressuporia em natildeo raros casos uma reflexatildeo paralela sobre a assim considerada brevidade da vida e sobre o destino da alma sobre a finitude humana mesmo que tais metafiacutesicas a isso natildeo se referissem direta ou explicitamente Basta lembrar dos espirituosos ditos de um Ciacutecero e de um Michel de Montaigne amiuacutede voltados a refletir sobre a melhor forma de se viver Dir-se-ia natildeo sem ironia que por serem mortais os homens filosofam deuses imortais por definiccedilatildeo natildeo necessitariam de filosofia

Num dos seus mais ceacutelebres mitos imagem cujo padratildeo eacute surpreendentemente mais ou menos recorrente em outras culturas e temporalidades Platatildeo tambeacutem reflete sobre a existecircncia do e no ldquomundo dos

mortosrdquo Em seu diaacutelogo Fedro ele imagina um lugar supra-celeste (τόπος ὑπερουράνιος) que laquonenhum poeta cantou nem jamais cantaraacute

dignamenteraquo453 e onde a alma tanto dos homens quanto dos deuses eacute comparada a um carro alado composto por um cocheiro representante da razatildeo e por dois cavalos ambos doacuteceis no caso da alma dos deuses um doacutecil e o outro indoacutecil no caso da alma dos homens Numa eterna cavalgada a alma dos homens ao contraacuterio da alma dos deuses eacute aquela que naturalmente natildeo conseguiria manter por muito tempo o equiliacutebrio Daiacute a queda daiacute as sucessivasreencarnaccedilotildees no ldquomundo dos vivosrdquo e tudo o que adveacutem ao se ter um corpo pereciacutevel que nasce cresce e envelhece Em seu estado original ou natural a alma dos homens tambeacutem seria capaz de contemplar de acordo com o seu maior ou menor grau de pureza uma maior ou menor quantidade destes ldquoentes

eternosrdquo natildeo sujeitos ao devir do mundo sensiacutevel material as Ideacuteias (εἶδος)

formas modelos ou arqueacutetipos regras ou leis ldquosobretudordquo dos objetosmatemaacuteticos e dos objetos de valores (como o belo o bom o justo etc)454

453 PLATO Phaedrus I no 36 trad Harold North Fowler org Jefrey Henderson Harvard University Press Loeb Classical Library Cambridge amp London 2005 247 C-D sect 27 p 475454 Note-se que o conceito de Ideacuteia em Platatildeo natildeo eacute tatildeo determinado No diaacutelogo Parmecircnides por exemplo lecirc-se que os objetos dos quais haacute certamente participaccedilatildeo nas Ideacuteias satildeo os objetos matemaacuteticos e os objetos de valor (o belo o bom o justo etc) quanto aos objetos sensiacuteveis materiais como o homem o fogo a aacutegua etc existe duacutevida se possuem participaccedilatildeo nas Ideacuteias quanto a outros objetos sensiacuteveis materiais desprovidos de valor como o cabelo a lama a sujeira etc estes certamente natildeo possuem participaccedilatildeo nas Ideacuteias (Cf PLATO Parmenides trad Harold North Fowler org Jefrey

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Quando entretanto envolta por um corpo a alma perceberia apenas as coisassensiacuteveis materiais com exceccedilatildeo daquela que se dedicasse agrave filosofia capaz ao menos de ter um certo vislumbre das Ideacuteias O que insinuaria certa relaccedilatildeo certo ponto de contato certa participaccedilatildeo entre o ldquomundo dos mortosrdquo e o ldquomundo dos vivosrdquo455 Supotildee-se que depois da morte o homem voltando a ser somente alma voltando a ser aquilo que sempre foi poderaacute novamente contemplar aquilo que em vida natildeo era tatildeo capaz456

Toda essa cosmovisatildeo poderia facilmente sugerir a escrituraccedilatildeo de um diaacutelogo de mortos Influenciado por Menippus de Gadara (seacuteculo III aC) o aventureiro semita Luciano de Samoacutesata (seacuteculo II dC) escreve entre tantas obras o seu ceacutelebre Diaacutelogo dos Mortos457 e lega uma influecircncia natildeo menos proveitosa para o seacuteculo XVI francecircs com seus inuacutemeros personagens homens heroacuteis e deuses a satirizar a fama a gloacuteria e a vaidade dos homens No seacuteculo XVII o cartesiano Bernard le Bouvier de Fontenelle e o ceacutelebre arcebispo de Combrai Franccedilois de Salignac de la Mothe-Feacutenelon tambeacutem publicam as suas versotildees

Contudo talvez tenha sido Valeacutery o autor que realmente explorou de modo expliacutecito essa rica possibilidade formal descrevendo a imaginaacuteria aventura intelectual e memorialista de um Soacutecrates e de um Fedro ambos desencarnados ante um estranho mundo natildeo-sensiacutevel natildeo-material No seu ceacutelebre Dialogues des morts o Eupalinos458 (1921) ele natildeo se questiona estrategicamente sobre o porquecirc do fenocircmeno da morte pois a morte laquoessa aventura extraordinaacuteria essa modificaccedilatildeo maacutegica essa coisa incriacutevel que acontece a todos os outros enquanto eles satildeo outrosraquo459 laquonatildeo julga a vida Natildeo eacute objeto da vidaraquo460 Tampouco em momento algum refere-se a uma feacuterrica loacutegica de recompensas e de puniccedilotildees a qualquer tipo de salvaccedilatildeo ou perdiccedilatildeo que supostamente a alma estaria sujeita como frequumlentemente ocorre nos grandes sistemas religiosos do

Henderson Harvard University Press Loeb Classical Library Cambridge amp London 2002 130 A-E pp 208-213)455 Cf PLATO Phaedrus I no 36 trad Harold North Fowler org Jefrey Henderson Harvard University Press Loeb Classical Library Cambridge amp London 2005456 Cf PLATO Phaedo I no 36 trad Harold North Fowler org Jefrey Henderson Harvard University Press Loeb Classical Library Cambridge amp London 2005457 Cf LUCIAN Dialog of the dead VII no 431 trad M D Macleod org G P Goold Harvard University Press Loeb Classical Library Cambridge amp London 1992 pp 1-175458 O proacuteprio Valeacutery numa carta a Paul Souday historia como veio a escrever esse diaacutelogo de circunstacircncia laquoEu recebi a comissatildeo de escrever um texto para o aacutelbum Architectures que eacute uma coleccedilatildeo de gravuras e de plantas Esse texto que deveria ser magnificamente impresso in-folio e exatamente ajustado agrave decoraccedilatildeo e agrave paginaccedilatildeo da obra pediram-me para lhe dar um tamanho exato de 115800 palavras 115800 caracteres Eacute verdade que eram caracteres suntuosos Eu aceitei Meu diaacutelogo entatildeo foi muito longo Eu o diminuiacute e depois um pouco mais curto mdash eu o aumentei Acabai por considerar essas exigecircncias muito interessantes Mas eacute possiacutevel que o texto mesmo tenha sofrido um poucoraquo (Œ1 p 1401 ou LQ p 147)459 Π 1925-1925 Texte 28 (X 657)460 Π 1921-1922 Texte 11 (VIII 471)

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Ocidente Natildeo haacute a faacutecil evocaccedilatildeo de uma doutrina que julgue o ser humano pondo minuciosamente numa balanccedila os viacutecios e as virtudes as intenccedilotildees e as accedilotildees que possa ter cometido ou deixado de cometer em vida para entatildeo marcar a sua pertenccedila na eternidade O poeta purga seu diaacutelogo desse tipo de polecircmica religiosa e de qualquer tentativa de promulgar uma soteriologia uma moral

Escrito como diz a sua calorosa epiacutegrafe simplesmente laquoPara agradarraquo (laquoΠρός χάρινraquo461) e natildeo para doutrinar o Eupalinos natildeo deixa de ser uma poderosa

representaccedilatildeo de um pensamento sobre a vida e para a vida esta eacute o que verdadeiramente importa esta eacute o que parece ser sub-repticiamente a meta capital de todo esse diaacutelogo

A princiacutepio o fiel disciacutepulo busca o seu querido mestre que como habitualmente fazia em vida havia se isolado agora natildeo dos outros vivos mas dos outros mortos nas laquofronteiras deste impeacuterio transparenteraquo462 para perder-se em si mesmo Questionado por Fedro sobre o que estaacute pensando Soacutecrates daacute o insoacutelito tom de todo o diaacutelogo laquoEspera Natildeo posso responder Bem sabes que nos mortos a reflexatildeo eacute indivisiacutevel Estamos agora muito simplificados para que uma ideacuteia natildeo nos absorva ateacute o final de seu curso Os viventes tecircm um corpo que lhes permite sair do conhecimento e neles reentrar Satildeo feitos de uma casa e de uma abelharaquo463 Doravante como bons gregos que se comprazem em tudo discutir eles procuram friamente avaliar a nova e estranha condiccedilatildeo na qual se encontram O mundo percebido pelos sentidos o mundo dos vivos por mais caoacutetico que possa agraves vezes parecer ou ser assim considerado natildeo deixa de ter uma ordenada heterogeneidade de ldquocoresrdquo e ldquoformasrdquo haacute uma loacutegica talvez natildeo nele mas que dele pode ser depreendido Essa propriedade e a contiacutenua apariccedilatildeo e desapariccedilatildeo de fenocircmenos que a razatildeo avalia como semelhantes ou diferentes permitem o prodigioso desenvolvimento mesmo da linguagem e da ciecircncia jaacute que estas se assentam em regularidades Dir-se-ia que esse mundo natildeo eacute um caos uma desordem mas um cosmos uma ordem O ser humano qualquer um pode nele mdashe ao fazer parte delemdash distinguir um objeto do outro pode nomeaacute-lo e passar esse nome agraves geraccedilotildees futuras na relativa esperanccedila que os objetos continuem mais ou menos como satildeo pode observar onde esta paacutegina comeccedila e termina e assim reconhececirc-la e chamaacute-la de paacutegina assim como tambeacutem pode distinguir o tamanho ou a extensatildeo de seu corpo mediante a diferenciaccedilatildeo de outros corpos que isto eacute sua matildeo e isto a pena que sua matildeo segura e com a qual escreve

461 Œ2 p 79462 Œ2 p 79463 Œ2 p 79

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Em seu comportamento o mundo dos mortos descrito e induzido por Valeacutery contrasta enormemente com um assim posto mundo dos vivos a princiacutepio natildeo se distancia em muito do que segundo o proacuteprio Soacutecrates de Platatildeo deve ser laquoa realidade que eacute verdadeiramente sem cor sem forma impalpaacutevel e que soacute pode ser contemplada pela razatildeo piloto da almaraquo464 Contudo diferentemente do que essa razatildeo possa habitualmente conjeturar eacute um lugar esteacuteril sem referecircncias fluido em demasia Os mortos satildeo assim incapazes de precisar os contrastes e os limites de distinguir onde ou quando uma coisa termina e outra comeccedila consequumlentemente descrevecirc-las nomeaacute-las torna-se quase impossiacutevel Capturados por essa celerada realidade Soacutecrates e Fedro estatildeo como que impedidos de retirar do que percebem representaccedilotildees fixas e portanto generalizaccedilotildees das quais se possa novamente especular Inventar uma nova linguagem e uma nova ciecircncia uma nova filosofia fazer teorias a partir desse mundo tais tarefas seriam como que impossiacuteveis e ingratas jaacute que a linguagem e a ciecircncia e mesmo a filosofia satildeo ao menos em seus movimentos iniciais derivadas da incessante relaccedilatildeo com os fenocircmenos sensiacuteveis materiais derivadas da experiecircncia Porque nesse imortal mundo onde as almas aportam tudo eacute pura passagem tempo sem mateacuteria tempo mdashparadoxalmentemdash sem espaccedilo

laquoFEDRO Comeccedilo a enxergar algo Mas nada distingo Meus olhos por instantes seguem tudo o que passa e o que deriva mas perdem-se antes de ter discernido Se eu natildeo estivesse morto ficaria nauseado com esse movimento tatildeo triste e irresistiacutevel Ou entatildeo sentir-me-ia constrangido a imitaacute-lo agrave maneira dos corpos humanos adormeceria para tambeacutem fluir []FEDRO Creio a cada momento que vou discernir alguma forma mas o que acreditei ver natildeo desperta em meu espiacuterito a menor similitudeSOacuteCRATES Eacute que assistes [] ao verdadeiro fluir dos seres Desta margem tatildeo pura vemos todas as coisas humanas e as formas naturais movidas segundo a velocidade proacutepria de sua essecircncia Somos como o sonhador em cujo seio figuras e pensamentos bizarramente alterados pela proacutepria fuga os seres se compotildeem com suas mudanccedilas Aqui tudo eacute indiferente e no entanto tudo importa Os crimes engendram imensos benefiacutecios e as maiores virtudes desencadeiam consequumlecircncias funestas o julgamento natildeo se fixa em parte alguma a ideacuteia faz-se sensaccedilatildeo sob o olhar e cada homem arrasta consigo uma sucessatildeo de monstros inextrincavelmente surgidos de seus atos e das formas sucessivas de seu corpo Penso na presenccedila e nos haacutebitos dos mortais nesse curso tatildeo fluido e que estive entre eles tratando de ver todas as coisas como as vejo precisamente agora Eu colocava a Sabedoria na postura eterna em que estamos Mas daqui tudo eacute irreconheciacutevel A verdade estaacute diante de noacutes e natildeo compreendemos mais nadaraquo465

A verdade (ἀληθής) natildeo a pragmaacutetica natildeo a postulada pela correta

relaccedilatildeo entre proposiccedilatildeo e representado como adaequatio intellectus et rei mas a ontoloacutegica enquanto descobrimento ou desvelamento daquilo que estaacute oculto enquanto passagem do sensiacutevel para o inteligiacutevel enquanto abertura para o real o homem que eacute capaz de reconhececirc-la torna-se incapaz de compreendecirc-la a verdade miseravelmente pouco ou de nada lhes serve Eis assim que se

464 PLATO Phaedrus I no 36 trad Harold North Fowler org Jefrey Henderson Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 2005 247C-D sect27 pp 474-475465 Œ2 pp 80-81

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configura a elegante e capital ironia de Valeacutery e a partir da qual o seu diaacutelogo de mortos se desenvolve as almas errantes de Fedro e de Soacutecrates natildeo encontram mdashpara grande espanto de ambos os filoacutesofosmdash algo que poderiam dizer com convicccedilatildeo serem as Ideacuteias466 nenhum arqueacutetipo nenhuma hierarquia celeste nenhuma entidade eterna e nenhum Demiurgo os aguardavam a eles que buscaram em vida caminhar na retidatildeo da justiccedila e da virtude tampouco ocorre nenhum julgamento das almas como jaacute no Fedro se anuncia Nada daquilo que foi ldquoutopicamenterdquo prometido por uma doutrina que eles mesmos (ou Platatildeo) desenvolveram (ou reinventaram a partir da experiecircncia com a tradiccedilatildeo religiosa grega) no exerciacutecio especulativo de seus diaacutelogos terrenos ali se encontra Naturalmente tampouco a mateacuteria as coisas ou os fenocircmenos mdashos simulacros imperfeitos das Ideacuteiasmdash Nesse estranho e conjetural mundo dos mortos a essecircncia eacute movente e natildeo estaacutetica excessivamente movente a ponto de a tudo liquidar ou transformar o que em vida se considerava bom em morte pode ser considerado mal os opostos se misturam ou se invertem

Aqui evidencia-se que o diaacutelogo Eupalinos propositadamente ou natildeo dialoga com os diaacutelogos platocircnicos mais precisamente com o proacuteprio Fedro Neste agraves margens do rio Ilisso em meio a uma caminhada procurando responder a quem se deve agradar discutindo sobre a beleza e o amor Soacutecrates conta a um jovem Fedro justamente o mito da alma como carro alado e uma das versotildees da sua Teoria das Ideacuteias naquele no mundo dos mortos eacute Fedro que agora conta a Soacutecrates suas justificadas desconfianccedilas para com as reais vantagens que uma alma totalmente liberta do corpo venha a ter e consequumlentemente seus sentimentos para com a proacutepria noccedilatildeo daquilo que venha a ser realmente o polivalente conceito de Ideacuteia particularmente o da

Ideacuteia do Belo (κάλος) mdashagrave qual o Soacutecrates valeacuteryano e Eupalinos perseguemmdash

Como um ousado aprendiz que honra seu mestre ao contradizecirc-lo ao refutaacute-lo ele a questiona e a transforma passa a natildeo (mais) acreditar Nela comorealidade em si Onde o Belo se encontra se natildeo haacute objetos sensiacuteveis dos quais se possa dizer que satildeo ou natildeo verdadeiramente belos A beleza eacute sempre inexoravelmente transitoacuteria a beleza eacute portanto para manter-se no registro do espiacuterito antigo uma condiccedilatildeo possiacutevel daquilo que natildeo eacute Ela soacute poderia ocorrer na vida natildeo na morte na mateacuteria natildeo no espiacuterito no que passa natildeo no que fica em tudo o que eacute ldquoirrealrdquo A Beleza deriva das belas coisas O seu conceito como qualquer outro que natildeo tenha como ser mesurado ou quantificado como qualquer outro qualificativo e abstraccedilatildeo natildeo eacute objetivo condiciona-se agraves subjetividades e agraves culturas aos interesses (conscientes ou inconscientes) daqueles que o professam ao modo como determinados padrotildees

466 Sobre a Teoria das Ideacuteias em Paul Valeacutery cf C1rsquo pp 545 622 e 624 cf C2rsquo pp 954 e 1361

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formais satildeo valorados Porque todo conceito deriva de uma experiecircncia sensiacutevel de um choque entre um eu e um natildeo-eu E a beleza mdashque tantas discussotildees suscitamdash a isso natildeo foge

laquoFEDRO [] O que haacute de mais belo natildeo figura no eterno [] Nada de belo eacute separaacutevel da vida e vida eacute o que morreSOacuteCRATES Eacute possiacutevel dizecirc-lo desse modo Mas a maior parte dos homens tem da beleza uma noccedilatildeo imortalFEDRO Eu te direi Soacutecrates que a beleza segundo o Fedro que eu fuiSOacuteCRATES Platatildeo natildeo estaacute nessas paragens FEDRO Falo contra eleSOacuteCRATES Pois bem falaFEDRO natildeo reside em certos raros objetos nem mesmo nesses modelos situados fora da natureza e contemplados pelas almas mais nobres como exemplares de seus desenhos e os tipos secretos de seus trabalhos coisas sagradas e das quais conviria falar com as proacuteprias palavras do poeta

Gloacuteria do longo desejo Ideacuteias [Gloire du long deacutesir Ideacutees]SOacuteCRATES Qual poetaFEDRO O admirabiliacutessimo Stephanos467 que apareceu tantos seacuteculos depois de noacutes Mas em meu sentimento a ideacuteia dessas Ideacuteias das quais nosso maravilhoso Platatildeo eacute o pai eacute excessivamente simples e tambeacutem pura demais para explicar a diversidade das Belezas a mudanccedila das preferecircncias dos homens o esquecimento de tantas obras que haviam sido elevadas agraves nuvens as criaccedilotildees novas e as ressurreiccedilotildees impossiacuteveis de prever Haacute muitas outras objeccedilotildeesraquo468

A partir dessa proposta de discurso apoacutes o espanto Soacutecrates e Fedro refletem e divagam sobre algo mais especiacutefico em que o conceito mesmo de beleza costuma ser atrelado sobre a arte e os procedimentos artiacutesticos sobre a accedilatildeo o fazer a arte de um distanciado amigo de Fedro o enigmaacutetico arquiteto Eupalinos de Meacutegara469 a quem Soacutecrates desconhecia e para quem ao fim acaba rendendohomenagens Na eternidade na qual se encontram restam a eles apenas a rememoraccedilatildeo e a conversa resta a eles talvez esta atividade que reduzida agrave sua maacutexima simplicidade soacute necessita de consciecircncia e de memoacuteria das experiecircncias que natildeo podem mais se repetir a filosofia que agora adquire um caraacuteter de consolaccedilatildeo Visionaacuterios de um passado a ser revistado continuamente eles acabam trocando pensamentos quase melancoacutelicos como anjos que se debruccedilam sobre a preocupada cabeccedila dos imortais suas vozes natildeo versam mais sobre o Ceacuteu e o incondicionado mas sobre a Terra e o condicionado No mundo dos mortos os mortos se voltam para o mundo dos vivos

Assim da colocaccedilatildeo do Fedro valeacuteryano mdashmais malicioso do que o singelo que se apresenta na versatildeo platocircnicamdash de querer falar contra Platatildeo inicia-se 467 Valeacutery refere-se a Steacutephane Mallarmeacute deste o verso citado pertence ao poema Prose (pour des Esseintes) publicado pela primeira vez na La Revue indeacutependante em 1885 (Cf MALLARMEacute Steacutephane Œuvres complegravetes I Gallimard Bibliothegraveque de la Peacuteiade Paris 1998 pp 28-30)468 Œ2 pp 87-88469 laquoO nome de Eupalinos eu o adquiriraquo revela Valeacutery laquoquando procurava o nome de um arquiteto na Encyclopeacutedie Berthelot no artigo ldquoArquiteturardquo Aprendi depois por um trabalho do saacutebio helenista Bidez (de Grand) que Eupalinos mais engenheiro do que arquiteto cavou canais e construiu poucos templos eu o emprestei minhas ideacuteias como o fiz com Soacutecrates e Fedro Ademais eu nunca estive na Greacutecia e quanto ao grego eu sou infelizmente limitado um escolar dos mais mediacuteocres que se apega ao original de Platatildeo e o encontra nas traduccedilotildees terrivelmente longo e por vezes aborrecidoraquo (Œ2p 1402 ou LQ p 215)

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uma engenhosa criacutetica agrave antiga metafiacutesica idealista Essa criacutetica pode ser enunciada em siacutentese pelo seguinte paralelo se os diaacutelogos platocircnico-socraacuteticos tecircm na pluralidade dos seus interesses e contradiccedilotildees como uma das metas centrais a descriccedilatildeo o elogio e a promulgaccedilatildeo do Mundo das Ideacuteias daquilo que eacute impereciacutevel imutaacutevel os breves diaacutelogos socraacuteticos de Valeacutery mdashdo qual o Eupalinospode ser compreendido como a sua versatildeo mais acabada e completa aquele que cumpre essa concepccedilatildeo com mais vigormdash referem-se quase vinte quatro seacuteculos depois apoacutes a secularizaccedilatildeo de grande parte da civilizaccedilatildeo e o advento da Ciecircncia Moderna ao Mundo dos Fenocircmenos daquilo que eacute pereciacutevel mutaacutevel se uns se atecircm agrave realidade espiritual os outros se atecircm agrave realidade material Dir-se-ia talvez um tanto excessivamente que os uacuteltimos situam-se apesar de suas despretensiosas brevidades nas antiacutepodas dos primeiros todavia nada impede que eles tambeacutem natildeo possam ser considerados como estranhas continuaccedilotildees dos primeiros Afinal tudo o que se estabelece como criacutetica tambeacutem se estabelece dialeticamente como herdeiro Uma inversatildeo do platonismo sim talvez sejajustamente isso o que no Eupalinos se realiza ou se busca realizar A fidelidade aTerra e ao Corpo470 como promulga Nietzsche eacute nesse diaacutelogo de mortos irocircnica e humildemente representada natildeo como uma dogmaacutetica e intransigente defesa da dimensatildeo sensiacutevel material mas como suave e estranha ficccedilatildeo que apenas afirma a realidade e a importacircncia dessa dimensatildeo sensiacutevel material sem desprezar as abstraccedilotildees e a razatildeo do espiacuterito E afirma justamente para a proacutepria vida do espiacuterito para o proacuteprio programa de autoconsciecircncia valeacuteryano

6121 A ORACcedilAtildeO DE EUPALINOS

Nessas condiccedilotildees compreende-se sem duacutevida qual eacute para mim a funccedilatildeo da poesia Eacute alimentar o espiacuterito do homem fazendo-o desembocar no cosmo Basta rebaixar nossa pretensatildeo de dominar a natureza e elevar nossa pretensatildeo de fazer fisicamente parte dela para que a reconciliaccedilatildeo tenha lugar

Francis Ponge Meacutetodos

Durante muito tempo foi insistentemente engendrada e propagada a antropocecircntrica crenccedila de que este mundo mdashpor se degenerar por se estar em constante movimento por ser uma derivaccedilatildeo do pecado original ou por qualquer outro motivo que a isso se relacionemdash eacute essencialmente mal corrompido e tudo que nele se insira todas as criaturas todas as invenccedilotildees e artes humanas tambeacutem compartilham em maior ou menor grau dessa deacutebil natureza A filosofia de Platatildeo e sua posterior apropriaccedilatildeo pelo Judaiacutesmo e pelo Cristianismo promoveram em muito essa cosmovisatildeo a tal ponto que se tornou em maior ou menor grau uma relativa constante na mentalidade do

470 Cf DELEUZE Gilles Platatildeo e o Simulacro in Loacutegica dos Sentidos trad Luiz Roberto Salinas FortesPerspectiva Satildeo Paulo 2000

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Ocidente E se hoje apoacutes o advento da Ciecircncia Moderna da industrializaccedilatildeo e do processo de laicizaccedilatildeo jaacute natildeo eacute tatildeo operante e jaacute tenha sido intensamente criticada inclusive pelo proacuteprio Cristianismo as caracteriacutesticas morais a ela atreladas seus duros elementos psicoloacutegicos transcendidas de seu contexto original como pecado culpa e remorso ainda o satildeo persistem Atrelado a isso quiccedilaacute o que mais sofreu com isso foi o corpo Este foi definido por Platatildeo e principalmente por Aristoacuteteles como um instrumento da alma mas tambeacutem como uma prisatildeo a obliterar e a degenerar a proacutepria alma a impedi-la de ser o que plenamente eacute

Como criacutetica a essa uacuteltima concepccedilatildeo e ao que ela costuma acarretar levanta-se parte do pensamento moderno jaacute um tanto incapaz de suportar tal aversatildeo aos desejos e aos afetos frequumlentemente condicionados pela dimensatildeo fiacutesica do mundo assim como Valeacutery que nunca deixou de escrever paradoxalmente entre a voluacutepia das sensaccedilotildees e o ascetismo do intelecto laquopelo

olhar do espiritualraquo sentencia o poeta em seu diaacutelogo Περὶ τῶν τοῦ θεοῦ -

Ou des choses divines laquoo mundo mdash humano eacute maldito mdashraquo471 Nesse sentido o Eupalinos eacute mesmo que sub-repticiamente mesmo que na multiplicidade de suas tatildeo diversas reflexotildees um dos seus mais incisivos escritos natildeo se limita apenas ao questionamento da doutrina das Ideacuteias platocircnicas atraveacutes da ausecircncia destas no mundo dos mortos mas tambeacutem vai ao questionamento da tradicional desvalorizaccedilatildeo sofrida pelo corpo desvalorizaccedilatildeo que em parte surge de uma apropriaccedilatildeo ou interpretaccedilatildeo da proacutepria Teoria das Ideacuteias platocircnicas assim como de tantas outras metafiacutesicas idealistas Inverter o platonismo natildeo eacute portanto mera criacutetica a Platatildeo pois muitas vezes a tradiccedilatildeo que leva seu nome dele se distancia inverter o platonismo eacute sobretudo desconfiar da crenccedila segundo a qual o importante para a vida transcende necessariamente a proacutepria vida segundo a qual a dimensatildeo do fenocircmeno o mundo transitoacuterio que aos sentidos assim se apresenta eacute numa suposta hierarquia eacuteticado cosmos inferior agrave dimensatildeo da nuacutemeno agraves construccedilotildees mentais que representam supostas estruturas eternas e imutaacuteveis inverter o platonismo eacute portanto conferir um outro valor ao corpo e agraves coisas do corpo Inserido numa sociedade que tende a aceitar com mais toleracircncia essa inversatildeo na medida em que ela jaacute vem se operando em maior ou menor grau como que naturalmente desde a quase inevitaacutevel cesura entre metafiacutesica tradicional e Ciecircncia Moderna o Eupalinos de Valeacutery torna-se assim um verdadeiro discurso agrave aceitaccedilatildeo da materialidade do mundo e a vaacutelida tentativa de atraveacutes de atividades como ciecircncia teacutecnica e arte transformar mesmo que passageiramente mesmo que de modo natildeo duraacutevel essa materialidade sem a necessidade de uma crenccedila qualquer em

471 Π Folio 108

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um outro transcendente que a sustente e a justifique que conforte e console Por que compreender alma e corpo como duas substacircncias distintas opostas ou contraacuterias por que ao se almejar a felicidade eterna acabe-se por adquirir uma natildeo rara aversatildeo ao corpo e ao mundo sensiacutevel material como se assim se pudesse afastar do sofrimento que adveacutem do apego ao proacuteprio corpo e ao proacuteprio mundo sensiacutevel material Natildeo seria isso ignorar ou querer ignorar que natildeo eacute necessaacuterio sofrer se ao admirar a beleza que sente ante a ocorrecircncia de um determinado fenocircmeno aceitar que este iraacute nascer crescer envelhecer morrer e se transformar em algo outro que este natildeo dura para sempre

Valeacutery defende assim pela poesia em prosa de seu diaacutelogo de mortos a possibilidade dessa perspectiva a importacircncia do corpo sobretudo para a consciecircncia que soacute entatildeo plenamente se desenvolveraacute atraveacutes dele laquoO pensamento natildeo eacute seacuterio senatildeo pelo corporaquo472 afirma laquoEacute a apariccedilatildeo do corpo que daacute o seu peso sua forccedila suas consequumlecircncias e seus efeitos definitivosraquo473

laquoTodo Sistema filosoacutefico no qual o Corpo do homem natildeo tem um papel fundamental eacute inepto inaptoraquo474 laquoO filoacutesofo natildeo tem o inteacuterprete do corporaquo475 E tais reflexotildees esparsas natildeo deixam de estar relativamente proacuteximas da filosofia de Nietzsche476 segundo a qual laquoaquele que estaacute desperto aquele que eacute saacutebio diz sou o corpo todo e nenhuma outra coisa e a alma eacute somente uma palavra para designar algo no corpo O corpo eacute uma grande razatildeo uma pluralidade dotada de um uacutenico sentido uma guerra e uma paz um rebanho e um pastorraquo477

Em favor dessa revalorizaccedilatildeo redentora do mundo sensiacutevel material e por conseguinte do corpo Fedro evoca estrategicamente caras lembranccedilas seus diaacutelogos com Eupalinos o arquiteto que lhe mostrou como executar uma arte que diferentemente do que se possa esteticamente idealizar eacute sobretudo um embate constante e iacutentimo com as possibilidades e os limites da natureza da mateacuteria Para surpresa de Soacutecrates os fins do arquiteto natildeo lhe parecem ser tatildeo diferentes dos promulgados pelos filoacutesofos pois natildeo se reduzem apenas a questotildees de ordem pragmaacutetica como a busca da funcionalidade de um edifiacutecio e da beleza que este cumpre suscitar mas tambeacutem a si mesmo ao autoconhecimento socraacutetico ou agrave autoconsciecircncia valeacuteryana laquoQuanto mais medito sobre minha arteraquo diz o arquiteto a Fedro laquomais a exerccedilo quanto mais penso e faccedilo mais sofro e me regozijo como arquiteto mdash e mais me sinto eu mesmo

472 C1rsquo p 1120 473 C1rsquo p 1120 474 C1rsquo p 1124475 Π Folio 107476 Cf GAEgraveDE Edouard Valeacutery et Nietzsche Gallimard Paris 1962477 NIETZSCHE Friedrich Asiacute habloacute Zaratustra trad Andreacute Sanches Pascual Alianza Editorial Madrid 1996 p 60

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com voluacutepia e clareza sempre mais precisas [] avanccedilo em minha proacutepria edificaccedilatildeo aproximo-me de tatildeo exata correspondecircncia entre meus desejos e minhas forccedilas que tenho a impressatildeo de haver feito da existecircncia que me foi dada uma espeacutecie de obra humana De tanto construir disse-me sorrindo creio ter-me construiacutedo a mim mesmoraquo478 laquoConstruir-se conhecer-se a si mesmo satildeo dois atos ou natildeoraquo479 pergunta-se Soacutecrates A resposta a essa capital pergunta para Valeacutery eacute naturalmente afirmativa conhecer-se tambeacutem eacute construir-se Conhecer-se eacute agir-se fazer-se Contudo para um Soacutecrates valeacuteryano que como o platocircnico radicalmente diz laquojamais tive outra prisatildeo aleacutem do meu corporaquo480 resta a Fedro referir-se ao ideal de Eupalinos laquoImagina pois com nitidez um mortal bastante puro razoaacutevel sutil e tenaz poderosamente armado por Minerva para meditar ateacute o fundo do seu ser logo ateacute o extremo da realidaderaquo assim propotildee o arquiteto laquoessa estranha alianccedila de formas visiacuteveis com efecircmeras combinaccedilotildees de sons sucessivos pensa de que origem iacutentima e universal se aproximaria a que precioso ponto se alccedilaria que deus encontraria em sua proacutepria carne E possuindo-se enfim nesse estado de divina ambiguumlidade propusesse a si proacuteprio construir natildeo sei quais monumentos [] Imagina que edifiacutecios [] Certa vez estive infinitamente perto de experimentaacute-lo mas somente da maneira como possuiacutemos durante um sonho o objeto amado Posso apenas falar-te das aproximaccedilotildees a algo tatildeo grandioso Ao anunciar-se caro Fedro difiro logo de mim mesmo [] Sou completamente outro eu [] As forccedilas acorrem [] Ei-las carregadas de clareza e de erro o verdadeiro e o falso brilham igualmente em seus olhos [] Esmagam-me com seus dons assediam-me com suas asas Fedro eis aqui o perigo Nada haacute mais difiacutecil no mundo Oacute momento supremo e dilaceramento capital Essas graccedilas superabundantes e misteriosas longe de acolhecirc-las tais e quais deduzidas unicamente do grande desejo inocentemente formadas pela extrema espera da alma eacute necessaacuterio que eu as suspenda oacute Fedro e que elas aguardem o meu sinal E tendo-as obtido por uma espeacutecie de interrupccedilatildeo de minha vida (adoraacutevel suspensatildeo do tempo comum) quero ainda dividir o indivisiacutevel moderar e interromper o nascimento das Ideacuteias [Grifo do autor] mdash Oacuteinfeliz disse-lhe eu que queres fazer no aacutetimo de um relacircmpago mdash Ser livre [] haacute tudo nesse instante e tudo com que se ocupam os filoacutesofos passa-se entre o olhar que cai sobre um objeto e o conhecimento que daiacute resulta para concluiacuterem sempre prematuramente mdash Natildeo te compreendo Esforccedilas-te pois em retardar as Ideacuteias mdash Eacute necessaacuterio Impeccedilo-as de me satisfazer difiro a pura felicidade []Importa-me acima de tudo obter do que iraacute ser que 478 Œ2 pp 91-92479 Œ2 pp 91-92480 Œ2 p 94

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satisfaccedila com todo o vigor de sua novidade as exigecircncias razoaacuteveis daquilo que foiraquo481

Partindo de um artista ideal de um homem universal o Eupalinos valeacuteryano propotildee com outras palavras e num outro contexto o mesmo meacutetodo do Leonardo valeacuteryano Ambos satildeo personificaccedilotildees de uma compreensatildeo formalista da criaccedilatildeo artiacutestica ambos natildeo creditam um significado uacutenico e fixo agraves obras que executam e se aproximam naturalmente no modo como contemplam e como trabalham as coisas que lhe satildeo dadas procuram natildeo concluir prematuramente procuram suspender ao menos provisoriamente a tendecircncia que a consciecircncia tem em generalizar e em universalizar em abstrair para poder com isso ater-se agrave realidade sensiacutevel e compreender melhor sem conceitos como sua arte deveraacute ser concebida e construiacuteda Humilde o arquiteto natildeo se refere a si mesmo como algueacutem que alcanccedilou a plenitude dessa singular suspensatildeo ele caminha em direccedilatildeo a ela e seu caminho eacute uma ascese Pratica atraveacutes de sua arte o autoconhecimento socraacutetico ou a autoconsciecircncia valeacuteryana Contudo diferentemente dos filoacutesofos convencionais sua meta natildeo eacute apenas um ir a si mesmo fora do mundo mas um ir a si mesmo no mundo natildeo eacute um distanciar-se mas um aproximar-se eacute sobretudo uma imprescindiacutevel conciliaccedilatildeo oupara usar uma palavra mais condizente com uma visatildeo relativamente idealista do passado uma re-conciliaccedilatildeo ou ainda na sugestiva e misteriosa palavra do poeta uma laquoalianccedilaraquo482 (laquoallianceraquo) Uma alianccedila natildeo como aquela que Deus impotildee ao homem mas entre o corpo e a alma entre a mateacuteria e o espiacuterito entre o profano e o sagrado mas tambeacutem consequumlentemente entre a ciecircncia teacutecnica e arte483

Conciliaccedilatildeo plenamente realizaacutevel atraveacutes da accedilatildeo ou do fazer do fazer a arte e da qual nasce a tatildeo ansiada e procurada beleza Assim em sua pragmaacutetica Eupalinos acaba professando uma sincera e delirante ldquooraccedilatildeo sobre o corpordquo484 a partir da qual posteriormente Fedro e Soacutecrates iratildeo especular e

481 Œ2 pp 96-97482 Œ2 p 99483 A filoacutesofa e miacutestica de orientaccedilatildeo marxista Simone Weil que chegou a trocar correspondecircncias com Valeacutery e a assistir alguns de seus cursos (cf WEIL Simone Quelques reacutefleacutexions autour de la notion de valeur in Œuvres org Florence de Lussy Quarto Gallimard Paris 1999) supostamente muito com o intuito de escrever poesias lega essas memoraacuteveis frases de inspiraccedilatildeo valeacuteryana em uma passagem sobre a miacutestica do trabalho laquoA grandeza do homem eacute sempre recriar sua vida Recriar o que lhe eacute dado Forjar aquilo mesmo que sofre Pelo trabalho ele produz sua proacutepria existecircncia natural Pela ciecircncia recria o universo por meio de siacutembolos Pela arte recria a alianccedila entre seu corpo e sua alma (cf o discurso de Eupalinos) Notar que cada uma dessas trecircs coisas eacute pobre vazia fuacutetil tomada em si mesma e sem relaccedilatildeo com as outras duasraquo (WEIL Simone A gravidade e a graccedila trad Paulo Neves Martins Fontes Satildeo Paulo 1993 p 201)484 Um dos aacutepices poeacuteticos do Eupalinos essa oraccedilatildeo que eleva o corpo que o concilia agrave alma relaciona-se mdashdifiacutecil saber se Valeacutery assim a projetou ou se foi obra do acasomdash com uma outra que em grande medida o rebaixa Esta se encontra no Feacutedon de Platatildeo que mais de vinte seacuteculos antes relata os derradeiros momentos da vida de Soacutecrates entre amigos e disciacutepulos antes de beber a cicuta como o momento sugere o diaacutelogo eacute uma reflexatildeo sobre o prazer e a dor sobre as necessidades da existecircncia material sobre como somente os mortos podem contemplar a verdade

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ultimar por si mesmos os desiacutegnios de um pensamento que seja ao mesmo tempo praacutetico e teoacuterico que resulte em obras de arte laquoNatildeo sei como esclarecer-te muito bem a respeito do que para mim mesmo natildeo estaacute claroraquo comeccedila Eupalinos

laquoao compor uma morada (quer para os deuses quer para os homens) ao buscar sua forma com amor aplicando-me em criar um objeto que delicie os olhos que se entretenha com o espiacuterito que esteja de acordo com a razatildeo e as numerosas conveniecircncias eu te direi esta coisa estranha que me parece entranhar-se na obra toda o meu corpo [] O corpo eacute um instrumento admiraacutevel pelo qual me asseguro de que os viventes tendo-o cada qual a seu serviccedilo dele natildeo dispotildeem em plenitude extraem apenas prazer dor e os atos indispensaacuteveis para viver Ora confundem-se com ele ora distraem-se por algum tempo de sua existecircncia ora animais ora puros espiacuteritos ignoram os viacutenculos universais que possuem Graccedilas no entanto agrave prodigiosa substacircncia de que satildeo feitos participam do que vecircem e do que apalpam satildeo pedras aacutervores trocam contatos e intimidade com a mateacuteria que os engloba tocam satildeo tocados pensam e sustentam pesos movem e transportam suas virtudes e seus viacutecios e quando entram em devaneio ou em sono indefinido reproduzem a natureza das aacuteguas fazem-se areias e nuvens Em outras ocasiotildees acumulam e projetam o raio Mas sua alma natildeo sabe se servir exatamente dessa natureza que lhe estaacute tatildeo proacutexima e que ela penetra Adianta-se atrasa-se parece fugir do proacuteprio instante Abalada ou impelida retira-se para dentro dela mesma onde se perde em seu vazio gerando fumaccedila Mas eu inteiramente ao contraacuterio instruiacutedo pelos meus erros digo em plena luz repito a cada aurora ldquoOacute corpo meu que me lembrais a todo momento o temperamento de minha iacutendole o equiliacutebrio de vossos oacutergatildeos as justas proporccedilotildees de vossas partes que voz fazem existir e vos restabelecem no seio das coisas moventes vigiai minha obra ensinai-me silenciosamente as exigecircncias da natureza comunicai-me essa grande arte da qual sois feito da qual sois dotado de sobreviver agraves estaccedilotildees e de vos refazer dos acasos Que eu encontre em vossa alianccedila [alliance] o sentimento das coisas verdadeiras moderai fortalecei assegurai meus

como somente a alma livre do proacuteprio corpo eacute capaz de contemplaacute-la A passagem aqui referida eacute uma eloquumlente fala do Soacutecrates platocircnico a sintetizar o que ateacute entatildeo foi discutido na sua magniacutefica ambiguumlidade eacutetica na sua argumentaccedilatildeo possui um teor relativamente proacuteximo do discurso deste grande e polecircmico propagandista do Cristianismo o convertido Paulo de Tarso Nela haacute algo de profeacutetico reflete como entatildeo pela filosofia e pela religiatildeo o corpo iraacute ser insistentemente ldquodesvalorizadordquo laquoldquoTalvez haja uma espeacutecie de caminho que nos leve e aos nossos raciociacutenios ao fimraquo discursa Soacutecrates em tom de ldquoconclusatildeo provisoacuteriardquo laquoporque enquanto tivermos um corpo e a esse mal nossa alma esteja mesclada jamais alcanccedilaremos de maneira suficiente o que desejamos E dissemos que o que desejamos eacute a verdade Com efeito satildeo um sem fim de preocupaccedilotildees que nos procura o corpo pela culpa de sua necessaacuteria alimentaccedilatildeo e ademais se nos ataca alguma doenccedila nos impede a caccedila da verdade Enche-nos de amores de desejos de temores de imagens de todas as classes de um montatildeo de nadas e loucuras de tal maneira que como se diz por culpa sua natildeo nos eacute possiacutevel ter um uacutenico pensamento sensato Guerras revoluccedilotildees e lutas ningueacutem as causa senatildeo o corpo e seus desejos pois eacute pela aquisiccedilatildeo de riquezas que nos vemos obrigado pelo corpo porque somos escravos de seus cuidados e daiacute que por todas essas causas natildeo tenhamos tempo para dedicar agrave filosofia E o pior de tudo eacute que se noacutes temos algum tempo livre de seus cuidados e nos dedicamos a refletir sobre algo o corpo inesperadamente se apresenta em todas as partes de nossas investigaccedilotildees e nos alborota nos perturba e nos deixa perplexos de maneira que por sua culpa natildeo podemos contemplar a verdade Ao contraacuterio nos fica verdadeiramente demonstrado que se alguma vez soubermos algo de puro ou absoluto temos de nos desvencilhar dele e contemplar somente com a alma as coisas em si mesmas Entatildeo segundo parece teriacuteamos aquilo que desejamos e que declaramos amantes a sabedoria tatildeo soacute entatildeo uma vez mortos segundo indica o raciociacutenio e natildeo em vida Com efeito se natildeo eacute possiacutevel conhecer nada de uma maneira pura com o corpo uma de dois ou eacute impossiacutevel adquirir o saber ou soacute eacute possiacutevel enquanto estejamos mortos pois eacute entatildeo quando a alma fica soacute consigo mesma separada do corpo e natildeo antes E enquanto estamos em vida mais perto estamos de conhecer segundo parece se em todo o possiacutevel natildeo tenhamos nenhum trato com o corpo salvo aquilo que seja de toda necessidade nem nos contaminarmos de sua natureza mantendo-nos puro de seu contato ateacute que a divindade nos livre dele Dessa maneira purificados e desembaraccedilados da loucura do corpo estaremos como eacute natural entre gente semelhante a noacutes e conheceremos por noacutes mesmos tudo o que eacute puro e isto talvez seja o verdadeiro Pois ao que natildeo eacute puro eacute de temer que esteja vedado o alcanccedilar o purordquoraquo (PLATO Phaedo I no 36 trad Harold North Fowler org Jefrey Henderson Harvard University Press Loeb Classical Library Cambridge amp London 2005 66B-67A sect11 pp 229-231)

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pensamentos Pereciacutevel que sois voacutes os sois bem menos que meus sonhos perdurais mais que uma fantasia pagais pelos meus atos expiais pelos meus erros Instrumento vivo da vida sois para cada um de noacutes o uacutenico objeto que se compara ao universo A esfera inteira vos tem por centro oacute coisa reciacuteproca da atenccedilatildeo de todo o ceacuteu estrelado Sois verdadeiramente a medida do mundo do qual minha alma apresenta-me apenas o exterior Ela o concebe sem profundidade e tatildeo futilmente que por vezes se engana contando-o entre seus sonhos ela duvida do sol Enfatuada de suas efecircmeras fabricaccedilotildees crecirc-se capaz de uma infinidade de realidades diferentes imagina existirem outros mundos mas voacutes a chamais de novo a voacutes mesmos como a acircncora a si o navio Minha inteligecircncia mais bem inspirada natildeo cessaraacute caro corpo de chamar-vos a si doravante nem voacutes eu o espero de prodigar-lhe vossas presenccedilas vossas instacircncias vossos afetos pontuais pois encontramos finalmente voacutes e eu o meio de nos unirmos o noacutes indissoluacutevel de nossas diferenccedilas uma obra que seja nossa filha Atuaacutevamos cada qual de seu lado Voacutes viviacuteeis eu sonhava Minhas vastas fantasias limitavam-se a ilimitada impotecircncia Mas possa a obra que agora quero fazer e que natildeo se faz por si mesma obrigar-nos a nos responder e surgir unicamente de nosso entendimento Este corpo e este espiacuterito esta presenccedila invencivelmente atual e esta ausecircncia criadora que disputam o ser e que eacute preciso enfim compor mas este finito e este infinito que trazemos em noacutes mesmos cada qual segundo sua natureza cumpre agora que se unam em uma construccedilatildeo bem ordenada E queiram os deuses se trabalhem de acordo trocando conveniecircncias e graccedila beleza e solidez movimentos contra linhas e nuacutemeros contra pensamentos teratildeo enfim descoberto sua verdadeira relaccedilatildeo seu ato Que se combinem que se compreendam atraveacutes da mateacuteria de minha arte Pedras e forccedilas perfis e massas luzes e sombras agrupamentos artificiais ilusotildees de perspectiva e realidades da gravidade estes satildeo os objetos de seu comeacutercio e seu lucro a incorruptiacutevel riqueza que chamo PerfeiccedilatildeordquoSOacuteCRATES Que oraccedilatildeo sem igual [] Todas essas palavras soam estranhas neste lugar Despojados agora de nossos corpos devemos seguramente nos lastimar e com o mesmo olho invejoso com que outrora contemplaacutevamos o jardim das sombras felizes consideremos a vida que deixamos Obras e desejos aqui natildeo nos acompanham mas haacute lugar para os arrependimentosraquo485

Livre de seu invoacutelucro fiacutesico e de seus condicionamentos livre das possibilidades da doenccedila e da velhice livre tanto da dor quanto do prazer livre da morte e do corpo que morre livre de tudo aquilo que a limita uma alma natildeo teria numa perspectiva puramente pragmaacutetica porque transformar o que eacute natural em artificial Teacutecnicas para melhor viver para melhor trabalhar e habitar para progredir tais invenccedilotildees seriam totalmente estranhas No mundo dos mortos de Valeacutery nem a arquitetura nem a medicina seriam necessaacuterias Qual a utilidade de duas atividades que respondem agraves necessidades fiacutesicas para a alma que natildeo adoece envelhece e morre que natildeo necessita de alimentos e de higiene que natildeo necessita se proteger das intempeacuteries da natureza portanto de tudo aquilo que um corpo precisa para viver no mundo de vivos Ela poderia muito facilmente existir em eterna quietude e imobilidade sem ter nenhum outro contato com outras almas natildeo haveria mais a bruta necessidade que une ou desune os seres humanos natildeo haveria mais a dependecircncia fiacutesica que direta ou indiretamente condena a todos aqui ao conviacutevio e a poliacutetica a relaccedilatildeo com o outro e os desejos e necessidades do outro a uma incessante busca de equiliacutebrio entre as aspiraccedilotildees individuais e as limitaccedilotildees coletivas entre os desejos e poderes de um e os desejos e poderes do outro

485 Œ2 pp 98-100

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Essa visatildeo a princiacutepio poderia ser considerada como amiuacutede foi uma boa ventura Contudo no Eupalinos assim como em grande parte da obra de Valeacutery consequumlecircncias natildeo tatildeo favoraacuteveis ou positivas satildeo expostas486 Num tal mundo dos mortos separados alma e corpo natildeo agem natildeo fazem natildeo fazemnada de concreto um torna-se potecircncia inconsciente o outro impotecircncia consciente Somente quando unidos e inseridos num mundo material eacute que ambos satildeo capazes de realmente agir de fazer Por conseguinte tambeacutem a artenatildeo existiria natildeo poderia existir pois mesmo natildeo sendo uma manifestaccedilatildeo direta das necessidades fiacutesicas ela eacute uma particular transformaccedilatildeo das formas da materialidade logo eacute feita pelo corpo e tendo em vista a realidade especiacuteficaque este pelos sentidos recebe e ou constroacutei laquoA cada homem que nasce como haacute um corpo haacute um mundo e um tempo etcraquo487 E se qualquer accedilatildeo qualquer fazer concreto fica assim interdito a uma alma sem corpo fica tambeacutem interdito o principal veiacuteculo para o autoconhecimento ou a autoconsciecircncia posto que realizar agir e fazer natildeo tecircm apenas como fim a transformaccedilatildeo da realidade exterior mas tambeacutem a realidade interior o si mesmo O corpo possibilita eacute um dos princiacutepios da proacutepria possibilidade revela-se portanto natildeo como uma mera limitaccedilatildeo natildeo apenas como a mera prisatildeo-instrumento que a alma possui para acessar a moldaacutevel materialidade da qual a arte se constitui mas tambeacutem comoo modo mesmo da proacutepria alma acessar a si mesmo e nesse acessar transformar-se O maispleno autoconhecimento ou autoconsciecircncia se daacute atraveacutes da mateacuteria A alianccedila entre essas duas categorias tatildeo recorrentemente postas em dramaacutetica oposiccedilatildeo e conflitos por grande parte da tradiccedilatildeo Ocidental entre o corpo e a alma tem aiacute a sua justificativa natildeo simplesmente ldquoeacuteticardquo mas sobretudo ldquoesteacuteticardquo E a arte vem a ser tanto em sua accedilatildeo em seu fazer como em seus resultados um dos principais meios materiais dessa alianccedila a arte torna-se o meacutetodo capital de

486 Natildeo agrave toa Valeacutery leitor de Santo Tomaacutes de Aquino jaacute ter conjeturado de modo um tanto irocircnico e esdruacutexulo a morte como um verdadeiro desastre para o pensamento na mediada em que amiuacutede o fim uacuteltimo deste eacute na pragmaacutetica postura do poeta a proacutepria accedilatildeo o proacuteprio fazer e eacute Leonardo que se torna novamente o paradigma de um singular amante do corpo laquoa morte interpretada como um desastre para a almaraquo exclama um espirituoso Valeacutery laquoA morte do corpo diminuiccedilatildeo dessa coisa divina A morte atingindo a alma ateacute agraves laacutegrimas e em sua obra mais cara pela destruiccedilatildeo de uma tal arquitetura que ele havia feito para nela habitar [] A Igreja mdash na medida em que a Igreja eacute tomista mdash natildeo confere agrave alma separada uma existecircncia muito invejaacutevel Nada mais pobre do que a alma que perdeu seu corpo Quase natildeo tem outra coisa que o ser mesmo eacute um miacutenimo loacutegico uma espeacutecie de vida latente na qual ela eacute inconcebiacutevel para noacutes e certamente para si mesma Ela se despojou de tudo poder querer saber talvez Nem mesmo sei se pode lembrar-se de ter sido no tempo ou em alguma parte a forma e o ato de seu corpo Resta-lhe a honra de sua autonomia Uma condiccedilatildeo tatildeo vatilde e tatildeo insiacutepida felizmente eacute passageira mdash se eacute que esta palavra fora do tempo tem algum sentido a razatildeo pede e o dogma impotildee a restituiccedilatildeo da carne [] De qualquer modo a alma desencarnada deve segundo a teologia reencontrar num determinado corpo uma determinada vida funcional e mediante esse corpo novo uma espeacutecie de mateacuteria que permita suas operaccedilotildees e encha de maravilhas incorruptiacuteveis as suas vazias categorias intelectuaisraquo (Cf Œ1 pp 1213-1215)487 Π 1921-1922 Texte 2 (VII 312-314)

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autoconhecimento ou autoconsciecircncia mdasha ascese que natildeo nega o mundo sensiacutevelmdash Eis o sentido do aprendizado do incorpoacutereo e querido Soacutecrates valeacuteryano

6122 ANTI-SOacuteCRATES

Como tantas outras figuras que se instauram entre a lenda e a histoacuteria Soacutecrates recebeu inuacutemeras maacutescaras ele que eacute natildeo raro considerado em maior ou menor consenso como um dos mais presentes avatares daquilo que tatildeo genericamente se denomina Ocidente Aristoacutefanes o ridicularizou como um ingecircnuo e pateacutetico sofista Xenofonte o desenhou como um modelo de serenidade e simplicidade o oraacuteculo de Delfos o proclamou como o homem mais saacutebio de seu tempo Platatildeo o considerava como o homem mais justo que conhecera Sob o nebuloso pretexto de corromper os jovens e de instaurar novos deuses o grande questionador foi condenado agrave morte destino que aceitou de um modo extremamente resoluto paciacutefico como se natildeo houvesse muita diferenccedila entre este e o outro mundo Posteriormente outros talvez imbuiacutedos de um forte sentimento profeacutetico nele viram a exemplificaccedilatildeo avant-la-lettre da humildade asceacutetica frequumlentemente recomendada ou exigida peloCristianismo Medieval Tal interpretaccedilatildeo possui fortes justificativas Com a ironia de um ldquosaber que ignorardquo Soacutecrates natildeo apenas tinha por haacutebito desobrigar-se de professar a verdade doravante parecia por vezes conhececirc-la em segredo mas pondo no centro da vida a questatildeo eacutetica encarava a proacutepria filosofia como um modo de vida como um exerciacutecio um veiacuteculo a algo mais essencial quiccedilaacute inefaacutevel agraves palavras ao discurso Esse comportamento representa hoje uma cesura canocircnica com relaccedilatildeo aos ditos ldquopreacute-socraacuteticosrdquo aos fisioacutelogos que aparentemente preocupavam-se mais com questotildees cosmoloacutegicas e em especular sobre a natureza da realidade Daiacute tambeacutem as caracteriacutesticas da riacutegida conduta de Soacutecrates que tanto influenciaram as posteriores escolas filosoacuteficas que na Heacutelade se instauraram sua simplicidade e pobreza seu despojamento e desapego uma fidelidade inquebrantaacutevel a si mesmo a seu proacuteprio aprendizado Assim dentre todas as imagens que se pode fazer desse filoacutesofo paradigmaacutetico desse filoacutesofo-conceito natildeo raro contraditoacuterias entre si uma das mais constantes na tradiccedilatildeo eacute aquela que justifica e amplia essas caracteriacutesticas a de um homem extremamente voltado para o espiacuterito que se entreteacutem com o conceito e a abstraccedilatildeo com a universalidade

Eacute justamente dessa intensa e constante imagem que Valeacutery principia manteacutem a concepccedilatildeo de um Soacutecrates aprendiz mdashconcepccedilatildeo quiccedilaacute aquela que mais carisma emanamdash e a transforma para que atenda a suas proacuteprias

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intenccedilotildees Se Leonardo da Vince eacute aquele que nada espera e tudo faz se Edmond Teste eacute aquele que nada espera nada faz e para quem tudo eacute permitido se essas duas estranhas figuras representam tipos-ideais de consciecircncias extremas que vivem de um modo quase inumano a primeira numa sociedade preacute-cientiacutefica e a segunda numa sociedade jaacute totalmente industrializada entatildeo Soacutecrates agora transformado em uma outra personagem conceitual mesmo em morte mesmo para aleacutem de qualquer sociedade possiacutevel aparece como a representaccedilatildeo de um humano que descobre a sua proacutepria humanidade Ele natildeo eacute no Eupalinos retratado mdashcomo natildeo o foi por seus contemporacircneosmdash como um saacutebio ldquooniscienterdquo dono de todas as respostas como uma pessoa acabada definitiva mas como um homem provisoacuterio nobre justamente por natildeo temer o por vezes angustioso movimento da duacutevida do desconfiar do reconsiderar do desconstruir do retornar jamais se esquecendoda rara e difiacutecil arte de desistir sabe intui saber que suas crenccedilas natildeo satildeo blocos monoliacuteticos a desafiar as intempeacuteries sociais mas estatildeo como que em constante transformaccedilatildeo moldando-se conforme os adventos e as circunstacircncias Assim a princiacutepio quando receacutem adentrou o estranho mundo dos mortos o Soacutecratesvaleacuteryano natildeo poderia deixar de ser relativamente fiel agrave sua imagem canocircnica e portanto de ter os mesmos princiacutepios que o imortalizaram frente agraves inuacutemeras geraccedilotildees vindouras Como seu antigo mestre Parmecircnides coerente com o registro da Antiguidade Claacutessica que frequumlentemente postulava a ciecircncia do Ser como a ciecircncia suprema hierarquicamente superior a todas as demais acredita que o conceito de verdade deva referir-se exclusivamente a uma universalidade e natildeo a uma particularidade que cumpre ao espiacuterito retirar-se da massa de fenocircmenos sensiacuteveis e repousar no inteligiacutevel Doravante no digressivo transcurso do diaacutelogo suas concepccedilotildees vatildeo pouco a pouco se modificando lapidando-se evoluindo como todo pensamento cumpre ser auxilia-o naturalmente sua condiccedilatildeo de desencarnado e a abstrata realidade na qual se encontra Conforme Fedro lhe incita e lhe aponta como outrora ele mesmo o fazia em vida outros caminhos para a realizaccedilatildeo daquilo que sempre e tatildeo-somente buscou realizar o que haacute de mais excelso no homem a divindade interna e sempre presente Soacutecrates pondera reconsidera e vai se descobrindo outro As seguintes palavras gentis e sinceras corroboram e reiteram mais uma vez um dos pontos mais incisivos e constantes da criacutetica que Valeacutery tece agrave filosofia e ao filoacutesofo

laquoFEDRO Uma soacute coisa Soacutecrates uma soacute te faltou Homem divino talvez natildeo sentias necessidade alguma das belezas materiais do mundo pois mal as apreciavas Sei que natildeo desdenhas a doccedilura dos campos o esplendor da cidade os mananciais de aacutegua cristalina a sombra delicada do plaacutetano mas tudo isso natildeo era para ti senatildeo distantes ornamentos de tuas

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meditaccedilotildees fronteiras prazerosas de tuas daacutedivas terreno favoraacutevel aos teus passos interiores O que havia de mais belo para bem longe de si te conduzindo vias sempre outra coisa488

SOacuteCRATES O homem e o espiacuterito do homemFEDRO Mas entatildeo natildeo encontraste entre os homens alguns cuja singular paixatildeo pelas formas e pelas aparecircncias te surpreendesse [] E dos quais inteligecircncia e virtude nada deixavam a desejar SOacuteCRATES Por certoFEDRO Tu os situavas acima ou abaixo dos filoacutesofosSOacuteCRATES DependeFEDRO O alvo dessas criaturas te parecia mais digno ou menos digno de procura e de amor que o teu proacuteprioSOacuteCRATES Natildeo se trata de seu alvo Natildeo posso pensar que existam vaacuterios Bem-SupremosMas eacute-me obscuro difiacutecil entender que homens tatildeo puros quanto agrave inteligecircncia tenham tido necessidades de formas sensiacuteveis e de graccedilas corpoacutereas para atingir seu estado mais elevadoraquo489

A partir de entatildeo todo o diaacutelogo natildeo deixa de ser um contiacutenuo e natildeo raro sofrido aprendizado de Soacutecrates Este ao fim compreende o significado da alianccedila entre corpo e alma que natildeo eacute necessaacuterio sacrificar o material em favor do imaterial o sensiacutevel em favor do intelectual que essas duas esferas podem coexistir em harmonia pois de fato talvez sejam uma soacute compreende que pode haver prazer sem aversatildeo ou conflito ante os elementos naturais ou artificiais forjados ou natildeo pela industriosa matildeo humana compreende que a arquitetura a escultura a pintura a danccedila a muacutesica a poesia todas estas e outras tantas formas de se contemplar as laquobelezas materiais do mundoraquo atraveacutes do ato de concebecirc-las e fazecirc-las satildeo praacuteticas que natildeo distintas do pensamento filosoacutefico do puro trabalhar com conceitos tambeacutem transformam o espiacuterito tambeacutem elevam tambeacutem purificam pois tambeacutem exigem o imperioso e difiacutecil exerciacutecio das principais faculdades prezadas por Valeacutery a razatildeo a atenccedilatildeo e o esforccedilo Mas essa compreensatildeo natildeo deixa de ser acompanhada por uma profunda melancolia Estando morto resta-lhe pouca coisa resta-lhe apenas o voltar-se para a pura especulaccedilatildeo para o que fez e deixou de fazer para o que poderia ter feito em vida Soacutecrates entatildeo reconsidera Conjetura aquilo que o poeta insistentemente expressa ser necessaacuterio a qualquer praacutetica que deveria ter sido em vida tanto um filoacutesofo como um artista Ele que sempre procurou a si mesmo acaba ao fim por descobrir mediante a concepccedilatildeo de arte de Eupalinos que um dos mais efetivos caminhos para se encontrar ou para se realizar Deus mdashum Deus que

488 Essa construtiva criacutetica insinua-se no iniacutecio do Feacutedon de Platatildeo Questionado sobre o porquecirc ter versificado as faacutebulas de Esopo e um hino a Apolo Soacutecrates responde que em recorrentes sonhos disseram-no que ele deveria praticar muacutesica isto eacute poesia ele aceita o encargo e conclui que o que ateacute entatildeo havia praticado a filosofia natildeo deixa de ser a muacutesica mais excelsa Essa decisatildeo entretanto veio muito proacutexima a sua condenaccedilatildeo por ter corrompido os jovens de Atenas o que supotildee-se pouco importava para algueacutem que mdashna versatildeo platocircnicamdash possivelmente acreditava na imortalidade da alma e na doutrina da palingenesia Assim num momento em que tudo convidava agrave fuga e ao desespero a natildeo mais empreender qualquer projeto o filoacutesofo ainda conversa e parece querer deixar a vida do mesmo modo que viveu envolto num estado de imperturbabilidade racional Essa atitude descreve natildeo apenas um espiacuterito que aceita sua proacutepria condiccedilatildeo de condenado mas continua a querer a aprender (Cf Plato Phaedo I no 36 trad Harold North Fowler org Jefrey Henderson Harvard University Press Loeb Classical Library Cambridge amp London 2005 60D-61B sect4 pp 210-213)489 Œ2 p 91

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parece ser imanente ao mundo puro movimento e pura continuidademdash eacute como jaacute anuncia a desconcertante danccedila de Athiktecirc o da accedilatildeo do fazer

laquoFEDRO Que queres pintar sobre o nadaSOacuteCRATES O Anti-SoacutecratesFEDRO Imagino-o mais de um Haacute muitos que satildeo contraacuterios a Soacutecrates SOacuteCRATES Pois este seraacute o construtorFEDRO [] O Anti-Fedro o escutaSOacuteCRATES [] Natildeo foi proveitoso temo-o buscar durante toda a minha vida esse Deus que tentei descobrir perseguindo-o unicamente atraveacutes de pensamentos procurando-o com o variado sentimento do justo e do injusto instando-o a render-se agrave solicitaccedilatildeo da dialeacutetica mais refinada Esse Deus assim encontrado eacute apenas palavra nascida de palavra e retorna agrave palavra Pois a resposta que forjamos para noacutes mesmos seguramente natildeo deixa nunca de ser a proacutepria questatildeo e toda questatildeo do espiacuterito ao proacuteprio espiacuterito natildeo eacute e natildeo pode ser senatildeo ingenuidade Mas ao contraacuterio nos atos e na combinaccedilatildeo dos atos eacute que devemos encontrar o sentimento mais imediato da presenccedila do divino e o melhor emprego dessa parte de nossas forccedilas inuacutetil agrave vida e que parece reservada agrave busca de um objeto indefiniacutevel que nos ultrapassa infinitamente Pois se o universo eacute o efeito de algum ato esse ato de um Ser e de uma necessidade de um pensamento de uma ciecircncia e de um poder pertencentes a esse Ser somente com atos poderaacutes integrar-se no grande designo e propor a ti mesmo a imitaccedilatildeo do que fez todas as coisas Esta eacute a maneira mais natural de te introduzir no lugar do proacuteprio Deusraquo490

E eis que no Eupalinos o Soacutecrates valeacuteryano parece arrepender-se parece entatildeo sentir um quase doloroso sentimento de nostalgia algo que poderia ser denominado de saudade saudade do tempo em que vivia e caminhava nas praccedilas e nos mercados em companhia das multidotildees e das contradiccedilotildees dos homens Do mesmo modo que um exilado pode vir a conhecer e avaliar melhor a sua proacutepria terra natal quando se encontra em uma terra estrangeira entre idiomas e costumes distintos ele conhece e avalia mais adequadamente os seus proacuteprios pensamentos quando deles se distancia quando os contempla atraveacutes de uma perspectiva que natildeo aquela na qual foram originalmente engendrados Na laboriosa pena de Valeacutery o ceacutelebre filho do talhador de pedras Sofronisco tatildeo-somente pode refletir e discursar sobre a importacircncia do mundo sensiacutevel no mundo inteligiacutevel onde qualquer praacutetica teacutecnica e artiacutestica eacute justamente desnecessaacuteria e impossiacutevel onde os atos de conceber de projetar e de construir natildeo passam de lembranccedilas pois natildeo haacute a mateacuteria e as leis que a regem e a condicionam Dir-se-ia que eacute pela falta atraveacutes do duro e fabuloso exerciacutecio espiritual da rememoraccedilatildeo mdashuma espeacutecie de anamnese praticada no mundo dos mortosmdash que o ceacutelebre ldquopai da ironiardquo pode compreender a importacircncia daquilo a que outrora era amiuacutede refrataacuterio Eacute a ausecircncia determinando o valor daquilo que estaacute ausente Se na vida Soacutecrates volta-se para a morte na morte Soacutecrates volta-se para a vida Quiccedilaacute tambeacutem ele natildeo queira retornar Retornar para poder enfim encontrar-se com Deus Natildeo atraveacutes da especulaccedilatildeo dos labirintos da linguagem verbal na qual eacute mera palavra passiacutevel de ser usadapelos mais variados discursos e desconectada da realidade mas atraveacutes da accedilatildeo do fazer no qual insere-se na realidade e revela-se para o indiviacuteduo como uma 490 Œ2 pp 142-143

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praacutetica Eis portanto o que conclui o Soacutecrates valeacuteryano Deus eacute o nome dado a uma praacutetica Deus revela-se numa praacutetica

613 NO MUNDO DOS VIVOS

CONCLUSAtildeO

Obras autocircnomas geralmente escritas em funccedilatildeo de comissotildees determinadas os diaacutelogos socraacuteticos de Valeacutery possuem independecircncia um emrelaccedilatildeo ao outro assim tambeacutem em relaccedilatildeo a outros diaacutelogos seus mas eacute bastante proveitoso observar como certas argumentaccedilotildees e concepccedilotildees repetem-se em todos eles haacute toda uma intertextualidade relativamente oculta entre elesassim como entre muito dos escritos do poeta No intento de mostrar que laquoo pensamento puro e a busca da verdade em si natildeo podem jamais aspirar agrave descoberta ou a construccedilatildeo de alguma formaraquo491 tanto em Lrsquoacircme et la danse como em Eupalinos a riacutegida e hieraacuterquica divisatildeo entre alma e corpo mateacuteria e espiacuterito eacute alvo de severa criacutetica para tal ambos os diaacutelogos evocam ao fim surpreendentemente e como em Monsieur Teste o conceito de Deus Providencial que doravante este seja justamente um dos principais temas para um terceiro diaacutelogo socraacutetico agora novamente entre vivos estranha e simultaneamente

intitulado em grego e francecircs de Περὶ τῶν τοῦ θεοῦ - Ou des choses divines

(1944) Fragmentado e inacabado verdadeiro desafio para a criacutetica essa estilhaccedilada obra da qual alguns trechos tambeacutem pertencem aos Cahiers eacute juntamente com Alphabet Lrsquoange e principalmente a esoteacuterica peccedila Mon Faust uma daquelas que exemplarmente retratam as reflexotildees da uacuteltima fase da vida de Valeacutery ateacute hoje muito pouco estudada e natildeo raro bastante incocircmoda para os inteacuterpretes que crecircem num retrato relativamente fixo de um poeta supostamente avesso agrave religiatildeo e agrave miacutestica492 Dando continuidade a sua estrateacutegia literaacuteria ele agora imagina supotildee-se um diaacutelogo entre os disciacutepulos e conhecidos de Soacutecrates apoacutes a morte deste e inclusive entre personalidades histoacutericas Natildeo chega contudo a escolhecirc-los em definitivo Sabe-se que podem ser as jaacute conhecidas personagens ou vozes de Fedro Erixiacutemaco e Athiktecirc mas tambeacutem asfiguras de Zenatildeo de Eleacuteia e Timeu Zithon Filebo Proteu Teoacutefilo e principalmente do proacuteprio Daimon de Soacutecrates curiosamente chamado de Hypnos o Sem Corpo (laquoSans Corpsraquo493) um espiacuterito a conversar a falar em

491 Œ1 p 1401 ou LQ p 146492 Cf GIFORD Paul Paul Valeacutery - Le dialogue des choses divines Corti Paris 1989 cf GIFORD Paul amp STIMPSON Brian (orgs) Paul Valeacutery - Musique Mystique Matheacutematique Presses Universitaires de Lille Lille 1993493 Π folio 80

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versos brancos494 com os vivos por vezes tambeacutem evoca aquilo que denomina de dramatis personnae como as de Santo Anselmo Santo Tomaacutes de Aquino Dante Pascal e Descartes Haacute portanto muitas opccedilotildees de vozes oupersonagens todas recorrentes em outros tantos escritos de Valeacutery Mas natildeo houve tempo de fazer as escolhas pois a morte logo veio a ter com o poeta

Um das principais propostas desse diaacutelogo embrionaacuterio eacute sobretudo investigar o que faz o homem usar tatildeo frequumlentemente o conceito de Deus para explicar o mundo laquoo que faz o homem recorrer agrave noccedilatildeo mdash ou notaccedilatildeo de Deusraquo495 para entatildeo ao que grande parte dele indica laquoarruinar o que estaacute arruinado mdash o Divino tradicional [] que natildeo estaacute mais em equiliacutebrio como a manobra mental possiacutevel e as [] descobertasraquo496 que natildeo estaacute mais portanto em consonacircncia ou em harmonia com o advento da Ciecircncia Moderna e de modos de pensar mais analiacuteticos Quanto agraves causas evocadas do surgimento e do uso conceito de Deus e mesmo de outras tantos outros do discurso religioso duas se destacam

Uma refere-se mdashnatildeo se distanciando em muito de uma visatildeo jaacute claacutessica da origem das crenccedilas religiosasmdash ao espanto ao medo diante de tudo o que existe497 laquoO medo e as ilusotildees dos selvagens e dos primeiros humanosraquo lecirc-se por exemplo numa quase intransigente passagem dura como a dos primeiros etnoacutelogos de orientaccedilatildeo positivista laquocriaram os espiacuteritos e os deuses como reaccedilotildees ingecircnuas mdash e produtos brutos de brutos mdash e essas obras grosseiras [foram] enobrecidas e refinadas pelas eras seguintesraquo498 e isso a tal ponto que o Deus dos filoacutesofos e dos teoacutelogos por exemplo frequumlentemente se transformanum laquofetiche abstrato um iacutedolo no fim do raciociacutenio mdashraquo499 Com isso a criacutetica de Valeacutery parece natildeo almejar simplesmente a fraqueza humana a engendrar personificaccedilotildees antropomorfismos formas psicoloacutegicas usadas de modo egoiacutestico para suportar o peso da realidade a doenccedila a velhice e a morte o sofrimento mas principalmente mdashe o que eacute aqui centralmdash as terriacuteveis consequumlecircncias de se criar e de se usar qualquer conceito por mais adequado que possa parecer no momento nascente sob o impeacuterio do medo numa frase memoraacutevel lecirc-se laquoAquilo que eacute engendrado pelo medo [] engendra o medoraquo500 Aquilo que eacute engendrado pelo medo perturba o espiacuterito ou melhor demonstra o quanto o proacuteprio espiacuterito jaacute se encontra em perturbaccedilatildeo e portanto que soacute muito dificilmente seraacute capaz de engendrar conceitos adequados agrave realidade Dir-se-ia

494 Π folio 3495 Π folio 132496 Π 1938-1939 Texte 57 (XXII 635)497 Π folio 49 recto498 Π 1921-1922 Texte 2 (VII 312-314) passage p 313499 Π 1921-1922 Texte 14 (VIII 569)500 Π 1921-1922 Texte 5 (VIII 390)

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que para o poeta em seu programa de autoconsciecircncia assim como para seus principais personagens conceituais Leonardo e sobretudo Teste um pensamento puroeacute um pensamento sem medo

Coadunando-se harmonizando-se com essa concepccedilatildeo a segunda causa do surgimento e do uso do conceito de Deus evocada mdashidecircntica agraveargumentaccedilatildeo que Valeacutery utiliza contra a filosofiamdash refere-se justamente ao automatismo verbal tambeacutem recorrente e enormemente recorrente no pensamento religioso a engendrar contra-sensos falsos problemas e falsas soluccedilotildees Uma das palavras mais propensa a variaccedilotildees semacircnticas uma das palavras mais servil aosdiscursos metafiacutesicos Deus natildeo deixa de ser tambeacutem o signo o resultado do esquecimento ou da ignoracircncia do funcionamento da linguagem Ele eacute laquoum viacutecio de construccedilatildeoraquo501 E devido justamente ao advento da Ciecircncia Moderna e de modos de pensar mais analiacuteticos Valeacutery natildeo tarda em afirmar que laquoQuanto mais vocecirc compreender menos deus haveraacuteraquo502 laquoNum mundo preciso natildeo haacute lugar para o deus mdashraquo503 Ou ainda laquoToda disputa acerca da feacute seria imediatamente abolida se somente fosse possiacutevel agarrar representar exatamente o estado do crente tal qual aparece e ele mesmoraquo504 Dessarte o que eacute tradicionalmente atrelado aos desiacutegnios de Deus os dogmas Cristatildeos eacute veementemente questionado (como tambeacutem ocorre em Au sujet drsquolsquoEurecirckarsquo e Dialogue de lrsquoarbre) sobretudo a Escatologia corpo doutrinaacuterio segundo o qual o homem e o mundo rumam ao fim dos tempos e em contrapartida o Criacionismo corpo doutrinaacuterio segundo o qual Deus criou o mundo e o criou a partir do nada Ambas as concepccedilotildees (que contribuiacuteram para a formaccedilatildeo de uma concepccedilatildeo linear do tempo e da histoacuteria) satildeo para Valeacutery (refrataacuterio agraves filosofias histoacutericas idealistas) natildeo apenas tristes propagadoras da esperanccedila e do medo mas principalmente contra-sensos Pois ao espiacuterito agrave consciecircncia (agrave razatildeo) simplesmente natildeo faz sentido pensar o nada um comeccedilo e um fim o nada umcomeccedilo e um fim soacute satildeo passiacuteveis de serem pensados enquanto conceitos-limite enquanto representaccedilotildees natildeo enquanto tais natildeo enquanto representados pois eles natildeo remetem a nada de real laquodizer que um deus criou o mundoraquo escreveo poeta laquoeacute nada dizer ideacuteia nula posto inimaginaacutevelraquo505 laquoeacute perfeitamente vatilde dizer um deus fez o mundo se noacutes natildeo podemos dar nenhuma ideacuteia dessa operaccedilatildeoraquo506

Contudo haacute que se matizar a insipiente e lacunar criacutetica de Valeacutery ao conceito de Deus ou melhor aos usos do conceito de Deus pois haacute outros

501 Π folio 52502 Π folio 54503 Π folio 84504 Π 1921-1922 Texte 2 (VII 312-314) passage p 313505 Π folio 81506 Π 1921-1922 Texte 17 (VIII 701)

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tantos fragmentos que parecem deliberadamente contradizer o que anteriormente foi dito que parecem atacar o problema atraveacutes de outra perspectiva (Afinal trata-se de um escrito extremamente incompleto e natildeo haacute como distinguir precisamente quem realmente se expressa o autor ou as suas vozes ou personagens e nestas quem estaacute a expressar isto ou aquilo) Agraves vezes o diaacutelogo acorda por exemplo em fazer a distinccedilatildeo entre Deus ou deuses de um lado e as coisas divinas de outro quanto a isso alguns fragmentos assim rezam laquoAs coisas divinas satildeo mais raras que os deuses mdash Mais divinas tambeacutemraquo507

laquoEu natildeo vejo uma razatildeo para deus mas eu natildeo digo que o divino seja inexistenteraquo508 laquomdash o divino mdash uma pura possibilidaderaquo509 Mas essa distinccedilatildeo eacute muito pouco clara quiccedilaacute as coisas divinas ou o divino refiram-se ao que haacute de mais valoroso a um espiacuterito particular sem que este tenha qualquer intenccedilatildeo de universalizar de propagar sua proacutepria hierarquia de valores e Deus a um valor que um ou vaacuterios espiacuteritos particulares intentam universalizar propagar a todos os demais independentemente destes assim tambeacutem considerarem ou natildeo Entretanto haacute uma outra passagem que incita a matizar ainda mais a criacutetica de Valeacutery ao conceito de Deus laquoTodos os insultos que noacutes fazemos a deusraquoescreve ele laquotodas as mais graves injuacuterias [] tecircm por raiz o nosso censuraacute-lo natildeo sermos um deus de natildeo [nos] convir agrave ideacuteia que temos de um deus Mas essa ideacuteia mesma eacute deduzida da ideacuteia que noacutes temos do homem e de noacutes mesmosraquo510 laquoEle [Deus] assume tudo o que eacute [] impossiacutevel tudo o que falta [] ele [Deus] eacute a ligaccedilatildeo do espiacuterito impotenteraquo511 Deus compreendido portanto como o signo o resultado da consciecircncia que o ser humano tem dos seus proacuteprios limites e impotecircncias Eacute justamente atraveacutes desse tipo de reflexatildeoque Valeacutery ao fim desse derradeiro diaacutelogo socraacutetico adentra novamente agrave miacutesticaO que entretanto ele acrescenta agrave sua jaacute referida proposta de uniatildeo entre o espiacuterito e Deus ou melhor entre o espiacuterito e si mesmo proposta de possessatildeo de si mesmo eacute a concepccedilatildeo segundo a qual tal uniatildeo tal possessatildeo soacute se daraacuteplenamente como intui o Soacutecrates valeacuteryano no Eupalinos atraveacutes do corpo Pois este eacute segundo o que se lecirc nesse diaacutelogo o veiacuteculo mesmo a Deus laquoO miacutestico eacute a possessatildeo corporal do deus a busca mdash do deus pelo corpo O corpo instrumento da busca e da presenccedila do deusraquo512

No diaacutelogo Περὶ τῶν τοῦ θεοῦ - Ou des choses divines Deus tambeacutem acaba

se revelando enfim como a meta pessoal que o espiacuterito atraveacutes do corpo no qual ocorre se propotildee alcanccedilar o sentido o fim uacuteltimo que o espiacuterito daacute ou pode dar agrave 507 Π folio 143 ou Π 1935-1936 Texte 47 (XVIII 850)508 Π 1921-1922 Texte 2 (VII 312-314)509 Π 1921-1922 Texte 3 (VIII 355)510 Π folio 47511 Π folio 52512 Π folio 76

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totalidade de suas proacuteprias accedilotildees a totalidades de seus proacuteprios fazeres ao todo de seu destino Sentido fim uacuteltimo que no caso de Valeacutery pode ser nomeado como oconceito de eu puro Daiacute o poeta intensamente se questionar mdashe isso natildeo deixa de ser uma verdadeira siacutentese do modo como procede seu pensamentomdash sobre a adequaccedilatildeo a validade de um Deus que foi concebido em outras eacutepocas e com outros pressupostos por outro ou por outros e natildeo por si mesmo o Deus mesmo da tradiccedilatildeo mdashde qualquer tradiccedilatildeomdash agrave qual as pessoas com menor ou maior consciecircncia aderem ou recusam-se a aderir como aceitar um Deus que foi criado por problemaacuteticas alheias laquocomo ligar-se a um Deus de outroraquo ele assim se pergunta laquoa um deus que noacutes natildeo inventamos []raquo513 laquoQuem sabe se toda tua paixatildeo seus erros suas blasfecircmias suas sujeiras atos e crimes natildeo satildeo um caminho que leva a Deus e o uacutenico que vocecirc poderaacute seguirraquo514 Ou ainda laquoO valor de teu deus eacute o do teu pensamentoraquo515 Com isso toda a criacutetica de Valeacutery ao proselitismo intelectual transfere-se agora ao proselitismo religioso agraves doutrinasreligiosas que afirmam ter superado as aporias surgidas no pensamento sobre Deus e alcanccedilado o conhecimento da verdade acerca Dele verdade que deve ser aceita por todos Mas o poeta mdashpara quem a liberdade eacute a liberdade do pensamentomdash sabe que uma verdade deixa de ser verdade quando eacute forccedilada quando eacute imposta que uma verdade deixa de ser verdade quando haacute o desejo de universalizaacute-la laquoO poderoso gosto de ldquoter razatildeordquo de convencer de seduzir ou de reduzir os espiacuteritos de excitaacute-los em favor ou contra a qualquer um ou a qualquer coisaraquo revela laquome eacute essencialmente estranho para natildeo dizer odioso [] Nada me choca mais que o proselitismo e seus meios sempre impuros [] Aconselho Esconda teu Deus pois ele eacute o seu faliacutevel a partir do momento em que os outros o conheccedilamraquo516 A miacutestica de Valeacutery eacute negativa apofaacutetica e num grau extremo natildeo somente porque quase sempre nega a referir-se a Deus atraveacutes de proposiccedilotildees afirmativas mas tambeacutem porque nega radicalmente revelar a face do Deus que cria para si Assim como todo o seu pensamento com o qual se confunde essa miacutestica acaba no silecircncio No silecircncio do eu puro no silecircncio que sempre almejou realizar

513 Π folio 88514 Π folio 134515 Π 1940-1941 Texte 67 (XXIV 859)516 Œ1 p 1471

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ARTIGOS SOBRE PAUL VALEacuteRY

ADORNO Theodor W La fonction vicariante du funambule amp Les ecarts de Paul Valeacutery in Notes sur la littteacuterature trad Sibylle Muller Flammarion Paris 1984

mdash Museu Valeacutery Proust in Prismas - Criacutetica Cultural e Sociedade trad Augustin Wernet amp Jorge Mattos Brito de Almeida Aacutetica Satildeo Paulo 1998

BARBOSA Joatildeo Alexandre A comeacutedia intelectual de Paul Valeacutery Iluminuras Satildeo Paulo 2007

mdash Leitura viva do lsquoCemiteacuteriorsquo in As ilusotildees da modernidade - Notas sobre historicidade da liacuterica moderna Perspectiva Satildeo Paulo 1986

mdash Os lsquoCadernosrsquo de Paul Valeacutery in Alguma criacutetica Atelier Editorial Satildeo Paulo 2002

mdash Paul Valeacutery e a comeacutedia intelectual in A biblioteca imaginaacuteria Atelier Editorial Satildeo Paulo 1996

mdash Paul Valeacutery e a traduccedilatildeo de lsquoMonsieur Testersquo in Entre livros Atelier Editorial Satildeo Paulo 1999

BENJAMIM Walter Paul Valeacutery - pour son soixantiegraveme anniversaire in Œuvres II trad Maurice de Gadillac Rainier Rochlitz amp Pierre Rusch Folio Essais Gallimard Paris 2000

BLANCHOT Maurice Valeacutery et Faust in La part du Feu Nrf Gallimard 1949

BOISDEFFRE Pierre de Paul Valeacutery ou lrsquoimperialisme de lrsquoesprit in Meacutetamorphose de la litteacuterature - De Proust agrave Sartre - Proust Valeacutery Cocteau Anouilh Sartre Camus - Essais de psychologie litteacuteraire suivis de deux eacutetudes sur lsquoLa geacuteneacuteration du demi-siegraveclersquo et lsquoLa condition de la litteacuteraturersquo II Editions Alsatia Paris s d

CIORAN Emile Valeacutery faces agrave ses idoles in Œuvres Quarto Eacuteditions Gallimard 1995

DEGUY Michel O fim do mundo ldquofinitordquo in NOVAES Adauto (org) Poetas que pensaram o mundo Companhia das Letras Satildeo Paulo 2005

DERRIDA Jaques Qual quelle - Les sources de Valeacutery in Marges de la philosophie Minuit Paris 1972

ELIOT T S De Poe a Valeacutery in Ensaios escolhidos org e trad Maria Adelaide Ramos Cotovia Lisboa 1992

GENETTE Geacuterard La litteacuterature comme telle in Figures I Eacuteditions du Seuil Paris 1966

mdash Au deacutefaut des langues in Mimologiques - Voyage en Cratylie Eacuteditions du Seuil Paris 1976

JARRETY Michel Valeacutery Paul (1871-1945) in Dictionnaire de la litteacuterature franccedilaise XXe siegravecle in Enciclopaeligdia Universalis amp Albin Michel Paris 2000

NUNES Benedito Soacutecrates construtor in Crivo de papel Editora Aacutetica Satildeo Paulo 1998

ROBINSON-VALEacuteRY Judith Les Cahiers de Valeacutery œuvre preacutepareacutes ou non in Hay L (org) Carnets drsquoeacutecrivans I CNRS Paris 1990

STAROBISNKI Jean Le Systegraveme dans les Cahiers in JARRETY Michel Paul Valeacutery Hachette Paris 1992

mdash laquoSoy reaccioacuten a lo que soyraquo (Paul Valeacutery) in Accioacuten y reaccioacuten - Vida y aventuras de una pareja trad Eliane Casenave Tapieacute Isoard Fondo de Cultura Econoacutemica Meacutexico 2001

WILSON Edmund Paul Valeacutery in O castelo de Axel - Estudo acerca da literatura imaginativa de 1870-1939 trad Joseacute Paulo Paes Companhia das Letras Satildeo Paulo 2004

WEIL Simone Quelques reacutefleacutexions autour de la notion de valeur in Œuvres org Florence de Lussy Quarto Gallimard Paris 1999

OBRAS DIVERSAS

AMIEL Henri-Freacutedeacuteric Journal Intime - Janvier-juin 1854 Texte inteacutegral publieacute par la premiegravere fois avec une postface des notes et un index par Philippe M Monnier Bibliothegraveque Romande Lausanne 1973

- 186 -

ARISTOTLE Poetics trad Stephen Halliwell Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 2005

ADORNO Theodor Teoria esteacutetica trad Artur Moratildeo Ediccedilotildees 70 Lisboa

SantrsquoAGOSTINO Le Confessioni in Opere di SantrsquoAgostino I edizione latino-italiana Nuova Biblioteca Agostiniana Cittagrave Nuoava Editrice Roma 1993

BACON Francis The new organon org Lisa Jardine amp Michael Silverthorne Cambridge University Press Cambridge 2000

BARTHES Roland Œuvres Completes III 1974-1980 org Eacuteric Marty Eacuteditions du Seuil 1995

BAUDELAIRE Charles Poesia e prosa vol uacutenico org Ivo Barroso trad Cleone Augusto Rodrigues Joana Angeacutelica DrsquoAacutevila Melo Marcella Mortara Pliacutenio Augusto Coelho amp Suely Cassal Nova Aguilar Rio de Janeiro 2002

BENJAMIM Walter A obra de arte na eacutepoca de suas teacutecnicas de reproduccedilatildeo Sobre alguns temas em Baudelaire trad Joseacute Lino Grunnewald amp outros Os pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1980

mdash Sobre a atual posiccedilatildeo do escritor francecircs in WalterBenjamin trad Flaacutevio R Kothe Sociologia Aacutetica Satildeo Paulo 1985

BERGSON Henri Essai sur les donneacutees immeacutediates de la conscience PUF Paris 2005

BRADBURY Malcom amp McFARLANE James (org) Modernismo - Guia geral trad Denise Bottmann Companhia das Letras Satildeo Paulo 1998

BORGES Jorge Luis Obras completas I-IV Emeceacute Editores Buenos Aires 1989

CALVINO Iacutetalo Seis propostas para o proacuteximo milecircnio trad Ivo Barroso Companhia das Letras Satildeo Paulo 1999

CARNAP Rudolph Le deacutepassement de la meacutetaphysique par lrsquoanalyse logique du langage in SOULEZ Antonia (org) Manifeste du Cercle de Vienne et autres eacutecrists PUF Paris 1985

CHARPIER Jacques amp SEGHERS Pierre(orgs) Lrsquoart poeacutetique Editions Seghers Paris 1956

CIORAN Emile Œuvres Quarto Eacuteditions Gallimard 1995

CONDILLAC Eacutetienne Bonnot de Essai sur lrsquoorigine des connaissances humaines - Ouvrage ougrave lrsquoon reacuteduit agrave un seul principe tout ce qui concerne lrsquoentendement org Raymond Lenoir Librairie Armand Colin 1924

COSSUTTA Freacutedeacuteric (org) Le dialogue introduction agrave un genre philosophique Press Universitaires du Septentrion Paris 2004

DESCARTES Reneacute Discurso do MeacutetodoMeditaccedilotildees Objeccedilotildees e respostas amp As paixotildees da alma Cartas trad J Guinsburg e Bento Prado Juacutenior Os Pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1979

mdash Œuvres de Descartes - Correspondences - avril 1622-feacutevrier 1638 I ed Charles Adam amp Paul Tannery Librairie Philosophique J Vrin Paris 1996

DELEUZE Gilles Loacutegica dos sentidos trad Luiz Roberto Salinas Fortes Perspectiva Satildeo Paulo 2000

mdash amp GUATTARI Feacutelix O que eacute a Filosofia trad Bento Prado Jr amp Alberto Alonzo Muntildeos Editora 34 Rio de Janeiro 2000

DERRIDA Jaques De la grammatologie Minuit 1967

mdash Marges de la philosophie Minuit Paris 1972mdash La voix et le pheacutenomegravene PUF Paris 1967mdash Lrsquoeacutecriture et la diffeacuterence Eacuteditions du Seuil

Paris 1967ECO Umberto A busca da liacutengua perfeita na

cultura europeacuteia trad Antonio Angonese Edusc Bauru 2002

mdash Lector in fabula - A cooperaccedilatildeo interpretativa nos textos narrativos trad Attiacutelio Cancian Estudos Perspectiva Satildeo Paulo 2004

GADAMER Hans-Georg Verdade e meacutetodo -Traccedilos fundamentais de uma hermenecircutica filosoacutefica I-II trad Flaacutevio Paulo Meurer nova revisatildeo da trad Enio Paulo Giachini Vozes amp Editora Universitaacuteria Satildeo Francisco Petroacutepolis amp Braganccedila Paulista 2004

GIDE Andreacute Journal - 1939-1949 - Souvenirs Bibliothegraveque de la Pleacuteiade Gallimard Paris 1988

HAUSER Arnold Histoacuteria social de la literatura y del arte III trad A Tovar amp Varas-Reyes Guadarrana Madri 1976

HORACE Ars poeacutetica trad H R Fairclough org Jeffrey Henderson Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 2005

HURET Jules in Enquecircte sur lrsquoeacutevolution litteacuteraire in lthttpwwwuni-duisburg-essendelyriquetheorietexte1891_hurethtmlgt 2008

KARL Frederick R O Moderno e o Modernismo -A soberania do artista - 1885-1925 trad Henrrique Mesquita Imago Rio de Janeiro 1988

LALOU Reneacute Deacutefense de lrsquohomme (intelligence et sensualiteacute) Sagitaire Simon Kra Paris 1926

LEONARDO da Vince Os escritos de Leonardo da Vince sobre a arte da pintura trad Eduardo Carreira Imprensa Oficial amp Editora Universidade de Brasiacutelia Satildeo Paulo 2000

- 187 -

LUCIAN Dialog of the dead VII no 431 trad M D Macleod org G P Goold Harvard University Press Loeb Classical Library Cambridge amp London 1992

MALLARMEacute Steacutephane Œuvres complegravetes I (1998) e II (2003) org Bertrand Marchal Bibliothegraveque de la Pleacuteiade Gallimard Paris

MAUTHNER Fritz Contribuciones a uma criacutetica del lenguage trad Joseacute Moreno Villa Herder Barcelona 2001

MERELAU-PONTY Maurice A duacutevida de Ceacutezanne trad Marilena de Souza Chauiacute Nelson Alfredo Aguilar amp Pedro de Souza Moraes Os Pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1980

mdash A prosa do mundo trad Paulo Neves Cosac amp Naify Satildeo Paulo 2002

MONTAIGNE Michel Os ensaios I (2002) II (2000) e III (2001) trad Rosemary Costhek Abiacutelio Martins Fontes Satildeo Paulo 2000

MUSIL Robert O homem sem qualidades trad Lya Luft amp Carlos Abbenseth Nova Fronteira Rio de Janeiro 1989

NIETZSCHE Friedrich Asiacute habloacute Zaratustra trad Andreacute Sanches Pascual Alianza Editorial Madrid 1996

mdash Sobre verdade e mentira no sentido extra-moraltrad Rubens Rodrigues Torres Filho Os Pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1974

mdash O nascimento da trageacutedia - Ou helenismo e pessimismo trad J Guinsburg Companhia das Letras Satildeo Paulo 1999

PEIRCE Charles S Philosophical writings of Peirce org Jusus Buchler Dover Publications New York

PESSOA Fernando Obras em Prosa Em umvolume Nova Aguilar Rio de Janeiro 1985

PLATO Cratylus IV no 167 trad Harold North Fowler org G P Goold Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 1992

mdash Parmenides trad Harold North Fowler org Jefrey Henderson Harvard University Press Loeb Classical Library Cambridge amp London 2002 130 A-E pp 208-213

mdash Phaedo Phaedrus I no 36 trad Harold North Fowler org Jefrey Henderson Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 2005

mdash Republic - Books 6-10 trad Paul Shorey Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 2006

mdash Symposium trad W R M Lamb org Jeffrey Henderson amp G P Goold Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 2001

mdash Theaetetus Sophist no 123 trad Harold North Fowler org Jeffrey Henderson Loeb Classical Library Cambridge amp London 2006

POE Edgard Allan Eureka - A prose poem Prometheus Books Nova York 1997

mdash Poemas e ensaios trad Oscar Mendes e Milton Amado revisatildeo e notas Carmen Vera Cirne Lima Globo Satildeo Paulo 1999

PONGE Francis Meacutetodos trad Leda Tenoacuterio da Motta Imago Rio de Janeiro 1997

POPKIN Richard The History of Scepticism -From Savonarola to Bayle Oxford University Press New York 2003

POUND Ezdra Personaelig - Collected shorter poems of Ezra Pound Faber and Faber Londres mcmlii

RORTY Richard M (org) The linguistic turn -Essays in philosophical method - With two retrospective essays The University of Chicago Press Chicago amp Londres 1992

ROUSSEAU Essais sur lrsquoorigine des langues org Jean Starobinski Folio - Essais Gallimard Paris 1993

SAUSSURE Ferdinand Cours de linguistique geacuteneacuterale ed Charles Bally Albert Sechehaye amp Albert Riedlinger (colab) Eacutedition critique preacutepareacute par Tullio de Mauro Payothegraveque Payot Paris 1982

SOULEZ Antonia (org) Manifeste du Cercle de Vienne et autres eacutecrists PUF Paris 1985

WEIL Simone A gravidade e a graccedila trad Paulo Neves Martins Fontes Satildeo Paulo 1993

WITTGENSTEIN Ludwing Investigaccedilotildeesfilosoacuteficas trad Joseacute Carlos Bruni Os Pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1979

mdash Tratactus Logico-Philosophicus trad Luiz Henrique Lopes dos Santos EDUSP Satildeo Paulo 1994

YEATS W B Autobiographies Macmillian amp Co Ltda London Toronto 1961 amp A vision Papermac Pan Macmillian Publishers London Basingstone Hong Kong 1992

ZAMBRANO Maria Filosofiacutea y poesiacutea Fondo de Cultura Econoacutemica Cidade do Meacutexico 1996

PAGE

Universidade de Satildeo Paulo

Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas

Departamento de Filosofia

Programa de poacutes-graduaccedilatildeo em filosofia

Brutus Abel Fratuce Pimentel

Paul Valeacutery

Estudos filosoacuteficos

Satildeo Paulo

2008

Brutus Abel Fratuce Pimentel

Paul Valeacutery

Estudos filosoacuteficos

Tese apresentada ao programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Filosofia sob a orientaccedilatildeo da Profa Dra Olgaacuteria Matos

Satildeo Paulo

2008

Brutus Abel Fratuce Pimentel

Paul Valeacutery - Estudos filosoacuteficos

Tese apresentada ao programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Filosofia sob a orientaccedilatildeo da Profa Dra Olgaacuteria Matos

Comissatildeo examinadora

Prof(a) Dr(a) ________________________

Instituiccedilatildeo ___________________________ Assinatura _____________________

Prof(a) Dr(a) ________________________

Instituiccedilatildeo ___________________________ Assinatura _____________________

Prof(a) Dr(a) ________________________

Instituiccedilatildeo ___________________________ Assinatura _____________________

Prof(a) Dr(a) ________________________

Instituiccedilatildeo ___________________________ Assinatura _____________________

Prof(a) Dr(a) ________________________

Instituiccedilatildeo ___________________________ Assinatura _____________________

Satildeo Paulo _____ de ____________ de _____

A Luto Pimentel Hurtado

Il faut ecirctre leacuteger comme lrsquooiseau et non comme la plume

Paul Valeacutery

SUMAacuteRIO

Resumo 7

Abstract 8

Agradecimentos 9

Abreviaturas 10

1 Diretrizes espirituais 11

11 Caracterizaccedilatildeo a escritura do fragmento ( Introduccedilatildeo) 11

111 Da crise agrave autarquia espiritual 19

1111 O culto ao Iacutedolo do intelecto o eu puro 28

1112 Fazer sem crer 41

2 Personagens ( Escoacutelios) 47

21 Modos de vida 47

211 Leonardo da Vince 50

2111 O fazer 55

212 Edmond Teste 66

2121 O possiacutevel 70

3 Saber e poder 80

31 Sob o signo da ciecircncia 80

311 Criacutetica agrave histoacuteria 89

4 Criacutetica agrave filosofia 95

41 O primado da linguagem 95

411 Insuficiecircncia convenccedilatildeo transitoriedade 99

4111 Automatismo verbal 113

412 Filosofia como forma 121

413 Filosofia como literatura 128

5 Poeacutetica 132

51 Poesia criacutetica 132

511 Poesia pura 134

6 Diaacutelogos socraacuteticos ( Escoacutelios) 145

61 A reinvenccedilatildeo de um gecircnero 145

611 A danccedila de Athiktecirc 151

612 No mundo dos mortos 159

6121 A oraccedilatildeo de Eupalinos 166

6122 Anti-Soacutecrates 174

613 No mundo dos vivos ( Conclusatildeo) 178

Bibliografia 183

Obras de Paul Valeacutery 183

Obras de Paul Valeacutery em portuguecircs 183

Obras coletivas sobre Paul Valeacutery 183

Obras individuais sobre Paul Valeacutery 184

Artigos sobre Paul Valeacutery 185

Obras diversas 185

Resumo

Brutus Abel Paul Valeacutery - Estudos filosoacuteficos Tese (Doutorado) Departamento de Filosofia Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2008

No intuito de realizar um laquoeu puroraquo (laquomoi pureraquo) o poeta Paul Valeacutery (1871-1945) dedica-se ao culto do laquo Iacutedolo do intelectoraquo (laquo Idole de lrsquointellectraquo) a um meacutetodo ceacutetico de auto- consciecircncia expresso numa escrituraccedilatildeo extremamente fragmentada sobre os processos mentais e o fazer artiacutestico (na sua obra puacuteblica e principalmente nos seus Cahiers) Uma das principais consequumlecircncias desse meacutetodo eacute uma digressiva e ambiacutegua critica agrave filosofia a qual esta Tese postula e desenvolve mediante os seguintes estudos sobre a elaboraccedilatildeo de um modo de vida relativamente autocircnomo simultaneamente praacutetico e contemplativo (principalmente nos seus ensaios sobre Leacuteonard de Vinci e Edmond Teste) sobre a diferenccedila entre filosofia e ciecircncia na perspectiva de que todo saber eacute poder sobre a compreensatildeo dos problemas metafiacutesicos como contra-sensos como resultados do laquo automatismo verbalraquo (laquo automatisme verbalraquo) da falta de consciecircncia do funcionamento da linguagem sobre a poeacutetica da poesia pura como aboliccedilatildeo do reacutecit e conciliaccedilatildeo entre poesia e pensamento abstrato sobre a inversatildeo do platonismo em obras hiacutebridas de ficccedilatildeo (principalmente nos seus diaacutelogos socraacuteticos como Lrsquoacircme et la danse e Eupalinos - Ou lrsquoarchitecte) Em todos esses estudos a filosofia eacute compreendida natildeo como uma ciecircncia mas tal como a poesia como um gecircnero artiacutestico uma forma pessoal de organizar esteticamente o caos do mundo

Palavras-chave Paul Valeacutery auto-consciecircncia linguagem filosofia e esteacutetica

Abstract

Brutus Abel Paul Valeacutery - Philosophical studies Thesis (Doctoral) Departamento de Filosofia Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2008

In order to realize a laquopure selfraquo (laquomoi pureraquo) the poet Paul Valeacutery (1871-1945) dedicates to the laquointellect Idolraquo (laquo Idole de lrsquointellectraquo) cult a self-consciousness skeptic method expressed in an extremely fragmented writing about the mental processes and the artistic making (in his public work and mainly in his Cahiers) One of the main consequences of this method is a digressive and ambiguous critic of philosophy which the present Thesis postulates and develops through the following studies about the elaboration of a relatively autonomous life style at the same time practical and contemplative (mainly in his Leacuteonard de Vinci and Edmond Teste essays) about the difference between philosophy and science understanding that all knowledge is power about the comprehension of metaphysical problems as nonsense as result of the laquo verbal automatismraquo (laquo automatisme verbalraquo) the lack of the language operation consciousness about the pure poetry poetic as the reacutecit abolition and conciliation between poetry and abstract thought about the Platonism inversion in hybrids works of fiction (mainly in his socratic dialogues as Lrsquoacircme et la danse and Eupalinos - Ou lrsquoarchitecte) In all these studies philosophy is understood not as a science but such as poetry as an artistic gender a personal form of organizing aesthetically the world chaos

Keywords Paul Valeacutery self-consciousness language philosophy aesthetic

Agradecimentos

A CAPES pelo indispensaacutevel apoio financeiro Agrave profa Dra Olgaacuteria Matos pela confianccedila no estudo sobre um autor pouco explorado em filosofia pela segura orientaccedilatildeo pela amizade e delicadeza Aos professores Dr Franco Moretti Dr Horaacutecio Costa Dr Jorge de Almeida Dr Leon Kossovitch Dr Franklin de Matos Dra Marilena Chaui e Dr Seacutergio Cardoso com os quais tive a oportunidade de conviver como aluno A todos os funcionaacuterios da Biblioteca e do Departamento de Filosofia mantenedores do indispensaacutevel suporte material aos alunos de graduaccedilatildeo e poacutes-graduaccedilatildeo colegas da vida acadecircmica Do Exame de Qualificaccedilatildeo participaram os professores Dra Maria das Graccedilas e Dr Franklin Leopoldo a eles pela paciecircncia e pelas generosas consideraccedilotildees e sugestotildees Agrave profa Dra Anne Shirley pela iniciaccedilatildeo na pesquisa acadecircmica Agrave Madame Suzanne Roger pelas preciosas aulas Ao saudoso prof Dr Joatildeo Alexandre Barbosa pelas conversas e pelo conselho em natildeo deixar de compreender Valeacutery como poeta Enfim a Tereza Thiago e Max minha famiacutelia

Abreviaturas

As citaccedilotildees usadas na Tese procuram ser fieacuteis ao texto original apresentam portanto as lacunas e a pontuaccedilatildeo das quais Paul Valeacutery se serve

Obras de Paul Valeacutery

Amdash Alphabet org Michel Jarrety Le Livre de Poche - Classique Paris 1999

C1 C2 etcmdash Caheirs I-XXIX fac-simileacute CNRS Paris 1957-1961

C1rsquo amp C2rsquomdash Caheirs I (1973) II (1974) choix de textes org Judith Robinson-Valeacutery Bibliothegraveque de la Pleacuteiade Gallimard Paris

C1rsquorsquo C2rsquorsquo etcmdash Cahiers 1894-1914 I (1987) II (1988) III col Blanche (1990) org Nicole Ceylerette-Pietri amp Judith Robinson-Valeacutery IV 1900-1901 (1992) V 1902-193 (1994) VI 1903-1904 (1997) org Nicole Ceylerette-Pietri VII 1904-1905 (1999) VIII 1905-1906 (2001) IX 1907-1909 (2003) org Nicole Ceylerette-Pietri amp Robert Pickering Gallimard Paris

CCmdash Une chambre conjecturale - Poegravemes ou proses de jeunesse par Paul Valeacutery Fata Morgana Montpellier 1981

CLmdash laquo Carnet de Londres raquo 1894 carnet ineacutedit org Florence de Lussy Bibliothegraveque de la Pleacuteiade Gallimard Paris 2005

CRmdash Cartesius redivivus in Cahier Paul Valeacutery no 4 publications de la Societeacute Paul Valeacutery org Jean Levaillant amp Agathe Rouart-Valeacutery Gallimard Paris 1986

CVFmdash amp Fourment Gustav Correspondance 1887-1933 org Octave Nadal Gallimard Paris 1957

CVGmdash amp Gide Andreacute Correspondance 1890-1942 org Robert Mallet Gallimard Paris 1955

LQ mdash Lettres agrave quelques-uns LrsquoImaginaire Gallimard 1997

œ1mdash œuvres I Bibliothegraveque de la Pleacuteiade Gallimard Paris 1997

œ2mdash œuvres II Bibliothegraveque de la Pleacuteiade Gallimard Paris 1993

Πmdash Περὶ τῶν τοῦ θεοῦ - ou des choses divines org Julia Peslier Kimeacute Paris 2005

PA mdash Les Priacutencipes drsquoan-archie pure et appliqueacutee Gallimard Paris 1984

V mdash Vues La Petite Vermillon La Table Ronde Paris 1948

1 Diretrizes Espirituais

11 Caracterizaccedilatildeo a escritura do fragmento

Introduccedilatildeo

Para si mesmo

Marco Aureacutelio Meditaccedilotildees

A Modernidade eacute frequumlentemente caracterizada como um periacuteodo de intensas transformaccedilotildees sociais natildeo raro contraditoacuterias entre si no qual dimensotildees simultaneamente espirituais e praacuteticas como Religiatildeo Arte Ciecircncia e Poliacutetica outrora relativamente unificadas numa ordem ontoloacutegica de sentido e valor se autonomizam e adquirem outras formas de complexidade e poder instaurando assim a laicizaccedilatildeo de modo aparentemente irreversiacutevel E todo esse processo ocorre sob o imperioso signo do desenvolvimento da classe burguesa assentada sobretudo na possibilidade da dinacircmica de seu status social e do sistema capitalista que no intento de expandir as formas de produccedilatildeo e acumulaccedilatildeo fortemente condiciona todas essas dimensotildees Religiatildeo Arte Ciecircncia e Poliacutetica No plano do pensamento o Racionalismo e o Empirismo instaurando o primeiro a cesura entre mundo coisificado e sujeito pensante e o segundo a influecircncia indeleacutevel desse mundo no proacuteprio sujeito podem ser compreendidos como consequumlecircncias simboacutelicas a todo esse desenvolvimento pois contribuiacuteram para a separaccedilatildeo a autonomizaccedilatildeo dessas dimensotildees para a especializaccedilatildeo do proacuteprio saber para a legitimaccedilatildeo da proacutepria accedilatildeo do ser humano frente agrave natureza e ao proacuteprio ser humano Uma accedilatildeo que eacute sobretudo de controle sobre a mateacuteria Doravante eacute com o Iluminismo que tais concepccedilotildees e perspectivas se acentuam e se difundem natildeo raro acompanhadas por uma grande feacute nas capacidades transformadoras da razatildeo do intelecto humano e no irrefreaacutevel progresso da civilizaccedilatildeo na mudanccedila e na mudanccedila para o melhor

A Modernidade no plano do pensamento afirma-se deve afirmar-se portanto como uma constante ruptura Uma ruptura com relaccedilatildeo agraves tradiccedilotildees nas quais por vezes o conhecimento eacute postulado mais como recapitulaccedilatildeo do que invenccedilatildeo Nela faz-se assim presente uma dupla consciecircncia consciecircncia histoacuterica na medida em que as eras satildeo compreendidas como singulares e irreversiacuteveis e consciecircncia psicoloacutegica posto que centrada na primazia do sujeito em sua interioridade no modo como recebe e constroacutei o mundo E isso a tal grau que na literatura surge um tipo de autor um tipo de escritor cujo espiacuterito natildeo mais sentindo a necessidade a obrigaccedilatildeo de ser exclusivamente fiel agrave tradiccedilatildeo na qual foi criado ou a qualquer outra tradiccedilatildeo manifesta essa dupla consciecircncia manifesta-a na sua proacutepria escritura na medida em que afirma como sendo tatildeo-somente por ele escrita e ele um sujeito condicionado ao seu proacuteprio tempo Desenvolve-se por conseguinte na Modernidade o escritor natildeo apenas criacutetico do mundo mas criacutetico de si mesmo o escritor que natildeo apenas concebe e executa obras mas tambeacutem compraz-se em comentaacute-las em analisar e destrinccedilar seus proacuteprios procedimentos seus proacuteprios mecanismos e operaccedilotildees seus proacuteprios segredos em negar-se e afirmar-se em questionar-se mediante aquilo que escreve ou deixa de escrever em filosofar e isso a tal grau que por vezes a sua proacutepria obra adquire o estatuto paradoxal ela mesma de uma criacutetica a uma obra jamais feita mas tatildeo-somente sonhada

Quanto a esse insigne comportamento o poeta francecircs Paul Valeacutery (Segravete 30101871-Paris 20071945) mdashfilho da cultura mediterracircnea e admirador do Iluminismo e do sensualismo-materialista do seacuteculo XVIIImdash eacute paradigmaacutetico O foco de seus interesses voltava-se confessadamente mais para a forma do que para o conteuacutedo mais para a composiccedilatildeo de textos do que para os proacuteprios textos para a accedilatildeo para o fazer que estes representam o meio lhe era mais importante do que o fim o meacutetodo mais do que a meta Compreensiacutevel portanto que sua obra seja hiacutebrida e amiuacutede considerada como uma das mais estranhas da Literatura Moderna Dois aspectos a caracterizam a diletante variedade temaacutetica e a incompletude A literatura e a criacutetica literaacuteria a poesia e a poeacutetica a pintura a escultura a arquitetura as relaccedilotildees entre as artes as desventuras da histoacuteria e da poliacutetica o peso das condiccedilotildees da vida contemporacircnea sobre o resultado dos projetos humanos o misteacuterio dos sonhos as relaccedilotildees entre corpo e espiacuterito a psicologia e a fiacutesica a ldquonaturezardquo da matemaacutetica e da loacutegica a psicologia a consciecircncia o eu a memoacuteria o tempo a linguagem o saber e o poder a miacutestica Todos esses e outros tantos temas satildeo abordados e refletidos mas de modo intensamente digressivo atraveacutes de cortes e de desvios de evasotildees abruptas atraveacutes de inuacutemeras repeticcedilotildees e atualizaccedilotildees circularmente muitas vezes de um modo bastante difuso e vago como se tudo doravante devesse ser retomado relido e reescrito como se tudo fosse perpeacutetuo rascunho a um escrito porvir Quando um determinado tema eacute assim evocado e analisado este se liga ou se funde a tantos outros e como que momentaneamente desaparece deixando espaccedilo para algo inicialmente oculto e quiccedilaacute mais importante Diferentemente da grande parte dos sistemas filosoacuteficos natildeo haacute sequumlecircncias cronoloacutegicas ou didaacuteticas natildeo haacute hierarquias fixas de sentido e raras satildeo as categorias centrais palavras-chave que possam ser destacadas estudadas interpretadas e usadas em separado Sob o conceito a sombra da duacutevida sempre incide

O segmento dessa obra que primeiro veio a puacuteblico aquele que desencadeou a precoce celebridade do poeta e a primeira fase de sua fortuna criacutetica constitui-se sobretudo de riacutegida poesia metafiacutesica herdeira de um Simbolismo com aspiraccedilotildees musicais e esoteacutericas presente em poemas hoje canocircnicos como La jeune parque Eacutebauche drsquoun serpent e Le cimetiegravere marin constitui-se tambeacutem de criacuteticas discursos e prefaacutecios de ensaios aforismos contos e diaacutelogos todos formas breves como Introduction agrave la meacutethode de Leacuteonard de Vinci Monsieur Teste e diaacutelogos socraacuteticos como Lrsquoacircme et la danse e Eupalinos - Ou lrsquoarchitecte Se vaacuterios desses escritos foram concebidos sob a forccedila das circunstacircncias isto eacute comissionados para leitores ou puacuteblicos determinados e restritos isso se deve tanto agrave judiciosa resistecircncia agrave publicaccedilatildeo quanto ao extremo preciosismo do poeta daiacute as inuacutemeras versotildees de um mesmo poema por vezes consideradas contraditoacuterias Conta-se que demorava muito para revisar e reescrever como esta vasta summa de interpretaccedilotildees e criacuteticas de reflexotildees sobre obras alheias sobre a arte a literatura e a filosofia que compotildeem a sua Varieacuteteacute Nesta num texto exemplar de poeacutetica moderna Au sujet du lsquoCimetiegravere marinrsquo ele chega a se referir a uma laquo Eacutetica da forma que conduz ao trabalho infinitoraquo ao laquotrabalho pelo trabalhoraquo agrave laquoretomada indefinidaraquo concebendo qualquer composiccedilatildeo escrita por mais organizada que aparentemente esteja como nunca verdadeiramente acabada mas simplesmente abandonada devido a um acidente qualquer Porque a finitude das obras eacute determinada pelas contingecircncias da vida natildeo pela intenccedilatildeo daquele que a vive

Da obra de Valeacutery haacute ainda um outro segmento dir-se-ia secreto no qual essas caracteriacutesticas a diletante pluralidade temaacutetica e a incompletude se acentuam ao grau extremo do paroxismo os seus Cahiers Publicados postumamente redefiniram a sua crescente fortuna criacutetica ao mostrar um maior leque de seus interesses e obsessotildees Preenchidos diariamente por volta das seis agraves nove da manhatilde de 1894 a 1945 numa espeacutecie de riacutegida disciplina monaacutestica por palavras frases e paraacutegrafos soltos por esboccedilos desenhos e aquarelas esses 261 dossiecircs podem ser compreendidos como uma coleccedilatildeo de reflexotildees e de foacutermulas de esquemas a representar aquilo que foi denominado de laquoComeacutedia Intelectualraquo (laquoComeacutedie Intellectuelleraquo) mdashcomeacutedia proposta inicialmente em seus ensaios sobre Leonardo mas que natildeo deixaraacute de ser atualizada direta ou indiretamente em outras obras de ficccedilatildeo e poesiamdash laquoAutodiscussatildeo infinitaraquo (laquoAutodiscussion infinieraquo) laquoA teoria de si-mesmoraquo (laquoLa theacuteorie de soi-mecircmeraquo) laquoObra de arte feita com os fatos do proacuteprio pensamentoraquo (laquoœuvre drsquoart faite avec les faits de la penseacutee mecircmeraquo) satildeo outras tantas significativas expressotildees usadas pelo proacuteprio poeta para tentar definir esse idiossincraacutetica empresa por vezes tambeacutem uma espeacutecie de canteiro de experimentaccedilotildees para futuros projetos Daiacute textos autocircnomos prenhes de sarcaacutesticos aforismos e reflexotildees como Meacutelange Tel Quel Mauvaises penseacutees et autres e Regards sur le monde actuel et autres essais serem em determinado aspecto derivaccedilotildees ou recortes dos proacuteprios Cahiers

O procedimento empregado nos Cahiers difere entretanto da simples anotaccedilatildeo comentada de fatos e acontecimentos do tradicional diaacuterio ou journal como os que foram escritos por um Amiel disposto a revelar as intimidades e as anguacutestias da vida cotidiana e um Gide resoluto tambeacutem em representar o panorama social no qual o escritor se engaja laquoEu natildeo escrevo meu ldquodiaacuteriordquoraquo confessa o poeta laquomdash Seria aborrecido escrever aquilo que eu viria a esquecer Aquilo que natildeo custa nada mais do que o tormento imenso de escrever o que natildeo vale nadaraquo Valeacutery desenvolve assim a disciplina de uma escrituraccedilatildeo natildeo sobre a sua vida pessoal natildeo sobre os eventos exteriores e particulares pelos quais passa mas sobre o seu proacuteprio espiacuterito e as leis que o regem sobre os variados temas que lhe satildeo caros na medida em que estes possam principalmente esclarecer sobre essas proacuteprias leis Isso tambeacutem se deve a uma confessa ldquofraquezardquo ou ldquodeficiecircnciardquo mnemocircnica a uma incapacidade em se recordar de eventos de detalhes ou de minuacutecias ou em outras palavras a um idiossincraacutetico desapego ao proacuteprio passado o que talvez iraacute se refletir em certa medida nas suas reflexotildees sobre a aspiraccedilatildeo da histoacuteria em ser uma disciplina positiva ou cientiacutefica O poeta natildeo busca reconstituir tampouco lamenta aquilo que passou aquilo que natildeo realizou ou deixou de realizar aquilo que simplesmente natildeo se pode mudar Para ele o tempo jamais eacute um ldquotempo perdidordquo laquoNatildeo busco o tempo perdidoraquo afirma laquoque eu antes rejeitaria Meu espiacuterito soacute se compraz na accedilatildeoraquo Daiacute que por vezes considerou-se e foi considerado no panorama da Literatura Moderna como uma espeacutecie de ldquoantagocircnicordquo de Proust principalmente no que diz respeito tanto agraves idiossincrasias como aos programas literaacuterios de ambos O seu pensamento eacute sobretudo voltado para este jogo constante entre generalidades e particularidades entre imaginaccedilotildees e abstraccedilotildees entre siacutembolos e iacutecones sem que haja uma hierarquia vertical de valores entre essas polaridades e sobretudo para o tempo presente um tempo presente prenhe de possibilidades laquoOs acontecimentos satildeo a espuma das coisasraquo escreve em tom altamente metafoacuterico laquoMas eacute o mar que me interessa Eacute no mar que se pesca eacute sobre ele que se navega eacute nele que se mergulharaquo

Ademais o poeta constantemente revela que em seus Cahiers aspirou e ateacute mesmo tentou construir uma espeacutecie de laquo Sistemaraquo (laquo Systegravemeraquo) por ele compreendido paradoxalmente ora como filosoacutefico ora como natildeo filosoacutefico Em todo caso seria um Sistema que representasse uma totalidade uma arquitetocircnica soacutelida finita e fechada uma cosmovisatildeo uma doutrina um discurso contiacutenuo coeso e coerente cujas proposiccedilotildees constitutivas se conectariam entre si por uma riacutegida loacutegica e todas a um uacutenico princiacutepio um uacutenico indiviacuteduo um laquoponto individualraquo (laquoEuraquo) (laquopoint individuel (laquoMoiraquo)) e impessoal Esse Sistema seria tambeacutem uma laquoteoria do funcionamentoraquo (laquotheacuteorie du fonctionnementraquo) uma forma de explicar o todo natildeo mais atraveacutes de noccedilotildees consideradas propiacutecias a obscuridades e confusotildees metafiacutesicas como as noccedilotildees de causa realidade tempo e espaccedilo mas atraveacutes da noccedilatildeo de funcionamento uma forma de explicar o todo mdashpor vezes compreendido pelo poeta atraveacutes de trecircs principais categorias amiuacutede referidas laquoCorporaquo (laquo Corpsraquo) laquoEspiacuteritoraquo (laquo Espritraquo) e laquoMundoraquo (laquo Monderaquo) comumente designadas pela sigla CEMmdash natildeo mais atraveacutes da noccedilatildeo de substacircncia mas atraveacutes da noccedilatildeo de funcionamento natildeo mais um substancialismo mas um funcionalismo Esse modo de abordar o todo no qual se busca responder o como e natildeo o porquecirc das coisas e dos agenciamentos das coisas revela o caraacuteter positivo ou cientiacutefico do pensamento valeacuteryano caraacuteter que seraacute uma constante principalmente quando a linguagem e a filosofia estiverem em pauta

Todavia toda essa acircnsia em compreender a totalidade sofre no labiriacutentico e lacunar transcurso dos Cahiers sucessivas contraccedilotildees sucessivas derrotas reduzindo consequumlentemente a abrangecircncia da ambiccedilatildeo ldquoinicialrdquo por vezes o Sistema aparece como meacutetodo (ou literatura potencial) aparece como uma estrateacutegia de laquo imagens funcionaisraquo (laquo images fonctionnellesraquo) que seria na perspectiva valeacuteryana laquouma forma capaz de receber todas as descontinuidades todas as heterogeneidades da consciecircnciaraquo uma forma capaz de axiomatizar a si mesmo seus pensamentos atraveacutes de uma espeacutecie de notaccedilatildeo ou de uma linguagem perfeita uma linguagem pura com a qual se representariam todas as coisas sem deformidades uma laquo Geometria do Todoraquo (laquo Geacuteomeacutetrie du Toutraquo) tal como a geometria analiacutetica de Descartes trata as figuras geomeacutetricas por vezes o Sistema aparece ainda simplesmente mais como um modo de organizar e utilizar seu proacuteprio pensamento que lentamente se acumula nas inuacutemeras paacuteginas que coleciona laquoO problema no qual eu me encontro cada vez mais encurraladoraquo anota por fim laquoeacute o problema de organizar meus pensamentos e de os organizar natildeo exteriormente mas organicamente e utilmenteraquo Daiacute tambeacutem a intenccedilatildeo de estruturar os Cahiers mdashque agora podem muito bem ser compreendidos em parte como o resultado desse Sistema natildeo feitomdashcomo uma espeacutecie de dicionaacuterio filosoacutefico gecircnero que lhe eacute caro e ao qual sempre se refere como o mais adequado (ou o menos problemaacutetico) agrave organizaccedilatildeo de seus escritos Passar os seus pensamentos escritos do caos agrave ordem eis o que acaba sendo ao fim o que simplesmente pretende ou o que simplesmente pode pretender laquoProjeto meu Dicionaacuterio Filosoacutefico ou o meio mais simples de me expor agrave mateacuteria desses cadernos mdash e de me poupar o mal os defeitos e o iacutentimo ridiacuteculo (de mim mesmo) de um Sistemaraquo Ou ainda laquoMinha filosofia mdash eacute necessaacuterio resolver fazer esses cadernos por secccedilotildees e temasraquo

O comportamento de Valeacutery eacute portanto de uma estranha ambiguumlidade Apesar da aspiraccedilatildeo e das inuacutemeras tentativas em construir um Sistema se realmente eacute possiacutevel se referir a tentativas genuiacutenas ele parece natildeo fazer muito esforccedilo para concretizaacute-lo formalmente em uma doutrina ou em um livro acabado Ao mesmo tempo em que o persegue como uma possiacutevel siacutentese de suas reflexotildees rejeita-o como se ele natildeo tivesse tanta importacircncia como se fosse um projeto propositadamente nascido para ser irrealizado Quiccedilaacute ele intua a forte e imperiosa condiccedilatildeo de uma sociedade que por mais que exija o ato de concluir tambeacutem o impede a Ciecircncia Moderna o espiacuterito positivo e a laicizaccedilatildeo constrangem mediante agrave concepccedilatildeo de que o saber eacute uma dinacircmica e natildeo uma estaacutetica os impulsos agrave siacutentese totalizadora que cedem lugar agrave anaacutelise parcial mais pragmaacutetica e propiacutecia a dar resultados efetivos e utilizaacuteveis no campo da praacutetica a vida torna-se cada vez mais uma celerada sucessatildeo de lacunas difiacuteceis de serem preenchidas pelo sujeito que se encontra diante de inuacutemeras e divergentes concepccedilotildees de mundo diante de outras formas de pensar O sentido do todo se esvai ou se relativiza pateticamente confrontando-se com outros tantos sentidos e o sistema torna-se assim um caminho difiacutecil e problemaacutetico Pois por mais que se tente forte eacute a compreensatildeo que haacute sempre um mais aleacutem no mundo algo que as teorias humanas natildeo datildeo conta Como Kierkegaard e Nietzsche como Wittgenstein e Cioran o poeta tambeacutem escreve apoacutes o desencanto do pensamento filosoacutefico para com os grandes edifiacutecios filosoacuteficos e para com as possibilidades de se fazer da metafiacutesica uma ciecircncia das coisas transcendentes um saber e desse saber um absoluto O periacuteodo do Racionalismo Claacutessico de um Descartes um Espinosa e um Leibniz do Idealismo Alematildeo de um Hegel parece jaacute haver passado tampouco o projeto de uma obra de arte total siacutentese aglutinante de todas as outras como o que ainda se propocircs um Wagner tambeacutem foi minado Abarcar a totalidade numa forma de representaccedilatildeo plenamente organizada fazer com que o mundo ou melhor uma representaccedilatildeo do mundo se acomode numa hierarquia fixa de valores e sentidos revelou-se um sonho utoacutepico que por vezes conteacutem mesmo que sub-repticiamente intenccedilotildees totalitaacuterias A identificaccedilatildeo nem sempre verdadeira e justa entre sistema e dogma faz-se agora mais recorrente e por vezes intoleraacutevel Hoje soam falsas e pretensiosas as filosofias que se apresentam como sistemas totais

Entretanto natildeo eacute apenas pelo prisma eacutetico que a aspiraccedilatildeo ao sistema se problematiza mas tambeacutem pelo prisma gnosioloacutegico O proacuteprio Valeacutery demonstra consciecircncia disso Em seu ceacutelebre ensaio Au sujet drsquolsquoEurecirckarsquo no qual versa sobre este que eacute um dos textos que mais marcou seu proacuteprio pensamento a excecircntrica cosmogonia de Edgar Allain Poe Eureka - A prose poem ele executa uma dura criacutetica agrave crenccedila num princiacutepio absoluto agrave crenccedila na criaccedilatildeo do universo e no proacuteprio universo enquanto totalidade ontoloacutegica plenamente apreendida pelo sujeito considerando-o como uma laquoexpressatildeo mitoloacutegicaraquo (laquoexpression mythologiqueraquo) Ao fim todo sistema soacute poderaacute ser um sistema pessoal soacute poderaacute funcionar de modo pleno para aquele que nele crecirc e a ele adere para aquele que o cria e dele se utiliza porque seria necessaacuterio sair de si mesmo e ser todos e cada um porque seria necessaacuterio contemplar cada coisa por todas as perspectivas por todos os acircngulos para se construir verdadeiramente um sistema total Em uacuteltima instacircncia o sujeito eacute capaz de pensar conceitualmente o todo mas natildeo eacute capaz de verificar se esse pensamento conceitual sobre o todo corresponde agrave realidade

O poeta desconfia deve desconfiar portanto da possibilidade de explicar a realidade e a si mesmo o corpo o espiacuterito e o mundo (CEM) por um uacutenico princiacutepio por uma uacutenica obra cativo da intuiccedilatildeo de que a verdade mdashtermo significativamente raro em seus escritos em favor do termo possibilidademdash mesmo sendo em determinada definiccedilatildeo una soacute pode ser enunciada de modo incompleto como perspectiva laquoEsses cadernos satildeo o meu viacutecio Eles satildeo tambeacutem anti-obras anti-finsraquo assim confirma denunciando tambeacutem a artificialidade de todo gecircnero literaacuterio laquoNo que concerne ao ldquopensamentordquo as obras satildeo falsificaccedilotildees pois elas eliminam o provisoacuterio e o natildeo-reiteraacutevel o instantacircneo e a mistura pura e impura desordem e ordemraquo Dessarte o Sistema ou melhor a meta em se constituir um Sistema a acircnsia de compreender a totalidade acaba se tornando nada mais do que um artifiacutecio heuriacutestico Um artifiacutecio cujo resultado eacute a mais intensa soma de ldquofracassosrdquo de ldquotentativasrdquo e ldquoesterilidadesrdquo de repeticcedilotildees e atualizaccedilotildees de experimentaccedilotildees de paraacutegrafos e frases incompletas de palavras soltas de um pensamento que natildeo se quis completar em obra a mais intensa e desconcertante fragmentaccedilatildeo Eis no que se materializa quase tudo aquilo que escreve o material bruto sempre disperso e fluido no qual o inteacuterprete cumpre estudar e cuidar para natildeo falsear em uma ordem (entre tantas outras possiacuteveis) jamais intencionada pelo poeta Os Cahiers nascem assim como um vitral estilhaccedilado um quebra-cabeccedila Satildeo inuacutemeras as peccedilas as passagens ou potencialidades agrave espera que outros executem as suas possiacuteveis montagens e interpretaccedilotildees Se interpretar um conjunto de escritos eacute um constante ir e vir um diaacutelogo ou uma dialeacutetica entre as partes e o todo entatildeo interpretar o pensamento de Valeacutery tambeacutem pressupotildee primeiramente juntar determinados fragmentos que legou numa linha coerente de sentido mas sempre consciente de que o objeto interpretado eacute sobretudo um estado extremamente provisoacuterio e fraacutegil laquoTudo o que eacute escrito nesses cadernos meus tem a caracteriacutestica de natildeo querer jamais ser definitivoraquo laquoFalta-me um alematildeo que conclua as minhas ideacuteiasraquo assim expressa-se o poeta numa irocircnica referecircncia aos gigantescos sistemas do Idealismo Alematildeo Natildeo terminar recusar-se a cumprir o dever mdashexigecircncia tatildeo presente no capitalismo burguecircsmdash de resultar em algo veio a ser uma espeacutecie de deliacutecia para esse escritor que se concentrava no fluir de todas as coisas e agrave possibilidade de formular na loacutegica desse fluir Dizia assim em uma de suas recorrentes metaacuteforas sobre sua escritura que seu trabalho como escritor era anaacutelogo ao de uma fiel Peneacutelope a fazer e a desfazer o manto e a esperar por um aventureiro Odisseu Desse modo atraveacutes do fragmento ele pode mais facilmente transitar de frase em frase de palavra em palavra sem nunca se entregar ao perigo de uma conclusatildeo final e abordar com mais desenvoltura e rapidez os seus variados temas Isso implica naturalmente a ocorrecircncia quase inevitaacutevel de uma seacuterie de contradiccedilotildees Mas o poeta natildeo as nega e natildeo as esconde ao contraacuterio natildeo raro as incita e as valora de modo positivo Pois elas natildeo representam hesitaccedilotildees recuos arrependimentos culpas mas sobretudo etapas a serem cumpridas laquoNossas contradiccedilotildeesraquo lucidamente escreve laquosatildeo o testemunho e os efeitos da atividade de nosso pensamentoraquo

A arte que se pratica eacute portanto a arte do ensaio Ensaio cujo iniacutecio se desconhece e cujo fim foi interrompido A escritura de Valeacutery eacute assim relativamente anaacuteloga agravequela que Michel de Montaigne inaugurou apesar do distanciamento cronoloacutegico que o separa do fidalgo com quem parece natildeo ter muitas afinidades temaacuteticas ele poderia muito bem dizer laquoNatildeo retrato o ser Retrato a passagemraquo Todavia trata-se agora de retratar a dimensatildeo mais abstrata mais eteacuterea da passagem uma dimensatildeo em ruiacutenas de retratar a si mesmo um espiacuterito que ao refletir e escrever mdashou ao menos tentar refletir e escrevermdash sobre inuacutemeros temas com isso frequumlentemente aspira por um lado agrave sua proacutepria dissoluccedilatildeo enquanto escritor e por outro a sua proacutepria construccedilatildeo enquanto eu Os escritos de Valeacutery configuram-se como uma anti-obra

111 Da crise agrave autarquia espiritual

Convencer eacute infrutiacutefero

Walter Benjamin Rua de matildeo uacutenica

Contudo toda essa diletante variedade temaacutetica e incompletude toda essa fragmentaccedilatildeo natildeo resultam apenas da resposta mecacircnica agraves limitaccedilotildees e possibilidades impostas por um contexto histoacuterico e pela desconfianccedila no beneplaacutecito do sistema Haacute tambeacutem em Valeacutery em seu oscilante itineraacuterio espiritual o peso de um confesso e estranho periacuteodo de crise cujas consequumlecircncias fazem-se presentes reverberam em reflexotildees sobre si mesmo e sua atividade como escritor sobre sua concepccedilatildeo acerca da linguagem e sua criacutetica agrave filosofia sobre grande parte desse seu proceder de seu meacutetodo e meta O aacutepice desse periacuteodo eacute frequumlentemente datado (sem muita precisatildeo) da noite do dia 4 ao dia 5 de Outubro do ano de 1892 o local um quarto de um ex-convento restaurado em apartamentos um dos quais pertencente a sua tia e a seu tio os Cabella na Salita di san Francesco uma ruela em Gecircnova onde juntamente com sua matildee Fanny e seu irmatildeo Jules Valeacutery o poeta empreendia uma viajem agrave Itaacutelia de seus antepassados (pelo lado materno seu avocirc era genovecircs e sua avoacute triestina) Amiuacutede foi batizada pelo proacuteprio poeta de laquoNoite de Gecircnovaraquo (laquoNuit de Gecircnesraquo) ou sugestivamente adjetivada de laquoGolpe de estadoraquo (laquoCoup drsquoeacutetatraquo) expressatildeo esta bastante recorrente em seus escritos

Os relatos dessa noite satildeo pelo suposto impacto sofrido pateacuteticos e desconexos como soem ser frequumlentemente todas os momentos de crises todos os iniacutecios Mas o inteacuterprete natildeo pode deixar de descartar que haja neles muito de dramatizaccedilatildeo e exagero de mise en scegravene dir-se-ia que faz parte da lenda do poeta lenda que ele mesmo sentiu em vida e natildeo quis dissipar laquoNoite horriacutevelraquo assim escreve Valeacutery num ceacutelebre relato laquopermaneccedilo sentado sobre minha cama Tempestade por todo lado Meu quarto me assombra a cada claratildeo E todo o meu destino se concentra em minha cabeccedila Eu estou entre eu e eu Noite infinita Criacutetica Talvez seja o efeito desta tensatildeo do ar e do espiacuterito E essas violentas rebentaccedilotildees redobradas do ceacuteu essas bruscas iluminaccedilotildees sofreadas entre os muros puros de cal nua Eu me sinto outro esta manhatilde Mas mdash sentir-se Outro mdash isso natildeo pode durar mdash [] que o novo homem absorva e anule o primeiroraquo

Haacute doravante um outro relato justamente no iniacutecio do ensaio Au sujet drsquolsquoEurecirckarsquo no qual Valeacutery descreve de modo mais preciso o seu estado de espiacuterito no periacuteodo de crise e ao redor da Noite de Gecircnova eacute uma compreensatildeo de si nada condescendente que revela o quanto o entusiasmo acerca das ideacuteias torna-se na oscilante juventude ldquofogo-de-palhardquo nasce e morre com grande facilidade laquoEu tinha vinte anos e acreditava no poder do pensamento Sofria estranhamente de ser e de natildeo ser Por vezes sentia infinitas forccedilas Elas caiacuteam ante os problemas e a fraqueza de meus poderes positivos me desesperava Eu era taciturno ligeiro faacutecil em aparecircncia duro no fundo extremo no desprezo absoluto na admiraccedilatildeo faacutecil de impressionar impossiacutevel de convencer Tinha feacute em algumas ideacuteias que vieram a ter comigo Eu tomava a conformidade que elas tinham com meu ser que as haviam engendrado por uma marca de seu valor universal aquilo que se aparecia tatildeo nitidamente ao meu espiacuterito parecia invenciacutevel o que engendra o desejo eacute sempre o que resulta mais claro Conservava essas sombras de ideacuteias como segredos de Estado Tinha vergonha de suas estranhezas tinha medo que fossem absurdas sabia o que elas eram e o que elas natildeo eram Eram vatildes por si mesmas poderosas pela forccedila singular que me davam a confidecircncia que me guardava A inveja desse misteacuterio de debilidade me inundava de uma espeacutecie de vigor Havia deixado de fazer versos quase natildeo lia As novelas e os poemas me pareciam apenas aplicaccedilotildees particulares impuras e semi-inconscientes de algumas propriedades aplicadas a esses famosos segredos que acreditei encontrar um dia somente por esta garantia sem relaxamento que eles deveriam necessariamente existir Quanto aos filoacutesofos os quais havia apenas frequumlentado me irritava sobre esse pouco que eles natildeo respondiam nunca a nenhuma das dificuldades que me atormentavam Soacute me produziam aborrecimentos jamais o sentimento de que comunicassem qualquer poder verificaacutevel E ademais me parecia inuacutetil especular sobre abstraccedilotildees que natildeo se houvera definido anteriormente [] Havia metido o nariz em alguns miacutesticos Resulta impossiacutevel criticaacute-los pois neles soacute se encontra o que se colocaraquo

O que desencadeou o periacuteodo de crise e a Noite de Gecircnova mdashesta que para a Histoacuteria da Literatura Moderna eacute menos como um fato e mais como um siacutembolo como a concentraccedilatildeo de todo uma transformaccedilatildeo e um raacutepido amadurecimentomdashfoi em parte e segundo alguns comentadores a paixatildeo natildeo declarada a uma tal dama de Rovira Mme de Rovira baronesa catalatilde mas tambeacutem natildeo se pode descartar uma seacuterie de outros acontecimentos que desde haacute muito se acumulavam na vida do jovem e hipersensiacutevel poeta o doloroso serviccedilo militar o teacutermino de seus estudos universitaacuterios e as incertas perspectivas profissionais (incertezas que sempre formam uma sombra em sua biografia) a releitura de Eureka de Poe e a leitura de Illuminations de Rimbaud os estudos matemaacuteticos e cientiacuteficos a lhe revelarem um mundo de ldquoprecisatildeordquo e ldquorigorrdquo diferente do ldquovagordquo mundo da literatura e da miacutestica a morte do pai a doenccedila da matildee um primeiro contato com as ruas os cafeacutes os salotildees de uma efervescente Paris

Entretanto todos esses acontecimentos pertencem mais agrave ordem factual da vida do que espiritual Nesta a mais importante o periacuteodo de crise e a Noite de Gecircnova ambos podem muito bem ser interpretados como o resultado e a conscientizaccedilatildeo de uma tensatildeo Tensatildeo que indeleacutevel natildeo cessaraacute de todo e marcaraacute a pessoa e todo o pensamento de Valeacutery entre dois poacutelos dois impulsos dois desejos entre o sentimento e a inteligecircncia entre a pessoalidade e a impessoalidade entre um lado emocional facilmente excitaacutevel e um lado intelectual que aspira por um maior grau de consciecircncia e por controle Como confessa o proacuteprio poeta numa frase exemplar que em muito sintetiza o teor do seu espiacuterito e obra laquoEu penso como um racionalista arqui-puro Eu sinto como um miacutesticoraquo (laquoJe pense en rationaliste archi-pur Je sens en mystqueraquo) Ou ainda laquoPor um lado eu considero e julgo as coisas com uma extrema e assustadora frieza por outro eu as sinto terrivelmente E entre essas coisas a idade as outras pessoasraquo Essa tensatildeo ainda se multiplicaraacute e se desdobraraacute em sua obra em outras tantas particularizaacuteveis no plano epistemoloacutegico entre a abstraccedilatildeo e a concretude o siacutembolo e o iacutecone entre um espiritualismo racionalista e um sensualismo empirista ou ainda como diz Maurice Blanchot entre laquoA abstenccedilatildeo criadora e a presenccedila invencivelmente atual entre o desejo do espiacuterito de estar separado e sua necessidade de perguntar ao corpo a prova de seus poderes entre o nada que eacute a vida da consciecircncia e o nada da consciecircncia que eacute vivaraquo no plano eacutetico entre o desengajamento e o engajamento entre a vita contemplativa e a vita ativa

Soma-se a essa tensatildeo mistura-se a ela a partir do periacuteodo de crise e da Noite de Gecircnova a aquisiccedilatildeo de uma consciecircncia extrema visceral bem aos moldes do Ceticismo Antigo do quanto agrave realidade esta eacute composta e mediada por convenccedilotildees humanas demasiado humanas por arbitrariedades sejam estas fiacutesicas ou psiacutequicas eacuteticas ou esteacuteticas sejam essas necessaacuterias ou desnecessaacuterias do quanto tudo eacute relativo Para usar de uma reflexatildeo que soa ao estilo de Leibniz se haacute um espanto filosoacutefico valeacuteryano esse espanto natildeo eacute ante o haver alguma coisa ao inveacutes do nada (como geralmente ocorre no registro do Cristianismo) mas ante as coisas serem assim e natildeo de outro modo (como geralmente ocorre no registro da Antiguumlidade Claacutessica) laquomdash O impressionante natildeo eacute que as coisas sejam mas que elas sejam dessa maneira e natildeo de outraraquo O delirante pensamento mdashde que ldquotudo pode ser realmente diferente natildeo de modo metafoacuterico mas literalrdquomdash eacute uma possibilidade ldquouniversalrdquo E eacute essa possibilidade uma das fontes mais poderosas do insone pensamento de Valeacutery

Aquilo que outrora num mundo menos laicizado poder-se-ia ser compreendido como morte e renascimento espiritual a superaccedilatildeo do periacuteodo de crise e da Noite de Gecircnova o conduziu a um progressivo aniquilamento de todas essas tensotildees ou ao menos a uma conciliaccedilatildeo possiacutevel entre as polaridades que a constituem conduziu-o tambeacutem a uma progressiva conversatildeo a si mesmo O que haacute que se dizer natildeo impediu que ele sofresse outras tantas crises de menor impacto jaacute que tudo se constitui como uma tentativa A partir de entatildeo na esfera privada o poeta busca suprimir estoicamente as ilusotildees causadas pelas ldquopaixotildeesrdquo e na esfera puacuteblica suspende ao menos provisoriamente a escritura de poesias escritura agrave qual posteriormente retomaraacute mais por interesse na poeacutetica ou na loacutegica da estrutura verbal do poema do que pelo poema em si e se afasta em definitivo dos pressupostos parnasianos e de um misticismo idealista-romacircntico do tipo fin-de-siegravecle decadentista que anterior aderira e doravante denunciou como inadequados a seu novo caminhar a partir de entatildeo ele define aquilo que seraacute denominado aqui como uma espeacutecie de programa de autoconsciecircncia cuja manifestaccedilatildeo exterior mais contundente se expressa em seus Cahiers e em menor grau em sua obra puacuteblica

Esse programa de autoconsciecircncia mdashque obviamente natildeo pode ser estabelecido como um planejar o caminho antes de caminhar mas um planejar o caminho no proacuteprio caminharmdash inicia-se com extremo radicalismo com uma espeacutecie de tabula rasa ou ao menos uma tentativa (e tatildeo-somente tentativa) de comeccedilar ou recomeccedilar de um postulado zero eacute inicialmente um aspirar um almejar aquilo que aqui pode ser denominado de autarquia intelectual de autarquia espiritual eacute um tornar o seu espiacuterito o mais distanciado o mais autocircnomo o mais livre possiacutevel do legado de problemas de uma tradiccedilatildeo literaacuterio-filosoacutefica Pois esses problemas natildeo satildeo necessariamente considerados como problemas por aquele que os recebe Se ele o poeta os aceita sem refletir sem analisaacute-los ou destrinccedilaacute-los sem sentir ou intuir como tais entatildeo ele os aceita comodamente com automatismo mdashe automatismo eacute justamente aquilo que deve ser evitado sendo um estado contraacuterio ao exigido pelo seu proacuteprio programa de autoconsciecircnciamdash A adesatildeo a uma ideacuteia tal processo deve ocorrer portanto com extremo cuidado se realmente deve ocorrer Porque ao fim o caminho espiritual ou intelectual de um homem somente pode ser caminhado por ele e tatildeo somente por ele Natildeo se pode pensar o que um outro pode pensar natildeo de modo idecircntico porque entatildeo ambos seriam o mesmo do mesmo modo que natildeo se pode viver o que um outro pode viver natildeo de modo idecircntico porque entatildeo ambos seriam o mesmo Haacute no maacuteximo analogias paralelismos parentescos influecircncias um caminhar junto mas jamais identidades absolutas entre pensamentos ou entre sistemas de pensamentos assim como entre trajetoacuterias de vida Tudo o que vem de fora tudo o que vem dos outros todas as ideacuteias todas as crenccedilas e doutrinas todos os dogmas e aporias todas as perguntas e respostas todas as certezas e duacutevidas que durante largo tempo foram se configurando e por vezes se cristalizando ao grau de serem natildeo raro introjetadas como condiccedilotildees naturais intriacutensecas natildeo deveriam ser aceitas a partir de entatildeo displicente e comodamente como se o espiacuterito fosse apenas um vasto depositaacuterio relativamente passivo daquilo que outros inventaram e legaram e natildeo um poderoso crivo e um transformador criacutetico de tudo aquilo que recebe

Eis porque natildeo raro Valeacutery que tanto apreciava as definiccedilotildees metafoacutericas e sinteacuteticas frequumlentemente refere-se a si mesmo como um Robson Crusoeacute do espiacuterito O fantaacutestico e paradigmaacutetico personagem de Daniel Defoe vasto siacutembolo de uma ambiacutegua e engenhosa vontade civilizadora do homem que a partir da natureza bruta inventa suas proacuteprias artificialidades e problemas representa para o poeta natildeo apenas a teacutecnica que lhe permite accedilatildeo no mundo exterior mas sobretudo a teacutecnica que lhe permite accedilatildeo no mundo interior isto eacute um homem que inventa seus proacuteprios problemas teoacutericos e tenta solucionaacute-los com os proacuteprios meios de que dispotildee sem recorrer a outros laquoSou um miseraacutevel Robinsonraquo descreve-se laquonuma ilha de carne e de espiacuterito rodeado por todas as partes de ignoracircncia e fabrico generosamente meus utensiacutelios e minhas artesraquo Assim se manifesta o ldquoindividualismordquo o ldquoegotismordquo valeacuteryano como uma poderosa feacute em si mesmo um insistente querer fazer as coisas por si mesmo e independente dos outros e do que os outros iratildeo pensar ou julgar

Um exemplo dessa incisiva atitude encontra-se de modo exagerado e paradoxal num breve diaacutelogo socraacutetico intitulado Orgueil pour orgueil Nesse diaacutelogo cuja estrutura remete agrave eriacutestica sofiacutestica Anaxaacutegoras confronta-se com Soacutecrates mas um Soacutecrates relativamente distinto daquele que seraacute apresentado nos grandes diaacutelogos Eupalinos e Lrsquoacircme et la danse

laquoAnaxaacutegoras Se vocecirc tem razatildeo posto que eu natildeo sou vocecirc vocecirc natildeo pode ter verdadeiramente razatildeo oacute Soacutecrates Eacute necessaacuterio entatildeo que eu ainda reflita Eacute necessaacuterio que retomando o que vocecirc me disse e partindo do estado no qual vocecirc colocou o meu pensamento tendo combatido e vencido eu encontro finalmente uma razatildeo em mim que por sua vez conteacutem a sua proacutepria e justifique entretanto minha opiniatildeo precedente E isso sob pena de minha morte Pois de outro modo ao que rimaria minha existecircncia

Soacutecrates Que orgulho Anaxaacutegoras O orgulho eacute o sentimento de ser nascido para alguma coisa que somente noacutes podemos conceber e esta coisa [eacute] mais grande e mais importante que todas as outras [] A coisa que eu quero deve ser sempre superior agravequela que quer qualquer outro Tal eacute o orgulho Ele natildeo emana das coisas feitas nem daquilo que se eacute Mas meu ideal eacute infinitamente acima do seu pois ele eacute meu unicamente porque ele eacute meuraquo

O assunto desse diaacutelogo natildeo aparece nem necessita aparecer pois o que estaacute em jogo eacute a relaccedilatildeo entre seus dois personagens ou vozes Note-se que Soacutecrates e Anaxaacutegoras concordam que as suas respectivas razotildees satildeo verdadeiras mas apenas para cada um deles mesmo que o outro natildeo as aceite como tal Na terminologia de Valeacutery o orgulho que eacute uma espeacutecie de servilismo a si mesmo impede que ambos sejam seduzidos pela vaidade que eacute uma espeacutecie de servilismo aos outros Haacute assim a concepccedilatildeo de que cada um foi feito mdashque cada um deve se fazermdash para seguir o seu proacuteprio caminho para cumprir o seu proacuteprio papel no teatro do mundo

A aspiraccedilatildeo por uma autarquia intelectual uma autarquia espiritual e a concepccedilatildeo de um itineraacuterio irredutiacutevel a outrem o orgulho de si coadunam-se harmonizam-se por conseguinte com a perspectiva criacutetica de Valeacutery frente a qualquer forma ou qualquer ato de proselitismo O proseacutelito eacute contraacuterio ao correto pensar Ser intelectualmente livre tambeacutem implica ser necessariamente livre do desejo de doutrinar de convencer ou ateacute mesmo de compartilhar com o outro algo que natildeo se sabe ser verdadeiro ou falso Daiacute toda a intenccedilatildeo naturalmente jamais cumprida do poeta em escrever uma obra de caraacuteter privado e ateacute mesmo inventar uma linguagem de caraacuteter privado uma linguagem pura como se com isso fosse possiacutevel viver uma vida toda privada totalmente enclausurada em seus proacuteprios problemas e soluccedilotildees laquoO proselitismo eacute inimigo da honestidaderaquo insistentemente anota o poeta laquomdash Seus meios satildeo todos impuros (Seduzir espantar embrulhar as coisas) Eu tenho horror dele de querer dar minha opiniatildeo a quem natildeo a quer daquele que quer substituir pela sua O homem honesto diz seu pensamento e estabelece como para si-mesmo [] Ainda sobre o fato mesmo de o comunicar eu aplicaria a sentenccedila de S[t] Paulo sobre o casamento Natildeo temos desejo de conquistar ningueacutem quando damos conta que o uacutenico que devemos conquistar estaacute em noacutes mesmos [Grifo do autor] Lave seus peacutes antes de batizar os outrosraquo E mais laquoEu natildeo quero convencer ningueacutem nem por ningueacutem ser convencidoraquo laquoRepugna-me a todos que querem me convencer mdash Um partido uma religiatildeo em procura adeptos que desejam o nome e a propagaccedilatildeo satildeo cheios (para mim) de ignomiacutenia Uma doutrina deve para ser nobre em nada ceder ao desejo de ser compartilhada Que ela seja como ela eacute ou que ela natildeo seja Eu natildeo desejo fazer aos outros o que eu natildeo quero que me faccedilam [] mdash Ter razatildeo Desejo de ter razatildeo mdash Propagar Desejar convencer Isso conduz aos milagres agrave ldquopublicidaderdquoraquo Entretanto toda essa radical recusa em praticar proselitismo tambeacutem encontra explicaccedilatildeo numa confessa e compreensiacutevel ldquotentaccedilatildeordquo de por em praacutetica as ideacuteias de colocaacute-las diante de provas de passar da dimensatildeo da especulaccedilatildeo para a da accedilatildeo especialmente em questotildees poliacuteticas e pedagoacutegicas como se pode constatar agraves vezes em seus escritos sobre anarquia e sobre educaccedilatildeo laquoPor vezes eu me sinto como que exasperado = desesperadoraquo confessa Valeacutery laquopela sensaccedilatildeo de natildeo poder fazer agir minhas ideacuteias no mundo quando eu as sinto justasraquo Mas senti-las justas natildeo garante que elas sejam para outros justas tampouco legitima que elas sejam propagadas como verdades tampouco lhe daacute o direito de doutrinar

Natildeo eacute por acaso que em sua obra puacuteblica e em maior grau em seus Cahiers Valeacutery se propocircs algo raras vezes tentado na Histoacuteria da Filosofia Ocidental algo que possui raiacutezes iacutentimas com essa sua expliacutecita e recorrente recusa em praticar proselitismos intelectuais ele se propocircs a considerar os pensamentos como conjetura como especulaccedilatildeo como algo eminentemente pessoal ele se propocircs a escrevecirc-los a representaacute-los independentemente de crer ou descrer na importacircncia no valor deles independentemente de os considerar corretos ou incorretos independentemente deles poderem corresponder objetivamente a alguma verdade ou a realidade Por que deveria se preocupar em provar ou refutar o que escreve Natildeo bastaria a utilidade de um escrito para si mesmo por que deveria tambeacutem ser uacutetil a outro ou a todos Desejar universalizar o seu pensamento qual o verdadeiro motivo a impulsionar tal comportamento Tudo se passa como se o poeta natildeo mais necessitasse sentir apego ou aversatildeo ao que pensa e escreve mdashe de tudo o que pensa e escreve ele vem a ser um mero contempladormdash laquoAquilo que me vem ao espiacuteritoraquo confidencia Valeacutery laquonatildeo se torna verdadeiramente ldquomeu pensamentordquo minha opiniatildeo mdash meu projeto mdash que depois de estar controlado aceito adotado ao menos provisoriamente e destinado a uma elaboraccedilatildeo ou a uma conservaccedilatildeo ou a uma aplicaccedilatildeo mdash mdash Assim o que eu escrevo aqui [nos Cahiers] eacute muitas vezes escrito natildeo como meu ldquopensamentordquo mas como pensamento possiacutevel que seraacute meu ou natildeo e [depois poderaacute ser] eliminadoraquo laquoEu escrevo aqui as ideacuteias que me vecircm Mas isso natildeo quer dizer que eu as aceite Eacute o seu primeiro estado Ainda mal despertoraquo Dessarte natildeo se pode considerar de modo estrito ou totalmente literal as reflexotildees de Valeacutery como sendo a traduccedilatildeo exata ou necessaacuteria das suas proacuteprias ldquocrenccedilasrdquo daquilo que ele considera verdadeiro ou correto daquilo a que ele aderiu aceitou ou refutou Daiacute tambeacutem toda a dificuldade e todo o cuidado em se interpretar as consideraccedilotildees que tece sobre um determinado tema laquoNesses cadernosraquo sentencia laquoeu natildeo escrevo minhas ldquoopiniotildeesrdquo mas eu escrevo minhas formaccedilotildeesraquo

A sua obra puacuteblica e em maior grau os seus Cahiers natildeo satildeo enfim simplesmente uma soma de ensaios e de fragmentos sobre variados temas eles tambeacutem satildeo sobretudo um aacutelbum mdashde rastros e vestiacutegios de espoacutelios do que sobroumdash no qual registra o seu processo o seu programa de autoconsciecircncia de autarquia espiritual Eacute uma ascese intelectual o que enfim Valeacutery pratica Com esses ou atraveacutes desses escritos ele almeja ser primeiramente servil agrave obra maior oculta invisiacutevel aquela que verdadeiramente importa aquela que opera em seu proacuteprio espiacuterito O puacuteblico os criacuteticos todos aqueles que possivelmente a leratildeo todos aqueles que possivelmente a interpretaratildeo satildeo apenas um plausiacutevel desdobramento sobre os quais ele natildeo tem nem quer ter controle natildeo constituem e natildeo devem constituir a sua motivaccedilatildeo Sem desprezar a ldquonaturezardquo comunicativa de toda liacutengua a possibilidade de ser compreendida a meta daquele que escreve natildeo deve ser o outro a meta daquele que escreve deve ser o proacuteprio ato de escrever pois esse ato esse processo a atenccedilatildeo e o esforccedilo em se registrar pensamentos em formas verbais auxilia o escritor mdashque natildeo deixa de ser um ser humanomdash a realizar uma maior consciecircncia de si mesmo de suas possibilidades a realizar um maior grau de lucidez

Para Valeacutery escrever era escrever-se fazer era fazer-se laquoEscrever mdash para se conhecer mdash eis tudoraquo Que a filosofia e a literatura como qualquer forma de pensamento e arte como qualquer atividade executada de modo asceacutetico com atenccedilatildeo e esforccedilo com sacrifiacutecios pode ser um veiacuteculo material para se atingir um fim espiritual (religiosos ou laico) eacute algo relativamente praticado desde haacute muito mesmo que isso tenha sido constrangido ou escamoteado na Modernidade Atualizando essa possibilidade o poeta assume a antiga concepccedilatildeo de que o conhecimento do mundo eacute mdashpara ser efetivado na sua maior amplitude e siacutentesemdash inseparaacutevel do conhecimento de si Poder-se-ia dizer portanto que a funccedilatildeo capital de sua insone e estranha escritura por vezes reconhecida e almejada como privada eacute ser enfim parte de seu meacutetodo o culto ao Iacutedolo do intelecto cuja meta eacute o eu puro a purificaccedilatildeo do espiacuterito

1111 O culto ao Iacutedolo do intelecto o eu puro

A despersonalizaccedilatildeo como a grande objetivaccedilatildeo de si mesmo A maior exteriorizaccedilatildeo a que se chega

Clarice Lispector A paixatildeo segundo G H

A palavra espiacuterito muitos satildeo os significados dados a ela muitos satildeo os usos que sofre muitas satildeo suas nuances e variaccedilotildees especificaccedilotildees e ampliaccedilotildees Na Antiguumlidade Claacutessica aquelas que semanticamente mais dela se aproximam e que portanto se compreende como sinocircnimos satildeo as palavras ψυχή e anima ambas frequumlentemente traduzidas por alma a substacircncia intelectual e incorpoacuterea que sobrevive supostamente agrave morte do corpo como ocorre em doutrinas espirituais platocircnicas e neo-platocircnicas como ocorre no Cristianismo ou num outro aspecto natildeo tatildeo distante deste a uma espeacutecie de energia que vivifica que anima o corpo mas que natildeo necessariamente lhe sobrevive como ocorre em certas vertentes do aristotelismo e do estoicismo Essa acepccedilatildeo perdura com enorme forccedila e resistecircncia apesar das inuacutemeras variaccedilotildees que adquire ateacute a Modernidade verificando-se na linguagem ordinaacuteria e nas crenccedilas do senso-comum marcou profundamente todas as outras acepccedilotildees possiacuteveis da palavra mesmo quando talvez de modo mais metafoacuterico do que literal designa por exemplo e com influxos idealistas a caracteriacutestica ou as caracteriacutesticas centrais o cerne ou o conteuacutedo de alguma disciplina ou instituiccedilatildeo assim como quando se diz ldquoo espiacuterito da fiacutesicardquo ou ldquoo espiacuterito de um povordquo Entretanto o conceito de espiacuterito (ou de alma) como eu como consciecircncia de si como consciecircncia de que se eacute uma consciecircncia pensante e relativamente distinta das demais e do mundo eacute raro nos escritos e por inferecircncia no pensamento da Antiguumlidade Claacutessica e mesmo no Medievo e na Renascenccedila Em todos esses largos periacuteodos as mentalidades operam grosso modo a partir da concepccedilatildeo segundo a qual o cosmo eacute uma ldquounidaderdquo ontologicamente sustentada e consequumlentemente haveria uma interdependecircncia entre todas as coisas teologias visionaacuterias como as de Santo Agostinho e Lutero certamente acenam para concepccedilotildees relativamente mais modernas mas em ambas o homem mesmo quando volta a si mesmo ainda eacute criatura e Deus o criador

Somente com o advento da burguesia um aspirar agrave ascensatildeo social e riqueza somente com o advento de um pensar que se quer autocircnomo e livre em relaccedilatildeo agraves instituiccedilotildees e tradiccedilotildees religiosas um aspirar agrave criaccedilatildeo artiacutestica filosoacutefica e cientiacutefica natildeo necessariamente dependente de esquemas considerados imutaacuteveis somente com essas convulsas transformaccedilotildees o conceito de espiacuterito como eu comeccedila a se fazer mais presente e atuante A visatildeo do homem deixa de ser pouco a pouco totalmente cosmocecircntrica do todo para a parte e passa a ser centrada no proacuteprio homem no sujeito da parte para o todo O polifacetado pensamento de Montaigne essa espeacutecie de antropologia de si mesmo e de suas idiossincrasias constitui um preluacutedio a esse novo paradigma histoacuterico doravante na cesura filosoacutefica que promove na aspiraccedilatildeo a uma ciecircncia laica Descartes mesmo mantendo-se relativamente fiel ao Cristianismo foi o mais ceacutelebre e polecircmico de seus arautos Com ele o subjetivismo moderno pode finalmente se desenvolver de modo sistemaacutetico e a concepccedilatildeo do espiacuterito como eu como consciecircncia e consciecircncia de si ou mais especificamente como razatildeo e intelecto se cristaliza deixando margem para o posterior desenvolvimento do conceito de indiviacuteduo Trata-se entretanto da compreensatildeo do espiacuterito natildeo mais como totalmente participante ou dependente da ordem coacutesmica natural mas de algum modo relativamente separado ou apartado dela trata-se da compreensatildeo do espiacuterito como substacircncia como algo em si Em Descartes haacute que se dizer ele ainda guardaria certo ponto-de-contato certo grau de atuaccedilatildeo no corpo e no mundo mas posteriormente em certas linhas mais exacerbadas do Cartesianismo nascente como no Ocasionalismo de Malebranche no qual eacute sempre Deus o mediador que atua define-se realmente como totalmente separado do corpo e do mundo

Todavia como se sabe esse espiacuterito autocircnomo acabou por se revelar mais como um ideal como uma utopia ou um sonho como um grito por liberdade do que um fato E mesmo as inuacutemeras especulaccedilotildees do Idealismo Alematildeo notadamente de Hegel em atualizar o cosmocentrismo claacutessico e cristatildeo em distinguir espiacuterito finito (o intelecto) do espiacuterito objetivo (as instituiccedilotildees) e do espiacuterito absoluto (arte filosofia e religiatildeo) todos manifestaccedilotildees e instrumentos da Ideacuteia ou da Razatildeo Infinita tampouco essas distinccedilotildees que parecem eliminar o livre-arbiacutetrio jamais excluem o fato de que o ser humano seu espiacuterito eacute aquele que sempre vive o que vive e sofre o que sofre e natildeo raro culpa-se pelo que faz ou deixou de fazer A vontade de viver de Schopenhauer e a vontade de potecircncia de Nietzsche o inconsciente de Freud esses e outros tantos conceitos representam tentativas teoacutericas modernas de explicar aquilo que sempre se operou na praacutetica aquilo que a arte e a literatura sempre representaram de modo simboacutelico que o espiacuterito o espiacuterito humano por mais que tente natildeo eacute senhor absoluto de si mesmo e que natildeo somente forccedilas exteriores e materiais o condicionam como a seus proacuteprios pensamentos mas tambeacutem forccedilas consideradas irracionais subterraneamente o controlam e o escravizam

Intuindo que toda essa trajetoacuteria semacircntica e ideoloacutegica eacute um dos iacutendices mais significativos da trajetoacuteria mesma da Modernidade na medida em que esta natildeo deixa de ser em grande medida uma grave acentuaccedilatildeo do espiacuterito como eu e como indiviacuteduo Valeacutery natildeo deixa de dar continuidade a ela transformando-a e sempre se resguardando em preservar a sua proacutepria idiossincrasia Em seus escritos tanto em prosa quanto em poesia a palavra espiacuterito mdashtalvez aquela a qual a sua imagem puacuteblica ficou mais livre e imprecisamente associadamdash ocorre quase sempre como na tradiccedilatildeo francesa racionalista-cartesiana da qual natildeo deixa de ser direta e simultaneamente herdeira e criacutetica com a acepccedilatildeo geral de eu de consciecircncia e consciecircncia de si de intelecto ou mais propriamente de inteligecircncia Uma inteligecircncia capaz de analisar o mundo exterior e o mundo interior e note-se genericamente inteligecircncia eacute um termo mais facilmente associado agrave palavra francesa ldquoespritrdquo do que agrave palavra portuguesa ldquoespiacuteritordquo Todavia o que soacutei constituir a diferenccedila central em relaccedilatildeo a essa tradiccedilatildeo e mesmo em relaccedilatildeo a todas as demais tradiccedilotildees do periacuteodo preacute-moderno e do Idealismo Alematildeo reside no fato de que o conceito de espiacuterito com o qual o poeta mais constitui e opera raramente designa ou alude agrave alma imortal e o que eacute deveras mais importante jamais se insere em algum sistema metafiacutesico-idealista a ambicionar expandir por exemplo o conceito de espiacuterito a ponto de por vezes tornaacute-lo uma espeacutecie de divindade reguladora limitando assim o seu uso praacutetico fisioloacutegico ou psicoloacutegico

Ademais Valeacutery poeta apoliacuteneo do mar do sol e da luz eacute deveras reticente com relaccedilatildeo agraves teorias modernas mdashirracionalismo psicanaacutelise etcmdash segundo agraves quais o espiacuterito seria regido por forccedilas irracionais subconscientes Mas reticente natildeo significa aqui necessariamente contraacuterio ao sentido geral da criacutetica dessas teorias significa antes uma divergecircncia quanto ao modo de compreender o ser humano e por conseguinte a si mesmo como absoluta e totalmente controlado e escravizado por irracionalidades por inconsciecircncias etc sem que haja nenhuma possibilidade mdashe sempre haacute possibilidadesmdash de escapatoacuteria ou de superaccedilatildeo dessa condiccedilatildeo O naturalismo o determinismo dessas teorias eis o que verdadeiramente se questiona Porque Valeacutery natildeo nega natildeo pode negar tudo aquilo que condiciona o espiacuterito mas ele simplesmente ldquo apostardquo na possibilidade deste vir a ser em determinado sentido e atraveacutes de determinado meacutetodo senhor de si mesmo E mais natildeo credita exagerada fetichizada sacralizada importacircncia agrave irracionalidade ao inconsciente mdashnote-se que inconsciente eacute um termo que ele busca conscientemente utilizar o miacutenimo possiacutevelmdash como fatores ou causas que estariam subterraneamente impulsionando a accedilatildeo o fazer Para o poeta a parte obscura a parte do espiacuterito que natildeo eacute iluminado pela razatildeo pela consciecircncia tem naturalmente seu papel na vida jaacute que toda a memoacuteria todas as lembranccedilas todas as representaccedilotildees das experiecircncias passadas aiacute supostamente se preservam o que natildeo implica que essa parte seja totalmente determinante mdashmas tatildeo somente condicionantemdash para as decisotildees para as escolhas que o proacuteprio espiacuterito toma no momento presente O inconsciente natildeo eacute um territoacuterio movediccedilo uma danccedila de imagens ocultas regida por afetividades e desejos mas meramente um armazenamento e num sentido quase mecacircnico laquoEstou convencidoraquo escreve de um modo um tanto categoacuterico laquoque se pudeacutessemos penetrar desenvolver o famoso subconsciente [inconsciente] noacutes apenas veriacuteamos miseacuteria ou algumas leis simples afetando os elementos e os comandos daquilo que faz sentimentos ideacuteias e vontades daquilo que daacute valor perspectiva agraves coisas Tudo eacute superfiacutecieraquo Natildeo se caminha na escuridatildeo absoluta tudo que o humano realiza eacute de algum modo resultado de racionalidade de consciecircncia mesmo que haja mescla com fatores obscuros E aumentar o grau de racionalidade de consciecircncia eacute a tarefa que o poeta se impotildee projetar luz sobre tudo Pois laquonatildeo haacute ldquogecircniordquo puramente inconsciente Mas o homem de gecircnio eacute ao contraacuterio aquele que aproveita das figuras lanccediladas pelo acaso Ele retira delas uma fonte infinita vasta como o mundo [] Gecircnio = consciecircncia das inconsciecircnciasraquo Isso porque eacute somente com consciecircncia que se eacute capaz de guiar a accedilatildeo o fazer um espiacuterito totalmente inconsciente nada agiria nada faria um ser totalmente inconsciente simplesmente natildeo existiria laquoA consciecircncia eacute a possibilidade de atosraquo E laquoldquoo inconscienterdquo eacute talvez capaz de fornecer uma soluccedilatildeoraquo diz o poeta laquoMas assegurar que essa soluccedilatildeo eacute boa mas colocar o problema mdash natildeoraquo Por conseguinte o proacuteprio sonho mdashse compreendido como espeacutecie de portal de acesso agrave parte obscura do espiacuteritomdash natildeo pode ser explicado reduzido a uma uacutenica teoria o sonho suas imagens e sensaccedilotildees seus signos dispersos natildeo se transforma em mateacuteria prima utilizaacutevel se natildeo for dado agrave consciecircncia se natildeo for racionalizado E eacute nesse sentido todo que a perspectiva ldquoapoliacuteneardquo de Valeacutery mais explicitamente se manifesta e partir do qual o seu conceito de espiacuterito pode ser enfim compreendido

Quando o poeta o evoca natildeo se refere portanto a um eu substancial em si mas a um eu funcional em relaccedilatildeo Ele eacute como que um elemento ou um fenocircmeno do mundo A separaccedilatildeo promulgada pelo Racionalismo entre res cogitans e res extensa entre pensamento de um lado e corpo e mundo de outro inexiste e consequumlentemente todos os intrincados e quase insoluacuteveis problemas em se articular esse radical dualismo Dir-se-ia que para o poeta inclinado a uma espeacutecie de ambiacuteguo ldquosensualismo materialistardquo esse dualismo natildeo opera espiacuterito e mateacuteria satildeo em uacuteltima instacircncia a mesma coisa contemplada atraveacutes de diferentes perspectivas laquoa organizaccedilatildeo a coisa organizada o produto dessa organizaccedilatildeo e o organizador satildeo inseparaacuteveis ldquoO espiacuteritordquo eacute inseparaacutevel da mateacuteria mdash e reciprocamente Por outro lado essa distinccedilatildeo depende do observadorraquo

Assim na praacutetica na praacutetica da vida Valeacutery compreende o espiacuterito ou melhor o expotildee como algo sempre em circunstacircncia em situaccedilatildeo num dado tempo e espaccedilo em sua fragilidade real extremamente condicionado a si mesmo aos outros e ao mundo Daiacute aludir que apenas fez o que pode fazer natildeo aquilo que necessariamente desejava fazer laquoApoacutes tudo eu fiz o que eu puderaquo Assim se ele aspira a uma accedilatildeo a um fazer cumpre num primeiro momento considerar o espiacuterito na uacutenica perspectiva em que eacute passiacutevel de ser realmente percebido ou vivido somente por aquele que o eacute em sua forma empiacuterica concreta com todas as suas crenccedilas e descrenccedilas com todas as suas verdades e mentiras com todas as suas contradiccedilotildees com todos os seus momentos com todas as suas limitaccedilotildees e possibilidades mdashdadas tanto por si mesmo como pelo mundo no qual eacute circunstanciado situadomdash E para representar toda essa intensa oscilaccedilatildeo e fluxo toda essa impermanecircncia esse incessante saltar de um assunto a outro de uma representaccedilatildeo a outra Valeacutery cunha a expressatildeo laquoself-varianceraquo que pode ser parcamente traduzida como auto-variaccedilatildeo variaccedilatildeo-do-ser variaccedilatildeo-de-si etc Essa expressatildeo comumente designa a caracteriacutestica considerada a mais importante no espiacuterito o espiacuterito mesmo o fato deste ser no plano da consciecircncia pensamento e portanto pura variaccedilatildeo um processo ou um devir um movimento interior que virtualmente natildeo tem fim uma seacuterie dinacircmica e mutaacutevel de representaccedilotildees ou signos mas que apesar de todas as mudanccedilas e mutaccedilotildees eacute sempre a variaccedilatildeo de um mesmo a variaccedilatildeo que natildeo elimina a unidade da consciecircncia-de-si ou melhor a identidade pois por mais que o espiacuterito pense distraia-se e vagueie manteacutem a consciecircncia de que eacute sempre ele que pensa o que pensa percebe o que percebe faz o que faz A laquoself-varianceraquo indicia portanto o tempo a temporalidade que o proacuteprio espiacuterito cria e atua na medida em que os pensamentos deste natildeo passam de uma corrente que opera quase instantaneamente por similaridades e contiguumlidades o que lhe possibilita qualificaacute-los hierarquizaacute-los dar sentido e valor a eles configurar um destino Haacute certamente recorrecircncias padrotildees e obsessotildees nessa contiacutenua atividade interior mas jamais um teacutermino tudo eacute retomada e reinvenccedilatildeo (Note-se que a escritura fragmentada do poeta natildeo deixa de ser em determinado sentido uma representaccedilatildeo mais condizente mais icocircnica a um espiacuterito assim descrito)

Consequumlentemente da concepccedilatildeo mdashou simplesmente da constataccedilatildeomdash do espiacuterito como laquoself-varianceraquo haacute duas implicaccedilotildees duas caracteriacutesticas mais ou menos impliacutecitas nos fragmentos de Valeacutery

Primeira a dificuldade ou mesmo a impossibilidade do espiacuterito pensar em uma laquo ideacuteia fixaraquo (laquo lrsquoideacutee fixeraquo) isto eacute uma representaccedilatildeo natildeo passiacutevel de ser fragmentada indivisiacutevel atocircmica que para o poeta soacute pode ser postulada artificialmente na dimensatildeo da palavra da linguagem convencional e simboacutelica que em certa medida a falseia pois nenhuma ideacuteia nenhum estado mental nenhum pensamento e sentimento nem mesmo o prazer ou a dor existe como uma unidade ou como uma linha homogecircnea mas como um fenocircmeno contiacutenuo que ocorre em matizes em gradaccedilotildees de maior ou menor intensidade de maior ou menor distraccedilatildeo ou atenccedilatildeo Para o poeta a ideacuteia fixa eacute portanto um conceito que simplesmente natildeo condiz com o comportamento mental laquoTodo conhecimento toda representaccedilatildeo eacute compostaraquo escreve laquoToda consciecircncia eacute incessantemente mutaacutevelraquo O instante esse ldquoponto virtualrdquo entre o passado e o futuro natildeo eacute passiacutevel de ser capturado ou melhor eacute um contra-senso pensar que se possa capturaacute-lo pois ele soacute existe no ou como devir e o devir por sua vez soacute existe no ou como instante que se precipita no futuro Essa concepccedilatildeo natildeo estaacute longe da concepccedilatildeo de Bergson segundo a qual o ser humano natildeo vive num tempo homogecircneo quantitativo matemaacutetico ou mecacircnico mas no tempo heterogecircneo e qualitativo da consciecircncia na dureacutee

Segunda implicaccedilatildeo a dificuldade ou mesmo a impossibilidade do espiacuterito apreender perceber ou captar a si mesmo de forma absoluta total como se por um momento supremo pudesse reter o todo de sua memoacuteria o todo de suas lembranccedilas o todo das representaccedilotildees das suas experiecircncias passadas como se por um momento supremo pudesse pensar um pensamento oniabrangente e definitivo algo que enquanto ideacuteia parece ter fascinado ao poeta e a tantos outros pois mesmo que haja consciecircncia-de-si mesmo que haja unidade-de-si essa consciecircncia e essa unidade soacute satildeo dadas como ou no fluxo como ou no devir jaacute que soacute eacute possiacutevel pensar um pensamento ou um panorama de pensamento de cada vez jaacute que muitas das percepccedilotildees mesmo captadas pelo corpo escapam agrave consciecircncia esta o espiacuterito costuma se ater ao que lhe importa e lhe interessa Como diz insistentemente o poeta laquoNatildeo existe pensamento que extermina o poder de pensar e o conclui mdash uma certa posiccedilatildeo da linguumleta que fecha definitivamente a fechadura Natildeo nada de pensamento que seja para o pensamento uma resoluccedilatildeo nascida de seu proacuteprio desenvolvimento como acordo final dessa dissonacircncia permanenteraquo laquoNatildeo existe absolutamente uacuteltimo pensamento em si e por si Em alguns insetos machos haacute um uacuteltimo ato que eacute de amor apoacutes o qual morrem Mas natildeo haacute pensamento que esgote a virtualidade do espiacuteritoraquo sentencia Valeacutery para logo em seguida concluir com esta estranha frase de caraacuteter heuriacutestico laquoExiste no entanto uma estranha tendecircncia (em todos os espiacuteritos de uma certa ordem) que eacute avanccedilar sempre para natildeo sei que ponto de natildeo sei que ceacuteuraquo Mas esse ceacuteu natildeo tem fim eacute apenas um ideal ao qual o pensamento sempre tende

Dessarte como Soacutecrates ou Platatildeo ao poeta agrada pensar o pensamento (διάνοια) qualificaacute-lo como uma espeacutecie de conflito de dialeacutetica de diaacutelogo interior como uma espeacutecie de laquodissonacircncia permanenteraquo de jogo ldquoininterruptordquo de laquopergunta-respostaraquo (laquodemande-reponseraquo) laquoP-Rraquo (laquoD-Rraquo) Jogo no qual quem pergunta e quem responde eacute sempre o mesmo o mesmo que se multiplica em dois ou em mais para poder assim chegar sempre a si mesmo e assim sucessivamente Pensar conduz portanto a uma espeacutecie de separaccedilatildeo a dividir-se a ser outro mesmo sendo si mesmo a jamais manter uma uacutenica identidade a deslocar-se a multiplicar-se laquoA linguagem interior cria um Outro no Mesmoraquo Por vezes Valeacutery tambeacutem chega ao extremo de dizer que todo pensamento natildeo deixa de ser uma forma de adaptaccedilatildeo (laquoPensar mdash eacute se adaptarraquo) tanto a um pensamento preteacuterito quanto ao meio-ambiente no qual pensa portanto uma soma de respostas a uma soma de demandas ou ainda um sistema espiritual de ato-reflexo Essa visatildeo seraacute recorrentemente atualizada e personificada transformada em literatura quando da formulaccedilatildeo de seus personagens como Leonardo e Teste e em seus diaacutelogos socraacuteticos

Todavia diante dessa laquoself-varianceraquo Valeacutery natildeo entra em ldquodesesperordquo quanto a isso sua atitude eacute de controle Pois a partir do periacuteodo de crise e da Noite de Gecircnova ele determina precisa o seu programa de autoconsciecircncia o seu meacutetodo agravequilo que foi compreendido pelo proacuteprio poeta em trabalhos de ficccedilatildeo e de criacutetica como o culto ao espiacuterito o culto ao laquo Iacutedolo do intelectoraquo (laquo Idole de lrsquointellectraquo) mdashatraveacutes do qual ele supostamente chegou ou pode chegar ao proacuteprio conceito de laquoself-varianceraquomdash Esse culto pode ser postulado aqui natildeo como um deixar o pensamento solto a flanar e distrair-se de laacute para caacute em busca deste ou daquele desiderato fugaz mas sobretudo como uma forma de meditaccedilatildeo eacute um manter um sustentar com esforccedilo e sacrifiacutecio o maior grau de lucidez controle e rigor o maior grau de consciecircncia possiacutevel durante qualquer accedilatildeo durante qualquer fazer durante qualquer processo mental seja este iacutentimo seja visando findar em arte filosofia ou ciecircncia eacute a constante tentativa de atentar-se e controlar a si mesmo o mecanismo dos proacuteprios processos mentais de um modo reto eliminando do pensamento as oscilaccedilotildees e o supeacuterfluo Valeacutery sonha com um estado de eterna vigiacutelia Em seu itineraacuterio o sacrificium intellectus seria um ato de preguiccedila e covardia Ao ecircxtase natildeo se entregaria se tivesse que abandonar a razatildeo Mas esse culto ao Iacutedolo do intelecto natildeo se restringe apenas agrave meditaccedilatildeo analiacutetica de si mesmo tambeacutem se manifesta exteriormente como a anaacutelise da gecircnese ou dos processos das obras humanas suas ou de outros (Seus escritos de criacutetica literaacuteria e artiacutestica partem desse princiacutepio e por isso quase sempre vatildeo aleacutem da mera interpretaccedilatildeo do objeto interpretado apresentando tambeacutem inuacutemeras reflexotildees pessoais) Acompanhar mesmo que na imaginaccedilatildeo mesmo que de modo conjetural os passos de algueacutem que cria filoacutesofo artista ou cientista interpretar e criticar obras alheias vem a ser um modo de cultuar de meditar sobre si mesmo Interpretar eacute interpretar-se

Grande parte do que o Valeacutery escreveu ou deixou de escrever em sua obra puacuteblica e principalmente em seus Cahiers essa sua diletante variedade temaacutetica e incompletude pode ser compreendida como o resultado dessa inaudita concepccedilatildeo laquoSomente o nosso proacuteprio funcionamentoraquo escreve laquoeacute que pode ensinar alguma coisa sobre toda e qualquer coisa Nosso conhecimento no meu entender tem por limite a consciecircncia que podemos ter de nosso ser mdash e talvez do nosso corpo Quem quer que seja X o pensamento que tenho dele se eu o aprofundar tende para mim quem quer que seja eu Pode-se ignoraacute-lo ou conhececirc-lo suportaacute-lo ou desejaacute-lo mas natildeo haacute escapatoacuteria natildeo haacute outra saiacuteda A intenccedilatildeo de todo o pensamento estaacute em noacutesraquo Em certo sentido poder-se-ia dizer que para profunda e verdadeiramente compreender o mundo exterior eacute necessaacuterio compreender o mundo interior um e outro satildeo pois solidaacuterios e inseparaacuteveis A ceacutelebre maacutexima mdash conhece a ti mesmomdash natildeo deixa de estar longe daquilo que Valeacutery busca praticar todavia dentro das condiccedilotildees dos limites e possibilidades postos pela Modernidade sem esperanccedila alguma de realmente conhecer todavia refrataacuterio a qualquer doutrina metafiacutesica a qualquer substancialismo a qualquer ideacuteia de salvaccedilatildeo ou prediccedilatildeo a qualquer poacutes-morte Se haacute um autoconhecimento no pensamento do poema este soacute pode ocorrer materialmente fisicamente no aqui e no agora

Naturalmente para que esse culto ao Iacutedolo do intelecto realmente venha a se efetivar faz-se necessaacuterio um contiacutenuo e disciplinado exerciacutecio de atenccedilatildeo e esforccedilo da proacutepria vontade quando posta numa accedilatildeo num fazer Ele pode ser difiacutecil de ser mantido por periacuteodos prolongados ele pode ser aacuterduo doloroso mas eacute o uacutenico meio de educar e de fortalecer o proacuteprio espiacuterito laquoEu aprecio em todas as coisasraquo escreve Valeacutery laquoapenas a facilidade ou a dificuldade em conhececirc-la em consumaacute-la Ponho um cuidado extremo em medir esses degraus a natildeo me apegar E que me importa aquilo que estou farto de saberraquo Entretanto quando o espiacuterito eacute constantemente constrangido forccedilado a atuar no mundo exterior a ter que se envolver com as exigecircncias do corpo e principalmente daqueles que o cercam isso se torna verdadeiramente problemaacutetico principalmente nas condiccedilotildees do mundo atual que segundo Valeacutery constantemente propagam a ilusatildeo de que as obras satildeo engendradas justamente sem atenccedilatildeo e esforccedilo o que se torna bastante grave para a delicada economia do proacuteprio espiacuterito laquoA vida moderna tende a poupar-nos o esforccedilo intelectual como o faz com o esforccedilo fiacutesicoraquo escreve laquoEla substitui por exemplo a imaginaccedilatildeo pelas imagens o raciociacutenio pelos siacutembolos e pela escrita ou por mecanismos e frequumlentemente por nada Ela nos oferece todas as facilidades todos os meios curtos para se atingir o objetivo sem ter percorrido o caminho E isso eacute oacutetimo mas muito perigoso Isso se combina com outras causas que natildeo vou enumerar para produzir como direi uma certa diminuiccedilatildeo geral dos valores e dos esforccedilos na ordem do espiacuterito Gostaria de estar enganado mas infelizmente minha observaccedilatildeo eacute fortalecida pelas de outras pessoas Com a necessidade de esforccedilo fiacutesico diminuiacuteda pela maacutequina o atletismo veio felizmente salvar e ateacute exaltar o ser muscular Talvez fosse preciso sonhar com a conveniecircncia de se fazer para o espiacuterito o que se faz para o corpo Natildeo tenho a ousadia de dizer que tudo o que natildeo solicita esforccedilo seja apenas tempo perdido Mas existem alguns aacutetomos de verdade nessa foacutermula atrozraquo

Contudo Valeacutery natildeo apenas delineia o culto ao Iacutedolo do intelecto e a atenccedilatildeo e o esforccedilo que este exige ele ainda faz uma distinccedilatildeo entre dois tipos de espiacuterito dois tipos de eu (Haacute que se dizer todavia que ao fazer essa distinccedilatildeo assim como outras ele natildeo eacute muito fiel a elas as suas proacuteprias terminologias e o leitor deve ter cuidado ao lecirc-las pois natildeo raro ao escrever a palavra ldquoespiacuteritordquo ou ldquoeurdquo ele pode estar se referindo a um determinado tipo ou a outro) Ele se refere natildeo apenas a um espiacuterito enquanto eu ( moiacute) empiacuterico a self- variance mas tambeacutem a um espiacuterito enquanto eu puro ( moi pure) por vezes denominado simplesmente de eu ( moi) ao qual muitas vezes vem a ser um constante alvo de suas reflexotildees a sua meta a qual o culto ao Iacutedolo do intelecto tende Esse uacuteltimo conceito talvez seja ao mesmo tempo um dos mais instaacuteveis mais problemaacuteticos do poeta um dos mais difiacuteceis de ser compreendido pois eacute expresso em passagens demasiadas obscuras de um modo tatildeo fragmentaacuterio tatildeo incompleto tatildeo solto tatildeo contraditoacuterio e paradoxal que facilmente se intui se tratar de algo que nem mesmo para o proacuteprio Valeacutery eacute claro e satisfatoacuterio embora ele intua ser por vezes de importacircncia capital E isso se deve principalmente porque eacute extremante difiacutecil falar ou escrever sobre o espiacuterito sobre o mundo interior com os meios disponiacuteveis na linguagem verbal as palavras aiacute entram em terreno movediccedilo Em seu ensaio Descartes o poeta assim escreve sobre laquoa extrema dificuldade que nos opotildee a linguagem quando queremos obrigaacute-la a descrever os fenocircmenos da mente Que fazer com esses termos que natildeo podemos precisar sem recriaacute-los Pensamento a proacutepria mente razatildeo inteligecircncia compreensatildeo intuiccedilatildeo ou inspiraccedilatildeo Cada um desses nomes eacute ao mesmo tempo um meio e um fim um problema e uma soluccedilatildeo um estado e uma ideacuteia e cada um deles eacute em cada um de noacutes suficiente ou insuficiente segundo a funccedilatildeo que lhe outorgue a circunstacircnciaraquo Daiacute o uso recorrente de distorccedilotildees de metaacuteforas e ldquoconsequumlentementerdquo uma maior abertura agraves ambiguumlidades e indeterminaccedilotildees

De qualquer modo eacute possiacutevel constatar que o conceito de eu puro valeacuteryano possui certamente fortes ecos do conceito de eu substancial racionalista e cartesiano e numa leitura raacutepida e descontextualizada das passagens que versam sobre ele ainda tambeacutem pode evocar o conceito de eu absoluto do Idealismo Alematildeo notadamente de um Fichte e de um Schelling Mas uma leitura mais acurada indica que natildeo haacute equivalecircncia entre o primeiro e os dois uacuteltimos conceitos afinal o termo ldquopurordquo natildeo eacute em todos os casos sinocircnimo do termo ldquosubstancialrdquo ou ldquoabsolutordquo Duas satildeo aqui as instacircncias ou momentos possiacuteveis desse eu puro momentos naturalmente sempre provisoacuterios e que natildeo se excluem mutuamente mas que se complementam e demonstram as indeterminaccedilotildees os avanccedilos e os recuos as oscilaccedilotildees do proacuteprio poeta diante da fragilidade das suas proacuteprias formulaccedilotildees

A primeira refere-se ao eu puro como sendo simplesmente a laquoinvariacircnciaraquo (laquoinvarianceraquo) o laquoinvarianteraquo (laquoinvariantraquo) aquilo que no espiacuterito natildeo varia natildeo muda laquoO eu mdash eacute um invariante que resulta de toda a produccedilatildeo de fenocircmenos suficientemente consciente e complexaraquo laquoO E[u] eacute invarianteraquo assim se repete Valeacutery laquoorigem meio ou campo eacute uma propriedade funcional da consciecircnciaraquo Esse eu pode ser compreendido portanto numa imagem geomeacutetrica como um nuacutecleo duro ou como um ponto ou um centro ao redor do qual todo o resto toda a esfera movente do espiacuterito suas lembranccedilas e aspiraccedilotildees suas representaccedilotildees seus pensamentos e desejos gravitam Valeacutery que tinha uma excecircntrica fascinaccedilatildeo pela matemaacutetica costuma simbolizaacute-lo como iluminou Ulrike Heetfeld com os seguintes siacutembolos matemaacuteticos 0 1 e infin 0 eacute o signo da negaccedilatildeo a resposta que sempre eacute negada no sistema dialoacutegico de laquoperguntas-e-respostasraquo (laquodemande-reponseraquo) do espiacuterito 1 eacute o signo da unidade do espiacuterito ante as possibilidades e infin eacute o signo da pura possibilidade do espiacuterito Em todo esse estranho simbolismo o eu puro eacute estabelecido sempre como heuriacutestico como uma virtualidade natildeo como uma realidade laquoA palavra Eu designa sempre virtualidades mdash Natildeo haacute Eu redutiacutevel ao atualraquo laquoO eu (como eu o entendo)raquo escreve Valeacutery laquomdash eu o olho como uma propriedade fundamental da consciecircncia mdash um ponto virtual [] para o qual [] o meu conhecimento se ordenaraquo

A segunda instacircncia ou momento do conceito de eu puro refere-se sobretudo ao eu como o que aqui pode ser denominado de um estado de espiacuterito ao qual o eu ou o espiacuterito empiacuterico e singular valeacuteryano aspira e tende um possiacutevel que deve ser sobretudo conquistado realizado estabelecido no agir no fazer Esse estado pode ser postulado da seguinte maneira o eu puro valeacuteryano eacute o espiacuterito quando este cumprindo o seu culto ao Iacutedolo do intelecto encontra-se totalmente purificado mdashe o conceito de pureza seraacute extremamente recorrente no pensamento valeacuteryano aplicado a muitas dimensotildeesmdash de todas as ldquoemoccedilotildeesrdquo e de todos os ldquosentimentosrdquo de todas as ldquopaixotildeesrdquo de todos os iacutedolos outros desnecessaacuterios de tudo aquilo que o poeta considera como empecilhos a um pensar livre de opiniotildees e de subjetividades livre de metafiacutesicas e portanto reduzido assim a mais pura inteligecircncia ao mais puro intelecto o eu puro eacute o eu sem a pessoa o eu puro eacute o espiacuterito quando este se encontra num estado de total despersonalizaccedilatildeo ou para usar termo mais radical num estado de total desumanizaccedilatildeo silenciado tranquumlilo esvaziado sem anguacutestias porque sem esperanccedilas sem sofrimentos porque sem desejos laquo Nada mais IMPESSOAL que este EUraquo laquoEacute preciso sair da personalidade para entrar no euraquo assim formula o poeta pois a personalidade mdashcomo o proacuteprio eacutetimo da palavra indicamdash eacute uma maacutescara uma ilusatildeo uma espeacutecie de acuacutemulo ou excesso sobre o espiacuterito sobre este espiacuterito que almeja a ser eu puro Gostos e desgostos alegrias e tristezas emoccedilotildees e sentimentos tudo isso se configura como personalidade porque laquoa personalidade eacute uma probabilidade QUE PODE MUDARraquo Daiacute tambeacutem o poeta distinguir em certas passagens poeacuteticas o laquoeuraquo (laquomoiraquo) como superior ao laquomimraquo (laquomienraquo) porque este possui ego e aquele natildeo O eu puro eacute portanto natildeo um ldquoeu pensordquo e a consciecircncia de se estar pensando mas um ldquopensa-serdquo e a consciecircncia de se estar pensando

Haacute que se dizer por conseguinte que Valeacutery natildeo confere confessadamente ao eu puro assim como a grande parte de seus conceitos e propostas valores morais ao menos natildeo em sentido estrito certo enrijecimento do haacutebito a moral tambeacutem deve ser superada posto que a poderosa distinccedilatildeo entre bem e mal entre o certo e o errado soacute ocorre na dimensatildeo da personalidade das convenccedilotildees e da cultura No fundo esse conceito essa proposta o eu puro representa enfim uma forma de neutralidade e de incondicionalidade mas uma neutralidade e incondicionalidade que natildeo se estabelecem de modo transcendente fora do mundo mas de modo imanente no mundo com tudo o que este estabelecer de limites e possibilidades Pois como Maurice Blanchot diz de modo luminoso e paradoxal agrave respeito do poeta e dos personagens deste laquoO grande espiacuterito eacute [] unicamente em si e unicamente fora de si absolutamente separado e absolutamente presente ao mundoraquo Haacute ainda uma passagem extremamente laminar nos Cahiers que evoca toda essa ideacuteia de um eu como neutro e incondicional laquoO verdadeiro Deus eacute intima uniatildeo com o eu [] O eu puro eacute como a foacutermula de Deusraquo

Ante uma tal concepccedilatildeo torna-se relativamente faacutecil associar o pensamento de Valeacutery ao dos miacutesticos associaccedilatildeo que apesar de todo o distanciamento criacutetico do poeta com relaccedilatildeo agrave religiatildeo institucionalizada (seu paradigma eacute quase sempre o Catolicismo com quem tem ambiacuteguas relaccedilotildees) eacute entretanto relativamente legiacutetima A obsessatildeo pelo Uno de um Plotino os oxiacutemoros poeacuteticos de um Satildeo Joatildeo da Cruz ou a rigidez militar de um Sto Inaacutecio de Loyola todos esses e outros registros estatildeo relativamente presentes em seus escritos todas essas figuras satildeo em certa medida admiradas mas sempre com estrateacutegica cautela Pois o que o poeta preza na via miacutestica eacute menos a possibilidade do ecircxtase ou da realizaccedilatildeo da dimensatildeo sagrada sem mediaccedilotildees e mais o treinamento os aacuterduos exerciacutecios de meditaccedilatildeo praticados exerciacutecios de algum modo relativamente semelhantes aos seus proacuteprios exerciacutecios compreendidos no seu programa de autoconsciecircncia O poeta conjectura que a disciplina que a via miacutestica mdashnesse caso natildeo haacute muitas diferenccedilas com relaccedilatildeo agrave via asceacuteticamdash instaura relativamente estranha agrave mentalidade e aos interesses pragmaacuteticos da Modernidade natildeo deve ser de todo desprezada deve ser antes reinventada e continuada atualizada justamente para tempos mais positivos e cientiacuteficos logo sem necessariamente almejar a visatildeo ou a uniatildeo com o suposto Deus sem a esperanccedila ou a feacute de outrora laquoTudo o que foi encontrado de bom e de belo pela via miacutesticaraquo escreve laquodeve poder ser encontrado pela via realraquo Assim se haacute uma miacutestica ou uma ascese em Valeacutery ela soacute seraacute compreendida paradoxalmente em sentido secular ou laico dessacralizada e metaforizada Desprovida de qualquer desejo de transcendecircncia eacute uma miacutestica ou ascese formal a sua autoconsciecircncia Uma miacutestica ou uma ascese que natildeo deseja realizar Deus mas tatildeo-somente realizar-se e realizar-se sem fim laquoO problema capital na vidaraquo escreve Valeacutery laquomdash eacute o da ascese que eu entendo como possessatildeo de si e tambeacutem como exploraccedilatildeo Natildeo haacute que duvidar que a busca do progresso interior (como dizem os miacutesticos) eacute o Uacutenico objeto possiacutevel e as ciecircncias natildeo deixam de ser uma particularizaccedilatildeo dessa buscaraquo Essas palavras parecem enfim sintetizar o cerne de grande parte do pensamento de Valeacutery Haacute uma ascese intelectual a ser cumprida postulada e exigida pelo sujeito a si mesmo e que na Modernidade natildeo deve recusar as ciecircncias e as artes justamente porque as ciecircncias e as artes mdashque por princiacutepio natildeo se distinguem umas das outrasmdash podem ser tanto como praacuteticas quanto pelo que contribuem agraves especulaccedilotildees do espiacuterito meios dessa proacutepria ascese

1112 Fazer sem crer

O ceacutetico eacute o homem menos misterioso que existe e entretanto a partir de um certo momento ele natildeo pertence mais a esse mundo

Emile Cioran O mau demiurgo

Haacute toda uma seacuterie de recorrecircncias desconexa e plural de ldquocrise e conversatildeo espiritualrdquo na Histoacuteria da Filosofia e da Literatura Ocidental Satildeo Paulo e Santo Agostinho Pascal Rousseau e Kant Tolstoi Wronksi Jacques e Raiumlssa Maritain todos eles e tantos outros passaram em maior ou menor grau de acordo com suas idiossincrasias e os contextos histoacutericos em que viviam por modificaccedilotildees abruptas em suas respectivas formas de pensar por cesuras O itineraacuterio espiritual de Valeacutery com o periacuteodo de crise e a Noite de Gecircnova natildeo deixa de ser uma variaccedilatildeo desse recorrente acontecimento de ordem simultaneamente privada e puacuteblica remete agrave Crise de Tournon (29 de marccedilo a 6 de abril de 1866) de seu mestre Mallarmeacute da qual consciente ou inconscientemente talvez tenha buscado alguma filiaccedilatildeo Mas eacute sobretudo passiacutevel de ser posto aqui em comparaccedilatildeo e paralelismo com o itineraacuterio espiritual deste outro filoacutesofo que tambeacutem sofreu ou diz ter sofrido uma transiccedilatildeo abrupta em seu pensamento (10 a 11 de novembro de 1619) e marcou seja por contraste ou identidade indistintamente todo o pensamento do poeta assim como toda a tradiccedilatildeo moderna Descartes A insatisfaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo de seu tempo com uma intransigente Escolaacutestica como um proceder que amiuacutede encara o conhecimento como uma eterna recapitulaccedilatildeo e o intento de alcanccedilar ldquoideacuteias claras e distintasrdquo um saber verdadeiramente seguro natildeo deixa de ser um movimento relativamente anaacutelogo ao do poeta mdashe quanto a isso a influecircncia natildeo parece gratuitamdash Tambeacutem ele demonstrou insatisfaccedilatildeo apoacutes o periacuteodo de crise e a Noite de Gecircnova com grande parte do que lhe concedia a filosofia a arte e a literatura de seu tempo atividades que lhe pareciam extremamente fundamentadas em imprecisotildees arbitrariedades e gratuidades

Mas entre o filoacutesofo e o poeta haacute uma diferenccedila crucial Enquanto Descartes aspirando superar o ceticismo utiliza-se da duacutevida metoacutedica da duacutevida heuriacutestica como um momento ou etapa de uma linha de raciociacutenio que levaraacute agrave supostamente inviolaacutevel certeza do cogito e agraves reflexotildees sobre o meacutetodo Valeacutery constroacutei seu pensamento sempre com algum grau de negatividade E portanto abre-se a reformulaccedilotildees a inuacutemeras reformulaccedilotildees Ele se fez conduzir portanto natildeo agrave crenccedila ou agrave adesatildeo a alguma doutrina dada por outros ou formulada por si mesmo natildeo a uma certeza inviolaacutevel sagrada e em grande medida consoladora mas diferentemente a um constante e idiossincraacutetico ceticismo Esse ceticismo eacute lato isto eacute natildeo se filia e natildeo pode se filiar a nenhuma escola ou doutrina especifica Refere-se direciona-se sobretudo a um estado que de acordo com o texto em questatildeo adquire maior ou menor intensidade de duacutevida mdashcaracterizada menos como riacutegida descrenccedila e mais como simples desconfianccedilamdash frente a qualquer pensamento filosoacutefico que extrapole em demasia os limites legitimados pela experiecircncia frente a qualquer forma de metafiacutesica particularmente a qualquer forma de idealismo frente agrave universalidade e agrave veracidade dos problemas metafiacutesicos quando estes satildeo sobretudo compreendidos analisados por uma perspectiva puramente funcionalista puramente formal e linguumliacutestica a qual o poeta sempre buscou adotar laquoDesconfie sem cessarraquo (laquoMeacutefie-toi sans cesseraquo) Eis uma das inuacutemeras e poderosas divisas que toma para si escrevendo-a e afixando-a no seu quarto de estudante

O pensamento de Valeacutery quando contemplado pela perspectiva dessa desconfianccedila natildeo raro se aproxima do desafiador Pirronismo Claacutessico na medida em que sempre se ateacutem ao conceito de possibilidade que seraacute tatildeo bem encarnado pelas personagens Leonardo da Vince e principalmente Edmond Teste Pois natildeo adentra no paradoxal ceticismo dogmaacutetico que nega por princiacutepio qualquer possibilidade de se formular alguma verdade ou algum criteacuterio de verdade desde que entretanto essas possibilidades sejam proposiccedilotildees bem formuladas precisas Aproxima-se tambeacutem dos momentos ceacuteticos de Montaigne na medida em que mesmo assentando-se na eacutepoche na suspensatildeo do assentimento (conceito relativamente anaacutelogo e incluso ao de culto ao Iacutedolo do intelecto) e na busca por uma ataraxia por uma tranquumlilidade da alma (conceito relativamente anaacutelogo e incluso ao de eu puro) natildeo deixa de na dimensatildeo social do conviacutevio humano do senso-comum emitir juiacutezos de valor de referir-se a seus gostos e desgostos aos seus caprichos as suas obsessotildees de ironizar de criticar de contestar de refutar de tomar partido de defender uma ideacuteia ao inveacutes de outra Comportamento esse que pode muito bem ser contemplado em seus ensaios sobre literatura e arte assim como em seus ensaios de poliacutetica

Todavia entre todas as vertentes da tradiccedilatildeo preacute-moderna a qual o pensamento de Valeacutery pode estar relativamente filiado ou elucidado a dos tatildeo excessivamente criticados antigos sofistas parece ser uma das mais recorrentes e confessas laquoO retoacuterico e o sofista sal da terraraquo anota o poeta laquoIdoacutelatras satildeo todos os outros que trocam as palavras pelas coisas e as frases pelos atosraquo A ceacutelebre maacutexima de Protaacutegoras mdash O homem eacute a medida de todas as coisas da existecircncia das coisas que satildeo e da natildeo-existecircncia das coisas que natildeo satildeomdash eacute uma divisa operante e amiuacutede citada direta ou indiretamente em seus escritos Todavia para atualizar essa maacutexima ao vocabulaacuterio valeacuteryano dir-se-ia agora que o eu eacute a mediada de todas as coisas ou mais exatamente o eu que sou eacute a medida de todas as coisas Pois o homem no que afirma e no que nega no que sente e no que natildeo sente estaacute circunscrito a sua esfera de percepccedilotildees e a sua esfera de pensamentos ao seu proacuteprio horizonte estaacute circunscrito a sua proacutepria perspectiva que em parte recebe do mundo exterior e em parte cria de acordo com suas proacuteprias categorias Se ele crecirc que o mundo eacute deste modo ou de outro se ele crecirc que sua crenccedila natildeo pode ser qualificada como crenccedila posto consideraacute-la uma verdade objetiva e universalmente vaacutelida uma cosmovisatildeo correta essa certeza em nada muda o ldquofatordquo o insistente ldquofatordquo de que para o outro para ele a verdade alheia pode continuar sendo crenccedila ou um erro Dir-se-ia que eacute toda uma concepccedilatildeo ldquoantropocecircntricardquo ou melhor ldquoegocecircntricardquo que eacute todo um ldquorelativismordquo ou melhor um ldquoperspectivismordquo o prisma atraveacutes do qual grande parte do pensamento de Valeacutery se estabelece E isso natildeo porque ele confere importacircncia ao homem ou a si mesmo mas ao contraacuterio justamente porque desconfia do ldquohumanismordquo porque sente uma certa ldquoindiferenccedilardquo um certo ldquodesprezordquo com relaccedilatildeo ao humano compreendendo este como uma soma de subjetividades que natildeo raro obliteram a compreensatildeo do funcionamento do proacuteprio espiacuterito laquoNo fundoraquo diz ele laquoaquilo que pode ser a raiz da minha incredulidade essencial substancial mdash eacute a ideacuteia ou o sentimento bastante depreciativo que eu tenho do homem a impossibilidade de dar a ele uma importacircncia metafiacutesicaraquo Em seu pensamento a noccedilatildeo geneacuterica de uma natureza humana a habitar os homens seus coraccedilotildees em todos as eras e geografias tornando-os substancialmente idecircnticos eacute algo a ser evitado por um pensamento que se quer livre inclusive de si mesmo Displicentemente forjado numa tradiccedilatildeo laica de racionalismo empirismo e positivismo Valeacutery natildeo pode mais operar com o conceito de uma essecircncia perpeacutetua imutaacutevel imanente agraves coisas ao mundo e principalmente ao homem Homem que em suas matildeos esvaziou-se tornou-se puro devir pura linguagem Esfacelou-se Para o poeta jaacute natildeo haacute natildeo faz sentido haver mais a Verdade mas apenas verdades jaacute natildeo haacute mais o Ser mas apenas seres

Dessarte a questatildeo fundamental do ldquoceticismordquo ou do ldquorelativismordquo de Valeacutery natildeo se refere agrave questatildeo da verdade ou da possibilidade ou natildeo de se alcanccedilar agrave verdade refere-se sobretudo agrave questatildeo do estatuto da crenccedila isto eacute da importacircncia e do valor da funccedilatildeo que esta adquire para o espiacuterito que crecirc ou descrecirc para o espiacuterito que a ela adere e ou dela se utiliza E o conceito de crenccedila eacute amiuacutede em seus escritos compreendido ou reduzido a tudo aquilo que estaacute numa primeira instacircncia aleacutem do que pode ser verificado ou corroborado pela experiecircncia logo posto em relativa oposiccedilatildeo ao conceito mesmo de saber Crenccedila eacute toda adesatildeo a uma conjetura a uma especulaccedilatildeo agravequilo que natildeo se comprova ou ainda natildeo foi comprovado laquoEu creio que noacutes natildeo podemos crer somente sem o saberraquo escreve Valeacutery um tanto taxativamente Estado natildeo muito distante do ldquosentimentordquo estado que talvez seja tatildeo-somente ldquosentimentordquo crer eacute portanto uma espeacutecie de excesso de exagero do espiacuterito que supostamente natildeo se contentando com a realidade fenomecircnica presente almeja por um futuro por um transcender e se inclina por esse transcender que pode ou natildeo se revelar posteriormente uma ilusatildeo na medida em que natildeo eacute suficientemente sustentado ou legitimado por nenhuma experiecircncia real nesse sentido eacute sempre laquouma concessatildeo mdash um estado provisoacuterioraquo laquoCrer natildeo eacute no fundo que sentirraquo A crenccedila assim compreendida eacute um estado que deve ser evitado

Haacute quanto a essa recusa uma poderosa e desconcertante maacutexima mdashamiuacutede citada entre tantas outras que cultivou e repetiumdash que sem pudor algum reza laquoFazer sem crerraquo (laquoFaire sans croireraquo) Essa maacutexima mdashquiccedilaacute outro modo de compreender o estado representado pelo conceito de eu puromdash pode ser explicada interpretada da seguinte forma Quatildeo difiacutecil eacute para o senso comum e mesmo para muitas filosofias crer que se possa agir sem crer crer que se possa agir sem ter esperanccedila ou medo que essa accedilatildeo resulte crer que se possa agir sem que haja um princiacutepio para accedilatildeo que remeta ao sujeito da proacutepria accedilatildeo Pois supostamente dentro de um padratildeo psiacutequico relativamente corriqueiro a descrenccedila absoluta levaria como que naturalmente agrave paralisia absoluta da accedilatildeo do fazer Todavia para Valeacutery mdashassim como para grande parte dos ceacuteticos antigosmdash isso nem sempre ocorre E mais o contraacuterio se faz necessaacuterio Toda a accedilatildeo todo o fazer cumpre ser conduzida pelo mais puro desinteresse Agir fazer requer desapego laquoQuem faz o bem por dever o faz mal e o faz sem arteraquo sentencia o poeta E eacute nessa sentido que o seu culto ao Iacutedolo do intelecto eacute um meacutetodo atraveacutes do qual o espiacuterito trabalha para se tornar um eu puro mas um meacutetodo que exclui a esperanccedila um meacutetodo que jaacute eacute meta Pois natildeo eacute necessaacuterio nada aleacutem do processo

Talvez seja por isso por todo esse modo de se comportar e por tantas outras excecircntricas regras intelectuais aplicadas a si mesmo que agrave respeito dos inuacutemeros qualificativos que foram consagrados ao poeta Edgar Degas tenha lhe reservado um dos mais enigmaacuteticos e afetuosos mas tambeacutem um dos mais precisos o pintor costumava chamaacute-lo de Senhor Anjo Encantado Valeacutery aceita tal qualificativo e o interpreta obviamente natildeo como a designaccedilatildeo de um mensageiro da vontade divina mas como a designaccedilatildeo de um estrangeiro um estranho um solitaacuterio que em meio aos tortuosos e contraditoacuterios caminhos da Modernidade vive a estudar o mundo e a si mesmo mas tambeacutem a constatar como um Soacutecrates desencantado sua contiacutenua ignoracircncia laquoTudo o que eacute humano me eacute estranhoraquo diz enigmaticamente quiccedilaacute evocando o seu espiacuterito funcionalista Note-se que a figura do anjo eacute como na poesia de Rilke relativamente recorrente na sua proacutepria E natildeo deixa de ser providencial que um de seus uacuteltimos escritos um poema em prosa intitulado Lrsquoange de 1945 no qual um anjo admirando todo este mundo humano de erracircncia e contradiccedilotildees finde com esta poderosa frase laquo E durante uma eternidade ele natildeo cessou de conhecer e de natildeo compreenderraquo (laquo Et pendant une eacuteteacuterniteacute il ne cessa de connaicirctre et de ne pas comprendreraquo)

2 TC PERSONAGENS Personagens

Escoacutelios

Hoje jaacute natildeo tenho personalidade quanto em mim haja de humano eu o dividi entre os autores vaacuterios de cuja obra tenho sido o executor Sou hoje o ponto de reuniatildeo de uma pequena humanidade soacute minha

Fernando Pessoa A gecircnese dos heterocircnimos

2 TC 1 MODOS DE VIDA 1 Modos de vida

Na Histoacuteria da Filosofia Ocidental o laborioso artifiacutecio da personificaccedilatildeo foi recorrentemente utilizado apesar de ser considerado por vezes um devaneio excessivo e arriscado supostamente prejudicial agrave universalidade almejada pelo pensamento racional Afinal como diz o proacuteprio poeta laquoA possibilidade de ser muitos eacute necessaacuteria agrave razatildeo mas eacute a desrazatildeo que a utilizaraquo Todavia os exemplos satildeo canocircnicos Mesmo antes do pleno desenvolvimento do poderoso conceito de indiviacuteduo Platatildeo em seus diaacutelogos transformou-se em dissonantes vozes e polemizou com seus contemporacircneos posteriormente Kierkegaard em suas imensas digressotildees em estranhos pseudocircnimos como Johannes Climacus e Anti-Climacus posteriormente Nietzsche na corrosiva poeacutetica de seus aforismos em um errante Zaratustra e em um alegre Dioniacutesio

Em certa consonacircncia com esses filoacutesofos Valeacutery tambeacutem natildeo deixou de brincar de ser outro de forjar suas maacutescaras e de propositadamente confundir-se com elas O seu programa de autoconsciecircncia e o fato de jamais abandonar por mais que ambiacutegua e ironicamente dissesse pretender o sempre fantasioso plano da literatura e da poesia o conduz a reinventar-se a multiplicar-se laquoEle conteacutemraquo confessa sobre si mesmo na sugestiva terceira pessoa do singular em um texto poacutestumo breve e autobiograacutefico intitulado Moi laquomuitos e diversos personagens e uma testemunha principal que observa todos esses fantoches se agitaremraquo Como William Butler Yeats e seu anti-eu como Ezdra Pound e suas personaelig como Fernando Pessoa na invenccedilatildeo de seus ceacutelebres e desconcertantes heterocircnimos como parte desta restrita Modernidade que arduamente se desencanta frente a uma religiatildeo predominante Valeacutery desconfia da unidade do sujeito daquele que amiuacutede diz saber com absoluta certeza e secreto orgulho o que pensa e o que deseja todavia natildeo ao ponto de dilaceraacute-lo sua preciosa e ideal unidade empiacuterica em valores e crenccedilas demasiadamente contraditoacuterios em doutrinas totalmente divergentes E se apesar de estrategicamente dizer (ou justamente por isso) que seu laquoponto de vista filosoacutefico eacute a diversidade de pontos de vistaraquo ele diferentemente do plural poeta portuguecircs com quem tem tantas afinidades artiacutesticas principalmente no gosto pela dissimulaccedilatildeo natildeo se multiplica para ser literariamente outro mas para ser literalmente si mesmo laquoEu tenho o espiacuterito unitaacuterio em mil pedaccedilosraquo assim revela ou ainda mantendo certa relaccedilatildeo com a heranccedila cartesiana laquoEm suma eu sou uma transformaccedilatildeo que conserva uma certa probabilidade de mdash conservaccedilatildeoraquo Essa atitude natildeo deixa de estar tambeacutem relacionada agrave vontade ou agrave necessidade em praticar mesmo que diletantemente uma multiplicidade de outras atividades em adentrar um nuacutemero variado de registros para cumprir adequadamente aquilo que primeiramente se propotildee laquose o loacutegico nunca pudesse ser algo aleacutem de loacutegicoraquo diz laquoele natildeo seria e natildeo poderia ser loacutegico e que se o outro [o poeta] nunca fosse algo aleacutem de poeta sem a menor esperanccedila de abstrair e de raciocinar ele natildeo deixaraacute atraacutes de si qualquer traccedilo poeacutetico Penso muito sinceramente que se cada homem natildeo pudesse viver uma quantidade de outras vidas que natildeo a sua ele natildeo poderia viver a suaraquo laquoEu natildeo seria eu se eu natildeo pudesse ser um outroraquo

Leonardo da Vinci e Edmond Teste satildeo as duas mais recorrentes e exemplares dessas personificaccedilotildees desses outros Extrapolando os limites dos escritos que foram inteiramente consagrados a esses homens imaginaacuterios estatildeo tambeacutem presentes em outras partes da obra de Valeacutery que frequumlentemente deles se serve como pretextos ou veiacuteculos para expressar algo diverso como siacutembolos Em diferentes circunstacircncias culturais e econocircmicas ambos representam variaccedilotildees possiacuteveis deste espiacuterito apoliacuteneo luacutecido predisposto a iluminar o todo do mundo e de si mesmo intelectualmente autaacuterquico a que o poeta buscou constantemente construir natildeo raro em oposiccedilatildeo agraves opressotildees da vida social Ambos satildeo postulados como aqueles que buscam agir independente das filosofias alheias independente do meio que os cercam e com um maacuteximo de atenccedilatildeo e controle sobre suas proacuteprias atividades sejam estas meramente psiacutequicas ou fiacutesicas encarnam e sintetizam assim o proacuteprio programa de autoconsciecircncia de Valeacutery mas em perspectivas distintas o primeiro numa miacutetica Renascenccedila eacute a potencialidade que se transforma em ato pois trabalha a si mesmo atraveacutes dos mecanismos do mundo exterior o uacuteltimo numa miacutetica Modernidade a potencialidade que permanece potencialidade pois trabalha a si mesmo atraveacutes dos mecanismos do mundo interior Natildeo satildeo opostos um eacute quiccedilaacute a exacerbaccedilatildeo do outro a sua continuidade o seu desdobramento ao extremo numa realidade tambeacutem mais extrema porque mais fragmentada e menos propiacutecia agraves obras que exigem o labor virtualmente infinito labor segundo Valeacutery necessaacuterio ao desenvolvimento espiritual mas notadamente desvalorizado na pragmaacutetica sociedade moderna que seduzida pelas facilidades teacutecnicas e regida por uma feacuterrica administraccedilatildeo frequumlentemente exige um fim artificial e um resultado objetivo e rentaacutevel a todo trabalho humano

Como graves antagonistas dessa intransigente realidade Leonardo e Teste personificam sobretudo e respectivamente mdashmas nunca de modo a isto se reduziremmdash um dos dois principais conceitos mediante os quais a consciecircncia restringe-se em operar se soacutei torna-se autoconsciecircncia se soacutei compreender a si mesmo o seu funcionamento ldquoo fazerrdquo e ldquoo possiacutevelrdquo Ambos podem ser enquadrados portanto natildeo apenas na categoria de personagens literaacuterias mas tambeacutem na de personagens conceituais na medida em que expressam ou encarnam explicitamente questotildees ditas filosoacuteficas em escrituras que procuram eliminar o recurso da narrativa do reacutecit Condensando em breves espaccedilos textuais uma enorme variedade de discursos ocultos de subentendidos esse procedimento eacute bastante eficaz para desconstruir para matizar ou relativizar a pretensatildeo de validade universal de determinadas doutrinas relativamente dominantes Ao inveacutes de descrever abstratamente uma eacutetica ou uma esteacutetica descreve-se concretamente um indiviacuteduo imaginaacuterio que cumpre ou negue total ou parcialmente essa eacutetica ou essa esteacutetica iluminando assim as ldquovirtudesrdquo e os ldquodefeitosrdquo destas e consequumlentemente o simples e natildeo raro escamoteado fato de que nem todos aderem aos mesmos valores e crenccedilas de que nem todos operam com os mesmos conceitos e a mesma loacutegica Logo um personagem conceitual expressa sobretudo um modo de vida um modo de vida possiacutevel entre tantos e tatildeo diversos outros uma alteridade No caso de Valeacutery natildeo satildeo naturalmente tipos-ideais a representar determinadas classes ou grupos sociais a que se quer estudar louvar ou depreciar mas singularidades a representar indiviacuteduos distintos e excecircntricos cujos comportamentos contrastam com o ditado pelo senso comum Atraveacutes de seus personagens conceituais o poeta expotildee natildeo apenas a sua proacutepria dissonacircncia com relaccedilatildeo ao mundo mas tambeacutem a sua recusa em natildeo se sujeitar a esse mundo imaginando e descrevendo a si mesmo mas a si mesmo num grau mais potencializado mais evoluiacutedo explorando ao maacuteximo o limite das suas proacuteprias idiossincrasias e propoacutesitos Ele os considera seus ldquo alter egosrdquo seus ldquo alter egosrdquo futuros um outro eu para o amanhatilde A rara arte em imaginaacute-los e em descrevecirc-los eacute sobretudo a rara arte em forjar natildeo para os outros mas para si mesmo determinados modelos de perfeiccedilatildeo de pureza

Leonardo e Teste podem ser compreendidos como seres a quem se almeja imitar modos de vida a serem mdashse natildeo de modo literal ao menos heuristicamentemdash realizados Correspondem a uma meta a um projeto de vir-a-ser a um destino possiacutevel a ser cumprido por aquele que os constroacutei Em outros tempos e lugares o magro e obstinado asceta buscava integrar-se ao seu inefaacutevel e poderoso avatar todavia no pensamento eliacuteptico do poeta o asceta e o avatar se transformam naquilo que desde sempre satildeo na mesma pessoa

211 Leonardo da Vince

Ao se evocar um nome ceacutelebre repetidamente surge uma seacuterie de qualificativos que podem ser usados para raacutepida e sinteticamente descrevecirc-lo qualificaacute-lo ou desqualificaacute-lo Diz-se este foi filoacutesofo pois filosofou aquele artista pois criou obras de arte O indiviacuteduo eacute assim reduzido agrave atividade na qual mais se exercitou e pela qual mais admiraccedilatildeo ou repulsa causou mesmo que natildeo tenha com ela se identificado mesmo que tenha praticado inuacutemeras outras Tal procedimento eacute frequumlente quiccedilaacute seja de um pragmatismo didaacutetico uacutetil para aquietar num primeiro momento a consciecircncia que deseja julgar rapidamente Mas o autor nunca deixa de ser uma idealizaccedilatildeo posterior agrave obra uma construccedilatildeo realizada por leitores e comentadores por editores por todos aqueles que possuem voz e se fazem ouvir os que verdadeiramente definem a estatuto do texto na tradiccedilatildeo A pessoa por detraacutes de um nome nunca eacute completamente atingida talvez nem mesmo por aqueles que a conheceram pessoalmente e sua imagem sempre varia no transcorrer da histoacuteria

Oportunamente Valeacutery iluminava esse jogo laquoDa obra natildeo se pode jamais remontar um verdadeiro autorraquo escreve laquoMas um autor fictiacutecioraquo laquoNatildeo se pode jamais concluir da obra um autor mdash mas da obra uma maacutescara mdash e da maacutescara uma maacutequinaraquo Numa perspectiva puramente positiva soacute se conclui apenas uma seacuterie de procedimentos a engenhosidade natildeo o engenheiro As obras laquosatildeo sempre falsificaccedilotildees arranjosraquo reitera laquonunca sendo o autor felizmente o homem A vida deste natildeo eacute a vida daquele acumulem todos os detalhes que puderem sobre a vida de Racine natildeo tiraratildeo dele a arte de fazer seus versos Toda criacutetica estaacute dominada por esse princiacutepio superado o homem eacute a causa da obra mdash assim como o criminoso aos olhos da lei eacute a causa do crime Eles satildeo antes o seu efeito Mas esse princiacutepio pragmaacutetico alivia o juiz e a criacutetica a biografia eacute mais simples do que a anaacutelise [] A verdadeira vida de um homem sempre mal definida mesmo para seu vizinho mesmo para si mesmo natildeo pode ser utilizada numa explicaccedilatildeo de suas obras a natildeo ser que seja indiretamente e mediante uma elaboraccedilatildeo muito cuidadosaraquo laquoA vida do autor natildeo eacute a vida do homem que ele eacuteraquo Naturalmente natildeo eacute porque assim seja que Valeacutery se privou de escrever retratos a fabulosa ideacuteia de uma literatura despersonalizada feita apenas de tiacutetulos de obras e sem que nome algum seja referido ele que a intuiu natildeo a cumpre Contudo haacute que se ter consciecircncia de que todo exerciacutecio criacutetico natildeo deixa de ser tambeacutem um exerciacutecio literaacuterio Nada impede que um autor (como qualquer personagem histoacuterica) seja tratado natildeo como uma realidade mas como uma espeacutecie de ficccedilatildeo como uma personagem pertencente a esta literatura chamada Histoacuteria da Literatura a esta filosofia chamada Histoacuteria da Filosofia O interesse a afinidade eletiva o apreccedilo ou o desprezo o fetiche pela suposta personalidade do artista e por sua obra eacute transformado em um princiacutepio de criaccedilatildeo Que diferenccedila haacute entre um autor imaginaacuterio e um autor real quando eacute o pensamento mdashpara aleacutem da concretude do seu portadormdash o que verdadeiramente importa Dessa maneira quando escreve sobre um outro autor e uma outra obra Valeacutery pouco explicita aquilo que pertence ao seu pensamento daquilo que pertence ao alheio Haacute natildeo raro uma iacutentima fusatildeo entre sujeito e objeto em seus escritos justificada pela moderna concepccedilatildeo de que como qualquer escritor o criacutetico ao criticar tambeacutem se revela tambeacutem critica a si mesmo e a proacutepria criacutetica que faz O inteacuterprete ao interpretar interpreta-se O outro eacute um atalho para se chegar a si mesmo laquoPensamos o que ele pensou e podemos reencontrar entre suas obras esse pensamento que lhe eacute dado por noacutes podemos refazer esse pensamento a imagem do nossoraquo

Valeacutery raramente permanece portanto no seguro e cocircmodo limite das hipoacuteteses Ultrapassando o territoacuterio onde estas satildeo passiacuteveis de serem comprovadas ou refutadas lanccedilava-se a conjeturas Natildeo praticava somente a interpretaccedilatildeo mas sobretudo a invenccedilatildeo Pouco lhe interessava o que um criador quis ou natildeo verdadeiramente dizer com o que criou antes entregava-se a descrever o que tal criaccedilatildeo suscita agrave consciecircncia que o estuda A criacutetica por ele praticada era baseada em suas proacuteprias intenccedilotildees como pensador afim portanto ao modo como Baudelaire a compreendia como tarefa subjetiva e semioacutetica que implica em criaccedilatildeo e natildeo em neutralidade laquoEu creio sinceramenteraquo dizia o poeta das Les fleurs du mal laquoque a melhor criacutetica eacute a que eacute divertida e poeacutetica natildeo aquela fria e algeacutebrica que com o pretexto de tudo explicar natildeo sente nem oacutedio nem amor e se despoja voluntariamente de qualquer espeacutecie de temperamento [] [] a melhor anaacutelise de um quadro poderaacute ser um soneto ou uma elegia [] para ser justa isto eacute para ter sua razatildeo de ser a criacutetica deve ser parcial apaixonada poliacutetica isto eacute feita a partir de um ponto de vista que abra o maior nuacutemero de horizontesraquo

O exemplo mais contundente e mais excessivo de todo esse ousado e polecircmico procedimento exegeacutetico mdashpoder-se-ia ainda evocar os diversos estudos dedicados a Descartes Mallarmeacute e Degas pois Valeacutery tambeacutem fez desses outros ldquoheroacuteis do espiacuteritordquo um espelho para o seu pensamento todavia em menor grau quiccedilaacute pela iacutentima proximidade biograacutefica que o unia aos dois uacuteltimos e pela secura filosoacutefica do primeiro pouco dado agraves questotildees da linguagem e da artemdash encontra-se principalmente nos escritos dedicados agrave emblemaacutetica e misteriosa figura de Leonardo cujos famosos e idiossincraacuteticos manuscritos e desenhos o poeta teve a oportunidade de estudaacute-los na Biblioteca Nacional jaacute em 1891 Sem reserva alguma quanto a possiacuteveis criacuteticas a exigir uma fidelidade historiograacutefica ele que natildeo cessa de referir-se aos seus proacuteprios procedimentos assim confessa laquonatildeo encontrei coisa melhor eu atribuir ao desafortunado Leonardo minhas proacuteprias agitaccedilotildees transportando a desordem de meu espiacuterito para a complexidade do seu Infligi-lhe todos os meus desejos a tiacutetulo de coisas possuiacutedas Atribuiacute-lhe muitas das dificuldades que me acossavam naquele tempo como se ele as houvesse encontrado e superado Transformei meus embaraccedilos no seu poder suposto Ousei considerar-me sob seu nome e utilizar sob minha pessoa Isso era falso mas vivo No final das contas natildeo deve um jovem curioso de mil coisas parecer bastante com um homem da Renascenccedilaraquo

Os artigos Leacuteonard de Vinci e Lrsquoœuvre eacutecritte de Leacuteonard de Vinci determinadas passagens dos Cahiers a trilogia de ensaios Introduction agrave la meacutethode de Leonard de Vinci Note et digression e principalmente Leacuteonard et les philosophes - Lettre agrave Leacuteo Ferrero satildeo apesar de breves virtuoses escritos compostos por longas digressotildees atraveacutes dos quais Valeacutery buscou desde os 23 anos e por mais de trecircs deacutecadas de desenvolvimento a construccedilatildeo de uma personagem que fosse a encarnaccedilatildeo mais perfeita do laquohomem completoraquo (laquohomme completraquo) ou para usar uma expressatildeo mais conhecida do espiacuterito universal com o qual sempre sonhou construir todavia nunca realmente terminou e isso a tal ponto que mdashcioso tanto da imagem do livro quanto da imagem que um texto adquire na paacutegina a ser lida no livromdash lateralmente ao corpo central desses seus trecircs principais escritos sobre Leonardo ele acrescentou em publicaccedilotildees posteriores muitas notas laterais aforismos e fragmentos que desenvolvem e por vezes criticam determinadas ideacuteias suas anteriormente expressas

laquoNa realidade denominei homem e Leonardo o que me surgia entatildeo como o poder do espiacuteritoraquo laquoO meu propoacutesitoraquo assim expotildee Valeacutery numa ceacutelebre passagem laquoeacute imaginar um homem de quem teriam aparecido accedilotildees tatildeo distintas que se eu vier a lhes atribuir um pensamento natildeo existiraacute outro de maior extensatildeo E pretendo que ele tenha da diferenccedila das coisas um sentimento infinitamente vivo [grifo do autor] cujas aventuras poderiacuteamos muito bem chamar de anaacutelise Vejo que tudo o orienta eacute no universo que ele pensa e no rigor Ele eacute feito para natildeo esquecer nada do que entra na confusatildeo do que eacute nenhum arbusto Desce agrave profundeza do que pertence a todo mundo afasta-se dele e se olha Atinge os haacutebitos e as estruturas naturais trabalha-os por todos os lados e acontece-lhe ser o uacutenico que constroacutei enumera emociona Deixa de peacute igrejas fortalezas executa ornamentos cheios de doccedilura e de grandeza mil engenhos e as figuraccedilotildees rigorosas de muitas pesquisas Abandona os destroccedilos de natildeo sei que grandes jogos Nesses passatempos que se misturam agrave sua ciecircncia a qual natildeo se distingue de uma paixatildeo tem o encanto de parecer que estaacute sempre pensando em outra coisaraquo laquoVia neleraquo posteriormente historia com maior poder de siacutentese laquoa personagem principal dessa Comeacutedia Intelectual [laquoComeacutedie Intellectuelleraquo] que ateacute agora natildeo encontrou o seu poeta e que seria para meu gosto muito mais preciosa do que A comeacutedia humana e ateacute do que A divina comeacutedia Sentia que esse senhor dos seus meios esse possuidor do desenho das imagens do caacutelculo havia encontrado a atitude central [grifo do autor] a partir da qual as empresas do conhecimento e as operaccedilotildees da arte satildeo igualmente possiacuteveis as trocas felizes entre as anaacutelises e os atos singularmente provaacuteveis pensamento maravilhosamente excitanteraquo Para que a construccedilatildeo desse espiacuterito universal assim se realize Valeacutery prefere naturalmente ater-se natildeo agrave pessoa de Leonardo agrave qual as biografias tentam dar conta de modo sempre incompleto laquoO que eacute mais verdadeiro a cerca de um indiviacuteduo e mais Ele Mesmoraquo sentencia laquoeacute seu possiacutevel mdash que sua histoacuteria resgata apenas de maneira incerta O que lhe acontece pode natildeo inferir daiacute o que ele ignora de si mesmo Um sino que nunca foi tocado natildeo libera o som fundamental que seria o seu Por isso eacute que minha tentativa foi antes conceber agrave minha maneira o Possiacutevel de um Leonardo que o Leonardo da Histoacuteriaraquo laquoAmava nas minhas trevas a lei iacutentima desse grande Leonardo Natildeo queria sua histoacuteria nem apenas produccedilotildees de seu pensamento Dessa fronte carregada de coroas sonhava somente com a amecircndoaraquo

Avesso ao registro das filigranas da vida cotidiana Valeacutery nunca pretendeu atuar como historiador praacutetica agrave qual concebia ser mais uma construccedilatildeo subjetiva do que objetiva nunca pretendeu portanto referir-se agrave concepccedilatildeo de um homem tiacutepico do Renascimento Tal concepccedilatildeo eacute apesar de ainda hoje vulgarmente difundida e aceita ao menos fora das academias algo que tende a falsear em muito a imagem de um determinado periacuteodo histoacuterico de um determinado recorte convencional de um passado em grande medida tambeacutem convencional Leonardo natildeo era o homem tiacutepico da Renascenccedila assim como Platatildeo natildeo era o homem tiacutepico da Antiguidade Claacutessica assim como Valeacutery mdashque sempre desconfiou das riacutegidas periodizaccedilotildees e do culto de personalidades histoacutericas apesar de ter se servido desses procedimentos meramente como ficccedilotildees uacuteteismdash natildeo era o homem tiacutepico da Modernidade Pois esses homens todos natildeo representam uma maioria antes a exceccedilatildeo do que a regra eles satildeo mdashe eacute justamente esta interpretaccedilatildeo a qual o poeta trabalhamdash determinadas possibilidades de ser numa determinada eacutepoca com todos as facilidades e dificuldades que esta lhes impotildee

O excecircntrico propoacutesito de Valeacutery nunca deixou de ser afinal uma variaccedilatildeo da sua proacutepria idiossincrasia Almejava contemplar inventar em Leonardo no espiacuterito universal a laquoatitude centralraquo um meacutetodo E meacutetodo mdashtermo cartesiano e que entatildeo ficaraacute ligado agrave imagem do poetamdash representa natildeo os procedimentos das ciecircncias ou das artes particulares mas algo mais abrangente e vital um caminho como filologicamente foi estabelecido um modo de se relacionar de comungar com o mundo real atraveacutes de um pensamento extremamente praacutetico que se exterioriza em projetos que possam transformar o mundo e ao projetar transformar a si mesmo A incessante busca em tornar-se senhor de seus proacuteprios processos intelectuais de si mesmo enfim o programa de autoconsciecircncia valeacuteryano desenvolve-se com o advento de um Leonardo imaginaacuterio atraveacutes da accedilatildeo do fazer

2111 O fazer

Sonho algum encobre-lhe as proacuteprias coisas subentendido algum traz-lhe certezas e natildeo lecirc seu destino em alguma imagem favorita como o abismo de Pascal [Leonardo] Natildeo lutou contra os monstros descobriu seus mecanismos desarmou-os pela atenccedilatildeo e os reduziu agrave condiccedilatildeo de coisas conhecidas () faz o que quer passa agrave vontade do conhecimento agrave vida com uma elegacircncia superior Nada fez onde natildeo soubesse o que fazia e a operaccedilatildeo da arte como o ato de respirar ou de viver natildeo ultrapassa seu conhecimento Encontrou a ldquoatitude centralrdquo a partir da qual eacute igualmente possiacutevel conhecer agir e criar porque a accedilatildeo e a vida tornada exerciacutecios natildeo satildeo contraacuterias ao desinteresse do entendimento Eacute um ldquopoder intelectualrdquo o ldquohomem do espiacuteritordquo

Maurice Marleau-Ponty A duacutevida de Ceacutezanne

O enigmaacutetico inventor que escrevia ao inverso encarnou o projeto de Valeacutery em construir um espiacuterito universal com espantosa providecircncia Haacute como que uma filiaccedilatildeo entre o habitual modo de proceder do artista e o do poeta o primeiro tanto por sua misteriosa recusa em ater-se agrave religiatildeo e agrave metafiacutesica como por seu interesse pela natureza e pelos sentidos que a captam prefigura a Modernidade mas natildeo a cumpre o uacuteltimo a cumpre mas a critica no que ele tem de mais brutal o aprisionamento do indiviacuteduo constrangido a resultar em algo fixo e determinado Ambos satildeo incapazes da completude do acabamento e soacute podem se expressar atraveacutes de rupturas e de digressotildees de saltos e de desvios de fragmentos ambos sofriam de uma abundante criatividade maior que o tempo de vida que tinham para concretizaacute-la Acidentes e convenccedilotildees os prazos eram apenas as datas do provisoacuterio abandono de suas obras estavam como que condenados a tudo pensar e nada concluir Talvez sustentassem exigecircncias que superavam a capacidade humana de cumpri-las Daiacute os manuscritos de ambos apresentarem semelhanccedilas expliacutecitas e o poeta ser o ldquoplagiadorrdquo consciente do artista Os escritos e os esboccedilos mais do que as escassas pinturas e esculturas ainda fragilmente preservadas de Leonardo fantasias que pareciam se mostrar em suas gecircneses e intenccedilotildees fascinam Valeacutery porque este estava confessadamente mais interessado no formalismo dos meacutetodos do que no conteuacutedo das metas no contiacutenuo dos processos laquoDesses milhares de notas e de desenhosraquo explicita num trecho que pode ser compreendido como uma descriccedilatildeo de seus proacuteprios Cahiers laquoeu guardava impressotildees extraordinaacuterias de um conjunto alucinante de fagulhas arrancadas pelos golpes mais diversos de alguma fantaacutestica fabricaccedilatildeo Maacuteximas receitas conselhos a si mesmo tentativas de um raciociacutenio que se retoma agraves vezes uma descriccedilatildeo acabada outras vezes fala a si mesmo e se tuteiaraquo Contudo esse Leonardo natildeo se caracteriza apenas por esse aspecto formal tampouco apenas pela celebrada versatilidade e facilidade na praacutetica de muitas aacutereas da ciecircncia e da teacutecnica pela polivalecircncia muito menos pela vasta erudiccedilatildeo agrave qual do abuso do excesso Valeacutery cuja obra evita citaccedilotildees e referecircncias era notoacuterio criacutetico laquoTento dar uma visatildeo sobre o detalhe de uma vida intelectualraquo escreve laquouma sugestatildeo dos meacutetodos que qualquer criaccedilatildeo implica uma escolhida entre a multidatildeo de coisas imaginaacuterias modelo que adivinhamos grosseiro mas de qualquer forma preferiacutevel agraves sequumlecircncias de anedotas duvidosas aos comentaacuterios dos cataacutelogos de coleccedilotildees agraves datas Tal erudiccedilatildeo soacute iria falsear a intenccedilatildeo totalmente hipoteacutetica deste ensaio [ Introduction agrave la meacutethode de Leonard de Vinci]raquo

O que assim se torna mais relevante eacute principalmente o meacutetodo como o artista exerce todas as inuacutemeras atividades agraves quais se propotildee natildeo desvinculando natildeo separando de todo de modo absoluto mdashtal qual estados ou momentos completamente autocircnomos ou intercambiaacuteveismdash o pensamento simboacutelico e o pensamento conceitual a imaginaccedilatildeo e a razatildeo como frequumlentemente ocorre nas filosofias ou metafiacutesicas racionalistas em muito justamente fundamentadas por essas inuacutemeras separaccedilotildees Porque o pensamento simboacutelico e o pensamento conceitual a imaginaccedilatildeo e a razatildeo talvez sejam apenas plenamente distinguiacuteveis plenamente separaacuteveis no acircmbito do discurso e natildeo no acircmbito da realidade Quiccedilaacute para o espiacuterito para a consciecircncia empiacuterica mdashna qual o proacuteprio pensamento ocorre de modo constante fluido passando rapidamente de um signo a outro atraveacutes de uma fusatildeo de contiguumlidades e analogiasmdash todas as faculdades mentais sejam necessaacuterias umas agraves outras imanentes umas agraves outras cada uma delas isoladamente natildeo existiria A distinccedilatildeo entre o simbolizar e o conceituar entre o imaginar e o raciocinar soacute pode ocorrer portanto mediante um determinado didatismo ou artificialismo mediante uma convenccedilatildeo Convenccedilatildeo que se tornou ao menos ateacute determinadas filosofias romacircnticas como as de um Schelling e um Novalis dogmaticamente excessiva e acompanhada de uma quase inevitaacutevel valoraccedilatildeo hieraacuterquica do conceito sobre a imagem da razatildeo sobre a imaginaccedilatildeo ou indo mais longe do loacutegos ( λόγος) sobre o mito ( μύθος) Desde a criacutetica de Xenoacutefanes e Platatildeo aos antropomoacuterficos e destemperados deuses gregos essas distinccedilotildees todas se acentuam com maior ou menor intensidade sobretudo com o advento do Iluminismo quando entatildeo se almeja a construccedilatildeo de um pensar plenamente racional infaliacutevel universalmente correto ou verdadeiro

Mas o Leonardo valeacuteryano em suas accedilotildees ou no resultado de suas accedilotildees parece simplesmente desconsiderar ou desconhecer o problemaacutetico dualismo dessas distinccedilotildees laquoUsando indiferentemente do desenho do caacutelculo da definiccedilatildeo ou da descriccedilatildeo pela linguagem a mais exata ele parece ignorar as distinccedilotildees didaacuteticas que noacutes colocamos entre as ciecircncias e as artes entre a teoria e a praacutetica a anaacutelise e a siacutentese a loacutegica e a analogia distinccedilotildees essas todas exteriores que natildeo existem na atividade iacutentima do espiacuterito quando ele ardentemente se liberta para a produccedilatildeo do conhecimento que ele deseja [] [] Criar construir eram para ele indivisiacuteveis do conhecer e do compreenderraquo Comportando-se como cientista ou engenheiro multiplicando seus estudos de oacutetica e anatomia simplesmente para pintar um uacutenico quadro uma uacutenica folha ou flor o artista assim natildeo separa a dimensatildeo da arte da dimensatildeo do saber E se a convencional e riacutegida divisatildeo entre ambas as praacuteticas fez-se outrora como hoje necessaacuteria ao desenvolvimento da proacutepria Ciecircncia Moderna isso natildeo implica que natildeo possam ser derivadas de uma mesma fonte e compreendidas como formas de linguagem sistemas de signos com fundamentos comuns mas com funccedilotildees sociais relativamente especiacuteficas Ao posicionar-se sempre nessa compreensatildeo eminentemente semioacutetica do mundo o Leonardo valeacuteryano jamais se submete agravequilo que posteriormente iraacute ser com justa insistecircncia denominado e criticado de logocentrismo Seja porque atua num periacuteodo histoacuterico no qual magia e ciecircncia alquimia e quiacutemica astrologia e astronomia ainda se confundiam seja porque sinta a natureza de uma outra forma de modo mais holiacutestico ele demonstra ter a singular consciecircncia de que nem todo o conhecimento eacute ou precisa ser exclusiva e necessariamente logoteoacuterico fundamentado na suposta supremacia do pensamento racional consciecircncia de que a linguagem verbal a liacutengua natildeo eacute a uacutenica e exclusiva expressatildeo das interpretaccedilotildees e das crenccedilas das cosmovisotildees que as pessoas fazem da realidade consciecircncia que todo o artificialmente produzido do alfinete agrave cidade do poema agrave teoria pode ser compreendido como exteriorizaccedilatildeo de um pensamento que se faz representar na particularizaccedilatildeo de atividades as mais variadas Pois a poesia a danccedila a muacutesica a cenografia a ornamentaccedilatildeo o desenho a pintura a escultura a arquitetura a urbaniacutestica a engenharia a ciecircncia todas essas e tantas outras atividades tambeacutem satildeo usadas para transmitir interpretaccedilotildees e crenccedilas cosmovisotildees sejam estas coletivas ou individuais e cujos efeitos na mentalidade alheia satildeo efetivos muitas vezes tatildeo ou mais efetivos quanto o comunicar atraveacutes da linguagem verbal da liacutengua

Uma das principais ldquovantagensrdquo mdasha expressatildeo natildeo eacute a mais adequada mas de algum modo exprime a intenccedilatildeo aqui preteridamdash de Leonardo sobre os Filoacutesofos mdashe Valeacutery compraz-se em comparaacute-los e assim criticar a proacutepria filosofiamdash eacute simplesmente esta natildeo se limitar natildeo limitar o pensamento natildeo condicionaacute-lo apenas agrave expressatildeo pela proacutepria linguagem verbal pela liacutengua falada ou escrita Enquanto os uacuteltimos costumam proceder desse modo seja pela crenccedila na sacralidade ou no caraacuteter civilizador da palavra seja pela precisatildeo e abrangecircncia que esta supostamente concede o primeiro quiccedilaacute nunca satisfeito com o que pode expressar com o que pode realizar pensa e almeja a transmissatildeo do pensamento atraveacutes de inuacutemeras outras formas como se devesse explodir estilhaccedilar-se por todos os lados

Eis portanto o espiacuterito do Leonardo valeacuteryano essa vontade de manifestar-se atraveacutes de todas as linguagens disponiacuteveis em sua eacutepoca e em seu meio sendo capaz de conjeturar e inventar outras se assim for necessaacuterio essa vontade de manifestar-se atraveacutes de todas as inuacutemeras possibilidades de representaccedilatildeo do pensamento Porque somente assim ao dispor-se a experimentar a colocar esse seu pensamento em uma determinada accedilatildeo em um determinado fazer seraacute possiacutevel afirmaacute-lo ou negaacute-lo verificaacute-lo ou falseaacute-lo justificaacute-lo ou simplesmente continuar a desenvolvecirc-lo Para o artista o horizonte de suas praacuteticas natildeo finda apenas na anaacutelise mas continua na transformaccedilatildeo que pode executar a partir dessa anaacutelise Cumpre a praacutetica dar continuidade agrave interpretaccedilatildeo cumpre a praacutetica tambeacutem ser interpretaccedilatildeo Potencialidade que sempre se atualiza que sempre se exterioriza em realizaccedilotildees Leonardo revela-se nesse sentido uma inteligecircncia isto eacute uma maacutequina de ponderaccedilotildees de escolhas e de decisotildees que diante do real natildeo se acanha ou se intimida e estaacute sempre a calcular as concretas possibilidades de accedilatildeo de feitura Retirar das circunstacircncias nas quais sempre se encontra sejam estas favoraacuteveis ou desfavoraacuteveis o maacuteximo possiacutevel vencecirc-las e natildeo ser por elas vencido fazer da fraqueza uma forccedila da queda uma ascensatildeo do erro um acerto do presente um futuro nunca esperar e sempre fazer esse eacute o ldquosegredordquo de sua existecircncia devotada agrave expressatildeo agrave realizaccedilatildeo mdashmesmo que os resultados sejam apenas uma soma de incontaacuteveis fragmentosmdash laquoNada de revelaccedilotildees para Leonardo Nada de abismo aberto agrave sua direita Um abismoraquo insiste Valeacutery mais de uma vez laquofaacute-lo-ia pensar numa ponte Um abismo poderia servir para experiecircncias com algum grande paacutessaro mecacircnicoraquo laquoseu pensamento se desenvolve cada vez mais sobre o controle perpeacutetuo das resistecircncias exteriores Nada de real lhe parece indigno de ocupar sua poderosa atenccedilatildeoraquo Diante dos fenocircmenos ele se concentra simplesmente nos projetos e construccedilotildees que esses fenocircmenos legitimam e evocam no espiacuterito na consciecircncia O real natildeo eacute para ser posto como um altar a ser simplesmente contemplado com espanto o real eacute para ser usado

Eacute atraveacutes dessa perspectiva que o artista passa a representar portanto para o poeta uma espeacutecie de siacutembolo da proacutepria accedilatildeo do proacuteprio fazer Fazer que eacute tanto o resultado quanto o aperfeiccediloamento de um saber seja este compreendido como arte ou ciecircncia laquoMeu primeiro movimento de espiacuterito foi sonhar com o Fazerraquo confessa Valeacutery em um trecho memoraacutevel o quanto esse conceito geneacuterico lhe eacute tatildeo caro laquoA ideacuteia de Fazer eacute a primeira e a mais humana ldquoExplicarrdquo nunca eacute mais que descrever uma maneira e fazer eacute apenas refazer atraveacutes do pensamento O Porquecirc e o Como que satildeo apenas expressotildees do que eacute exigido por essa ideacuteia inserem-se a todo instante ordenando que os satisfaccedilamos a qualquer preccedilo A metafiacutesica e a ciecircncia somente desenvolvem sem limites essa exigecircncia Ela pode ateacute levar-nos a supor que ignoramos o que sabemos quando o que sabemos natildeo se reduz claramente a alguma habilidade Eacute isso recuperar os sentidos na sua fonteraquo Entretanto soacute se deve agir soacute se deve fazer com rigor com laquo obstinado rigorraquo (laquo hostinato rigoreraquo) Esta eacute uma das maacuteximas divisas de Leonardo agrave qual Valeacutery constata e adere buscando cumpri-la em todos os aspectos de sua obra e de sua vida Para se passar do pensamento agrave accedilatildeo para se passar do pensamento ao fazer para que o espiacuterito se insira atraveacutes da praacutetica por ele escolhida no devir do mundo o seu cultivo cotidiano obstinado e obsessivo o seu culto faz-se necessaacuterio A sua exigecircncia natildeo eacute mero preciosismo Compreendido como tenacidade e exatidatildeo e natildeo como falta de flexibilidade o rigor proposto eacute o modo mesmo pelo qual se busca obter entendimento clareza luminosidade na obra e no processo de elaboraccedilatildeo da proacutepria obra pelo qual o espiacuterito a consciecircncia busca laquonatildeo sei que total possessatildeo de sua maacutequina de agir a elegacircncia ideal da accedilatildeo criadoraraquo Natildeo por acaso Walter Benjamim descrever o Leonardo valeacuteryano e consequumlentemente o proacuteprio Valeacutery justamente como laquoo artista que em nenhum momento de sua obra desiste de alcanccedilar uma noccedilatildeo maximamente exata de seu trabalho e de sua maneira de executaacute-loraquo

Dessarte ao almejar assim proceder o Leonardo valeacuteryano deve comeccedilar recusando o modo como as pessoas em geral contemplam o mundo atraveacutes de um pensamento que abstrai e julga precipitadamente Pois elas estatildeo muito carregadas inflacionadas de conceitos a cultura pesa sobre elas como uma segunda natureza natildeo como uma convenccedilatildeo da qual elas possam facilmente se livrar ou trocar Supotildee-se que ao longo de incontaacuteveis processos histoacutericos e biograacuteficos na sedimentaccedilatildeo e na cristalizaccedilatildeo de interpretaccedilotildees e afirmaccedilotildees elas se esqueceram de conviver com a realidade que os sentidos lhes oferecem jaacute natildeo podem mais percebecirc-la sem a espessa lente dos valores e das crenccedilas das palavras Suas especulaccedilotildees as lanccedilam para outros mundos que natildeo este quiccedilaacute ilusoriamente mais controlaacuteveis e consoladores quiccedilaacute mais suportaacuteveis laquoA maioria das pessoas vecirc atraveacutes do intelecto com uma frequumlecircncia bem maior do que atraveacutes dos olhosraquo diagnostica Valeacutery laquoAo inveacutes de espaccedilos coloridos tomam conhecimento de conceitos Uma forma cuacutebica esbranquiccedilada em relevo e trespassada por reflexos de vidros imediatamente eacute uma casa para eles Lar Ideacuteia complexa acordo de qualidades abstratas Se se deslocam o movimento das filas de janelas a translaccedilatildeo das superfiacutecies que desfigura continuamente suas sensaccedilotildees escapam mdash pois o conceito natildeo muda Percebem mais de acordo com o leacutexico do que segundo a retina aproximam tatildeo mal os objetos conhecem tatildeo vagamente os prazeres e os sofrimentos de ver que inventaram os belos locais Ignoram o resto Mas quando isso acontece regalam-se com um conceito que formiga de palavrasraquo E tudo isso porque o laquodemocircnio da generalizaccedilatildeoraquo raramente dorme laquoFaacutecil cosa egrave farsi universale Eacute faacutecil universalizar-seraquo Difiacutecil eacute fazer com que o pensamento natildeo adentre universalizaccedilotildees extremas demasiado extremas difiacutecil eacute portanto natildeo ousar filosofar e filosofar somente atraveacutes do pensamento racional atraveacutes da linguagem verbal da liacutengua de palavras Pois o espiacuterito a consciecircncia mdashdiferentemente do olho que em certo sentido sempre vecirc mais diferentemente de qualquer outro sentido fiacutesico que sempre percebe ou recebe maismdash tende a agrupar a conjugar a aglutinar como que natural e imediatamente num mesmo conceito sob uma mesma designaccedilatildeo uma infinidade de fenocircmenos sempre diferentes e sempre fluidos como se esquecesse das diferenccedilas para compreender para gerar conhecimento faz-se necessaacuterio falsificar ficcionar

Todavia o Leonardo valeacuteryano assim aprende laquopor esse estudo constante rigoroso e amoroso das coisas da natureza que natildeo haacute detalhes na realidade [grifo do autor] e que se [o nosso] espiacuterito nos obriga a abstrair e a simplificar a confundir os seres inominaacuteveis sob quaisquer pobres nomes e a substituir a sua variedade infinita os ldquoconceitosrdquo as classes e as entidades isso natildeo passa de uma necessidade de nosso entendimento [] Noacutes percebemos bem mais do que podemos conceberraquo Eis portanto como o Leonardo valeacuteryano em contraste com esse impulso ou ambiccedilatildeo relativamente natural de abstrair conceitualmente principia qualquer accedilatildeo qualquer fazer suspendendo provisoriamente a ideacuteia a especulaccedilatildeo sobre o suposto valor ontoloacutegico dos fenocircmenos a funccedilatildeo e a hierarquia que estes possam ter no cosmo para pensar o maior tempo possiacutevel as impressotildees primeiras os fenocircmenos simplesmente Disciplinando o pensamento e purificando a percepccedilatildeo o espiacuterito universal deve assim comeccedilar mdashironicamentemdash pelas particularidades Ele escreve Valeacutery laquotambeacutem comeccedila simplesmente contemplando e volta sempre a impregnar-se de espetaacuteculos Retorna aos ecircxtases do instinto particular e agrave emoccedilatildeo dada pela menor coisa realraquo Sente laquoa embriaguez dessas coisas particulares das quais natildeo existe ciecircncia [] [Sente] como uma delicadeza especial a voluacutepia da individualidade dos objetos [] Nada eacute mais poderoso na vida imaginativa O objeto escolhido torna-se como que o centro de associaccedilotildees cada vez mais numerosas conforme esse objeto seja mais ou menos complexo No fundo essa faculdade natildeo pode ser outra coisa senatildeo um meio de excitar a vitalidade imaginativa de transformar uma energia potencial em atualraquo Que se vaacute primeiro aos fenocircmenos particulares e que depois se adentre no perigoso e sedutor labirinto da abstraccedilatildeo conceitual pois assim se aventurar eacute da ldquonaturezardquo mesma do pensamento que opera por distanciamentos por excessos e economias mas tambeacutem que se traga o precioso fio que reconduz a dele sair que os peacutes se mantenham na terra e a cabeccedila no ceacuteu Esse eacute aqui o estranho princiacutepio para a construccedilatildeo de um saber relativamente mais purgado de especulaccedilotildees de preconceitos de ilusotildees metafiacutesicas Eacute por isso que as ldquoaparecircnciasrdquo as imagens as artes plaacutesticas que tradicionalmente copiam os fenocircmenos particulares que tradicionalmente os representam por semelhanccedilas como o desenho e a pintura satildeo tatildeo caras tatildeo necessaacuterias ao Leonardo valeacuteryano para este como afirma o poeta a pintura substitui a filosofia Porque olhar um objeto eacute uma coisa olhaacute-lo desenhando-o e pintando-o fazendo-o na representaccedilatildeo artiacutestica eacute outra Fazendo-o na representaccedilatildeo artiacutestica eacute descobrir algo no mundo que o espiacuterito a consciecircncia dispersa em suas especulaccedilotildees natildeo descobriria A representaccedilatildeo artiacutestica que aiacute se faz da realidade eacute icocircnica portanto composta de uma fidelidade direta com o abstraiacutedo atenta agrave proacutepria realidade percebida a um aspecto dela

E isso faz com que Valeacutery mdashatraveacutes desse seu Leonardo em quem o pensamento simboacutelico e o pensamento conceitual a imaginaccedilatildeo e a razatildeo se fundemmdash sonhe com um projeto de estudo futuro o qual o poeta denomina de laquo loacutegica imaginativaraquo (laquo logique imaginativeraquo) ou de laquo analoacutegicaraquo (laquo analogiqueraquo) Tambeacutem derivado das experiecircncias poeacuteticas do Simbolismo esse projeto seria uma verdadeira investigaccedilatildeo da poderosa capacidade espiritual de fazer analogias de abstrair graficamente elementos semelhantes de fenocircmenos postos em comparaccedilatildeo como um modo eficaz de representar e compreender a realidade e de ater-se a ela Isso porque a analogia jaacute seria um dado imprescindiacutevel na vida e nas proacuteprias praacuteticas humanas algumas dessas seriam impossiacuteveis se a analogia natildeo fosse sistematizada e convencionada como certa arquitetura feita a partir de projetos que a representam no espaccedilo e certa muacutesica feita a partir de partituras que a representam no tempo jaacute que como diz o poeta de modo preciso laquoO graacutefico eacute capaz do contiacutenuo de que a palavra eacute incapazraquo

A arte revela-se portanto na concepccedilatildeo do Leonardo valeacuteryano como essa praacutetica de ir aos fenocircmenos particulares cujo desenvolvimento daacute-se sobretudo pela analogia pela metaacutefora a arte revela-se portanto como um saber em estado nascente A sua muacuteltipla e irredutiacutevel ldquofunccedilatildeordquo (se o termo funccedilatildeo lhe eacute aplicaacutevel) mesmo quando inserida em uma forte heteroniacutemia religiosa mesmo que em contradiccedilatildeo com o impulso ao transcendente natildeo deixa de ter um caraacuteter eminentemente a-metafiacutesico posto ser frequumlentemente uma relaccedilatildeo muito proacutepria e iacutentima com a realidade sensiacutevel material Se a filosofia e a ciecircncia tenderiam mdashmenos por si mesmas e mais pela ideoloacutegica imagem que delas se fazemmdash a afastar as pessoas das coisas a arte as aproximaria delas se a tarefa do filoacutesofo e a do cientista torna-se em grande parte a construccedilatildeo de mundos cujas abstraccedilotildees satildeo gerais a tarefa do artista eacute a construccedilatildeo de mundos cujas abstraccedilotildees satildeo particulares laquoUtilidade dos artistasraquo assim define Valeacutery em breves e capitais aforismos laquoConservaccedilatildeo da sutileza e da instabilidade sensoriais Um artista moderno deve perder dois terccedilos de seu tempo tentando ver o que eacute visiacutevel e principalmente natildeo ver o que eacute invisiacutevel Com muita frequumlecircncia os filoacutesofos expiam a culpa de terem agido ao contraacuterioraquo laquoUma obra de arteraquo dizia laquodeveria ensinar-nos sempre que natildeo haviacuteamos visto o que vemosraquo laquoA educaccedilatildeo profunda consiste em desfazer a educaccedilatildeo primitivaraquo Mediaccedilatildeo a desconstruir mediaccedilotildees a arte seria justamente uma meditaccedilatildeo produtiva sobre os fenocircmenos particulares A sua praacutetica enquanto criacutetica pode ser usada assim como um poderoso meio para purificar as especulaccedilotildees para purificar os valores e as crenccedilas as palavras que obliteram a proacutepria percepccedilatildeo do real para quebrar haacutebitos mentais A consequumlecircncia mais relevante desse estranho ideaacuterio o qual Valeacutery doravante reelaboraria e ampliaria de um modo ainda mais poeacutetico principalmente em seus diaacutelogos socraacuteticos eacute por conseguinte uma reconciliaccedilatildeo com o mundo sensiacutevel material A exigecircncia do pensamento de Leonardo sentencia o poeta laquoo reconduz ao mundo sensiacutevel e sua meditaccedilatildeo tem por saiacuteda o apelo agraves forccedilas que constrangem a mateacuteria O ato do artista superior eacute o de restituir atraveacutes das operaccedilotildees conscientes o valor da sensualidade e o poder emotivo das coisasraquo

O meacutetodo do Leonardo valeacuteryano pode ser compreendido sintetizado enfim como a conjunccedilatildeo perfeitamente harmocircnica entre dois siacutembolos maacuteximos e indissociaacuteveis do proacuteprio poeta a Matildeo (que age que faz) e o Olho (que contempla a realidade passiacutevel de sofrer accedilotildees feituras) Naturalmente esse meacutetodo mdashque natildeo passa na esfera do espiacuterito da consciecircncia de uma idiossincrasia de uma fidelidade a si mesmo aos seus processosmdash possui no pensamento de Valeacutery ainda uma outra e capital funccedilatildeo aumentar pela proacutepria atenccedilatildeo e esforccedilo que exige do espiacuterito da consciecircncia que pratica alguma arte ou ciecircncia a proacutepria autoconsciecircncia seu mais raacutepido e pleno desenvolvimento e purificaccedilatildeo jaacute que esta se adquire na perspectiva do Leonardo valeacuteryano natildeo na especulaccedilatildeo circular e esteacuteril mas essencialmente na proacutepria accedilatildeo no proacuteprio fazer Algo que seraacute fortemente explicitado por um outro personagem conceitual o Soacutecrates valeacuteryano no fim do diaacutelogo Eupalinos E eacute por isso por buscar manter-se com rigor nesse meacutetodo nesse caminho que o Leonardo valeacuteryano foi facilmente qualificado natildeo apenas de gecircnio (o termo eacute demasiado idealista e romacircntico para o poeta) mas tambeacutem de monstro Um monstro que compreende a si mesmo como uma unidade de intelecto e corpo destinada agrave praacutetica sem fim O proacuteprio poeta assim escreve laquoEm relaccedilatildeo aos nossos haacutebitos Leonardo parece como que um monstro um centauro ou uma quimera por causa da espeacutecie ambiacutegua que ele representa para espiacuteritos empenhados demais em dividir a nossa natureza [grifo do autor] e em considerar filoacutesofos sem matildeos e sem olhos artistas com cabeccedilas tatildeo reduzidas que natildeo possuem nelas nada mais que instintosraquo

Todavia feliz ou infelizmente esse monstro talvez jaacute natildeo possa mais ser Aquilo que outrora constituiacutea muito de seu poder hoje provavelmente constituiria muito de sua fraqueza a polivalecircncia natildeo raro seria denominada de dispersatildeo o rigor de intransigecircncia O espiacuterito universal talvez esteja fadado a morrer em longa e pateacutetica agonia Nada ou muito pouco concretizaria num mundo no qual a especializaccedilatildeo a divisatildeo do trabalho e do saber se alastraram por grande parte das esferas sociais no qual as relaccedilotildees demandam um fim determinado e por vezes uacutenico Nunca a ciecircncia dependeu de tantos esforccedilos conjuntos nunca se soube tanto com relaccedilatildeo agrave quantidade de conhecimento do passado e tatildeo pouco com relaccedilatildeo agrave quantidade de conhecimento do presente nunca a memoacuteria humana esse acumular de lembranccedilas e de contiacutenuas deformaccedilotildees subjetivas apresentou-se tatildeo fraacutegil e tatildeo incapaz de abarcar todo o diversificado conhecimento que a humanidade constantemente reformula e incrementa Dir-se-ia que o espiacuterito universal se restringiu cada vez mais a ser universal em algumas em poucas atividades e assim sucessivamente ateacute o limite no qual soacute pode vir a ser o especialista daquilo que mais ningueacutem eacute por princiacutepio capaz de ser de si mesmo Situado nos antiacutepodas de Leonardo este outro monstro valeacuteryano Edmond Teste vem a ser tal especialista Ele talvez seja na Modernidade o uacutenico espiacuterito universal possiacutevel aquele que renunciou a accedilatildeo aquele que renunciou ao proacuteprio fazer para somente dedicar-se a se fazer

212 Edmond Teste

A solitaacuteria e por vezes sofrida relaccedilatildeo do ser humano com aquilo que o habita com sua proacutepria interioridade natildeo foi na perspectiva laica amiuacutede representada pelos gecircneros narrativos da literatura ateacute o desenvolvimento da sociedade burguesa com sua heterogecircnea cultura cientiacutefica e teacutecnica na qual o prestigioso conceito de indiviacuteduo se cristaliza e se manifesta se impotildee com mais veemecircncia e constacircncia conceito que tem em filoacutesofos como o transigente Montaigne os racionalistas Descartes e notadamente Leibniz seus principais arautos e em Soacutecrates e Santo Agostinho nobres precursores de uma antiguidade em muito voltada para uma ldquointerioridaderdquo regida pelo divino voltada natildeo para os homens em suas singularidades mas para o homem em sua generalidade A descriccedilatildeo de tipos ideais frequumlente em registros orais e na passagem destes para os escritos faz-se a partir de entatildeo menos constante e necessaacuteria Personagens singulares especiacuteficos por vezes anocircnimos distantes do restrito ciacuterculo das decisotildees poliacuteticas e econocircmicas marginais por opccedilatildeo ou por destino mergulhados numa sombria monotonia de iacutentimas cogitaccedilotildees agora tambeacutem podem ser eleitos protagonistas A transformaccedilatildeo de um indiviacuteduo suas epifanias e ecircxtases seus desesperos e crises ou mesmo as suas paralisias essas intensas metamorfoses agraves quais como que inevitavelmente todos passam natildeo precisam necessariamente ocorrer ou serem descritas em cenaacuterios monumentais em qualquer lugar em qualquer periacuteodo e em qualquer circunstacircncia elas podem surgir Anaacuterquicos na escolha de suas temaacuteticas muitos dos autores modernos mdashque tambeacutem se posicionam como indiviacuteduos principalmente quando se posicionam como autoresmdash descobrem aquilo que sempre souberam que toda trajetoacuteria pode ser contada que uma existecircncia exterior e ordinaacuteria pode ocultar uma existecircncia interior e extraordinaacuteria que a literatura assim como qualquer arte assim como a proacutepria filosofia pode se utilizar e se apropriar de qualquer elemento de uma visatildeo ou lampejo de um miacutenimo fragmento de realidade outrora supostamente fraacutegil e insignificante Natildeo haacute detalhes natildeo precisa haver tudo importa porque tudo agora vem a ser motivo e momento para a proacutepria criaccedilatildeo tudo agora vem a ser propiacutecio A vida do espiacuterito revela uma aventura igualmente excelsa quanto agrave vida do corpo Um drama pode ser estaacutetico uma vida imoacutevel Do sonhador cavaleiro andante de Cervantes aos desesperados personagens de Dostoieacutevski passando pelos pateacuteticos burgueses de um Balzac e chegando agraves aniquiladas quase-personagens de um Kafka e um Beckett tal parece ter sido uma das mais constantes orientaccedilotildees da Literatura Moderna

Ao herdaacute-las Valeacutery tambeacutem as radicaliza a um plano de abstraccedilatildeo extrema isso naturalmente faz parte desse recorrente jogo em jamais aceitar o que lhe eacute dado sem conscientemente crivaacute-lo transformaacute-lo ou mesmo distorcecirc-lo Grande parte de sua obra natildeo deixa de ser simplesmente o registro verbal de uma ou de parte de uma intensa interioridade de uma interioridade a fazer-se ou a querer fazer-se sempre e cada vez mais luacutecida e objetiva Nela tudo se passa como se jaacute natildeo fosse mais necessaacuterio explicitar elementos que a todos fossem comuns Por que registrar o exato momento em que a matildeo foi cortada quando eacute a dor que interessa e o que essa dor suscita Dando importacircncia relativa agraves localidades e datas o poeta prefere dizer como o espiacuterito eacute afetado pela comida ou pela bebida do que dizer o que comeu e bebeu prefere registrar a reflexatildeo sobre o fato do que o fato pois este apesar de necessaacuterio eacute de ordem contingente e aquele pode servir de elemento para a formulaccedilatildeo de uma lei interna Preferecircncia essa que natildeo implica na abertura para uma generalizaccedilatildeo excessiva ou para uma universalizaccedilatildeo dada a partir da crenccedila em uma natureza humana comum facilmente propagada pela filosofia mas que implica sobretudo em avaliar a si mesmo como um fenocircmeno um fenocircmeno qualquer nem mais nem menos importante nem superior nem inferior a qualquer outro fenocircmeno exterior Como reescreve num tipo de siacutentese que lhe eacute muito proacutepria Jorge Luis Borges acerca da lucidez daquele que talvez tenha sido um de seus secretos mestres laquoOs fatos para ele soacute valem como estimulantes do pensamento pensamento para ele soacute vale enquanto o podemos observar a observaccedilatildeo tambeacutem lhe interessaraquo E assim sucessivamente num processo circular que o contista argentino muito bem poderia simbolizar na forma de um labirinto sem fim

Composta ao longo de grande parte da vida de Valeacutery La soireacutee avec Monsieur Teste ou simplesmente Monsieur Teste (a primeira ediccedilatildeo data de 1925 doravante outros trechos foram continuamente acrescentados e publicados postumamente afora as referecircncias diretas ou indiretas presentes nos Cahiers e nas Histoires briseacutees) natildeo deixa de ser entre os seus outros escritos um caso limite de todo esse modo de proceder Numa primeira aproximaccedilatildeo o leitor poderia julgar estar diante de um romance de algum modo indiretamente aparentado com os romances filosoacuteficos praticados por Voltaire ou Diderot Entretanto essa obra estranhiacutessima inclusive para contexto experimental da literatura do seacuteculo XX dificilmente seraacute assim classificada Fragmentada ao extremo eacute provaacutevel que tenha sido deliberadamente estruturada como antiacutepoda a uma forma que apesar de extremamente resistente e plaacutestica constituiacuteda por um subjetivo prosaiacutesmo mais propiacutecio a destrinccedilar os conflitos psicoloacutegicos do que a objetividade poeacutetica da epopeacuteia veio a se tornar inadequada para conter os extremos graus de enleio abstraccedilatildeo e rigor almejado por um escritor que jamais se propocircs a romancear mas registrar os movimentos de um espiacuterito singular Note-se que Valeacutery natildeo valora o proacuteprio romance como grande parte da criacutetica literaacuteria de sua eacutepoca tampouco como os romancistas Proust ou Gide Considerava-o um gecircnero demasiado impuro voltado agraves inuacutemeras filigranas cotidianas aos prazeres e desprazeres da vida e por conseguinte segundo a sua proacutepria concepccedilatildeo de literatura como um exerciacutecio ideal de precisatildeo e de siacutentese irredutiacutevel agrave expressatildeo de elementos aleatoacuterios e gratuitos Elementos em muito oriundos de um automatismo a ser superado pelo escritor que almeja uma literatura pura logo poeacutetica laquoPara fazer romancesraquo diz ele de um modo talvez excessivamente criacutetico laquoeacute necessaacuterio considerar os homens como unidades ou elementos bem definidosraquo Ou ainda laquoO romance responde a uma necessidade bem mais ingecircnua que o poema mdash Pois ele demanda crenccedila credulidade abstenccedilatildeo de si mdash e o poema exige colaboraccedilatildeo ativaraquo

Assim se haacute um gecircnero em que essa obra esse anti-romance de um hibridismo avassalador possa ser compreendido de um modo lato talvez seja o do retrato Os incisivos moralistas do seacuteculo XVII e XVIII que enquanto estilistas tanto apreciavam essa forma hoje relativamente esquecida possuem certa filiaccedilatildeo com o tipo da criacutetica que Valeacutery em Monsieur Teste costuma lanccedilar sobre a moral vigente todavia este diferentemente daqueles natildeo busca pintar a maacutescara que uma ldquocelebridaderdquo adquire perante os seus num determinado ciacuterculo social nem a sua suposta decadecircncia e queda suas pateacuteticas excentricidades mas principalmente um homem extremo envolvido em praacuteticas intelectuais extremas A obra debruccedila-se assim no perfil e na exposiccedilatildeo do pensamento deste personagem o Senhor Edmond Teste um discreto e pacato burguecircs a viver de modestas aplicaccedilotildees na bolsa de valores no iniacutecio do seacuteculo XX numa Paris somente esboccedilada mas sempre presente em suas raacutepidas e convulsivas transformaccedilotildees urbanas e sociais A obra se constitui de requintada e hermeacutetica prosa (ou poesia posto que a diferenccedila entre uma e outra nela se dilui) de estilo filiado ao do Simbolismo sem entretanto estar aprisionada por essa corrente tampouco pelo procedimento do monoacutelogo interior do fluxo da consciecircncia ( stream of consciousness) de um James Joyce ou de uma Virginia Woolf ao qual um autor que se proponha na Modernidade narrar a vida de uma uacutenica personagem poderia facilmente adotar A obra Monsieur Teste natildeo pode ser enquadrada numa corrente estiliacutestica especiacutefica responde mais a princiacutepios esteacuteticos pessoais do que coletivos a uma iacutentima exigecircncia a siacutentese de um princiacutepio a partir do qual a reflexatildeo e a criaccedilatildeo se desenvolvem e se identificam laquoMeu ldquoCogitordquoraquo revela Valeacutery a grande importacircncia que lhe deu laquomdash ele estaacute inscrito na Soireacute avec M Testeraquo laquoSr Teste eacute meu espantalho quando eu natildeo sou saacutebio eu penso neleraquo Entre os trechos que o compotildee (dez capiacutetulos miacutenimos todos aparentemente incompletos e que podem ser lidos aleatoriamente) natildeo haacute um plano definido uma sequumlecircncia cronoloacutegica previamente estabelecida A estrutura causal dos eventos que se sucedem como aneacuteis de uma corrente mdashtatildeo caracteriacutestico no desdobramento de uma histoacuteria dita linearmdash natildeo eacute intencionada a trama o plot em sentido estrito natildeo existe ou eacute reduzida a um miacutenimo necessaacuterio A reflexatildeo a quase tudo preenche e uma certa monotonia se faz presente

O que essencialmente a caracteriza entretanto natildeo eacute mais a iluminaccedilatildeo dos processos da consciecircncia atraveacutes de uma accedilatildeo um fazer e que parte de uma contemplaccedilatildeo ou meditaccedilatildeo exterior como ocorre nos escritos sobre Leonardo mas atraveacutes de uma recusa em agir em fazer e que parte de uma contemplaccedilatildeo ou meditaccedilatildeo interior portanto uma devoccedilatildeo para com a vida da consciecircncia em sua interioridade aquietada e para com as natildeo convencionais e desconcertantes maacuteximas de conduta daquele que a vive uma laquomitologia do espiacuteritoraquo diraacute ironicamente Valeacutery compreendo que se trata de uma empresa que natildeo se furta agrave estilizaccedilatildeo e ao exagero Enquanto obra simultaneamente herdeira e criacutetica de uma sequumlecircncia histoacuterica literaacuteria Monsieur Teste eacute um verdadeiro eacutepico ao avesso como que substitui a civilizaccedilatildeo pela pessoa e pela pessoa em seu mais deliberado distanciamento e introspecccedilatildeo apartada laquoDe que sofri maisraquo pergunta-se essa personagem laquoTalvez do haacutebito de desenvolver todo o meu pensamento mdash de ir ateacute o final de mimraquo E isso com tal intensidade que para ele jaacute natildeo basta mais alcanccedilar os abismos de sua proacutepria interioridade cumpre superaacute-los cumpre negaacute-los A existecircncia como soacutei ser concebida deixa de ser assim referida e valorada com os habituais criteacuterios morais e passa a ser concebida por Teste apenas como pura possibilidade

2121 O possiacutevel

[Teste] representa o mais alto poder de agir ligado a mais completa maestria de si mesmo ele pode tanto o que ele quer e seu poder natildeo eacute uma capacidade vaga mais uma virtualidade de poderes definidos determinados e mesuraacuteveis anaacutelogos agravequeles de uma maacutequina na qual o rendimento faz o objeto de caacutelculos exatos Dizemos de um tal homem que se ele se virou contra o mundo o poder regular de seu espiacuterito laquonada lhe resistiriaraquo Mas a sua superioridade natildeo eacute somente da sua maestria ela estaacute na indiferenccedila em relaccedilatildeo a essa superioridade no anonimato que ela guarda Senhor Teste deve permanecer desconhecido senatildeo ele se perde ele se rebaixa a ser Ceacutesar ou Deus (laquoA divindade eacute faacutecilraquo diz ele com um suntuoso desprezo) Do mesmo modo ele natildeo faz nada

Maurice Blanchot Valeacutery e Fausto

Valeacutery natildeo se propocircs por conseguinte a descrever um teatro mas um ator que se recusa a atuar a participar desta trageacutedia sentimental que eacute a vida da sociedade para se manter na comeacutedia intelectual que eacute a vida do espiacuterito A contemplaccedilatildeo ou a meditaccedilatildeo tem primazia Na esfera social isso se reflete naturalmente em um certo quietismo em uma certa recusa em agir em fazer uma recusa em se engajar ativamente no mundo Dessarte Teste se desliga progressivamente do desejo de concretizar de pocircr agrave prova seus proacuteprios talentos e capacidades os quais supostamente satildeo muitos e extraordinaacuterios do desejo em produzir obras de qualquer espeacutecie artiacutesticas filosoacuteficas ou cientiacuteficas em deixar um legado em ser reconhecido contemporacircnea ou postumamente Diz que chegou a escrever diletantemente algumas paacuteginas natildeo se sabe que prosas e poemas em algum tempo de sua vida Todavia agora declina-se mdashalgo que o proacuteprio Valeacutery parece ter tambeacutem buscado a sua proacutepria aniquilaccedilatildeo como literato como escritormdash a ser artista filoacutesofo ou cientista a se dedicar a esta ou aquela atividade ou especialidade a ser um fazedor como o eacute tatildeo intensamente Leonardo Ademais tambeacutem procura reduzir ao miacutenimo os conflitos com o outro As tumultuadas relaccedilotildees regidas por afetos e por desafetos frequumlentes na vida cotidiana e familiar parecem-lhes desgastantes em demasia desagradaacuteveis em demasia totalmente desnecessaacuterias Como um bom ceacutetico Teste compreende que grande parte dos problemas existenciais eacute apesar de intensamente operante oriunda de uma espeacutecie de esquecimento das convenccedilotildees que fundamentam a sociedade Convenccedilotildees que ao se cristalizarem em crenccedilas e desejos satildeo aceitas amiuacutede como se inerentes agrave proacutepria natureza natildeo como arbitrariedades natildeo como artificialidades inventadas com o passar das geraccedilotildees e passiacuteveis de serem modificadas ou destruiacutedas

Contudo isso natildeo faz dele um misantropo ou um eremita tampouco um preguiccediloso do contraacuterio teria filiaccedilatildeo com estas estranhas personagens da literatura russa os homens superficiais como um Eugene Onegin de Pushkin ou um Oblomov de Goncharov A sua recusa eacute mais espiritual do que corporal eacute uma adequaccedilatildeo uma adaptaccedilatildeo da conduta Pois ele natildeo deixa de frequumlentar as festas os salotildees e as oacuteperas as instituiccedilotildees e as convenccedilotildees mas tudo de um modo bastante distanciado controlado e neutro Faz-se presente sem participar Parece que tem certo apreccedilo em observar como um ciacutenico antropoacutelogo de seu proacuteprio meio social todas as encenaccedilotildees de futilidade da vida burguesa o que natildeo implica na falta de discernimento para com as atividades que visam alimentar uma vaidade sempre vatilde Na carta de um amigo seu lecirc-se como esse meio social a Europa intelectual e literaacuteria da deacutecada de 1920 eacute compreendido prenhe de interesses e egoiacutesmos no qual cada um se preocupa menos com o que faz e mais com o que iraacute ser dito daquilo que faz laquoParis enclausura e combina consome e consuma a maior parte dos infortunados com o brilho que o destino chamou agraves profissotildees delirantes Chamo assim agraves profissotildees que tecircm o principal instrumento na opiniatildeo que fazemos de noacutes proacuteprios e cuja mateacuteria-prima eacute a opiniatildeo dos outros sobre noacutes Votadas a uma candidatura eterna as pessoas que as exercem satildeo necessaacuteria e permanentemente afligidas por um determinado deliacuterio de grandezas que um determinado deliacuterio da perseguiccedilatildeo trespassa e atormenta sem treacuteguas Neste povo de uacutenicos impera a lei de fazer aquilo que nunca ningueacutem fez nem faraacute Eacute pelo menos assim a lei dos melhores quer dizer dos que estatildeo empenhados em querer com muita clareza qualquer coisa de absurdo Soacute vivem para conseguir e fazer duraacutevel a ilusatildeo de estar a soacutes mdash pois a superioridade natildeo passa de solidatildeo levada aos atuais limites de uma espeacutecie Cada qual alicerccedila a existecircncia sobre a inexistecircncia dos outros a quem temos no entanto de arrancar um consentimento para natildeo existiremraquo

Todavia natildeo eacute porque compreenda as contradiccedilotildees e as hipocrisias humanas que Teste se propotildee a ser o profeta de uma outra e redentora moralidade Ele natildeo estaacute em luta contra ningueacutem natildeo se desespera diante dos comportamentos alheios da condiccedilatildeo social da pobreza e da miseacuteria da injusticcedila natildeo imagina desnorteado diagnoacutesticos a serem relatados ou utopias a serem realizadas natildeo eacute um Hamlet imerso em dramas e remorsos nem um Quixote em ideais e sonhos Diferente desses outros seres imaginaacuterios que povoam os sonhos da Literatura Universal ele talvez saiba que as accedilotildees cometidas com drama ou com comeacutedia com desesperanccedila ou com esperanccedila com qualquer sentimento extremo pouco ou nada resultam Definitivamente natildeo eacute um revolucionaacuterio Quanto a isso as enigmaacuteticas palavras de Benjamim parecem certeiras laquoPois quem eacute Monsieur Teste se natildeo o sujeito que jaacute estaacute a ponto de transpor o umbral da histoacuteria para aleacutem do qual o indiviacuteduo harmonicamente constituiacutedo e auto-suficiente se prepara a fim de se transformar em teacutecnico e em especialista pronto para em seu devido posto e lugar inserir-se num grande planejamento Transpor essa ideacuteia de planejamento do campo da obra de arte para o da comunidade humana eacute algo que Valeacutery natildeo foi capaz de fazer O umbral natildeo foi transposto aiacute o intelecto continua sendo privado e este eacute o melancoacutelico segredo de Monsieur Teste Dois ou trecircs dececircnios antes Lautreacuteamont dissera ldquoA poesia deve ser feita por todos Natildeo por um soacuterdquo Essas palavras natildeo chegaram a Monsieur Testeraquo

Essas palavras tambeacutem natildeo chegaram e talvez nunca chegariam ao poeta para quem a poesia no sentido moderno cumpre ser realmente feita por um soacute natildeo porque lhe faltava ouvido para ouvi-las mas porque nunca se propocircs na sua desconfianccedila para com toda forma de proselitismo transpor o umbral da histoacuteria passar na perspectiva poliacutetica da contemplaccedilatildeo para a accedilatildeo para o fazer O ensimesmado Teste natildeo deixa de ser a mais bem acabada encarnaccedilatildeo dessa posiccedilatildeo A sua proacutepria existecircncia revela em contraste com aqueles que os cercam como vultos quase imperceptiacuteveis os perigos em se voltar apenas para o engajamento sem estar munido da negatividade da criacutetica Ele eacute aquele que natildeo faz de seu pensamento servil a um pragmatismo inconsequumlente mesmo que para isso tenha que escolher um modo de vida para muitos um tanto extremado e anacrocircnico pois difiacutecil eacute natildeo participar quando todos participam pois difiacutecil eacute dizer natildeo quando todos dizem sim A sua recusa eacute uma renuacutencia Natildeo deixa de ser tambeacutem uma forma de resistecircncia estranhamente paciacutefica agraves exigecircncias morais de uma sociedade que parece estar cada vez mais arraigada numa programaacutetica instrumentaccedilatildeo do indiviacuteduo Ao se negar a viver a vida que lhe eacute imposta ele vive ao se negar a ser ele eacute Porque agraves vezes eacute necessaacuterio abjurar o mundo para melhor compreendecirc-lo assim como a si mesmo Preferindo ser somente aquele que observa aquele que presencia e contempla laquoO Sr Teste eacute o testemunhoraquo O sacrifiacutecio da accedilatildeo do fazer em prol do espiacuterito Intrigante saber as supostas etimologias do seu estranho nome no francecircs antigo teste designa cabeccedila e no latim testis espectador testemunha Valeacutery natildeo deixa de descrever assim a estaacutetica aventura desse seu personagem conceitual pelo sentido da existecircncia sentido que natildeo deve ser encontrado na religiatildeo ou na filosofia tampouco na histoacuteria mas que deve ser sobretudo construiacutedo inventado nele e talvez em todos por um disciplinado difiacutecil e natildeo raro doloroso programa de autoconsciecircncia

Teste tambeacutem o pratica o cumpre objetivando uma evoluccedilatildeo E nisso eacute o duplo de seu criador que a ele ou a si mesmo assim se refere laquoA imensa diferenccedila entre os Stendhal os Amiel e eu ou o S Teste mdash eacute que eles se interessam por seus estados e por si mesmos em funccedilatildeo do conteuacutedo dos seus estados enquanto que eu me interesso ao contraacuterio por aquilo que nesses estados natildeo eacute ainda pessoal pois os conteuacutedos a pessoa me parecem subordinadas a duas condiccedilotildees 1o a consciecircncia impessoal 2o a mecacircnica e a estatiacutesticaraquo Pergunta-se laquomdash Mas natildeo eacute esta afinal a procura do Sr Teste retirar-se do eu mdash do eu vulgar tentando constantemente diminuir combater compensar a desigualdade a anisotropia da consciecircnciaraquo Teste luta portanto para manter seu pensamento o mais reto possiacutevel e para manter-se ausente a qualquer ldquoemoccedilatildeordquo ou ldquosentimentordquo sereno imperturbaacutevel ante as seduccedilotildees e os desvios do mundo Sua meta tambeacutem eacute fazer-se um eu puro Trata-se portanto mais uma vez de um processo de despersonalizaccedilatildeo de desumanizaccedilatildeo Algo que foi indiciado desde a epiacutegrafe do primeiro capiacutetulo La soireacutee avec Monsieur Teste como uma vida cartesiana laquo Vita Cartesii est simplicissimaraquo Naturalmente ao evocar o nome de Descartes Valeacutery natildeo almeja discutir sobre questotildees gnosioloacutegicas como a idealidade do conhecimento se o mundo exterior existe realmente ou se eacute uma representaccedilatildeo da consciecircncia mas sobre o singular egotismo mdashracionalista ou melhor analiacutetico e por vezes no limiar do solipsismomdash praticado por seu personagem conceitual laquoConfesso que fiz um iacutedolo do meu espiacuteritoraquo este assim confessa numa ceacutelebre passagem laquosendo tambeacutem verdade que natildeo encontrei outro Tratei-o com oferendas com injuacuterias Natildeo como coisa que me pertencesseraquo O programa de autoconsciecircncia de Teste revela assim um radicalismo muito mais intenso do que aquele praticado por seu proacuteprio criador pois ocorre paradoxalmente por um constante exerciacutecio intelectual de negaccedilatildeo de natildeo identificaccedilatildeo

O modo como Valeacutery expressa essa negatividade essa natildeo identificaccedilatildeo eacute bastante inventivo Assemelha-se ao modo como amiuacutede eacute descrito a vida e o pensamento dos semi-miacuteticos ldquofundadoresrdquo das grandes religiotildees atraveacutes de breves e simboacutelicas biografias de compilaccedilotildees de uma perspectiva sempre singular pessoal e incompleta Naturalmente um suposto evangelho de Teste nada exigiria de ningueacutem Seus discursos seus ditos sempre circunstanciais frases esparsas e miacutenimas que aqui e ali aparecem seus pensamentos a solta satildeo demasiado esoteacutericos e costumam assumir a aporia e a contradiccedilatildeo como imanentes agrave loacutegica que os rege outros tambeacutem deixam seus testemunhos reflexos de uma tentativa infausta de compreendecirc-lo Dir-se-ia que quase tudo o que dele se pode saber repousa nos dizeres e nos escritos alheios em lembranccedilas e interpretaccedilotildees alheias nos disciacutepulos que o representam e natildeo o seguem isto eacute em mediaccedilotildees Satildeo os outros que se referem a ele mais do que ele mesmo a si mesmo um desconhecido que discursa sobre um primeiro encontro na oacutepera e uma luacutecida noite de conversa a carta de sua esposa Eacutemilie Teste na qual esta confessa entre tantas revelaccedilotildees o estranho amor que a une ao esposo a carta de um amigo um diaacutelogo fragmentos

Todavia essas descriccedilotildees todas satildeo por demais evasivas hermeacuteticas revelam a impossibilidade de se manter durante muito tempo uma imagem fixa e segura sobre essa personagem conceitual Fica-se apenas com flutuaccedilotildees com dominacircncias e movimentos com padrotildees laquoNatildeo existe imagem certa do Sr Teste Os seus retratos satildeo todos diferentesraquo laquoNa verdade natildeo se pode dizer nada dele que natildeo seja inexato no mesmo instanteraquo Teste revela-se para usar a feliz e ambiacutegua expressatildeo titular de Robert Musil sobre Ulrich o protagonista de seu mais vasto romance Der Mann ohne Eigenschaften um homem sem qualidades sem atributos um homem indefinido indefinido justamente porque laquoO homem ldquointeligenterdquo repugna se sentir uma pessoa um senhor bem definidoraquo Natildeo por acaso Benjamim dizer que ele laquoeacute uma personificaccedilatildeo do intelecto que lembra muito o Deus de que trata a teologia negativa de Nicolau de Cusa Tudo o que noacutes podemos saber de Teste desemboca na negaccedilatildeoraquo Em uacuteltima instacircncia o inteacuterprete valeacuteryano se encontra encurralado pois natildeo pode dizer categoricamente o que ele realmente eacute mas tatildeo-somente o que ele natildeo eacute Defini-lo portanto eacute uma aproximaccedilatildeo sempre imperfeita ou incompleta Natildeo apenas porque a totalidade de uma pessoa sempre escapa agraves representaccedilotildees de seus contemporacircneos mesmo dos mais proacuteximos e iacutentimos mesmo de si mesmo mas principalmente porque Teste mdashnatildeo dando relevacircncia alguma ao que os outros julgam sobre simdash aceita a self-variance e se propotildee a negar a natildeo se identificar com nada nem com o mundo nem com o si mesmo nem com os fenocircmenos exteriores que estatildeo sempre a mudar nem com os fenocircmenos interiores que tambeacutem estatildeo sempre a mudar Tatildeo logo pense ser algo ele busca contemplar em que sentido o pensamento de ser algo ldquoopostordquo ou ldquoextremordquo tambeacutem eacute vaacutelido tatildeo logo pense ser algueacutem ele busca contemplar em que sentido o pensamento de ser um outro tambeacutem eacute vaacutelido laquoNatildeo sou toloraquo diz resumindo duramente esse seu procedimento capital laquoporque todas as vezes que me encontro tolo nego-me mdash mato-meraquo

Teste conjura portanto ldquo contrardquo si mesmo executando uma espeacutecie de reduccedilatildeo fenomenoloacutegica de si mesmo uma espeacutecie de epocheacute de si mesmo Supor-se-ia que desse modo almeje realizar um estado uacuteltimo e absoluto no qual seu espiacuterito seria incapaz de negar aquilo que entatildeo contemplaria realmente ser uma espeacutecie de evidente irrefutaacutevel e inefaacutevel verdade Mas isso se constitui apenas como um procedimento heuriacutestico Pois seu intuito natildeo eacute realizar um ego transcendental apartado do mundo com o qual Descartes e Husserl sonham seu intuito eacute simplesmente permanecer em devir em devir negativo e portanto controlado laquoSr T[este] que eu concebiraquo diz Valeacutery laquomdash inuacutemeras vezes mdash seraacute o tipo de poliacutetica do pensamento mdash em frente a elemdash e inclusive contra ele O fim dessa poliacutetica eacute a manutenccedilatildeo e a extensatildeo e a ideacuteia que noacutes temos de noacutes mesmos Preparar incessantemente o momento do acaso afastar toda a definiccedilatildeo prematura de si mesmo [] mdash adquirir o poder de desdenhar nada menos do que cada fase de si mesmo mdash servir-se das ideacuteias e natildeo servi-las mdash eis o quadroraquo Daiacute tambeacutem ter sido denominado por seu proacuteprio criador em raras ocasiotildees de Teste Apocaliacuteptico ( Apocalypte Teste) laquomdashBem (diz S Teste) O essencial eacute contra a vidaraquo Natildeo ter apego a nenhum estado de espiacuterito de consciecircncia natildeo ter apego a nenhuma representaccedilatildeo mental a nenhum pensamento eis portanto o simples procedimento adotado no seu itineraacuterio ao eu puro agrave despersonalizaccedilatildeo agrave desumanizaccedilatildeo

Consequumlentemente para Teste qualquer pensamento por mais sedutor poderoso e verdadeiro que possa aparentar natildeo deve ser tatildeo-somente um fim mas tambeacutem um meio um caminho no qual o pensante ininterruptamente caminha doravante quando eacute chegado o propiacutecio momento deve se ter coragem de abandonaacute-lo se assim necessaacuterio for sem remorso nas longiacutenquas margens da memoacuteria Ele sabe que o seu valor reside sobretudo no seu poder de alterar no que pode contribuir para a evoluccedilatildeo do espiacuterito natildeo se deve portanto querer cristalizaacute-lo paraacute-lo laquoAs ldquoIdeacuteiasrdquo [] satildeo meios de transformaccedilatildeoraquo afirma laquomdashe por consequumlecircncia partes ou momentos de alguma mudanccedilaraquo as ideacuteias satildeo pontes que levam a outras pontes Cumpre ao pensamento fazer daquele que pensa mais autaacuterquico Daiacute tambeacutem a sua justificada busca por tudo o que demanda esforccedilo por tudo o que eacute difiacutecil pois o difiacutecil exige da consciecircncia ser consciente o faacutecil em contrapartida eacute tudo aquilo que eacute executado inconscientemente automaticamente laquoSeja qual for a coisaraquo dizia laquosoacute aprecio a facilidade ou a dificuldade em conhececirc-la em consumaacute-la [] Que me importa aquilo que estou farto de saberraquo Para Teste os pensamentos satildeo etapas de uma transformaccedilatildeo mas tambeacutem catalizadores de maior ou menor eficaacutecia dessa transformaccedilatildeo

E eacute justamente por isso que a precisa personagem do Abade (ou do Padre Mosson) suposto confessor de sua esposa se escandaliza com a sua maneira de ser assustadoramente neutra amoral jamais submetida a um padratildeo de comportamento baseado e constrangido em direitos e deveres em recompensas e castigos laquoAbstrai-se pavorosamente do bemraquo diz o Abade (o Padre) laquomas felizmente abstrai-se do mal Haacute nele natildeo sei que assustadora pureza que distanciamento que incontaacuteveis forccedilas e luz Nunca vi uma falta de perturbaccedilotildees e duacutevidas como esta numa inteligecircncia trabalhada tatildeo a fundo Ele eacute terrivelmente calmo Natildeo se lhe pode atribuir nenhuma doenccedila de alma nenhumas sombras interiores mdash e nada aliaacutes que derive dos instintos do medo e da cobiccedila Mas nada se orienta para a Caridaderaquo Para Teste o movimento do mundo e de si mesmo um dos grandes problemas da filosofia grega claacutessica tampouco a justificaccedilatildeo moral e teleoloacutegica da existecircncia de todas as coisas criadas que natildeo raro resulta em doutrinas soterioloacutegicas um dos grandes problemas da filosofia cristatilde constituem realmente questotildees a serem postas e resolvidas Seu interesse seu foco eacute justamente outro eliminar qualquer busca por uma suposta essecircncia das coisas e por uma suposta moralidade universalmente vaacutelida e inscrita nas coisas pois muitas vezes tais intentos o modo mesmo de assim pensar oblitera a percepccedilatildeo da realidade na medida em que a idealiza ou a falseia em termos absolutos seja por uma constacircncia ontoloacutegica seja pelas problemaacuteticas categorias de bem e de mal A esse tipo de preocupaccedilatildeo de crenccedila a esse tipo de metafiacutesica dualista Teste eacute refrataacuterio prefere antes questionar-se natildeo sobre o que deve ou natildeo deve fazer natildeo sobre o que lhe eacute ou natildeo socialmente permitido fazer mas sobre o que pode ou natildeo pode fazer e isso mesmo que depois nada faccedila prefere questionar-se sobre a relaccedilatildeo entre as circunstacircncias nas quais se encontra e as escolhas que a partir delas eacute capaz de tomar sem que haja nenhuma intermediaccedilatildeo nenhuma crenccedila a limitar ou a restringir essa mesma relaccedilatildeo Atualizando uma de suas principais questotildees Valeacutery assim se pergunta imperiosamente laquoQue pode um homemraquo Eis a suprema questatildeo inuacutemeras vezes repetida e reformulada a uacutenica quiccedilaacute que pode ser verdadeiramente respondida Teste eacute assim inventado desde o iniacutecio como laquoo democircnio mesmo da possibilidade [] Ele soacute conhece dois valores duas categorias da consciecircncia reduzida aos seus atos o possiacutevel e o impossiacutevelraquo Qualquer outra forma de pensar que natildeo se estabeleccedila dentro desse criteacuterio por essas duas simples ldquocategoriasrdquo lhe parece um contra-senso esteacuteril As perguntas mdashldquoO que seirdquo e ldquoO que devo fazerrdquomdash satildeo como que substituiacutedas por uma mais pragmaacutetica mais dura mas tambeacutem mais humilde ldquoO que posso fazerrdquo Teste poderia muito bem dizer ldquoEu natildeo sou o que sou eu sou o meu futurordquo laquoQuem eacute vocecircraquo pergunta-se retoricamente laquo Eu sou o que eu posso eu me digoraquo

Entretanto Valeacutery natildeo pocircde desprezar o fato de que o ser humano eacute condicionado e finito que esquecimento e morte fazem parte de seu horizonte Assim apesar da intenccedilatildeo em descrever uma personagem conceitual no mais alto grau de interioridade de despersonalizaccedilatildeo de desumanizaccedilatildeo imperturbaacutevel ante a miseacuteria ele natildeo pode descrevecirc-la furtando-se totalmente agraves leis naturais agraves necessidades e limites do corpo veiacuteculo de prazer e dor Em algum momento cedo ou tarde o sofrimento deve em Teste fazer-se presente como fenocircmeno e tema a ser enfrentado Do contraacuterio comprometer-se-ia a concepccedilatildeo que dele faz natildeo um ser acabado mas um ser em processo laquo Oacute Meuraquo exclama num poema que revela justamente esse processo laquo mdash que ainda natildeo eacutes inteiramente Euraquo laquoEacute muito curiosoraquo ainda confessa laquode repente fico-me visiacutevel distingo o fundo das minhas camadas de carne sinto zonas de dor aneacuteis poacutelos coroas de dor Estaacute a ver estas figuras vivas a geometria do meu sofrimento [] Luto contra tudo mdash salvo o sofrimento do meu corpo para laacute de uma determinada grandeza Portanto por aiacute eacute que eu devia comeccedilar Porque sofrer eacute prestar uma atenccedilatildeo suprema a qualquer coisa e de certa forma sou um homem da atenccedilatildeoraquo Teste refere-se aiacute ao sofrimento fiacutesico ante o qual ele natildeo se furta em aceitar e analisar Quanto ao sofrimento espiritual este eacute ao fim consequumlecircncia dos proacuteprios pensamentos ou mais precisamente da maneira como em geral o espiacuterito a consciecircncia com eles se relacionam como uma coisa a ser possuiacuteda e natildeo plasmada Daiacute todo o seu esforccedilo para negaacute-los para natildeo se identificar com eles e consequumlentemente para natildeo se entregar agrave esperanccedila Porque a esperanccedila faz parte da predisposiccedilatildeo geral da personalidade da humanidade em crer e julgar subjetivamente os acontecimentos o tempo e em dar uma importacircncia demasiada agrave proacutepria identidade uma predisposiccedilatildeo da qual o medo o sofrimento tambeacutem participariam Isso natildeo implica todavia que Teste tatildeo desumanizado expresse-se desumanamente Eacute novamente a sua proacutepria esposa que assim paradoxalmente sintetiza laquoNa linguagem que usa tem natildeo sei que forccedila capaz de fazer ver e ouvir o que haacute de mais oculto E no entanto que frases humanas as suas e soacute humanas interioriacutessimas formas de feacute e mais nada reconstituiacutedas por artifiacutecio e articuladas maravilhosamente por um incomparaacutevel espiacuterito em audaacutecia e profundidade Explorou a frio dir-se-aacute a alma fervente Mas recompondo assim o meu coraccedilatildeo em chamas e a sua feacute falta-lhe pavorosamente a essecircncia que eacute esperanccedila Natildeo haacute um gratildeo de esperanccedila em toda a substacircncia do Sr Teste e eacute por isso que eu sinto um certo mal-estar com o exerciacutecio de seu poderraquo

Como natildeo necessita de explicaccedilotildees religiosas filosoacuteficas ou metafiacutesicas que o guiem e que o consolem ele que almejava contemplar o mundo e a si mesmo sem deformaccedilotildees Teste foi encarado pelo Abade (ou Padre) numa expressatildeo extremamente sinteacutetica e paradoxal como um laquo miacutestico sem Deusraquo (laquo mystique sans Dieuraquo) Um miacutestico sem Deus porque pratica seu programa de autoconsciecircncia sem esperanccedila alguma de realizaacute-lo plenamente porque para ele a palavra Deus natildeo designa um ser transcendente mas o si mesmo laquoDeus natildeo estaacute longeraquo afirma laquoEacute o que haacute de mais pertoraquo O laquoSr Testeraquo confirma Valeacutery em seus Cahiers laquoeacute um miacutestico e um fiacutesico da auto-consciecircncia mdash pura e aplicadaraquo

3 Saber e poder

31 Sob o signo da ciecircncia

Os escritos que versam sobre Leonardo e Teste natildeo se desenvolveram de modo totalmente arbitraacuterios ou isolados devem-se ao proacuteprio programa de autoconsciecircncia desencadeada em grande medida pelo periacuteodo de crise e pela Noite de Gecircnova e consequumlentemente ao crescente e genuiacuteno interesse de um jovem Valeacutery pela Matemaacutetica e pela Ciecircncia Moderna Interesse jaacute iniciado com o primeiro contato com Eureka de Poe e com as aulas e discussotildees que nos anos de estudo na Faculteacute de Droit de Montpellier tinha com seu grande amigo Pierre Feacuteline e que uma vez desenvolvido jamais o abandonou Data dessa eacutepoca uacuteltima deacutecada do seacuteculo XIX as suas primeiras leituras e estudos dos trabalhos de cientistas como Michael Faraday James Clerk Maxwell Lord Kelvin Bernard Riemann Henri Poincareacute Albert Einstein e natildeo menos significativo do excecircntrico matemaacutetico polonecircs Hoeumlneacute Wroński Este com seu messianismo com sua busca por um saber supremo parece ter influenciado em muito o pensamento de Valeacutery (que o considerava um louco mas um louco genial) notadamente com a La philosophie de lrsquoinfini e Messianisme ou reforme absolu du savoire humain Aquele que pode ser considerado o primeiro de todos os Cahiers um ldquoproto-cahierrdquo iniciado talvez natildeo por acaso no mesmo periacuteodo da composiccedilatildeo dos escritos sobre Leonardo e Teste o pequeniacutessimo Carnet de Londres de 1890 quando de uma viajem a Inglaterra revela natildeo apenas o registro da leitura dessa obra mas tambeacutem a crescente fascinaccedilatildeo pela Matemaacutetica e pela Ciecircncia Moderna e em breves lampejos a intrincada gecircnese desses dois personagens capitais

A compreensatildeo do pensamento de Leonardo como natildeo fundamentado no verbalismo e como precursor do espiacuterito empirista contemporacircneo os ditos espirituosos e polecircmicos de Teste sobre a importacircncia da ignoracircncia da duacutevida e do pensamento negativo na formulaccedilatildeo e no avanccedilo do saber todas essas colocaccedilotildees somadas agraves inuacutemeras e incompletas reflexotildees sobre epistemologia e teoria do conhecimento em seus Cahiers contribuiacuteram doravante para a ldquoexageradardquo imagem de Valeacutery como um grande ldquoentendedorrdquo da Matemaacutetica e da Ciecircncia Moderna da complexidade e do esoterismo destas como algueacutem capaz de discutir de explicar com desenvoltura a Termodinacircmica e a Teoria da Relatividade ou mesmo problemas de uma posterior Neurociecircncia

Todavia haacute que se dizer aqui que o interesse e os estudos do poeta seratildeo e continuaratildeo sendo mdashapesar de todos os seus inuacutemeros insights sobre o funcionamento do fazer cientiacuteficomdash extremamente diletantes para natildeo dizer amadores Supotildee-se que seus conhecimentos sobre a Matemaacutetica e a Ciecircncia Moderna aacutereas cada vez mais desdobraacuteveis e especiacuteficas nunca foram realmente tatildeo aprofundados como parte da criacutetica de divulgaccedilatildeo por vezes induz a crer E disso o poeta tinha plena consciecircncia que o saber ou melhor a diversidade dos saberes das ciecircncias especiacuteficas na Modernidade jaacute natildeo eacute passiacutevel de ser dominada por uma uacutenica pessoa e por conseguinte a formulaccedilatildeo de uma siacutentese relativa a esses saberes torna-se muito mais complicada Haacute que se dizer aqui mais uma vez que Valeacutery jamais pretendeu ser um especialista fazer ciecircncia ou filosofia da ciecircncia O que pretendeu foi antes algo mais proacuteprio a um literato que escreve numa sociedade jaacute transformada e traumatizada pelo advento do espiacuterito positivo deixar-se contaminar pelo rigor e pela impessoalidade patente da Matemaacutetica e da Ciecircncia Moderna e transpor essas ldquoqualidadesrdquo essas ldquovirtudesrdquo para a sua praacutetica de escrituraccedilatildeo para o seu proacuteprio programa de autoconsciecircncia jaacute que num movimento que poderia muito bem ser denominado de cartesiano a literatura de sua eacutepoca adquiriu para ele para as suas exigecircncias um caraacuteter de vagueza e de gratuidade que em parte o impedia de praticaacute-la da maneira como ateacute entatildeo era praticada Daiacute todo o vasto imaginaacuterio cientiacutefico em sua obra seja em prosa ou poesia e esta escrituraccedilatildeo hiacutebrida um tanto inclassificaacutevel estranha mescla de ldquocaacutelculordquo e ldquoversordquo A ciecircncia lhe interessa sim mas talvez muito mais como uma especulaccedilatildeo Uma especulaccedilatildeo que diferentemente das especulaccedilotildees filosoacuteficas ou metafiacutesicas resulta em algo que funciona mas que tambeacutem eacute capaz de lhe fornecer sobretudo imagens Imagens poeacuteticas sobre o mundo ou sobre partes do mundo mateacuteria-prima para a reflexatildeo Porque toda forma de pensamento para Valeacutery acaba se tornando em uacuteltima instacircncia uma deacutelice E eacute enquanto deliacutecia mdashnatildeo enquanto verdademdash que pode ser um auxiliar no programa de autoconsciecircncia na ascese do espiacuterito Daiacute o irocircnico adaacutegio bem ao gosto do poeta segundo o qual a ciecircncia eacute uma ficccedilatildeo mas uma ficccedilatildeo que funciona laquoQuanto a mimraquo escreve ele laquoadmito facilmente ignorar o que ignoro [] Se a hipoacutetese eacute sedutora ou se a teoria eacute bela deleito-me sem pensar na verdaderaquo

Eacute nessa perspectiva relativamente irocircnica que a concepccedilatildeo valeacuteryana de saber se constroacutei Para ele todo saber mdashtodo saber que eacute ciecircnciamdash corresponde necessariamente a uma controlada e rigorosa praxis a um laquoconjunto de receitas e procedimentos que sempre datildeo certo a uma foacutermula de atosraquo E o termo receita mdashrecorrente no pensamento do poetamdash eacute como uma representaccedilatildeo de atos possiacuteveis de sequumlecircncias de atos possiacuteveis que se posta em praacutetica se seguida leva a um determinado resultado previsto logo natildeo haacute na compreensatildeo do poeta nenhuma noccedilatildeo como do conceito de saber como ldquoconhecimento do objetordquo mas simplesmente como ldquoconhecimento de relaccedilotildees de funccedilotildees possiacuteveisrdquo conhecer algo eacute saber o que se pode fazer com esse algo e isso implica conhecer as relaccedilotildees possiacuteveis ao redor imediato desse algo Dessarte o poeta inuacutemeras vezes escreveu e reescreveu atualizou e insistiu que a uacutenica garantia do saber real eacute o poder poder de prever e de fazer mdashe que todo o resto natildeo passa de literaturamdash Dir-se-ia um tanto exageradamente que para Valeacutery saber eacute saber agir saber eacute saber fazer E isso implica consequumlentemente na anaacutelise dos fenocircmenos do mundo implica na fusatildeo ou na conciliaccedilatildeo entre racionalismo e empirismo essa dialeacutetica esse jogo entre ir a experiecircncia e ir ao intelecto que a analisa assim propondo modelos e leis a partir da interpretaccedilatildeo da regularidade dos fenocircmenos naturais Note-se que em sentido geral a concepccedilatildeo valeacuteryana de saber natildeo eacute de modo algum nova Foi consagrada e difundida a partir do seacuteculo XVII particularmente a partir da programaacutetica filosofia de Francis Bacon segundo o qual o objetivo do saber transformado em teacutecnica era libertar a humanidade cada vez mais das necessidades materiais a partir da filosofia de Descartes que rompe com a tradiccedilatildeo Escolaacutestica e a Magia da Renascenccedila laicizando o pensamento Haacute que se dizer assim que juntamente com o espiacuterito cartesiano o espiacuterito baconiano estaacute mesmo que sub-reptiacuteciamente bastante presente no pensamento de Valeacutery acerca da ciecircncia o poeta rariacutessimas vezes cita o autor da inacabada Instauratio Magna ao contraacuterio do autor do Discours de la Meacutethode inuacutemeras vezes referido

Soma-se a isso um certo positivismo Um positivismo que entretanto diferentemente da versatildeo de Auguste Comte laiciza-se adquire uma maior flexibilidade uma maior plasticidade excluindo o impulso pelas categorizaccedilotildees demasiado fixas em prol da plasticidade do discurso fragmentado Pois para Valeacutery se o saber eacute verdadeiramente saber isto eacute cientiacutefico entatildeo deve sempre se referir de algum modo a uma realidade mesmo que essa realidade natildeo seja percebida pelos sentidos mesmo que natildeo esteja na dimensatildeo ou na escala dos sentidos mesmo que seja uma seacuterie de acumuladas e fabulosas inferecircncias Mas tambeacutem deve ser ldquoem mimrdquo e ldquonum outrordquo uma representaccedilatildeo que possa ser transmitida compreendida aceita e compartilhada e sobretudo de um mesmo modo E eacute isso que confere na perspectiva social o seu caraacuteter de ldquoobjetividaderdquo Logo eacute com relaccedilatildeo a uma comunidade uma comunidade cientiacutefica que o saber tambeacutem se instaura e natildeo somente aos seus pressupostos internos Nesse sentido jaacute se disse que para Valeacutery aquilo que eacute verbal logoteoria natildeo eacute ou natildeo pode ser cientiacutefico porque o que eacute verbal logoteoacuterico implicaria na possibilidade de muitas e distintas interpretaccedilotildees implicaria em muitas ambiguumlidades isto eacute na imprecisatildeo na falta de um acordo com relaccedilatildeo agraves definiccedilotildees e agraves significaccedilotildees do que estaacute em jogo na medida em que uma proposiccedilatildeo verbal estaacute muito mais sujeita a ser apropriada a ser interpretada por diversas e contraditoacuterias maneiras do que uma equaccedilatildeo matemaacutetica ou fiacutesica agrave qual parece natildeo ter senatildeo funcionalidade Isso talvez seja um belo exagero jaacute que no pensamento do poeta eacute possiacutevel encontrar natildeo apenas a ideacuteia da possibilidade de um saber cientifico mas tambeacutem da possibilidade de um saber humaniacutestico

Por outro lado todo esse modo de compreender o saber pode induzir facilmente a interpretar que Valeacutery postula ou busca postular uma linha ou um limite um criteacuterio preciso de demarcaccedilatildeo de cesura epistemoloacutegica entre o que eacute ciecircncia de um lado e o que natildeo eacute ciecircncia de outro e que o poder (e nada mais) eacute justamente esse criteacuterio que o saber soacute eacute saber porque se desdobra em poder real ou potencial ou ainda que todo poder corresponderia a um saber etc Em certo sentido essa eacute uma interpretaccedilatildeo possiacutevel e bastante compreensiacutevel jaacute que muitas passagens dos escritos valeacuteryanos tomadas mais isoladamente realmente a legitimam Ademais o poeta tambeacutem se refere constantemente agrave ideacuteia de que na Ciecircncia Moderna deve haver mesmo que natildeo de todo sistematizada algum tipo de verificaccedilatildeo ou de controle pensamento este relativamente compartilhado com o Positivismo loacutegico do Wiener Kreis

Todavia a intenccedilatildeo em postular ou buscar postular um criteacuterio preciso de demarcaccedilatildeo de cesura epistemoloacutegica parece entrar em ldquocontradiccedilatildeordquo com a proacutepria concepccedilatildeo sustentada por Valeacutery segundo a qual arte e ciecircncia (e mesmo todas as atividades espirituais) satildeo variaccedilotildees exteriores por vezes apenas nominais de um mesmo interior Essa ldquocontradiccedilatildeordquo em certa dimensatildeo interpretativa permanece em seus escritos como uma oscilaccedilatildeo de maior ou menor intensidade agraves vezes ele a afirma agraves vezes a matiza agraves vezes simplesmente a ignora Pode ser compreendida como consequumlecircncia dos ambiacuteguos impulsos ou momentos mais positivistas de Valeacutery de seu apreccedilo ldquocartesianordquo ou ldquoracionalistardquo pela Matemaacutetica e pela Ciecircncia Moderna por formas cristalinas de representar os fenocircmenos do mundo Entretanto o que talvez esteja em jogo nessa contradiccedilatildeo nessa oscilaccedilatildeo pode ser assim posto e resolvido se por um lado eacute possiacutevel distinguir entre a ciecircncia e a natildeo ciecircncia por outro natildeo eacute possiacutevel precisar a fronteira de demarcaccedilatildeo entre a ciecircncia e a natildeo ciecircncia se existe se eacute necessaacuterio existir para este ou aquele sistema de pensamento essa fronteira sofre de imprecisatildeo Ela natildeo pode ser nitidamente distinguiacutevel E isso se deve tanto pela dinacircmica das proacuteprias ciecircncias especiacuteficas que estatildeo sempre se reinventando de acordo com as novas descobertas e teorias assim como pela variada idiossincrasia daqueles que epistemologicamente as dimensionam e precisam

Cumpre dizer tambeacutem e principalmente que contemplando os escritos do poeta na sua totalidade e verificando o quanto de subentendidos de ironia e retoacuterica estes encerram de experimentalismos compreende-se que muitas vezes o que ele pretende eacute simplesmente constatar mdashveementemente constatar e quase nada maismdash uma espeacutecie de impulso de predisposiccedilatildeo espiritual dele e de grande parte da mentalidade operante na Modernidade em comumente compreender e aceitar o saber como poder E isso devido principalmente aos inuacutemeros efeitos praacuteticos suas consequumlecircncias e seus impactos da Ciecircncia Moderna quando esta se revela uma espeacutecie de ldquoadivinhaccedilatildeordquo baseada em experiecircncias e inferecircncias rigorosas quanto esta se identifica se transmuta e se desdobra em teacutecnica e consequumlentemente acaba operando de um modo quiccedilaacute irrefutaacutevel na vida cotidiana E nesse sentido o alvo de Valeacutery mdashrelativamente anaacutelogo ao proacuteprio espiacuterito baconiano que em parte natildeo deixa de aspirar a uma espeacutecie de sociologia do sabermdash natildeo eacute tanto a ciecircncia em sentido interno com relaccedilatildeo aos seus proacuteprios pressupostos mas muito mais a ciecircncia em sentido externo com relaccedilatildeo agrave sociedade na qual eacute feita e da qual transforma e eacute transformada dir-se-ia assim que satildeo os resultados dela que ldquoinduzemrdquo que ldquoconvidamrdquo a pensaacute-la mais como poder e menos como conhecimento Pois numa sociedade que se estabelece em grande medida num ldquopragmatismordquo num ldquoimediatismordquo numa intensa racionalidade e burocratizaccedilatildeo dos meios o que estaacute em jogo eacute sobretudo a funcionalidade ou melhor a eficaacutecia das construccedilotildees intelectuais humanas e muito pouco a possibilidade de serem representaccedilotildees ldquocorretasrdquo da realidade ou dos fenocircmenos da realidade a possibilidade de serem ldquoverdadesrdquo

Valeacutery simplesmente atenta portanto para aquilo que a ciecircncia sempre foi e ainda eacute para o ser humano que dela se utiliza que dela se apropria um tipo de saber que fornece um controle ou domiacutenio mesmo que relativamente limitado sobre o mundo sensiacutevel material Mundo que natildeo pode refutar e que portanto anseia por dominaacute-lo O que se torna patente justamente em seus ensaios e fragmentos sobre Descartes nos quais avalia propositadamente menos a filosofia deste e mais o impacto do Cartesianismo dessa acircnsia desmesurada natildeo raro ldquofalsificadorardquo em estender a matemaacutetica como modelo uacutenico para todos os campos do saber Num desses ensaios lecirc-se estas certeiras palavras laquoEste mundo estaacute penetrado das aplicaccedilotildees da medida Nossa vida se encontra cada vez mais ordenada segundo determinaccedilotildees numeacutericas e tudo aquilo que escapa agrave representaccedilatildeo atraveacutes dos nuacutemeros todo conhecimento natildeo mesuraacutevel eacute castigado com uma sentenccedila de depreciaccedilatildeo Nega-se cada vez mais o nome de ldquoCiecircnciardquo a todo saber intraduziacutevel em cifras Eis a singular observaccedilatildeo sobre a que se remataraacute esta concepccedilatildeo o caraacuteter eminente desta modificaccedilatildeo da vida que consiste em organizaacute-la segundo o nuacutemero e o tamanho tatildeo pura quanto seja possiacutevel de tal modo que o verdadeiro dos modernos relacionado exatamente ao seu poder de accedilatildeo sobre a natureza parece opor-se mais e mais agravequilo que nossa imaginaccedilatildeo e nossos sentimentos quisessem que fossem verdadeiroraquo

As esparsas consideraccedilotildees que Valeacutery tece sobre o saber referem-se portanto natildeo apenas ao impacto teacutecnico mas tambeacutem ao impacto espiritual sobre o modo de pensar e de se comportar da sociedade em geral mdashmesmo que isso ocorra (e ocorre) de um modo relativamente fantasioso e leve a uma problemaacutetica mitificaccedilatildeo do proacuteprio saber a um cientificismo cujo caraacuteter natildeo deixe de ser por vezes ilusoacuteriomdash O desenvolvimento da Matemaacutetica e da Ciecircncia Moderna e as inuacutemeras imagens ou idealizaccedilotildees os inuacutemeros sonhos que delas se fizeram projetar acabaram contribuindo em muito para o processo de laicizaccedilatildeo e racionalizaccedilatildeo da Modernidade acabaram minando ou transformando seja no todo ou em determinadas partes vaacuterias concepccedilotildees de mundo vaacuterias crenccedilas e descrenccedilas vaacuterias religiotildees e metafiacutesicas Estas foram obrigadas a natildeo raro se adaptar ou abandonar muitas de suas concepccedilotildees outrora por vezes consideradas certas e perenes Desenvolve-se adquire dominacircncia todo um modo de refletir sobre a realidade menos ldquoespeculativordquo menos ldquofantasiosordquo porque em certo sentido mais ldquolimitadordquo mais ldquohumilhadordquo pelo que legitima as dimensotildees da experiecircncia e da razatildeo ambas rigorosamente conduzidas focadas mais cioso no que se propotildee a pesquisar e a teorizar Um modo de refletir que natildeo busque o ldquoporquecircrdquo mas somente o ldquocomordquo das coisas que natildeo alimente pretensotildees de fornecer representaccedilatildeo de sentidos ou de essecircncias O que consequumlentemente favoreceu em grande medida o desenvolvimento de uma poderosa consciecircncia criacutetica e analiacutetica aplicaacutevel a todas as aacutereas do saber humano e da qual Valeacutery se posiciona neste caso como um singular herdeiro particularizando-a no seu programa de autoconsciecircncia no seu exerciacutecio cotidiano que busca iluminar os seus proacuteprios processos e representaccedilatildeo Poder-se-ia dizer seguindo o caraacuteter do seu pensamento avesso agrave rigidez das crenccedilas cristalizadas e mesmo a toda a crenccedila que conforme o ser humano amplia seus poderes de atuaccedilatildeo no mundo e sobre o mundo conforme inventa a sua ciecircncia e as suas teacutecnicas as suas crenccedilas do que seja o proacuteprio mundo a isso tendem a se adaptar a se transformar haacute portanto uma espeacutecie de dialeacutetica entre o que se eacute capaz de agir de fazer e o que se crecirc Daiacute a primazia que o poeta daacute a accedilatildeo a feitura A accedilatildeo a feitura condicionantes crivos do pensamento

Assim em particular sobre a filosofia mdashisto eacute sobre a metafiacutesicamdash duas consequumlecircncias se apresentam e se imbricam

Primeira conforme as ciecircncias especiacuteficas se desenvolviam a princiacutepio as naturais como a fiacutesica e a biologia para depois as humanas como a sociologia e psicologia haacute como que uma amarga constataccedilatildeo de que a proacutepria filosofia da qual essas mesmas ciecircncias especiacuteficas em grande medida se depreenderam vai gradualmente como que perdendo seus objetos de reflexatildeo vai gradualmente se esvaziando Isso porque quando constroem abordagens particulares sobre seu objeto particular uma epistemologia suficientemente riacutegida e positiva as ciecircncias especiacuteficas adquirem relativa autonomia e dinacircmica E nesse mesmo processo proacuteprio da racionalizaccedilatildeo na Modernidade a filosofia esvaziada acaba muitas vezes se tornando um modo particular de abordar e analisar seus objetos sejam estes cientiacuteficos ou artiacutesticos torna-se tambeacutem natildeo raro uma disciplina particular e especiacutefica entre tantas outras disciplinas particulares e especiacuteficas O que naturalmente pode trazer natildeo apenas malefiacutecios mas benefiacutecios agrave proacutepria filosofia forccedilada a buscar novas formas de abordagem e novos objetos a concentrar-se e inventar-se no que lhe eacute mais proacutepria

Segunda consequumlecircncia a filosofia deixa de ser novamente identificada em parte ou no todo com a ciecircncia ou melhor com o saber como era no periacuteodo em que seu eacutetimo foi fixado identificaccedilatildeo essa ainda relativamente patente no conturbado seacuteculo XVII quando todo o processo de particularizaccedilatildeo do proacuteprio saber teve iniacutecio de modo sistemaacutetico e crescente Isso porque na perspectiva valeacuteryana a filosofia natildeo fornece natildeo pode fornecer justamente nenhuma ou quase nenhuma teacutecnica de verificaccedilatildeo de controle nenhuma teacutecnica de previsibilidade e de accedilatildeo de feitura sobre a natureza exterior materialmente moldaacutevel a filosofia natildeo fornece nenhum poder mdashao menos natildeo de modo estritamente positivomdash Com ela nada ou muito pouco se pode fazer com ela as coisas permanecem como estatildeo serve talvez mdasho que jaacute eacute muitomdash agraves elucidaccedilotildees dos labirintos mentais do proacuteprio filoacutesofo que a filosofa Pergunta-se O que fazer com as Ideacuteias de Platatildeo ou as Categorias de Aristoacuteteles o que fazer com o Uno de Plotino ou a Trindade de Santo Agostinho o que fazer com o Deus de Espinosa ou as Mocircnadas de Leibniz o que fazer com o Espiacuterito de Hegel Como objetivar tais ldquoinvenccedilotildeesrdquo Como compartilhaacute-las verdadeiramente Situada paradoxalmente aqueacutem ou aleacutem do universo que as experiecircncias legitimariam aqueacutem ou aleacutem das possibilidades da experiecircncia portanto fora do alcance de ser objetivamente comprovada ou refutada a filosofia enquanto metafiacutesica foi doravante natildeo raro compreendida como uma construccedilatildeo ilusoacuteria quimera incapaz de revelar qualquer elemento a ser objetivamente transmitido Em grande medida Valeacutery compartilha desse modo de compreendecirc-la E toda a sua criacutetica agrave filosofia ou melhor a sua desconfianccedila a sua refraccedilatildeo agrave filosofia estaacute dessarte sob o imperioso impacto sob o signo da Matemaacutetica e da Ciecircncia Moderna Hoje como ele mesmo diz laquotoda a metafiacutesica e mesmo uma teoria do conhecimento quaisquer que sejam elas encontram-se brutalmente separadas e distintas daquilo que todos mais ou menos conscientemente consideram o uacutenico saber real mdash exigiacutevel em outroraquo [Grifo do autor]

Diante de todo esse estado de coisas diante do impacto da Ciecircncia Moderna e da Matemaacutetica tatildeo duramente diagnosticado pelo poeta e por outros chegou-se inclusive a anunciar a morte da filosofia Numa passagem dos seus Cahiers Valeacutery tendo em mente o espiacuterito funcionalista de seu Sistema jamais cumprido vai por exemplo ainda mais longe talvez demasiado longe numa espeacutecie de profecia criacutetica extrema acerca do destino da filosofia laquoEm suma todas as noccedilotildees que natildeo permitem combinar exatamente mdash e que natildeo se referem a observaccedilotildees permanentes satildeo maacutes noccedilotildees Haveraacute um tempo (isto eacute um homem) mdash no qual as palavras de nossa filosofia pareceratildeo antiguidades e soacute seratildeo conhecidas por eruditos Noacutes natildeo falaremos mais de pensamento Hoje a palavra Beleza natildeo tem ou quase natildeo tem mais uso filosoacutefico Os proacuteprios nomes de filosofia de psicologia seratildeo como o da alquimiaraquo

Naturalmente qualquer diagnoacutestico desse tipo mdashseja pelo vieacutes marxista a proclamar a necessidade do pensamento vir a ser praacutexis criacutetica e transformadora da sociedade ou pelo vieacutes da anaacutelise linguumliacutestica a desconfiar da veracidade dos problemas metafiacutesicos etcmdash ateacute hoje revelou-se historicamente falso Falso natildeo na medida em que tais posiccedilotildees natildeo possam ser adotadas porque elas satildeo mas na medida em que na perspectiva social sob o termo ldquofilosofiardquo se agrupam ontem e hoje praacuteticas plurais natildeo raro divergentes contraditoacuterias entre si um sem-nuacutemero de propostas que por vezes se assemelham numa mesmice excessiva e por vezes se distanciam umas das outras a ponto de natildeo serem reconhecidas como praacuteticas designadas pelo mesmo termo Ademais e principalmente os seres humanos mdashcomo que supostamente insatisfeitos com o estado presente do saber e da ordem do mundo condicionados pelo nascer e pelo morrer pela dor e pelo sofrimento por uma existecircncia que natildeo revela seu sentido nem ao menos se possui ou natildeo sentidomdash continuam simplesmente a duvidar e a desejar crer a se questionar a se colocar as mesmas velhas questotildees e outras novas a se colocar as mesmas velhas respostas e outras novas num processo de atualizaccedilotildees e descobertas que perpetuam os seus itineraacuterios espirituais O termo ldquofilosofiardquo pode ateacute deixar de ser usado isso pouco ou nada importa Mas a praacutetica que ela ainda hoje representa continua sob uma miriacuteade de outros nomes ou misturada a outras tantas praacuteticas de uma forma ou de outra A filosofia permanece porque permanece o humano

Apesar das suas irocircnicas reflexotildees quanto ao futuro da proacutepria filosofia o poeta tambeacutem tem consciecircncia dessa permanecircncia No diaacutelogo Lrsquoideacutee fixe ou deux hommes agrave la mer ele escreve atraveacutes da voz ou personagem do idiossincraacutetico meacutedico sobre a diferenccedila entre o homem e o animal O animal como que preso agrave dimensatildeo das necessidades imediatas natildeo pode fazer absolutamente nada que natildeo for uacutetil mas o homem ao ser capaz de se distanciar da dimensatildeo das necessidades imediatas inventou religiotildees artes filosofias e ciecircncias concepccedilotildees de mundo e outros mundos Inventou portanto o inuacutetil Mas esse inuacutetil eacute todo um vasto e complexo tesouro de riquezas simboacutelicas laquo sob pressatildeo exterior ou orgacircnica imediata a vaca vecirc as estrelas e natildeo extrai uma astronomia como a caldeacuteia nem uma moral como a de Kant nem uma metafiacutesica como a de todo mundo [] Se um objeto novo a espanta ela o deixa e nunca sentiraacute a tentaccedilatildeo de voltar a ele com precauccedilatildeo e concupiscecircncia intelectual para identificaacute-lo e classificaacute-lo em seu sistema de mundoraquo

311 Criacutetica agrave histoacuteria

Todavia natildeo apenas a filosofia sofre com o desenvolvimento da Matemaacutetica e da Ciecircncia Moderna com o desenvolvimento da concepccedilatildeo do saber como poder mas tambeacutem as proacuteprias Ciecircncias Humanas as Ciecircncias do Espiacuterito e em particular a histoacuteria Dando sempre mais importacircncia ao indiviacuteduo do que ao coletivo professando na dimensatildeo poliacutetica uma espeacutecie de paradoxal anarquismo aristocraacutetico Valeacutery continua sempre um racionalista e como tal relativamente desconfiado de um pensamento histoacuterico ou que se apegue a tradiccedilotildees demasiada riacutegidas Possui por conseguinte particular predileccedilatildeo em criticar as ilusotildees na qual a histoacuteria mdashenquanto disciplina atividademdash opera e resulta sobretudo em Discours de lrsquohistoire e outras passagens de seus Essais quasi politiques Trata-se entretanto de uma criacutetica cujo repertoacuterio eacute uma praacutetica herdeira de historiadores-pensadores como Hyppolyte Taine e Alexis de Tocqueville e principalmente Jules Michelet (a cuja obra o poeta eacute bastante avesso) Uma praacutetica herdeira dos seacuteculos XVIII e XIX ainda muito atrelada a perspectivas idealistas romacircnticas e positivistas natildeo raro operando atraveacutes da crenccedila de uma filosofia da histoacuteria em bases metafiacutesicas da crenccedila que haacute um destino natildeo apenas individual mas coletivo a reger tudo o que pode ser designado por grandiosas e geneacutericas palavras como raccedila sociedade civilizaccedilatildeo humanidade Logo natildeo se pode compreender o pouco que Valeacutery mdashnesse aspecto bastante nominalistamdash escreve sobre a histoacuteria pela perspectiva do que foi produzido posteriormente a ele as propostas teoacutericas da Eacutecole des Annales de um Marc Bloch e um Lucien Febvre de um Georges Duby e um Jacques Le Goff escapam em grande medida agrave criacutetica valeacuteryana jaacute que em parte coadunam-se com esta

O pressuposto do qual o poeta parte eacute relativamente simples e tem como criteacuterio naturalmente a sua proacutepria concepccedilatildeo de saber como poder Nunca ensinando nada ou muito pouco a histoacuteria eacute para o poeta laquoa ciecircncia das coisas que natildeo se repetemraquo dos acontecimentos que ao acontecer acontecem uma uacutenica vez singularmente Portanto dos acontecimentos que num sentido positivo natildeo satildeo passiacuteveis de serem representados de serem sintetizados de um modo preciso e seguro sob o signo de uma mesma lei geral induzida ou abstraiacuteda pelo espiacuterito que analisa os documentos ou os rastros que supostamente os representam Consequumlentemente soacute com muito cuidado podem ser usados como modelos para a anaacutelise da sua ocorrecircncia no presente ou da previsatildeo da sua ocorrecircncia no futuro como frequumlentemente ocorre nas ciecircncias naturais Eacute certo que haacute acontecimentos que satildeo denominados por exemplo pela esfera semacircntica de uma mesma palavra como a palavra guerra mas nenhuma guerra eacute igual agrave outra guerra e natildeo o eacute a tal ponto que natildeo se pode construir uma lei geral de todas as guerras como se todas devessem seguir um plano preacute-determinado e fora do tempo um mesmo padratildeo de desenvolvimento de surgimento e desaparecimento Dir-se-ia assim que os acontecimentos histoacutericos natildeo satildeo passiacuteveis de serem compreendidos como tendo a mesma intensidade de semelhanccedila que os acontecimentos naturais os primeiros nos quais o elemento humano eacute central satildeo como que plaacutesticos em demasia os uacuteltimos nos quais o elemento humano parece ausentar-se satildeo como que riacutegidos o suficiente Algumas palavras que Valeacutery escreve sobre o desenvolvimento da Ciecircncia Moderna e sobre a poliacutetica exemplificam essa concepccedilatildeo laquoEnquanto que nas ciecircncias da natureza as pesquisas multiplicadas depois de trecircs seacuteculos nos refizeram uma maneira de ver e substituiu a visatildeo e a classificaccedilatildeo ingecircnua de seus objetos por sistemas de noccedilatildeo especialmente elaborados noacutes permaneciacuteamos na ordem histoacuterica-poliacutetica no estado de consideraccedilatildeo passiva e de observaccedilatildeo desordenada O mesmo indiviacuteduo que pode pensar [a] fiacutesica ou [a] biologia com instrumentos de pensamento comparaacuteveis a instrumentos de precisatildeo pensa a poliacutetica [e a histoacuteria] atraveacutes de meios impuros de noccedilotildees variaacuteveis de metaacuteforas ilusoacuteriasraquo

Desse modo para um poeta que almeja uma independecircncia com relaccedilatildeo agraves crenccedilas passadas uma autarquia intelectual que compreende o saber como poder como poder utilizaacutevel torna-se compreensiacutevel toda a sua desconfianccedila com relaccedilatildeo ao que a histoacuteria possa realmente vir a lhe oferecer laquoQue me importa [] o que acontece apenas uma vez A histoacuteria eacute para mimraquo confessa laquoum excitante e natildeo um alimento O que ela informa natildeo se muda em tipos de atos em funccedilotildees e operaccedilotildees de nosso espiacuterito Quando o espiacuterito estaacute bem desperto tem necessidade apenas do presente e de si mesmoraquo Todavia Valeacutery tambeacutem reconhece que a histoacuteria pode sim ser utilizaacutevel Natildeo agrave coletividade mas somente ao indiviacuteduo mediante a inserccedilatildeo no passado particular desse indiviacuteduo laquoO melhor meacutetodo para se ter uma ideacuteia do valor e do uso da histoacuteria mdash a melhor maneira de aprender a lecirc-la e a servir-se dela mdashraquo escreve laquoconsiste em tomar como modelo de acontecimento acontecimentos realizados sua experiecircncia proacutepria e em acolher no presente o modelo de nossa curiosidade pelo passado O que vimos com nossos proacuteprios olhos aquilo por que passamos em pessoa o que fomos o que fizemos mdash eis o que deve nos fornecer o questionaacuterio deduzido de nossa proacutepria vida que proporemos em seguida agrave histoacuteria para que preencha e ao qual ela deveraacute se esforccedilar em responder quando a interrogamos sobre eacutepocas em que natildeo vivemos Como era possiacutevel viver naquela eacutepoca Esta eacute no fundo toda a questatildeo Todas as abstraccedilotildees e noccedilotildees encontradas nos livros satildeo inuacuteteis se natildeo lhes fornecerem o meio de reencontraacute-las a partir do indiviacuteduoraquo Ou ainda de modo mais direto a laquoHistoacuteria deveria ser a tentativa de responder atraveacutes de documentos a uma taacutebua de questotildees formadas a partir da anaacutelise do presenteraquo

A partir dessa perspectiva avessa a todo historicismo a toda proposta de compreender o passado posicionando-se no passado a subsequumlente criacutetica de Valeacutery agrave histoacuteria pode ser compreendida ou sintetizada em dois momentos que se imbricam e se complementam

O primeiro momento mais abrangente refere-se ao modo como em geral a histoacuteria eacute expressa pelos historiadores e natildeo deixa de ser algo distante da criacutetica valeacuteryana agrave literatura de caraacuteter narrativo e realista como o romance Enquanto disciplina enquanto atividade a histoacuteria natildeo se refere agrave ldquomemoacuteria coletivardquo isto eacute aos signos compartilhados por uma coletividade a histoacuteria refere-se sobretudo a uma intenccedilatildeo almeja a construccedilatildeo a representaccedilatildeo de um determinado passado de um determinado periacuteodo do passado Representaccedilatildeo geralmente composta de palavras de discursos verbais composta portanto a partir de uma escritura que se transforma num texto cuja forma dominante eacute a narrativa o reacutecit A histoacuteria nessa perspectiva apresenta-se como uma ordem cronoloacutegica natildeo raro linear de uma seacuterie de representaccedilotildees dos acontecimentos de uma seacuterie de causas e efeitos entre as representaccedilotildees dos acontecimentos Assim procedendo aqueles que a escrevem os historiadores intentariam sobretudo a realizaccedilatildeo de um maior realismo dar um caraacuteter de verdade ou melhor de verossimilhanccedila aos seus proacuteprios escritos de plausibilidade E eacute por isso que Valeacutery afirma que laquoA histoacuteria eacute feita de 2 ingredientes essenciais do papel escrito e da faculdade de crer no que haacute sobre esse papelraquo Todavia tudo isso eacute artificial demasiado artificial ateacute mesmo falso Porque a narrativa o reacutecit porque as causas e os efeitos todos esses procedimentos ou subterfuacutegios natildeo passam de postulaccedilotildees de ligaccedilotildees e concatenaccedilotildees de interpretaccedilotildees feitas mdash posteriormentemdash pelos historiadores mediante a anaacutelise de documentos mais ou menos liacutecitos Consequumlentemente haveria pouca diferenccedila entre a literatura propriamente dita e a histoacuteria a qual o poeta natildeo tardaria em qualificar como laquoa forma mais ingecircnua de literaturaraquo Pois laquoningueacutem jamais poderia definir a diferenccedila que haacute no estado de espiacuterito de um leitor de Balzac e de um leitor de Michelet A meu ver tudo estaacute aiacute Eacute o mesmo ilusionismo Resultado [do fato] de que nada distingue quanto ao efeito produzido um documento verdadeiro de um documento falso que acreditamos ser verdadeiro Etcraquo

Por conseguinte o ideaacuterio positivista em representar em resgatar o passado integralmente tal qual foi como se fosse possiacutevel ressuscitar os mortos acaba se tornando uma esperanccedilosa ilusatildeo um contra-senso Pois na praacutetica da histoacuteria tudo eacute representaccedilatildeo e uma representaccedilatildeo natildeo do acontecimento que jaacute natildeo eacute mais mas de uma representaccedilatildeo que dele ou de um aspecto dele permaneceu logo uma reduccedilatildeo e uma interpretaccedilatildeo Uma laquohistoacuteria puraraquo uma histoacuteria factual seria portanto laquocompletamente insignificante pois os fatos por si natildeo tecircm significado Algumas vezes dizem Isso eacute um fato Inclinem-se diante do fato Eacute a mesma coisa dizer Creiam Creiam pois aqui o homem natildeo interveio e satildeo as proacuteprias coisas que falam Eacute um fato Sim Mas o que fazer com um fato Nada se parece tanto com um fato quanto os oraacuteculos de Piacutetia ou entatildeo quanto os sonhos reais que os Joseacutes e os Danieacuteis na Biacuteblia explicam aos monarcas espantados Na histoacuteria [] o que eacute positivo fica ambiacuteguo O que eacute real presta-se a uma infinidade de interpretaccedilotildeesraquo Baseada portanto no poder da imaginaccedilatildeo e da linguagem em representar algo que natildeo existe mais portanto algo que simplesmente natildeo existe a histoacuteria para Valeacutery natildeo estaacute longe de operar dentro de uma espeacutecie de paradoxo pois laquosupotildee um observador impossiacutevel cujos resultados de observaccedilatildeo satildeo inverificaacuteveisraquo

O segundo momento da criacutetica de Valeacutery agrave histoacuteria que se insere no primeiro refere-se agrave questatildeo do valor E o ato de laquo valorarraquo de ldquo avaliarrdquo qualquer coisa que seja eacute segundo Valeacutery laquoo grande negoacutecio do sistema que pensaraquo relativamente ausente na praacutetica da Matemaacutetica e das Ciecircncias Naturais mas extremamente presente na praacutetica da histoacuteria Esta pressupotildee uma seacuterie de escolhas tanto do recorte temaacutetico e temporal a ser estudado quanto dos acontecimentos ou melhor das representaccedilotildees de acontecimentos a serem expostos hierarquizados e interpretados a serem estruturados em uma narrativa um reacutecit E todo esse processo eacute ele mesmo uma vasta tentativa de fixar valores como se com isso o passado viesse a ser elucidado em expressar quais acontecimentos satildeo mais ou menos importantes mais ou menos relevantes quais acontecimentos devem ser expostos agrave luz e quais devem ser condenados agrave sombra O que implica necessariamente um sujeito um sujeito humano que assim valore Para o poeta natildeo eacute possiacutevel portanto separar laquoo observador do objeto observado e a histoacuteria do historiadorraquo Daiacute tambeacutem as inuacutemeras abordagens de um mesmo tema e temporalidade e uma historiografia sempre crescente e contraditoacuteria Levados por este ou aquele sistema de crenccedilas ideologias preferecircncias ou interesses uns iratildeo dar mais peso a um dado acontecimento e outros menos uns iratildeo valorar positivamente um dado acontecimento e outros negativamente O acuacutemulo de um sem-nuacutemero de versotildees de explicaccedilotildees de um mesmo tema e temporalidade torna-se inevitaacutevel O que incitaria o leitor de um livro de histoacuteria a fazer estas questotildees quem historia de onde se historia e para quem se historia O que o levaria a intuir que aquele que escreve sobre o passado tambeacutem escreve por vias indiretas sobre o presente e sobre si mesmo Toda essa falta de impessoalidade de neutralidade na praacutetica da histoacuteria eacute o que em muito caracteriza a sua natildeo cientificidade dela e de muitas das Ciecircncias Humanas Mas tambeacutem natildeo deixa de expressar mesmo que implicitamente o desejo tatildeo humano em dar um sentido aos acontecimentos e agrave vida ou ainda se o pressuposto eacute a crenccedila em um destino que a tudo concatena e justifica em encontrar nos acontecimentos e na vida um sentido

Eis como se expressa Valeacutery laquoTodo mundo concorda que Luiacutes XIV morreu em 1715 Mas em 1715 passou-se uma infinidade de outras coisas observaacuteveis que tornaria necessaacuteria uma infinidade de palavras de livros e mesmo de bibliotecas para conservaacute-las por escrito Eacute preciso portanto escolher ou seja convencionar natildeo apenas a existecircncia como tambeacutem a importacircncia do fato e essa convenccedilatildeo eacute vital A convenccedilatildeo de existecircncia significa que os homens soacute podem crer no que lhes parece menos afetado pelo humano e que consideram esse acordo como muito provaacutevel para eliminar suas personalidades seus instintos seus interesses sua visatildeo singular fontes de erro e forccedila de falsificaccedilatildeo Mas jaacute que natildeo podemos guardar tudo e que precisamos retirar do infinito alguns fatos pelo julgamento de sua utilidade posterior relativa essa decisatildeo sobre a importacircncia introduz de novo e inevitavelmente na obra histoacuterica exatamente aquilo que acabamos de tentar eliminar [] a importacircncia eacute completamente subjetiva A importacircncia estaacute para o nosso discernimento assim como o valor dos testemunhos Racionalmente pode-se pensar que a descoberta das propriedades do quinina eacute mais importante que um tal tratado concluiacutedo aproximadamente na mesma eacutepoca e na realidade em 1932 as consequumlecircncias desse instrumento diplomaacutetico podem estar totalmente perdidas e como que difusas no caos dos acontecimentos enquanto a febre eacute sempre reconheciacutevel as regiotildees pantanosas do globo satildeo cada vez mais visitadas ou exploradas e o quinina foi talvez indispensaacutevel para a prospecccedilatildeo e para a ocupaccedilatildeo da Terra toda que eacute a meu ver o fato dominante do nosso seacuteculo Vejam que eu tambeacutem estou fazendo minhas convenccedilotildees de importacircnciaraquo

Toda a criacutetica de Valeacutery agrave histoacuteria pode portanto ser sintetizada pela constataccedilatildeo de que a histoacuteria enquanto praacutetica eacute sobretudo uma forma especiacutefica de literatura e de linguagem e de que os historiadores escondem frequumlentemente as convenccedilotildees das quais se servem ao escrevecirc-la Contudo o poeta sabe que laquotodas essas convenccedilotildees satildeo inevitaacuteveisraquo do contraacuterio talvez a proacutepria histoacuteria natildeo seria possiacutevel enquanto praacutetica laquoMinha uacutenica criacutetica eacute a negligecircncia que natildeo as torna expliacutecitas conscientes sensiacuteveis ao espiacuterito Lamento que natildeo se tenha feito com a histoacuteria o que as ciecircncias exatas fizeram consigo mesmas quando revisaram seus fundamentos pesquisaram com maior cuidado seus axiomas enumeraram seus postulados Talvez seja porque a histoacuteria eacute principalmente Musa e porque preferimos que a seja [] Eu reverencio as Musas Isso acontece tambeacutem porque o Passado eacute algo totalmente mental Ele eacute apenas imagens e crenccedilasraquo A histoacuteria portanto natildeo iraacute apontar necessariamente os caminhos do Futuro Ela nada legitima Tudo pode ser incerto Todavia o ser humano natildeo tem outro material com o qual conjeturar e projetar a natildeo ser essas laquoimagensraquo e laquocrenccedilasraquo como sumariza Valeacutery sempre muito cuidadoso no exerciacutecio de profetizar laquo entramos no futuro de marcha agrave reacuteraquo

4 CRiacutetica Agrave filosofia

Soacutecrates Quando algueacutem diz ldquoferrordquo ou ldquopratardquo natildeo eacute verdade que todos entendemos o mesmo

Fedro Certamente

Soacutecrates E quando algueacutem diz ldquojustordquo e ldquobomrdquo Natildeo vai cada um por um lado e discordamos uns com os outros e tambeacutem com noacutes mesmos

Fedro Certamente

Soacutecrates Entatildeo em algumas questotildees estamos de acordo e em outras natildeo

Fedro Certamente

Soacutecrates E em quais dessas duas questotildees somos mais suscetiacuteveis de ser enganados e em quais a retoacuterica tem mais forccedila

Fedro Evidentemente naquelas que haacute vaguidade

Soacutecrates Entatildeo aquele que se propotildee adquirir a arte da retoacuterica deve primeiramente adquirir clareza e fazer uma divisatildeo metoacutedica dessas duas classes de questotildees aquela na qual as pessoas tecircm necessariamente ideacuteias vagas e aquela na qual natildeo

Fedro Oacute Soacutecrates aquele que isso soubesse racionaria a partir de um excelente princiacutepio

Soacutecrates Depois penso ante um caso particular natildeo ignoraraacute mas perceberaacute com clareza a qual dessas duas classes pertence agrave questatildeo de que se vai falar

Platatildeo Fedro

41 O primado da linguagem

Em contraste com o pensamento antigo dir-se-ia que o pensamento moderno estaacute sob o signo da linguagem A linguagem se tornou natildeo raro um importante baluarte ao redor do qual gravitam antigas reflexotildees e problemas agora atraveacutes de novas abordagens A essa mudanccedila de interesse de foco alguns pensadores ousaram mdashreferindo-se primeiramente agrave filosofia analiacuteticamdash historiaacute-la como uma contundente reviravolta ou giro linguumliacutestico ( linguistic turn) A concepccedilatildeo de que eacute impossiacutevel filosofar sem passar quase que necessariamente por uma reflexatildeo sobre a linguagem tornou-se em alguns pensadores hoje canocircnicos de uma recorrecircncia proliacutefera e polecircmica Precursores capitais como Mauthner e Wittgenstein propunham-se cada um a seu modo a fazer da filosofia das suas filosofias uma criacutetica da linguagem ( Sprachkritik) ateacute mesmo aqueles com fortes inclinaccedilotildees metafiacutesicas devedores da tradiccedilatildeo teoloacutegica e miacutestica como Heidegger natildeo escaparam a essa atitude e dela fizeram um dos seus principais motes Posteriormente o pensamento sobre o sentido e a escrituraccedilatildeo natildeo regidos por uma loacutegica exclusivamente fundamentada na razatildeo tradicional de um Deleuze e um Derrida a ela tambeacutem se coaduna Essa geneacuterica tendecircncia natildeo se restringe entretanto a uma uacutenica disciplina Tornou-se um espiacuterito do tempo ( Zeitgeist) sintoma de toda uma eacutepoca Tambeacutem as ciecircncias humanas particulares que em maior ou menor grau lutam por um ldquotardiordquo reconhecimento epistemoloacutegico em comparaccedilatildeo com as naturais compreendem a linguagem como de importacircncia capital natildeo raro posicionando-a como o proacuteprio objeto de estudo ou como um importante vieacutes pelo qual os demais fenocircmenos sociais podem ser estudados A consagrada frase do hermeneuta Gadamer mdashlaquo O ser que pode ser compreendido eacute a linguagemraquomdash pode ser assim considerada tanto como uma proposta quanto uma constataccedilatildeo

Tambeacutem a arte da linguagem verbal a literatura na Modernidade trilha caminhos relativamente anaacutelogos Seus produtores os literatos parecem amiuacutede ter encontrado na proacutepria liacutengua (ou liacutenguas) da qual se utilizam muito da mateacuteria-prima para as obras agraves quais se propotildeem a executar transformando-as em sedutores desafios para a leitura e para a exegeacutetica Do hermetismo poeacutetico de Mallarmeacute aos malabarismos verbais de Joyce passando pelos devaneios dos surrealistas as sempre e naturalmente excessivas praacuteticas da poesia e da ficccedilatildeo buscam romper insistente e propositadamente com os procedimentos tradicionais do discurso e da narrativa buscam inusitadas formas de expressatildeo A liacutengua essa gigantesca e maleaacutevel forma de arte cujo anocircnimo autor eacute a soma das geraccedilotildees pode ser compreendida por vezes como uma espeacutecie de personagem central ldquoonipresenterdquo no universo imaginaacuterio da ficccedilatildeo senhora e escrava daqueles que a manipulam Em grande medida passou-se portanto do registro ontoloacutegico para o registro linguumliacutestico O que natildeo implica que o primeiro tenha sido abolido pelo uacuteltimo tampouco desqualifica a plural totalidade do pensamento antigo no que concerne a uma suposta falta de preocupaccedilatildeo de consciecircncia da linguagem Conjetura-se simplesmente que outrora natildeo havia necessidade em manifestar explicitamente essa consciecircncia Generalizando o pensamento antigo parece natildeo ter muitas duacutevidas sobre o que discursa e sobre o que narra em contrapartida o pensamento moderno mdashque pode ser compreendido como um ldquoromantismo desencantadordquomdash natildeo procede do mesmo modo e deseja explicitar natildeo apenas o objeto com o qual se ocupa mas tambeacutem a forma como o analisa e o compreende a tal ponto de chegar a duvidar no transcurso de sua anaacutelise se o proacuteprio objeto existe A Antiguumlidade quando reflete sobre a linguagem mdashrepare-se no Craacutetilo de Platatildeo e para ir mais aleacutem na questatildeo dos universais da Escolaacutesticamdash dificilmente reprime suas esperanccedilas ontoloacutegicas dificilmente deixa de aderir ou formular uma metafiacutesica de mesclar-se imiscuir-se confundir-se com abrangentes concepccedilotildees de mundo com a frequumlente ideacuteia de que a existecircncia eacute separada em duas dimensotildees uma espiritual e outra material sejam quais forem as variaccedilotildees que se decircem a essa divisatildeo Esse princiacutepio de fundamentaccedilatildeo religiosa a restrita Modernidade laica e fragmentada em saberes particulares frequumlentemente o abandona na busca de uma maior autonomia de suas disciplinas e meacutetodos e isso se reflete por conseguinte nos modos como a proacutepria linguagem eacute nela compreendida

A obra de Valeacutery no campo da literatura talvez seja um dos exemplos mais caracteriacutesticos desse ldquonovordquo registro Sobre a linguagem suas reflexotildees se dispersam em seus escritos Todavia o poeta as desenvolveu de modo relativamente autocircnomo paralelo agraves denominadas modernas filosofias da linguagem e epistemologias Diferentemente do positivismo loacutegico (desenvolvido a partir do Wiener Kreis) e da filosofia analiacutetica (desenvolvida a partir do Cambridge- Oxford philosophy) diferentemente do estruturalismo ao qual por vezes eacute hoje facilmente associado principalmente numa ldquosupostardquo radical concepccedilatildeo de mundo anti-metafiacutesica anti-histoacuterica e anti-pessoal a uma busca pela enunciaccedilatildeo objetiva que a todos em maior menor grau relativamente caracterizariam o poeta apesar do paralelismo possiacutevel entre o seu pensamento com o dessas correntes natildeo adquire o que aqui se cunhou de consciecircncia da linguagem mdashisto eacute dos seus mecanismos e da relaccedilatildeo que esta tem com o pensamento do modo como ambos se confundem e se condicionam mutuamentemdash tatildeo somente a partir de reflexotildees consideradas eminentemente epistemoloacutegicas derivadas em grande medida do fasciacutenio pelo rigor e precisatildeo da Matemaacutetica e das Ciecircncias Naturais modernas das obras de um Ernst Mach um Henri Poincareacute ou de obras como a La Science du langage de Max Muumlller Tambeacutem a poesia contribui e com enorme peso nessa aquisiccedilatildeo notadamente o Simbolismo francecircs as poesias e as poeacuteticas simultaneamente ldquoracionaisrdquo e ldquoespirituaisrdquo ldquoanaliacuteticasrdquo e ldquosinteacuteticasrdquo de um Poe um Baudelaire um Mallarmeacute Dir-se-ia portanto que uma e outra dessas atividades do espiacuterito que ldquorigorrdquo e ldquoretoacutericardquo ldquociecircnciardquo e ldquopoesiardquo intensamente influenciam ou direcionam o pensamento de Valeacutery a sua tensatildeo o seu desenvolvimento em direccedilatildeo a essa consciecircncia da linguagem mdasha qual natildeo difere da consciecircncia de si mesmomdash

Contudo ele eacute muito cuidadoso (por vezes refrataacuterio) com relaccedilatildeo agraves influecircncias que recebe Assim quanto a esse comeccedilar pela linguagem o seu percurso eacute sobretudo como sempre quis e esforccedilou-se para ser pessoal e privado o mais autocircnomo ou o mais livre possiacutevel das crenccedilas alheias tal qual um Robinson do intelecto cumpre percorrer Deriva tambeacutem de uma necessidade iacutentima e natildeo apenas de uma resposta a influecircncias confessas ou inconfessas a pressotildees ou exigecircncias alheias a um deixar-se levar pela tendecircncia ou modismos do tempo presente Logo essa consciecircncia da linguagem em grande medida nele nasce e se desenvolve (assim pode ser rastreada) de modo geral de seu proacuteprio programa de autoconsciecircncia e de modo especiacutefico de sua atividade como poeta e como escritor que natildeo deixa de ser a partir do periacuteodo de crise e da Noite de Gecircnova uma derivaccedilatildeo ou continuidade daquele agora com claras intenccedilotildees de praticar um ascetismo intelectual Eacute a escrituraccedilatildeo que revela as questotildees da escrituraccedilatildeo a questatildeo da linguagem escrever exige mdashexige-lhe ele faz exigirmdash um cuidado diferenciado com as palavras e as frases com os inuacutemeros jogos que com essas palavras e frases se pode jogar Eacute portanto muito mais uma accedilatildeo um fazer o fazer poesia (o poema) e o refletir sobre o fazer poesia (a poeacutetica) muito mais o exerciacutecio de uma constante e incompleta escrituraccedilatildeo sobre assuntos os mais diversos e sobre si mesmo exemplificada principalmente na fragmentaccedilatildeo de seus Cahiers que o conduz a pensar a analisar a destrinccedilar toda e qualquer ideacuteia sua ou alheia sempre pelo modo como esta eacute enunciada mediada representada pelo vieacutes pelo prisma ldquoonipresenterdquo da linguagem Eacute o que Valeacutery denominou principalmente num dos seus mais ceacutelebres e fundantes ensaios de poeacutetica Poeacutesie et penseacutee abstraite conferecircncia proferida na Universidade de Oxford em 1939 com a feliz expressatildeo laquo limpeza da situaccedilatildeo verbalraquo (laquo nettoyage de la situation verbaleraquo) expressatildeo que representa um pressuposto de qualquer meacutetodo de abordagem laquoQuanto a mimraquo escreve laquotenho a estranha e perigosa mania de querer em qualquer mateacuteria comeccedilar pelo comeccedilo (ou seja por meu comeccedilo individual) o que vem a dar em recomeccedilar em refazer uma estrada completa como se tantos outros jaacute natildeo houvessem traccedilado e percorrido Essa estrada eacute a que nos eacute oferecida ou imposta pela linguagem Em qualquer questatildeo e antes de qualquer exame sobre o conteuacutedo olho para a linguagem tenho o costume de agir como os meacutedicos que purificam primeiro suas matildeos e preparam seu campo operatoacuterio Eacute o que chamo de limpeza da situaccedilatildeo verbalraquo

Propor compreender cada palavra cada proposiccedilatildeo ou frase como condicionada a um contexto para soacute depois observar se haacute ou natildeo um real problema a ser enfrentado uma tal abordagem tem grandes consequumlecircncias ou relaccedilotildees diretas para como o poeta frequumlentemente encara e critica a filosofia mdashcriacutetica desenvolvida principalmente nos seus Cahiers nos seus ensaios sobre poeacutetica e nesta siacutentese de seu pensamento filosoacutefico que eacute o uacuteltimo ensaio da trilogia sobre Leonardo Leacuteonard et les philosophesmdash assim como todas as demais atividades do espiacuterito e a si mesmo Essa criacutetica natildeo deixa de ser resultado de um impulso ceacutetico eem muito de e contouficienteta ou aquela terminologia pode ser compreendida como uma variaccedilatildeo ou derivaccedilatildeo deste constante interesse e atenccedilatildeo que Valeacutery nutre pelo aspecto formal de todas as atividades humanas e de toda a realidade

411 Insuficiecircncia convenccedilatildeo transitoriedade

Apesar de ser um obsessivo formulador de definiccedilotildees Valeacutery natildeo se prende muito a elas termina sempre por reformulaacute-las e assim sucessivamente sem esperanccedila alguma que esse trabalho tenha virtualmente algum fim Dessarte ele tambeacutem natildeo costuma fazer uma distinccedilatildeo muito precisa mdashhoje um tanto mais frequumlente pelo desenvolvimento mesmo da linguumliacutestica moderna e da semioacuteticamdash entre linguagem e liacutengua (palavras que muitas vezes satildeo sinocircnimas) Em seus escritos por vezes esses dois conceitos satildeo identificados e compreendidos como idioma como linguagem verbal por vezes somente o uacuteltimo eacute assim compreendido e o primeiro como um conceito mais abrangente como uma aptidatildeo humana geral para desenvolver sistemas de representaccedilotildees ou comunicaccedilotildees os mais variados e distintos sejam quais forem as formas empiacutericas adotadas verbais ou natildeo Diante dessa falta de discriminaccedilatildeo haacute que se dizer que definiccedilotildees tambeacutem satildeo questotildees semacircnticas natildeo raro prenhes de arbitrariedade e de ideologia que muitas vezes dilatando-se ou contraindo o significado de um conceito restringindo-o ou ampliando-o pode-se dizer que ldquoA eacute Brdquo num determinado caso e que ldquoA eacute natildeo Brdquo em outro sem que com isso o representado ou o conhecimento que dele se tenha venha a mudar significativamente Por isso diante da pergunta mdashlaquoSe eacute possiacutevel pensar sem linguagemraquomdash Valeacutery pondera laquoMas a linguagem eacute tal liacutengua mdash aprendida Tudo depende das definiccedilotildees escolhidas p[ara] pensar e p[ara] linguagemraquo O pensamento pode ser definido como linguagem verbal ou como linguagem verbal e natildeo verbal assim como a linguagem pode ser definida como linguagem verbal ou como linguagem verbal e natildeo verbal E isso de acordo com as abordagens adotadas que podem manifestar diferenccedilas reais de concepccedilatildeo ou meras diferenccedilas semacircnticas Logo a resposta agrave pergunta mdashldquoeacute possiacutevel pensar sem linguagemrdquomdash estaacute condicionada aos pressupostos dos quais a reflexatildeo parte

De qualquer modo poder-se-ia dizer que para Valeacutery o pensamento jaacute eacute linguagem uma forma de linguagem dada pela natureza Porque amiuacutede compreende todas as coisas natildeo apenas como coisas mas tambeacutem para o espiacuterito para a consciecircncia que as percebe como signos ou possibilidade de signos e por conseguinte todas as atividades humanas por mais diferenciadas que possam parecer ser de uma linguagem verbal convencional como formas variadas de linguagem Daiacute a proacutepria linguagem nesse sentido tambeacutem ser compreendida como laquoobjeto de eterna meditaccedilatildeoraquo laquopois eacute o universo do pensamentoraquo E o pensamento como uma abstraccedilatildeo um resumo da realidade percebida laquoTodas as coisas se substituemraquo escreve laquomdash natildeo seria isso a definiccedilatildeo das coisasraquo Para corroborar ainda mais essa perspectiva gnosioloacutegica haacute uma outra frase laminar do poeta que demonstra a forte compreensatildeo do caraacuteter eminentemente representacional do proacuteprio pensamento e que remete agraves inuacutemeras definiccedilotildees de signo formuladas por Peirce laquoTodo pensamento exige que se tome uma coisa por uma outra um segundo por um anoraquo A sua concepccedilatildeo de mundo poderia ser portanto muito bem denominada hoje de semioacutetica

Valeacutery atenta natildeo apenas para os limites ou possibilidades do pensamento mas tambeacutem para os limites ou possibilidades da representaccedilatildeo exterior do proacuteprio pensamento de um modo dir-se-ia cientiacutefico Daiacute expressar certo ldquodesconfortordquo certa ldquoinsatisfaccedilatildeordquo para com a suposta insuficiecircncia a suposta carecircncia da linguagem mdashno caso da liacutengua jaacute que ele principalmente escreve utiliza-se de palavrasmdash para tal Ele natildeo se furta em dizer mdashe por vezes eacute nisso bastante enfaacutetico e radicalmdash o quanto ela eacute imperfeita impura para aquele que como ele almeja um expressar ou comunicar mais rigoroso e preciso possiacutevel laquoeu vejo que me falta um sistema de representaccedilatildeoraquo insistentemente confessa laquoA linguagem ordinaacuteria natildeo me permite especular sobre os elementos pois ela natildeo institui nenhuma relaccedilatildeo (de construccedilatildeo) entre esses elementos Cada palavra eacute construiacuteda agrave parte e as relaccedilotildees entre palavras natildeo permitem transformaccedilotildees de uma em outrasraquo laquoA linguagem comum natildeo coincide com aquela de nossos meios reais de pensamento Ela natildeo a divisa nem a compotildee exatamenteraquo Reflexotildees como essas obscuras e opacas satildeo patentes nos Cahiers

E eacute por isso que Valeacutery tambeacutem costuma evocar mdashmas de um modo bastante vago e inconstantemdash o antigo intento em ldquodescobrirrdquo ou em inventar uma linguagem perfeita uma linguagem pura Diz ele que tinha a princiacutepio a ideacuteia de laquoconceber uma linguagem artificial fundada sobre o real do pensamento linguagem pura sistema de signos mdash explicitando todos os modos de representaccedilatildeo mdash que satildeo para a linguagem natural aquilo que a geom[etria] cartes[iana] eacute para a g[eometria] dos Gregos excluindo a crenccedila nos significados dos termos em si estipulando a composiccedilatildeo dos termos complexos definindo e enumerando todos os modos de composiccedilatildeoraquo E isso partindo sempre de si mesmo das suas proacuteprias questotildees da concepccedilatildeo de que a laquo Linguagem verdadeira eacute esta na qual noacutes reconhecemos todos os termos como nossos isto eacute como se n[oacute]s os tiveacutessemos criados por nossas necessidades e por eles Eles satildeo da nossa vozraquo

Feliz ou infelizmente o poeta natildeo fornece muitos dados do que realmente seria essa linguagem perfeita essa linguagem pura Tudo permanece extremamente nebuloso Todavia determinadas revelaccedilotildees dos Cahiers o haacutebito em criar notaccedilotildees pessoais em traduzir simbolicamente uma estrutura linguumliacutestica numa estrutura matemaacutetica e ou loacutegica essas idiossincrasias permitem especular a intenccedilatildeo geneacuterica de axiomatizar ou formalizar o discurso verbal de construir uma espeacutecie de linguagem formal como as que foram esboccediladas por Ramon Llull e sua Ars magna generalis e principalmente por Leibniz e sua Elementa characteristicae universalis mas mais plenamente desenvolvida no universo circunscrito da loacutegica-matemaacutetica por Frege e Russel Mas Valeacutery parece ter buscado algo ainda mais abrangente valorizou antes e sobretudo a construccedilatildeo de uma linguagem perfeita de uma linguagem pura que representasse de modo rigoroso preciso e exato as percepccedilotildees do mundo exterior e do mundo interior por conseguinte todos os processos da vida do espiacuterito da consciecircncia e de um espiacuterito de uma consciecircncia particular purgada dos estados psicoloacutegicos emotivos e sentimentais Esse seu intento natildeo deixa de ser portanto uma derivaccedilatildeo da proacutepria e inconclusa ideacuteia de Sistema que reduz tudo a funccedilotildees assim como da proacutepria e inconclusa ideacuteia de eu puro uma linguagem perfeita uma linguagem pura seria supostamente a linguagem desse eu puro uma linguagem privada

Todavia o poeta natildeo cumpre doravante com esse intento Implicitamente duas satildeo as possiacuteveis razotildees para tal Primeira Valeacutery jamais abdica jamais pode abdicar da questatildeo dos significados significados sempre presentes no pensamento e na vontade que o executa e quanto a isso uma linguagem formal mesmo tendo certas regras semacircnticas miacutenimas mesmo natildeo sendo um sistema logiacutestico puro algo que seria apenas sintaxe eacute sempre bastante restrita Segunda toda linguagem sempre pressupotildee o outro uma linguagem perfeita uma linguagem pura como linguagem privada seria a linguagem de um soacute e isso natildeo seria simplesmente linguagem nenhuma Em suma ao pretender referir-se ao mundo exterior e ao mundo interior aos processos da consciecircncia do espiacuterito a linguagem deve funcionar deve comunicar deve ser um sistema passiacutevel de ser por outros compreendido usado e transformado e portanto deve carregar um sem-nuacutemero de subentendidos e estar sujeita ateacute certo grau agraves interpretaccedilotildees agraves variaccedilotildees agraves indeterminaccedilotildees semacircnticas desses outros a linguagem se linguagem deve ser portanto imperfeita impura Assim Valeacutery acaba compreendendo que para os seus estranhos propoacutesitos uma linguagem perfeita uma linguagem pura no padratildeo das linguagens naturais natildeo eacute realmente possiacutevel mdashassim como tambeacutem natildeo o eacute em termos puramente empiacutericos o eu puro e a poesia puramdash Eacute apenas uma ilusatildeo ou um sonho continuamente acalentado um absurdo um contra-senso talvez laquoMeu projeto primitivo mdash de me fazer uma linguagem proacutepria mdashraquo ele assim confessa laquoeu natildeo pude desenvolvecirc-lo Dele soacute me restou apenas a abstenccedilatildeo de certas palavras (quanto eu penso para mim) e o haacutebito de compreender as palavras somente como expedientes individuais Eu coloco o significado somente nos indiviacuteduos determinados raquo Como todo escritor que se impotildee secretas regras de uso linguumliacutestico Valeacutery acaba assim se contentando apenas em ter uma escrita altamente idiossincraacutetica permeada de pausas e lacunas e em como diz abster-se do uso de certas expressotildees e palavras as quais considera demasiada imprecisas e recorrentes no uso metafiacutesico demasiada desgastadas ele acaba optando por uma espeacutecie de navalha de Ockham uma censura aplicada aos vocaacutebulos a um index verborum prohibitorum que apesar de nem sempre ser operante na sua escritura revela-se sobretudo como uma regra de construccedilatildeo estiliacutestica como um procedimento de escritura

Em contrapartida em Valeacutery sempre permaneceraacute a ldquoinsatisfaccedilatildeordquo com relaccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo agrave impureza da linguagem O que natildeo deixa de ser algo proacuteprio dos literatos e dos poetas em geral a expressarem consciecircncia dos limites e possibilidades da proacutepria linguagem a expressarem suas dificuldades suas anguacutestias e seus tormentos em escolher palavras ou em desenvolver frases suas experiecircncias interiores a luta para representar aquilo que inicialmente segundo Tiacutetiro personagem ou voz do Dialoge de lrsquoarbre se supotildee como a laquofonte do pranto o inefaacutevel Pois nosso pranto a meu ver eacute a expressatildeo de nossa incapacidade de exprimir ou seja de nos livrar pela palavra da opressatildeo daquilo que somosraquo Por isso que Valeacutery tanto o prosador quanto o poeta apresenta em seus escritos estas duas caracteriacutesticas tatildeo presentes na tradiccedilatildeo miacutestica o pensamento negativo e a manifestaccedilatildeo da impossibilidade da linguagem em representar experiecircncias que natildeo satildeo comuns a todos mdashposto que todo signo que cumpre com sua funccedilatildeo comunicativa como a palavra pressupotildee hipoteticamente uma experiecircncia compartilhada entre dois ou mais espiacuteritos um ponto de contato que possibilite a comunicaccedilatildeomdash O que natildeo raro acaba por desembocar na praacutetica de uma escritura sempre fragmentada e incompleta que se utiliza frequumlentemente de figuras de linguagem contraditoacuterias e paradoxais como uma tentativa de transmitir o que o outro natildeo vivencia

Desse modo o sonho de uma linguagem perfeita de uma linguagem pura eacute no pensamento do poeta passiacutevel de ser interpretada natildeo como uma utopia positiva mas como uma utopia negativa natildeo como uma meta que se espera ser realmente realizada mas como uma meta cuja funccedilatildeo eacute sobretudo heuriacutestica um ideal que sendo a sua concretizaccedilatildeo impossiacutevel ou absurda serve ao menos como um artifiacutecio ou um subterfuacutegio um alvo inexistente ao qual o presente trabalho de escrituraccedilatildeo seja prosaico ou poeacutetico deve se balizar e ao menos tentar ser um como se Afinal o que eacute escrever mdash radicalmentemdash senatildeo a tentativa de escrever e de escrever o que natildeo eacute passiacutevel de o ser Haacute assim algo de paradoxal em tudo isso Pois partindo da ldquoinsatisfaccedilatildeordquo com relaccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo agrave impureza da linguagem e conjeturando construir uma linguagem perfeita linguagem pura Valeacutery acaba portanto por ldquoconceberrdquo que a proacutepria imperfeiccedilatildeo a proacutepria impureza da linguagem revela-se natildeo apenas como um dos fatores que a possibilitam mas tambeacutem como um dos fatores da sua constante renovaccedilatildeo pois favorece o impulso criador o desenvolvimento da poesia e da filosofia e num sentido mais extremo do proacuteprio pensamento laquoSe a linguagem fosse perfeitaraquo escreve de modo excessivo laquoo homem cessaria de pensar A aacutelgebra dispensa o raciociacutenio aritmeacuteticoraquo Porque a linguagem mdashnatildeo sendo formal e privadamdash eacute sobretudo coisa puacuteblica ou passiacutevel de ser coisa puacuteblica uma construccedilatildeo social e contiacutenua porque a linguagem eacute portanto uma convenccedilatildeo

Natildeo haacute como representar a realidade sem usar-se de convenccedilatildeo natildeo haacute como viver em sociedade sem servir-se dela Daiacute tambeacutem a enorme dificuldade em se precisar em se separar o que eacute no variado comportamento do ser humano realmente o natural e o artificial o que eacute dado e o que eacute inventado Sempre flanando com o ceticismo e o relativismo Valeacutery jamais hipostasia as pretensotildees agrave universalidade absoluta e compreende a civilizaccedilatildeo como fundada sobretudo sobre um tenso circuito de convenccedilotildees convenccedilotildees natildeo raro invisiacuteveis e sedimentadas mas que cumprem serem reveladas Dentre elas a linguagem pode ser compreendida como uma das mais complexas e perturbadoras um sistema que se baseia num acordo taacutecito num pacto ou contrato inaudito mas fortemente interiorizado naturalizado entre seus praticantes Afinal todo dizer eacute sempre uma ldquoapostardquo mdashuma aposta que quase natildeo se sente mas que haacutemdash que o outro compreenda de algum modo relativamente anaacutelogo agrave intenccedilatildeo daquele que diz o dito Como bom racionalista e iluminista o poeta natildeo credita por conseguinte na hipoacutetese de uma protolinguagem de uma linguagem adacircmica original aniquilada ou esquecida apoacutes a suposta confusio linguarum babeacutelica apoacutes o distanciamento da unidade divina na qual todos harmonicamente se entenderiam e comungariam questotildees de ldquoorigemrdquo que comumente fazem evocar qualquer forma de platonismo ou realismo a partir da qual as coisas se originam ou degeneram satildeo por ele simplesmente compreendidas como faacutebulas ou ficccedilotildees

Seu convencionalismo possui entretanto relaccedilotildees com o estranho pensamento de Mallarmeacute em parte natildeo deixa de ser uma continuidade uma ecircnfase uma acentuaccedilatildeo de reflexotildees poeacuteticas jaacute contidas em estudos como a Petite philologie agrave lrsquousage des classes et du monde les mots anglais e Notes sur le langage nos quais o autor de Un coup de deacutes descreve seu iacutentimo envolvimento com o idioma que lecionava o inglecircs especialmente o goacutetico e o anglo-saxatildeo e com a linguagem em geral principalmente com a sonoridade das palavras relevante para a poesia Simbolista Forte eacute a ligaccedilatildeo do pensamento dos dois poetas menos com a tradiccedilatildeo do verbum na Teologia Cristatilde e mais como Gerard Gennette exemplarmente iluminou com a poderosa tradiccedilatildeo propagada a partir do Craacutetlio - ou da justeza (exatidatildeo) das palavras de Platatildeo o diaacutelogo seminal sobre filosofia da linguagem na Antiguumlidade Claacutessica Duas teorias ambas referindo-se sobre como deve se dar sobre qual criteacuterio deve se dar agrave justeza (exatidatildeo) das palavras a relaccedilatildeo entre estas e o que elas representam satildeo confrontadas nesse diaacutelogo a defendida por Craacutetilo a naturalista segundo a qual cada objeto do mundo recebe um nome justo de acordo com uma conveniecircncia natural e a defendida por Hermoacutegenes a convencionalista segundo a qual cada objeto do mundo recebe um nome de acordo com uma convenccedilatildeo uma conveniecircncia artificial Portanto uma defende a adequaccedilatildeo entre linguagem e mundo a outra natildeo uma defende a mimese mdasha imitaccedilatildeo ou a representaccedilatildeo icocircnicamdash entre linguagem e mundo a outra natildeo O trunfo da argumentaccedilatildeo de Craacutetilo satildeo as palavras compostas por outras palavras ldquoderivadasrdquo o que daacute a impressatildeo de que estas se auto-explicam o de Hermoacutegenes a existecircncia de palavras que natildeo se decompotildeem em outras ldquoprimitivasrdquo o que daacute a impressatildeo que estas satildeo meramente arbitraacuterias Todavia usando-se da dialeacutetica e ao fim interessado mais na formulaccedilatildeo de uma teoria do conhecimento do que no inquirir etimologias Soacutecrates acaba tambeacutem esboccedilando uma terceira teoria mescla ou negaccedilatildeo das outras duas segundo a qual haveria sim uma conveniecircncia natural entre palavras e coisas todavia natildeo de modo onomatopaico como insiste Craacutetilo mas de modo essencial Nesse sentido se a ceacutelebre Teoria das Ideacuteias estiver em pauta as palavras mdashsupostamentemdash representariam ou deveriam representar (porque de fato natildeo o fazem de modo perfeito) mais as Ideacuteias do que as proacuteprias coisas sensiacuteveis a adequaccedilatildeo a justeza das palavras deve ter portanto como criteacuterio o conhecimento que no ideaacuterio platocircnico natildeo raro se identifica com a dimensatildeo ontoloacutegica e natildeo fenomecircnica Tambeacutem reconhecendo a insuficiecircncia da linguagem para tanto Soacutecrates conjetura que o conhecimento deve ser antes adquirido pelo pensamento e independentemente das palavras guias falhos e perigosos Haacute que se partir da realidade e natildeo daquilo que a imita ou a representa As suas instigantes reflexotildees entretanto permanecem bastante obscuras ao fim ele abandona o diaacutelogo com seus interlocutores e como de costume nada conclui

O espiacuterito desse diaacutelogo reverberou doravante na Escolaacutestica especialmente na questatildeo dos universais A ldquodisputardquo talvez menos loacutegico-linguumliacutestica e mais ontoloacutegica entre realistas (creditando numa universalia ante rem) e nominalistas (creditando numa universalia sunt realia) com todas as minuciosas variaccedilotildees que entre um e outro se formularam tambeacutem ressoam nas reflexotildees de Mallarmeacute e principalmente como Michel Jarrety elucida em Valeacuteryalogo eranette n Interessado no modo como uma liacutengua se comporta ou se desdobra filologicamente evolui e eacute contaminada por outras liacutenguas e por si mesma o primeiro acaba atentando para o possiacutevel limite do caraacuteter convencional das liacutenguas foneacuteticas estas tambeacutem produzem palavras por analogia por semelhanccedila foneacutetica por iconicidade e natildeo apenas por mera convenccedilatildeo laquocriando as analogias das coisas pelas analogias dos sonsraquo (laquoen creacuteant les analogies des choses par les analogies des sonsraquo) assim escreve Ele enfatiza um processo para manter o termo grego mimeacutetico todavia relativamente restrito e preciso a mimese do signo verbal com relaccedilatildeo a outro signo verbal natildeo com relaccedilatildeo direta ao que representam a mimese no interior de uma linguagem ou entre linguagens natildeo portanto com relaccedilatildeo direta agrave realidade que representam Eacute o caso da semelhanccedila por vezes simultaneamente semacircntica e foneacutetica entre palavras de idiomas de mesmo tronco ou num mesmo idioma Esse evidente fenocircmeno linguumliacutestico faz com que Mallarmeacute vaacute mais aleacutem e busque (idiossincraticamente) revelar certa constacircncia certa lei entre a semacircntica e a foneacutetica das palavras da liacutengua inglesa ao atribuir ou encontrar valores semacircnticos semelhantes a um conjunto de palavras de foneacutetica semelhantes quiccedilaacute tambeacutem tendo como intenccedilatildeo que a aliteraccedilatildeo um dos grandes recursos da poesia natildeo se decirc apenas como uma seacuterie de sons semelhantes mas tambeacutem como de significados semelhantes

Doravante desconfiando de qualquer explicaccedilatildeo que aponte a essencialidades natildeo compartilhando das teorias de Craacutetilo (ldquoingecircnuardquo demais) ou de Soacutecrates (ldquoplatocircnicardquo demais) Valeacutery por sua vez eacute em certo sentido muito mais nominalista do que seu mestre que natildeo deixa de acenar para um platonismo de caraacuteter miacutestico como se depreende por esta bela e enigmaacutetica frase laquoO Verbo atraveacutes da Ideacuteia e do Tempo que satildeo ldquoa negaccedilatildeo idecircntica da essecircnciardquo do Devir torna-se a Linguagemraquo (laquoLe Verbe agrave travers lrsquoIdeacutee et le Temps qui sont ldquo la negation identique agrave lrsquoessence rdquo du Devenir devient le Langageraquo) O disciacutepulo natildeo nega obviamente que as palavras se formem tambeacutem por analogia a outras desconfia tatildeo-somente que tal fenocircmeno legitime a formulaccedilatildeo de uma lei substancial ademais foi ele que tambeacutem cogitou a formulaccedilatildeo de uma espeacutecie de laquo loacutegica imaginativaraquo ou laquo analoacutegicaraquo jamais inferiorizando o pensamento por analogia por semelhanccedila por iconicidade em comparaccedilatildeo com o pensamento por contiguumlidade como se depreende em seus escritos sobre Leonardo Dir-se-ia assim simplesmente que para Valeacutery natildeo faz mais sentido buscar ou formular um criteacuterio de adequaccedilatildeo de justeza para as palavras (e nisso ele natildeo se coaduna com Hermoacutegenes) Constata-se apenas que elas satildeo engendradas por um processo imperfeito impuro por mimese (relaccedilatildeo entre signo e signo) e por convenccedilatildeo (relaccedilatildeo entre signo e objeto) dependendo do aspecto que se contemple mas natildeo por uma seacuterie de regras e relaccedilotildees absolutamente riacutegidas e substanciais Com efeito para Valeacutery a parte convencional eacute justamente a relaccedilatildeo entre a foneacutetica e a semacircntica (e nisso ele se coaduna com Hermoacutegenes) a palavra se configura sobretudo como laquouma montagem instantacircnea de um som e um sentido sem qualquer relaccedilatildeo entre elasraquo Natildeo haacute ao menos nas liacutenguas foneacuteticas como o francecircs e o portuguecircs (a referecircncia eacute obviamente sempre agraves do tronco hindo-europeu e natildeo agraves que se utilizam tambeacutem de ideogramas ou hieroacuteglifos) uma necessaacuteria ligaccedilatildeo mimeacutetica de representaccedilatildeo icocircnica entre o representante e o representado Com relaccedilatildeo ao objeto que represente ou agrave funccedilatildeo que tenha o signo linguumliacutestico eacute realmente arbitraacuterio essa eacute sua marca mais patente como insiste Valeacutery consoante nesse aspecto com a linguumliacutestica de Saussure

E poder-se-ia natildeo sem um pouco de exagero ir ainda mais aleacutem em todo esse insone raciociacutenio Pelo que se interpreta mais pela totalidade de seus escritos do que por frases soltas a linguagem para o poeta natildeo se caracterizaria como sendo consequumlecircncia de um princiacutepio ontoloacutegico de uma relaccedilatildeo isomoacuterfica com a realidade Por detraacutes dela natildeo haacute um substrato ou uma loacutegica essencial simetricamente perfeita com relaccedilatildeo a um suposto substrato ou loacutegica essencial do mundo O que em grande medida tambeacutem descartaria a possibilidade de construccedilatildeo de uma gramaacutetica geral ou universal matriz gerativa a partir da qual todas as demais seriam variaccedilotildees empiacutericas e natildeo apenas a possibilidade de uma linguagem perfeita uma linguagem pura Natildeo haacute portanto a Linguagem haacute tatildeo-somente linguagens ou para usar o conceito central do segundo Wittgenstein haacute inuacutemeros jogos de linguagens semelhantes entre si mas natildeo construiacutedos sob ou a partir de um uacutenico princiacutepio ontoloacutegico que se desenvolve e se multiplica como uma aacutervore Tudo eacute uma vasta trama que cresce e se contorce em vaacuterias direccedilotildees uma trama sem raiz

Isso talvez explique o porquecirc Valeacutery de um lado constate a imperfeiccedilatildeo a impureza da linguagem e conjeture a formulaccedilatildeo de uma linguagem perfeita pura e por outro interprete como Mallarmeacute os diversos usos e apropriaccedilotildees falas e escritas das linguagens particulares das liacutenguas naturais como uma espeacutecie de intensa reforma ou reinvenccedilatildeo como um contiacutenuo aperfeiccediloamento Aperfeiccediloamento engendrado pelos propoacutesitos usuaacuterios que ao receber tais liacutenguas da tradiccedilatildeo as adaptam agraves suas idiossincrasias e modos de ser Processo que ocorre naturalmente de um modo bastante informal e natildeo finalista Desse modo o proacuteprio qualificativo de imperfeiccedilatildeo atrelado agrave linguagem adquire por conseguinte aqui menos o significado hodierno de algo defeituoso do que de incompleto de inacabado e portanto de uma forccedila evolutiva A metaacutefora mdashessa poderosa figura de linguagem que natildeo deixa de ser um dos mais conhecidos resultados da capacidade de analogia da consciecircncia uma forma de comparar representaccedilotildees para com isso conotar outrasmdash eacute uma dos exemplos mais patentes dessa reinvenccedilatildeo da linguagem no interior da proacutepria linguagem da qual a poesia vem a ser um dos grandes paradigmas Revela-se muitas vezes como um modo de precisar o dizer ou ateacute mesmo o uacutenico modo de dizer aquilo que de modo literal direto natildeo seria possiacutevel Pois a precisatildeo natildeo se refere apenas ao literal agraves vezes o metafoacuterico o que eacute dito pelo desvio vem a ser o mais preciso Toda a reflexatildeo linguumliacutestica de Valeacutery acaba mostrando portanto o lado positivo do convencionalismo a capacidade de inventar signos convencionais siacutembolos de multiplicaacute-los e de relacionaacute-los eacute a capacidade mesma de representar abstraccedilotildees Com os siacutembolos tornou-se possiacutevel representar de um modo abstrato natildeo apenas o mundo exterior mas tambeacutem o mundo interior o espiacuterito a consciecircncia e o que nesse espiacuterito nessa consciecircncia se conjetura e deseja tornou-se possiacutevel representar inclusive aquilo que natildeo existe ou ao menos aquilo que eacute tatildeo somente especulado ou experimentado por um soacute laquoO maior progresso foi feito no dia em que os signos convencionais apareceramraquo assim exclama o poeta

Conjetura-se que a invenccedilatildeo de signos convencionais a invenccedilatildeo da linguagem adveio sobretudo pela necessidade ou pelo desejo humano de interaccedilatildeo com os outros e com o mundo de construir um instrumento de comunicaccedilatildeo isto eacute um instrumento comum Entretanto esse instrumento tambeacutem pode ser usado mdashcomo que num segundo momento heuristicamente conjeturadomdash para expressar perplexidades filosoacuteficas Poder-se-ia dizer assim que a filosofia seria uma espeacutecie de desvio de desvirtuamento de abuso da funccedilatildeo agrave qual a linguagem estaria a princiacutepio destinada O que se constata tambeacutem na complexa formaccedilatildeo do vocabulaacuterio filosoacutefico frequumlentemente de grande abstraccedilatildeo este se inicia em grande medida a partir do vocabulaacuterio utilizado cotidianamente pragmaacutetico construiacutedo imediatamente atraveacutes de uma direta relaccedilatildeo com o mundo sensiacutevel concreto que entatildeo eacute manipulado ou reformulado resignificado quando inserido nas mais diversas especulaccedilotildees Supotildee-se que assim os seres humanos comeccedilam a representar os objetos da realidade que percebem com determinadas palavras cunhadas para tal para entatildeo depois passarem a representar objetos de realidades que conjeturam atraveacutes dessas mesmas palavras agora transformadas distorcidas em metaacuteforas ocultas laquoTodas as nossas abstraccedilotildees tecircm essas experiecircncias pessoais e singulares como origemraquo discursa informalmente Valeacutery laquotodas as palavras do pensamento mais abstrato satildeo palavras retiradas do uso mais simples mais comum que corrompemos para filosofar com elas Vocecircs sabiam que a palavra latina da qual tiramos a palavra mundo significa simplesmente ldquoornamentordquo mas certamente vocecircs sabem que as palavras hipoacutetese ou substacircncia alma ou espiacuterito ou ideacuteia as palavras pensar ou entender satildeo nomes de atos elementares como colocar pocircr pegar respirar ou ver que aos poucos foram se carregando de sentidos e ressonacircncias extraordinaacuterias ou ao contraacuterio foram se despojando progressivamente ateacute perderem tudo o que teria impedido de combinaacute-las com uma liberdade praticamente ilimitada A noccedilatildeo de pesar natildeo estaacute presente na noccedilatildeo de pensar e a respiraccedilatildeo natildeo eacute mais sugerida pelos termos do espiacuterito e da almaraquo

Contudo haveria um entrave em todo esse processo linguumliacutestico Se no plano da linguagem ordinaacuteria todos os interlocutores em geral se entenderiam de modo mais faacutecil no plano da linguagem filosoacutefica haveria os maiores desentendimentos os maiores desacordos e disputas Quanto a isso as reflexotildees de Valeacutery satildeo incisivas e assumem um caraacuteter jaacute claacutessico remetem tanto a Santo Agostinho quanto a Wittgenstein laquoVocecircs jaacute notaram [] de que tal palavra perfeitamente clara quando a ouvem ou empregam na linguagem normalraquo assim pergunta o poeta laquonatildeo oferecendo a menor dificuldade quando comprometida no andamento raacutepido de uma frase comum torna-se magicamente problemaacutetica introduz uma resistecircncia estranha frustra todos os esforccedilos de definiccedilatildeo assim que vocecircs a retiram de circulaccedilatildeo para examinaacute-la agrave parte procurando um sentido apoacutes tecirc-la subtraiacutedo agrave sua funccedilatildeo momentacircnea Eacute quase cocircmico perguntar-se o que significa ao certo um termo que se utiliza a todo instante e obter satisfaccedilatildeo total Por exemplo escolhi [] a palavra Tempo Essa palavra era totalmente liacutempida precisa honesta e fiel ao seu serviccedilo enquanto desempenhava a sua parte em um propoacutesito e era pronunciada por algueacutem que queria dizer alguma coisa Mas ei-la sozinha presa pelas asas Ela se vinga Faz-nos acreditar que tem mais sentidos que funccedilotildees Era apenas um meio e ei-la transformada em fim transformada no objeto de um terriacutevel desejo filosoacutefico Permuta-se em enigma em abismo em tormento para o pensamento Acontece o mesmo com a palavra Vida e com todas as outras Esse fenocircmeno facilmente observaacutevel adquiriu um grande valor criacutetico para mim Fiz dele aliaacutes uma imagem que me representa bastante bem essa estranha condiccedilatildeo de nosso material verbal [] cada uma das palavras que nos permite atravessar tatildeo rapidamente o espaccedilo de um pensamento e acompanhar o impulso da ideacuteia que constroacutei por si mesma sua expressatildeo parece-me uma dessas pranchas leves que jogamos sobre uma vala ou sobre uma fenda na montanha e que suportam a passagem de um homem em movimento raacutepido Mas que ele passe sem pesar que passe sem se deter mdash e principalmente que natildeo se divirta danccedilando sobre a prancha fina para testar a resistecircncia A ponte fraacutegil imediatamente oscila ou rompe-se e tudo se vai nas profundezas Consultem sua experiecircncia e constataratildeo que soacute compreendemos os outros e que soacute compreendemos a noacutes mesmos graccedilas agrave velocidade de nossa passagem pelas palavras Natildeo se deve de forma alguma oprimi-las sob o risco de se ver o discurso mais claro decompor-se em enigmas em ilusotildees mais ou menos eruditasraquo

Esse discurso revela em siacutentese como o poeta compreende enfim a linguagem como um vasto sistema em devir como algo eminentemente provisoacuterio como algo eminentemente transitoacuterio Uma transitoriedade naturalmente feita de padrotildees de regras de normas E a palavra mdashe laquo Natildeo haacute palavra isolaacutevelraquomdash eacute apenas um elemento dessa transitoriedade um anel pertencente a uma corrente que se rompida pode acabar por obscurecer toda a compreensatildeo do que se intentou comunicar ela natildeo deve ser uma estaccedilatildeo-final mas uma estaccedilatildeo na qual se paacutera se permanece por pouco tempo depois se parte e assim sucessivamente num processo que virtualmente natildeo tem fim A palavra eacute assim como uma moeda possui valor de troca valor dependente somente da confianccedila nela depositada valor fiduciaacuterio Seu significado natildeo eacute dado por ela mas pelo que eacute possiacutevel ou natildeo se fazer com ela pelo seu uso ou numa outra perspectiva pelo seu contexto pelo contexto proposicional ou pela forma de vida para usar a expressatildeo do segundo Wittgenstein pelo tempo e pelo espaccedilo na qual se insere laquoEacute a frase que esclarece a palavraraquo A teoria semacircntica que o poeta sustenta eacute portanto um contextualismo semacircntico Nesse contextualismo o modo como uma palavra eacute frequumlentemente apropriada usada ou significada mdashcom padrotildees que se repetem analogamentemdash daacute a ela uma suficiente estabilidade semacircntica para manter o poder de comunicaccedilatildeo da linguagem na medida em que impediria uma alteraccedilatildeo caoacutetica e arbitraacuteria dos seus proacuteprios usos ou significados Um usuaacuterio (um falante ou um escritor) se almeja ser compreendido natildeo pode querer fazer o que bem quiser com ela Natildeo pode querer usaacute-la ou significaacute-la sempre do mesmo modo o que se configuraria como um dogmatismo semacircntico absoluto assim como natildeo se pode querer usaacute-la ou significaacute-la sempre de modo diferente o que configuraria um ceticismo semacircntico absoluto Em ambos os casos a comunicaccedilatildeo no plano cotidiano ou ordinaacuterio estaria no miacutenimo prejudicada Toda palavra assim como todo signo tem portanto algum grau de determinaccedilatildeo semacircntica ou algum grau de indeterminaccedilatildeo semacircntica natildeo possui fixidez nem fluidez absolutas mdashe isso a faz funcionarmdash Uma laquolinguagem supotildee uma criaccedilatildeo estatiacutestica constante [Grifo do autor]raquo sintetiza Valeacutery laquocada qual potildee nela algo de si mesmo a desfigura a enriquece a capta e a comunica a sua maneira [] A necessidade de muacutetua compreensatildeo eacute a uacutenica normativa que atenua e retarda sua alteraccedilatildeo e esta eacute tatildeo soacute possiacutevel em virtude da natureza arbitraacuteria das correspondecircncias de signos e de sentido que a constituemraquo

E eacute por isso que Valeacutery tambeacutem chega a se referir relativamente anaacutelogo agraves reflexotildees de um Rousseau e de um Condillac agrave linguagem como sendo mdashao menos ldquooriginalmenterdquomdash derivada do corpo do gesto e do grito o que significa que se almeja cumprir plenamente com seu objetivo pragmaacutetico deve morrer e morrer no outro no entendimento do outro o outro que a faraacute renascer laquoA linguagem articulada verbal parte do gesto mdash e o exige uma vez por todasraquo assim escreve laquoEnsaiar se exprimir por gestos Isto eacute tocar o cerne da linguagem ordinaacuteria)raquo Em uacuteltima instacircncia Valeacutery como ele mesmo confessa a compreende mdashum modo que poderia ser denominado de ldquopositivordquo ou ldquocientiacuteficordquomdash primordialmente como instrumento como laquofunccedilatildeoraquo natildeo como ldquocoisardquo ou ldquoessecircnciardquo O que talvez seria mais condizente a um poeta de poesias metafiacutesicas mas natildeo o eacute porque Valeacutery tambeacutem compreende a poesia natildeo raro como um retorno a esse gesto e a esse grito agora respectivamente transformados purificados em danccedila e em canccedilatildeo laquoO poeta que multiplica as figurasraquo escreve laquonada mais faz do que reencontrar em si mesmo a linguagem em estado nascenteraquo Nesse sentido ateacute mesmo o seu ldquo nominalismordquo se relativiza pois em seu pensamento jaacute natildeo estaacute mais em jogo nenhuma preocupaccedilatildeo ontoloacutegica Todo substancialismo eacute substituiacutedo por um funcionalismo um funcionalismo contextualista porque a linguagem deve ser o que sempre foi uma accedilatildeo um fazer

4111 automatismo verbal

mdash Vocecirc estaacute seguro de que esta eacute a traduccedilatildeo correta em palavras de seus pensamentos sem palavras

Ludwing Wittgenstein Investigaccedilotildees filosoacuteficas

As palavras que possuem caraacuteter denotativo que se referem a algo as palavras ldquocategoremaacuteticasrdquo quiccedilaacute com exceccedilatildeo dos nomes e dos nuacutemeros podem ser compreendidas como generalia como signos gerais Representam um conjunto uma infinidade de objetos concretos ou abstratos subjetivos ou objetivos reais ou irreais que na perspectiva supostamente constante e natural da percepccedilatildeo e ou da intelecccedilatildeo humana se assemelham num tal extremo que satildeo postas como iguais e eacute justamente por essa ldquoigualdaderdquo por uma convencional desconsideraccedilatildeo das diferenccedilas do vasto grau de matizes da realidade que inuacutemeros objetos podem ser denominados por uma mesma palavra e assim tambeacutem para com todos os demais Natildeo haacute nada de igual passiacutevel de ser pelos sentidos percebido na realidade exterior ou intuiacutedo na realidade interior ao menos ateacute hoje natildeo se constatou que houvesse Nenhuma pedra eacute igual agrave outra pedra no entanto todas satildeo denominadas pedras nenhuma tristeza eacute igual agrave outra tristeza no entanto todas satildeo denominadas tristezas De algum modo e quiccedilaacute por se estar envolto com preocupaccedilotildees metafiacutesicas e religiosas por se almejar essecircncias um ir aleacutem do que se percebe tal relaccedilatildeo entre linguagem e realidade pode ldquofacilmenterdquo induzir ou incitar mdashe isso eacute meramente uma hipoacutetesemdash a crer que haveria natildeo apenas um objeto primordial e perfeito a partir do qual todos os outros seriam versotildees incompletas imperfeitas mas tambeacutem que haveria um significado correto absoluto verdadeiro referente como o jaacute acenado por Soacutecrates no Craacutetilo natildeo aos diversos objetos percebidos ou intuiacutedos que satildeo denominados por uma mesma palavra mas antes ao objeto primordial e perfeito A antiga concepccedilatildeo mdash platocircnica ou realistamdash segundo a qual a palavra manifestaria a verdadeira essecircncia da coisa que representa explicita em muito essa crenccedila mdashe quanto a isso natildeo deixa de ser instigante saber que no Grego Claacutessico uma das palavras para palavra ( ὄνομα) tambeacutem designa o conceito de nomemdash Entretanto hoje quando tal crenccedila natildeo se faz tatildeo presente quando o espiacuterito nominalista (e ldquomaisrdquo cientiacutefico) parece ter relativamente se imposto ao espiacuterito realista (e ldquomaisrdquo metafiacutesico) o que ainda ocorre mais explicita e precisamente eacute como que um apego um apego a um determinado significado ou gama de significados a um determinado discurso O que muitas vezes prejudica ou inviabilizaria o diaacutelogo com outros a formularem outros significados ou gama de significados o diaacutelogo com outros discursos

Todo esse modo categorial de compreender as palavras e por conseguinte a linguagem modo que Valeacutery natildeo tardaria em julgar supostamente como ldquoantigordquo como ldquoanacrocircnicordquo posto desenvolvido numa eacutepoca preacute-cientiacutefica miacutetica seria um dos erros mais incisivos e recorrentes mais pateacuteticos da filosofia Esta opera constroacutei-se natildeo raro subestimando mdashesquecendo ou ignorandomdash esse constante e imperioso caraacuteter polissecircmico plaacutestico volaacutetil das palavras compreendido como muito mais vasto e complexo do que as preciosas definiccedilotildees enumeraccedilotildees que os dicionaacuterios proporcionam e que compreensivelmente natildeo abarcam todas as possibilidades ou dito com mais precisatildeo subestimando os variados usos ou significados que as pessoas tanto na linguagem cotidiana como na linguagem filosoacutefica tanto na prosa como na poesia concedem com maior ou menor rigor agraves proacuteprias palavras o grau de indeterminaccedilatildeo semacircntica que elas podem sofrer A filosofia tende a compreender que se existe muitos usos ou significados de uma mesma palavra somente um ou uma gama muito limitada ou restrita deles deve ser o correto o absoluto o verdadeiro Mas como para o poeta a linguagem caracteriza-se sobretudo como insuficiente convencional e transitoacuteria como uma laquo criaccedilatildeo estatiacutestica constanteraquo como as palavras natildeo mascaram ou encobrem essecircncias laquonatildeo encobrem misteacuterios mdash mas embaraccedilos incoerecircncias acasosraquo natildeo haacute natildeo faz sentido haver por conseguinte o significado correto absoluto verdadeiro mas tatildeo somente inuacutemeros usos ou significaccedilotildees possiacuteveis E isso porque definiccedilotildees isto eacute tentativas de dar contornos ou limites semacircnticos fixidez agraves palavras natildeo satildeo representaccedilotildees de uma realidade ontoloacutegica para aleacutem dos espiacuteritos das consciecircncias

A filosofia ldquopecardquo portanto por um dogmatismo semacircntico ou pelo que aqui pode ser denominado de platonismo semacircntico ou realismo semacircntico a ilusoacuteria crenccedila no significado em si a ilusoacuteria crenccedila na palavra em si a ilusoacuteria crenccedila que haacute um em si representado pelo signo verbal No discurso que promove no discurso que eacute ela a filosofia cristaliza fixa as significaccedilotildees que adquire ou formula para ou estaca nas palavras em geral as mais abstratas (consequumlentemente as mais propiacutecias e relevantes ao pensamento metafiacutesico) quando estas devem ser ou soacute podem ser compreendidas como pontes como partes de frases de textos e de contextos e assim sucessivamente a filosofia faria portanto justamente aquilo que Valeacutery considera ser extremamente ldquoperigosordquo e ldquoesteacuterilrdquo isola as palavras e isoladas elas se tornam laquo incompletasraquo laquo ionizadasraquo isoladas elas se tornam portas para o enigma inesgotaacuteveis fontes de especulaccedilotildees filosoacuteficas de antinomias A palavra torna-se aquilo que o fazedor de poemas intuitivamente sabe que pode ocorrer um laquoabismo sem fimraquo laquoQuando noacutes nos interrogamos sobre o significado de uma palavra mdash o que eacute a atitude do fazedor de dicionaacuterios ou do ldquofiloacutesofordquo ou do criacutetico etc mdash noacutes somos conduzidos inconscientemente a inventar um significado ldquoidealrdquo e falso Pois 1o noacutes consideramos a palavra isoladamente 2o noacutes recusamos o significado dessa palavra quando a observamos no uso imediato e que parece incompleta ou absurda ou peticcedilotildees de princiacutepio Noacutes supomos que cada palavra possui um significado mdash determinado que natildeo seja o seu e que corresponde a qualquer coisa mdash correspondecircncia uniforme mdash e que o sistema perfeito de palavras eacute em alguma parte mdash a disposiccedilatildeo de um espiacuterito bastante poderoso e sutil para o esperarraquo laquo O filoacutesoforaquo portanto escreve o poeta laquo crecirc na palavra em si mdash e seus problemas satildeo problemas de palavras em si de palavras que se obscurecem pelo imobilismo e isolamento mdash e que ele esclarece de seu melhor criando-as de seu melhor e artificialmente por uma voz refletida e imaginativa aquilo que precisamente suas paradas e suas duacutevidas o levaram mdash seu caraacuteter de transiccedilatildeo mdash via de comunicaccedilatildeoraquo Segundo Valeacutery os filoacutesofos viveriam muito mais a disputar tatildeo-somente definiccedilotildees significaccedilotildees de palavras semacircnticas do que proposiccedilotildees construccedilotildees que se atenham a ldquofenocircmenos reaisrdquo eacute justamente nesse sentido que ele chega a dizer ironicamente que toda a filosofia inclina-se a ser tatildeo-somente uma laquoDivinizaccedilatildeo do verbo serraquo (Esse comportamento filosoacutefico eacute de algum modo bastante compreensiacutevel supondo a tendecircncia tatildeo caracteriacutestica do pensamento da Antiguumlidade Claacutessica a fundamentar e influenciar grande parte da Tradiccedilatildeo Filosoacutefica Ocidental em buscar algum princiacutepio algum ldquo serrdquo ontologicamente inscrito sob a desesperadora transitoriedade do mundo Transitoriedade que de modo algum natildeo perturba o poeta)

Dessarte da criacutetica ao modo como os filoacutesofos frequumlentemente utilizam-se das palavras fixando-se nelas da falta de consciecircncias da linguagem destes o poeta amiuacutede considera consequumlentemente que tambeacutem a grande parte ou a totalidade dos problemas que a filosofia ou a metafiacutesica inventa e lega agrave tradiccedilatildeo tanto filosoacutefica ou metafiacutesica quanto o que talvez seja mais problemaacutetico e polecircmico para aleacutem dela constitui-se natildeo de erros mas simplesmente de falsos problemas de contra- sensos de ilusotildees de quimeras ou de abusos a partir dos quais na acircnsia de resolvecirc-los de realizaacute-los muitas vezes satildeo arquitetados e construiacutedos verdadeiros mundos de fantasia laquoToda a filosofia nasceu de ilusotildees sobre o saber que satildeo ilusotildees sobre a linguagemraquo laquoNatildeo existe um uacutenico problema em filosofiaraquo escreve de modo irocircnico e taxativo laquoque natildeo se tenha podido enunciar de maneira tal que natildeo subsista qualquer duacutevida sobre a sua existecircnciaraquo Entretanto natildeo se trata assim pode ser interpretado de um ceticismo positivo ou dogmaacutetico natildeo eacute mais uma questatildeo tanto de crer ou de descrer nesses problemas na legitimidade ou ilegitimidade de acreditar na veracidade ou na falsidade deles na concordacircncia com a realidade que dispotildeem representar Porque eles satildeo justamente apenas falsos problemas contra-sensos isto eacute eles simplesmente natildeo tecircm sentido eles simplesmente natildeo existem para fora do universo linguumliacutestico no qual se inserem Constituem-se antes em ilusotildees gramaticais Afinal natildeo se pode duvidar de algo mal enunciado impreciso natildeo se pode duvidar de algo que se intui natildeo ser compreendido nem mesmo por aqueles que o enunciam mdashargumento esse naturalmente deveras subjetivomdash laquoA maior parte dos problemas da filosofia satildeo contra-sensosraquo escreve Valeacutery tambeacutem se referindo ao devir do saber cientiacutefico laquoeu quero dizer que eacute geralmente impossiacutevel de os ldquocolocarrdquo de uma maneira precisa sem os destruir Assim esses problemas geralmente natildeo resultam de um estudo direto mas satildeo engendrados por teorias ou modos de expressatildeo mais antigos que ao se tornarem insuficiente e em desacordo com os fatos ou com uma anaacutelise mais fina fizeram nascer paradoxos Eacute assim que o argumento sobre a divisibilidade do tempo e do espaccedilo repousa sobre a imprecisatildeo desta operaccedilatildeo Haacute somente que voltar ao que se passa quando se o divide seja fisicamente seja (de uma maneira bastante diferente) intelectualmente para anular o argumentoraquo

Extrapolando toda essa criacutetica da esfera filosoacutefica e estendendo-a toda ateacute a esfera social chegar-se-ia ao ponto extremo em que se poderia afirmar ser qualquer crenccedila natildeo apenas as tecnicamente filosoacuteficas ou metafiacutesicas uma maacute formulaccedilatildeo linguumliacutestica que natildeo raro assume um valor capital na vida daquele que crecirc O lema mdashlaquoFaire sans croireraquomdash tambeacutem natildeo deixe de estar relacionado a isso pois talvez para Valeacutery toda crenccedila tenha no fundo um caraacuteter filosoacutefico-metafiacutesico e seja portanto ilusoacuteria Tal concepccedilatildeo pode parecer de uma brutalidade de um niilismo epistemoloacutegico visceral principalmente quando se contempla o quanto a grande parte das pessoas facilmente adere ou se submete natildeo raro miseravelmente a qualquer sistema de valores relativamente fechado que o vasto mercado das ideacuteias oferece e vende especialmente os que se encontram nas religiotildees institucionalizadas em busca de consolo psicoloacutegico e de esperanccedilas Isso natildeo implica obviamente que natildeo se possa compreender a importacircncia e a funccedilatildeo das crenccedilas para uma determinada sociedade para a vida e continuidade de uma determinada sociedade para aqueles que as aceitam e as seguem como sempre observava Kant a considerar a razatildeo praacutetica como mais importante para a vida do que a razatildeo pura Disso o poeta apresenta plena consciecircncia Considerava impossiacutevel ou ao menos muito improvaacutevel a construccedilatildeo de uma civilizaccedilatildeo que prescinda de crenccedilas de princiacutepios natildeo verificaacuteveis de representaccedilotildees vagas imprecisas e ldquomal formuladasrdquo de aspiraccedilotildees de sonhos e ilusotildees Pois em uacuteltima instacircncia laquoA metafiacutesica eacute a base das sociedadesraquo

Numa passagem mais generosa e condescendente Valeacutery matiza assim essa sua proacutepria criacutetica quanto aos problemas filosoacutefico-metafiacutesicos serem contra- sensos referindo-se ao teor pessoal dessa criacutetica As palavras diz ele laquopassaram por tantas bocas por tantas frases por tantos usos e abusos que as precauccedilotildees mais delicadas se impotildeem para evitar uma enorme confusatildeo em nossos espiacuteritos entre o que pensamos e tentamos pensar e o que o dicionaacuterio os autores e de resto todo o gecircnero humano desde a origem da linguagem querem que pensemos [] Confesso ter o costume de distinguir nos problemas do espiacuterito aqueles que eu teria inventado e que exprimem uma necessidade real sentida por meu pensamento e os outros que satildeo problemas alheios Entre esses uacuteltimos haacute muitos [] que me parecem natildeo existir ser apenas aparecircncia de problemas eu natildeo os sinto E quanto ao resto haacute muitos que me parecem mal enunciados Natildeo estou dizendo que eu tenho razatildeo Estou dizendo que vejo em mim o que se passa quando tento substituir as formas verbais por valores e significados natildeo verbais que sejam independentes da linguagem adotada [Grifo do autor] Encontro aiacute impulsos e imagens ingecircnuas produtos brutos de minhas necessidades e de minhas experiecircncias pessoais Eacute a minha vida que se espanta Eacute ela que deve me fornecer se puder minhas respostas pois eacute somente nas reaccedilotildees de nossa vida que pode residir toda a forccedila e a necessidade de nossa verdade O pensamento que emana dessa vida nunca se serve com ela mesma de certas palavras que lhe pareccedilam boas para o uso externo nem de outras nas quais natildeo veja o conteuacutedo e que soacute pode enganaacute-lo sobre sua forccedila e valores reaisraquo

Mediante essas palavras facilmente se constroacutei aqui uma estrateacutegia de argumentaccedilatildeo Supotildee-se que se os problemas filosoacutefico-metafiacutesicos fossem enunciados com proposiccedilotildees mais exatas ou precisas simplesmente natildeo existiriam se estivessem em outro registro ordenadas a partir de outros princiacutepios postos em uma outra loacutegica simplesmente natildeo viriam a ser simplesmente natildeo seriam pensados e ou creditados pois a existecircncia desses problemas mdashenquanto enunciados objetivos de validade universalmdash estaacute intimamente condicionada agrave proacutepria linguagem agraves convenccedilotildees estatiacutesticas (e por conseguinte agrave proacutepria cultura) com as quais natildeo simplesmente se vestem mas satildeo por vezes inteiramente constitutivos Como o pensamento tende a condicionar a sua forma de expressatildeo exterior assim como a forma de expressatildeo exterior tende a condicionar o pensamento um problema filosoacutefico-metafiacutesico genuiacuteno (se isso ainda for possiacutevel no pensamento do poeta se isso natildeo for demasiado idealista) deveria existir deveria poder se sustentar independentemente dos veiacuteculos ou dos meios no qual se corporifica e se lanccedila como mensagem exterior agraves interpretaccedilotildees alheias E a partir disso eacute liacutecito formular uma espeacutecie de ldquoregrardquo simples e laminar indispensaacutevel a uma laquo nettoyage de la situation verbaleraquo que se faz realmente rigorosa Um problema filosoacutefico enunciado de uma outra forma transposto em um outro sistema de signos sem a mediaccedilatildeo ou sem a vestimenta por exemplo das palavras da linguagem verbal permaneceria como problema e como problema filosoacutefico Um problema filosoacutefico o que dele sobra retirada a sua forma exterior Essa muacuteltipla questatildeo acena aqui para um crivo o crivo daquilo que se pode denominar aqui de traduccedilatildeo semioacutetica (natildeo meramente entre linguagens verbais mas sobretudo entre linguagens entre formas distintas de representaccedilatildeo) acena para o que pode ser cuidadosamente designado aqui de pensamento puro de semiose pura isto eacute de uma representaccedilatildeo mental natural ou natildeo convencional como o substrato mais adequado para a reflexatildeo verdadeiramente autocircnoma pensamento livre mdasheis o que enfim se buscamdash das convenccedilotildees das amarras da linguagem verbal do idioma livre justamente porque consciente delas no ato mesmo de expressaacute-las Livre de todo o laquo automatismo verbalraquo (laquo automatisme verbalraquo)

Plenamente formulada em Leacuteonard et les philosophes essa expressatildeo mesmo que natildeo abundantemente repetida eacute um dos mais significativos conceitos-chave do pensamento de Valeacutery siacutentese do que ele realmente critica na filosofia ou metafiacutesica Pois compreendendo o itineraacuterio de seus escritos como um todo eacute justamente contra o automatismo contra o automatismo de qualquer espeacutecie seja em qualquer esfera na vida privada ou puacuteblica seja consigo mesmo ou com os outros seja com relaccedilatildeo agraves crenccedilas que a sociedade natildeo raro exige seja com relaccedilatildeo a um mero problema teoacuterico que ele sempre se empenhou em se precaver e contra o qual lutar mesmo reconhecendo que isso em termos absolutos seja talvez impossiacutevel Eis a passagem na qual a expressatildeo laquo automatismo verbalraquo eacute mais eloquumlentemente formulada laquoO filoacutesofo descreve aquilo que pensou Um sistema de filosofia se resume numa classificaccedilatildeo de palavras ou num quadro de definiccedilotildees A loacutegica eacute apenas a permanecircncia das propriedades desse quadro e a maneira de usaacute-lo Eis a que estamos acostumados e porque temos que dar agrave linguagem articulada um lugar todo especial e todo central no regime de nossos espiacuteritos Eacute bem verdade que esse lugar eacute devido e que essa linguagem [] eacute quase noacutes mesmos Quase natildeo podemos pensar sem ela e natildeo podemos sem ela dirigir conservar retornar nosso pensamento e sobretudo prevecirc-lo de alguma maneira Mas olhemos um pouco mais de perto examinemos em noacutes mesmos Mal nosso pensamento tende a se aprofundar isto eacute a se aproximar de seu objeto tentando operar sobre as proacuteprias coisas (por mais que seu ato produza coisas) e natildeo mais sobre signos quaisquer que excitam as ideacuteias superficiais das coisas mal vivemos esse pensamento sentimo-lo separar-se de toda a linguagem convencional Por mais intimamente que seja tramada em nossa presenccedila e por mais densa que seja a distribuiccedilatildeo de suas chances por mais sensiacutevel que seja essa organizaccedilatildeo adquirida e por mais pronta que ela esteja a intervir podemos por esforccedilo por uma espeacutecie de aumento e por uma maneira de pressatildeo de duraccedilatildeo separaacute-la de nossa vida mental pertinaz Sentimos que nos faltam as palavras e percebemos que natildeo existe razatildeo para encontrar algumas que nos correspondem isto eacute que nos substituam porque o poder das palavras (de onde elas tiram a sua utilidade) eacute nos fazer voltar a passar pela proximidade de estados jaacute experimentados regularizar ou instituir a repeticcedilatildeo e eis que natildeo se repete nunca Talvez isso mesmo eacute que seja pensar profundamente o que natildeo quer dizer pensar mais utilmente mais exatamente mais completamente que de costume eacute apenas pensar longe pensar o mais longe possiacutevel do automatismo verbal [ penser le plus loin possible de lrsquoautomatisme verbal] Sentimos entatildeo que o vocabulaacuterio e a gramaacutetica satildeo dons estranhos res inter alios actas Percebemos diretamente que a linguagem por mais orgacircnica e indispensaacutevel que seja natildeo pode acabar nada no mundo do pensamento onde nada fixa sua natureza transitiva Nossa atenccedilatildeo distingue-a de noacutes Nosso rigor como nosso fervor nos opotildeem a elaraquo

O pensar profundamente eis a meta Na medida em que o pensamento se ldquoapegardquo agrave linguagem verbal mdashlinguagem que o artificializa ao operar com as palavras incapazes de representar a sua transitoriedademdash naturalizando-a como as roupas ao corpo ao grau de natildeo raro ser incapaz de pensar atraveacutes de outras formas e por si soacute faz-se necessaacuterio uma espeacutecie de ldquo des-automatizaccedilatildeo do verbordquo uma purificaccedilatildeo Purificaccedilatildeo que ocorre no proacuteprio programa de autoconsciecircncia valeacuteryano na lucidez na atenccedilatildeo e no esforccedilo que este demanda e do qual a praacutetica dos Cahiers e como se veraacute da poesia pura satildeo exemplos praacuteticos Purificaccedilatildeo que eacute portanto a aquisiccedilatildeo de uma consciecircncia radical do funcionamento do pensamento sobretudo durante o processo mesmo de agir de fazer algo Conhecer as relaccedilotildees entre o pensamento e a linguagem deveria ser assim se postula uma prerrogativa primeira a qualquer filosofia ou a qualquer filoacutesofo e por extensatildeo a qualquer formulaccedilatildeo teoacuterica Isso garantiria que natildeo se fosse levado a crer que determinadas palavras devem necessariamente representar objetos reais porque a existecircncia de um signo natildeo eacute a prova ou a contra-prova da existecircncia daquilo que esse signo representa O espiacuterito a consciecircncia que almeja um poder de transformaccedilatildeo real sobre o mundo e sobre si mesmo deve ater-se agraves ligaccedilotildees entre o real e as representaccedilotildees do real deve garantir-se vigilante e constantemente laquo contra o perigo de parecer perseguir um objeto puramente verbalraquo Esse espiacuterito essa consciecircncia encarna-se naturalmente nos principais personagens conceituais de Valeacutery Leonardo e Teste seriam justamente aqueles que diferentemente dos filoacutesofos possuiriam atraveacutes do meacutetodo de um ou da negatividade do outro uma maior consciecircncia da linguagem buscando natildeo se deixar enredar pelo automatismo verbal ou por qualquer outra forma de automatismo

Consequumlentemente libertados do dogmatismo semacircntico do platonismo ou realismo semacircnticos libertados desse automatismo verbal plenamente inseridos num registro cientiacutefico e teacutecnico plenamente inseridos na Modernidade dir-se-ia que agora jaacute natildeo eacute mais a tarefa a de Valeacutery a do pensador (seria este agora denominado de filoacutesofo) saber o que eacute o Tempo o Deus o Ser o Signo ou o Amor etc mas muito mais a de verificar os diversos usos ou significados que as palavras tradicionalmente propiacutecias agrave especulaccedilatildeo metafiacutesica como Tempo Deus Ser Signo ou Amor etc podem adquirir num determinado discurso numa determinada forma num determinado tempo e espaccedilo Por vezes a tarefa tambeacutem eacute a de natildeo usar ou significar essas palavras ou a de propor outros usos ou significados a elas Porque natildeo haacute mais valores constantes mas valores funcionais porque natildeo haacute mais sentido responder portanto uma das questotildees outrora fundamentais para o Pensamento Ocidental ldquoo que uma coisa eacuterdquo faz muito mais sentido responder ldquoo que uma coisa pode serrdquo O que implicaria em avaliar as possibilidades passadas e a partir delas conjeturar possibilidades futuras em resultados efetivos e reais Com efeito que as palavras e as frases sejam mudadas que se conceda e se aceite tambeacutem os usos ou os significados que o outro faz das palavras e das frases e determinados desacordos se revelariam ilusoacuterios porque entatildeo se perceberia que por vezes as pessoas dizem a mesma coisa por meios distintos Se o almejado eacute uma possiacutevel conciliaccedilatildeo entre as reflexotildees de um e outro cumpre aceitar os subentendidos as referecircncias e os ocultamentos as generalizaccedilotildees e as exceccedilotildees os excessos e as retoacutericas que nos discursos habitam cumpre aceitar ainda que nem todos se utilizam dos mesmos meios das mesmas formas das mesmas palavras mdashou mesmo de palavrasmdash para seus discursos

Compreende-se enfim sob que pressuposto a criacutetica agrave filosofia de Valeacutery se erige na concepccedilatildeo de que natildeo haacute uma hierarquia entre os diversos sistemas de signos de que a linguagem verbal natildeo eacute superior nem inferior agraves outras formas de linguagem na tarefa de representar o pensamento e principalmente que o saber natildeo se reduz agrave palavra Por conseguinte denuncia-se mais uma vez como nos escritos sobre Teste e principalmente sobre Leonardo o logocentrismo o idealismo restritivo da ideologia que tradicionalmente encara o logos mdasho discurso conceitualmdash como o uacutenico caminho seguro para a verdade natildeo raro em detrimento de todas as outras formas de representaccedilatildeo Apesar dos quase incontestaacuteveis poderes de comunicaccedilatildeo que possui apesar de ser instrumento indispensaacutevel para a comunicaccedilatildeo cotidiana e para a ciecircncia a linguagem verbal possui sim precisatildeo mas relativa e natildeo absoluta estaacute circunscrita a sua aacuterea aquilo a que foi proposta Ela natildeo poderaacute dizer o que outras formas de comunicaccedilatildeo dizem assim como as outras formas de comunicaccedilatildeo natildeo poderatildeo dizer o que ela diz Natildeo haacute equivalecircncias natildeo haacute traduccedilotildees absolutas porque toda representaccedilatildeo natildeo deixa de ser uma abstraccedilatildeo ou reduccedilatildeo do representado do contraacuterio seria o proacuteprio representado Na concepccedilatildeo de Valeacutery a filosofia mdashquando definida apenas por sua forma verbalmdash seria enfim um fenocircmeno cultural uma modalidade uma forma de pensamento entre tantas outras possiacuteveis e irredutiacuteveis entre si

412 Filosofia como forma

Filoacutesofo Valeacutery jamais se considerou ou quis se considerar dizia natildeo ter a honra de o ser como dizia em determinadas ocasiotildees tambeacutem natildeo ser literato e ateacute mesmo poeta mdashtal atitude naturalmente faz parte da sua negatividademdash Doravante muitas de suas reflexotildees mesmo fragmentadas satildeo hoje cada vez mais comumente denominadas de filosoacuteficas (justamente porque a proacutepria filosofia transformou-se tornou-se mais analiacutetica) e a sua imagem ultimamente tende a ser pela heterogecircnea evoluccedilatildeo de sua crescente fortuna criacutetica mais a do pensador do que a do poeta O que constitui um surpreendente paradoxo historiograacutefico posto que natildeo raro para o poeta poesia e pensamento abstrato natildeo satildeo necessariamente excludentes e o proacuteprio pensamento quando operando na mais intensa autoconsciecircncia possiacutevel pode ser compreendido como um processo artiacutestico Eacute por tal discrepacircncia que a criacutetica que ele lanccedila a filosofia atraveacutes da sua laquo nettoyage de la situation verbaleraquo tambeacutem deve ser aqui restringida e relativizada

Essa criacutetica tem como alvo as obras que se estendem grosso modo ateacute este periacuteodo da Histoacuteria do Pensamento no qual o Idealismo Alematildeo em geral e o monumental sistema de Hegel em particular erigem-se simultaneamente como aacutepice e fim no qual a proacutepria filosofia mdashagrave parte o sempre presente incocircmodo dos ceacuteticos e empiristas agrave qual o poeta por vezes facilmente se aproximamdash eacute amiuacutede identificada com uma metafiacutesica idealista com uma construccedilatildeo que almeja compreender o mundo em uma totalidade de sentido fechada e orgacircnica e cumpre dizer natildeo com epistemologia anaacutelise linguumliacutestica ou criacutetica social caminhos estes mais prementes e fecundos no desiludido seacuteculo XX Valeacutery teve relativo contato com correntes a ele contemporacircneas portanto com hodiernas formas de pensamento que natildeo se estabelecem que natildeo se constroem apesar das compreensiacuteveis divergecircncias entre si a partir de um princiacutepio ontoloacutegico mas principiam por uma determinada perspectiva e recorte da realidade empiacuterica uma concretude social e linguumliacutestica As escassas tradiccedilotildees filosoacuteficas que amiuacutede fazem-se explicitamente presentes em seus escritos raramente ultrapassam esse periacuteodo Referecircncias diretas a Alain (um de seus primeiros inteacuterpretes) a filoacutesofos evolucionistas e espiritualistas como Henri Bergson e Teilhard de Chardin podem ser consideradas exceccedilotildees quiccedilaacute devido agrave amizade ou correspondecircncia que com estes o poeta cultivava

Os filoacutesofos aos quais se refere nos mais polecircmicos e divertidos comentaacuterios principalmente em seus Cahiers (nos quais sempre se daacute maior liberdade em dizer disparates em ser mais aacutecido do que em sua obra puacuteblica) pertencem a esse registro anterior que ele natildeo demora em qualificar de ldquoantigordquo os Preacute-socraacuteticos satildeo caricaturados como grifos cujos laquofragmentos [] nos fazem sonhar com vestiacutegios de touros alados cabeccedilas de leatildeo extraordinaacuterias coacutepulas de profundidade e de absurdoraquo Platatildeo apesar da expliacutecita influecircncia formal ou literaacuteria natildeo recebe muito creacutedito como um dos Pais do Ocidente sobretudo pelas consequumlecircncias da Teoria das Ideacuteias Aristoacuteteles poucas satildeo as foacutermulas que do filoacutesofo de Estagira se pode reter Plotino e Espinosa dois dos grandes monistas sofrem de uma tremenda ldquoingenuidaderdquo metafiacutesica e Kant eacute um laquoatordoadoraquo (laquoeacutetourdiraquo) que apesar da intrincada cesura epistemoloacutegica que instaura natildeo foi radical o suficiente em suas criacuteticas Pascal eacute certamente um dos mais atacados natildeo simplesmente porque desgosta da pintura mas principalmente porque diferentemente de Leonardo divide o espiacuterito a consciecircncia em meacutetodos distintos Quanto a Hegel Valeacutery diz com ldquocerto orgulhordquo que jamais o leu Em contrapartida pensadores (tambeacutem sistecircmicos) como Santo Tomaacutes de Aquino (por natildeo separar de todo o corpo e a alma e por natildeo rebaixar a razatildeo) como Llull e Leibniz (de ambos pela forccedila analiacutetica e pela conjetura de uma linguagem perfeita pura) possuem outro e relativo estatuto na sua contraditoacuteria hierarquia de valores e gostos Tambeacutem os que se estabelecem num registro de desconstruccedilatildeo da Metafiacutesica Ocidental como Marx Schopenhauer e Nietzsche parecem receber entretanto alguma e contida admiraccedilatildeo Das Kapital e Die Welt als Wille und Vorstellung lhe pareceram performances esplecircndidas e a aforiacutestica e contraditoacuteria obra do criador do Zaratustra moderno se natildeo lhe era um alimento era-lhe um verdadeiro excitante Todavia sobre os filoacutesofos as consideraccedilotildees de Valeacutery revelam toda a sua ambiguumlidade quando ele se refere a Descartes a ceacutelebre foacutermula ldquo cogito ergo sumrdquo certeza primeira e momento de superaccedilatildeo do ldquoceticismo metoacutedicordquo natildeo possui para o poeta ldquosentidordquo algum pois demonstra o quanto um homem pode ser laquoldquomedusadordquo pelo verbo Serraquo jaacute que o verbo ldquoserrdquo quando nada conecta tambeacutem carece de sentido todavia possui um grande ldquovalorrdquo natildeo eacute um ldquosilogismordquo ou um ldquopostuladordquo eacute um ldquoGolpe de estadordquo intelectual a afirmaccedilatildeo daquilo que ele denominou de egotismo cartesiano a afirmaccedilatildeo da consciecircncia do Eu que confia na sua proacutepria capacidade em formular um conhecimento seguro sobre si e sobre o mundo Egotismo do qual Valeacutery eacute herdeiro Enumerando-se assim o que ele escreveu sobre filoacutesofos especiacuteficos suas avaliaccedilotildees soam profundamente injustas quase crueacuteis Entretanto parece haver uma espeacutecie de burla de ironia e cinismo quanto a essas qualificaccedilotildees quando o leitor depara-se com frases como esta laquoEacute necessaacuterio ser profundamente injusto Senatildeo natildeo se misture nisso mdash Seja justoraquo

A importacircncia dessas irocircnicas consideraccedilotildees sobre filoacutesofos especiacuteficos reside em grande medida no conceito que Valeacutery formula sobre a ldquonaturezardquo ou ldquopraacuteticardquo da filosofia e natildeo apenas nas suas severas criacuteticas a ela Para o poeta laquo toda Filosofia eacute uma questatildeo de formaraquo mdashesse eacute um dos seus mais caracteriacutesticos leitmotivmdash laquoa forma mais compreensiacutevel que um determinado indiviacuteduo pode dar ao conjunto de suas experiecircncias internas ou externas e isso independente dos conhecimentos que possa possuir esse homemraquo isto eacute a organizaccedilatildeo que um determinado indiviacuteduo pode dar pelo discurso pela representaccedilatildeo verbal natildeo raro sistecircmica e doutrinaacuteria de tudo o que percebe conjetura e sonha de todas as suas lembranccedilas e esquecimentos de tudo o que pode condensar resumir A filosofia eacute nesse sentido uma tentativa de se passar no plano da representaccedilatildeo do caos agrave ordem ou melhor de dar ordem a certo caos uma tentativa de se hierarquizar em escalas de valores a realidade enquanto totalidade e unidade de sentido laquoA vasta empreitada da filosofia considerada no proacuteprio coraccedilatildeo do filoacutesofo consiste [] numa tentativa de transmutar tudo o que sabemos no que gostariacuteamos de saber e essa operaccedilatildeo exige ser efetuada ou ao menos apresentaacutevel numa certa ordemraquo Em qualquer lugar ou periacuteodo que ocorra a filosofia adveacutem das leituras e das interpretaccedilotildees das escutas e das conversas dessa divisatildeo e anaacutelise dessa soma e siacutenteses de sensaccedilotildees e reflexotildees sobre as experiecircncias dos sofrimentos daqueles e somente daqueles que a empreenderam eacute portanto consequumlecircncia de uma relaccedilatildeo relaccedilatildeo entre uma pessoa temperamento ou idiossincrasia frente agraves circunstacircncias particulares nas quais essa mesma pessoa inevitavelmente se insere a cada momento Daiacute a ecircnfase no seu caraacuteter eminentemente pessoal Contudo isso eacute justamente aquilo que a filosofia natildeo deseja ser Seu laquo viacutecio fundamentalraquo eacute a sua pretensatildeo agrave pura impessoalidade objetividade e universalidade a ser vaacutelida para todos e em qualquer periacuteodo ou lugar laquoEla eacute uma coisa pessoal e natildeo quer secirc-lo Ela quer formar como a ciecircncia um capital transmissiacutevel sempre crescente Daiacute os sistemas que pretendem ser de ningueacutemraquo

E essa pretensatildeo se explicita principalmente nas sempre fracassadas tentativas do filoacutesofo por vezes movido por boa-feacute ou por outros escamoteados interesses em fazer da sua filosofia uma Eacutetica e uma Esteacutetica e destas natildeo apenas disciplinas teoacutericas e hermenecircuticas mas doutrinas natildeo apenas descriccedilotildees e reflexotildees mas normas e regras Ele almeja laquoconstruir para si uma ciecircncia dos valores da accedilatildeo e uma ciecircncia dos valores da expressatildeo ou da criaccedilatildeo das emoccedilotildees mdash uma EacuteTICA e uma ESTEacuteTICA mdash como se o Palaacutecio do seu Pensamento tivesse de parecer-lhe imperfeito sem essas duas alas simeacutetricas nas quais seu Eu todo-poderoso e abstrato poderia manter cativa a paixatildeo a accedilatildeo a emoccedilatildeo e a invenccedilatildeo Todo o filoacutesofo depois que terminou com Deus com Si-Mesmo com Tempo o Espaccedilo a Mateacuteria as Categorias e as Essecircncias volta-se para os homens e suas obras Por conseguinte assim como havia inventado o Verdadeiro o Filoacutesofo inventou o Bem e o Belo e assim como havia inventado as regras de consonacircncia do pensamento isolado consigo mesmo do mesmo modo ocupou-se em prescrever regras de conformidade da accedilatildeo e da expressatildeo a preceitos ou a modelos subtraiacutedos aos caprichos e agraves duacutevidas de cada um pela consideraccedilatildeo de um Princiacutepio uacutenico e universal que ele precisa portanto antes de qualquer coisa e independente de toda a experiecircncia particular definir ou designar [] da mesma forma que ainda estamos bastante presos agrave ideacuteia de uma ciecircncia pura desenvolvida com todo rigor a partir de evidecircncias locais cujas propriedades poderiam estender-se indefinitivamente de identidade em identidade estamos ainda meio convencidos da existecircncia de uma Moral e de uma Beleza independentes dos tempos dos lugares das raccedilas e das pessoasraquo Em outras palavras apoacutes ter formulado a sua ordem isto eacute a sua filosofia o filoacutesofo volta-se mdashcomo tatildeo bem intuiu Nietzschemdash para o querer normatizar e regrar para o querer disciplinar controlar e comandar natildeo apenas a si mesmo mas tambeacutem e principalmente o outro o modo como o outro deve agir (Eacutetica) e o modo como o outro deve se expressar (Esteacutetica)

Todavia para Valeacutery todo esse movimento parte de um falso pressuposto Pois juiacutezos de valor como os representados pelas categorias de bem e mal de belo e feio soacute existem em relaccedilatildeo a um determinado tipo de sujeito que estabelecendo criteacuterio de distinccedilotildees o enuncia e que supostamente aceita para si para seu mundo a operacionalidade de tais juiacutezos Apesar de poderem ser culturalmente compartilhados juiacutezos de valor eacuteticos ou esteacuteticos ou melhor o significado e o valor de um modo de agir e de um modo de exprimir pertencem agrave esfera da subjetividade Aquele que manteacutem a pretensatildeo de fornecer ou de impor uma filosofia aplicaacutevel a todos os outros ignora ou finge ignorar que os outros natildeo precisam aderir necessariamente agraves mesmas crenccedilas Eacutetica e Esteacutetica soacute podem ser disciplinas teoacutericas e hermenecircuticas descriccedilotildees e reflexotildees do contraacuterio configuram-se como laquoproblemas de legislaccedilatildeo de estatiacutestica de histoacuteria ou de fisiologia em ilusotildees perdidasraquo Para o poeta toda filosofia natildeo deixa de ser assim consciente ou inconscientemente uma autobiografia cuidadosamente velada do proacuteprio filoacutesofo que a faz e todos os problemas filosoacuteficos antropomorfismos natildeo raro falseados em verdades

Eacute vatildeo toda a pretensatildeo em desejar tornar pura impessoal objetiva e universal a forma a ordem pessoal que constitui qualquer filosofia Porque afinal o mundo eacute prenhe de cores e contrastes de diferenccedilas E em cada momento o outro a existecircncia do outro a existecircncia de modos de pensar e de viver diferentes daquele que se crecirc como o correto e o verdadeiro denuncia a extrema fragilidade das filosofias enquanto doutrinas universais e incita naturalmente a adesatildeo a um maior ldquorelativismordquo laquoNa verdade a existecircncia dos outros eacute sempre inquietante para o esplecircndido egoiacutesmo de um pensador Pode acontecer no entanto que ele natildeo se choque com o grande enigma que o arbitraacuterio de outrem lhe propotildee O sentimento o pensamento o ato de outrem quase sempre nos parecem arbitraacuterios Toda preferecircncia que damos aos nossos noacutes a fortificamos mediante uma necessidade da qual acreditamos ser o agente Mas afinal o outro existe e o enigma nos oprimeraquo Daiacute Valeacutery reconhecer que natildeo eacute possiacutevel ou ao menos extremamente difiacutecil o consenso absoluto a compatibilidade exata entre os variados sistemas ou doutrinas filosoacuteficas entre as variadas eacuteticas e esteacuteticas daiacute tambeacutem dizer natildeo sem ironia considerar um laquoproblema capital da filosofiaraquo a seguinte pergunta astuta e relativamente proacutexima do tropo ceacutetico da diaphocircnia das opiniotildees laquo Como isto pode acontecer que exista mais de uma filosofiaraquo [Grifo do autor] Que esta entatildeo seja aquilo que natildeo pode deixar de ser forma ou ordem pessoal

Assim sendo o poeta natildeo pode deixar de considerar a filosofia tambeacutem como um modo de vida Sabe entretanto que na Modernidade este tende a se dissociar daquela algo pouco frequumlente no pensamento da Antiguumlidade Claacutessica e do Oriente Um estoacuteico um ceacutetico e um ciacutenico um Soacutecrates e um Dioacutegenes um platocircnico todos ou quase todos aqueles que se integravam agraves escolas filosoacuteficas natildeo compreendiam as doutrinas como separadas como isoladas da vida Para esses homens tatildeo distantes da fragmentada vida moderna treinados a pensar o mundo como racionalmente ordenado a filosofia seu centro localizava-se muito mais numa determinada e correta atitude ante o mundo ante o outro e ante si mesmo natildeo apenas em sua interpretaccedilatildeo e compreensatildeo em sua teorizaccedilatildeo Era realmente um modo de vida associado ou relativo a uma forma ou ordem pessoal de compreender o mundo e natildeo apenas uma forma ou ordem pessoal de compreender o mundo Com isso revela-se algo fundamental na condiccedilatildeo de grande parte do pensamento da Modernidade o filoacutesofo (agora mero autor ou escritor) pode ser algo totalmente dissociado e dissonante de sua proacutepria filosofia (agora mera obra ou escritura) Mas Valeacutery mdashao menos no que se depreende de seu proacuteprio programa de autoconsciecircnciamdash natildeo credita que essa dissociaccedilatildeo seja necessariamente adequada ou salutar para o sujeito o pensamento cumpre ser sim um instrumento para a vida mdashpois ele jaacute eacute uma resposta para a vidamdash

Por isso e por tantas foacutermulas paradoxais sobre a impermanecircncia do espiacuterito da consciecircncia e do mundo alguns criacuteticos o aproximaram natildeo apenas do Pensamento Antigo mas tambeacutem do pensamento do Oriente em particular do Budismo segundo o qual a ldquofilosofiardquo natildeo passa de um veiacuteculo tal qual um barco usado para atravessar um rio mas que deve ser abandonado na outra margem jaacute que de nada serviria carregaacute-lo em terra Para o poeta toda laquoFilosofia eacute vatilde quando natildeo tende a modificar os filoacutesofos em profundidade - ou mais filoacutesofo (no meu sentido) eacute aquele que tende a se modificar em profundidade atraveacutes de exerciacutecios [] de atos propriamente emanados do espiacuteritoraquo O valor do pensamento ou de uma teoria reside menos na verdade que esse pensamento e essa teoria possam conter e como Leonardo e sobretudo Teste demonstram mais nos efeitos que possam causar no espiacuterito na consciecircncia na capacidade em modificar ou eliminar crenccedilas haacutebitos mentais laquoO verdadeiro valor das lsquoteoriasrsquorsquo natildeo eacute o valor teoacuterico Mas antes os efeitos reaisraquo A mera reflexatildeo sobre o mundo possui relativa importacircncia se natildeo tem como fim fazer daquele que reflete cada vez mais senhor de si mesmo consciente de seus poderes de suas possibilidades de sua accedilatildeo de seu fazer

413 Filosofia como literatura

O modo como Valeacutery encara a filosofia eacute portanto extremamente ambiacuteguo Se por um lado ele a repudia a condena sem poupar duras criacuteticas como uma praacutetica esteacuteril natildeo cientiacutefica e verbal natildeo raro desprovida da consciecircncia dessas caracteriacutesticas e por isso fadada a um labirinto de falsos problemas por outro como nas passagens finais de Leacuteonard et les philosophes a resgata a salva mdashe o que eacute surpreendente natildeo raro justamente pelo mesmo motivo justamente pelos mesmos argumentos por ser natildeo cientiacutefica e verbalmdash natildeo apenas como um modo de vida o que na Modernidade eacute para ele bastante difiacutecil mas tambeacutem e explicitamente como um laquo gecircnero literaacuterio particularraquo na medida em que ela natildeo deixa de ser como a poesia da qual natildeo deseja se identificar um uso particular das palavras distante do pragmaacutetico uso cotidiano ordinaacuterio A filosofia laquodefinida por sua obra que eacute obra escritaraquo assim sintetiza Valeacutery laquoeacute objetivamente um gecircnero literaacuterio particular caracterizado por certos assuntos e pela frequumlecircncia de certos termos e de certas formas Esse gecircnero tatildeo particular de trabalho mental e de produccedilatildeo verbal tem pretensotildees no entanto a uma situaccedilatildeo suprema pela generalidade de seus propoacutesitos e de suas foacutermulas mas como ele eacute destituiacutedo de toda e qualquer comprovaccedilatildeo exterior como natildeo culmina na instituiccedilatildeo de nenhum poder como essa generalidade mesma que evoca natildeo pode e nem deve ser considerada transitoacuteria como meio nem como expressatildeo de resultados comprovaacuteveis devemos colocaacute-lo natildeo muito afastado da poesiaraquo

Essas palavras revelam a polecircmica perspectiva a siacutentese na qual desemboca o mdashporque natildeo dizer contraditoacuteriomdash pensamento do poeta acerca da filosofia o qual tambeacutem pode ser assim enunciado ao criticar a filosofia Valeacutery a estetiza a compreende como arte ao criticar o filoacutesofo Valeacutery o compreende como artista um artista que em geral se ignora que natildeo possui consciecircncia do caraacuteter ficcional ou ao menos dos elementos ficcionais do seu proacuteprio pensamento Nessa valoraccedilatildeo talvez resida uma outra e uacuteltima estrateacutegia da sua proacutepria criacutetica mais humorada mas tambeacutem muito mais desconcertante do que simplesmente apontar as supostas ilusotildees nas quais adentra a filosofia seus possiacuteveis contra-sensos Pois diante de qualquer argumento pode-se muito bem contra-argumentar diante de uma proposiccedilatildeo pode-se muito bem apresentar a proposiccedilatildeo contraacuteria mas diante de um ldquo juiacutezo esteacuteticordquo diante de uma confissatildeo de uma assertiva de caraacuteter pessoal que reza simplesmente desconfiar da verdade de uma doutrina e em contrapartida tambeacutem reza sentir a harmonia e a beleza dessa mesma doutrina o jogo torna-se outro Dir-se-ia que natildeo se pode refutar o que um outro sente ou diz sentir natildeo se pode refutar o que um outro aprecia ou diz apreciar natildeo se pode simplesmente porque mdashse for dado creacutedito a esse outromdash natildeo faz sentido refutar a interioridade alheia Interioridade somente acessiacutevel agravequele eu que a vive

Contudo a justificativa para tal valoraccedilatildeo se baseia em grande medida numa certa ldquo consciecircncia histoacutericardquo na compreensatildeo das possibilidades e impossibilidades do tempo presente no tipo de escrita que eacute hoje passiacutevel de ser escrita e no tipo de crenccedila que eacute hoje passiacutevel de ser creditada Porque talvez somente laquouma interpretaccedilatildeo esteacuteticaraquo poderia realmente resgatar salvar a filosofia do processo de laicizaccedilatildeo da Modernidade do desenvolvimento da Matemaacutetica e da Ciecircncia Moderna e do desenvolvimento do espiacuterito que analisa minuciosamente tudo pelo prisma da linguagem somente assim poder-se-ia laquosubtrair agrave ruiacutena de seus postulados mais ou menos ocultos aos efeitos destrutivos da anaacutelise da linguagem e do espiacuterito os veneraacuteveis monumentos da metafiacutesicaraquo Afinal o que restaria dessa atividade tatildeo intensamente praticada idolatrada e vituperada mas laquoassediada obsedada por descobertas cuja imprevisibilidade deu origem agraves maiores duacutevidas sobre sua virtude e sobre os valores das ideacuteias e das deduccedilotildees do espiacuterito reduzido Em que se transforma quando pressionada oprimida atravessada surpreendida a cada instante pela furiosa atividade das ciecircncias fiacutesicas [] hostilizada e ameaccedilada em seus haacutebitos os mais antigos os mais tenazes (e talvez os mais lamentaacuteveis) pelo trabalho lento e minucioso dos filoacutelogos e dos linguumlistas Em que se transforma Eu penso e em que se transforma Eu existo O que se torna ou o que volta a ser esse verbo Ser que fez uma carreira tatildeo grande no vazioraquo A perspectiva de Valeacutery como notou Jean Sebeski aproxima-se assim da perspectiva de Carnap segundo o qual o metafiacutesico eacute um laquomuacutesico sem talento musicalraquo Mas haacute uma diferenccedila capital Enquanto o filoacutesofo parte para o desdenho no intento positivista de purgar o pensamento racional de toda a preocupaccedilatildeo e de todo elemento ontoloacutegico o poeta encara a proacutepria metafiacutesica como uma forma de arte realmente genuiacutena O poeta ousa inclusive comparaacute-la agraves grandes estaacutetuas de distantes eacutepocas cuja funccedilatildeo maacutegico-ritual foi pouco a pouco abolida e substituiacuteda por uma funccedilatildeo esteacutetica quando entatildeo o que eacute deveras caracteriacutestico da Modernidade laica a estaacutetua do deus tornou-se obra de arte laquo o iacutedolo se fez beloraquo laquoPoderia eu sem chocarraquo pergunta-se Valeacutery laquosem irritar cruelmente o sentimento filosoacutefico comparar essas verdades tatildeo adoradas esses princiacutepios essas Ideacuteias esse Ser essas Essecircncias essas Categorias esses Nuacutemenos esses Universo toda essa infinidade de noccedilotildees que parecem sucessivamente necessaacuterias aos iacutedolos de que eu estava falando Indaguem-se agora que filosofia seria para a filosofia tradicional o que eacute uma estaacutetua do seacuteculo V para as divindades sem rosto dos seacuteculos muito remotosraquo Em outras palavras se a filosofia se dessacraliza se a crenccedila no conteuacutedo nos conceitos de uma filosofia desaparece ou se transforma radicalmente entatildeo que ao menos permaneccedila a sua forma que ao menos permaneccedila reabilitada como forma laquoSeraacute possiacutevel que o filoacutesofo pense que uma Eacutetica ou uma Monadologia sejam coisas mais seacuterias que uma suite em reacute menorraquo o poeta novamente se pergunta laquoSe refutarmos um Platatildeo um Espinosa natildeo restaraacute pois nada de suas espantosas construccedilotildees Natildeo resta absolutamente nada se natildeo restarem obras de arteraquo Exposta assim de modo intenso dramaacutetico essa concepccedilatildeo remete mais ao estetismo de um Oscar Wilde do que de um Novalis e sobretudo de um Mallarmeacute para quem mdashlaquoo mundo foi feito para terminar num belo livroraquo (laquole monde est fait pour aboutir agrave un beau livreraquo)mdash

A proposta em estetizar a filosofia natildeo deixa de ser fruto de uma concepccedilatildeo de mundo que preza ou priorize o lado formal da existecircncia (em contraposiccedilatildeo aos ldquoidealismosrdquo e ldquoessencialismosrdquo) o lado loacutegico ou semioacutetico Proposta essa que reverberou numa determinada genealogia da literatura posterior Basta pensar nas obsessotildees metafiacutesicas de um Jorge Luis Borges e nos jogos metalinguumliacutesticos de um Iacutetalo Calvino autores confessadamente influenciados por Valeacutery basta pensar nesse tipo de ficccedilatildeo e poesia por vezes denominada Poacutes-moderna na qual haacute uma permanecircncia tanto de referecircncias a diversas tradiccedilotildees de pensamento quanto de questionamentos acerca da estrutura ontoloacutegica da realidade Estetizar a filosofia aponta assim para um ideaacuterio literaacuterio possiacutevel cujo objetivo eacute sobretudo transformar ou encarar a proacutepria filosofia seus sistemas ou doutrinas seus filosofemas suas perguntas e respostas suas problemaacuteticas assim como as problemaacuteticas gnosioloacutegicas e epistemoloacutegicas em literatura ou melhor em literatura fantaacutestica Os poemas os personagens conceituais e os diaacutelogos socraacuteticos de Valeacutery assim como suas Histoires briseacutees e em seus projetos de contos contidos em seus Cahier natildeo deixam de ser exemplos praacuteticos dessa proposta laquoDecirc-me uma pluma um papelraquo provocava o poeta laquomdash que eu vos escreverei um livro de histoacuteria um texto sagrado como o Alcoratildeo ou os Vedas Eu inventarei um rei da Franccedila uma cosmogonia uma moral e uma gnose O que preveniria um ignorante e uma crianccedila que eu os engane Em que eacute diferente a imaginaccedilatildeo excitada por textos falsos da imaginaccedilatildeo excitada por textos autecircnticosraquo

O estetismo de Valeacutery estaacute portanto intimamente relacionado com essa sua desconfianccedila ante as pretensotildees da filosofia agrave pura impessoalidade objetividade e universalidade ante as pretensotildees dos filoacutesofos a modificar a vida Escrever literatura fazer arte tambeacutem acaba se tornando para o poeta um natildeo pretender dogmatizar reflexotildees metafiacutesicas um natildeo passar a valorar conjeturas como verdades Ele compreende e faz compreender enfim que o pensamento deve ser livre do opressivo dever de buscar pela proacutepria verdade (o que natildeo impede de se ir buscaacute-la) que laquoo ensinamento da filosofia quando natildeo eacute acompanhado do ensinamento da liberdade de cada espiacuterito natildeo soacute com relaccedilatildeo agraves doutrinas mas tambeacutem com relaccedilatildeo aos proacuteprios problemas eacute a meu ver antifilosoacutefico Trata-se de criar a necessidade de uma voluacutepia de filosofarraquo Se a filosofia natildeo cumpre ser feita por prazer cumpre ser feita com prazer

5 Poeacutetica

Agrave anulaccedilatildeo da razatildeo como caminho para aquele autecircntico humano preferiu o excesso de razatildeo de trabalho intelectual na luta pelo autecircntico

Joatildeo Cabral de Melo Neto Joan Miroacute

51 Poesia criacutetica

A Poeacutetica Claacutessica de Platatildeo a Horaacutecio e outros passando por Aristoacuteteles possui em geral um caraacuteter descritivo e ou um caraacuteter prescritivo em outras palavras almeja respectivamente descrever a poesia feita ateacute entatildeo teorizaacute-la em termos de passado ou prescrever regras do que seria a boa poesia teorizaacute-la em termos de futuro Naturalmente essa distinccedilatildeo mais didaacutetica do que efetiva ocorre por vezes de um modo natildeo muito preciso Uma mesma obra poeacutetica pode ser ambiguamente tanto normativa quanto prescritiva dependendo das passagens que se escolha e interprete

Doravante esse duplo caraacuteter permanece na Poeacutetica Moderna apesar desta ser natildeo raro mais refrataacuteria agrave formulaccedilatildeo de regras fixas para o proacuteprio fazer poeacutetico consciente do problemaacutetico dogmatismo que frequumlentemente surge quando o filoacutesofo ou o teoacuterico se propotildee a guiar o poeta ou qualquer forma de arte Entretanto com o desenvolvimento na histoacuteria da poesia da necessidade em se expressar uma consciecircncia criacutetica de um eu ou uma voz cada vez mais expliacutecito e de um impulso por vezes confessional e autobiograacutefico por parte dos poetas desenvolve-se e acentua-se um terceiro caraacuteter que natildeo raro mescla-se e se confunde aos outros dois de um modo por vezes indissociaacutevel agora com uma insistente frequumlecircncia natildeo satildeo apenas os filoacutesofos ou os teoacutericos que teorizam sobre o fazer poeacutetico mas tambeacutem os proacuteprios poetas os proacuteprios fazedores de poemas E estes diferentemente daqueles amiuacutede fazem uma poeacutetica na qual natildeo somente descrevem padrotildees poeacuteticos passados e ou futuros natildeo somente descrevem e ou prescrevem mas tambeacutem chegam a refletir mdashe ousam revelarmdash as suas opccedilotildees esteacuteticas os seus itineraacuterios os seus processos as suas consideraccedilotildees pessoais acerca da poesia e por vezes o que eacute mais significativo os seus proacuteprios modos de fazer o poema as suas proacuteprias operaccedilotildees durante o fazer o poema Os avanccedilos e os retrocessos os acertos e os erros os acreacutescimos e os cortes as inuacutemeras decisotildees os acasos os arrependimentos as noites de vigiacutelia toda uma seacuterie de eventos outrora relativamente ocultados ou esquecidos tambeacutem agora podem ser expostos agrave luz sem que isso venha necessariamente enfraquecer a poesia do poeta que expotildee tais eventos seja atraveacutes de obras teoacutericas em prosa ou mesmo em poemas Os poetas tornam-se ou melhor revelaram ser mdashem palavras em escritosmdash o que sempre foram comentadores e inteacuterpretes criacuteticos de si mesmos de suas proacuteprias criaccedilotildees pois laquotodos os poetas verdadeiros satildeo necessariamente criacuteticos de primeira ordemraquo A poesia se revela extremamente criacutetica

Poe pode ser considerado como um dos principais arautos dessa concepccedilatildeo do que seja a poeacutetica a Poeacutetica Moderna seus ensaios The poetic principle e Philosophy of composition tornaram-se canocircnicos quanto a isso mesmo que soem para alguns leitores contemporacircneos relativamente artificiosos O paradigma que nesses ensaios se encerra influenciou em muito uma plural linhagem de poetas modernos altamente conscientes das possibilidades e dos limites da liacutengua que vai de Baudelaire a Mallarmeacute e chega a Valeacutery o qual acentua e modifica essas caracteriacutesticas a um grau extremo A laquoera de autoridade nas artes haacute muito tempo estaacute terminadaraquo lecirc-se na sua Premiegravere leccedilon du cours de poeacutetique laquoe a palavra ldquoPoeacuteticardquo soacute desperta agora a ideacuteia de prescriccedilotildees incocircmodas e antiquadas Acreditei entatildeo poder resgataacute-la em um sentido que contempla a etimologia sem ousar contudo pronunciaacute-la Poiumleacutetique [palavra] da qual a fisiologia se serve quando fala de funccedilotildees hematopoeacuteticas ou galactopoeacuteticas Mas eacute enfim a noccedilatildeo bem simples de fazer que eu queria exprimir O fazer o poiumlein do qual desejo me ocupar eacute aquele que termina em alguma obra e que eu acabarei restringindo em breve a esse gecircnero de obras que se convencionou chamar de obras do espiacuterito Satildeo aquelas que os espiacuteritos fazem para seu proacuteprio uso empregando para esse fim todos os meios fiacutesicos que possam lhe servirraquo

Questions de poeacutesie Poeacutesie et penseacutee abstraite Propos sur la poeacutesie Neacutecessiteacute de la poeacutesie Celepin drsquoun poegravete Fragments des meacutemoires drsquoun poegraveme Le prince et la Jeune Parque Au sujet du lsquoCimetiegravere Marinrsquo Commentaire de lsquoCharmesrsquo etc assim como certas paacuteginas dos Cahiers satildeo outros tantos escritos nos quais esse caraacuteter eminentemente pessoal eacute assumido A reflexatildeo sobre a poesia e sobre o fazer poeacutetico mdashisto eacute a poeacutetica como aqui entatildeo se compreendemdash transforma-se ou se expande nesses escritos como que inevitavelmente em um discurso sobre a linguagem (natildeo por acaso que muito da criacutetica agrave filosofia tecida pelo poeta tambeacutem neles se encontram e com ela se confundem) revelando assim toda a concepccedilatildeo ldquoesteacuteticardquo valeacuteryana esta que mdashparticularizaccedilatildeo de sua concepccedilatildeo geral das atividades humanasmdash preza mais laquo a accedilatildeo que faz do que a coisa feitaraquo o fazer do que o resultado do fazer a feitura do poema do que o poema Concepccedilatildeo que tambeacutem pode ser sintetizada pela seguinte maacutexima inuacutemeras vezes atualizada laquoEacute a execuccedilatildeo de um poema que eacute um poemaraquo (laquoCrsquoest lrsquoeacutexecution du poegraveme qui est le poegravemeraquo) Porque eacute na execuccedilatildeo das coisas que para o poeta o valor das coisas adquire legitimidade

511 Poesia pura

O poeta diz e ao dizer faz Este fazer eacute sobretudo um fazer-se a si mesmo a poesia natildeo eacute soacute autoconhecimento mas tambeacutem autocriaccedilatildeo

Octaacutevio Paz Os filhos do limbo

A Antiguumlidade Claacutessica frequumlentemente compreende a poesia como o resultado de uma tendecircncia natural agrave imitaccedilatildeo mas apresenta divergecircncias significativas quanto ao estatuto desta seu lugar na hierarquia de valores das atividades humanas No capiacutetulo X da Repuacuteblica Platatildeo contemplando a capacidade da poesia em excitar as emoccedilotildees notadamente do verso dramaacutetico condena-a e expulsa-a da cidade ideal por perturbar a alma que natildeo deve ser escrava mas senhora das paixotildees Na Poeacutetica Aristoacuteteles contemplando a capacidade da poesia em representar o universal notadamente da trageacutedia valora-a como verdade todavia uma verdade que estaacute agrave meia distacircncia entre a historiografia inferior a ela e a filosofia superior a ela De qualquer modo seja em qual gecircnero ou forma encarne seja a que propoacutesito sirva a poesia seu estatuto hieraacuterquico dado pelo pensamento filosoacutefico raramente foi de igual ou superior valor ao proacuteprio pensamento filosoacutefico este quase sempre se considerou um aacutepice entre todas as inuacutemeras modalidades do pensar dir-se-ia natildeo sem muito exagero que aquele que trabalha atraveacutes da ldquorazatildeordquo daacute-se o direito de ter razatildeo Concomitantemente a faculdade da imaginaccedilatildeo amiuacutede associada ao trabalho poeacutetico apesar de ser um ldquoveiacuteculordquo poderoso na manutenccedilatildeo da memoacuteria e da identidade tambeacutem natildeo deixou de ser valorada de um modo relativamente anaacutelogo Quiccedilaacute somente com o pensamento de Vico confessadamente avesso ao racionalismo cartesiano e sensiacutevel agrave forccedila poeacutetica do mito na formaccedilatildeo e no destino das civilizaccedilotildees e em certas vertentes do Romantismo como no caso do pensamento de Schiller que chega a identificar o estado poeacutetico com o absoluto eacute que essa perspectiva no cenaacuterio do Pensamento Ocidental comeccedila a se transformar As emoccedilotildees natildeo satildeo mais compreendidas apenas por uma perspectiva estoacuteica como estados necessariamente negativos e a poesia passa a ser julgada natildeo mais como uma verdade parcial incompleta imperfeita mas como um mundo de sentido pleno

Todavia mesmo natildeo sendo mais considerada como inferior ao pensamento filosoacutefico haacute toda uma mentalidade uma corrente relativamente dominante que a compreende e julga como contraacuteria ao proacuteprio pensamento filosoacutefico como algo pouco racional ou puramente irracional como sendo o resultado direto de emoccedilotildees sem a mediaccedilatildeo do intelecto e como tal visando despertar no outro no ouvinte ou leitor de poesia emoccedilotildees relativamente anaacutelogas a poesia como um objeto verbal feito pela faculdade da imaginaccedilatildeo e para a faculdade da imaginaccedilatildeo e nada mais a poesia como um furor verbal e nada mais Consequumlentemente o poeta tambeacutem acaba sendo estereotipado e muito como uma idiossincrasia contraacuteria agrave do filoacutesofo como relativamente incapaz de um pensamento rigoroso e analiacutetico conceitual em se ater demoradamente no caminho da razatildeo posto cegamente entregue ao intenso mundo dos sentimentos e das emoccedilotildees das imagens

eacute justamente contra essa mentalidade contra essa corrente que a poeacutetica de Valeacutery se insurge laquoEu aspiro uma arte toda fundada sobre a inteligecircnciaraquo escreve ele laquomdash isto eacute natildeo excluindo os inconscientes (o que natildeo faria sentido) mas os evocando [] segundo a ocasiatildeo e sobretudo os provocando assinalando-lhes os problemasraquo Sem jamais adentrar na perspectiva de Vico atrelada a preocupaccedilotildees teoloacutegicas e a do Romantismo que na sua perspectiva natildeo raro exagera e eleva a poesia e o poeta a patamares miacuteticos e divinos ele compreende de um outro modo a arte que praticou com tanta precisatildeo e preciosismo como uma ativaccedilatildeo das potencialidades do intelecto como uma laquofesta do Intelectoraquo Dir-se-ia que ele concilia mdashou reconcilia posto ser legiacutetimo pensar que ldquooriginalmenterdquo havia uma unidade das esferas de sentidos e atividadesmdash a poesia e o pensamento ou nas suas proacuteprias palavras a poesia ( poeacutesie) e o pensamento abstrato ( penseacutee abstraite) conceitual a praacutetica do poeta e a praacutetica do pensador a razatildeo e a imaginaccedilatildeo a razatildeo de Teste e a imaginaccedilatildeo de Leonardo Essa conciliaccedilatildeo mdashnatildeo distante ou mesmo complementar a da empreendida entre corpo e alma executada nos seus diaacutelogos socraacuteticosmdash estaacute sob o signo do conceito ou do ideaacuterio esteacutetico daquilo que comumente se designa com a polecircmica expressatildeo poesia pura ( poeacutesie pure) E esta pode ser interpretada aqui atraveacutes de dois ideais que no fundo satildeo indissociaacuteveis o que postula aquilo que o poema deve se tornar e o que postula aquilo que o fazer o poema deve se tornar

Com relaccedilatildeo ao primeiro ideal a poeacutetica de Valeacutery natildeo deixa de ser herdeira e criacutetica de uma variada corrente de poetas e artistas aquela que iraacute determinar em muito o destino da Modernidade literaacuteria do seacuteculo XX o Simbolismo As intensas leituras de poetas como Poe e Baudelaire Verlaine e Rimbaud e posteriormente quando jaacute morando Paris o haacutebito de frequumlentar mdashtal como W B Yeats Rainer Maria Rilke Stefan George Oscar Wilde e Andreacute Gidemdash na Rue Rome agraves terccedilas-feiras as soireacutees no salatildeo de seu mais querido e enigmaacutetico mestre Mallarmeacute que promovia discussotildees interminaacuteveis acerca do trabalho e do destino do mundo artiacutestico e filosoacutefico eis o que talvez tenha alimentado num jovem poeta da proviacutencia uma certa imagem da poesia e o ldquo encorajourdquo mdashnote-semdash natildeo agrave escritura de poemas mas a empreender reflexotildees a escrever sobre o fazer poeacutetico (Haacute que se dizer que o primeiro encontro de Valeacutery com Mallarmeacute ocorreu justamente logo apoacutes o periacuteodo de crise e a Noite de Gecircnova portanto logo apoacutes a decisatildeo natildeo cumprida em abandonar a poesia mas tambeacutem logo apoacutes a decisatildeo em escrever sobre o espiacuterito)

Entretanto segundo o proacuteprio poeta soacute muito dificilmente o Simbolismo pode ser compreendido como uma escola Falta-lhe coerecircncia Os seus protagonistas pareciam estar trilhando caminhos proacuteprios e irredutiacuteveis exercitavam-se em invenccedilotildees e experimentaccedilotildees as mais diversas e natildeo raro divergentes entre si Contudo se os simbolistas natildeo possuiacuteam uma esteacutetica comum possuiacuteam uma eacutetica comum e eacute somente a partir dessa eacutetica que padrotildees e procedimentos estiliacutesticos podem ser hoje relativamente depreendidos e estudados O que os une eacute antes uma devoccedilatildeo religiosa e asceacutetica para com a poesia como exerciacutecio verbal extremo Uma devoccedilatildeo num tal grau que ldquodesconsiderardquo o puacuteblico leitor a comunicaccedilatildeo clara popular frequumlentemente almejada por correntes relativamente antagocircnicas como o Realismo e o Naturalismo das quais Valeacutery sempre se distanciou Dir-se-ia que por essa eacutetica cumpre ao poeta escrever um poema sobre um objeto qualquer mas jamais revelar qual objeto eacute esse cumpre ao poeta escondecirc-lo atraveacutes do poema este se torna portanto como que o ocultamento daquilo a que se refere o siacutembolo de algo jamais dito jamais profanado jamais maculado e que ao fim pode representar para os muacuteltiplos leitores muito mais objetos do que originalmente intuiu o poeta ao compocirc-lo se realmente ele o intuiu ou se apenas o escreveu e nada mais O poeta pinta natildeo a coisa mas a sua ausecircncia o efeito que ela produz ou pode produzir e a poesia torna-se por conseguinte um artefato verbal extremamente hermeacutetico difiacutecil diante do qual o leitor eacute como que convidado a agir como uma espeacutecie de decifrador de adivinho a adivinhar o que estaacute sempre a lhe fugir Nessa perspectiva o Simbolismo acaba se tornando como que uma incessante busca atraveacutes de diversos caminhos em representar verbalmente o que natildeo eacute passiacutevel de ser representado verbalmente algo indiziacutevel inefaacutevel Natildeo agrave toa compreender de modo geneacuterico a metaacutefora em contrapartida com a rigidez semacircntica da alegoria como o centro ou a partiacutecula uacuteltima da poesia que preze pela musicalidade pelo espiritualismo e pelo misticismo

Eacute nesse contexto que o conceito de poesia pura nasce e se desenvolve Jaacute presente nas poeacuteticas de Poe Baudelaire e Mallarmeacute como sendo justamente essa poesia musical espiritual e miacutestica refrataacuteria agrave interpretaccedilatildeo que parte de uma loacutegica tradicional adquire em Valeacutery mdashprincipalmente a partir de seu ceacutelebre Avant-propos agrave la Connaissance de la deacuteesse livro de Lucien Fabremdash forccedila teoacuterica e novos contornos Refere-se na perspectiva do que um poema deve se tornar a um afastamento a um distanciamento da prosa mais especificamente da prosa narrativa em outras palavras a poesia pura seria a realizaccedilatildeo do poema purgado das formas prosaicas e narrativas purgado do reacutecit poema que assim ficaria reduzido simplificado a um estado puramente poeacutetico a poesia pura seria o estado de pura poesia Essa concepccedilatildeo claramente moderna acaba considerando consequumlentemente gecircneros poeacuteticos claacutessicos como o mito a faacutebula a eacutepica e a trageacutedia poemas impuros (o que naturalmente natildeo quer dizer que tenham um valor hierarquicamente inferior) jaacute que estes satildeo tambeacutem narrativos passiveis natildeo raro de serem recontados e recontados de um outro modo Mas tambeacutem pressupotildee por conseguinte a distinccedilatildeo ideal relativamente riacutegida no pensamento valeacuteryano entre prosa e poesia Em termos riacutegidos a prosa seria o discurso verbal que tende a adquirir uma significaccedilatildeo a mais uniacutevoca possiacutevel que preza mais pelo significado do que pelo som no qual elementos gratuitos entrariam em jogo e consequumlentemente quando parafraseada manteria o propoacutesito de sua mensagem a poesia ao contraacuterio seria um discurso verbal que tende a uma significaccedilatildeo a mais plural possiacutevel que preza tanto pelo significado como pelo som (e por vezes mais pelo som) no qual nenhum elemento gratuito entraria em jogo e consequumlentemente quando parafraseado deixaria de ser Para usar de recorrentes metaacuteforas a prosa eacute como uma linha ou um caminhar a poesia como um ciacuterculo ou uma danccedilar

Daiacute Valeacutery constantemente refletir que laquo Natildeo se pode resumir um poema como se resume um ldquouniversordquo Resumir uma tese eacute reter-lhe o essencial Resumir (ou substituir por um esquema) uma obra de arte eacute perder-lhe o essencial Vecirc-se o quanto essa circunstacircncia (se se compreender o seu alcance) torna ilusoacuteria a anaacutelise do estetaraquo A ceacutelebre e por vezes didaacutetica divisatildeo entre forma e conteuacutedo tenderia assim a desaparecer no poema (ou na obra de arte) quando este aspira a ser poesia pura (ou na obra de arte pura) laquoNo universo liacutericoraquo continua Valeacutery laquocada instante deve consumir uma alianccedila indefiniacutevel entre o sentido e o significado Resulta daiacute que a composiccedilatildeo eacute de alguma forma contiacutenua e natildeo pode se isolar em um outro tempo que natildeo aquele da execuccedilatildeo Natildeo haacute tempo para o ldquoconteuacutedordquo e um tempo para a ldquoformardquo e a composiccedilatildeo nesse gecircnero se opotildee natildeo somente agrave desordem ou agrave desproporccedilatildeo mas tambeacutem agrave decomposiccedilatildeo Se o sentido e o som (ou se o conteuacutedo e a forma) podem ser facilmente dissociados o poema se decompotildee Consequumlecircncia fundamental as ldquoideacuteiasrdquo que aparecem em uma obra poeacutetica natildeo desempenham o mesmo papel natildeo satildeo absolutamente valores da mesma espeacutecie que as ldquoideacuteiasrdquo da prosaraquo Diferentemente desta o poema mdashque no fundo soacute ocorre no ato presente da leitura na relaccedilatildeo entre autor e leitor mediado pelo textomdash torna-se ou revela-se assim no sucessivo de suas interpretaccedilotildees uma espeacutecie de fecircnix verbal renasce em cada declamaccedilatildeo em cada leitura sempre o mesmo e sempre o outro laquonatildeo morre por ter vivido ele eacute feito expressamente para renascer de suas cinzas e vir a ser indefinidamente o que acabou de ser A poesia reconhece-se por esta propriedade ela tende a se fazer reproduzir em sua forma ela nos excita a reconstituiacute-la identicamenteraquo Natildeo haveria portanto um objeto uacutenico ao qual o poema estaria representando Este eacute simplesmente um resultado fruto de uma accedilatildeo de um fazer E laquose me interrogarem se se inquietarem (como acontece e agraves vezes intensamente) sobre o que eu ldquoquis dizerrdquo em tal poemaraquo diz Valeacutery numa ceacutelebre e polecircmica passagem laquorespondo que natildeo quis dizer e sim quis fazer e que foi a intenccedilatildeo de fazer que quis o que eu disseraquo Dessarte o poema deveria ser tal como uma maacutequina Uma maacutequina a causar os mais diversos divergentes e imprevistos efeitos poeacuteticos nos leitores as mais diversas interpretaccedilotildees usos e significaccedilotildees e como maacutequina todos os seus elementos mdashisto eacute todas as suas palavras os seus sintagmas os seus versos os seus silecircncios etcmdash devem ter uma funccedilatildeo especiacutefica dentro do sistema formal e tatildeo-somente formal que se constroacutei dentro do poema neste natildeo pode haver nada de supeacuterfluo nada de gratuito nenhum elemento poderia ser retirado ou colocado sem que com isso se prejudicasse a sua proacutepria forccedila tudo nele eacute importante Natildeo haacute detalhes na construccedilatildeo poeacutetica A poesia como sonha Mallarmeacute aspira a eliminar o acaso Tudo nela aspira a ser necessaacuterio

Naturalmente assim como os conceitos de eu puro e de linguagem pura o conceito de poesia pura mdashe as distinccedilotildees que este implica entre prosa e poesia entre poema e poesiamdash constitui-se nesse sentido mais como um ideal mais como ldquo poesiardquo distinta do poema real Ideal que de algum modo guia o trabalho poeacutetico conduz o que deve ou natildeo ser feito na escrituraccedilatildeo particular do poeta Pois na realidade natildeo haacute poema que seja ou que realize plenamente a poesia pura a ldquo poesiardquo que natildeo contenha elementos prosaicos e narrativos que natildeo seja passiacutevel de ser interpretado mesmo que artificialmente em uma espeacutecie de conteuacutedo e uma espeacutecie de forma Em outras palavras um poema jamais alcanccedilaria o estado de pureza absoluta Ele seria sempre uma tentativa uma tendecircncia a esse estado Porque eacute da sua natureza ou melhor da natureza de todo espiacuterito ser capaz de analisar e decompor de recontar qualquer coisa tudo eacute passiacutevel de compreensatildeo laquoA poesia sem duacutevida natildeo eacute tatildeo livre quanto a muacutesica com relaccedilatildeo a seus meiosraquo assim escreve o poeta laquoSoacute com grande esforccedilo ela pode a seu grado ordenar as palavras as formas os objetos da prosa Se ela a isso alcanccedilar seraacute poesia pura Mas eis um nome que foi fortemente criticado Aqueles que me censuraram esqueceram que eu havia escrito que a poesia pura nada mais eacute do que um limite situado no infinito um ideal do poder de beleza da linguagem Mas eacute a direccedilatildeo que importa a tendecircncia em direccedilatildeo a obra pura Eacute importante saber que toda a poesia se orienta em direccedilatildeo a alguma poesia absolutaraquo E isso talvez seja um outro fator do porquecirc Valeacutery considerar seus proacuteprios poemas obras inacabadas e perpetuamente inacabadas a um tal ideaacuterio de poesia um poema jamais seria realmente terminado Ademais como salientou Joatildeo Alexandre Barbosa haacute um descompasso significativo entre os poemas e as ldquoprescriccedilotildeesrdquo de Valeacutery dir-se-ia que ele natildeo eacute muito fiel ao que teoriza ou ao que propotildee como ideal poeacutetico Diferentemente dos radicais experimentos de Mallarmeacute (que dito de modo anacrocircnico parece ter realmente buscado praticar a poeacutetica de Valeacutery) e da revoluccedilatildeo e aceitaccedilatildeo plena do verso livre sua poesia quase sempre se revela sob as riacutegidas formas da tradiccedilatildeo claacutessica natildeo se afasta tanto assim do reacutecit e apesar de um patente hermetismo constitui em geral numa espeacutecie de concentrado discurso filosoacutefico e criacutetico coadunando-se harmonizando-se assim com a sua ideacuteia de compreender a proacutepria filosofia como literatura Todavia esse descompasso natildeo parece ter muita relevacircncia jaacute que o foco de Valeacutery eacute principalmente apoacutes o seu retorno agrave poesia menos o poema e mais o processo poeacutetico ou em outros termos uma transformaccedilatildeo no espiacuterito mediante o proacuteprio processo poeacutetico

Assim com relaccedilatildeo ao segundo ideal o que postula aquilo que o fazer o poema deve se tornar a poeacutetica de Valeacutery sintoniza-se com o longo poema De arte poetica de Horaacutecio e com todo o espiacuterito Claacutessico (especificamente Parnasiano) mas tambeacutem e principalmente natildeo deixa de revelar-se como o resultado do seu proacuteprio programa de autoconsciecircncia O que a torna em grande medida relativamente contraacuteria a correntes literaacuterias que creditam em uma espeacutecie de origem ou fonte poeacutetica da qual brotariam como que por encanto as obras poeacuteticas tal como certas vertentes do Romantismo com sua metafiacutesica do sublime e seu ldquoemocionalismordquo tal como o Surrealismo com sua escrita automaacutetica e seus experimentos de livre associaccedilatildeo E isso se revela principalmente na criacutetica valeacuteryana agrave inspiraccedilatildeo

Categoria extremamente problemaacutetica para qualquer abordagem criacutetica mas sempre tentadora a inspiraccedilatildeo pode ser amiuacutede compreendida como um impulso uma forccedila um sopro criador proveniente de deuses e ou dos espiacuteritos como muito da Antiguumlidade costuma creditar ou do Inconsciente como a Modernidade costuma postular O poeta nesse sentido acaba se tornando no todo ou em parte um veiacuteculo uma espeacutecie de meacutedium portanto deixa de ser em grande medida o uacutenico autor da poesia que faz ou o autor consciente da poesia que faz Algueacutem que ouve ou lecirc um poema e o considera admiraacutevel e belo pode logo afirmar que o poeta a quem em geral natildeo conhece o compocircs com inspiraccedilatildeo mas isso eacute apenas uma conjetura e a palavra inspiraccedilatildeo torna-se tatildeo-somente um elogio Um elogio ambiacuteguo mesmo que natildeo se queira pois soa tambeacutem como se dissesse ldquoningueacutem seria capaz de criar um tal poema sem algum auxiacutelio exterior ningueacutem mereceria ser capazrdquo a inspiraccedilatildeo torna-se assim uma laquoatribuiccedilatildeo gratuita feita pelo leitor ao seu poeta o leitor nos oferece os meacuteritos transcendentes das forccedilas e das graccedilas que se desenvolvem nele Ele procura e encontra em noacutes a causa admiraacutevel de sua admiraccedilatildeoraquo Mas haacute algo mais problemaacutetico esse tipo de compreensatildeo e valoraccedilatildeo da obra poeacutetica tende a desconsiderar ou ateacute mesmo a escamotear o trabalho e o esforccedilo elementos que natildeo raro possuem grande e secreto valor para o poeta para aquele que trabalhou e se esforccedilou Contudo haacute que se fazer justiccedila agrave poeacutetica agrave criacutetica valeacuteryana Esta se instaura menos contra a existecircncia ou natildeo do fenocircmeno da inspiraccedilatildeo e mais contra a crenccedila de que somente com esse fenocircmeno o poema se concretizaria Qualquer um pode realmente sentir-se ou crer-se inspirado qualquer um pode pelo acaso ou pelo destino ser tomado possuiacutedo por um estado criativo mas esse estado pouco ou nada resulta se natildeo houvesse trabalho e esforccedilo se natildeo houvesse previamente um saber adquirido em longas etapas um domiacutenio efetivo da linguagem verbal isto eacute dos meios materiais e convencionais disponiacuteveis para passar da intenccedilatildeo ao ato Um poeta puramente sentimental puramente romacircntico nesse sentido natildeo escreveria natildeo seria capaz de escrever nenhum poema mesmo que tivesse sido tomado pela mais intensa das inspiraccedilotildees O controle faz-se necessaacuterio o controle sobre o poder criador

Haacute um minucioso relato de Valeacutery que desmente a sua recorrente imagem como poeta que rechaccedila necessariamente a existecircncia da inspiraccedilatildeo e explicita sobremaneira essa concepccedilatildeo laquoTinha saiacutedo de casa para descansar de algum trabalho enfadonho atraveacutes da caminhada e dos olhares variados que ela atrai Enquanto ia pela rua em que moro fui tomado de repente por um ritmo que se impunha e que logo me deu a impressatildeo de um funcionamento estranho Como se algueacutem estivesse usando a minha maacutequina de viver Um outro ritmo veio entatildeo reforccedilar o primeiro combinando-se com ele e estabeleceram-se natildeo sei que leis transversais entre essas duas leis (estou explicando da maneira que posso) Isso estava combinando o movimento de minhas pernas andando e natildeo sei que canto eu murmurava ou melhor que se murmurava atraveacutes de mim Essa composiccedilatildeo se tornou cada vez mais complicada e logo ultrapassou em complexidade tudo o que eu podia produzir racionalmente de acordo com minhas faculdade riacutetmicas comuns e utilizaacuteveis Nesse momento a sensaccedilatildeo de estranheza da qual falei tornou-se quase penosa quase inquietante Natildeo sou muacutesico ignoro totalmente a teacutecnica musical e eis que estava preso por um desenvolvimento de diversas partes de uma complicaccedilatildeo com a qual nenhum poeta sonhou algum dia Dizia-me entatildeo que havia erro de pessoa que essa graccedila enganava-se de cabeccedila jaacute que eu nada podia fazer com esse dom mdash que em um muacutesico teria sem duacutevida tomado valor forma e duraccedilatildeo enquanto essas partes que se misturavam e desligavam-se ofereciam-me inutilmente uma produccedilatildeo cuja continuaccedilatildeo culta e organizada maravilhava e desesperava minha ignoracircnciaraquo A esse relato segue-se um outro mais ceacutelebre e irocircnico mas de mesmo teor laquoO grande pintor Degas muitas vezes me contou essa frase de Mallarmeacute tatildeo justa e tatildeo simples Degas agraves vezes fazia versos e deixou alguns deliciosos Mas constantemente encontrava grandes dificuldades nesse trabalho acessoacuterio de sua pintura (Aliaacutes era homem de introduzir em qualquer arte a dificuldade possiacutevel) Um dia disse a Mallarmeacute ldquoSua profissatildeo eacute infernal Natildeo consigo fazer o que quero e no entanto estou cheio de ideacuteiasrdquo E Mallarmeacute lhe respondeu ldquoAbsolutamente natildeo eacute com ideacuteias meu caro Degas que se fazem versos Eacute com palavrasraquo O poeta para Valeacutery soacute pode ser soacute pode acontecer como um faber poeta natildeo como um vate poeta

Como um verdadeiro artista claacutessico ele concebe assim uma poeacutetica na qual o fazer poeacutetico natildeo atua atraveacutes do improviso e do descontrole mas atraveacutes do rigor e da disciplina o sonho e o devaneio podem ateacute fornecer e certamente fornecem elementos para o poema mas esses elementos devem ser trabalhados e trabalhados na vigiacutelia e na lucidez pois o sonho e o devaneio nada resultam se natildeo forem racionalizados Ou como diz o poeta laquoNem o sonho nem o devaneio satildeo necessariamente poeacuteticos eles podem secirc-los mas figuras formadas ao acaso somente por acaso satildeo figuras harmoniosasraquo Porque laquoeacute necessaacuterio estar ldquodespertordquo para expressar raquo porque para se passar da intenccedilatildeo agrave accedilatildeo da intenccedilatildeo ao construiacutedo eacute necessaacuterio projetar arquitetar Para o poeta portanto fazer poemas eacute sobretudo o ato de estar constantemente consciente de sua feitura e por conseguinte um exerciacutecio especiacutefico de autoconsciecircncia no caso o exerciacutecio de natildeo se deixar manobrar pelas palavras fazer poemas eacute portanto uma ldquodesautomatismordquo verbal uma ldquodesautomatizaccedilatildeordquo da proacutepria linguagem usada laquoEacute me fazendo estas questotildees ldquoO que eu quero rdquo e ldquoO que eu posso quererrdquoraquo confessa o poeta de modo lacunar laquomdash (essas questotildees comparadas constituem o fundamento da MINHA Sabedoria) que eu orientei apoacutes [19]92 minha vida espiritual [ Noite de Gecircnova] E eu entendi natildeo me deixar manobrar pela linguagem [Grifo do autor] Isso eu devo em parte ao trabalho com a poesia em suas condiccedilotildees formais agraves quais induz a tomar as palavras e as ideacuteias por suas maleabilidades materiaisraquo O surpreendente eacute que para Valeacutery o trabalho a experiecircncia com a poesia tambeacutem o tenha conduzido em parte agravequilo que foi por ele compreendido como o pressuposto de qualquer meacutetodo de abordagem agrave laquo limpeza da situaccedilatildeo verbalraquo (laquo nettoyage de la situation verbaleraquo) E eacute justamente nesse ponto que sua poeacutetica se entrelaccedila de modo mais veemente com sua criacutetica agrave filosofia Daiacute tambeacutem ele recomendar aos filoacutesofos mdashe de um modo que soa menos irocircnico do que sinceromdash se aventurarem ao trabalho poeacutetico ao fazer poesia o que de algum modo excecircntrico incitaria colaboraria para a aquisiccedilatildeo de uma maior consciecircncia da linguagem laquoEu gostaria de falar de filoacutesofos mdash e aos filoacutesofosraquo escreve um tanto solenemente laquoEu gostaria de lhes mostrar que seria infinitamente mais proveitoso praticar esta laboriosa poesia que conduz insensivelmente a estudar as combinaccedilotildees das palavras natildeo tanto pela conformidade de significaccedilotildees desses grupamentos com uma ideacuteia ou pensamento que noacutes tomamos para exprimir mas ao contraacuterio por seus efeitos uma vez formados entre aqueles que noacutes escolhemos Em geral noacutes tentamos ldquoexprimir seu pensamentordquo isto eacute passar de uma forma impura e misturada de todos os meios do espiacuterito a uma forma pura isto eacute somente verbal e organizada que se reduz a um sistema de atos ou de contrastes arranjados Mas a arte poeacutetica conduz singularmente a visar agraves formas puras nelas mesmasraquo laquoAcrescento (mas somente para alguns)raquo depois ainda sintetiza laquoque aquela vontade de natildeo se deixar manobrar por palavras natildeo estaacute totalmente dissociada daquilo que denominei ou acreditei denominar poesia puraraquo Isso natildeo quer dizer naturalmente que os poetas todos estejam isentos de adentrar em ilusotildees gramaticais mas tatildeo somente que a praacutetica poeacutetica pode ser segundo Valeacutery auxiliar agrave ldquodesautomatizaccedilatildeordquo verbal auxiliar agrave proacutepria autoconsciecircncia

Em Valeacutery o conceito de poesia pura adquire assim natildeo mais no ideal que postula o que o poema deve se tornar mas no ideal que postula o que o fazer o poema deve se tornar um outro uso Representa essa poesia mdashessa praacuteticamdash na qual o espiacuterito natildeo se deixaria enredar pela linguagem na qual o espiacuterito mdasho espiacuterito do poeta o espiacuterito daquele que se faz momentaneamente poetamdash seria um pensador da linguagem e como tal senhor e natildeo escravo da linguagem O espiacuterito compreenderia numa accedilatildeo num fazer o quanto as palavras esses ldquoobjetosrdquo com os quais tanto tempo convive no poema que estaacute sendo composto satildeo passiacuteveis de serem transformadas passiacuteveis de serem re-usadas ou re-significadas manipuladas distorcidas servis a este ou aquele discurso a este ou aquele contexto a balizar suas potencialidades semacircnticas o espiacuterito compreenderia portanto o quanto os problemas filosoacuteficos podem ser meros verbalismos Misteacuterios sem misteacuterios os poemas se tornam os discursos os contextos nos quais as palavras poderiam adquirir e adquirem a maior e mais inusitada variaccedilatildeo semacircntica possiacutevel os poemas se tornam os contextos nos quais em teoria tudo o que for possiacutevel fazer com as palavras seraacute feito Os poemas se tornam assim o devir da proacutepria linguagem a sua potecircncia em ato Nesse sentido a idiossincraacutetica poeacutetica valeacuteryana revela-se toda ela natildeo como legataacuteria da lrsquoart pour lrsquoart da arte desengajada a subordinar a eacutetica agrave esteacutetica tampouco da arte engajada a subordinar a esteacutetica agrave eacutetica pois compreende simultaneamente a autonomia do poema como um objeto formal sujeito a muacuteltiplas e divergentes interpretaccedilotildees interpretaccedilotildees para aleacutem das intenccedilotildees do poeta mas tambeacutem postula uma certa funccedilatildeo ao fazer poeacutetico o esclarecimento daquele que o pratica Escrever poemas eacute um treino a si mesmo Todavia haacute que se dizer enfim algo oacutebvio Uma tal poeacutetica sua importacircncia seu valor eacute sempre de caraacuteter eminentemente pessoal O que natildeo poderia ser diferente jaacute que se trata meramente de uma ldquoteoria esteacuteticardquo laquoImagino sobre a essecircncia da Poesiaraquo escreve o poeta consciente disso laquoque ela tenha de acordo com as diversas naturezas dos espiacuteritos valor nulo ou importacircncia infinita o que a assemelha ao proacuteprio Deusraquo

6 Diaacutelogos socraacuteticos

Escoacutelios

Saibam pois o que eacute a arte o meio para alguns os solitaacuterios de se auto-realizarem

Rainer Maria Rilke O diaacuterio de Florenccedila

61 A reinvenccedilatildeo de um gecircnero

O diaacutelogo ( διάλογος) possui estatuto privilegiado na Antiguumlidade Eacute constantemente considerado como uma das formas mais adequadas para a manifestaccedilatildeo do pensamento filosoacutefico Inserido numa tradiccedilatildeo que preza pelos esforccedilos de memorizaccedilatildeo na manutenccedilatildeo dos valores da comunidade filoacutesofos como Platatildeo abrem concessatildeo agrave sua versatildeo escrita a que Sophron de Siracusa supostamente iniciou quiccedilaacute somente pela sua maior verossimilhanccedila agrave proacutepria fala agrave proacutepria oralidade Por natildeo representar o homem no jogo intelectual consigo mesmo um forte caraacuteter poliacutetico tambeacutem foi associado a esse gecircnero Atraveacutes de sua proacutepria disposiccedilatildeo formal o diaacutelogo possibilita expor diferentes opiniotildees e doutrinas num mesmo espaccedilo textual diferentes posiccedilotildees que podem muito bem se contradizer Devido a essa polifocircnica organizaccedilatildeo haacute quem diga que ele representaria consequumlentemente uma genuiacutena forma de toleracircncia Talvez haja nisso um romacircntico exagero Compreensiacutevel na medida em que se deseje identificar uma relaccedilatildeo humana que se abstenha da violecircncia e prefira ser amigaacutevel troca entre razotildees com um gecircnero literaacuterio no qual representaccedilotildees de personagens ou vozes distintas se manifestem em torno de um tema ou uma seacuterie de temas independente de serem ou natildeo partidaacuterias dos mesmos valores Pois nada impede que esse uacuteltimo represente um pensamento cristalizado intransigente pronto a cometer proselitismos

O proacuteprio Platatildeo seu pensamento natildeo deixa de ser exemplar quanto a isso Entre o respeito pela tradiccedilatildeo e o anseio pela reforma ele revela em certas passagens um caraacuteter a que muitos hoje considerariam autoritaacuterio mas que todavia cumpre ser matizado quando inserido na totalidade de sua obra Afinal o conspiacutecuo disciacutepulo de Soacutecrates nunca deixou de ser aquilo que hodiernamente denomina-se de dialeacutetico Se por um lado no Craacutetilo a discussatildeo sobre a natureza das palavras permanece inconclusa por outro na Repuacuteblica apesar das inuacutemeras digressotildees de seus participantes grande parte das reflexotildees ao fim convergem para uma espeacutecie de utopia avant-la-lettre uma forma de governo que submete os seres humanos a uma sociedade ideal de riacutegidas hierarquias Tomados como uma totalidade os diaacutelogos platocircnicos equilibram-se assim ambiguamente entre a sugestatildeo e a imposiccedilatildeo entre o dogma e a aporia E eacute a lendaacuteria e carismaacutetica personagem ou voz de Soacutecrates uma das causas desse processo pois amiuacutede conduz mediante desconcertantes refutaccedilotildees e perguntas seus interlocutores a um circular labirinto de volaacuteteis definiccedilotildees deixando deliberadamente muitas das respostas e conclusotildees para um futuro que parece nunca poder se concretizar O elenkos ( ἒλεγχος) socraacutetico pode ser considerado como uma estrateacutegia de argumentaccedilatildeo negativa que parece conter a intenccedilatildeo de fazer o diaacutelogo mdasho dialogarmdash um processo virtualmente infinito Pois toda resposta pode ser negada e a ela posta um sem-nuacutemero de outras respostas referentes a uma mesma pergunta

O desenvolvimento do diaacutelogo enquanto gecircnero filosoacutefico no Ocidente eacute a partir de entatildeo influenciado pelo pensamento socraacutetico-platocircnico O Cristianismo tambeacutem dele se apropria um tanto circunstancialmente doravante jaacute como religiatildeo oficial prefere formas tradicionalmente mais vinculadas agrave interpretaccedilatildeo da doutrina como os tratados as sumas e os comentaacuterios Ceacutelebres ldquoexceccedilotildeesrdquo a essa preferecircncia podem ser encontradas nas obras de Santo Agostinho e Pedro abelardo Todavia principalmente com o desenvolvimento do Humanismo o diaacutelogo enquanto gecircnero filosoacutefico renova forccedilas devido a enorme idealizaccedilatildeo e valorizaccedilatildeo do passado claacutessico surgem inuacutemeros imitadores de Platatildeo na Renascenccedila Quando ainda natildeo se diferenciava de todo do pensamento filosoacutefico a Ciecircncia Moderna emergente tambeacutem dele se utilizou Giordano Bruno e Galileu Galilei o praticam este acabou no caacutercere privado aquele na fogueira Diante desse quadro histoacuterico e a partir da relaccedilatildeo entre a intenccedilatildeo de um escrito e a sua recepccedilatildeo hodierna poder-se-ia conjeturar que o diaacutelogo filosoacutefico justamente por estar associado agrave pluralidade de opiniotildees e a aceitaccedilatildeo dessa pluralidade tenderia a florescer em eacutepocas de maior liberdade de expressatildeo Assim sempre sob o quase onipresente peso do estilo platocircnico Descartes Leibniz Berkeley Hume Shaftsebury e Diderot tambeacutem o praticaram mas cuidadosamente entre a antiga tradiccedilatildeo metafiacutesica e o impacto da Ciecircncia Moderna Contudo frente aos pressupostos de objetividade que esta exige o diaacutelogo enquanto gecircnero filosoacutefico vem a ser considerado por vezes um modelo quase anacrocircnico relativamente inadequado ao saber positivo Tendo em vista tambeacutem a sua diferenciaccedilatildeo das peccedilas de teatro ou daqueles que naturalmente se inserem em outros gecircneros literaacuterios ele mais raramente se sustenta na Modernidade de modo autocircnomo Poucos possuem o mesmo tipo de recepccedilatildeo que por exemplo um romance um reacutecit

Prezando pela entonaccedilatildeo pela presenccedila da voz na literatura escrita Paul Valeacutery foi nas deacutecadas de 20 e 30 do seacuteculo XX um dos autores que como Alain e Claudel atualizaram e reinventaram o diaacutelogo filosoacutefico notadamente do tipo socraacutetico e de ldquoinspiraccedilatildeordquo humaniacutestica mesmo que na moderna praacutetica das formas breves Interessa-o sobretudo a lucidez e a plasticidade a possibilidade de contraccedilatildeo e de dilataccedilatildeo desta que considera a laquomais flexiacutevel da formas de expressatildeoraquo (laquola plus souple des formes drsquoexpressionraquo) interessa-o a sedutora e difiacutecil ideacuteia de suspender a presenccedila do sujeito da pessoa atraveacutes do mascaramento em personagens ou vozes diversas algo condizente com a concepccedilatildeo de literatura impessoal ou natildeo-autoral por ele almejada Alguns desconexos e truncados fragmentos sobre Mon Faust em seus Cahiers demonstram o desejo em se apropriar desse gecircnero em sua autonomia esteacutetica laquoAssim no teatro o diaacutelogo eacute condiccedilatildeo imediata mdash e eu escrevo sem abandonar o diaacutelogo Mas mdash depois de certo uso mdash eu comeccedilo a sentir esta forma independentemente de toda a aplicaccedilatildeo e a mim se impotildee agrave necessidade de isolar claramente de conservar formalmente sua funccedilatildeo seu lugar numa resoluccedilatildeo de certa resistecircncia ou circunstacircncia e suas caracteriacutesticas funcionais completas Eu tenho entatildeo necessidade de uma ldquoideacuteiardquo ou foacutermula que me faccedila do diaacutelogo algo como uma operaccedilatildeo = O diaacutelogo eacute a operaccedilatildeo que transforma os dados por via de trocas (PR) (pergunta-resposta) entre sistemas [] nos quais a desigualdade eacute suposta O nuacutemero de variaacuteveis (desses sistemas) que entram em jogo eacute variaacutevel e define o gecircnero [] [do] diaacutelogo filosoacutefico ateacute ao mais ordinaacuterio Onde o tom etc Na base o diaacutelogo interior mdash Monoacutelogo natildeo existe mdash [] A anaacutelise do tipo diaacutelogo seraacute fecunda Como o ldquopensamentordquo tende a este tipo e natildeo eacute que aparecircncia de monoacutelogo ele seraacute elucidado por aqueleraquo Ou ainda laquoTodo monoacutelogo eacute um diaacutelogoraquo

Dessarte o diaacutelogo seria como que a forma mais ldquonaturalrdquo a mais fiel ao mecanismo do proacuteprio pensamento deste tende a tornar-se um iacutecone Representa aquela divisatildeo interna e o jogo de diferenccedilas entre as partes dessa divisatildeo interna a que Valeacutery frequumlentemente alude quando se refere agrave laquoself-varianceraquo do espiacuterito Sem um outro real ou sem um outro conceitual tanto o diaacutelogo quanto o pensamento natildeo existiriam porque supostamente natildeo haveria o que dizer Seria o puro silecircncio Isso parece se materializar na forma com que o proacuteprio poeta concebe as suas personagens ou vozes Estas estatildeo separadas mas num outro plano tambeacutem natildeo deixam de ser uma soacute Todos os seus diaacutelogos podem ser considerados como diz o emblemaacutetico tiacutetulo de um deles um Coloacutequio dentro de um ser ( Colloque dans un ecirctre) Eles natildeo se abrem diretamente para o coletivo Natildeo eacute como se o Valeacutery escritor se identificasse com apenas uma de suas personagens ou vozes a que considere a portadora da verdade e fizesse das demais portadoras do equiacutevoco natildeo eacute como se defendesse por contraste com outras ideacuteias uma ideacuteia uacutenica Eacute como se ele fosse realmente todas as suas personagens ou vozes e as possiacuteveis contradiccedilotildees e polecircmicas entre elas Contradiccedilotildees e polecircmicas que ocorrem internamente em uma uacutenica consciecircncia que se multiplica em vaacuterias para melhor ser Como diz Maurice Blanchot acerca de Valeacutery laquoSeu pensamento aspira a dialogarraquo eacute uma laquodiversidade de falas nascidas do eco de uma mesma vozraquo

Ademais haacute uma relaccedilatildeo extremamente ambiacutegua com a tradiccedilatildeo Apesar de sua chistosa confissatildeo de pouco conhecer a Antiguumlidade a cultura grega e latina de natildeo ter sido um leitor assiacuteduo de Platatildeo considerando a influecircncia deste como laquomdash Puramente imaginaacuteriaraquo Valeacutery demonstra mdashsupotildee-se que em grande parte justamente por essa confessa displicecircnciamdash uma quase maliciosa engenhosidade ao escrever seus diaacutelogos socraacuteticos As referecircncias aos elementos filosoacuteficos da Antiguumlidade satildeo taacutecitas natildeo raro indiretas como que propositadamente escondidas todavia presentes para um leitor atento Ele se preocupa muito mais com uma siacutentese abstrata do objeto ou dos objetos que escolhe e analisa do que com referecircncias Nos seus escritos talvez o mais importante natildeo seja o expliacutecito mas o impliacutecito os subentendidos Seus diaacutelogos socraacuteticos satildeo paradigmas desse recorrente procedimento Natildeo deixam de ser fieacuteis portanto agrave desconfianccedila de Valeacutery a essa tentativa de legitimar uma ideacuteia atraveacutes da evocaccedilatildeo de autoridades e de documentos passados de provas Como seus escritos sobre Leonardo eles dispensam um determinado tipo de rigor histoacuterico de matriz positivista e instauram-se paralelamente distante de um realismo literaacuterio direto num tempo e num espaccedilo indeterminados laquoO pouco que noacutes sabemos agraves vezes eacute mais ativo e fecundo que o muitoraquo diz provocativamente laquoPois ele excita ou obriga a inventar a falta e esse produto vivo nascente eacute mais ativo mdash por vezes mais ldquoverdadeirordquo que o verdadeiro-morto Certo efeito reproduzido sem causa por inteira conservaccedilatildeo eacute menos poderoso que o efeito semelhante produzido atualmente por qualquer causa anaacuteloga O excessivamente pouco que eu sabia de Platatildeo e que obtive em dez ou quinze linhas me produziu Eupalinos mdash cf Leonardo tambeacutem e Goetheraquo

Apesar dessas palavras confissatildeo de um escritor cioso de sua capacidade de transformar o pouco em muito Valeacutery era apreciador das formas e do proacuteprio modo de filosofar dos antigos Habituado ao uso de elementos claacutessicos em sua poesia ele contudo natildeo se esquiva de todo do canocircnico paradigma platocircnico-socraacutetico todavia o transporta mais profundamente aos padrotildees esteacuteticos da Literatura Moderna e natildeo o encara como um helenista ou um historiador preso por princiacutepio ao rigor filoloacutegico mas como um literato livre para adentrar o devaneio e a fantasia Atraveacutes do diaacutelogo socraacutetico o poeta posiciona seu pensamento como que nas antiacutepodas de seus antigos e ilustres precursores Diferentemente de grande parte da tradiccedilatildeo desenvolvida a partir de Soacutecrates e Platatildeo natildeo busca pela verdade ou por uma verdade como se esta existisse em algum lugar objetivo porque todo conceito eacute ao mesmo tempo uma limitaccedilatildeo e uma possibilidade porque todo conceito pode ter inuacutemeras definiccedilotildees variando com a perspectiva que se adote com quem o define e para quem eacute definido Assim a aporia se impotildee sobre o dogma o negativo sobre o positivo E isso se personifica no comportamento de seus personagens ou vozes aquela tentativa de convencer inculcar ou mesmo humilhar seu interlocutor em direccedilatildeo a uma determinada concepccedilatildeo sistema ou doutrina se dilui em dimensotildees ambiacuteguas haacute apenas a reflexatildeo conjunta de duas ou mais personagens ou vozes na busca de algo por vezes ainda natildeo verbalizado de iniacutecio ainda inefaacutevel no estaacutegio em que falam A velha ironia ( εἰρωνεία) por vezes cruel instrumento pedagoacutegico eacute matizada Nesses diaacutelogos socraacuteticos a distinccedilatildeo entre quem eacute o mestre e quem eacute o disciacutepulo tende a desaparecer ou a se inverter Esvaecem-se as estruturas de poder Todos os seus personagens ou vozes aprendem todos ensaiam porque tudo eacute verdadeiramente ensaio Nenhum deles se impotildee em demasia aos demais o que naturalmente natildeo os impede de defenderem argumentos linhas de pensamento Natildeo sendo propostas doutrinaacuterias mas livres intuiccedilotildees de um pensador que natildeo se propotildee inventar teorias em sentido pleno e acabado os diaacutelogos socraacuteticos de Valeacutery tornam-se um instigante exerciacutecio de sugestotildees e de alusotildees Muitas vezes jogam com proposiccedilotildees abstratas proacuteprias do discurso do filoacutesofo ao inveacutes de imagens concretas como seriam relativamente mais presentes nos devaneios de um poeta A beleza eacute a estranha e enigmaacutetica dimensatildeo que natildeo raro verdadeiramente parece ter primazia Valeacutery mdashque jamais deixou de ser um estetamdash parece se deleitar com a frase bem construiacuteda com os achados literaacuterios no fundo ele natildeo deixa de perseguir este procedimento de composiccedilatildeo no qual o conteuacutedo natildeo eacute uma dimensatildeo anterior agrave forma no qual esta natildeo raro evoca e ordena aquele O que no seu caso natildeo o impede de manter o rigor de sempre estar a respeitar a relaccedilatildeo de coerecircncia entre a representaccedilatildeo e o representado seja este real ou imaginaacuterio O estilo natildeo deve matar a precisatildeo assim como a precisatildeo natildeo deve matar o estilo um natildeo pode pesar mais que o outro Eis um lema o qual o poeta Valeacutery poderia muito bem adotar jaacute que na praacutetica o cumpria

Tudo se passa como se apoacutes um longo e aacuterduo aprendizado um desencanto o deus da razatildeo e da luz Apolo sem deixar de lado o refinamento e a coerente loacutegica de sua linguagem aprendesse a arte da prestidigitaccedilatildeo e da fantasia com o deus da embriaguez e da alegria Dioniacutesio um e outro se fundem num jogo sem fim um e outro se cumprimentam um e outro se conciliam Pelo intenso lirismo pelo aacuterduo trabalho entre som e sentido que apresentam os diaacutelogos socraacuteticos de Valeacutery podem ser facilmente considerados como ldquopoemas em prosardquo Quem os comenta quem os analisa ou os destrinccedila natildeo pode deixar de contemplar a recorrente e jaacute referida postura valeacuteryana em estetizar a filosofia Estetizaccedilatildeo que agora natildeo se apresenta apenas de modo teoacuterico mas opera na praacutetica de obras literaacuterias com tudo o que estas possam ter de excentricidades

O diaacutelogo eacute portanto um gecircnero literaacuterio privilegiado na obra de Valeacutery Encontra-se em La Soireacute avec Monsieur Teste encontra-se enquanto fragmentos em Tel quel em Mauvaises penseacutees e naturalmente em seus Cahiers encontra-se na forma de versos na hermeacutetica peccedila ldquoMon Faustrdquo - Eacutebauches e no ldquoteatro lituacutergicordquo de ambiacuteguas referecircncias claacutessicas e catoacutelicas Amphion - Meacutelodrame Seacutemiramis Cantate du Narcisse e Colloque pour deux flucirctes encontra-se no ensaio epistemoloacutegico Lrsquoideacutee fixe encontra-se em Meacutelange em Colloque dans un ecirctre em nos breviacutessimos Coloacutequios Orgueil pour orgueil e Socrate et son meacutedicin Nestes dois uacuteltimos jaacute se configura uma problemaacutetica estritamente filosoacutefica Contudo o que soacutei ser aqui de interesse prioritaacuterio satildeo os seus diaacutelogos mais plenamente desenvolvidos agravequeles que correspondem seja por assentimento contraste ou inversatildeo agrave dominacircncia do registro metafiacutesico no pensamento da Antiguumlidade Nesse sentido Valeacutery compotildee mdashtodavia como de haacutebito circunstancialmente e sem teacuterminomdash um conjunto de diaacutelogos socraacuteticos que podem ser para fins interpretativos estrategicamente ordenados na seguinte trajetoacuteria Lrsquoacircme et la danse pertencente ao subgecircnero do simpoacutesio refere-se a um Soacutecrates vivo todavia jaacute na dolorosa desconfianccedila de que o mundo eacute tatildeo-somente puro movimento e instabilidade Eupalinos - Ou lrsquoarchitecte pertencente ao subgecircnero do dialogo de mortos quiccedilaacute seu mais ceacutelebre e citado diaacutelogo refere-se em contrapartida a um Soacutecrates morto jaacute na plena perturbaccedilatildeo de suas crenccedilas Περὶ τῶν τοῦ θεοῦ - Ou des choses divines em puro estado de fragmento talvez o mais ambicioso e hoje o mais desconhecido de seus diaacutelogos eacute aquele que se refere aos conhecidos e aos disciacutepulos de Soacutecrates que logo apoacutes a morte do mestre permanecem em discussatildeo

Todos esses diaacutelogos representam em maior ou menor grau a reinvenccedilatildeo deste personagem Soacutecrates pela sua presenccedila ou ausecircncia em diferentes momentos e que juntamente com Leonardo e Teste pode ser compreendido como um dos emblemas maacuteximos da obra de Valeacutery mas diferentemente destes eacute mais um instrumento criacutetico e menos a personificaccedilatildeo de um ideal a ser seguido Dir-se-ia que o Soacutecrates valeacuteryano eacute humanizado tanto em comparaccedilatildeo a outras personagens suas como em comparaccedilatildeo agrave personagem histoacuterica Numa perspectiva progressista ele natildeo representaria o espiacuterito universal intelectualmente autaacuterquico ao qual o poeta almeja se tornar representaria antes um processo um caminho a esse ideal o estaacutegio anterior ao de um Teste ou de um Leonardo Estaacutegio no qual o Soacutecrates valeacuteryano adquire consciecircncia criacutetica de sua pateacutetica condiccedilatildeo e do que deve realmente realizar ou deixar de realizar E com isso Valeacutery tambeacutem acaba por distinguir uma diferenccedila capital entre o espiacuterito da Antiguumlidade e o da Modernidade entre a completude e a incompletude

611 A danccedila de Athiktecirc

Os diaacutelogos platocircnicos apesar dos seus ldquosubtiacutetulosrdquo serem diretos quanto ao tema a ser abordado satildeo em muito devido agrave aporia que os conforma um amaacutelgama de outros ora somente postos ora exaustivamente discutidos A falta de linearidade os desvios as digressotildees configuram uma estranha verossimilhanccedila com o proacuteprio pensamento que natildeo tendo que resultar em texto ou em conclusatildeo segura flana mais livremente entre os objetos que o seduzem natildeo raro de modo desordenado e confuso A inquietaccedilatildeo proacutepria da proacutepria filosofia assim se faz presente O tema central de um diaacutelogo platocircnico por mais que se tente precisar por mais que se tente aprisionaacute-lo em uma uacutenica palavra (seja esta beleza bondade justiccedila alma) natildeo eacute portanto uacutenico e preciso

De lucidez mortal ao mesmo tempo delicado e delirante Lrsquoacircme et la danse (escrito em 1921 e publicado pela primeira vez em 1923) assume esse caraacuteter digressivo ao extremo Descreve as reflexotildees ou as sensaccedilotildees de Soacutecrates e de seus companheiros o meacutedico Erixiacutemaco e o jovem Fedro apoacutes um farto banquete Nisso jaacute se evidencia um primeiro paralelo possiacutevel com o Simpoacutesio de Platatildeo no qual durante um farto banquete (natildeo agrave toa tambeacutem ser assim intitulado) o amor e a relaccedilatildeo deste com a beleza o bem e o imemorial desejo de vencer a morte satildeo postos e discutidos De um hermetismo muito mais intenso do que o habitual mesmo para os padrotildees de Valeacutery Lrsquoacircme et la danse toca levemente essas temaacuteticas Todavia como herdeiro do evasivo estilo simbolista natildeo possui um tema central claramente definido do qual parece gravitar sem jamais revelar Configura-se sobretudo como um intrincado labirinto de frases cuja loacutegica explora a contradiccedilatildeo e o paradoxo entre tantos e tatildeo raacutepidos assuntos evocados e dissipados Suas personagens ou vozes na estaacutetica modorra em que se encontram devido agrave digestatildeo de seus estocircmagos refletem sobre uma das mais corriqueiras e necessaacuterias atividades da vida sobre aquilo que acabaram de fazer o ato mesmo de se alimentar tema sub-repticiamente presente em todo o diaacutelogo Soacutecrates mdashapoacutes ser ironizado por Erixiacutemaco que dele diz ser um tanto incapaz de ficar sem meditar por conseguinte de ficar sem filosofar e expressar suas ideacuteiasmdash questiona-o se laquoo homem que come eacute o mais justo dos homensraquo A duacutevida natildeo eacute vatilde Porque na necessidade assim como na dor e no sofrimento (por vezes atrelados agrave proacutepria necessidade) porque nos incessantes chamados do corpo no clamor da fome do frio e do calor os seres humanos independentemente de suas crenccedilas podem ser fisicamente igualados Aproveitando a oportunidade desse tema tatildeo calcado na concretude da vida Erixiacutemaco como meacutedico discursa sobre os inuacutemeros remeacutedios para o corpo contudo Soacutecrates mdashcuja tendecircncia intelectual principalmente nos diaacutelogos platocircnicos eacute como percebeu Valeacutery refletir a partir de inevitaacuteveis situaccedilotildees cotidianasmdash extrapola e polemiza dizendo que para a alma haacute somente dois

laquoA verdade e a mentira [] Natildeo se comportam entre elas como a vigiacutelia e o sono Natildeo procuras tu o despertar e a nitidez da luz quando um mau sonho te atormenta Natildeo nos ressuscita o sol em pessoa e natildeo nos fortifica a presenccedila de corpos soacutelidos mdash Mas em contrapartida natildeo eacute ao sono e aos sonhos que pedimos que dissolvam as afliccedilotildees e que suspendam as dores que nos aguilhoam no mundo do dia E assim fugimos de um para o outro invocando o dia no meio da noite implorando ao contraacuterio as trevas enquanto temos a luz ansiosos de saber felizes demais por ignorar procuramos no que eacute um remeacutedio ao que natildeo eacute e no que natildeo eacute um aliacutevio para o que eacute Ora o real ora a ilusatildeo nos recolhe e a alma em definitivo natildeo tem outros meios exceto o verdadeiro que eacute sua arma mdash e a mentira sua armadura

Erixiacutemaco [] natildeo tens medo caro Soacutecrates de uma certa consequumlecircncia desse pensamento que te ocorreu [] Esta a verdade e a mentira tendem para o mesmo fim Eacute uma mesma coisa que tomando-se diversamente nos faz mentirosos ou veriacutedicos e como ora quente ora frio ora nos atacam ora nos defendem assim o verdadeiro e o falso e as vontades opostas a que se ligam

Soacutecrates Nada mais certo Nada posso fazer Eacute a proacutepria vida que assim o quer [] Tudo ajuda a vida Erixiacutemaco para que a vida nada conclua Isto eacute concluir apenas a si mesma Natildeo eacute ela esse movimento misterioso que pelo desvio de tudo o que acontece transformou-me incessantemente em mim mesmo e que me devolve bastante raacutepido a este Soacutecrates XE Soacutecrates para que eu o reencontre e que imaginando necessariamente reconhececirc-lo eu exista mdash Ela eacute uma mulher que danccedila e que deixaria de ser uma mulher divinamente se pudesse saltar ateacute as nuvens Mas como natildeo podemos ir ao infinito nem no sono nem na vigiacutelia ela de modo semelhante reconverte-se sempre a si mesma deixa de ser floco paacutessaro ideacuteia mdash de ser enfim tudo que a flauta quis que dela fosse feito pois a mesma Terra que a mandou convoca e entrega-a toda palpitante agrave sua natureza de mulher e a seu amigoraquo

Nesse momento extremamente fecundo no qual verdade e mentira satildeo estabelecidas como conceitos entrelaccedilados dependentes um do outro e a vida eacute comparada a uma mulher que danccedila surge como que de um ato providencial e emblemaacutetico Athiktecirc com seus prodigiosos e provocativos movimentos Ela eacute imediatamente reconhecida como danccedilarina ceacutelebre considerada como a melhor entre todas ali presentes mas como qualquer outra aparentemente serve para entreter as figuras masculinas dedicadas a uma tarefa tradicionalmente masculina a especulaccedilatildeo filosoacutefica ou metafiacutesica Todavia ante a sua feminina presenccedila o diaacutelogo que rumava para dimensotildees puramente conceituais e abstratas parece entatildeo abruptamente redirecionar-se A escolha da danccedila no diaacutelogo natildeo parece ser gratuita Para Valeacutery essa atividade do corpo enquanto arte difere como a poesia da prosa de outras formas de movimento de accedilatildeo principalmente por ter seu fim em seu proacuteprio meio sua meta em seu proacuteprio meacutetodo por natildeo almejar um resultado que seja exterior a si mesma mas ao seu proacuteprio desenvolvimento As personagens ou vozes do poeta parecem assim na extrema ambiguumlidade que as rege natildeo poder suportar a encantadora danccedila de Athiktecirc Danccedila que natildeo segue natildeo se submete agraves limitadas regras de um raciociacutenio pragmaacutetico a visar consequumlecircncias pragmaacuteticas que natildeo tenha um objetivo plenamente justificado e preciso Nela os filoacutesofos observam oportunamente um verdadeiro incocircmodo um verdadeiro desafio agrave razatildeo Daiacute o Soacutecrates valeacuteryano desse diaacutelogo (como talvez fizesse a sua versatildeo platocircnica) ousar questionar a inteligecircncia da beldade querendo talvez com isso aproximaacute-la da loucura relativamente contraacuteria agrave lucidez filosoacutefica laquomdash Essa moccedila seraacute talvez uma tolaraquo perguntar-se-aacute ateacute o fim laquomdash E quem sabe que supersticcedilotildees e bagatelas formam sua alma cotidianaraquo O natildeo sentido dessas perguntas acaba contudo revelando-se A danccedila de Athiktecirc aqueles que a contemplam e pouco a compreendem constatam como a razatildeo o grande guia intelectual do gecircnero humano natildeo raro voltado a instrumentalizar as generalizaccedilotildees e abstraccedilotildees que executa com o objetivo de conquistar a natureza eacute particularmente deacutebil frente aos sutis e secretos desiacutegnio do corpo Seus limites satildeo configurados pelo tempo e pelo espaccedilo pela experiecircncia sensiacutevel pela materialidade pela corporeidade agrave qual se condiciona intimamente pois surge e se desenvolve a partir de uma incessante relaccedilatildeo com a proacutepria corporeidade para entatildeo buscar natildeo raro e insistentemente desta se depreender Os movimentos da razatildeo e os movimentos do corpo se condicionam mutuamente apesar do constante desejo de autonomia do primeiro com relaccedilatildeo ao segundo Fiel a esse desejo o Soacutecrates valeacuteryano discursa sobre os sonhos da proacutepria razatildeo sobre a possibilidade de compreender o que todos ali contemplam sobre a inteligibilidade das coisas e Erixiacutemaco intui que todos estejam ante algo que remete ao divino

laquoSoacutecrates Alma voluptuosa vecircs aqui o contraacuterio de um sonho e o acaso ausente Mas o contraacuterio de um sonho que eacute Fedro senatildeo outro sonho Um sonho de vigilacircncia e de tensatildeo que a proacutepria Razatildeo faria E que sonharia uma Razatildeo mdash Pois se uma Razatildeo sonhasse [] o sonho que ela faria natildeo haveria de ser isso que agora vemos mdash esse mundo de forccedilas exatas e de estudadas ilusotildees mdash Sonho [] inteiro penetrado de simetrias soacute ordem soacute ato e sequumlecircncia Quem sabe quais as Leis augustas sonham aqui ter tomado claras faces e concordado no desiacutegnio de manifestar aos mortais de que modo o real o irreal e o inteligiacutevel se podem fundir e combinar-se conforme o poder das Musas

Erixiacutemaco Eacute bem verdade Soacutecrates que o tesouro dessas imagens eacute inestimaacutevel Natildeo eacutes de opiniatildeo que o pensamento dos Imortais seja precisamente o que estamos vendo e que a infinidade dessas nobres semelhanccedilas as conversotildees as inversotildees as diversotildees inesgotaacuteveis que se respondem e deduzem diante de noacutes nos transportam aos conhecimentos divinosraquo

Natildeo se trata portanto de permanecer e discursar apenas sobre uma atividade artiacutestica especiacutefica que entatildeo se apresenta Transgredindo as significaccedilotildees da linguagem cotidiana as vozes ou personagens da Lrsquoacircme et la danse fazem da palavra danccedila mais do que um signo da danccedila transformam-na em um siacutembolo um siacutembolo divino cujo objeto se existe natildeo se revela laquoMallarmeacuteraquo o simbolista Valeacutery enigmaticamente registra laquodisse que a bailarina natildeo eacute uma mulher que danccedila pois ela natildeo eacute uma mulher e natildeo danccedilaraquo Fedro e Erixiacutemaco possuem assim extremas dificuldades em apreender e interpretar o suposto significado da danccedila de Athiktecirc A princiacutepio cada um de acordo com o seu temperamento procura debilmente compreendecirc-la dir-se-ia que apenas atraveacutes da mediaccedilatildeo do conceito Buscando uma ideacuteia segura e constante ldquoclara e distintardquo pretendem encerraacute-la numa definiccedilatildeo precisa como se isso fosse estritamente necessaacuterio Apesar de jaacute desconfiarem da existecircncia de outros planos de consciecircncia ainda operam portanto com a pretensa razatildeo supostamente onipotente e pura que natildeo se tranquumliliza se natildeo puder compreender se natildeo for capaz de categorizar e hierarquizar os fenocircmenos dentro de um sistema de mundo total no qual cada coisa possui seu lugar e funccedilatildeo Sempre mais idealista e impulsivo Fedro quer que ela a danccedila de Athiktecirc represente aquilo com que sonha o amor sempre mais nominalista e contido Erixiacutemaco quer que ela represente aquilo que percebe apenas um exerciacutecio do corpo

Talvez porque busque uma postura intermediaacuteria entre esses ldquoextremosrdquo possiacuteveis ou intua que tudo pode ser uma maviosa miragem a burla de algum deus oculto e brincalhatildeo Soacutecrates todavia e apesar de sua quase natural tendecircncia em inquirir sobre as profundezas do ser ou da realidade final insiste em permanecer como aquele que ainda estaacute em busca de sabedoria natildeo como aquele que jaacute a possui como um filoacutesofo natildeo como um saacutebio algueacutem que sabe apenas que nada sabe e portanto nada mais pode afirmar com absoluta certeza que faz da sua ignoracircncia uma profissatildeo de feacute e uma via Nesse momento ele eacute retratado como o tipo ideal ao qual o Ceticismo Antigo costuma elaborar e insistir tipo que adota como poliacutetica do espiacuterito a luacutecida recusa em afirmar ou em negar o que seja a verdade para assentar-se no aacuterido universo do possiacutevel Como outrora em natildeo raros diaacutelogos de Platatildeo Soacutecrates natildeo se decide por esta ou aquela definiccedilatildeo por esta ou aquela teoria e abandona seus interlocutores com suas opiniotildees e duacutevidas Prefere suspender o juiacutezo permanecer na deleitaacutevel contemplaccedilatildeo sem julgamento sem assentimento da danccedila de Athiktecirc prefere aceitar as incessantes mudanccedilas que constituem essa danccedila e aceitar que essas incessantes mudanccedilas talvez natildeo possam ser cristalizadas por um conceito uacutenico e preciso mas tambeacutem talvez natildeo precisem ser cristalizadas por um conceito uacutenico e preciso prefere aceitar que uma coisa possa receber muitos significados e significados contraditoacuterios entre si e que isso natildeo necessariamente precise ser valorado como algo negativo Mesmo considerando a danccedila de Athiktecirc um incocircmodo um desafio agrave razatildeo Soacutecrates ensaia pensar assim como depois seus amigos ensaiaratildeo que o sentido das coisas surge natildeo pela vontade exclusiva do homem no qual habita mas de uma relaccedilatildeo de uma relaccedilatildeo mdashincessantemdash entre o proacuteprio homem e as proacuteprias coisas Pois a compreensatildeo do mundo pode ocorrer natildeo apenas pelo distanciamento racional mas tambeacutem pela consciente entrega ao fluxo do proacuteprio mundo do qual a arte eacute um dos modelos mais representativos

laquoSoacutecrates Oacute meus amigos o que eacute verdadeiramente a danccedila

Erixiacutemaco [] mdash Que queres de mais claro sobre a danccedila aleacutem da danccedila nela mesma []

Soacutecrates [] Um olhar frio tomaria com facilidade por demente essa mulher bizarramente desenraizada que se arranca sem cessar da proacutepria forma [] Afinal por que tudo isso mdash Basta que a alma se fixe e faccedila uma recusa para soacute conceber a estranheza e o repulsivo dessa agitaccedilatildeo ridiacutecula Se quiseres alma tudo isso eacute absurdo []

Fedro Queres dizer amado Soacutecrates que tua razatildeo considera a danccedila como uma estrangeira cuja linguagem ela despreza cujos costumes lhe parecem inexplicaacuteveis senatildeo chocantes ou ateacute mesmo totalmente obscenos

Erixiacutemaco A razatildeo por vezes me parece ser a faculdade que nossa alma tem de nada entender de nosso corpo [Grifo do autor]

Fedro [] Athiktecirc me parecia representar o amor []

Erixiacutemaco fedro quer a todo custo que ela represente alguma coisa

Fedro Que pensas Soacutecrates [] Crecircs que ela representa alguma coisa

Soacutecrates Coisa nenhuma caro Fedro Mas qualquer coisa Erixiacutemaco [] Natildeo sentis que ela eacute o ato puro das metamorfoses

Fedro [] natildeo posso ouvir-te sem acreditar em ti nem acreditar sem ter prazer em mim mesmo ao acreditar em ti Mas que a danccedila de Athiktecirc nada represente e natildeo seja acima de tudo uma imagem dos transportes e das graccedilas do amor eis o que considero quase insuportaacutevel de ouvir

Soacutecrates Eu nada disse de tatildeo cruel ainda mdash Oacute amigos nada faccedilo aleacutem de perguntar-vos o que eacute a danccedila um e outro de voacutes parece respectivamente sabecirc-lo mas sabecirc-lo totalmente em separado Um me diz que ela eacute o que eacute e que se reduz agravequilo que nossos olhos estatildeo vendo e o outro insiste em que ela represente alguma coisa e que natildeo existe entatildeo inteiramente nela mesma mas principalmente em noacutes [Grifo do autor] Quanto a mim meus amigos minha incerteza fica intacta Meus pensamentos satildeo numerosos mdash o que nunca eacute bom sinalraquo

Eacute certo que o proacuteprio Soacutecrates pergunta laquoo que eacute verdadeiramente a danccedilaraquo a tiacutepica pergunta filosoacutefica cuja resposta revelaria atraveacutes de um processo dialeacutetico a essecircncia mesma das coisas Doravante tambeacutem se recusa solenemente a respondecirc-la eacute relativamente reticente quanto agrave sua adesatildeo a esta ou aquela interpretaccedilatildeo Talvez abrace a esperanccedila de poder encontrar um meio-termo uma conciliaccedilatildeo possiacutevel entre a o ldquoromantismordquo de Fedro e o ldquopragmatismordquo de Erixiacutemaco entre o objetivismo de um e o subjetivismo do outro Contudo observando a pura metamorfose da danccedila de Athiktecirc Soacutecrates muda aparentemente de assunto e retorna agrave temaacutetica inicial do diaacutelogo Com maliacutecia ele pergunta mdashapesar de jaacute conhecer a resposta a sua respostamdash a Erixiacutemaco se haacute um remeacutedio natildeo para o corpo mas para a alma para a alma racional para o que agora surpreendentemente denomina de laquoteacutedio de viverraquo para o taedium vitae Um teacutedio que natildeo tem origem em nenhum infortuacutenio particular mas que surge da extrema lucidez ante a vida Aparentemente essa pergunta surge como um surpreendente despropoacutesito um absurdo tanto para o curso do diaacutelogo como para a visatildeo das preocupaccedilotildees tipicamente socraacuteticas laquoPara curar um mal tatildeo racional [o teacutedio de viver] [] nada de mais moacuterbido em si mesmo nada de tatildeo inimigo da natureza do que ver as coisas como elas satildeoraquo diz Erixiacutemaco

laquoUma fria e perfeita clareza eacute veneno impossiacutevel de se combater O real em estado puro paralisa o coraccedilatildeo Basta uma gota dessa linfa glacial para distender numa alma os mecanismos e as palpitaccedilotildees do desejo exterminar todas as esperanccedilas arruinar todos os deuses que estavam em nosso sangue [] A alma surge diante de si mesma como uma forma vazia e mensuraacutevel mdash Eis que as coisas tais quais satildeo se juntam se limitam e se encadeiam de modo mais rigoroso e mais fatal [] o universo natildeo pode suportar um soacute instante ser apenas o que eacute Eacute estranho pensar que aquilo que eacute o Todo natildeo possa ser suficiente a si mesmo Seu pavor de ser o que eacute fez com que criasse e pintasse mil maacutescaras para si natildeo haacute outra razatildeo para as existecircncias dos mortais Por que existem os mortais mdash Ocupam-se de conhecer [] E o que eacute conhecer mdash Eacute assumir natildeo ser o que se eacute mdash Eis entatildeo os humanos delirando e pensando introduzindo na natureza o princiacutepio dos erros sem limite e essa miriacuteade de maravilhas [] Tudo ameaccedila logo perecer e Soacutecrates em pessoa vem me pedir um medicamento para essa caso desesperado de clarividecircncia e teacutedio

Soacutecrates [] uma vez que natildeo existe medicamento podes dizer-me ao menos que estado eacute o mais contraacuterio a esse horriacutevel estado de desengano puro lucidez assassina e nitidez inexoraacutevel

Erixiacutemaco Vejo inicialmente os deliacuterios natildeo-melancoacutelicos [] A embriaguez e a categoria das ilusotildees devidas aos vapores capitosos

Soacutecrates Bem Mas natildeo haacute formas de embriaguez que natildeo se devem ao vinho

Erixiacutemaco Sem duacutevida O amor o oacutedio a avidez embriagam O sentimento de poder

Soacutecrates Tudo isso daacute cor e gosto agrave vida Mas a chance de odiar ou de amar ou de adquirir grandes quantidades de bens estaacute ligada a todos os acasos do real Natildeo vecircs entatildeo Erixiacutemaco que dentre todas as formas de embriaguez a mais nobre e a mais oposta ao grande teacutedio eacute a embriaguez causada pelos atos Nossos atos e singularmente os atos que potildeem nosso corpo em agitaccedilatildeo podem nos introduzir a um estado estranho e admiraacutevel Eacute o estado mais distante desse triste estado em que haviacuteamos deixado o observador luacutecido e imoacutevel que imaginamos a poucoraquo

Os atos os atos do corpo eis enfim o remeacutedio para o teacutedio esse laquomal tatildeo racionalraquo esse laquotriste estadoraquo A danccedila de Athiktecirc Soacutecrates a compreende como a embriaguez capaz de purificar a proacutepria razatildeo ao momentaneamente afastaacute-la do desejo por uma realidade verdadeira uniacutevoca e imoacutevel agrave qual Erixiacutemaco conjetura ser paralisante e ao aproximaacute-la da realidade sensiacutevel plural e movente

Ao fim numa espeacutecie de febre de deliacuterio miacutestico e altamente hermeacutetico pouco frequumlente em um homem racional Soacutecrates tambeacutem acaba cedendo ao exerciacutecio hermenecircutico de seus companheiros e interpreta aquilo que contempla Entretanto sua interpretaccedilatildeo daacute-se pela negativa natildeo eacute atraveacutes da definiccedilatildeo de uma palavra natildeo eacute a afirmaccedilatildeo categoacuterica de que as coisas sejam deste ou daquele modo mas simplesmente a afirmaccedilatildeo daquilo que um fenocircmeno pode suscitar pode evocar no espiacuterito em seu caso a evocaccedilatildeo poeacutetica de um vasto siacutembolo o siacutembolo da chama Ao comparar esse fenocircmeno natural ao fenocircmeno cultural da danccedila do movimento ele simplesmente considera que se tudo o que ocorre ocorre singularmente de modo uacutenico inimitaacutevel irrecuperaacutevel que ocorra entatildeo como a mais perfeita forma possiacutevel laquoCoisa divina e vivaraquo declama ferozmente Soacutecrates laquoMas o que eacute uma chama oacute amigos senatildeo o proacuteprio momento [] E uma chama natildeo eacute tambeacutem a forma intangiacutevel e orgulhosa da mais nobre destruiccedilatildeo mdash O que nunca mais aconteceraacute acontece magnificamente diante de nossos olhos mdash O que nunca mais aconteceraacute deve acontecer o mais magnificamente possiacutevel [] Mas como [o corpo] luta contra o espiacuterito Natildeo percebeis que quer vencer em velocidade e variedade a sua alma mdash Tem estranho ciuacuteme dessa liberdade e dessa ubiquumlidade que ele crecirc que o espiacuterito possui Sem duacutevida o objeto uacutenico e perpeacutetuo da alma eacute bem aquilo que natildeo existe o que foi e natildeo eacute mais o que seraacute e natildeo eacute ainda o que eacute possiacutevel o que eacute impossiacutevel mdash satildeo bem esses os assuntos da alma mas nunca nunca aquilo que eacute E o corpo que eacute o que eacute eis que natildeo pode mais se conter na extensatildeo mdash Onde ficar mdash Que mudar mdash Essa unidade aspira ao papel do Todo Quer representar a universalidade da alma Quer remediar sua identidade pelo nuacutemero de seus atos Sendo coisa explode em acontecimentos mdash Exalta-se [] Essa mulher que ali estava foi devorada por figuras inumeraacuteveis Esse corpo em seus rompantes me propotildee um pensamento extremo assim como abandonamos nossa alma a muitas coisas para as quais ela natildeo eacute feita e lhes exigimos que nos esclareccedila que profetize que adivinhe o futuro encarregando-a ateacute de descobrir o Deus mdash assim o corpo que ali estaacute quer atingir uma posse completa de si mesmo e um grau sobrenatural de gloacuteria Mas acontece-lhe o mesmo do que com a alma para qual o Deus e a sabedoria e a profundeza que lhes satildeo exigidas natildeo satildeo e natildeo podem ser senatildeo momentos vislumbres fragmentos de um tempo estrangeiro saltos desesperados para aleacutem de sua formaraquo Todavia natildeo eacute de Soacutecrates mas de Athiktecirc providencialmente calada durante toda a danccedila a derradeira palavra laquoAsilo asilo oacute meu asilo Turbilhatildeoraquo ela grita laquomdash Eu estava em ti oacute movimento e fora de todas as coisasraquo Natildeo eacute sem motivo que etimologicamente a palavra athiktecirc (ldquo ἄθικτήrdquo) variaccedilatildeo proveniente do grego antigo ἄθικτος refira-se natildeo apenas agrave casta e agrave virgem mas tambeacutem ldquoagrave intocadardquo ldquoao que natildeo se deve ou natildeo se eacute capaz de tocar por ser sagradordquo Seraacute ela tambeacutem uma sacerdotisa

O diaacutelogo Lrsquoacircme et la danse revela-se assim uma espeacutecie de polifocircnico discurso a versar natildeo apenas sobre a fixidez das formas mas principalmente sobre as variaccedilotildees das formas que incessantemente o espiacuterito a consciecircncia vecirc nascer e morrer num processo que parece natildeo ter fim No digressivo labirinto de seu texto haacute uma relaccedilatildeo relativamente simeacutetrica entre a alma atenta ao tempo passado e futuro como siacutembolo da busca pelo que haacute de uno constante permanente eterno e racional da busca por algum Ser ( τὸ ὄν) e a danccedila atenta ao tempo presente como siacutembolo da entrega ao que haacute de muacuteltiplo inconstante impermanente temporal e irracional da entrega ao Devir ( γίγνεσθαι) Sobre a intensa relaccedilatildeo de todos esses poderosos pares de conceitos assim polarizados conta-se que Platatildeo mdashque fora disciacutepulo de Craacutetilo que por sua vez fora disciacutepulo de Heraacuteclitomdash professou a princiacutepio a doutrina heraclitiana do movimento substancial e somente depois apoacutes encontrar Soacutecrates acabou tambeacutem por aceitar a ideacuteia da existecircncia de um substrato eterno e imutaacutevel fundindo em sua filosofia tambeacutem o pensamento ldquoimobilistardquo de Parmecircnides Dir-se-ia ainda um tanto excessiva e esquematicamente que parte da Histoacuteria da Filosofia Ocidental a partir de entatildeo pode ser tambeacutem compreendida como um embate uma luta constante e sem teacutermino aparente entre todos esses pares de conceitos polarizados e a todos as outras polaridades que eles evocam atraem e repelem XE Montaigne XE Niezstche O diaacutelogo Lrsquoacircme et la danse natildeo deixa de ser herdeiro desse embate dessa luta Demonstra atraveacutes desse Soacutecrates valeacuteryano que a alma e a danccedila (ou o corpo que danccedila) talvez aspirem a realizar uma mesma meta imanente a ambos e em ambos designada por expressotildees distintas respectivamente laquodescobrir o Deusraquo ou laquouma posse completa de si mesmoraquo Todavia isso eacute apenas um desejo um ideal pois a alma parece ser incapaz de alcanccedilar algo aleacutem dos fenocircmenos e a danccedila parece ser incapaz de alcanccedilar a sua proacutepria perfeiccedilatildeo Ser torna-se apenas a aspiraccedilatildeo de ser Portanto haacute que se aceitar o Devir o movimento entregar-se a ele ao fluxo incessante do mundo agraves passagens O que conduz agrave seguinte questatildeo por que deveria haver portanto um antagonismo necessaacuterio entre o compreender e o criar entre o filoacutesofo que se distancia das coisas e do corpo e o artista que se entrega agraves coisas e ao corpo Essa questatildeo em grande parte presente no pensamento de Valeacutery eacute esboccedilada nesse diaacutelogo de vivos Lrsquoacircme et la danse mas plenamente desenvolvida no Eupalinos no qual a ldquoverdaderdquo eacute revelada agravequeles que dialogam no qual o teacutedio referido por Soacutecrates se evidencia de modo inevitaacutevel e atroz no qual o foco recai justamente sobre a alma e o corpo na medida em que se trata de um diaacutelogo de mortos

612 No mundo dos mortos

A morte eacute tradicionalmente um dos fenocircmenos naturais que mais instigam agrave reflexatildeo e agrave imaginaccedilatildeo humanas Com frequumlecircncia o medo eacute a ela associado Muitos tendem a encaraacute-la natildeo como um processo contiacutenuo e imanente agrave proacutepria vida mas como oposta a ela como um momento uacutenico a findar a existecircncia ou como uma cesura a separar duas modalidades da existecircncia a do corpo pereciacutevel limitado no tempo e no espaccedilo e a da alma que perdura em alguma outra dimensatildeo A partir dessa crenccedila mais ou menos generalizada mais ou menos dominante jaacute foi dito que se natildeo a totalidade ao menos a grande parte das metafiacutesicas (ou grande parte delas das que se mesclam com um pensamento mais estritamente religioso) seriam oriundas consciente ou inconscientemente de uma reflexatildeo sobre a morte ou sobre o apoacutes a morte o que pressuporia em natildeo raros casos uma reflexatildeo paralela sobre a assim considerada brevidade da vida e sobre o destino da alma sobre a finitude humana mesmo que tais metafiacutesicas a isso natildeo se referissem direta ou explicitamente Basta lembrar dos espirituosos ditos de um Ciacutecero e de um Michel de Montaigne amiuacutede voltados a refletir sobre a melhor forma de se viver Dir-se-ia natildeo sem ironia que por serem mortais os homens filosofam deuses imortais por definiccedilatildeo natildeo necessitariam de filosofia

Num dos seus mais ceacutelebres mitos imagem cujo padratildeo eacute surpreendentemente mais ou menos recorrente em outras culturas e temporalidades Platatildeo tambeacutem reflete sobre a existecircncia do e no ldquomundo dos mortosrdquo Em seu diaacutelogo Fedro ele imagina um lugar supra-celeste ( τόπος ὑπερουράνιος) que laquonenhum poeta cantou nem jamais cantaraacute dignamenteraquo e onde a alma tanto dos homens quanto dos deuses eacute comparada a um carro alado composto por um cocheiro representante da razatildeo e por dois cavalos ambos doacuteceis no caso da alma dos deuses um doacutecil e o outro indoacutecil no caso da alma dos homens Numa eterna cavalgada a alma dos homens ao contraacuterio da alma dos deuses eacute aquela que naturalmente natildeo conseguiria manter por muito tempo o equiliacutebrio Daiacute a queda daiacute as sucessivas reencarnaccedilotildees no ldquomundo dos vivosrdquo e tudo o que adveacutem ao se ter um corpo pereciacutevel que nasce cresce e envelhece Em seu estado original ou natural a alma dos homens tambeacutem seria capaz de contemplar de acordo com o seu maior ou menor grau de pureza uma maior ou menor quantidade destes ldquo entes eternosrdquo natildeo sujeitos ao devir do mundo sensiacutevel material as Ideacuteias ( εἶδος) formas modelos ou arqueacutetipos regras ou leis ldquo sobretudordquo dos objetos matemaacuteticos e dos objetos de valores (como o belo o bom o justo etc) Quando entretanto envolta por um corpo a alma perceberia apenas as coisas sensiacuteveis materiais com exceccedilatildeo daquela que se dedicasse agrave filosofia capaz ao menos de ter um certo vislumbre das Ideacuteias O que insinuaria certa relaccedilatildeo certo ponto de contato certa participaccedilatildeo entre o ldquomundo dos mortosrdquo e o ldquomundo dos vivosrdquo Supotildee-se que depois da morte o homem voltando a ser somente alma voltando a ser aquilo que sempre foi poderaacute novamente contemplar aquilo que em vida natildeo era tatildeo capaz

Toda essa cosmovisatildeo poderia facilmente sugerir a escrituraccedilatildeo de um diaacutelogo de mortos Influenciado por Menippus de Gadara (seacuteculo III aC) o aventureiro semita Luciano de Samoacutesata (seacuteculo II dC) escreve entre tantas obras o seu ceacutelebre Diaacutelogo dos Mortos e lega uma influecircncia natildeo menos proveitosa para o seacuteculo XVI francecircs com seus inuacutemeros personagens homens heroacuteis e deuses a satirizar a fama a gloacuteria e a vaidade dos homens No seacuteculo XVII o cartesiano Bernard le Bouvier de Fontenelle e o ceacutelebre arcebispo de Combrai Franccedilois de Salignac de la Mothe-Feacutenelon tambeacutem publicam as suas versotildees

Contudo talvez tenha sido Valeacutery o autor que realmente explorou de modo expliacutecito essa rica possibilidade formal descrevendo a imaginaacuteria aventura intelectual e memorialista de um Soacutecrates e de um Fedro ambos desencarnados ante um estranho mundo natildeo-sensiacutevel natildeo-material No seu ceacutelebre Dialogues des morts o Eupalinos (1921) ele natildeo se questiona estrategicamente sobre o porquecirc do fenocircmeno da morte pois a morte laquoessa aventura extraordinaacuteria essa modificaccedilatildeo maacutegica essa coisa incriacutevel que acontece a todos os outros enquanto eles satildeo outrosraquo laquonatildeo julga a vida Natildeo eacute objeto da vidaraquo Tampouco em momento algum refere-se a uma feacuterrica loacutegica de recompensas e de puniccedilotildees a qualquer tipo de salvaccedilatildeo ou perdiccedilatildeo que supostamente a alma estaria sujeita como frequumlentemente ocorre nos grandes sistemas religiosos do Ocidente Natildeo haacute a faacutecil evocaccedilatildeo de uma doutrina que julgue o ser humano pondo minuciosamente numa balanccedila os viacutecios e as virtudes as intenccedilotildees e as accedilotildees que possa ter cometido ou deixado de cometer em vida para entatildeo marcar a sua pertenccedila na eternidade O poeta purga seu diaacutelogo desse tipo de polecircmica religiosa e de qualquer tentativa de promulgar uma soteriologia uma moral Escrito como diz a sua calorosa epiacutegrafe simplesmente laquo Para agradarraquo (laquo Πρός χάρινraquo) e natildeo para doutrinar o Eupalinos natildeo deixa de ser uma poderosa representaccedilatildeo de um pensamento sobre a vida e para a vida esta eacute o que verdadeiramente importa esta eacute o que parece ser sub-repticiamente a meta capital de todo esse diaacutelogo

A princiacutepio o fiel disciacutepulo busca o seu querido mestre que como habitualmente fazia em vida havia se isolado agora natildeo dos outros vivos mas dos outros mortos nas laquofronteiras deste impeacuterio transparenteraquo para perder-se em si mesmo Questionado por Fedro sobre o que estaacute pensando Soacutecrates daacute o insoacutelito tom de todo o diaacutelogo laquoEspera Natildeo posso responder Bem sabes que nos mortos a reflexatildeo eacute indivisiacutevel Estamos agora muito simplificados para que uma ideacuteia natildeo nos absorva ateacute o final de seu curso Os viventes tecircm um corpo que lhes permite sair do conhecimento e neles reentrar Satildeo feitos de uma casa e de uma abelharaquo Doravante como bons gregos que se comprazem em tudo discutir eles procuram friamente avaliar a nova e estranha condiccedilatildeo na qual se encontram O mundo percebido pelos sentidos o mundo dos vivos por mais caoacutetico que possa agraves vezes parecer ou ser assim considerado natildeo deixa de ter uma ordenada heterogeneidade de ldquocoresrdquo e ldquoformasrdquo haacute uma loacutegica talvez natildeo nele mas que dele pode ser depreendido Essa propriedade e a contiacutenua apariccedilatildeo e desapariccedilatildeo de fenocircmenos que a razatildeo avalia como semelhantes ou diferentes permitem o prodigioso desenvolvimento mesmo da linguagem e da ciecircncia jaacute que estas se assentam em regularidades Dir-se-ia que esse mundo natildeo eacute um caos uma desordem mas um cosmos uma ordem O ser humano qualquer um pode nele mdashe ao fazer parte delemdash distinguir um objeto do outro pode nomeaacute-lo e passar esse nome agraves geraccedilotildees futuras na relativa esperanccedila que os objetos continuem mais ou menos como satildeo pode observar onde esta paacutegina comeccedila e termina e assim reconhececirc-la e chamaacute-la de paacutegina assim como tambeacutem pode distinguir o tamanho ou a extensatildeo de seu corpo mediante a diferenciaccedilatildeo de outros corpos que isto eacute sua matildeo e isto a pena que sua matildeo segura e com a qual escreve

Em seu comportamento o mundo dos mortos descrito e induzido por Valeacutery contrasta enormemente com um assim posto mundo dos vivos a princiacutepio natildeo se distancia em muito do que segundo o proacuteprio Soacutecrates de Platatildeo deve ser laquoa realidade que eacute verdadeiramente sem cor sem forma impalpaacutevel e que soacute pode ser contemplada pela razatildeo piloto da almaraquo Contudo diferentemente do que essa razatildeo possa habitualmente conjeturar eacute um lugar esteacuteril sem referecircncias fluido em demasia Os mortos satildeo assim incapazes de precisar os contrastes e os limites de distinguir onde ou quando uma coisa termina e outra comeccedila consequumlentemente descrevecirc-las nomeaacute-las torna-se quase impossiacutevel Capturados por essa celerada realidade Soacutecrates e Fedro estatildeo como que impedidos de retirar do que percebem representaccedilotildees fixas e portanto generalizaccedilotildees das quais se possa novamente especular Inventar uma nova linguagem e uma nova ciecircncia uma nova filosofia fazer teorias a partir desse mundo tais tarefas seriam como que impossiacuteveis e ingratas jaacute que a linguagem e a ciecircncia e mesmo a filosofia satildeo ao menos em seus movimentos iniciais derivadas da incessante relaccedilatildeo com os fenocircmenos sensiacuteveis materiais derivadas da experiecircncia Porque nesse imortal mundo onde as almas aportam tudo eacute pura passagem tempo sem mateacuteria tempo mdashparadoxalmentemdash sem espaccedilo

laquoFedro Comeccedilo a enxergar algo Mas nada distingo Meus olhos por instantes seguem tudo o que passa e o que deriva mas perdem-se antes de ter discernido Se eu natildeo estivesse morto ficaria nauseado com esse movimento tatildeo triste e irresistiacutevel Ou entatildeo sentir-me-ia constrangido a imitaacute-lo agrave maneira dos corpos humanos adormeceria para tambeacutem fluir []

Fedro Creio a cada momento que vou discernir alguma forma mas o que acreditei ver natildeo desperta em meu espiacuterito a menor similitude

Soacutecrates Eacute que assistes [] ao verdadeiro fluir dos seres Desta margem tatildeo pura vemos todas as coisas humanas e as formas naturais movidas segundo a velocidade proacutepria de sua essecircncia Somos como o sonhador em cujo seio figuras e pensamentos bizarramente alterados pela proacutepria fuga os seres se compotildeem com suas mudanccedilas Aqui tudo eacute indiferente e no entanto tudo importa Os crimes engendram imensos benefiacutecios e as maiores virtudes desencadeiam consequumlecircncias funestas o julgamento natildeo se fixa em parte alguma a ideacuteia faz-se sensaccedilatildeo sob o olhar e cada homem arrasta consigo uma sucessatildeo de monstros inextrincavelmente surgidos de seus atos e das formas sucessivas de seu corpo Penso na presenccedila e nos haacutebitos dos mortais nesse curso tatildeo fluido e que estive entre eles tratando de ver todas as coisas como as vejo precisamente agora Eu colocava a Sabedoria na postura eterna em que estamos Mas daqui tudo eacute irreconheciacutevel A verdade estaacute diante de noacutes e natildeo compreendemos mais nadaraquo

A verdade (ἀληθής) natildeo a pragmaacutetica natildeo a postulada pela correta relaccedilatildeo entre proposiccedilatildeo e representado como adaequatio intellectus et rei mas a ontoloacutegica enquanto descobrimento ou desvelamento daquilo que estaacute oculto enquanto passagem do sensiacutevel para o inteligiacutevel enquanto abertura para o real o homem que eacute capaz de reconhececirc-la torna-se incapaz de compreendecirc-la a verdade miseravelmente pouco ou de nada lhes serve Eis assim que se configura a elegante e capital ironia de Valeacutery e a partir da qual o seu diaacutelogo de mortos se desenvolve as almas errantes de Fedro e de Soacutecrates natildeo encontram mdashpara grande espanto de ambos os filoacutesofosmdash algo que poderiam dizer com convicccedilatildeo serem as Ideacuteias nenhum arqueacutetipo nenhuma hierarquia celeste nenhuma entidade eterna e nenhum Demiurgo os aguardavam a eles que buscaram em vida caminhar na retidatildeo da justiccedila e da virtude tampouco ocorre nenhum julgamento das almas como jaacute no Fedro se anuncia Nada daquilo que foi ldquoutopicamenterdquo prometido por uma doutrina que eles mesmos (ou Platatildeo) desenvolveram (ou reinventaram a partir da experiecircncia com a tradiccedilatildeo religiosa grega) no exerciacutecio especulativo de seus diaacutelogos terrenos ali se encontra Naturalmente tampouco a mateacuteria as coisas ou os fenocircmenos mdashos simulacros imperfeitos das Ideacuteiasmdash Nesse estranho e conjetural mundo dos mortos a essecircncia eacute movente e natildeo estaacutetica excessivamente movente a ponto de a tudo liquidar ou transformar o que em vida se considerava bom em morte pode ser considerado mal os opostos se misturam ou se invertem

Aqui evidencia-se que o diaacutelogo Eupalinos propositadamente ou natildeo dialoga com os diaacutelogos platocircnicos mais precisamente com o proacuteprio Fedro Neste agraves margens do rio Ilisso em meio a uma caminhada procurando responder a quem se deve agradar discutindo sobre a beleza e o amor Soacutecrates conta a um jovem Fedro justamente o mito da alma como carro alado e uma das versotildees da sua Teoria das Ideacuteias naquele no mundo dos mortos eacute Fedro que agora conta a Soacutecrates suas justificadas desconfianccedilas para com as reais vantagens que uma alma totalmente liberta do corpo venha a ter e consequumlentemente seus sentimentos para com a proacutepria noccedilatildeo daquilo que venha a ser realmente o polivalente conceito de Ideacuteia particularmente o da Ideacuteia do Belo (κάλος) mdashagrave qual o Soacutecrates valeacuteryano e Eupalinos perseguemmdash Como um ousado aprendiz que honra seu mestre ao contradizecirc-lo ao refutaacute-lo ele a questiona e a transforma passa a natildeo (mais) acreditar Nela como realidade em si Onde o Belo se encontra se natildeo haacute objetos sensiacuteveis dos quais se possa dizer que satildeo ou natildeo verdadeiramente belos A beleza XE arte eacute sempre inexoravelmente transitoacuteria a beleza eacute portanto para manter-se no registro do espiacuterito antigo uma condiccedilatildeo possiacutevel daquilo que natildeo eacute Ela soacute poderia ocorrer na vida natildeo na morte na mateacuteria natildeo no espiacuterito no que passa natildeo no que fica em tudo o que eacute ldquoirrealrdquo A Beleza deriva das belas coisas O seu conceito como qualquer outro que natildeo tenha como ser mesurado ou quantificado como qualquer outro qualificativo e abstraccedilatildeo natildeo eacute objetivo condiciona-se agraves subjetividades e agraves culturas aos interesses (conscientes ou inconscientes) daqueles que o professam ao modo como determinados padrotildees formais satildeo valorados Porque todo conceito deriva de uma experiecircncia sensiacutevel de um choque entre um eu e um natildeo-eu E a beleza mdashque tantas discussotildees suscitamdash a isso natildeo foge

laquoFedro [] O que haacute de mais belo natildeo figura no eterno [] Nada de belo eacute separaacutevel da vida e vida eacute o que morre

Soacutecrates Eacute possiacutevel dizecirc-lo desse modo Mas a maior parte dos homens tem da beleza uma noccedilatildeo imortal

Fedro Eu te direi Soacutecrates que a beleza segundo o Fedro que eu fui

Soacutecrates Platatildeo natildeo estaacute nessas paragens

Fedro Falo contra ele

Soacutecrates Pois bem fala

Fedro natildeo reside em certos raros objetos nem mesmo nesses modelos situados fora da natureza e contemplados pelas almas mais nobres como exemplares de seus desenhos e os tipos secretos de seus trabalhos coisas sagradas e das quais conviria falar com as proacuteprias palavras do poeta

Gloacuteria do longo desejo Ideacuteias [ Gloire du long deacutesir Ideacutees]

Soacutecrates Qual poeta

Fedro O admirabiliacutessimo Stephanos que apareceu tantos seacuteculos depois de noacutes Mas em meu sentimento a ideacuteia dessas Ideacuteias das quais nosso maravilhoso Platatildeo eacute o pai eacute excessivamente simples e tambeacutem pura demais para explicar a diversidade das Belezas a mudanccedila das preferecircncias dos homens o esquecimento de tantas obras que haviam sido elevadas agraves nuvens as criaccedilotildees novas e as ressurreiccedilotildees impossiacuteveis de prever Haacute muitas outras objeccedilotildeesraquo

A partir dessa proposta de discurso apoacutes o espanto Soacutecrates e Fedro refletem e divagam sobre algo mais especiacutefico em que o conceito mesmo de beleza costuma ser atrelado sobre a arte e os procedimentos artiacutesticos sobre a accedilatildeo o fazer a arte de um distanciado amigo de Fedro o enigmaacutetico arquiteto Eupalinos de Meacutegara a quem Soacutecrates desconhecia e para quem ao fim acaba rendendo homenagens Na eternidade na qual se encontram restam a eles apenas a rememoraccedilatildeo e a conversa resta a eles talvez esta atividade que reduzida agrave sua maacutexima simplicidade soacute necessita de consciecircncia e de memoacuteria das experiecircncias que natildeo podem mais se repetir a filosofia que agora adquire um caraacuteter de consolaccedilatildeo Visionaacuterios de um passado a ser revistado continuamente eles acabam trocando pensamentos quase melancoacutelicos como anjos que se debruccedilam sobre a preocupada cabeccedila dos imortais suas vozes natildeo versam mais sobre o Ceacuteu e o incondicionado mas sobre a Terra e o condicionado No mundo dos mortos os mortos se voltam para o mundo dos vivos

Assim da colocaccedilatildeo do Fedro valeacuteryano mdashmais malicioso do que o singelo que se apresenta na versatildeo platocircnicamdash de querer falar contra Platatildeo inicia-se uma engenhosa criacutetica agrave antiga metafiacutesica idealista Essa criacutetica pode ser enunciada em siacutentese pelo seguinte paralelo se os diaacutelogos platocircnico-socraacuteticos tecircm na pluralidade dos seus interesses e contradiccedilotildees como uma das metas centrais a descriccedilatildeo o elogio e a promulgaccedilatildeo do Mundo das Ideacuteias daquilo que eacute impereciacutevel imutaacutevel os breves diaacutelogos socraacuteticos de Valeacutery mdashdo qual o Eupalinos pode ser compreendido como a sua versatildeo mais acabada e completa aquele que cumpre essa concepccedilatildeo com mais vigormdash referem-se quase vinte quatro seacuteculos depois apoacutes a secularizaccedilatildeo de grande parte da civilizaccedilatildeo e o advento da Ciecircncia Moderna ao Mundo dos Fenocircmenos daquilo que eacute pereciacutevel mutaacutevel se uns se atecircm agrave realidade espiritual os outros se atecircm agrave realidade material Dir-se-ia talvez um tanto excessivamente que os uacuteltimos situam-se apesar de suas despretensiosas brevidades nas antiacutepodas dos primeiros todavia nada impede que eles tambeacutem natildeo possam ser considerados como estranhas continuaccedilotildees dos primeiros Afinal tudo o que se estabelece como criacutetica tambeacutem se estabelece dialeticamente como herdeiro Uma inversatildeo do platonismo sim talvez seja justamente isso o que no Eupalinos se realiza ou se busca realizar A fidelidade a Terra e ao Corpo como promulga Nietzsche eacute nesse diaacutelogo de mortos irocircnica e humildemente representada natildeo como uma dogmaacutetica e intransigente defesa da dimensatildeo sensiacutevel material mas como suave e estranha ficccedilatildeo que apenas afirma a realidade e a importacircncia dessa dimensatildeo sensiacutevel material sem desprezar as abstraccedilotildees e a razatildeo do espiacuterito E afirma justamente para a proacutepria vida do espiacuterito para o proacuteprio programa de autoconsciecircncia valeacuteryano

6121 A oraccedilatildeo de Eupalinos

Nessas condiccedilotildees compreende-se sem duacutevida qual eacute para mim a funccedilatildeo da poesia Eacute alimentar o espiacuterito do homem fazendo-o desembocar no cosmo Basta rebaixar nossa pretensatildeo de dominar a natureza e elevar nossa pretensatildeo de fazer fisicamente parte dela para que a reconciliaccedilatildeo tenha lugar

Francis Ponge Meacutetodos

Durante muito tempo foi insistentemente engendrada e propagada a antropocecircntrica crenccedila de que este mundo mdashpor se degenerar por se estar em constante movimento por ser uma derivaccedilatildeo do pecado original ou por qualquer outro motivo que a isso se relacionemdash eacute essencialmente mal corrompido e tudo que nele se insira todas as criaturas todas as invenccedilotildees e artes humanas tambeacutem compartilham em maior ou menor grau dessa deacutebil natureza A filosofia de Platatildeo e sua posterior apropriaccedilatildeo pelo Judaiacutesmo e pelo Cristianismo promoveram em muito essa cosmovisatildeo a tal ponto que se tornou em maior ou menor grau uma relativa constante na mentalidade do Ocidente E se hoje apoacutes o advento da Ciecircncia Moderna da industrializaccedilatildeo e do processo de laicizaccedilatildeo jaacute natildeo eacute tatildeo operante e jaacute tenha sido intensamente criticada inclusive pelo proacuteprio Cristianismo as caracteriacutesticas morais a ela atreladas seus duros elementos psicoloacutegicos transcendidas de seu contexto original como pecado culpa e remorso ainda o satildeo persistem Atrelado a isso quiccedilaacute o que mais sofreu com isso foi o corpo Este foi definido por Platatildeo e principalmente por Aristoacuteteles como um instrumento da alma mas tambeacutem como uma prisatildeo a obliterar e a degenerar a proacutepria alma a impedi-la de ser o que plenamente eacute

Como criacutetica a essa uacuteltima concepccedilatildeo e ao que ela costuma acarretar levanta-se parte do pensamento moderno jaacute um tanto incapaz de suportar tal aversatildeo aos desejos e aos afetos frequumlentemente condicionados pela dimensatildeo fiacutesica do mundo assim como Valeacutery que nunca deixou de escrever paradoxalmente entre a voluacutepia das sensaccedilotildees e o ascetismo do intelecto laquopelo olhar do espiritualraquo sentencia o poeta em seu diaacutelogo Περὶ τῶν τοῦ θεοῦ - Ou des choses divines laquoo mundo mdash humano eacute maldito mdashraquo Nesse sentido o Eupalinos eacute mesmo que sub-repticiamente mesmo que na multiplicidade de suas tatildeo diversas reflexotildees um dos seus mais incisivos escritos natildeo se limita apenas ao questionamento da doutrina das Ideacuteias platocircnicas atraveacutes da ausecircncia destas no mundo dos mortos mas tambeacutem vai ao questionamento da tradicional desvalorizaccedilatildeo sofrida pelo corpo desvalorizaccedilatildeo que em parte surge de uma apropriaccedilatildeo ou interpretaccedilatildeo da proacutepria Teoria das Ideacuteias platocircnicas assim como de tantas outras metafiacutesicas idealistas Inverter o platonismo natildeo eacute portanto mera criacutetica a Platatildeo pois muitas vezes a tradiccedilatildeo que leva seu nome dele se distancia inverter o platonismo eacute sobretudo desconfiar da crenccedila segundo a qual o importante para a vida transcende necessariamente a proacutepria vida segundo a qual a dimensatildeo do fenocircmeno o mundo transitoacuterio que aos sentidos assim se apresenta eacute numa suposta hierarquia eacutetica do cosmos inferior agrave dimensatildeo da nuacutemeno agraves construccedilotildees mentais que representam supostas estruturas eternas e imutaacuteveis inverter o platonismo eacute portanto conferir um outro valor ao corpo e agraves coisas do corpo Inserido numa sociedade que tende a aceitar com mais toleracircncia essa inversatildeo na medida em que ela jaacute vem se operando em maior ou menor grau como que naturalmente desde a quase inevitaacutevel cesura entre metafiacutesica tradicional e Ciecircncia Moderna o Eupalinos de Valeacutery torna-se assim um verdadeiro discurso agrave aceitaccedilatildeo da materialidade do mundo e a vaacutelida tentativa de atraveacutes de atividades como ciecircncia teacutecnica e arte transformar mesmo que passageiramente mesmo que de modo natildeo duraacutevel essa materialidade sem a necessidade de uma crenccedila qualquer em um outro transcendente que a sustente e a justifique que conforte e console Por que compreender alma e corpo como duas substacircncias distintas opostas ou contraacuterias por que ao se almejar a felicidade eterna acabe-se por adquirir uma natildeo rara aversatildeo ao corpo e ao mundo sensiacutevel material como se assim se pudesse afastar do sofrimento que adveacutem do apego ao proacuteprio corpo e ao proacuteprio mundo sensiacutevel material Natildeo seria isso ignorar ou querer ignorar que natildeo eacute necessaacuterio sofrer se ao admirar a beleza que sente ante a ocorrecircncia de um determinado fenocircmeno aceitar que este iraacute nascer crescer envelhecer morrer e se transformar em algo outro que este natildeo dura para sempre

Valeacutery defende assim pela poesia em prosa de seu diaacutelogo de mortos a possibilidade dessa perspectiva a importacircncia do corpo sobretudo para a consciecircncia que soacute entatildeo plenamente se desenvolveraacute atraveacutes dele laquoO pensamento natildeo eacute seacuterio senatildeo pelo corporaquo afirma laquoEacute a apariccedilatildeo do corpo que daacute o seu peso sua forccedila suas consequumlecircncias e seus efeitos definitivosraquo laquoTodo Sistema filosoacutefico no qual o Corpo do homem natildeo tem um papel fundamental eacute inepto inaptoraquo laquoO filoacutesofo natildeo tem o inteacuterprete do corporaquo E tais reflexotildees esparsas natildeo deixam de estar relativamente proacuteximas da filosofia de Nietzsche segundo a qual laquoaquele que estaacute desperto aquele que eacute saacutebio diz sou o corpo todo e nenhuma outra coisa e a alma eacute somente uma palavra para designar algo no corpo O corpo eacute uma grande razatildeo uma pluralidade dotada de um uacutenico sentido uma guerra e uma paz um rebanho e um pastorraquo

Em favor dessa revalorizaccedilatildeo redentora do mundo sensiacutevel material e por conseguinte do corpo Fedro evoca estrategicamente caras lembranccedilas seus diaacutelogos com Eupalinos o arquiteto que lhe mostrou como executar uma arte que diferentemente do que se possa esteticamente idealizar eacute sobretudo um embate constante e iacutentimo com as possibilidades e os limites da natureza da mateacuteria Para surpresa de Soacutecrates os fins do arquiteto natildeo lhe parecem ser tatildeo diferentes dos promulgados pelos filoacutesofos pois natildeo se reduzem apenas a questotildees de ordem pragmaacutetica como a busca da funcionalidade de um edifiacutecio e da beleza que este cumpre suscitar mas tambeacutem a si mesmo ao autoconhecimento socraacutetico ou agrave autoconsciecircncia valeacuteryana laquoQuanto mais medito sobre minha arteraquo diz o arquiteto a Fedro laquomais a exerccedilo quanto mais penso e faccedilo mais sofro e me regozijo como arquiteto mdash e mais me sinto eu mesmo com voluacutepia e clareza sempre mais precisas [] avanccedilo em minha proacutepria edificaccedilatildeo aproximo-me de tatildeo exata correspondecircncia entre meus desejos e minhas forccedilas que tenho a impressatildeo de haver feito da existecircncia que me foi dada uma espeacutecie de obra humana De tanto construir disse-me sorrindo creio ter-me construiacutedo a mim mesmoraquo laquoConstruir-se conhecer-se a si mesmo satildeo dois atos ou natildeoraquo pergunta-se Soacutecrates A resposta a essa capital pergunta para Valeacutery eacute naturalmente afirmativa conhecer-se tambeacutem eacute construir-se Conhecer-se eacute agir-se fazer-se Contudo para um Soacutecrates valeacuteryano que como o platocircnico radicalmente diz laquojamais tive outra prisatildeo aleacutem do meu corporaquo resta a Fedro referir-se ao ideal de Eupalinos laquoImagina pois com nitidez um mortal bastante puro razoaacutevel sutil e tenaz poderosamente armado por Minerva para meditar ateacute o fundo do seu ser logo ateacute o extremo da realidaderaquo assim propotildee o arquiteto laquoessa estranha alianccedila de formas visiacuteveis com efecircmeras combinaccedilotildees de sons sucessivos pensa de que origem iacutentima e universal se aproximaria a que precioso ponto se alccedilaria que deus encontraria em sua proacutepria carne E possuindo-se enfim nesse estado de divina ambiguumlidade propusesse a si proacuteprio construir natildeo sei quais monumentos [] Imagina que edifiacutecios [] Certa vez estive infinitamente perto de experimentaacute-lo mas somente da maneira como possuiacutemos durante um sonho o objeto amado Posso apenas falar-te das aproximaccedilotildees a algo tatildeo grandioso Ao anunciar-se caro Fedro difiro logo de mim mesmo [] Sou completamente outro eu [] As forccedilas acorrem [] Ei-las carregadas de clareza e de erro o verdadeiro e o falso brilham igualmente em seus olhos [] Esmagam-me com seus dons assediam-me com suas asas Fedro eis aqui o perigo Nada haacute mais difiacutecil no mundo Oacute momento supremo e dilaceramento capital Essas graccedilas superabundantes e misteriosas longe de acolhecirc-las tais e quais deduzidas unicamente do grande desejo inocentemente formadas pela extrema espera da alma eacute necessaacuterio que eu as suspenda oacute Fedro e que elas aguardem o meu sinal E tendo-as obtido por uma espeacutecie de interrupccedilatildeo de minha vida (adoraacutevel suspensatildeo do tempo comum) quero ainda dividir o indivisiacutevel moderar e interromper o nascimento das Ideacuteias [Grifo do autor] mdash Oacute infeliz disse-lhe eu que queres fazer no aacutetimo de um relacircmpago mdash Ser livre [] haacute tudo nesse instante e tudo com que se ocupam os filoacutesofos passa-se entre o olhar que cai sobre um objeto e o conhecimento que daiacute resulta para concluiacuterem sempre prematuramente mdash Natildeo te compreendo Esforccedilas-te pois em retardar as Ideacuteias mdash Eacute necessaacuterio Impeccedilo-as de me satisfazer difiro a pura felicidade []Importa-me acima de tudo obter do que iraacute ser que satisfaccedila com todo o vigor de sua novidade as exigecircncias razoaacuteveis daquilo que foiraquo

Partindo de um artista ideal de um homem universal o Eupalinos valeacuteryano propotildee com outras palavras e num outro contexto o mesmo meacutetodo do Leonardo valeacuteryano Ambos satildeo personificaccedilotildees de uma compreensatildeo formalista da criaccedilatildeo artiacutestica ambos natildeo creditam um significado uacutenico e fixo agraves obras que executam e se aproximam naturalmente no modo como contemplam e como trabalham as coisas que lhe satildeo dadas procuram natildeo concluir prematuramente procuram suspender ao menos provisoriamente a tendecircncia que a consciecircncia tem em generalizar e em universalizar em abstrair para poder com isso ater-se agrave realidade sensiacutevel e compreender melhor sem conceitos como sua arte deveraacute ser concebida e construiacuteda Humilde o arquiteto natildeo se refere a si mesmo como algueacutem que alcanccedilou a plenitude dessa singular suspensatildeo ele caminha em direccedilatildeo a ela e seu caminho eacute uma ascese Pratica atraveacutes de sua arte o autoconhecimento socraacutetico ou a autoconsciecircncia valeacuteryana Contudo diferentemente dos filoacutesofos convencionais sua meta natildeo eacute apenas um ir a si mesmo fora do mundo mas um ir a si mesmo no mundo natildeo eacute um distanciar-se mas um aproximar-se eacute sobretudo uma imprescindiacutevel conciliaccedilatildeo ou para usar uma palavra mais condizente com uma visatildeo relativamente idealista do passado uma re-conciliaccedilatildeo ou ainda na sugestiva e misteriosa palavra do poeta uma laquoalianccedilaraquo (laquoallianceraquo) Uma alianccedila natildeo como aquela que Deus impotildee ao homem mas entre o corpo e a alma entre a mateacuteria e o espiacuterito entre o profano e o sagrado mas tambeacutem consequumlentemente entre a ciecircncia teacutecnica e arte Conciliaccedilatildeo plenamente realizaacutevel atraveacutes da accedilatildeo ou do fazer do fazer a arte e da qual nasce a tatildeo ansiada e procurada beleza Assim em sua pragmaacutetica Eupalinos acaba professando uma sincera e delirante ldquooraccedilatildeo sobre o corpordquo a partir da qual posteriormente Fedro e Soacutecrates iratildeo especular e ultimar por si mesmos os desiacutegnios de um pensamento que seja ao mesmo tempo praacutetico e teoacuterico que resulte em obras de arte laquoNatildeo sei como esclarecer-te muito bem a respeito do que para mim mesmo natildeo estaacute claroraquo comeccedila Eupalinos

laquoao compor uma morada (quer para os deuses quer para os homens) ao buscar sua forma com amor aplicando-me em criar um objeto que delicie os olhos que se entretenha com o espiacuterito que esteja de acordo com a razatildeo e as numerosas conveniecircncias eu te direi esta coisa estranha que me parece entranhar-se na obra toda o meu corpo [] O corpo eacute um instrumento admiraacutevel pelo qual me asseguro de que os viventes tendo-o cada qual a seu serviccedilo dele natildeo dispotildeem em plenitude extraem apenas prazer dor e os atos indispensaacuteveis para viver Ora confundem-se com ele ora distraem-se por algum tempo de sua existecircncia ora animais ora puros espiacuteritos ignoram os viacutenculos universais que possuem Graccedilas no entanto agrave prodigiosa substacircncia de que satildeo feitos participam do que vecircem e do que apalpam satildeo pedras aacutervores trocam contatos e intimidade com a mateacuteria que os engloba tocam satildeo tocados pensam e sustentam pesos movem e transportam suas virtudes e seus viacutecios e quando entram em devaneio ou em sono indefinido reproduzem a natureza das aacuteguas fazem-se areias e nuvens Em outras ocasiotildees acumulam e projetam o raio Mas sua alma natildeo sabe se servir exatamente dessa natureza que lhe estaacute tatildeo proacutexima e que ela penetra Adianta-se atrasa-se parece fugir do proacuteprio instante Abalada ou impelida retira-se para dentro dela mesma onde se perde em seu vazio gerando fumaccedila Mas eu inteiramente ao contraacuterio instruiacutedo pelos meus erros digo em plena luz repito a cada aurora ldquoOacute corpo meu que me lembrais a todo momento o temperamento de minha iacutendole o equiliacutebrio de vossos oacutergatildeos as justas proporccedilotildees de vossas partes que voz fazem existir e vos restabelecem no seio das coisas moventes vigiai minha obra ensinai-me silenciosamente as exigecircncias da natureza comunicai-me essa grande arte da qual sois feito da qual sois dotado de sobreviver agraves estaccedilotildees e de vos refazer dos acasos Que eu encontre em vossa alianccedila [alliance] o sentimento das coisas verdadeiras moderai fortalecei assegurai meus pensamentos Pereciacutevel que sois voacutes os sois bem menos que meus sonhos perdurais mais que uma fantasia pagais pelos meus atos expiais pelos meus erros Instrumento vivo da vida sois para cada um de noacutes o uacutenico objeto que se compara ao universo A esfera inteira vos tem por centro oacute coisa reciacuteproca da atenccedilatildeo de todo o ceacuteu estrelado Sois verdadeiramente a medida do mundo do qual minha alma apresenta-me apenas o exterior Ela o concebe sem profundidade e tatildeo futilmente que por vezes se engana contando-o entre seus sonhos ela duvida do sol Enfatuada de suas efecircmeras fabricaccedilotildees crecirc-se capaz de uma infinidade de realidades diferentes imagina existirem outros mundos mas voacutes a chamais de novo a voacutes mesmos como a acircncora a si o navio Minha inteligecircncia mais bem inspirada natildeo cessaraacute caro corpo de chamar-vos a si doravante nem voacutes eu o espero de prodigar-lhe vossas presenccedilas vossas instacircncias vossos afetos pontuais pois encontramos finalmente voacutes e eu o meio de nos unirmos o noacutes indissoluacutevel de nossas diferenccedilas uma obra que seja nossa filha Atuaacutevamos cada qual de seu lado Voacutes viviacuteeis eu sonhava Minhas vastas fantasias limitavam-se a ilimitada impotecircncia Mas possa a obra que agora quero fazer e que natildeo se faz por si mesma obrigar-nos a nos responder e surgir unicamente de nosso entendimento Este corpo e este espiacuterito esta presenccedila invencivelmente atual e esta ausecircncia criadora que disputam o ser e que eacute preciso enfim compor mas este finito e este infinito que trazemos em noacutes mesmos cada qual segundo sua natureza cumpre agora que se unam em uma construccedilatildeo bem ordenada E queiram os deuses se trabalhem de acordo trocando conveniecircncias e graccedila beleza e solidez movimentos contra linhas e nuacutemeros contra pensamentos teratildeo enfim descoberto sua verdadeira relaccedilatildeo seu ato Que se combinem que se compreendam atraveacutes da mateacuteria de minha arte Pedras e forccedilas perfis e massas luzes e sombras agrupamentos artificiais ilusotildees de perspectiva e realidades da gravidade estes satildeo os objetos de seu comeacutercio e seu lucro a incorruptiacutevel riqueza que chamo Perfeiccedilatildeordquo

Soacutecrates Que oraccedilatildeo sem igual [] Todas essas palavras soam estranhas neste lugar Despojados agora de nossos corpos devemos seguramente nos lastimar e com o mesmo olho invejoso com que outrora contemplaacutevamos o jardim das sombras felizes consideremos a vida que deixamos Obras e desejos aqui natildeo nos acompanham mas haacute lugar para os arrependimentosraquo

Livre de seu invoacutelucro fiacutesico e de seus condicionamentos livre das possibilidades da doenccedila e da velhice livre tanto da dor quanto do prazer livre da morte e do corpo que morre livre de tudo aquilo que a limita uma alma natildeo teria numa perspectiva puramente pragmaacutetica porque transformar o que eacute natural em artificial Teacutecnicas para melhor viver para melhor trabalhar e habitar para progredir tais invenccedilotildees seriam totalmente estranhas No mundo dos mortos de Valeacutery nem a arquitetura nem a medicina seriam necessaacuterias Qual a utilidade de duas atividades que respondem agraves necessidades fiacutesicas para a alma que natildeo adoece envelhece e morre que natildeo necessita de alimentos e de higiene que natildeo necessita se proteger das intempeacuteries da natureza portanto de tudo aquilo que um corpo precisa para viver no mundo de vivos Ela poderia muito facilmente existir em eterna quietude e imobilidade sem ter nenhum outro contato com outras almas natildeo haveria mais a bruta necessidade que une ou desune os seres humanos natildeo haveria mais a dependecircncia fiacutesica que direta ou indiretamente condena a todos aqui ao conviacutevio e a poliacutetica a relaccedilatildeo com o outro e os desejos e necessidades do outro a uma incessante busca de equiliacutebrio entre as aspiraccedilotildees individuais e as limitaccedilotildees coletivas entre os desejos e poderes de um e os desejos e poderes do outro

Essa visatildeo a princiacutepio poderia ser considerada como amiuacutede foi uma boa ventura Contudo no Eupalinos assim como em grande parte da obra de Valeacutery consequumlecircncias natildeo tatildeo favoraacuteveis ou positivas satildeo expostas Num tal mundo dos mortos separados alma e corpo natildeo agem natildeo fazem natildeo fazem nada de concreto um torna-se potecircncia inconsciente o outro impotecircncia consciente Somente quando unidos e inseridos num mundo material eacute que ambos satildeo capazes de realmente agir de fazer Por conseguinte tambeacutem a arte natildeo existiria natildeo poderia existir pois mesmo natildeo sendo uma manifestaccedilatildeo direta das necessidades fiacutesicas ela eacute uma particular transformaccedilatildeo das formas da materialidade logo eacute feita pelo corpo e tendo em vista a realidade especiacutefica que este pelos sentidos recebe e ou constroacutei laquoA cada homem que nasce como haacute um corpo haacute um mundo e um tempo etcraquo E se qualquer accedilatildeo qualquer fazer concreto fica assim interdito a uma alma sem corpo fica tambeacutem interdito o principal veiacuteculo para o autoconhecimento ou a autoconsciecircncia posto que realizar agir e fazer natildeo tecircm apenas como fim a transformaccedilatildeo da realidade exterior mas tambeacutem a realidade interior o si mesmo O corpo possibilita eacute um dos princiacutepios da proacutepria possibilidade revela-se portanto natildeo como uma mera limitaccedilatildeo natildeo apenas como a mera prisatildeo-instrumento que a alma possui para acessar a moldaacutevel materialidade da qual a arte se constitui mas tambeacutem como o modo mesmo da proacutepria alma acessar a si mesmo e nesse acessar transformar-se O mais pleno autoconhecimento ou autoconsciecircncia se daacute atraveacutes da mateacuteria A alianccedila entre essas duas categorias tatildeo recorrentemente postas em dramaacutetica oposiccedilatildeo e conflitos por grande parte da tradiccedilatildeo Ocidental entre o corpo e a alma tem aiacute a sua justificativa natildeo simplesmente ldquoeacuteticardquo mas sobretudo ldquoesteacuteticardquo E a arte vem a ser tanto em sua accedilatildeo em seu fazer como em seus resultados um dos principais meios materiais dessa alianccedila a arte torna-se o meacutetodo capital de autoconhecimento ou autoconsciecircncia mdasha ascese que natildeo nega o mundo sensiacutevelmdash Eis o sentido do aprendizado do incorpoacutereo e querido Soacutecrates valeacuteryano

6122 Anti-Soacutecrates

Como tantas outras figuras que se instauram entre a lenda e a histoacuteria Soacutecrates recebeu inuacutemeras maacutescaras ele que eacute natildeo raro considerado em maior ou menor consenso como um dos mais presentes avatares daquilo que tatildeo genericamente se denomina Ocidente Aristoacutefanes o ridicularizou como um ingecircnuo e pateacutetico sofista Xenofonte o desenhou como um modelo de serenidade e simplicidade o oraacuteculo de Delfos o proclamou como o homem mais saacutebio de seu tempo Platatildeo o considerava como o homem mais justo que conhecera Sob o nebuloso pretexto de corromper os jovens e de instaurar novos deuses o grande questionador foi condenado agrave morte destino que aceitou de um modo extremamente resoluto paciacutefico como se natildeo houvesse muita diferenccedila entre este e o outro mundo Posteriormente outros talvez imbuiacutedos de um forte sentimento profeacutetico nele viram a exemplificaccedilatildeo avant-la-lettre da humildade asceacutetica frequumlentemente recomendada ou exigida pelo Cristianismo Medieval Tal interpretaccedilatildeo possui fortes justificativas Com a ironia de um ldquosaber que ignorardquo Soacutecrates natildeo apenas tinha por haacutebito desobrigar-se de professar a verdade doravante parecia por vezes conhececirc-la em segredo mas pondo no centro da vida a questatildeo eacutetica encarava a proacutepria filosofia como um modo de vida como um exerciacutecio um veiacuteculo a algo mais essencial quiccedilaacute inefaacutevel agraves palavras ao discurso Esse comportamento representa hoje uma cesura canocircnica com relaccedilatildeo aos ditos ldquopreacute-socraacuteticosrdquo aos fisioacutelogos que aparentemente preocupavam-se mais com questotildees cosmoloacutegicas e em especular sobre a natureza da realidade Daiacute tambeacutem as caracteriacutesticas da riacutegida conduta de Soacutecrates que tanto influenciaram as posteriores escolas filosoacuteficas que na Heacutelade se instauraram sua simplicidade e pobreza seu despojamento e desapego uma fidelidade inquebrantaacutevel a si mesmo a seu proacuteprio aprendizado Assim dentre todas as imagens que se pode fazer desse filoacutesofo paradigmaacutetico desse filoacutesofo-conceito natildeo raro contraditoacuterias entre si uma das mais constantes na tradiccedilatildeo eacute aquela que justifica e amplia essas caracteriacutesticas a de um homem extremamente voltado para o espiacuterito que se entreteacutem com o conceito e a abstraccedilatildeo com a universalidade

Eacute justamente dessa intensa e constante imagem que Valeacutery principia manteacutem a concepccedilatildeo de um Soacutecrates aprendiz mdashconcepccedilatildeo quiccedilaacute aquela que mais carisma emanamdash e a transforma para que atenda a suas proacuteprias intenccedilotildees Se Leonardo da Vince eacute aquele que nada espera e tudo faz se Edmond Teste eacute aquele que nada espera nada faz e para quem tudo eacute permitido se essas duas estranhas figuras representam tipos-ideais de consciecircncias extremas que vivem de um modo quase inumano a primeira numa sociedade preacute-cientiacutefica e a segunda numa sociedade jaacute totalmente industrializada entatildeo Soacutecrates agora transformado em uma outra personagem conceitual mesmo em morte mesmo para aleacutem de qualquer sociedade possiacutevel aparece como a representaccedilatildeo de um humano que descobre a sua proacutepria humanidade Ele natildeo eacute no Eupalinos retratado mdashcomo natildeo o foi por seus contemporacircneosmdash como um saacutebio ldquooniscienterdquo dono de todas as respostas como uma pessoa acabada definitiva mas como um homem provisoacuterio nobre justamente por natildeo temer o por vezes angustioso movimento da duacutevida do desconfiar do reconsiderar do desconstruir do retornar jamais se esquecendo da rara e difiacutecil arte de desistir sabe intui saber que suas crenccedilas natildeo satildeo blocos monoliacuteticos a desafiar as intempeacuteries sociais mas estatildeo como que em constante transformaccedilatildeo moldando-se conforme os adventos e as circunstacircncias Assim a princiacutepio quando receacutem adentrou o estranho mundo dos mortos o Soacutecrates valeacuteryano natildeo poderia deixar de ser relativamente fiel agrave sua imagem canocircnica e portanto de ter os mesmos princiacutepios que o imortalizaram frente agraves inuacutemeras geraccedilotildees vindouras Como seu antigo mestre Parmecircnides coerente com o registro da Antiguidade Claacutessica que frequumlentemente postulava a ciecircncia do Ser como a ciecircncia suprema hierarquicamente superior a todas as demais acredita que o conceito de verdade deva referir-se exclusivamente a uma universalidade e natildeo a uma particularidade que cumpre ao espiacuterito retirar-se da massa de fenocircmenos sensiacuteveis e repousar no inteligiacutevel Doravante no digressivo transcurso do diaacutelogo suas concepccedilotildees vatildeo pouco a pouco se modificando lapidando-se evoluindo como todo pensamento cumpre ser auxilia-o naturalmente sua condiccedilatildeo de desencarnado e a abstrata realidade na qual se encontra Conforme Fedro lhe incita e lhe aponta como outrora ele mesmo o fazia em vida outros caminhos para a realizaccedilatildeo daquilo que sempre e tatildeo-somente buscou realizar o que haacute de mais excelso no homem a divindade interna e sempre presente Soacutecrates pondera reconsidera e vai se descobrindo outro As seguintes palavras gentis e sinceras corroboram e reiteram mais uma vez um dos pontos mais incisivos e constantes da criacutetica que Valeacutery tece agrave filosofia e ao filoacutesofo

laquoFedro Uma soacute coisa Soacutecrates uma soacute te faltou Homem divino talvez natildeo sentias necessidade alguma das belezas materiais do mundo pois mal as apreciavas Sei que natildeo desdenhas a doccedilura dos campos o esplendor da cidade os mananciais de aacutegua cristalina a sombra delicada do plaacutetano mas tudo isso natildeo era para ti senatildeo distantes ornamentos de tuas meditaccedilotildees fronteiras prazerosas de tuas daacutedivas terreno favoraacutevel aos teus passos interiores O que havia de mais belo para bem longe de si te conduzindo vias sempre outra coisa

Soacutecrates O homem e o espiacuterito do homem

Fedro Mas entatildeo natildeo encontraste entre os homens alguns cuja singular paixatildeo pelas formas e pelas aparecircncias te surpreendesse [] E dos quais inteligecircncia e virtude nada deixavam a desejar

Soacutecrates Por certo

Fedro Tu os situavas acima ou abaixo dos filoacutesofos

Soacutecrates Depende

Fedro O alvo dessas criaturas te parecia mais digno ou menos digno de procura e de amor que o teu proacuteprio

Soacutecrates Natildeo se trata de seu alvo Natildeo posso pensar que existam vaacuterios Bem-Supremos Mas eacute-me obscuro difiacutecil entender que homens tatildeo puros quanto agrave inteligecircncia tenham tido necessidades de formas sensiacuteveis e de graccedilas corpoacutereas para atingir seu estado mais elevadoraquo

A partir de entatildeo todo o diaacutelogo natildeo deixa de ser um contiacutenuo e natildeo raro sofrido aprendizado de Soacutecrates Este ao fim compreende o significado da alianccedila entre corpo e alma que natildeo eacute necessaacuterio sacrificar o material em favor do imaterial o sensiacutevel em favor do intelectual que essas duas esferas podem coexistir em harmonia pois de fato talvez sejam uma soacute compreende que pode haver prazer sem aversatildeo ou conflito ante os elementos naturais ou artificiais forjados ou natildeo pela industriosa matildeo humana compreende XE Platatildeo que a arquitetura a escultura a pintura a danccedila a muacutesica a poesia todas estas e outras tantas formas de se contemplar as laquobelezas materiais do mundoraquo atraveacutes do ato de concebecirc-las e fazecirc-las satildeo praacuteticas que natildeo distintas do pensamento filosoacutefico do puro trabalhar com conceitos tambeacutem transformam o espiacuterito tambeacutem elevam tambeacutem purificam pois tambeacutem exigem o imperioso e difiacutecil exerciacutecio das principais faculdades prezadas por Valeacutery a razatildeo a atenccedilatildeo e o esforccedilo Mas essa compreensatildeo natildeo deixa de ser acompanhada por uma profunda melancolia Estando morto resta-lhe pouca coisa resta-lhe apenas o voltar-se para a pura especulaccedilatildeo para o que fez e deixou de fazer para o que poderia ter feito em vida Soacutecrates entatildeo reconsidera Conjetura aquilo que o poeta insistentemente expressa ser necessaacuterio a qualquer praacutetica que deveria ter sido em vida tanto um filoacutesofo como um artista Ele que sempre procurou a si mesmo acaba ao fim por descobrir mediante a concepccedilatildeo de arte de Eupalinos que um dos mais efetivos caminhos para se encontrar ou para se realizar Deus XE Deus mdashum Deus que parece ser imanente ao mundo puro movimento e pura continuidademdash eacute como jaacute anuncia a desconcertante danccedila de Athiktecirc o da accedilatildeo do fazer XE criaccedilatildeo

laquoFedro Que queres pintar sobre o nada

Soacutecrates O Anti-Soacutecrates

Fedro Imagino-o mais de um Haacute muitos que satildeo contraacuterios a Soacutecrates

Soacutecrates Pois este seraacute o construtor

Fedro [] O Anti-Fedro o escuta

Soacutecrates [] Natildeo foi proveitoso temo-o buscar durante toda a minha vida esse Deus que tentei descobrir perseguindo-o unicamente atraveacutes de pensamentos procurando-o com o variado sentimento do justo e do injusto instando-o a render-se agrave solicitaccedilatildeo da dialeacutetica mais refinada Esse Deus assim encontrado eacute apenas palavra nascida de palavra e retorna agrave palavra Pois a resposta que forjamos para noacutes mesmos seguramente natildeo deixa nunca de ser a proacutepria questatildeo e toda questatildeo do espiacuterito ao proacuteprio espiacuterito natildeo eacute e natildeo pode ser senatildeo ingenuidade Mas ao contraacuterio nos atos e na combinaccedilatildeo dos atos eacute que devemos encontrar o sentimento mais imediato da presenccedila do divino e o melhor emprego dessa parte de nossas forccedilas inuacutetil agrave vida e que parece reservada agrave busca de um objeto indefiniacutevel que nos ultrapassa infinitamente Pois se o universo eacute o efeito de algum ato esse ato de um Ser e de uma necessidade de um pensamento de uma ciecircncia e de um poder pertencentes a esse Ser somente com atos poderaacutes integrar-se no grande designo e propor a ti mesmo a imitaccedilatildeo do que fez todas as coisas Esta eacute a maneira mais natural de te introduzir no lugar do proacuteprio Deusraquo

E eis que no Eupalinos o Soacutecrates valeacuteryano parece arrepender-se parece entatildeo sentir um quase doloroso sentimento de nostalgia algo que poderia ser denominado de saudade saudade do tempo em que vivia e caminhava nas praccedilas e nos mercados em companhia das multidotildees e das contradiccedilotildees dos homens Do mesmo modo que um exilado pode vir a conhecer e avaliar melhor a sua proacutepria terra natal quando se encontra em uma terra estrangeira entre idiomas e costumes distintos ele conhece e avalia mais adequadamente os seus proacuteprios pensamentos quando deles se distancia quando os contempla atraveacutes de uma perspectiva que natildeo aquela na qual foram originalmente engendrados Na laboriosa pena de Valeacutery o ceacutelebre filho do talhador de pedras Sofronisco tatildeo-somente pode refletir e discursar sobre a importacircncia do mundo sensiacutevel no mundo inteligiacutevel onde qualquer praacutetica teacutecnica e artiacutestica eacute justamente desnecessaacuteria e impossiacutevel onde os atos de conceber de projetar e de construir natildeo passam de lembranccedilas pois natildeo haacute a mateacuteria e as leis que a regem e a condicionam Dir-se-ia que eacute pela falta atraveacutes do duro e fabuloso exerciacutecio espiritual da rememoraccedilatildeo mdashuma espeacutecie de anamnese praticada no mundo dos mortosmdash que o ceacutelebre ldquopai da ironiardquo pode compreender a importacircncia daquilo a que outrora era amiuacutede refrataacuterio Eacute a ausecircncia determinando o valor daquilo que estaacute ausente Se na vida Soacutecrates volta-se para a morte na morte Soacutecrates volta-se para a vida Quiccedilaacute tambeacutem ele natildeo queira retornar Retornar para poder enfim encontrar-se com Deus Natildeo atraveacutes da especulaccedilatildeo dos labirintos da linguagem verbal na qual eacute mera palavra passiacutevel de ser usada pelos mais variados discursos e desconectada da realidade mas atraveacutes da accedilatildeo do fazer no qual insere-se na realidade e revela-se para o indiviacuteduo como uma praacutetica Eis portanto o que conclui o Soacutecrates valeacuteryano Deus eacute o nome dado a uma praacutetica Deus revela-se numa praacutetica

613 No mundo dos vivos

Conclusatildeo

Obras autocircnomas geralmente escritas em funccedilatildeo de comissotildees determinadas os diaacutelogos socraacuteticos de Valeacutery possuem independecircncia um em relaccedilatildeo ao outro assim tambeacutem em relaccedilatildeo a outros diaacutelogos seus mas eacute bastante proveitoso observar como certas argumentaccedilotildees e concepccedilotildees repetem-se em todos eles haacute toda uma intertextualidade relativamente oculta entre eles assim como entre muito dos escritos do poeta No intento de mostrar que laquoo pensamento puro e a busca da verdade em si natildeo podem jamais aspirar agrave descoberta ou a construccedilatildeo de alguma formaraquo tanto em Lrsquoacircme et la danse como em Eupalinos a riacutegida e hieraacuterquica divisatildeo entre alma e corpo mateacuteria e espiacuterito eacute alvo de severa criacutetica para tal ambos os diaacutelogos evocam ao fim surpreendentemente e como em Monsieur Teste o conceito de Deus Providencial que doravante este seja justamente um dos principais temas para um terceiro diaacutelogo socraacutetico agora novamente entre vivos estranha e simultaneamente intitulado em grego e francecircs de Περὶ τῶν τοῦ θεοῦ - Ou des choses divines (1944) Fragmentado e inacabado verdadeiro desafio para a criacutetica essa estilhaccedilada obra da qual alguns trechos tambeacutem pertencem aos Cahiers eacute juntamente com Alphabet Lrsquoange e principalmente a esoteacuterica peccedila Mon Faust uma daquelas que exemplarmente retratam as reflexotildees da uacuteltima fase da vida de Valeacutery ateacute hoje muito pouco estudada e natildeo raro bastante incocircmoda para os inteacuterpretes que crecircem num retrato relativamente fixo de um poeta supostamente avesso agrave religiatildeo e agrave miacutestica Dando continuidade a sua estrateacutegia literaacuteria ele agora imagina supotildee-se um diaacutelogo entre os disciacutepulos e conhecidos de Soacutecrates apoacutes a morte deste e inclusive entre personalidades histoacutericas Natildeo chega contudo a escolhecirc-los em definitivo Sabe-se que podem ser as jaacute conhecidas personagens ou vozes de Fedro Erixiacutemaco e Athiktecirc mas tambeacutem as figuras de Zenatildeo de Eleacuteia e Timeu Zithon Filebo Proteu Teoacutefilo e principalmente do proacuteprio Daimon de Soacutecrates curiosamente chamado de Hypnos o Sem Corpo (laquoSans Corpsraquo) um espiacuterito a conversar a falar em versos brancos com os vivos por vezes tambeacutem evoca aquilo que denomina de dramatis personnae como as de Santo Anselmo Santo Tomaacutes de Aquino Dante Pascal e Descartes Haacute portanto muitas opccedilotildees de vozes ou personagens todas recorrentes em outros tantos escritos de Valeacutery Mas natildeo houve tempo de fazer as escolhas pois a morte logo veio a ter com o poeta

Um das principais propostas desse diaacutelogo embrionaacuterio eacute sobretudo investigar o que faz o homem usar tatildeo frequumlentemente o conceito de Deus para explicar o mundo laquoo que faz o homem recorrer agrave noccedilatildeo mdash ou notaccedilatildeo de Deusraquo para entatildeo ao que grande parte dele indica laquoarruinar o que estaacute arruinado mdash o Divino tradicional [] que natildeo estaacute mais em equiliacutebrio como a manobra mental possiacutevel e as [] descobertasraquo que natildeo estaacute mais portanto em consonacircncia ou em harmonia com o advento da Ciecircncia Moderna e de modos de pensar mais analiacuteticos Quanto agraves causas evocadas do surgimento e do uso conceito de Deus e mesmo de outras tantos outros do discurso religioso duas se destacam

Uma refere-se mdashnatildeo se distanciando em muito de uma visatildeo jaacute claacutessica da origem das crenccedilas religiosasmdash ao espanto ao medo diante de tudo o que existe laquoO medo e as ilusotildees dos selvagens e dos primeiros humanosraquo lecirc-se por exemplo numa quase intransigente passagem dura como a dos primeiros etnoacutelogos de orientaccedilatildeo positivista laquocriaram os espiacuteritos e os deuses como reaccedilotildees ingecircnuas mdash e produtos brutos de brutos mdash e essas obras grosseiras [foram] enobrecidas e refinadas pelas eras seguintesraquo e isso a tal ponto que o Deus dos filoacutesofos e dos teoacutelogos por exemplo frequumlentemente se transforma num laquofetiche abstrato um iacutedolo no fim do raciociacutenio mdashraquo Com isso a criacutetica de Valeacutery parece natildeo almejar simplesmente a fraqueza humana a engendrar personificaccedilotildees antropomorfismos formas psicoloacutegicas usadas de modo egoiacutestico para suportar o peso da realidade a doenccedila a velhice e a morte o sofrimento mas principalmente mdashe o que eacute aqui centralmdash as terriacuteveis consequumlecircncias de se criar e de se usar qualquer conceito por mais adequado que possa parecer no momento nascente sob o impeacuterio do medo numa frase memoraacutevel lecirc-se laquoAquilo que eacute engendrado pelo medo [] engendra o medoraquo Aquilo que eacute engendrado pelo medo perturba o espiacuterito ou melhor demonstra o quanto o proacuteprio espiacuterito jaacute se encontra em perturbaccedilatildeo e portanto que soacute muito dificilmente seraacute capaz de engendrar conceitos adequados agrave realidade Dir-se-ia que para o poeta em seu programa de autoconsciecircncia assim como para seus principais personagens conceituais Leonardo e sobretudo Teste um pensamento puro eacute um pensamento sem medo

Coadunando-se harmonizando-se com essa concepccedilatildeo a segunda causa do surgimento e do uso do conceito de Deus evocada mdashidecircntica agrave argumentaccedilatildeo que Valeacutery utiliza contra a filosofiamdash refere-se justamente ao automatismo verbal tambeacutem recorrente e enormemente recorrente no pensamento religioso a engendrar contra-sensos falsos problemas e falsas soluccedilotildees Uma das palavras mais propensa a variaccedilotildees semacircnticas uma das palavras mais servil aos discursos metafiacutesicos Deus natildeo deixa de ser tambeacutem o signo o resultado do esquecimento ou da ignoracircncia do funcionamento da linguagem Ele eacute laquoum viacutecio de construccedilatildeoraquo E devido justamente ao advento da Ciecircncia Moderna e de modos de pensar mais analiacuteticos Valeacutery natildeo tarda em afirmar que laquoQuanto mais vocecirc compreender menos deus haveraacuteraquo laquoNum mundo preciso natildeo haacute lugar para o deus mdashraquo Ou ainda laquoToda disputa acerca da feacute seria imediatamente abolida se somente fosse possiacutevel agarrar representar exatamente o estado do crente tal qual aparece e ele mesmoraquo Dessarte o que eacute tradicionalmente atrelado aos desiacutegnios de Deus os dogmas Cristatildeos eacute veementemente questionado (como tambeacutem ocorre em Au sujet drsquolsquoEurecirckarsquo e Dialogue de lrsquoarbre) sobretudo a Escatologia corpo doutrinaacuterio segundo o qual o homem e o mundo rumam ao fim dos tempos e em contrapartida o Criacionismo corpo doutrinaacuterio segundo o qual Deus criou o mundo e o criou a partir do nada Ambas as concepccedilotildees (que contribuiacuteram para a formaccedilatildeo de uma concepccedilatildeo linear do tempo e da histoacuteria) satildeo para Valeacutery (refrataacuterio agraves filosofias histoacutericas idealistas) natildeo apenas tristes propagadoras da esperanccedila e do medo mas principalmente contra-sensos Pois ao espiacuterito agrave consciecircncia (agrave razatildeo) simplesmente natildeo faz sentido pensar o nada um comeccedilo e um fim o nada um comeccedilo e um fim soacute satildeo passiacuteveis de serem pensados enquanto conceitos-limite enquanto representaccedilotildees natildeo enquanto tais natildeo enquanto representados pois eles natildeo remetem a nada de real laquodizer que um deus criou o mundoraquo escreve o poeta laquoeacute nada dizer ideacuteia nula posto inimaginaacutevelraquo laquoeacute perfeitamente vatilde dizer um deus fez o mundo se noacutes natildeo podemos dar nenhuma ideacuteia dessa operaccedilatildeoraquo

Contudo haacute que se matizar a insipiente e lacunar criacutetica de Valeacutery ao conceito de Deus ou melhor aos usos do conceito de Deus pois haacute outros tantos fragmentos que parecem deliberadamente contradizer o que anteriormente foi dito que parecem atacar o problema atraveacutes de outra perspectiva (Afinal trata-se de um escrito extremamente incompleto e natildeo haacute como distinguir precisamente quem realmente se expressa o autor ou as suas vozes ou personagens e nestas quem estaacute a expressar isto ou aquilo) Agraves vezes o diaacutelogo acorda por exemplo em fazer a distinccedilatildeo entre Deus ou deuses de um lado e as coisas divinas de outro quanto a isso alguns fragmentos assim rezam laquoAs coisas divinas satildeo mais raras que os deuses mdash Mais divinas tambeacutemraquo laquoEu natildeo vejo uma razatildeo para deus mas eu natildeo digo que o divino seja inexistenteraquo laquomdash o divino mdash uma pura possibilidaderaquo Mas essa distinccedilatildeo eacute muito pouco clara quiccedilaacute as coisas divinas ou o divino refiram-se ao que haacute de mais valoroso a um espiacuterito particular sem que este tenha qualquer intenccedilatildeo de universalizar de propagar sua proacutepria hierarquia de valores e Deus a um valor que um ou vaacuterios espiacuteritos particulares intentam universalizar propagar a todos os demais independentemente destes assim tambeacutem considerarem ou natildeo Entretanto haacute uma outra passagem que incita a matizar ainda mais a criacutetica de Valeacutery ao conceito de Deus laquoTodos os insultos que noacutes fazemos a deusraquo escreve ele laquotodas as mais graves injuacuterias [] tecircm por raiz o nosso censuraacute-lo natildeo sermos um deus de natildeo [nos] convir agrave ideacuteia que temos de um deus Mas essa ideacuteia mesma eacute deduzida da ideacuteia que noacutes temos do homem e de noacutes mesmosraquo laquoEle [Deus] assume tudo o que eacute [] impossiacutevel tudo o que falta [] ele [Deus] eacute a ligaccedilatildeo do espiacuterito impotenteraquo Deus compreendido portanto como o signo o resultado da consciecircncia que o ser humano tem dos seus proacuteprios limites e impotecircncias Eacute justamente atraveacutes desse tipo de reflexatildeo que Valeacutery ao fim desse derradeiro diaacutelogo socraacutetico adentra novamente agrave miacutestica O que entretanto ele acrescenta agrave sua jaacute referida proposta de uniatildeo entre o espiacuterito e Deus ou melhor entre o espiacuterito e si mesmo proposta de possessatildeo de si mesmo eacute a concepccedilatildeo segundo a qual tal uniatildeo tal possessatildeo soacute se daraacute plenamente como intui o Soacutecrates valeacuteryano no Eupalinos atraveacutes do corpo Pois este eacute segundo o que se lecirc nesse diaacutelogo o veiacuteculo mesmo a Deus laquoO miacutestico eacute a possessatildeo corporal do deus a busca mdash do deus pelo corpo O corpo instrumento da busca e da presenccedila do deusraquo

No diaacutelogo Περὶ τῶν τοῦ θεοῦ - Ou des choses divines Deus tambeacutem acaba se revelando enfim como a meta pessoal que o espiacuterito atraveacutes do corpo no qual ocorre se propotildee alcanccedilar o sentido o fim uacuteltimo que o espiacuterito daacute ou pode dar agrave totalidade de suas proacuteprias accedilotildees a totalidades de seus proacuteprios fazeres ao todo de seu destino Sentido fim uacuteltimo que no caso de Valeacutery pode ser nomeado como o conceito de eu puro Daiacute o poeta intensamente se questionar mdashe isso natildeo deixa de ser uma verdadeira siacutentese do modo como procede seu pensamentomdash sobre a adequaccedilatildeo a validade de um Deus que foi concebido em outras eacutepocas e com outros pressupostos por outro ou por outros e natildeo por si mesmo o Deus mesmo da tradiccedilatildeo mdashde qualquer tradiccedilatildeomdash agrave qual as pessoas com menor ou maior consciecircncia aderem ou recusam-se a aderir como aceitar um Deus que foi criado por problemaacuteticas alheias laquocomo ligar-se a um Deus de outroraquo ele assim se pergunta laquoa um deus que noacutes natildeo inventamos []raquo laquoQuem sabe se toda tua paixatildeo seus erros suas blasfecircmias suas sujeiras atos e crimes natildeo satildeo um caminho que leva a Deus e o uacutenico que vocecirc poderaacute seguirraquo Ou ainda laquoO valor de teu deus eacute o do teu pensamentoraquo Com isso toda a criacutetica de Valeacutery ao proselitismo intelectual transfere-se agora ao proselitismo religioso agraves doutrinas religiosas que afirmam ter superado as aporias surgidas no pensamento sobre Deus e alcanccedilado o conhecimento da verdade acerca Dele verdade que deve ser aceita por todos Mas o poeta mdashpara quem a liberdade eacute a liberdade do pensamentomdash sabe que uma verdade deixa de ser verdade quando eacute forccedilada quando eacute imposta que uma verdade deixa de ser verdade quando haacute o desejo de universalizaacute-la laquoO poderoso gosto de ldquoter razatildeordquo de convencer de seduzir ou de reduzir os espiacuteritos de excitaacute-los em favor ou contra a qualquer um ou a qualquer coisaraquo revela laquome eacute essencialmente estranho para natildeo dizer odioso [] Nada me choca mais que o proselitismo e seus meios sempre impuros [] Aconselho Esconda teu Deus pois ele eacute o seu faliacutevel a partir do momento em que os outros o conheccedilamraquo A miacutestica de Valeacutery eacute negativa apofaacutetica e num grau extremo natildeo somente porque quase sempre nega a referir-se a Deus atraveacutes de proposiccedilotildees afirmativas mas tambeacutem porque nega radicalmente revelar a face do Deus que cria para si Assim como todo o seu pensamento com o qual se confunde essa miacutestica acaba no silecircncio No silecircncio do eu puro no silecircncio que sempre almejou realizar

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Ponge Francis Meacutetodos trad Leda Tenoacuterio da Motta Imago Rio de Janeiro 1997

Popkin Richard The History of Scepticism - From Savonarola to Bayle Oxford University Press New York 2003

Pound Ezdra Personaelig - Collected shorter poems of Ezra Pound Faber and Faber Londres mcmlii

Rorty Richard M (org) The linguistic turn - Essays in philosophical method - With two retrospective essays The University of Chicago Press Chicago amp Londres 1992

Rousseau Essais sur lrsquoorigine des langues org Jean Starobinski Folio - Essais Gallimard Paris 1993

Saussure Ferdinand Cours de linguistique geacuteneacuterale ed Charles Bally Albert Sechehaye amp Albert Riedlinger (colab) Eacutedition critique preacutepareacute par Tullio de Mauro Payothegraveque Payot Paris 1982

Soulez Antonia (org) Manifeste du Cercle de Vienne et autres eacutecrists PUF Paris 1985

Weil Simone A gravidade e a graccedila trad Paulo Neves Martins Fontes Satildeo Paulo 1993

Wittgenstein Ludwing Investigaccedilotildees filosoacuteficas trad Joseacute Carlos Bruni Os Pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1979

mdash Tratactus Logico-Philosophicus trad Luiz Henrique Lopes dos Santos Edusp Satildeo Paulo 1994

Yeats W B Autobiographies Macmillian amp Co Ltda London Toronto 1961 amp A vision Papermac Pan Macmillian Publishers London Basingstone Hong Kong 1992

Zambrano Maria Filosofiacutea y poesiacutea Fondo de Cultura Econoacutemica Cidade do Meacutexico 1996

13

13

Cf JArrety Michel Valeacutery Paul (1871-1945) in Dictionnaire de la litteacuterature franccedilaise XXe siegravecle in Enciclopaeligdia Universalis amp Albin Michel Paris 200013

Cf Boisdeffre Pierre de Paul Valeacutery ou lrsquoimperialisme de lrsquoesprit in Meacutetamorphose de la litteacuterature - De Proust agrave Sartre - Proust Valeacutery Cocteau Anouilh Sartre Camus - Essais de psychologie litteacuteraire suivis de deux eacutetudes sur lsquoLa geacuteneacuteration du demi-siegraveclersquo et lsquoLa condition de la litteacuteraturersquo II Editions Alsatia Paris s d13

Cf todos os ensaios de Meacutemoires du poegravete in œ1 pp 1447-151213

œ1 p 149713

Os Cahiers tambeacutem foram por vezes denominados por inteacuterpretes iniciais de Carnets (Jean Preacutevost) ou de Notes (Maurice Beacutemol) termos hoje um tanto em desuso (Cf Preacutevost Jean amp ValEacutery Paul Marginalia - Rhumbs - Et autres org Michel Jarrety Eacuteditions Leacuteo Scheer 2006 cf BEacuteMOL Maurice Paul Valeacutery G de Bussac Clermont-Ferrand 1949)13

Sobre a funccedilatildeo e o estatuto dos esboccedilos desenhos e aquarelas no pensamento de Valeacutery cf Pickering Robert V Inscriptions alternatives in Paul Valeacutery - La page lrsquoeacutecriture Centre de Recherches sur Les Litteacuteratures Modernes et Contemporaines Association des Publications de la Faculteacute de Lettres et Sciences Humaines de Clermont-Ferrand Universiteacute Blaise-Pascal 1996 pp 227-28013

œ1 p 120113

Cf Barbosa Joatildeo Alexandre A comeacutedia intelectual de Paul Valeacutery Iluminuras Satildeo Paulo 2007 especialmente o capiacutetulo Paul Valeacutery e a lsquocomeacutedia intelectualrsquo13

C1rsquo p 513

C1rsquo p 513

C1rsquo p 513

Cf Amiel Henri-Freacutedeacuteric Journal Intime - Janvier-juin 1854 Texte inteacutegral publieacute par la premiegravere fois avec une postface des notes et un index par Philippe M Monnier Bibliothegraveque Romande Lausanne 197313

Cf Gide Andreacute Journal - 1939-1949 - Souvenirs Bibliothegraveque de la Pleacuteiade Gallimard Paris 198813

C1rsquo p 1313

œ2 pp 1508-151013

œ1 p 120313

Para uma comparaccedilatildeo entre as concepccedilotildees artiacutesticas de Valeacutery e Proust cf Adorno Theodor W Museu Valeacutery Proust in Prismas - Criacutetica cultural e sociedade trad Augustin Wernet amp Jorge Mattos Brito de Almeida Aacutetica Satildeo Paulo 1998 pp 173-18513

œ2 pp 150913

Cf C1rsquo pp 773-86513

C1rsquo p 81213

C1rsquo p 81513

Cf C1rsquo p 81213

Cf C1rsquo pp 1119-114913

Cf C1rsquo p 80713

Cf C1rsquo p 80713

C1rsquo p 81313

Cf C1rsquo p 812 13

C1rsquo p 813

C1rsquo p 1413

C1rsquo p 813

œ1 p 866 Aquilo que o seminal contista norte-americano se propocircs nesse escrito que flana audaciosamente entre o ensaio filosoacutefico e o conto fantaacutestico eacute sobretudo a construccedilatildeo da imagem de um universo ldquopanteiacutestardquo relativamente distinto do apresentado pelos mitos de origem da tradiccedilatildeo judaico-cristatilde um universo maravilhosamente regido por leis naturais que se interconectam e que axiomatizadas se reduziriam agrave atraccedilatildeo e agrave repulsatildeo um universo vasto mas espacialmente finito cujo comportamento se assemelha a um coraccedilatildeo pulsante e divino expandindo-se e contraindo-se fragmentando-se e unificando-se e assim sucessivamente Note-se que jaacute pelo subtiacutetulo (A prose poem) e pelas paacuteginas iniciais Eureka natildeo foi estabelecida por Poe simplesmente como um escrito cientiacutefico mas como uma obra artiacutestica baseada na ideacuteia de que a ldquoverdaderdquo cientiacutefica identifica-se com a ldquobelezardquo (Cf Poe Edgar Allan Eureka - A prose poem Prometheus Books Nova York 1997) Esse inventivo modo de interpretar e atualizar um antiquumliacutessimo gecircnero literaacuterio ou miacutetico numa eacutepoca cientiacutefica e com alusatildeo a teorias cientiacuteficas marcou profundamente o pensamento de Valeacutery principalmente na compreensatildeo da unidade entre ciecircncia e arte e no caraacuteter esteacutetico das construccedilotildees metafiacutesicas (Cf dois ensaio de Jean Starobinski um que versa sobre Eureka Edgar Poe ldquoEurekardquo outro que versa sobre os conceitos de atraccedilatildeo e repulsatildeo e sobre a influecircncia de Eureka no pensamento de Valeacutery laquoSoy reaccioacuten a lo que soyraquo (Paul Valeacutery) ambos in Starobinski Jean Accioacuten y reaccioacuten - Vida y aventuras de una pareja t Eliane Casenave Tapieacute Isoard Fondo de cultura econoacutemica Meacutexico 2001)13

C1rsquo pp 11-1213

Cf Boisdeffre Pierre de Paul Valeacutery ou lrsquoimperialisme de lrsquoesprit in Meacutetamorphose de la litteacuterature - De Proust agrave Sartre - Proust Valeacutery Cocteau Anouilh Sartre Camus - Essais de psychologie litteacuteraire suivis de deux eacutetudes sur lsquoLa geacuteneacuteration du demi-siegraveclersquo et lsquoLa condition de la litteacuteraturersquo II Editions Alsatia Paris s d13

C1rsquo p 613

C5 p 16713

Cf C1rsquo p 9 cf C1rsquo p 11 13

œ1 p 37713

Cf C1rsquo p 20613

Montaigne Michel de Cap II - Do arrependimento in Os Ensaios III trad Rosemary Costhek Abiacutelio Martins Fontes Satildeo Paulo 2001 p 2713

Bertholet Denis Chapitre 5 - Crise (1891-1892) amp Chapitre 6 - Coup drsquoeacutetat (1892-1894) in Paul Valeacutery - 1871-1945 Biographies Plon Paris 1995 Jarrety Michel Chapitre VIII - Salita di san Francesco in Paul Valeacutery Fayard 200813

O modo como um autor define ou usa um determinado conceito em seus primeiros escritos natildeo eacute necessariamente o mesmo que em seus uacuteltimos ele pode moldaacute-lo refazecirc-lo de acordo com os contextos e as frases que engendra de acordo com seus objetivos imediatos e contingentes de acordo com a sua proacutepria trajetoacuteria de vida Pressupotildee-se portanto que haja nisso uma evoluccedilatildeo talvez ateacute mesmo uma espeacutecie de progresso rumo a algo inicialmente desconhecido Daiacute natildeo raro uma obra poder ser encarada como o registro de um movimento limitado no tempo e no espaccedilo da vida que a executa A historicidade opera assim tanto entre as geraccedilotildees e as tradiccedilotildees quanto internamente no pensamento vivido e no pensamento escrito de uma soacute pessoa Valeacutery todavia natildeo foge a essa regra Contudo haacute uma particularidade jaacute foi dito por natildeo mais de um criacutetico que ele parece ter ldquonascido prontordquo tal o grau de maturidade de seus primeiros escritos Suas variadas obsessotildees e mesmo o seu estilo continuam basicamente os mesmos ao longo de toda sua vida Em grande medida sua obra eacute portanto composta por revisotildees e atualizaccedilotildees sobre temas em grande parte determinados em sua juventude Esses temas permanecem o que muda ou pode vir a mudar eacute o modo como o poeta os compreende (Cf Cioran Emile Valeacutery faces agrave ses idoles in œuvres Quarto Eacuteditions Gallimard 1995 especialmente p 1566)13

Cf œ2 p 143513

Cf Jarrety Michel Chapitre VIII - Salita di san Francesco in Paul Valeacutery in Paul Valeacutery Fayard 2008 especialmente pp 111-11213

Cf C1rsquo pp 86 113 145 190 e 1447 C2rsquo pp 460 e 87513

Cf C2rsquo p 46013

Bertholet Denis Paul Valeacutery - 1871-1945 Biographies Plon Paris 1995 p 91 Jarrety Michel Chapitre VIII - Salita di san Francesco in Paul Valeacutery Fayard 2008 pp 116-11713

œ2 pp 1435-143613

œ1 pp 854-85513

Cf CVG p 107 CVF p 28 e 125 Bertholet Denis Paul Valeacutery - 1871-1945 Biographies Plon Paris 1995 pp 77-78 e 85-88 Jarrety Michel Chapitre VII - Madame de R in Paul Valeacutery Fayard 200813

Sobre a questatildeo fisioloacutegica ou ldquomuscularrdquo em Valeacutery cf C1rsquo pp 130-13113

Apesar de ter estudado na Faculteacute de Droit de Montpellier Valeacutery diferentemente de seu irmatildeo Jules nunca exerceu ou pretendeu exercer a advocacia De 1897 a 1900 serviu como funcionaacuterio puacuteblico no Ministegravere de la Guerre depois trabalhou como secretaacuterio particular de um dos principais administradores da Agence Havas M Eacuteduard Lebey para quem entre outras atividades lia e comentava jornais e revistas profissatildeo que muito provavelmente lhe auxiliou a formar o repertoacuterio necessaacuterio para as suas constantes reflexotildees sobre a Modernidade presente em todos esses escritos Depois contando com sua celebridade palestrou e ministrou conferecircncias pela Europa e jaacute em idade avanccedilada lecionou poeacutetica no Collegravege de France (Cf œ1 pp 24-25 e 27 respectivamente Bertholet Denis Paul Valeacutery - 1871-1945 Biographies Plon Paris 1995 Jarrety Michel Paul Valeacutery Fayard 2008)13

Bertholet Denis Paul Valeacutery - 1871-1945 Biographies Plon Paris 1995 pp 36-102 Jarrety Michel Chapitre VII - Madame de R amp Chapitre VIII - Salita di san Francesco in Paul Valeacutery Fayard 2008 13

C2rsquo p 41813

C1rsquo p 9913

Blanchot MauriceValeacutery et Faust in La part du Feu Nrf Gallimard 1949 p 28213

œ1 p 122113

Esse periacuteodo seraacute compreendido pela criacutetica com o Grande Silecircncio (Cf BEacuteMOL Maurice Paul Valeacutery G de Bussac Clermont-Ferrand 1949 p 27 e pp 30-60)13

A expressatildeo mdashprograma de autoconsciecircnciamdash natildeo eacute gratuita o termo ldquoprogramardquo evoca a ideacuteia de que haacute uma disciplina a ser cumprida agrave qual toda uma obra futura deveraacute estar condicionada algo portanto consoante ao espiacuterito valeacuteryano avesso ao improviso e amante do treino jaacute o termo ldquoautoconsciecircnciardquo evoca a ideacuteia de lucidez e controle sobre si mesmo e estaacute presente nos proacuteprios escritos de Valeacutery que o escreve em inglecircs ldquoself-consciousnessrdquo remetendo-se tambeacutem assim agraves exigecircncias de racionalidade no fazer literaacuterio preconizadas por Edgar Allan Poe (Cf C1rsquo p 317 cf C2rsquo p 318)13

Cf C1rsquo p 41 126 157 158 196 e 440 cf C2 p 49 473 649 cf œ2 pp 411-420 13

œ1 p 96113

œ1 p 36013

Cf C1rsquo p 28413

C1rsquo p 6513

C1rsquo pp 78-7913

C1rsquo p 10613

C1rsquo pp 132-13313

c25 p 18213

C1rsquo p 713

C1rsquo p 713

C1rsquo p 713

C2rsquo p 99113

Cf Bourjea Serge Paul Valeacutery - Le sujet de lrsquoeacutecriture LrsquoHarmattan Codeacute-sur-Noireau 1997 cf Pikcering Robert Genegravese du concept valeacuterryen laquo pouvoir raquo et laquo conquecircte meacutethodique raquo de lrsquoeacutecriture laquo Archives Paul Valeacutery raquo 8 Archives des Lettres Modeacuternes 234 Lettres Modernes Paris 1990 amp Paul Valeacutery - La page lrsquoeacutecriture Litteacuteratures Centre de Recherches sur Les Litteacuteratures Modernes et Contemporaines 199613

Cf Montaigne Michel Os ensaios I-III trad Rosemary Costhek Abiacutelio Martins Fontes Satildeo Paulo 200013

Cf Descartes Reneacute As paixotildees da alma trad J Guinsburg e Bento Prado Juacutenior Os Pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 197913

C2rsquo p 23813

C2rsquo p 990 13

C1rsquo p 91113

C2rsquo p 21413

Nesse sentido Valeacutery se posiciona sim contraacuterio agrave Psicanaacutelise suas criacuteticas a Freud satildeo diretas laquoSe as teorias de Freud tecircm um valor terapecircutico mdash eacute uma grande probabilidade que elas natildeo tenham nenhum valor ldquocientiacuteficordquoraquo (C1rsquo p 995) Quanto ao sonho Valeacutery chega inclusive a duvidar da possibilidade de se representaacute-lo atraveacutes de palavras atraveacutes da narrativa do reacutecit o que a Psicanaacutelise faria nesse sentido seria tatildeo somente a anaacutelise da narrativa do sonho natildeo do sonho logo de uma mediaccedilatildeo que pode muito bem falsear o proacuteprio sonho laquoO que me prova que as teorias do sonho agrave la Freud satildeo vatildes eacute que a anaacutelise ai se comporta sobre as coisas descritiacuteveis em termos ordinaacuterios mdash entretanto o sonho deveria ser indescritiacutevel mdash ou descritiacutevel por contradiccedilotildees ou particcedilotildees (como mdash havia um cavalo mas eu sabia que natildeo era um cavalo mdash mdash)raquo (C2rsquo p 177) Sobre a Psicanaacutelise cf ainda C2rsquo pp 527-52813

C1rsquo p 56213

C2rsquo p 38813

Cf C1rsquo pp 837 969-970 1051-1052 e 1351 cf C2rsquo p 913

Cf Lrsquoideacutee fixe ou deux hommes agrave la mer in œ2 pp 195-275 Essa obra eacute um estranho e fictiacutecio diaacutelogo beira-mar dir-se-ia solar e terapecircutico entre Valeacutery e um convicto meacutedico XE autor que tece reflexotildees sobre a filosofia o pensamento e a representaccedilatildeo a intelecccedilatildeo e a intuiccedilatildeo a transitoriedade do mundo e principalmente sobre o conceito de saber como poder de previsatildeo fenomenoloacutegica e de accedilatildeo sobre o mundo O interlocutor imaginaacuterio do poeta eacute como parte de seus personagens um homem que permanece na tensatildeo entre a accedilatildeo e a contemplaccedilatildeo De feacuterias longe de seus pacientes que tanto o instigam ele procura fazer algo que jamais conseguiu nada fazer Dizia possuir o mal da atividade constata que isso eacute entretanto impossiacutevel pois ateacute mesmo o pensamento eacute uma forma de accedilatildeo de accedilatildeo interior13

C6rsquorsquo p 22613

Bergson Henri Chapitre II - De la multipliciteacute des eacutetats de conscience lrsquoideacutee de dureacutee in Essai sur les donneacutees immeacutediates de la conscience Presses Universitaires de France Paris 2005 13

œ1 pp 1219-122013

œ1 pp 1219-122013

C1rsquo p 46113

C1rsquo p 90113

œ2 p 3713

Cf œ2 p 3713

œ1 pp 1232-123313

œ2 p 1913

œ1 p 113713

Cf Celeyrette-Pietri Nicole Valeacutery et le moi - Des Cahiers agrave lrsquoœuvre Klincksieck Paris 197913

œ1 p 79713

Cf C2rsquo p 29513

Cf C2rsquo p 330 cf C2rsquo p 312 13

C2rsquo p 31213

C2rsquo p 31513

Heetfeld Ulrike La conception matheacutematique du laquo Moi pur raquo das les lsquoCahiersrsquo in Giford Paul amp STIMPSON Brian (orgs) Paul Valeacutery - Musique Mystique Matheacutematique Presses Universitaires de Lille Lille 1993 especialmente pp195-19613

C23 p 31113

C2rsquo p 28413

laquoToda emoccedilatildeo todo sentimento eacute uma marca de defeito de adaptaccedilatildeoraquo (C2rsquo p 354) laquoToda a vida afetiva natildeo passa de besteira e circulo viciosoraquo (C2rsquo p 382)13

Essa despersonalizaccedilatildeo essa desumanizaccedilatildeo parece jaacute estar esboccedilada quando Valeacutery escreve com mais tranquumlilidade sobre a fatiacutedica Noite de Gecircnova sobre aquilo em que seu meacutetodo vem a se constituir laquoFoi um periacuteodo muito duro e muito fecundo mdash Uma luta com os diabos Noite de Gecircnova em out[ubro] de [18]92 Paris em novembro E tudo isso me conduziu ao meu ldquomeacutetodordquo mdash o qual era pureza mdash separaccedilatildeo dos domiacutenios φ [filosofia] e ψ [psicologia]raquo (C1rsquo p 190)13

C2rsquo p 31513

C2rsquo p 299 cf C2rsquo p 312 13

C2rsquo p 31213

Blanchot Maurice Valeacutery et Faust La part du Feu Nrf Gallimard 1949 p 28113

C2rsquo p 29313

Natildeo se pode superestimar a influecircncia do Catolicismo sobre Valeacutery Eacute fato que numa carta a Pierre Louis ele escreve duras e polecircmicas consideraccedilotildees sobre suas ambiacuteguas inclinaccedilotildees religiosas Consideraccedilotildees que alguns criacuteticos natildeo tardariam supostamente em interpretar como anti-semitas qualificativo este que por vezes realmente pairou sobre a imagem do poeta laquoCom relaccedilatildeo agrave Biacutebliaraquo escreve ele laquoeu creio que vocecirc despreza o objeto de minhas preferecircncias miacutesticas Eu sou sobretudo catoacutelico quase idoacutelatra e detesto todo calvinismo e jansenismo isto eacute todas as seitas inartiacutesticas () Eu natildeo gosto dos Judeus pois eles natildeo tecircm arte Das raccedilas vizinhas eles pilharam tudo em mateacuteria de arquitetura etcraquo (LQ p 13) Contudo jaacute nesse trecho citado haacute obviamente muito de ironia pois o valor das religiotildees eacute dado pelo aspecto esteacutetico e natildeo pelo eacutetico pela forma e natildeo pelo conteuacutedo mdashprocedimento que seraacute recorrente no poetamdash Ademais essa carta foi escrita em 1890 portanto dois anos antes do periacuteodo de crise e da Noite de Gecircnova a partir das quais ante qualquer religiatildeo Valeacutery adota um agnosticismo lato particular posiccedilatildeo epistemoloacutegica que natildeo deixa de ser derivada ou anaacuteloga ao seu ceticismo geral13

Π Folio 10913

C6 p 73813

As reflexotildees de Valeacutery sobre a Crise de Tournon de Mallarmeacute in œ1 p 676-679 especialmente 677 A crise de Mallarmeacute eacute mais de ordem poeacutetica laquoInfelizmente escavando os versos a este ponto eu encontrei dois abismos que me desesperamraquo diz ele laquoUm eacute o Nada ao qual cheguei sem conhecer o budismo e eu estou ainda bastante desolado para poder inclusive acreditar em minha poesia e me lanccedilar ao trabalho que esse pensamento esmagador me fez abandonarraquo (MallarmEacute Steacutephane œuvres completes I org Bertrand Marchal Bibliothegraveque de la Pleacuteiade Gallimard Paris 1998 p XLIX)13

Cf JArrety Michel Paul Valeacutery Fayard 2008 p 11913

Cf Descartes Reneacute Discurso do meacutetodo trad J Guisnburg e Bento Prado Juacutenior Os Pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1979 pp 25-113 Em seu ensaio Une vue de Descartes Valeacutery escreve sem pudor sobre o filoacutesofo do cogito como se escrevesse sobre si mesmo sobre o seu periacuteodo de crise e a sua Noite de Gecircnova sobre o seu programa de autoconsciecircncia laquoO conjunto desse dia 10 de novembro e a noite que se seguiu constituem um drama intelectual extraordinaacuterio Suponho que Descartes natildeo nos enganou e que o relato que nos faz eacute tatildeo certo quanto uma lembranccedila carregada de sonhos natildeo haacute razatildeo para duvidar de sua sinceridade Conheccedilo muitos outros exemplos de tais iluminaccedilotildees do espiacuterito posteriores a longas lutas interiores a tormentos anaacutelogos a dores do parto De golpe a verdade de algueacutem se faz e brilha nele A comparaccedilatildeo luminosa se impotildee pois nada daacute uma imagem mais justa desse fenocircmeno iacutentimo que a intervenccedilatildeo da luz num meio escuro no qual soacute eacute possiacutevel mover-se a apalpadelas Com a luz aparece a caminhada em linha reta e a relaccedilatildeo imediata das coordenaccedilotildees do caminhar com o desejo e o fim O movimento se converte numa funccedilatildeo de seu objeto [] no caso de Descartes eacute toda uma vida que se ilumina na qual todos os atos seratildeo a partir de agora ordenados para a obra que seraacute seu fim A linha reta estaacute balizada Uma inteligecircncia descobriu ou projetou aquilo para o qual foi criada formou de uma vez por todas o modelo de todo o seu exerciacutecio futuro [Grifo do autor] Natildeo se deve confundir creio esses golpes de Estado intelectuais com as conversotildees na ordem da feacute que tanto se assemelham aos tormentos preliminares e pela suacutebita declaraccedilatildeo do ldquohomem novordquo Encontro efetivamente uma notaacutevel diferenccedila entre esses modos de transformaccedilatildeo transcendente Enquanto na ordem miacutestica a modificaccedilatildeo pode se produzir em qualquer idade na ordem intelectual ela parece ter lugar geralmente entre dezenove e vinte quatro anos ao menos assim foi com as poucas ldquoespeacuteciesrdquo conhecidas por mimraquo (œ1 pp 814-815)13

Cf Charney Hanna K Le scepticisme de Valeacutery Dider Paris 196913

Bertholet Denis Paul Valeacutery - 1871-1945 Biographies Plon Paris 1995 pp 39 e 9213

œ2 p 61913

Plato Theaetetus no 123 trad Harold North Fowler org Jeffrey Henderson Loeb Classical Library 152 A p 40-4113

C2rsquo p 61013

Π Folio 13413

Π Folio 7513

Π Texte 7 (VIII 428)13

Cf C1rsquo p 131 13

C1rsquo 1973 p 620 13

C1rsquo p 13113

C2rsquo p 32013

œ1 p 20613

C1rsquo p 40713

LQ p 2213

Cf Yeats W B Autobiographies Macmillian amp Co Ltda London Toronto 1961 amp A vision Papermac Pan Macmillian Publishers London Basingstone Hong Kong 199213

Cf Pound Ezdra Personaelig - Collected shorter poems of Ezra Pound Faber and Faber Londres mcmlii 13

Cf Pessoa Fernando Os outros eus in Obras em prosa Em um volume Nova Aguilar Rio de Janeiro 198513

C1rsquo p 49413

C1rsquo p 2613

C1rsquo p 102213

œ1 p 132013

C2rsquo p 28513

Uma postulaccedilatildeo mais dramaacutetica dessa expressatildeo encontra-se em Gilles Deleuze autor do conceito segundo o qual os personagens conceituais (personnages conceptuels) laquosatildeo os ldquoheterocircnimosrdquo do filoacutesofo e o nome do filoacutesofo o simples pseudocircnimo de seus personagens Eu natildeo sou mais eu mas aptidatildeo do pensamento para se ver e se desenvolver atraveacutes de um plano que me atravessa em vaacuterios lugares O personagem conceitual nada tem a ver com uma personificaccedilatildeo abstrata um siacutembolo ou uma alegoria pois ele vive ele insiste O filoacutesofo eacute a idiossincrasia de seus personagens conceituais E o destino do filoacutesofo eacute de transformar-se em seu ou seus personagens conceituais ao mesmo tempo em que esses personagens se tornam eles mesmos coisa diferente do que satildeo historicamente mitologicamente comumente [] O personagem conceitual eacute o devir e o sujeito de uma filosofia [] Os atos de fala na vida comum remetem a tipos psicossociais que testemunham de fato uma terceira pessoa subjacente eu decreto a mobilizaccedilatildeo enquanto presidente da repuacuteblica eu te falo enquanto pai Igualmente o decircictico [decircitico] filosoacutefico eacute um ato de fala em terceira pessoa em que eacute sempre um personagem conceitual que diz Eu [] Na enunciaccedilatildeo filosoacutefica natildeo se faz algo dizendo-o mas faz-se o movimento pensando-o por intermeacutedio de um personagem conceitual Assim os personagens conceituais satildeo verdadeiros agente de enunciaccedilatildeo Quem eacute eu eacute sempre uma terceira pessoaraquo (Deleuze Gilles amp Guattari Feacutelix O que eacute a filosofia trad Bento Prado Jr amp Alberto Alonzo Muntildeos Editora 34 Rio de Janeiro 2000 pp 86-87)13

Starobisnki Jean laquoSoy reaccioacuten a lo que soyraquo (Paul Valeacutery) in Accioacuten y reaccioacuten - Vida y aventuras de una pareja trad Eliane Casenave Tapieacute Isoard Fondo de Cultura Econoacutemica Meacutexico 200113

Cf Lussy Florence de Introduction in CL p 2113

C2rsquo p 119413

œ2 p 58113

œ1 pp 1230-123113

œ1 p 123013

œ1 p 115313

Essa praacutetica interpretativa na qual ldquotudo ou quase tudo eacute vaacutelidordquo na criacutetica literaacuteria e de artes foi denominada de laquoniilismo hermenecircuticoraquo em claro tom de ressalva por Gadamer (Gadamer Hans-Georg Verdade e meacutetodo - Traccedilos fundamentais de uma hermenecircutica filosoacutefica trad Flaacutevio Paulo Meurer nova revisatildeo da trad Enio Paulo Giachini Vozes amp Editora Universitaacuteria Satildeo Francisco Petroacutepolis amp Braganccedila Paulista 2004 p 146) Em seu ensaio sobre poeacutetica Au sujet du lsquoCeacutemitiegravere Marinrsquo no qual discute uma aula e as explicaccedilotildees dadas sobre o seu poema em questatildeo Valeacutery formula a ceacutelebre justificaccedilatildeo dessa praacutetica para ele sempre pessoal mas haacute que se dizer ele a formula referindo-se muito mais agrave interpretaccedilatildeo de poesia (na perspectiva da poesia pura) do que a de prosa laquoQuanto agrave interpretaccedilatildeo da letra []raquo escreve laquonatildeo haacute sentido verdadeiro de um texto [il nrsquoy a pas de vrai sens drsquoum texte] Natildeo haacute autoridade do autor Seja o que for que tenha pretendido dizer escreveu o que escreveu Uma vez publicado um texto eacute como uma maacutequina que qualquer um pode usar agrave sua vontade e de acordo com seus meios natildeo eacute evidente que o construtor a use melhor que os outros Do resto se ele conhece bem o que quis fazer esse conhecimento sempre perturba nele a perfeiccedilatildeo daquilo que fezraquo (œ1 p 1507) Cite-se tambeacutem o debate sobre os limites da interpretaccedilatildeo no qual Umberto Eco evoca uma clara distinccedilatildeo que permeia o senso comum entre interpretaccedilatildeo (o que uma obra legitimaria que dela seja dito) e uso (o que uma obra natildeo legitimaria que dela seja dita) (Cf Eco Umberto Lector in fabula - A cooperaccedilatildeo interpretativa nos textos narrativos trad Attiacutelio Cancian Estudos Perspectiva Satildeo Paulo 2004 pp 43-44) Usando a terminologia do semioacutetico italiano eacute certamente mais um uso do que uma interpretaccedilatildeo aquilo que Valeacutery faz de Leonardo da obra deste assim como tambeacutem em muitos outros escritos de criacutetica mas eacute justamente isso que o poeta conscientemente se propotildee fazer para ele o registro da leitura de uma obra deve ser tambeacutem uma outra obra13

Baudelaire Charles Salatildeo de 1846 in Poesia e prosa vol uacutenico org Ivo Barroso trad Cleone Augusto Rodrigues Joana Angeacutelica DrsquoAacutevila Melo Marcella Mortara Pliacutenio Augusto Coelho amp Suely Cassal Nova Aguilar Rio de Janeiro 2002 p 67313

Numa carta a Gustave Fourmet Valeacutery escreve laquoOntem eu fui bem sucedido ao me introduzir na Biblioteca [Nacional] sem carteira Eu folheei os manuscritos de da Vice Albert Duumlrer e Mallarmeacuteraquo (Cf CVF p 122) Cf Bertholet Denis Paul Valeacutery - 1871-1945 Plon Biographies Paris 1995 p 8113

œ1 p 123213

Cf V pp 217-22713

Cf œ1 p 101113

œ1 p 115513

œ1 p 115513

œ1 p 120113

œ1 pp 1203-120413

œ1 p 120413

Cf MacKay Agnes Ethel The universal self - A study of Paul Valeacutery University of Toronto Press Toronto 1961 especialmente pp 76-8213

œ1 p 120213

V p 21913

œ1 p 115613

V pp 218-21913

Cf C1rsquo p 35813

Cf Derrida Jaques Qual quelle - Les sources de Valeacutery in Marges de la philosophie Minuit Paris 197213

œ1 p 121013

V p 21913

Maurice Blanchot em seu ensaio sobre a peccedila Mon Faust de Valeacutery compara estes trecircs personagens Fausto Teste e Leonardo e ousa ir ainda mais longe na interpretaccedilatildeo do uacuteltimo encarando-o natildeo apenas como um paradigma para o indiviacuteduo mas como um paradigma para toda a humanidade laquoO homem real segundo da Vinci aplica sua vida agrave conquista e ao exerciacutecio de todos os meios de fazer o real eacute tudo aquilo que ele pode Leonardo eacute um siacutembolo porque ele figura no limite um homem para o qual toda a realidade eacute consagrada ao possiacutevel que transforma tudo o que ele eacute em operaccedilotildees realizaacuteveis e verificaacuteveis e tem assim a sua disposiccedilatildeo sob a forma de uma capacidade infinita de atos toda a sua histoacuteria e esta da humanidaderaquo (Blanchot Maurice Valeacutery et Faust in La part du feu Nrf Gallimard 1949 p 275)13

œ1 pp 891-89213

œ1 p 1155 Como Leonardo Valeacutery tambeacutem escreve a palavra italiana ostinato (obstinado) com ldquohrdquo quando o registro corrente eacute sem segundo uma interpretaccedilatildeo relativamente frequumlente o italiano (como parte dos humanistas de seu tempo) buscava ser fiel agrave linguagem popular e assim distanciar-se da linguagem erudita13

Referindo-se retoricamente a esse seu Leonardo que almeja tudo iluminar Valeacutery se pergunta laquoO que haacute de mais sedutor do que um deus que repele o misteacuterio [] que natildeo direciona seus prestiacutegios para o mais obscuro para o mais terno para o mais sinistro de noacutes mesmos que nos forccedila a concordar e natildeo a se submeter e cujo milagre eacute esclarecer-se cuja profundidade uma perspectiva bem deduzida Existe melhor marca de um poder autecircntico e legiacutetimo do que natildeo se exercer debaixo de um veacuteuraquo (œ1 p 1201)13

V p 21913

Benjamim Walter Sobre a atual posiccedilatildeo do escritor francecircs in Walter Benjamin trad Flaacutevio R Kothe Sociologia Aacutetica Satildeo Paulo 1985 p 17913

œ1 p 116513

œ1 p 150313

œ1 p 116013

V pp 219-12013

œ1 pp 1164-116513

Essa ideacuteia natildeo estaacute muito distante do que posteriormente Roland Barthes sugestivamente denominou de laquoMathesis singularisraquo referindo-se agrave fotografia como uma ciecircncia das coisas particulares portanto como uma ciecircncia impossiacutevel (Cf Barthes Roland La Chambre Claire in œuvres Completes III 1974-1980 org Eacuteric Marty Eacuteditions du Seuil 1995 sect 3 p 1114)13

œ1 pp 1170-117113

Note-se que o proacuteprio Leonardo histoacuterico daacute grande valor agrave pintura o que eacute naturalmente bastante caracteriacutestica da cultura humaniacutestica do Renascimento a valorar relativamente fiel ao pensamento da Antiguumlidade Claacutessica que atualiza e reinventa uma determinada arte pela maior ou menor capacidade de imitaccedilatildeo que esta tem do mundo sensiacutevel material Tal criteacuterio obviamente jaacute natildeo mais poderaacute ser sustentado na Modernidade na qual a fotografia e o cinema por exemplo passam a existir e em massa mas ele teve a sua razatildeo de ser na medida em que era mais ou menos servil a uma doutrina neo-platocircnica supostamente conhecida por Leonardo que dir-se-ia muito ambiacutegua e frouxamente a ela adere mais agrave parte que teoriza a arte como mimese e menos agrave parte que teoriza o mundo sensiacutevel material como corruptiacutevel O que corrobora as ousadas intuiccedilotildees e usos de Valeacutery laquoA pinturaraquo escreve o artista laquoserve a um mais digno sentido que a poesia pois representa com maior verdade as obras da natureza que o poeta E satildeo muito mais dignas as obras da natureza que as palavras as quais satildeo obra do homem pois tal desproporccedilatildeo existe entre as obras do homem e as obras da natureza com aquela que existe entre Deus e o homem Daiacute ser mais digno imitar as obras da natureza verdadeiras semelhanccedilas em ato que imitar com palavras os fatos e os ditos dos homensraquo (Leonardo da Vince Os escritos de Leonardo da Vince sobre a arte da pintura trad Eduardo Carreira Imprensa Oficial amp Editora Universidade de Brasiacutelia Satildeo Paulo 2000 p 59)13

Cf œ1 p 1261 13

œ1 p 119413

œ1 p 126713

œ1 p 1266 laquoEacute necessaacuterio prover-se de instrumentos reais como o desenho e o poder do desenhoraquo enigmaticamente afirma Valeacutery laquoPor quecirc mdash Sobretudo contra a metafiacutesicaraquo (C1rsquo p 331)13

œ1 p 116513

œ1 p 116513

œ1 pp 1165-116613

Um outro exemplo de como Valeacutery infligia seus proacuteprios pensamentos em seus escritos de criacutetica literaacuteria e artiacutestica de como eram recorrentes suas obsessotildees de seu laquoniilismo hermenecircuticoraquo faz-se oportuno o que ele diz sobre o seu Goethe tambeacutem eacute igual e surpreendentemente vaacutelido para o seu Leonardo laquoGoethe eacute o grande apologista da Aparecircncia Presta ao que acontece na superfiacutecie das coisas um interesse e um valor nos quais encontro uma fraqueza e uma determinaccedilatildeo das mais importantes Compreendeu que se percebemos uma infinidade de sensaccedilotildees inuacuteteis em si eacute delas entretanto por mais indiferentes que sejam que retiramos atraveacutes de uma curiosidade inteiramente gratuita e uma atenccedilatildeo de puro luxo todas as nossas ciecircncias e artes Penso algumas vezes que existe para alguns como para ele uma vida exterior de intensidade e de profundidade no miacutenimo iguais as que emprestamos agraves trevas iacutentimas e aos segredos descobertos dos ascetas e dos sufis Que revelaccedilatildeo deve ser para um cego nato as primeiras as dolorosas e maravilhosas tonalidades do dia na retina E que progressos firmes e definitivos sente estar fazendo aos poucos em direccedilatildeo ao conhecimento limite mdash a nitidez das formas e dos corpos E ao contraacuterio o mundo interior estaacute sempre ameaccedilado por uma confusatildeo de sensaccedilotildees obscuras de lembranccedilas de tensotildees de palavras virtuais onde o que queremos observar e apreender altera corrompe de alguma forma a proacutepria observaccedilatildeo Quase natildeo podemos conceber e esboccedilar o que significa pensar o pensamento e a partir desse segundo grau desde que tentemos elevar nossa consciecircncia a essa segunda potecircncia imediatamente tudo se perturba Goethe observa contempla e ora nas obras de arte plaacutestica ora na Natureza persegue a forma tenta ler a intenccedilatildeo de quem traccedilou ou modelou a obra ou o objeto que examina O mesmo homem capaz de tanta paixatildeo de tanta liberdade dos caprichos do sentimento e das criaccedilotildees imprevistas do espiacuterito poeacutetico transforma-se deliciosamente em um observador com uma paciecircncia inesgotaacutevel [] Mas o amor pela forma natildeo se limita para Goethe ao deleite contemplativo Qualquer forma viva eacute um elemento de uma transformaccedilatildeo e qualquer parte de alguma forma eacute talvez uma modificaccedilatildeo de alguma outraesde que tentemos elevar nossa conscignifica pensar o pensamento e a aprtir desse segundo grau a a praquo (œ1 pp 542-543)13

V p 22013

Para o Leonardo histoacuterico o olho era realmente um oacutergatildeo essencial para o desenvolvimento das artes e das ciecircncias para que a matildeo possa executar laquoO olho abarca a beleza do mundo todo Ele eacute senhor da astrologia ele cria a cosmografia ele endireita todas as artes humanas ele eacute priacutencipe das matemaacuteticas e suas ciecircncias satildeo acertadiacutessimas mede a distacircncia [] descobre os elementos e as suas posiccedilotildees [] engendra a arquitetura a perspectiva e a divina pintura [] Janela do corpo humano que atraveacutes de si reflete a beleza do mundo e nela goza por ele a alma se alegra em sua prisatildeo humana sem a qual a vida seria tormento Por ele a humana induacutestria descobriu o fogo graccedilas ao qual o olho recupera o que entatildeo lhe eacute arrebatado pelas trevas Ele ornou a natureza com a agricultura e com os jardins deliciososraquo (Leonardo da Vince Os escritos de Leonardo da Vince sobre a arte da pintura trad Eduardo Carreira Imprensa Oficial amp Editora Universidade de Brasiacutelia Satildeo Paulo 2000 pp 69-70)13

Segundo Emile Cioran frequumlentemente exagerado em suas afirmaccedilotildees laquoum monstro que possui todos os poderes os que natildeo temos e os que gostariacuteamos de ter Responde a essa necessidade de nos vermos acabados realizados em algueacutem que imaginamos e que representa o resumo ideal de todas as ilusotildees que criamos a nosso respeito heroacutei que venceu suas proacuteprias impossibilidadesraquo (Cioran Emile Valeacutery face agrave ses Idoles in œuvres Quarto Eacuteditions Gallimard 1995 p 1566) e segundo Marleau-Ponty sempre mais contido em suas afirmaccedilotildees laquoum monstro de liberdade pura sem amantes credor anedota aventurasraquo (Cf Merelau-Ponty Maurice A duacutevida de Ceacutezanne trad Marilena de Souza Chauiacute Nelson Alfredo Aguilar amp Pedro de Souza Moraes Os Pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1980 p 123) Note-se ainda que parte do programa filosoacutefico de Marleau-Ponty mdasha compreensatildeo da esteacutetica como o resgate desta dimensatildeo relativamente negligenciada pela filosofia tradicional o mundo dos fenocircmenos sensiacuteveis materiais isto eacute o mundo do corpo do corpo natildeo mais submetido agrave suposta superioridade da almamdash eacute relativamente muito proacuteximo ao de Valeacutery Natildeo agrave toa o filoacutesofo francecircs utilizar-se do poeta francecircs e o seu Ceacutezanne ter muitas semelhanccedilas com o Leonardo do outro os personagens de ambos viam na arte natildeo apenas um modo de expressatildeo mas tambeacutem um modo de conhecimento e objetivaccedilatildeo do mundo (Cf Merelau-Ponty Maurice A duacutevida de Ceacutezanne trad Marilena de Souza Chauiacute Nelson Alfredo Aguilar amp Pedro de Souza Moraes Os Pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1980)13

œ1 p 126113

Borges Jorge Luis Paul Valeacutery in Textos Cautivos in Obras Completas 4 1923-1949 Emenceacute Editores Buenos Aires 2005 p 26313

C2rsquo p 120613

C2rsquo p 1206 Ainda quanto a essa criacutetica haacute uma curiosa ldquoanedotardquo Dizem que Andreacute Breton sabia de cor Monsieur Teste e no Premier manifeste du Surreacutealisme revela que Valeacutery mdasha quem chegou a considerar seu mestre vindo posteriormente a dele se desvincularmdash lhe disse que jamais escreveria a seguinte frase laquoA marquesa saiu agraves cinco horasraquo (Charpier Jacques amp Seghers Pierre (orgs) Lrsquoart poeacutetique Editions Seghers Paris 1956 p 580) Se isso eacute verdade ou natildeo natildeo eacute possiacutevel confirmar De qualquer modo uma tal ldquoanedotardquo acaba demonstrando em certa medida como Valeacutery realmente compreendia a arte literaacuteria como uma praacutetica que natildeo deve conter arbitrariedades Por que a marquesa saiu agraves cinco horas e natildeo agraves quatro ou agraves seis13

C1rsquo p 19613

C1rsquo p 2113

C1rsquo p 202 13

œ2 p 4513

Cf MacKay Agnes Ethel Monsieur Teste in The universal self - A study of Paul Valeacutery University of Toronto Press Toronto 196113

œ2 p 4913

VaacutelEacutery Franccedilois Paul Valeacutery et la politique in PA pp 185-21113

Cf Benjamim Walter Sobre a atual posiccedilatildeo do escritor francecircs in Walter Benjamin trad Flaacutevio R Kothe Sociologia Aacutetica Satildeo Paulo 1985 p 17813

laquoNesse pontoraquo escreve Adorno laquoValeacutery natildeo aceitou ingenuamente a posiccedilatildeo do artista isolado e alienado nem fez abstraccedilatildeo da histoacuteria tampouco criou ilusotildees sobre o processo social que levou agrave alienaccedilatildeo Contra os arrendataacuterios da interioridade privada contra a astuacutecia que frequumlentemente preenche sua funccedilatildeo no mercado simulando a pureza daqueles que natildeo sabem o que se passa Valeacutery cita uma beliacutessima frase de Degas ldquoMais um desses ermitotildees que sabem o horaacuterio dos trensrdquo (p 1217) Com toda a dureza possiacutevel sem nenhum ingrediente ideoloacutegico mais radicalmente que qualquer teoacuterico da sociedade poderia fazer Valeacutery exprime a contradiccedilatildeo do trabalho artiacutestico nas condiccedilotildees sociais da produccedilatildeo material que reinam hoje na sociedaderaquo (Adorno Theodor W La fonction vicariante du funambule in Notes sur la littteacuterature trad Sibylle Muller Flammarion Paris 1984 p 77)13

Teste chega ao limite de dizer laquoO espiacuterito natildeo deve se ocupar das pessoas De personis non curandumraquo (œ2 p 70)13

œ2 p 6413

C1rsquo p 11913

œ2 p 6613

œ2 p 1513

œ2 p 3713

œ2 p 2913

Cf Musil Robert O homem sem qualidades trad Lya Luft amp Carlos Abbenseth Nova Fronteira Rio de Janeiro 198913

C2rsquo p 33113

Benjamin Walter Paul Valeacutery - Pour son soixantiegraveme anniversaire in œuvres II trad Maurice de Gandillac Rainier Rochlitz amp Pierre Rusch Folio Essais Gallimard 2000 p 32513

laquoSenhor Teste tinha adquirido o estranho haacutebito de se considerar como uma peccedila de seu jogo ou bem como uma peccedila de certo jogo Ele se via Ele se colocava sobre a mesa Por vezes ele se desinteressava da partida O emprego sistemaacutetico de um Eu (Moi) como um Ele (Lui)raquo (C1rsquo p 94 e 95)13

œ2 p 4513

Eis uma estranha oraccedilatildeo de Teste que corrobora essa interpretaccedilatildeo laquoSenhor eu estava no nada infinitamente calmo Fui perturbado desse estado para ser lanccedilado a um estranho carnaval e a cuidados vossos ser dotado do necessaacuterio para sofrer fruir compreender e enganar-me atributos desiguais poreacutem Considero-vos senhor deste negro que vou olhando enquanto penso e sobre o qual haacute-de inscrever-se o derradeiro pensamento Concedei oacute Negro mdash concedei o supremo pensamento Mas o pensamento qualquer pensamento pode ser todo ele laquosupremo pensamentoraquo De outro modo a ser supremo em si e por si poderiacuteamos tecirc-lo por reflexatildeo ou acaso e uma vez tido deviacuteamos morrer Seria isto poder morrer de um pensamento determinado e apenas por natildeo haver outro que o prolongasseraquo (œ2 p 37)13

C1rsquo p 23613

Cf C1rsquo p 1206 cf C2rsquo p 386 704 e 135613

C2rsquo p 142413

œ2 p 7113

œ2 p 1913

œ2 p 3113

œ2 pp 33-3413

C1rsquo p 19613

œ2 p 1413

Eacute por isso que em algumas passagens dos Cahiers Valeacutery chega a compreender seu personagem conceitual como o siacutembolo da reforma de maneiras de pensar da passagem de um operar com essecircncias para um operar com funccedilotildees Teste anota o poeta de modo um tanto obscuro laquobusca reformar maneiras de pensar mdash maneiras de sentir que tem milhotildees de anos de possessatildeo de estado que satildeo impostas pela linguagem pelo decoro porque haacute mais poder sobre um homem [] Pois por maneira de pensar eu natildeo entendo as ideacuteias sozinhas Ele natildeo muda opiniotildees Ele busca uma educaccedilatildeo outramente profunda despedaccedilamentos reais mdash manobras de uma delicadeza incomum como de guardar os poderes devidos a uma ilusatildeo mesmaraquo (C1rsquo pp 331-332) Ou ainda laquoSr Teste mdash demonstra ao Abade [ao Padre] que seu sistema eacute mais puro que toda a religiatildeoraquo (C2rsquo p 1332)13

laquoldquoQue pode um homemrdquoraquo lecirc-se numa passagem dos Cahiers laquo(Teste) eacute decididamente a mais grande questatildeo Mas poder tem 2 sentidos mdash um passivo e outro ativo Eu POSSO entender sentir suportar ser modificado sofrer etc mdash eacute o sentido ldquopropriedaderdquo mdash e o aspecto sensibilidade Eu POSSO fazer agir modificar mdash eacute o sentido faculdade mdash e o aspecto accedilatildeoEntre os dois duas possiacuteveis misturas Eu posso me lembrar mdash e eacute necessaacuterio acrescentar a isso todas as accedilotildees que satildeo ora reflexas ora voluntaacuteriasraquo (C1rsquo p 371)13

œ2 p 151313

Starobisnki Monsieur Teste face agrave la douleur in Jarrety Michel (org) Valeacutery por quoi Les Impressions Nouvelles Paris 198713

œ2 p 4313

œ2 p 2513

œ2 p 3513

œ2 p 3413

œ2 p 6513

C1rsquo p 26313

Cf FEacuteline Pierre Souvenirs sur Paul Valeacutery Mercure de France 321 1954 cf Bertholet Denis Paul Valeacutery - 1871-1945 Biographies Plon Paris 1995 pp 38-39 cf Celeyrette-Pietri Valeacutery Valeacutery et Wronski in Gifford Paul amp StimPson Brian (orgs) Paul Valeacutery - Musique Mystique Matheacutematique Presses Universitaires de Lille Lille 1993 pp 147-162 13

Cf Bertholet Denis Paul Valeacutery - 1871-1945 Biographies Plon Paris 1995 p 8513

Cf Robinson-ValEacutery Judith (org) Fonctions de lrsquoesprit - treize savants redeacutecouvrent Paul Valeacutery Hermann Paris 198313

Cf Robinson-Valeacutery Judith Chapter 4 - The fascination of science in Gifford Paul amp Stimpson Brian (orgs) Reading Paul Valeacutery - Universe in Mind Cambridge University Press Cambridge 1998 pp 70-84 especialmente p 7013

Cf Virtanen Reino Lrsquoimagerie scientifique de Paul Valeacutery Librarie philosophique J Vrin Paris 197513

œ1 p 89913

œ1 p 125313

Cf œ1 p 125313

Cf Bacon Francis The new organon org Lisa Jardine amp Michael Silverthorne Cambridge University Press Cambridge 200013

Cf Descartes Reneacute Discurso do Meacutetodo Meditaccedilotildees Objeccedilotildees e respostas amp As paixotildees da alma Cartas trad J Guinsburg e Bento Prado Juacutenior Os Pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 197913

Em Lrsquoideacutee fixe - ou deux hommes agrave la mer Valeacutery atraveacutes da voz ou personagem do meacutedico refere-se por exemplo agrave necessidade que a Ciecircncia Moderna tem de criar novos meios de representaccedilatildeo para fenocircmenos que natildeo satildeo diretamente captados pelos sentidos (como o demasiado grande e o demasiado pequeno) mas somente inferidos mediante novos instrumentos de captaccedilatildeo e novas teorias de anaacutelise laquoas investigaccedilotildees nos conduziram com bastante prontidatildeo fora do domiacutenio primitivo de nossas percepccedilotildees Encontramos novos meios de ver e de atuar Mas tais meios satildeo indiretos [] Haacute que se interpretar ou ilustrar suas indicaccedilotildees mediante imagens ou ideacuteias necessariamente tomadas de nosso depoacutesito fundamental e invariaacutevel [] Como imaginar um mundo no qual eacute impensaacutevel o ver o tocar em que natildeo existam a figura nem as categorias no qual ateacute as noccedilotildees de posiccedilatildeo e movimento satildeo de certo modo incompatiacuteveis Os fiacutesicos tratam de sair adiante mediante incriacuteveis sutilezasraquo (œ2 p 269)13

Cf Pietra Reacutegine Valeacutery et la reflexion eacutepisteacutemologique dans les dix derniers anneacutees du XIXe siegravecle ndash Valeacutery et Poincareacute in Celeyrette-Pietri Nicole amp Soulez Antonia (orgs) Valeacutery la logique et le langage Sud - Revue litteraire bimestrielle Val de Marne le 29 novembre 1986 Universiteacute Paris XII Paris 1988 p 54 13

Note-se que essa ldquocontradiccedilatildeordquo ocorre agraves vezes num mesmo escrito sobretudo nos escritos sobre Leonardo nos quais Valeacutery afirma que o artista italiano eacute aquele cujo meacutetodo natildeo separa a ciecircncia da arte o compreender do criar mas tambeacutem aquele que sempre estaacute pensando no poder no poder de agir de fazer13

œ1 pp 843-84413

œ1 p 125613

œ1 p 124013

C1rsquo p 574 Natildeo deixa de ser intrigante ler num dos fragmentos dos Cahiers a seguinte passagem confissatildeo da vontade de imaginar um homem para aleacutem inclusive de Leonardo e Teste que viveria e pensaria apenas com categorias meramente funcionais isto eacute um homem puramente ldquopositivordquo ldquocientiacuteficordquo laquoEu imagino com bastante frequumlecircncia um homem que seria em possessatildeo de tudo o que noacutes sabemos feito de operaccedilotildees precisas e de receitas mas inteiramente ignorante de todas as noccedilotildees e de todas as palavras que natildeo nos datildeo imagens claras nem natildeo despertam atos uniformes e [que] podem ser repetidos Ele jamais entendeu [o que eacute] falar de espiacuterito de alma de pensamento de substacircncia de liberdade de vontade de tempo de espaccedilo de forccedilas de vida de instintos de memoacuteria de causa de deuses nem de moral nem de origens e em suma ele sabe tudo o que noacutes sabemos e ignora tudo o que noacutes ignoramos Mas ele disso ignora inclusive os nomes [] eu o coloco em movimento e eu o solto no meio das circunstacircnciasraquo (C1rsquo p 573-574)13

œ2 p 23013

Cf PA13

Numa carta a Anatole de Monzie o poeta chega a fazer a distinccedilatildeo entre Histoacuteria com H maiuacutescula e histoacuteria com h minuacutesculo a primeira designa um mito o mito que nasce ao se personificar um termo abstrato em tornaacute-lo uma espeacutecie de deus mito que eacute exemplificado em expressotildees como a laquoHistoacuteria nos ensinaraquo a laquoHistoacuteria julgaraacuteraquo a segunda a histoacuteria enquanto praacutetica do historiador enquanto disciplina atividade E eacute nesse segundo aspecto que sua reflexatildeo realmente mais se desdobra (Cf œ2 p 1549)13

œ2 p 154913

œ1 p 113513

œ2 p 92013

œ1 pp 1202-120313

œ1 pp 1133-113413

C13 p 51913

Cf Jarrety Michel 8 - Ecritures de lrsquoHistoire in Valeacutery devant la litteacuterature - Mesure de la limite PUF Paris 1991 pp 351-38913

C23 p 50713

C22 p 6613

C14 p 82913

œ2 p 1549 13

œ1 p 1133 13

C23 p 77313

œ2 p 22213

œ1 p 113013

œ1 pp 1130-113113

Cf Jarrety Michel 8 - Ecritures de lrsquoHistoire in Valeacutery devant la litteacuterature - Mesure de la limite PUF Paris 1991 pp 351-38913

œ1 p 113213

œ1 p 113213

œ1 p 113513

Cf Rorty Richard M (org) The linguistic turn - Essays in philosophical method - With two retrospective essays The University of Chicago Press Chicago amp Londres 199213

Cf Wittgenstein Ludwing Tratactus logico-philosophicus ed biliacutenguumle trad apresentaccedilatildeo e ensaio introdutoacuterio Luis Henrique Lopes dos Santos intr Bertrand Russell Edusp Satildeo Paulo 1994 sobretudo sect 40031 pp 164-165 cf Mauthner Fritz Contribuciones a uma criacutetica del lenguage trad Joseacute Moreno Villa Herder Barcelona 2001 13

Gadamer Hans-Georg Verdade e meacutetodo - Traccedilos fundamentais de uma hermenecircutica filosoacutefica I trad Flaacutevio Paulo Meurer nova revisatildeo da trad Enio Paulo Giachini Vozes amp Editora Universitaacuteria Satildeo Francisco Petroacutepolis amp Braganccedila Paulista 2004 p 61213

Nos escritos de Valeacutery natildeo haacute referecircncias diretas a essas correntes apesar de realmente haver vaacuterios pontos em comum Sabe-se hoje pelo inventaacuterio de sua biblioteca e pelas notas deixadas em alguns de seus livros prenhes de apontamentos trabalho feito por Judith Robinson-Valeacutery que ele chegou ao menos a ter contato com a produccedilatildeo do Wiener Kreis Tambeacutem segundo relato de seu filho Franccedilois Valeacutery o proacuteprio poeta teria afirmado a existecircncia de determinadas afinidades entre o seu pensamento e o dos radicais epistemoacutelogos vienenses Entretanto isso parece ter ocorrido somente apoacutes a deacutecada de 1930 portanto num periacuteodo tardio jaacute mais proacuteximo da Segunda Guerra Mundial da tomada de Paris e da velhice do poeta (Cf Robinson-Valeacutery Judith Valeacutery et le Cercle de Vienne - Lectures affiniteacutes et diffeacuterences in Celeyrette-Pietri Nicole amp Soulez Antonia (orgs) Valeacutery la logique et le langage Sud - Revue litteraire bimestrielle Val de Marne le 29 novembre 1986 Universiteacute Paris XII Paris 1988 pp 31-46 especialmente pp 41-42)13

Cf Virtanen Reino Lrsquoimagerie scientifique de Paul Valeacutery Essais drsquoArt et de Philosophie Librarie Philosophique J Vrin Paris 197513

Sobre a influencia de Poincareacute no pensamento de Valeacutery cf Pietra Regina Valeacutery et la reacuteflexion eacutepisteacutemologique das les dix derniegraveres anneacutees di XIXe siegravecle - Valeacutery et Poincareacute in Celeyrette-Pietri Nicole amp Soulez Antonia (orgs) Valeacutery la logique et le langage Sud - Revue litteraire bimestrielle Val de Marne le 29 novembre 1986 Universiteacute Paris XII Paris 1988 pp 47-68 sobre a influecircncia de Max Muumlller notadamente a concepccedilatildeo da linguagem como um um sistema loacutegico imperfeito cf Schmidt-Radefeldt Juumlrger Paul Valeacutery lecteur de Max Muumlller in Celeyrette-Pietri Nicole amp Soulez Antonia (orgs) Valeacutery la logique et le langage Sud - Revue litteraire bimestrielle Val de Marne le 29 novembre 1986 Universiteacute Paris XII Paris 1988 pp 69-8213

Eliot T S De Poe a Valeacutery in Ensaios escolhidos org e trad Maria Adelaide Ramos Cotovia Lisboa 199213

Koumlhler Hartmut Paul Valeacutery poeacutesie et connaissance lrsquoœuvre lyrique agrave la lumiegravere des lsquoCahiersrsquo trad Colette Kowalski Klincksieck Paris 198513

Cf Bourjea Serge Paul Valeacutery - Le sujet de lrsquoeacutecriture LrsquoHarmattan Codeacute-sur-Noireau 199713

œ1 p 131613

C1rsquo p 44813

C1rsquo p 41613

œ1 p 122513

Cf Peirce Charles S Logic as semiotic the theory of signs in Philosophical writings of Peirce org Jusus Buchler Dover Publications New York 13

œ1 p 126413

C1rsquo p 38213

C1rsquo p 42713

Para uma abordagem geral do desenvolvimento histoacuterico desse ideaacuterio cf Eco Umberto A busca da liacutengua perfeita na cultura europeacuteia trad Antonio Angonese Edusc Bauru 2002 para uma abordagem da problemaacutetica filosoacutefica desse ideaacuterio cf Marleau-Ponty Maurice O fantasma de uma liacutengua pura in A prosa do mundo trad Paulo Neves Cosac amp Naify Satildeo Paulo 200213

C1rsquo p 42513

C1rsquo p 45513

As referecircncias ao teoacutelogo da Catalunha e ao filoacutesofo de Leipzig satildeo relativamente constantes nos Cahiers naturalmente diferente desses dois pensadores o poeta natildeo buscou a formulaccedilatildeo de uma linguagem perfeita de uma linguagem pura com o intuito de provar as supostas verdades da religiatildeo cristatilde e com isso colaborar numa mais eficaz conversatildeo de infieacuteis (Cf C1rsquo p 384) De qualquer modo frases como esta mdashlaquoEu soube que minha ambiccedilatildeo literaacuteria era (tecnicamente) organizar minha linguagem de modo a fazer dela um instrumento de exposiccedilatildeo e de deduccedilatildeo de descobertas e de observaccedilotildees rigorosasraquo (C1rsquo p 386)mdash remetem em muito agraves especulaccedilotildees do filoacutesofo das mocircnadas Valeacutery tambeacutem chega a mencionar Descartes quanto agrave formulaccedilatildeo de uma linguagem perfeita de uma linguagem pura Possivelmente ele se refira agrave correspondecircncia do filoacutesofo com o Padre Mersenne especialmente a de 20-11-1629 (Descartes Reneacute œuvres de Descartes - Correspondences - avril 1622-feacutevrier 1638 I org Charles Adam amp Paul Tannery Librairie Philosophique J Vrin Paris 1996 pp 76-82) na qual se encontra a reflexatildeo sobre uma linguagem da razatildeo que pudesse representar toda a filosofia13

C1rsquo p 42813

Quanto a isso Valeacutery chegou a se questionar inclusive da possibilidade ou natildeo de acrescentar outras formas de notaccedilatildeo na proacutepria liacutengua o que supostamente faria com que esta adquirisse um maior ou mais exato poder de representaccedilatildeo laquoPor que natildeo signos como os que haacute na muacutesica (na qual faltam alguns tambeacutem)raquo questiona-se laquoSignos de vitalidade fortemente articulados mdash de paradas de diferentes duraccedilotildees De ldquovivacerdquo ldquosolennerdquo staccato scherazandoraquo (C1rsquo p 574)13

œ2 p 18313

C1rsquo p 40013

Charney Hanna K Le Scepticisme de Valeacutery Dider Paris 1969 cf œ1 p 113213

œ2 pp 177-19413

Cf Derrida Jaques Qual quelle - Les sources de Valeacutery in Marges de la philosophie Minuit Paris 1972 pp 327-36313

Cf Genette Geacuterard Au deacutefaut des langues in Mimologiques - Voyage en Cratylie Eacuteditions du Seuil Paris 1976 cf Motta Leda Tenoacuterio da O abismo da palavra in Catedral em Obras - Ensaios de Literatura Iluminuras Satildeo Paulo 199513

Note-se que o Platonismo seraacute enquanto paradigma filosoacutefico constantemente criticado nos escritos de Valeacutery principalmente em seus diaacutelogos socraacuteticos13

Cumpre dizer que a Teoria das Ideacuteias no Craacutetilo eacute somente esboccedilada inicialmente pelo proacuteprio Craacutetilo e ao fim por Soacutecrates ainda natildeo se apresenta de modo plenamente desenvolvida como no Feacutedon diaacutelogo posterior agravequele no qual a separaccedilatildeo entre mundo das Ideacuteias de um lado e mundo sensiacutevel concreto de outro se acentua assim como todos os problemas que essa separaccedilatildeo acarreta (Cf Plato Cratylus IV no 167 trad Harold North Fowler org G P Goold Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 1992 cf PlatO Phaedo I no 36 trad Harold North Fowler org Jefrey Henderson Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 2005)13

Cf Plato Cratylus IV no 167 trad Harold North Fowler org G P Goold Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 199213

Sobre o nominalismo de Valeacutery cf JArrety Michel 1 Nominalisme et imaginaire in Valeacutery devat la litteacuterature - Mesure de la limite PUF Paris 199113

MallarmEacute Steacutephane œuvres completes I org Bertrand Marchal Gallimard Bibliothegraveque de la Peacuteiade Paris 1998 p 50613

MallarmEacute Steacutephane œuvres completes I org Bertrand Marchal Gallimard Bibliothegraveque de la Peacuteiade Paris 1998 p 50613

œ1 p 132813

Cf Saussure Ferdinand Cours de linguistique geacuteneacuterale orgs Charles Bally Albert Sechehaye amp Albert Riedlinger (colab) Eacutedition critique preacutepareacute par Tullio de Mauro Payothegraveque Payot Paris 198213

Roland Barthes em 1977 na ceacutelebre aula inaugural para o curso de semiologia literaacuteria no Collegravege de France na mesma sala onde Valeacutery havia professado sua Premiegravere leccedilon du cours de poeacutetique (1937) (œ1 p 1828) refere-se a um ideaacuterio similar presente natildeo apenas na linguagem mas tambeacutem na proacutepria literatura laquoDesde os tempos mais antigos ateacute as tentativas de vanguarda a literatura se afaina na representaccedilatildeo de alguma coisaraquo diz o semioacutelogo laquoO quecirc Direi brutalmente o real O real natildeo eacute representaacutevel e eacute porque os homens querem constantemente representaacute-lo por palavras que haacute uma histoacuteria da literatura Que o real natildeo seja representaacutevel mdash mas somente demonstraacutevel mdash pode ser dito de vaacuterios modos quer o definamos com Lacan como o impossiacutevel o que natildeo pode ser atingido e escapa ao discurso quer se verifique em termos topoloacutegicos que natildeo se pode fazer coincidir uma ordem pluridimensional (o real) e uma ordem unidimensional (a linguagem) Ora eacute precisamente a essa impossibilidade topoloacutegica que a literatura natildeo quer nunca quer render-se Que natildeo haja paralelismo entre o real e a linguagem com isso os homens natildeo se conformam e eacute essa recusa talvez tatildeo velha quanto a proacutepria linguagem que produz numa faina incessante a literatura Poderiacuteamos imaginar uma histoacuteria da literatura ou melhor das produccedilotildees de linguagens que seria a histoacuteria dos expedientes verbais muitas vezes louquiacutessimos que os homens usaram para reduzir aprisionar negar ou pelo contraacuterio assumir o que eacute sempre um deliacuterio isto eacute a inadequaccedilatildeo fundamental da linguagem ao real Eu dizia haacute pouco a respeito do saber que a literatura eacute categoricamente realista na medida em que ela sempre tem o real por objeto de desejo e direi agora sem me contradizer porque emprego a palavra em sua acepccedilatildeo familiar que ela eacute tambeacutem obstinadamente irrealista ela acredita sensato o desejo do impossiacutevel Essa funccedilatildeo talvez perversa portanto feliz tem um nome eacute a funccedilatildeo utoacutepica Reencontramos aqui a Histoacuteria Pois foi na segunda metade do seacuteculo XIX num dos periacuteodos mais desolados da infelicidade capitalista que a literatura encontrou pelo menos para noacutes franceses Mallarmeacute sua figura exata a modernidade mdash que entatildeo comeccedila mdash pode ser definida por este fato novo nela se concebem utopias de linguagem Nenhuma ldquohistoacuteria da literaturardquo (se ainda se escrever alguma) poderia ser justa se se contentasse como no passado com encadear escolas sem marcar o corte que potildee a nu um novo profetismo o da escrituraraquo (Barthes Roland Leccedilon in œuvres Completes III 1974-1980 org Eacuteric Marty Eacuteditions du Seuil 1995 pp 806-807) laquoO uacutenico real na arte eacute a arteraquo (œ1 p 613) assim tambeacutem jaacute escrevia Valeacutery em La Tentation de (Saint) Flaubert no qual critica o ideaacuterio do Realismo que natildeo raro baseando-se em erudiccedilatildeo documental descreve os objetos e os acontecimentos com grande profusatildeo de detalhes pretendendo com isso dar uma suposta objetividade agrave representaccedilatildeo literaacuteria 13

Wittgenstein Investigaccedilotildees filosoacuteficas trad Joseacute Carlos Bruni Os pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 197913

C1rsquo p 418 cf C1rsquo p 45713

Semelhante reflexatildeo foi desenvolvida por Nietzsche em sua criacutetica ao conceito de verdade este assim se pergunta laquoO que eacute a verdade Um batalhatildeo moacutevel de metaacuteforas metoniacutemias antropomorfismos enfim a soma de relaccedilotildees humanas que foram enfatizadas poeacutetica e retoricamente transpostas enfeitadas e que apoacutes longo uso parecem a um povo soacutelidas canocircnicas e obrigatoacuterias as verdades satildeo as ilusotildees das quais se esqueceu que o satildeo metaacuteforas que se tornaram gastas e sem forccedila sensiacutevel moedas que perderam a sua efiacutegie e agora soacute entram em consideraccedilatildeo como metal natildeo mais como moedaraquo (Nietzsche Friedrich Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral trad Rubens Rodrigues Torres Filho Os pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1974 p 84)13

œ1 pp 1093-109413

A ceacutelebre reflexatildeo de Santo Agostinho mdashlaquoO que eacute portanto o tempo se ningueacutem me pergunta eu sei se quiser explicar a quem me fizer a pergunta natildeo seiraquo (laquoQuid est ergo tempus Si nemo ex me quaerat scio si quaerenti explicare velim nescioraquo (SantrsquoAgostino Le confessioni in Opere di SantrsquoAgostino I Edizione latino-italiana Nuova Biblioteca Agostiniana Cittagrave Nuoava Editrice Roma 1993 Liber XI sect 14 pp 380-381))mdash denuncia que a consciecircncia desse fenocircmeno eacute bastante antiga (cf a epiacutegrafe deste capiacutetulo) Wittgenstein que a cita logo em seguida pondera laquoAquilo que se sabe quando ningueacutem nos interroga mas que natildeo se sabe mais quando devemos explicar eacute algo sobre o que se deve refletir (E evidentemente algo sobre o que por alguma razatildeo dificilmente se reflete)raquo (Wittgenstein Ludwing Investigaccedilotildees filosoacuteficas trad Joseacute Carlos Bruni Os pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1979 p 49)13

œ1 pp 1317-131813

C1rsquo p 45413

Cf Wittgenstein Ludwing Investigaccedilotildees filosoacuteficas trad Joseacute Carlos Bruni Os Pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 197913

C1rsquo p 43313

œ2 pp 480-48113

Cf Rousseau Essais sur lrsquoorigine des langues org Jean Starobinski Folio - Essais Gallimard Paris 199313

Cf Condillac Eacutetienne Bonnot de Essai sur lrsquoorigine des connaissances humaines ndash Ouvrage ougrave lrsquoon reacuteduit agrave un seul principe tout ce qui concerne lrsquoentendement org Raymond Lenoir Librairie Armand Colin 192413

Sobre a linguagem como gesto cf Soulez Antonia La phrase-geste - Valeacutery et Wittgenstein in Celeyrette-Pietri Nicole amp Soulez Antonia (orgs) Valeacutery la logique et le langage Val de Marne le 29 novembre 1986 Universiteacute Paris XII Paris 1988 pp 135-15513

C1rsquo p 45713

C1rsquo p 41013

C1rsquo p 45813

œ1 p 144013

Cf Nietzsche Friedrich Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral trad Rubens Rodrigues Torres Filho Os Pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1974 p 8413

C1rsquo p 39113

C1rsquo p 39013

Cf C1rsquo p 460-46113

C1rsquo p 43813

œ1 p 68613

C1rsquo pp 438-43913

C1rsquo p 43013

C1rsquo p 62013

O modo como Valeacutery escreve em geral sobre a filosofia eacute realmente bastante sedutor Assim quando Emile Cioran o critica como um escritor que tambeacutem se deixou levar pela doenccedila da linguagem imagina-se que ao contraacuterio o elogia irocircnico nega-o para afirmaacute-lo confessando por quem se deixou influenciar laquoO horror que tinha do jargatildeo filosoacutefico eacute tatildeo convincente tatildeo contagiante que dele partilhamos para sempre soacute podemos ler um filoacutesofo seacuterio com desconfianccedila ou repugnacircncia e nos recusarmos daiacute em diante a todo termo falsamente misterioso ou eruditoraquo (Cioran Emile Valeacutery face agrave ses idoles œuvres Quarto Eacuteditions Gallimard 1995 p 1567)13

C1rsquo p 41313

œ1 pp 1264-126513

C1rsquo pp 532-533 Essa concepccedilatildeo se coaduna com a concepccedilatildeo do que vem a ser a filosofia para Wittgenstein uma atividade cujo fim natildeo eacute a resoluccedilatildeo mas a eliminaccedilatildeo dos problemas filosoacuteficos a diferenccedila mais marcante entre os dois pensadores eacute mais de caraacuteter semacircntico este se colocava dentro da filosofia como filoacutesofo e Valeacutery fora dela como natildeo filoacutesofo Jaacute na sua primeira obra o loacutegico austriacuteaco escreve laquoA maioria das questotildees e proposiccedilotildees dos filoacutesofos proveacutem de natildeo entendermos a loacutegica de nossa linguagem (Satildeo da mesma espeacutecie que a questatildeo de saber se o bem eacute mais ou menos idecircntico ao belo) E natildeo eacute de admirar que os problemas mais profundos natildeo sejam propriamente problemasraquo (Cf Wittgenstein Ludwing Tratactus logico-philosophicus trad Luiz Henrique Lopes dos Santos EDUSP Satildeo Paulo 1994 sect 4003 pp 164-165) Essas aacuteridas palavras poderiam muito bem ser de Valeacutery compare-se tambeacutem tanto na forma fragmentada como no conteuacutedo os Cahiers de um e as Philosophische Untersuchungen do outro 13

Π folio 94 recto13

œ1 pp 1318-131913

A expressatildeo laquoautomatismo verbalraquo tambeacutem natildeo estaacute longe do que o segundo Wittgenstein denominou de enfeiticcedilamento da linguagem escreve ele que laquoA filosofia eacute uma luta contra o enfeiticcedilamento do nosso entendimento pelos meios da nossa linguagemraquo (Wittgenstein Ludwing Investigaccedilotildees filosoacuteficas trad Joseacute Carlos Bruni Os pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1975 p 54)13

œ1 pp 1263-126413

œ1 p 126813

Eacute nesse sentido que Derrida em seu ensaio sobre Valeacutery Qual quelle - Les sources de Valeacutery refere-se a este como um pensador eminentemente escritural diferentemente da tradiccedilatildeo que vai de Descartes a Husserl laquoValeacutery faz lembrar ao filoacutesofo que a filosofia se escreve E que o filoacutesofo eacute filoacutesofo pelo tanto que esqueceraquo (Derrida Jaques Qual quelle - Les sources de Valeacutery in Marges de la philosophie Minuit Paris 1972 p 346)13

Cf como um criacutetico como Edmund Wilson considera entre as deacutecadas de 1930 e 1950 a prosa de Valeacutery algo inferior agrave sua poesia (Wilson Edmund Paul Valeacutery in O castelo de Axel - Estudo dobre a literatura imaginativa de 1870 a 1930 trad Joseacute Paulo Paes Companhia das Letras Satildeo Paulo pp 85-108) Muito em funccedilatildeo da publicaccedilatildeo e divulgaccedilatildeo dos Cahiers hoje a tendecircncia eacute justamente contraacuteria Por um lado a criacutetica atual o posiciona cada vez mais como aquele pensador refinado que se interessa em observar seus proacuteprios procedimentos e em avaliar o impacto da Modernidade cientiacutefica e teacutecnica na arte e na vida por outro relega a sua posiccedilatildeo de poeta a um plano por vezes secundaacuterio posto que sua poesia mescla de elementos do Classicismo e Simbolismo eacute considerada de um rigor e hermetismo um tanto anacrocircnico difiacutecil para o ouvido moderno jaacute habituado ao sedutor verso livre (Cf Kluback William Paul Valeacutery a philosopher for philosophers - The sage Peter Lang New York 2000)13

Haacute que se lembrar dessas tradiccedilotildees das quais Valeacutery eacute em certa medida herdeiro o Ceticismo e o Empirismo portanto de um tipo de pensamento que apesar de tambeacutem bastante variado apresenta a possibilidade em se abster da formulaccedilatildeo de uma metafiacutesica Isso porque de algum modo a historiografia filosoacutefica tende a reduzir a filosofia agrave metafiacutesica ou ao menos a dar importacircncia central a ela Daiacute que por exemplo o poeta tenha considerado que o pensamento de um Montaigne com quem tem muitas e ambiacuteguas afinidades dificilmente seria considerado filosoacutefico laquoNela [na filosofia] natildeo figura mais Montaigne Um homem que respondesse Natildeo sei a todas as questotildees de um formulaacuterio filosoacutefico natildeo seria considerado filoacutesofo E no entantoraquo (œ1 p 1251)13

C1rsquo p 503 cf Peitra Regina An art of rethinking Valeacutery lsquonegative philosophyrsquo in Gifford Paul amp Stimpson Brian (orgs) Reading Paul Valeacutery - Universe in mind Cambridge Studies in French Cambridge University Press Cambridge 1998 p 9013

Cf œ2 p 77-147 cf Peitra Regina An art of rethinking Valeacutery lsquonegative philosophyrsquo in Gifford Paul amp Stimpson Brian (orgs) Reading Paul Valeacutery - Universe in mind Cambridge Studies in French Cambridge University Press Cambridge 1998 pp 90-9113

Cf Peitra Regina An art of rethinking Valeacutery lsquonegative philosophyrsquo in Gifford Paul amp Stimpson Brian (orgs) Reading Paul Valeacutery - Universe in mind Cambridge Studies in French Cambridge University Press Cambridge 1998 pp 90-9113

œ1 pp 458-47313

Cf Peitra Regina An art of rethinking Valeacutery lsquonegative philosophyrsquo in Gifford Paul amp Stimpson Brian (orgs) Reading Paul Valeacutery - Universe in mind Cambridge Studies in French Cambridge University Press Cambridge 1998 pp 90-92 cf Gaegravede Edouard Valeacutery et Nietzsche Gallimard Paris 196213

C1rsquo p 61913

Cf œ1 pp 785-853 cf CR13

Cf MacKay Agnes Ethel 3 - Valeacutery and the philosophers in The universal self - A study of Paul Valeacutery University of Toronto Press Toronto 1961 cf Kahn Gilbert Valeacutery et les philosophes in Paul Valeacutery 8 Un noveau regard sur Valeacutery orgs Nicole Celeyrette-Pietri amp Brian Stimpson La revue des lettres modernes Lettres Modernes Paris 199513

C4 p 368 cf Peitra Regina An art of rethinking Valeacutery lsquonegative philosophyrsquo in Gifford Paul amp Stimpson Brian (orgs) Reading Paul Valeacutery - Universe in mind Cambridge Studies in French Cambridge University Press Cambridge 1998 p 9113

œ1 pp 1238-123913

Cf Rey Jean Michel Paul Valeacutery - Lrsquoaventure drsquoune œuvre La Librairie du XXe siegravecle Eacuteditions du Seuil 199113

œ1 p 123713

œ1 p 116413

œ1 pp 1238-123913

œ1 p 124013

œ1 pp 1237-123813

Semelhante reflexatildeo pode tambeacutem ser evocada da leitura do poema em prosa Le visionaire laquoo anjo me deu um livro e me disse laquoEste livro conteacutem tudo o que tu podes desejar saberraquo E ele partiu E eu abri este livro que era medianamente grosso Estava escrito numa escritura desconhecida Os saacutebios o traduziram mas cada um deu-lhe uma versatildeo totalmente diferente das outras E eles diferiam de opiniatildeo quanto ao proacuteprio significado da leitura Natildeo concordando nem sobre o alto nem sobre o baixo nem sobre o comeccedilo nem sobre o fim Perto do fim desta visatildeo pareceu-me que este livro se fundia com o mundo que nos cercavaraquo (œ1 p 333)13

CR p 5913

Sobre os paralelos entre o pensamento de Valeacutery e o Budismo cf Tsunekawa Kunio Paul Valeacutery est-il bouddhiste in Gifford Paul Pickering Robert amp Schmidt-Radefeldt (orgs) Juumlrgen Paul Valeacutery agrave tous points de vue - Hommage agrave Judith Robinson-Valeacutery LrsquoHarmattan Paris 2003 cf Gifford Paul amp Stimpson Brian (orgs) Paul Valeacutery - Musique Mystique Matheacutematique Presses Universitaire de Lille Lille 199313

Π 1938-1939 Texte 57 (XXII 635) [fin de page]13

PA p 13213

œ1 p 125613

œ1 p 124713

œ1 p 125513

Sebeski Jean Confluenes valeryennes in Celeyrette-Pietri Nicole amp Soulez Antonia (orgs) Valeacutery la logique et le langage - Revue Litteraire Bimestrielle Val de Marne le 29 novembre 1986 Universiteacute Paris XII Paris 1988 pp 24-2413

Carnap Rudolph Le deacutepassement de la meacutetaphysique par lrsquoanalyse logique du langage in Soulez Antonia (org) Manifeste du Cercle de Vienne et autres eacutecrists PUF Paris 1985 p 17713

œ1 p 124813

œ1 p 124813

œ1 p 123613

œ1 p 125013

Frase dita a Huret Jules in Enquecircte sur lrsquoeacutevolution litteacuteraire in lthttpwwwuni-duisburg-essendelyriquetheorietexte1891_hurethtmlgt 2008 13

Leiam-se as palavras do escritor italiano laquoEntre os valores que gostaria que fossem transferidos para o proacuteximo milecircnio estaacute principalmente este o de uma literatura que tome para si o gosto da ordem intelectual e da exatidatildeo a inteligecircncia da poesia juntamente com a da ciecircncia e da filosofia como a do Valeacutery ensaiacutesta e prosador [] Se tivesse de apontar quem na literatura realizou perfeitamente o ideal esteacutetico de Valeacutery da exatidatildeo de imaginaccedilatildeo e de linguagem construindo obras que correspondem agrave rigorosa geometria do cristal e agrave abstraccedilatildeo de um raciociacutenio dedutivo diria sem hesitar Jorge Luis Borgesraquo (Calvino Iacutetalo Seis propostas para o proacuteximo milecircnio trad Ivo Barroso Companhia das Letras Satildeo Paulo 1998 p 133)13

Natildeo agrave toa uma Simone Weil considerar Paul Valeacutery natildeo um ceacutetico mas um metafiacutesico naturalmente ela se referia mais ao poeta do que ao prosador (Cf Lussy Florence de Paul Valeacutery et Simone Weil deux natures mystiques deus penseacutees antitheacutetiques in Gifford Paul amp Stimpson Brian (orgs) Paul Valeacutery musique mystique matheacutematique Presses Universitaires de Lille Lille 1993)13

œ2 p 90313

œ1 pp 1249-125013

œ1 p 133513

Cf Poe Edgard Allan O princiacutepio poeacutetico amp Filosofia da composiccedilatildeo in Poemas e ensaios trad Oscar Mendes e Milton Amado revisatildeo e notas Carmen Vera Cirne Lima Globo Satildeo Paulo 199913

œ1 p 134213

œ1 p 134313

œ1 p 135013

Plato Book X in Republic - Books 6-10 trad Paul Shorey Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 200613

ARISTOTLE Poetics trad Stephen Halliwell Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 200513

Cf Koumlhler Hartmut Chapitre III - La connaissance corroboreacutee par elle-meme une poeacutetique anticipeacutee in Paul Valeacutery poeacutesie et connaissance lrsquoœuvre lyrique agrave la lumiegravere des lsquoCahiersrsquo trad Colette Kowalski Klincksieck Paris 198513

C1rsquo p 33613

œ2 p 54613

Cf œ1 pp 1314-133913

Sobre o primeiro encontro de Valeacutery com Mallarmeacute cf Bertholet Denis Paul Valeacutery - 1871-1945 Biographies Plon Paris p 8113

Cf Lalou Reneacute Lrsquoideacutee de poeacutesie pure em France in Deacutefense de lrsquohomme (intelligence et sensualiteacute) Sagitaire Simon Kra Paris 192613

Cf œ1 pp 686-70613

Cf Zambrano Mariacutea Filosofia y poesiacutea Fondo de cultura econoacutemica Meacutexico D F 1996 pp 120-12113

Cf œ1 pp 1269-128013

Henry Bremond em seu conhecido escrito La poeacutesie pure tambeacutem se refere ao conceito de poesia pura mas a este acrescenta ressonacircncias religiosas Apesar da confessa influecircncia simbolista Bremond apresenta portanto uma poeacutetica relativamente distinta da proposta por Valeacutery que se ateacutem sobretudo aos procedimentos formais e ao que esses procedimentos podem suscitar no espiacuterito do poeta (Cf Breacutemond Henry La poeacutesie pure in Charpier Jacques amp Seghers Pierre (orgs) Lrsquoart poeacutetique Editions Seghers Paris 1956)13

œ1 p 124413

œ1 p 150513

Cf Jarrety Michel Chapter 6 - The poetics of practice and theory in Gifford Paul amp Stimpson Brian (orgs) Reading Paul Valeacutery - Universe in mind Cambridge Studies in French Cambridge University Press Cambridge 1998 pp 105-13713

œ1 p 133113

œ1 p 1503 Valeacutery se repete laquoO filoacutesofo natildeo concebe facilmente que o artista passa quase indiferentemente da forma ao conteuacutedo e do conteuacutedo agrave forma que lhe ocorra um tipo de frase e que em seguida procure completaacute-la e justificaacute-la por um sentido que a ideacuteia de uma forma seja o mesmo para ele que a ideacuteia que requer uma forma Etcraquo (œ1 p 1244) Ou ainda laquoO filoacutesofo natildeo concebe facilmente que o artista passe de maneira quase indiferente da forma ao conteuacutedo e do conteuacutedo agrave forma que lhe ocorra uma forma antes do sentido que daraacute a ela nem que a ideacuteia de uma forma seja igual para ele agrave ideacuteia que requer uma formaraquo (œ1 p 1245)13

œ1 pp 676-67713

Quanto ao natildeo acabamento agrave imperfeiccedilatildeo de todo poema eis uma bela passagem de Valeacutery que poderia muito bem se referir agrave escritura dos seus proacuteprios Cahiers laquoUm poema natildeo estaacute nunca acabadoraquo sempre afirma e reafirma o poeta laquoEacute sempre um acidente o que o termina isto eacute o que o daacute ao puacuteblico Satildeo a lassitude a solicitude do editor o surgir de um outro poema Mas nunca o estado mesmo da obra (se o autor natildeo eacute um imbecil) revela que esta natildeo poderia ser trabalhada modificada considerada como primeira aproximaccedilatildeo ou origem de uma nova busca Eu concebo quanto a mim que o mesmo tema e quase as mesmas palavras poderiam ser indefinidamente revisadas e ocupar toda uma vida ldquoPerfeiccedilatildeordquo eacute trabalhoraquo (œ2 p 553)13

Cf Barbosa Joatildeo Alexandre Mallarmeacute segundo Valeacutery in A comeacutedia intelectual de Paul Valeacutery Iluminuras Satildeo Paulo 2007 pp 27-5113

Cf gifford Paul Pickering Robert amp Schmidt-Radefeldt Juumlger (org) Paul Valeacutery agrave tous points de vue - Hommage agrave Judith Robinson-Valeacutery LrsquoHarmattan Paris Budapeste Turim 2003 13

Cf Horace Ars poeacutetica trad H R Fairclough org Jeffrey Henderson Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 200513

œ1 p 132113

laquoComo os vestiacutegios do esforccedilo as repeticcedilotildees as correccedilotildees a quantidade de tempo os dias ruins e os desgostos desapareceram apagados pela suprema volta do espiacuterito para a sua obra algumas pessoas vendo apenas a perfeiccedilatildeo do resultado a consideraratildeo o resultado de uma espeacutecie de prodiacutegio denominado INSPIRACcedilAtildeO Fazem portanto do poeta uma espeacutecie de meacutedium momentacircneo Se focircssemos nos deleitar desenvolvendo rigorosamente a doutrina da inspiraccedilatildeo pura as consequumlecircncias seriam bem estranhas Achariacuteamos por exemplo que esse poeta que se limita a transmitir o que recebe ao comunicar a desconhecidos o que sabe do desconhecido natildeo precisa entatildeo compreender o que escreve o que lhe eacute ditado por uma voz misteriosa Ele poderia escrever poemas em uma liacutengua que ignorasseraquo (œ1 p 1335)13

œ1 p 132213

œ1 p 1324 Na sequumlecircncia Valeacutery ainda comenta laquoMallarmeacute tinha razatildeo Mas quando Degas falava de ideacuteias pensava em discursos internos ou em imagens que afinal pudessem ser exprimidas em palavras Mas essas palavras mas essas frases iacutentimas que ele chamava de suas ideacuteias todas essas intenccedilotildees e percepccedilotildees do espiacuterito mdash nada disso faz versos Haacute portanto algo mais uma modificaccedilatildeo ou natildeo que se interpotildee necessariamente entre esse pensamento produtor de ideacuteias essa atividade e essa multiplicidade de questotildees e de resoluccedilotildees internas e depois esses discursos tatildeo diferentes do discurso comum os versos extravagantemente ordenados que natildeo atendem a qualquer necessidade a natildeo ser agraves necessidades que devem ser criadas por eles mesmos que sempre falam apenas de coisas ausentes ou de coisas profunda e secretamente sentidas estranhos discursos que aprecem feitos por outro personagem que natildeo aquele que os diz e dirigir-se a outro que natildeo aquele que os escuta Em suma eacute uma linguagem dentro de uma linguagemraquo (œ1 p 1324)13

œ1 p 132113

œ1 p 88113

C1rsquo pp 181-18213

Cf Derrida Jaques Qual quelle - Les sources de Paul Valeacutery in Marges de la philosophie Minuit Paris 197213

œ1 p 145113

œ1 p 145113

œ1 p 124613

Cf Adorno Theodor W La fonction vicariante du funambule in Notes sur la littteacuterature trad Sibylle Muller Flammarion Paris 198413

œ1 p 128313

Cf PlatO Cratylus IV no 167 trad Harold North Fowler org G P Goold Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 199213

Cf Plato Republic - Books 6-10 trad Paul Shorey Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 200613

Cf Cossutta Freacutedeacuteric (org) Le dialogue introduction agrave un genre philosophique Press Universitaires du Septentrion Paris 200413

Cf Marx William The Dialogues and lsquoMon Faustrsquo the inner politics of thought in Gifford Paul amp Stimpson Brian (orgs) Reading Paul Valeacutery - Universe in mind Cambridge University Press Cambridge 1998 pp 164-16513

œ1 p 44813

C1rsquo pp 299-30013

C2rsquo p 51913

Cf Marx William The Dialogues and lsquoMon Faustrsquo the inner politics of thought in Gifford Paul amp Stimpson Brian (orgs) Reading Paul Valeacutery - Universe in mind Cambridge University Press Cambridge 1998 pp 156-15913

Cf œ1 pp 360-36613

Blanchot Maurice Valeacutery et Faust in La part du Feu Nrf Gallimard 1949 p 27313

laquoEu penso que nesse assuntoraquo acrescenta Valeacutery evocando mais uma vez a sua habitual reticecircncia com relaccedilatildeo agrave Histoacuteria laquoa grandeza dos erros que noacutes cometemos sem informaccedilatildeo eacute sensivelmente a mesma do que aqueles que cometem com informaccedilatildeo Reconstituir uma certa Greacutecia com um miacutenimo de dados e convenccedilotildees homogecircneas natildeo eacute mais criticaacutevel do que reconstituir atraveacutes de uma quantidade de documentos que quanto mais numerosos mais contraditoacuteriosraquo (Cf œ2 p 1399) Cf o programa de leituras de Valeacutery que inclui uma seacuterie de heterogecircneos autores entre eles Platatildeo in Bertholet Denis Paul Valeacutery - 1871-1945 Biographies Plon Paris pp 82-8313

C1rsquo p 28313

Plato Symposium trad W R M Lamb org Jeffrey Henderson amp G P Goold Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 200113

Essa proposta eacute expressa numa carta de agradecimento de Valeacutery a Lous Seacutechan em agosto de 1930 o trecho que se segue a sintetiza laquoO pensamento constante do Diaacutelogo [Lrsquoacircme et la danse] eacute fisioloacutegico mdash depois dos problemas digestivos do comeccedilo do preluacutedio ateacute a sincope final O homem eacute escravo do simpaacutetico e do [] gaacutestrico Sensaccedilotildees suntuaacuterias movimentos de luxo e pensamentos especulativos existem apenas em favor do valor da tirania da nossa vida vegetativa A danccedila eacute o tipo de escape Quanto agrave forma do conjunto eu tentei fazer do proacuteprio Diaacutelogo uma espeacutecie de baleacute no qual a Imagem e a Ideacuteia satildeo alternativamente os Corifeus O abstrato e o sensiacutevel se conduzem alternativamente e se unem enfim na vertigem Em suma eu natildeo persegui nenhum grau de rigor histoacuterico ou teacutecnico [] Eu fiz intervir livremente o que me precisou para entreter o meu Baleacute e em variar as suas figurasraquo (œ2 p 1408 ou LQ p 190)13

œ2 p 14913

œ2 pp 150-15113

laquoA maior parte de nossos movimentos voluntaacuteriosraquo escreve Valeacutery em seu ceacutelebre ensaio Degas Dance Dessin laquotem uma accedilatildeo exterior como fim alcanccedilar um lugar ou um objeto ou modificar alguma percepccedilatildeo ou sensaccedilatildeo em um ponto determinado Satildeo Tomaacutes dizia muito bem laquoPrimum in causando ultimum est in causatoraquo Atingido o objetivo terminada a atividade nosso movimento que estava inscrito na relaccedilatildeo de nosso corpo com o objeto e com nossa intenccedilatildeo cessa Sua determinaccedilatildeo continha sua exterminaccedilatildeo natildeo se podia nem concebecirc-lo nem executaacute-lo sem a presenccedila e o concurso da ideacuteia de um acontecimento que fosse seu termo [] Se penso em me dirigir da Eacutetoile ao Museu natildeo pensaria nunca que posso tambeacutem realizar meu desiacutegnio passando pelo Pantheacuteon Mas haacute outros movimentos cuja evoluccedilatildeo natildeo eacute excitada nem determinada nem possiacutevel de ser causada e concluiacuteda por nenhum objeto localizado Nenhuma coisa que alcanccedilada traga a resoluccedilatildeo desses atos Cessam apenas mediante alguma intervenccedilatildeo alheia a sua causa sua figura sua espeacutecie e em vez de estarem submetidos a condiccedilotildees de economia parecem ao contraacuterio ter a proacutepria dissipaccedilatildeo por objeto Os saltos por exemplo e as cambalhotas de uma crianccedila ou de um catildeo a caminhada pela caminhada o nado pelo nado satildeo atividades que tecircm como fim apenas modificar nosso sentimento de energia criar certo estado desse sentimento Os atos dessa classe podem e devem multiplicar-se ateacute que uma circunstacircncia completamente diversa de uma modificaccedilatildeo exterior que eles tiverem produzidos intervenha Essa circunstacircncia seraacute uma qualquer em relaccedilatildeo a eles cansaccedilo por exemplo ou convenccedilatildeoraquo Em outra passagem prossegue laquono Universo da danccedila o repouso natildeo tem lugar a imobilidade eacute coisa imposta e forccedilada estado de passagem e quase violecircncia enquanto os saltos os passos contados as pontas os entrechat ou as rotaccedilotildees vertiginosas satildeo maneiras completamente naturais de ser e fazer Mas no Universo ordinaacuterio e comum os atos satildeo apenas transiccedilotildees e toda a energia que por vezes nele aplicamos soacute eacute empregada para esgotar alguma tarefa sem repeticcedilatildeo e sem regeneraccedilatildeo de si mesma pelo impulso de um corpo sobre-excitado Assim o que eacute provaacutevel em um desses Universos eacute no outro um acaso dos mais rarosraquo (œ2 p 1172)13

œ2 p 17113

œ2 pp 154-155 13

œ2 p 117313

œ2 pp 161-16513

œ2 pp 167-16913

œ2 pp 171-17213

œ2 p 17613

Plato Phaedrus I no 36 trad Harold North Fowler org Jefrey Henderson Harvard University Press Loeb Classical Library Cambridge amp London 2005 247 C-D sect 27 p 47513

Note-se que o conceito de Ideacuteia em Platatildeo natildeo eacute tatildeo determinado No diaacutelogo Parmecircnides por exemplo lecirc-se que os objetos dos quais haacute certamente participaccedilatildeo nas Ideacuteias satildeo os objetos matemaacuteticos e os objetos de valor (o belo o bom o justo etc) quanto aos objetos sensiacuteveis materiais como o homem o fogo a aacutegua etc existe duacutevida se possuem participaccedilatildeo nas Ideacuteias quanto a outros objetos sensiacuteveis materiais desprovidos de valor como o cabelo a lama a sujeira etc estes certamente natildeo possuem participaccedilatildeo nas Ideacuteias (Cf Plato Parmenides trad Harold North Fowler org Jefrey Henderson Harvard University Press Loeb Classical Library Cambridge amp London 2002 130 A-E pp 208-213)13

Cf Plato Phaedrus I no 36 trad Harold North Fowler org Jefrey Henderson Harvard University Press Loeb Classical Library Cambridge amp London 200513

Cf Plato Phaedo I no 36 trad Harold North Fowler org Jefrey Henderson Harvard University Press Loeb Classical Library Cambridge amp London 200513

Cf Lucian Dialog of the dead VII no 431 trad M D Macleod org G P Goold Harvard University Press Loeb Classical Library Cambridge amp London 1992 pp 1-17513

O proacuteprio Valeacutery numa carta a Paul Souday historia como veio a escrever esse diaacutelogo de circunstacircncia laquoEu recebi a comissatildeo de escrever um texto para o aacutelbum Architectures que eacute uma coleccedilatildeo de gravuras e de plantas Esse texto que deveria ser magnificamente impresso in-folio e exatamente ajustado agrave decoraccedilatildeo e agrave paginaccedilatildeo da obra pediram-me para lhe dar um tamanho exato de 115800 palavras 115800 caracteres Eacute verdade que eram caracteres suntuosos Eu aceitei Meu diaacutelogo entatildeo foi muito longo Eu o diminuiacute e depois um pouco mais curto mdash eu o aumentei Acabai por considerar essas exigecircncias muito interessantes Mas eacute possiacutevel que o texto mesmo tenha sofrido um poucoraquo (œ1 p 1401 ou LQ p 147)13

Π 1925-1925 Texte 28 (X 657)13

Π 1921-1922 Texte 11 (VIII 471)13

œ2 p 7913

œ2 p 7913

œ2 p 7913

Plato Phaedrus I no 36 trad Harold North Fowler org Jefrey Henderson Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 2005 247C-D sect27 pp 474-47513

œ2 pp 80-8113

Sobre a Teoria das Ideacuteias em Paul Valeacutery cf C1rsquo pp 545 622 e 624 cf C2rsquo pp 954 e 136113

Valeacutery refere-se a Steacutephane Mallarmeacute deste o verso citado pertence ao poema Prose (pour des Esseintes) publicado pela primeira vez na La Revue indeacutependante em 1885 (Cf MallarmEacute Steacutephane œuvres complegravetes I Gallimard Bibliothegraveque de la Peacuteiade Paris 1998 pp 28-30)13

œ2 pp 87-8813

laquoO nome de Eupalinos eu o adquiriraquo revela Valeacutery laquoquando procurava o nome de um arquiteto na Encyclopeacutedie Berthelot no artigo ldquoArquiteturardquo Aprendi depois por um trabalho do saacutebio helenista Bidez (de Grand) que Eupalinos mais engenheiro do que arquiteto cavou canais e construiu poucos templos eu o emprestei minhas ideacuteias como o fiz com Soacutecrates e Fedro Ademais eu nunca estive na Greacutecia e quanto ao grego eu sou infelizmente limitado um escolar dos mais mediacuteocres que se apega ao original de Platatildeo e o encontra nas traduccedilotildees terrivelmente longo e por vezes aborrecidoraquo (œ2 p 1402 ou LQ p 215)13

Cf Deleuze Gilles Platatildeo e o Simulacro in Loacutegica dos Sentidos trad Luiz Roberto Salinas Fortes Perspectiva Satildeo Paulo 200013

Π Folio 10813

C1rsquo p 1120 13

C1rsquo p 1120 13

C1rsquo p 112413

Π Folio 10713

Cf Gaegravede Edouard Valeacutery et Nietzsche Gallimard Paris 196213

Nietzsche Friedrich Asiacute habloacute Zaratustra trad Andreacute Sanches Pascual Alianza Editorial Madrid 1996 p 60 13

œ2 pp 91-9213

œ2 pp 91-9213

œ2 p 9413

œ2 pp 96-9713

œ2 p 9913

A filoacutesofa e miacutestica de orientaccedilatildeo marxista Simone Weil que chegou a trocar correspondecircncias com Valeacutery e a assistir alguns de seus cursos (cf Weil Simone Quelques reacutefleacutexions autour de la notion de valeur in œuvres org Florence de Lussy Quarto Gallimard Paris 1999) supostamente muito com o intuito de escrever poesias lega essas memoraacuteveis frases de inspiraccedilatildeo valeacuteryana em uma passagem sobre a miacutestica do trabalho laquoA grandeza do homem eacute sempre recriar sua vida Recriar o que lhe eacute dado Forjar aquilo mesmo que sofre Pelo trabalho ele produz sua proacutepria existecircncia natural Pela ciecircncia recria o universo por meio de siacutembolos Pela arte recria a alianccedila entre seu corpo e sua alma (cf o discurso de Eupalinos) Notar que cada uma dessas trecircs coisas eacute pobre vazia fuacutetil tomada em si mesma e sem relaccedilatildeo com as outras duasraquo (Weil Simone A gravidade e a graccedila trad Paulo Neves Martins Fontes Satildeo Paulo 1993 p 201)13

Um dos aacutepices poeacuteticos do Eupalinos essa oraccedilatildeo que eleva o corpo que o concilia agrave alma relaciona-se mdashdifiacutecil saber se Valeacutery assim a projetou ou se foi obra do acasomdash com uma outra que em grande medida o rebaixa Esta se encontra no Feacutedon de Platatildeo que mais de vinte seacuteculos antes relata os derradeiros momentos da vida de Soacutecrates entre amigos e disciacutepulos antes de beber a cicuta como o momento sugere o diaacutelogo eacute uma reflexatildeo sobre o prazer e a dor sobre as necessidades da existecircncia material sobre como somente os mortos podem contemplar a verdade como somente a alma livre do proacuteprio corpo eacute capaz de contemplaacute-la A passagem aqui referida eacute uma eloquumlente fala do Soacutecrates platocircnico a sintetizar o que ateacute entatildeo foi discutido na sua magniacutefica ambiguumlidade eacutetica na sua argumentaccedilatildeo possui um teor relativamente proacuteximo do discurso deste grande e polecircmico propagandista do Cristianismo o convertido Paulo de Tarso Nela haacute algo de profeacutetico reflete como entatildeo pela filosofia e pela religiatildeo o corpo iraacute ser insistentemente ldquodesvalorizadordquo laquoldquoTalvez haja uma espeacutecie de caminho que nos leve e aos nossos raciociacutenios ao fimraquo discursa Soacutecrates em tom de ldquoconclusatildeo provisoacuteriardquo laquoporque enquanto tivermos um corpo e a esse mal nossa alma esteja mesclada jamais alcanccedilaremos de maneira suficiente o que desejamos E dissemos que o que desejamos eacute a verdade Com efeito satildeo um sem fim de preocupaccedilotildees que nos procura o corpo pela culpa de sua necessaacuteria alimentaccedilatildeo e ademais se nos ataca alguma doenccedila nos impede a caccedila da verdade Enche-nos de amores de desejos de temores de imagens de todas as classes de um montatildeo de nadas e loucuras de tal maneira que como se diz por culpa sua natildeo nos eacute possiacutevel ter um uacutenico pensamento sensato Guerras revoluccedilotildees e lutas ningueacutem as causa senatildeo o corpo e seus desejos pois eacute pela aquisiccedilatildeo de riquezas que nos vemos obrigado pelo corpo porque somos escravos de seus cuidados e daiacute que por todas essas causas natildeo tenhamos tempo para dedicar agrave filosofia E o pior de tudo eacute que se noacutes temos algum tempo livre de seus cuidados e nos dedicamos a refletir sobre algo o corpo inesperadamente se apresenta em todas as partes de nossas investigaccedilotildees e nos alborota nos perturba e nos deixa perplexos de maneira que por sua culpa natildeo podemos contemplar a verdade Ao contraacuterio nos fica verdadeiramente demonstrado que se alguma vez soubermos algo de puro ou absoluto temos de nos desvencilhar dele e contemplar somente com a alma as coisas em si mesmas Entatildeo segundo parece teriacuteamos aquilo que desejamos e que declaramos amantes a sabedoria tatildeo soacute entatildeo uma vez mortos segundo indica o raciociacutenio e natildeo em vida Com efeito se natildeo eacute possiacutevel conhecer nada de uma maneira pura com o corpo uma de dois ou eacute impossiacutevel adquirir o saber ou soacute eacute possiacutevel enquanto estejamos mortos pois eacute entatildeo quando a alma fica soacute consigo mesma separada do corpo e natildeo antes E enquanto estamos em vida mais perto estamos de conhecer segundo parece se em todo o possiacutevel natildeo tenhamos nenhum trato com o corpo salvo aquilo que seja de toda necessidade nem nos contaminarmos de sua natureza mantendo-nos puro de seu contato ateacute que a divindade nos livre dele Dessa maneira purificados e desembaraccedilados da loucura do corpo estaremos como eacute natural entre gente semelhante a noacutes e conheceremos por noacutes mesmos tudo o que eacute puro e isto talvez seja o verdadeiro Pois ao que natildeo eacute puro eacute de temer que esteja vedado o alcanccedilar o purordquoraquo (PlatO Phaedo I no 36 trad Harold North Fowler org Jefrey Henderson Harvard University Press Loeb Classical Library Cambridge amp London 2005 66B-67A sect11 pp 229-231)13

œ2 pp 98-10013

Natildeo agrave toa Valeacutery leitor de Santo Tomaacutes de Aquino jaacute ter conjeturado de modo um tanto irocircnico e esdruacutexulo a morte como um verdadeiro desastre para o pensamento na mediada em que amiuacutede o fim uacuteltimo deste eacute na pragmaacutetica postura do poeta a proacutepria accedilatildeo o proacuteprio fazer e eacute Leonardo que se torna novamente o paradigma de um singular amante do corpo laquoa morte interpretada como um desastre para a almaraquo exclama um espirituoso Valeacutery laquoA morte do corpo diminuiccedilatildeo dessa coisa divina A morte atingindo a alma ateacute agraves laacutegrimas e em sua obra mais cara pela destruiccedilatildeo de uma tal arquitetura que ele havia feito para nela habitar [] A Igreja mdash na medida em que a Igreja eacute tomista mdash natildeo confere agrave alma separada uma existecircncia muito invejaacutevel Nada mais pobre do que a alma que perdeu seu corpo Quase natildeo tem outra coisa que o ser mesmo eacute um miacutenimo loacutegico uma espeacutecie de vida latente na qual ela eacute inconcebiacutevel para noacutes e certamente para si mesma Ela se despojou de tudo poder querer saber talvez Nem mesmo sei se pode lembrar-se de ter sido no tempo ou em alguma parte a forma e o ato de seu corpo Resta-lhe a honra de sua autonomia Uma condiccedilatildeo tatildeo vatilde e tatildeo insiacutepida felizmente eacute passageira mdash se eacute que esta palavra fora do tempo tem algum sentido a razatildeo pede e o dogma impotildee a restituiccedilatildeo da carne [] De qualquer modo a alma desencarnada deve segundo a teologia reencontrar num determinado corpo uma determinada vida funcional e mediante esse corpo novo uma espeacutecie de mateacuteria que permita suas operaccedilotildees e encha de maravilhas incorruptiacuteveis as suas vazias categorias intelectuaisraquo (Cf œ1 pp 1213-1215)13

Π 1921-1922 Texte 2 (VII 312-314)13

Essa construtiva criacutetica insinua-se no iniacutecio do Feacutedon de Platatildeo Questionado sobre o porquecirc ter versificado as faacutebulas de Esopo e um hino a Apolo Soacutecrates responde que em recorrentes sonhos disseram-no que ele deveria praticar muacutesica isto eacute poesia ele aceita o encargo e conclui que o que ateacute entatildeo havia praticado a filosofia natildeo deixa de ser a muacutesica mais excelsa Essa decisatildeo entretanto veio muito proacutexima a sua condenaccedilatildeo por ter corrompido os jovens de Atenas o que supotildee-se pouco importava para algueacutem que mdashna versatildeo platocircnicamdash possivelmente acreditava na imortalidade da alma e na doutrina da palingenesia Assim num momento em que tudo convidava agrave fuga e ao desespero a natildeo mais empreender qualquer projeto o filoacutesofo ainda conversa e parece querer deixar a vida do mesmo modo que viveu envolto num estado de imperturbabilidade racional Essa atitude descreve natildeo apenas um espiacuterito que aceita sua proacutepria condiccedilatildeo de condenado mas continua a querer a aprender (Cf Plato Phaedo I no 36 trad Harold North Fowler org Jefrey Henderson Harvard University Press Loeb Classical Library Cambridge amp London 2005 60D-61B sect4 pp 210-213)13

œ2 p 9113

œ2 pp 142-14313

œ1 p 1401 ou LQ p 14613

Cf Giford Paul Paul Valeacutery - Le dialogue des choses divines Corti Paris 1989 cf Giford Paul amp STIMPSON Brian (orgs) Paul Valeacutery - Musique Mystique Matheacutematique Presses Universitaires de Lille Lille 199313

Π folio 8013

Π folio 313

Π folio 13213

Π 1938-1939 Texte 57 (XXII 635)13

Π folio 49 recto13

Π 1921-1922 Texte 2 (VII 312-314) passage p 31313

Π 1921-1922 Texte 14 (VIII 569)13

Π 1921-1922 Texte 5 (VIII 390)13

Π folio 5213

Π folio 5413

Π folio 8413

Π 1921-1922 Texte 2 (VII 312-314) passage p 31313

Π folio 8113

Π 1921-1922 Texte 17 (VIII 701)13

Π folio 143 ou Π 1935-1936 Texte 47 (XVIII 850)13

Π 1921-1922 Texte 2 (VII 312-314)13

Π 1921-1922 Texte 3 (VIII 355)13

Π folio 4713

Π folio 5213

Π folio 7613

Π folio 8813

Π folio 13413

Π 1940-1941 Texte 67 (XXIV 859)13

œ1 p 147113

13

Page 2: P A U L V A L É R Y

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Brutus Abel Fratuce Pimentel

P A U L V A L Eacute R YE s t u d o s f i l o s oacute f i c o s

Tese apresentada ao programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Filosofia sob a orientaccedilatildeoda Profa Dra Olgaacuteria Matos

Satildeo Paulo2008

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Brutus Abel Fratuce Pimentel

Paul Valeacutery - Estudos filosoacuteficos

Tese apresentada ao programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Filosofia sob a orientaccedilatildeo da Profa Dra Olgaacuteria Matos

COMISSAtildeO EXAMINADORA

Prof(a) Dr(a) ________________________

Instituiccedilatildeo ___________________________ Assinatura _____________________

Prof(a) Dr(a) ________________________

Instituiccedilatildeo ___________________________ Assinatura _____________________

Prof(a) Dr(a) ________________________

Instituiccedilatildeo ___________________________ Assinatura _____________________

Prof(a) Dr(a) ________________________

Instituiccedilatildeo ___________________________ Assinatura _____________________

Prof(a) Dr(a) ________________________

Instituiccedilatildeo ___________________________ Assinatura _____________________

Satildeo Paulo _____ de ____________ de _____

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A LUTO PIMENTEL HURTADO

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Il faut ecirctre leacuteger comme lrsquooiseau et non comme la plumePaul Valeacutery

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SUMAacuteRIO

RESUMO7ABSTRACT8

AGRADECIMENTOS9

ABREVIATURAS10

1 DIRETRIZES ESPIRITUAIS1111 Caracterizaccedilatildeo a escritura do fragmento (Introduccedilatildeo) 11

111 Da crise agrave autarquia espiritual 191111 O culto ao Iacutedolo do intelecto o eu puro 28 1112 Fazer sem crer 41

2 PERSONAGENS (Escoacutelios)4721 Modos de vida 47

211 Leonardo da Vince 50 2111 O fazer 55

212 Edmond Teste 66 2121 O possiacutevel 70

3 SABER E PODER8031 Sob o signo da ciecircncia 80

311 Criacutetica agrave histoacuteria 894 CRIacuteTICA Agrave FILOSOFIA95

41 O primado da linguagem 95411 Insuficiecircncia convenccedilatildeo transitoriedade 99

4111 Automatismo verbal 113412 Filosofia como forma 121 413 Filosofia como literatura 128

5 POEacuteTICA13251 Poesia criacutetica 132

511 Poesia pura 1346 DIAacuteLOGOS SOCRAacuteTICOS (Escoacutelios)145

61 A reinvenccedilatildeo de um gecircnero 145611 A danccedila de Athiktecirc 151612 No mundo dos mortos 159

6121 A oraccedilatildeo de Eupalinos 1666122 Anti-Soacutecrates 174

613 No mundo dos vivos (Conclusatildeo) 178

BIBLIOGRAFIA183Obras de Paul Valeacutery 183 Obras de Paul Valeacutery em portuguecircs 183 Obras coletivas sobre Paul Valeacutery 183Obras individuais sobre Paul Valeacutery 184 Artigos sobre Paul Valeacutery 185Obras diversas 185

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RESUMO

Brutus Abel Paul Valeacutery - Estudos filosoacuteficos Tese (Doutorado)Departamento de Filosofia Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2008

No intuito de realizar um laquoeu puroraquo (laquomoi pureraquo) o poeta Paul Valeacutery (1871-1945) dedica-se ao culto do laquoIacutedolo do intelectoraquo (laquoIdole de lrsquointellectraquo) a um meacutetodo ceacutetico de auto-consciecircncia expresso numa escrituraccedilatildeo extremamente fragmentada sobre os processos mentais e o fazer artiacutestico (na sua obra puacuteblica e principalmente nos seus Cahiers) Uma das principais consequumlecircncias desse meacutetodo eacute uma digressiva e ambiacutegua critica agrave filosofia a qual esta Tese postula e desenvolve mediante os seguintes estudos sobre a elaboraccedilatildeo de um modo de vidarelativamente autocircnomo simultaneamente praacutetico e contemplativo(principalmente nos seus ensaios sobre Leacuteonard de Vinci e Edmond Teste) sobre a diferenccedila entre filosofia e ciecircncia na perspectiva de que todo saber eacute poder sobre a compreensatildeo dos problemas metafiacutesicos como contra-sensos como resultados dolaquoautomatismo verbalraquo (laquoautomatisme verbalraquo) da falta de consciecircncia do funcionamento da linguagem sobre a poeacutetica da poesia pura como aboliccedilatildeo do reacutecite conciliaccedilatildeo entre poesia e pensamento abstrato sobre a inversatildeo do platonismo em obras hiacutebridas de ficccedilatildeo (principalmente nos seus diaacutelogos socraacuteticos como Lrsquoacircme et la danse e Eupalinos - Ou lrsquoarchitecte) Em todos esses estudos a filosofia eacute compreendida natildeo como uma ciecircncia mas tal como a poesia como um gecircnero artiacutestico uma forma pessoal de organizar esteticamente o caos do mundo

Palavras-chave Paul Valeacutery auto-consciecircncia linguagem filosofia e esteacutetica

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ABSTRACT

Brutus Abel Paul Valeacutery - Philosophical studies Thesis (Doctoral)Departamento de Filosofia Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2008

In order to realize a laquopure selfraquo (laquomoi pureraquo) the poet Paul Valeacutery (1871-1945) dedicates to the laquointellect Idolraquo (laquoIdole de lrsquointellectraquo) cult a self-consciousness skeptic method expressed in an extremely fragmented writing about the mental processes and the artistic making (in his public work and mainly in his Cahiers) One of the main consequences of this method is a digressive and ambiguous critic of philosophy which the present Thesis postulates and develops through the following studies about the elaboration of a relatively autonomous life style at the same time practical and contemplative (mainly in his Leacuteonard de Vinci and Edmond Teste essays) about the difference between philosophy and science understanding that all knowledge is power about the comprehension of metaphysical problems as nonsense as result of the laquoverbal automatismraquo (laquoautomatisme verbalraquo) the lack of the language operation consciousness about the pure poetry poetic as the reacutecit abolition and conciliation between poetry and abstract thought about the Platonism inversion in hybrids works of fiction (mainly in his socratic dialogues as Lrsquoacircme et la danse and Eupalinos - Ou lrsquoarchitecte) In all these studies philosophy is understood not as a science but such as poetry as an artistic gender a personal form of organizing aesthetically the world chaos

Keywords Paul Valeacutery self-consciousness language philosophy aesthetic

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AGRADECIMENTOS

A CAPES pelo indispensaacutevel apoio financeiro Agrave profa Dra Olgaacuteria Matos pela confianccedila no estudo sobre um autor pouco explorado em filosofia pela seguraorientaccedilatildeo pela amizade e delicadeza Aos professores Dr Franco Moretti Dr Horaacutecio Costa Dr Jorge de Almeida Dr Leon Kossovitch Dr Franklin de Matos Dra Marilena Chaui e Dr Seacutergio Cardoso com os quais tive a oportunidade de conviver como aluno A todos os funcionaacuterios da Biblioteca e do Departamento de Filosofia mantenedores do indispensaacutevel suporte material aos alunos de graduaccedilatildeo e poacutes-graduaccedilatildeo colegas da vida acadecircmica Do Exame de Qualificaccedilatildeo participaram os professores Dra Maria das Graccedilas e Dr Franklin Leopoldo a eles pela paciecircncia e pelas generosas consideraccedilotildees e sugestotildees Agrave profa Dra Anne Shirley pela iniciaccedilatildeo na pesquisa acadecircmica AgraveMadame Suzanne Roger pelas preciosas aulas Ao saudoso prof Dr Joatildeo Alexandre Barbosa pelas conversas e pelo conselho em natildeo deixar de compreender Valeacutery como poeta Enfim a Tereza Thiago e Max minha famiacutelia

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ABREVIATURAS

As citaccedilotildees usadas na Tese procuram ser fieacuteis ao texto original apresentam portanto as lacunas e a pontuaccedilatildeo das quais Paul Valeacutery se serve

OBRAS DE PAUL VALEacuteRY

A mdash Alphabet org Michel Jarrety Le Livre de Poche - Classique Paris 1999C1 C2 etc mdash Caheirs I-XXIX fac-simileacute CNRS Paris 1957-1961C1rsquo amp C2rsquo mdash Caheirs I (1973) II (1974) choix de textes org Judith Robinson-Valeacutery

Bibliothegraveque de la Pleacuteiade Gallimard ParisC1rsquorsquo C2rsquorsquo etc mdash Cahiers 1894-1914 I (1987) II (1988) III col Blanche (1990) org

Nicole Ceylerette-Pietri amp Judith Robinson-Valeacutery IV 1900-1901 (1992) V 1902-193 (1994) VI 1903-1904 (1997) org Nicole Ceylerette-Pietri VII 1904-1905 (1999) VIII 1905-1906 (2001) IX 1907-1909 (2003) org Nicole Ceylerette-Pietri amp Robert Pickering Gallimard Paris

CC mdash Une chambre conjecturale - Poegravemes ou proses de jeunesse par Paul Valeacutery Fata Morgana Montpellier 1981

CL mdash laquo Carnet de Londres raquo 1894 carnet ineacutedit org Florence de Lussy Bibliothegraveque de la Pleacuteiade Gallimard Paris 2005

CR mdash Cartesius redivivus in Cahier Paul Valeacutery no 4 publications de la Societeacute Paul Valeacutery org Jean Levaillant amp Agathe Rouart-Valeacutery Gallimard Paris 1986

CVF mdash amp FOURMENT Gustav Correspondance 1887-1933 org Octave Nadal Gallimard Paris 1957

CVG mdash amp GIDE Andreacute Correspondance 1890-1942 org Robert Mallet Gallimard Paris 1955

LQ mdash Lettres agrave quelques-uns LrsquoImaginaire Gallimard 1997Œ1 mdash Œuvres I Bibliothegraveque de la Pleacuteiade Gallimard Paris 1997Œ2 mdash Œuvres II Bibliothegraveque de la Pleacuteiade Gallimard Paris 1993Π mdash Περὶ τῶν τοῦ θεοῦ - ou des choses divines org Julia Peslier Kimeacute Paris

2005PA mdash Les Priacutencipes drsquoan-archie pure et appliqueacutee Gallimard Paris 1984V mdash Vues La Petite Vermillon La Table Ronde Paris 1948

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1 DIRETRIZES ESPIRITUAIS

11 CARACTERIZACcedilAtildeO A ESCRITURA DO FRAGMENTO

INTRODUCcedilAtildeO

Para si mesmoMarco Aureacutelio Meditaccedilotildees

A Modernidade eacute frequumlentemente caracterizada como um periacuteodo de intensas transformaccedilotildees sociais natildeo raro contraditoacuterias entre si no qualdimensotildees simultaneamente espirituais e praacuteticas como Religiatildeo Arte Ciecircncia e Poliacutetica outrora relativamente unificadas numa ordem ontoloacutegica de sentido e valor se autonomizam e adquirem outras formas de complexidade e poder instaurando assim a laicizaccedilatildeo de modo aparentemente irreversiacutevel E todo esse processo ocorre sob o imperioso signo do desenvolvimento da classe burguesaassentada sobretudo na possibilidade da dinacircmica de seu status social e do sistema capitalista que no intento de expandir as formas de produccedilatildeo e acumulaccedilatildeo fortemente condiciona todas essas dimensotildees Religiatildeo Arte Ciecircncia e Poliacutetica No plano do pensamento o Racionalismo e o Empirismo instaurando o primeiro a cesura entre mundo coisificado e sujeito pensante e o segundo a influecircncia indeleacutevel desse mundo no proacuteprio sujeito podem ser compreendidos como consequumlecircncias simboacutelicas a todo esse desenvolvimentopois contribuiacuteram para a separaccedilatildeo a autonomizaccedilatildeo dessas dimensotildees para a especializaccedilatildeo do proacuteprio saber para a legitimaccedilatildeo da proacutepria accedilatildeo do ser humano frente agrave natureza e ao proacuteprio ser humano Uma accedilatildeo que eacute sobretudo de controle sobre a mateacuteria Doravante eacute com o Iluminismo que tais concepccedilotildees e perspectivas se acentuam e se difundem natildeo raro acompanhadas por uma grande feacute nas capacidades transformadoras da razatildeo do intelecto humano e noirrefreaacutevel progresso da civilizaccedilatildeo na mudanccedila e na mudanccedila para o melhor

A Modernidade no plano do pensamento afirma-se deve afirmar-se portanto como uma constante ruptura Uma ruptura com relaccedilatildeo agraves tradiccedilotildees nas quais por vezes o conhecimento eacute postulado mais como recapitulaccedilatildeo do que invenccedilatildeo Nela faz-se assim presente uma dupla consciecircncia consciecircncia histoacuterica na medida em que as eras satildeo compreendidas como singulares e irreversiacuteveis e consciecircncia psicoloacutegica posto que centrada na primazia do sujeito em sua interioridade no modo como recebe e constroacutei o mundo E isso a tal grau que na literatura surge um tipo de autor um tipo de escritor cujo espiacuterito natildeo mais sentindo a necessidade a obrigaccedilatildeo de ser exclusivamente fiel agrave tradiccedilatildeo na qual foi criado ou a qualquer outra tradiccedilatildeo manifesta essa dupla consciecircncia manifesta-a na sua proacutepria escritura na medida em que afirma como sendo tatildeo-

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somente por ele escrita e ele um sujeito condicionado ao seu proacuteprio tempoDesenvolve-se por conseguinte na Modernidade o escritor natildeo apenas criacuteticodo mundo mas criacutetico de si mesmo o escritor que natildeo apenas concebe e executa obras mas tambeacutem compraz-se em comentaacute-las em analisar e destrinccedilar seus proacuteprios procedimentos seus proacuteprios mecanismos e operaccedilotildees seus proacuteprios segredos em negar-se e afirmar-se em questionar-se mediante aquilo que escreve ou deixa de escrever em filosofar e isso a tal grau que por vezes asua proacutepria obra adquire o estatuto paradoxal ela mesma de uma criacutetica a uma obra jamais feita mas tatildeo-somente sonhada

Quanto a esse insigne comportamento o poeta francecircs Paul Valeacutery (Segravete 30101871-Paris 20071945) mdashfilho da cultura mediterracircnea e admirador do Iluminismo e do sensualismo-materialista do seacuteculo XVIIImdash eacute paradigmaacutetico Ofoco de seus interesses voltava-se confessadamente mais para a forma do que para o conteuacutedo mais para a composiccedilatildeo de textos do que para os proacuteprios textos para a accedilatildeo para o fazer que estes representam o meio lhe era mais importante do que o fim o meacutetodo mais do que a meta1 Compreensiacutevel portanto que sua obra seja hiacutebrida e amiuacutede considerada como uma das mais estranhas da Literatura Moderna2 Dois aspectos a caracterizam a diletante variedade temaacutetica e a incompletude A literatura e a criacutetica literaacuteria a poesia e a poeacutetica a pintura a escultura a arquitetura as relaccedilotildees entre as artes as desventuras da histoacuteria e da poliacutetica o peso das condiccedilotildees da vida contemporacircnea sobre o resultado dos projetos humanos o misteacuterio dos sonhos as relaccedilotildees entre corpo e espiacuterito a psicologia e a fiacutesica a ldquonaturezardquo da matemaacutetica e da loacutegica a psicologia a consciecircncia o eu a memoacuteria o tempo a linguagem o saber e o poder a miacutestica Todos esses e outros tantos temas satildeo abordados e refletidos mas de modo intensamente digressivo atraveacutes de cortes e de desvios de evasotildees abruptas atraveacutes de inuacutemeras repeticcedilotildees e atualizaccedilotildees circularmente muitas vezes de um modo bastante difuso e vago como se tudo doravante devesse ser retomado relido e reescrito como se tudo fosse perpeacutetuo rascunho a um escrito porvir Quando um determinado tema eacute assim evocado e analisado este se liga ou se funde a tantos outros e como que momentaneamente desaparece deixando espaccedilo para algo inicialmente oculto e quiccedilaacute mais importante Diferentemente dagrande parte dos sistemas filosoacuteficos natildeo haacute sequumlecircncias cronoloacutegicas ou didaacuteticas natildeo haacute hierarquias fixas de sentido e raras satildeo as categorias centrais

1 Cf JARRETY Michel Valeacutery Paul (1871-1945) in Dictionnaire de la litteacuterature franccedilaise XXe siegravecle in Enciclopaeligdia Universalis amp Albin Michel Paris 20002 Cf BOISDEFFRE Pierre de Paul Valeacutery ou lrsquoimperialisme de lrsquoesprit in Meacutetamorphose de la litteacuterature - De Proust agrave Sartre - Proust Valeacutery Cocteau Anouilh Sartre Camus - Essais de psychologie litteacuteraire suivis de deux eacutetudes sur lsquoLa geacuteneacuteration du demi-siegraveclersquo et lsquoLa condition de la litteacuteraturersquo II Editions Alsatia Paris s d

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palavras-chave que possam ser destacadas estudadas interpretadas e usadas em separado Sob o conceito a sombra da duacutevida sempre incide

O segmento dessa obra que primeiro veio a puacuteblico aquele que desencadeou a precoce celebridade do poeta e a primeira fase de sua fortuna criacutetica constitui-se sobretudo de riacutegida poesia metafiacutesica herdeira de umSimbolismo com aspiraccedilotildees musicais e esoteacutericas3 presente em poemas hoje canocircnicos como La jeune parque Eacutebauche drsquoun serpent e Le cimetiegravere marin constitui-se tambeacutem de criacuteticas discursos e prefaacutecios de ensaios aforismos contos e diaacutelogos todos formas breves como Introduction agrave la meacutethode de Leacuteonard de Vinci Monsieur Teste e diaacutelogos socraacuteticos como Lrsquoacircme et la danse e Eupalinos - Ou lrsquoarchitecte Se vaacuterios desses escritos foram concebidos sob a forccedila das circunstacircncias isto eacute comissionados para leitores ou puacuteblicos determinados e restritos isso se deve tanto agrave judiciosa resistecircncia agrave publicaccedilatildeo quanto ao extremo preciosismo do poeta daiacute as inuacutemeras versotildees de um mesmo poema por vezes consideradas contraditoacuterias Conta-se que demorava muito para revisar e reescrever como estavasta summa de interpretaccedilotildees e criacuteticas de reflexotildees sobre obras alheias sobre a arte a literatura e a filosofia que compotildeem a sua Varieacuteteacute Nesta num texto exemplar de poeacutetica moderna Au sujet du lsquoCimetiegravere marinrsquo ele chega a se referir auma laquoEacutetica da forma que conduz ao trabalho infinitoraquo ao laquotrabalho pelo trabalhoraquo agrave laquoretomada indefinidaraquo concebendo qualquer composiccedilatildeo escrita por mais organizada que aparentemente esteja como nunca verdadeiramente acabada mas simplesmente abandonada devido a um acidente qualquer4 Porque a finitude das obras eacute determinada pelas contingecircncias da vida natildeo pela intenccedilatildeo daquele que a vive

Da obra de Valeacutery haacute ainda um outro segmento dir-se-ia secreto no qual essas caracteriacutesticas a diletante pluralidade temaacutetica e a incompletude se acentuam ao grau extremo do paroxismo os seus Cahiers5 Publicados postumamente redefiniram a sua crescente fortuna criacutetica ao mostrar um maior leque de seus interesses e obsessotildees Preenchidos diariamente por volta das seis agraves nove da manhatilde de 1894 a 1945 numa espeacutecie de riacutegida disciplina monaacutestica por palavras frases e paraacutegrafos soltos por esboccedilos desenhos e aquarelas6 esses 261 dossiecircs podem ser compreendidos como uma coleccedilatildeo de reflexotildees e de foacutermulas

3 Cf todos os ensaios de Meacutemoires du poegravete in Œ1 pp 1447-15124 Œ1 p 14975 Os Cahiers tambeacutem foram por vezes denominados por inteacuterpretes iniciais de Carnets (Jean Preacutevost) ou de Notes (Maurice Beacutemol) termos hoje um tanto em desuso (Cf PREVOST Jean amp VALEacuteRY Paul Marginalia - Rhumbs - Et autres org Michel Jarrety Eacuteditions Leacuteo Scheer 2006 cf BEacuteMOL Maurice Paul Valeacutery G de Bussac Clermont-Ferrand 1949)6 Sobre a funccedilatildeo e o estatuto dos esboccedilos desenhos e aquarelas no pensamento de Valeacutery cf PICKERING Robert V Inscriptions alternatives in Paul Valeacutery - La page lrsquoeacutecriture Centre de Recherchessur Les Litteacuteratures Modernes et Contemporaines Association des Publications de la Faculteacute de Lettres et Sciences Humaines de Clermont-Ferrand Universiteacute Blaise-Pascal 1996 pp 227-280

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de esquemas a representar aquilo que foi denominado de laquoComeacutedia Intelectualraquo7

(laquoComeacutedie Intellectuelleraquo) mdashcomeacutedia proposta inicialmente em seus ensaios sobre Leonardo mas que natildeo deixaraacute de ser atualizada direta ou indiretamenteem outras obras de ficccedilatildeo e poesia8mdash laquoAutodiscussatildeo infinitaraquo9

(laquoAutodiscussion infinieraquo) laquoA teoria de si-mesmoraquo10 (laquoLa theacuteorie de soi-mecircmeraquo) laquoObra de arte feita com os fatos do proacuteprio pensamentoraquo11 (laquoŒuvre drsquoart faite avec les faits de la penseacutee mecircmeraquo) satildeo outras tantas significativas expressotildees usadas pelo proacuteprio poeta para tentar definir esse idiossincraacutetica empresa por vezes tambeacutem uma espeacutecie de canteiro de experimentaccedilotildees para futuros projetos Daiacute textos autocircnomos prenhes de sarcaacutesticos aforismos e reflexotildees como Meacutelange Tel Quel Mauvaises penseacutees et autres e Regards sur le monde actuel et autres essais serem em determinado aspecto derivaccedilotildees ou recortes dos proacuteprios Cahiers

O procedimento empregado nos Cahiers difere entretanto da simples anotaccedilatildeo comentada de fatos e acontecimentos do tradicional diaacuterio ou journal como os que foram escritos por um Amiel12 disposto a revelar as intimidades e as anguacutestias da vida cotidiana e um Gide13 resoluto tambeacutem em representar o panorama social no qual o escritor se engaja laquoEu natildeo escrevo meu ldquodiaacuteriordquoraquo confessa o poeta laquomdash Seria aborrecido escrever AQUILO que eu viria a esquecer AQUILO que natildeo custa nada mais do que o tormento imenso de escrever o que natildeo vale nadaraquo14 Valeacutery desenvolve assim a disciplina de uma escrituraccedilatildeo natildeo sobre a sua vida pessoal natildeo sobre os eventos exteriores e particulares pelos quais passa mas sobre o seu proacuteprio espiacuterito e as leis que o regem sobre os variados temas que lhe satildeo caros na medida em que estes possam principalmente esclarecer sobre essas proacuteprias leis Isso tambeacutem se devea uma confessa ldquofraquezardquo ou ldquodeficiecircnciardquo mnemocircnica a uma incapacidade emse recordar de eventos de detalhes ou de minuacutecias15 ou em outras palavras a um idiossincraacutetico desapego ao proacuteprio passado o que talvez iraacute se refletir em certa medida nas suas reflexotildees sobre a aspiraccedilatildeo da histoacuteria em ser uma disciplina positiva ou cientiacutefica O poeta natildeo busca reconstituir tampoucolamenta aquilo que passou aquilo que natildeo realizou ou deixou de realizar aquilo que simplesmente natildeo se pode mudar Para ele o tempo jamais eacute um ldquotempo

7 Œ1 p 12018 Cf BARBOSA Joatildeo Alexandre A comeacutedia intelectual de Paul Valeacutery Iluminuras Satildeo Paulo 2007 especialmente o capiacutetulo Paul Valeacutery e a lsquocomeacutedia intelectualrsquo9 C1rsquo p 510 C1rsquo p 511 C1rsquo p 512 Cf AMIEL Henri-Freacutedeacuteric Journal Intime - Janvier-juin 1854 Texte inteacutegral publieacute par la premiegravere fois avec une postface des notes et un index par Philippe M Monnier Bibliothegraveque Romande Lausanne 197313 Cf GIDE Andreacute Journal - 1939-1949 - Souvenirs Bibliothegraveque de la Pleacuteiade Gallimard Paris 198814 C1rsquo p 1315 Œ2 pp 1508-1510

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perdidordquo laquoNatildeo busco o tempo perdidoraquo afirma laquoque eu antes rejeitaria Meu espiacuterito soacute se compraz na accedilatildeoraquo16 Daiacute que por vezes considerou-se e foi considerado no panorama da Literatura Moderna como uma espeacutecie de ldquoantagocircnicordquo de Proust17 principalmente no que diz respeito tanto agraves idiossincrasias como aos programas literaacuterios de ambos O seu pensamento eacute sobretudo voltado para este jogo constante entre generalidades e particularidades entre imaginaccedilotildees e abstraccedilotildees entre siacutembolos e iacutecones sem que haja uma hierarquia vertical de valores entre essas polaridades e sobretudo para o tempo presente um tempo presente prenhe de possibilidades laquoOs acontecimentos satildeo a espuma das coisasraquo escreve em tom altamente metafoacuterico laquoMas eacute o mar que me interessa Eacute no mar que se pesca eacute sobre ele que se navega eacute nele que se mergulharaquo18

Ademais o poeta constantemente revela que em seus Cahiers aspirou e ateacute mesmo tentou construir uma espeacutecie de laquoSistemaraquo19 (laquoSystegravemeraquo) por ele compreendido paradoxalmente ora como filosoacutefico ora como natildeo filosoacuteficoEm todo caso seria um Sistema que representasse uma totalidade uma arquitetocircnica soacutelida finita e fechada uma cosmovisatildeo uma doutrina um discurso contiacutenuo coeso e coerente cujas proposiccedilotildees constitutivas se conectariam entre si por uma riacutegida loacutegica e todas a um uacutenico princiacutepio um uacutenico indiviacuteduo um laquoponto individualraquo (laquoEuraquo)20 (laquopoint individuel (laquoMoiraquo)) e impessoal Esse Sistemaseria tambeacutem uma laquoteoria do funcionamentoraquo21 (laquotheacuteorie du fonctionnementraquo)uma forma de explicar o todo natildeo mais atraveacutes de noccedilotildees consideradas propiacutecias a obscuridades e confusotildees metafiacutesicas como as noccedilotildees de causa realidade tempo e espaccedilo mas atraveacutes da noccedilatildeo de funcionamento22 uma forma de explicar o todo mdashpor vezes compreendido pelo poeta atraveacutes de trecircs principais categorias amiuacutede referidas laquoCorporaquo (laquoCorpsraquo) laquoEspiacuteritoraquo (laquoEspritraquo) e laquoMundoraquo (laquoMonderaquo) comumente designadas pela sigla CEM23mdash natildeo mais atraveacutes da noccedilatildeo de substacircncia mas atraveacutes da noccedilatildeo de funcionamento natildeo mais um substancialismo mas um funcionalismo Esse modo de abordar o todo no qual se busca responder o como e natildeo o porquecirc das coisas e dos agenciamentos das coisas revela o caraacuteterpositivo ou cientiacutefico do pensamento valeacuteryano caraacuteter que seraacute uma constante principalmente quando a linguagem e a filosofia estiverem em pauta

16 Œ1 p 120317 Para uma comparaccedilatildeo entre as concepccedilotildees artiacutesticas de Valeacutery e Proust cf ADORNO Theodor WMuseu Valeacutery Proust in Prismas - Criacutetica cultural e sociedade trad Augustin Wernet amp Jorge Mattos Brito de Almeida Aacutetica Satildeo Paulo 1998 pp 173-18518 Œ2 pp 150919 Cf C1rsquo pp 773-86520 C1rsquo p 81221 C1rsquo p 81522 Cf C1rsquo p 81223 Cf C1rsquo pp 1119-1149

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Todavia toda essa acircnsia em compreender a totalidade sofre no labiriacutentico e lacunar transcurso dos Cahiers sucessivas contraccedilotildees sucessivas derrotas reduzindo consequumlentemente a abrangecircncia da ambiccedilatildeo ldquoinicialrdquo por vezes o Sistema aparece como meacutetodo (ou literatura potencial) aparece como uma estrateacutegiade laquoimagens funcionaisraquo24 (laquoimages fonctionnellesraquo) que seria na perspectiva valeacuteryana laquouma forma capaz de receber todas as descontinuidades todas as heterogeneidades da consciecircnciaraquo25 uma forma capaz de axiomatizar a si mesmoseus pensamentos atraveacutes de uma espeacutecie de notaccedilatildeo ou de uma linguagem perfeita uma linguagem pura com a qual se representariam todas as coisas sem deformidades uma laquoGeometria do Todoraquo26 (laquoGeacuteomeacutetrie du Toutraquo) tal como a geometria analiacutetica de Descartes trata as figuras geomeacutetricas27 por vezes o Sistema aparece ainda simplesmente mais como um modo de organizar e utilizarseu proacuteprio pensamento que lentamente se acumula nas inuacutemeras paacuteginas que coleciona laquoO problema no qual eu me encontro cada vez mais encurraladoraquo anota por fim laquoeacute o problema de organizar meus pensamentos e de os organizar natildeo exteriormente mas organicamente e utilmenteraquo28 Daiacute tambeacutem a intenccedilatildeo de estruturar os Cahiers mdashque agora podem muito bem ser compreendidos em parte como o resultado desse Sistema natildeo feitomdashcomo uma espeacutecie de dicionaacuteriofilosoacutefico gecircnero que lhe eacute caro e ao qual sempre se refere como o mais adequado(ou o menos problemaacutetico) agrave organizaccedilatildeo de seus escritos Passar os seus pensamentos escritos do caos agrave ordem eis o que acaba sendo ao fim o que simplesmente pretende ou o que simplesmente pode pretender laquoProjeto meu Dicionaacuterio Filosoacutefico ou o meio mais simples de me expor agrave mateacuteria desses cadernos mdash e de me poupar o mal os defeitos e o iacutentimo ridiacuteculo (de mim mesmo) de um Sistemaraquo29 Ou ainda laquoMinha filosofia mdash eacute necessaacuterio resolver fazer esses cadernos por secccedilotildees e temasraquo30

O comportamento de Valeacutery eacute portanto de uma estranha ambiguumlidadeApesar da aspiraccedilatildeo e das inuacutemeras tentativas em construir um Sistema se realmente eacute possiacutevel se referir a tentativas genuiacutenas ele parece natildeo fazer muito esforccedilo para concretizaacute-lo formalmente em uma doutrina ou em um livro acabado Ao mesmo tempo em que o persegue como uma possiacutevel siacutentese de suas reflexotildees rejeita-o como se ele natildeo tivesse tanta importacircncia como se fosse um projeto propositadamente nascido para ser irrealizado Quiccedilaacute ele intua a forte e imperiosa condiccedilatildeo de uma sociedade que por mais que exija o ato de concluir

24 Cf C1rsquo p 80725 Cf C1rsquo p 80726 C1rsquo p 81327 Cf C1rsquo p 812 28 C1rsquo p 829 C1rsquo p 1430 C1rsquo p 8

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tambeacutem o impede a Ciecircncia Moderna o espiacuterito positivo e a laicizaccedilatildeoconstrangem mediante agrave concepccedilatildeo de que o saber eacute uma dinacircmica e natildeo uma estaacutetica os impulsos agrave siacutentese totalizadora que cedem lugar agrave anaacutelise parcial mais pragmaacutetica e propiacutecia a dar resultados efetivos e utilizaacuteveis no campo da praacutetica a vida torna-se cada vez mais uma celerada sucessatildeo de lacunas difiacuteceis de serem preenchidas pelo sujeito que se encontra diante de inuacutemeras e divergentes concepccedilotildees de mundo diante de outras formas de pensar O sentido do todo se esvai ou se relativiza pateticamente confrontando-se com outros tantos sentidos e o sistema torna-se assim um caminho difiacutecil e problemaacutetico Pois por mais que se tente forte eacute a compreensatildeo que haacute sempre um mais aleacutem no mundo algo que as teorias humanas natildeo datildeo conta Como Kierkegaard e Nietzsche como Wittgenstein e Cioran o poeta tambeacutem escreve apoacutes odesencanto do pensamento filosoacutefico para com os grandes edifiacutecios filosoacuteficos e para com as possibilidades de se fazer da metafiacutesica uma ciecircncia das coisas transcendentes um saber e desse saber um absoluto O periacuteodo do Racionalismo Claacutessico de um Descartes um Espinosa e um Leibniz do Idealismo Alematildeo de um Hegel parece jaacute haver passado tampouco o projeto de uma obra de arte total siacutentese aglutinante de todas as outras como o que ainda se propocircs um Wagner tambeacutem foi minado Abarcar a totalidade numa forma de representaccedilatildeo plenamente organizada fazer com que o mundo ou melhor uma representaccedilatildeo do mundo se acomode numa hierarquia fixa de valores e sentidos revelou-se um sonho utoacutepico que por vezes conteacutem mesmo que sub-repticiamente intenccedilotildees totalitaacuterias A identificaccedilatildeo nem sempre verdadeira e justa entre sistema e dogma faz-se agora mais recorrente e por vezes intoleraacutevel Hoje soam falsase pretensiosas as filosofias que se apresentam como sistemas totais

Entretanto natildeo eacute apenas pelo prisma eacutetico que a aspiraccedilatildeo ao sistema seproblematiza mas tambeacutem pelo prisma gnosioloacutegico O proacuteprio Valeacuterydemonstra consciecircncia disso Em seu ceacutelebre ensaio Au sujet drsquolsquoEurecirckarsquo no qual versa sobre este que eacute um dos textos que mais marcou seu proacuteprio pensamento a excecircntrica cosmogonia de Edgar Allain Poe Eureka - A prose poem ele executauma dura criacutetica agrave crenccedila num princiacutepio absoluto agrave crenccedila na criaccedilatildeo douniverso e no proacuteprio universo enquanto totalidade ontoloacutegica plenamente apreendida pelo sujeito considerando-o como uma laquoexpressatildeo mitoloacutegicaraquo31

31 Œ1 p 866 Aquilo que o seminal contista norte-americano se propocircs nesse escrito que flana audaciosamente entre o ensaio filosoacutefico e o conto fantaacutestico eacute sobretudo a construccedilatildeo da imagem de um universo ldquopanteiacutestardquo relativamente distinto do apresentado pelos mitos de origem da tradiccedilatildeo judaico-cristatilde um universo maravilhosamente regido por leis naturais que se interconectam e que axiomatizadas se reduziriam agrave atraccedilatildeo e agrave repulsatildeo um universo vasto mas espacialmente finito cujo comportamento se assemelha a um coraccedilatildeo pulsante e divino expandindo-se e contraindo-se fragmentando-se e unificando-se e assim sucessivamente Note-se que jaacute pelo subtiacutetulo (A prose poem) e pelas paacuteginas iniciais Eureka natildeo foi estabelecida por Poe simplesmente como um escrito cientiacutefico mas como uma obra artiacutestica baseada na ideacuteia de que a ldquoverdaderdquo cientiacutefica identifica-se com a ldquobelezardquo (Cf

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(laquoexpression mythologiqueraquo) Ao fim todo sistema soacute poderaacute ser um sistema pessoal soacute poderaacute funcionar de modo pleno para aquele que nele crecirc e a ele aderepara aquele que o cria e dele se utiliza porque seria necessaacuterio sair de si mesmo eser todos e cada um porque seria necessaacuterio contemplar cada coisa por todas as perspectivas por todos os acircngulos para se construir verdadeiramente um sistema total Em uacuteltima instacircncia o sujeito eacute capaz de pensar conceitualmente o todo mas natildeo eacute capaz de verificar se esse pensamento conceitual sobre o todo corresponde agrave realidade

O poeta desconfia deve desconfiar portanto da possibilidade de explicar a realidade e a si mesmo o corpo o espiacuterito e o mundo (CEM) por um uacutenicoprinciacutepio por uma uacutenica obra cativo da intuiccedilatildeo de que a verdade mdashtermo significativamente raro em seus escritos em favor do termo possibilidademdash mesmo sendo em determinada definiccedilatildeo una soacute pode ser enunciada de modo incompleto como perspectiva laquoEsses cadernos satildeo o meu viacutecio Eles satildeo tambeacutem anti-obras anti-finsraquo assim confirma denunciando tambeacutem a artificialidade de todo gecircnero literaacuterio laquoNo que concerne ao ldquopensamentordquo as obras satildeo falsificaccedilotildees pois elas eliminam o provisoacuterio e o natildeo-reiteraacutevel o instantacircneo e a mistura pura e impura desordem e ordemraquo32 Dessarte o Sistema ou melhor a meta em se constituir um Sistema a acircnsia de compreender a totalidade acaba se tornando nada mais do que um artifiacutecio heuriacutestico Um artifiacutecio cujo resultado eacute a mais intensa soma de ldquofracassosrdquo de ldquotentativasrdquo e ldquoesterilidadesrdquo33 de repeticcedilotildees e atualizaccedilotildees de experimentaccedilotildees de paraacutegrafos e frases incompletas de palavras soltas de um pensamento que natildeo se quis completar em obra a mais intensa e desconcertante fragmentaccedilatildeo Eis no que se materializa quase tudo aquilo que escreve o material bruto sempre disperso e fluido no qual o inteacuterprete cumpre estudar e cuidar para natildeo falsear em uma ordem (entre tantas outras possiacuteveis) jamais intencionada pelo poeta Os Cahiersnascem assim como um vitral estilhaccedilado um quebra-cabeccedila Satildeo inuacutemeras as peccedilas as passagens ou potencialidades agrave espera que outros executem as suas possiacuteveismontagens e interpretaccedilotildees Se interpretar um conjunto de escritos eacute umconstante ir e vir um diaacutelogo ou uma dialeacutetica entre as partes e o todo entatildeo

POE Edgar Allan Eureka - A prose poem Prometheus Books Nova York 1997) Esse inventivo modo de interpretar e atualizar um antiquumliacutessimo gecircnero literaacuterio ou miacutetico numa eacutepoca cientiacutefica e com alusatildeo a teorias cientiacuteficas marcou profundamente o pensamento de Valeacutery principalmente na compreensatildeo da unidade entre ciecircncia e arte e no caraacuteter esteacutetico das construccedilotildees metafiacutesicas (Cf dois ensaio de Jean Starobinski um que versa sobre Eureka Edgar Poe ldquoEurekardquo outro que versa sobre os conceitos de atraccedilatildeo e repulsatildeo e sobre a influecircncia de Eureka no pensamento de Valeacutery laquoSoy reaccioacuten a lo que soyraquo (Paul Valeacutery) ambos in STAROBINSKI Jean Accioacuten y reaccioacuten - Vida y aventuras de una pareja t Eliane Casenave Tapieacute Isoard Fondo de cultura econoacutemica Meacutexico 2001)32 C1rsquo pp 11-1233 Cf BOISDEFFRE Pierre de Paul Valeacutery ou lrsquoimperialisme de lrsquoesprit in Meacutetamorphose de la litteacuterature - De Proust agrave Sartre - Proust Valeacutery Cocteau Anouilh Sartre Camus - Essais de psychologie litteacuteraire suivis de deux eacutetudes sur lsquoLa geacuteneacuteration du demi-siegraveclersquo et lsquoLa condition de la litteacuteraturersquo II Editions Alsatia Paris s d

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interpretar o pensamento de Valeacutery tambeacutem pressupotildee primeiramente juntar determinados fragmentos que legou numa linha coerente de sentido mas sempre consciente de que o objeto interpretado eacute sobretudo um estado extremamenteprovisoacuterio e fraacutegil laquoTudo o que eacute escrito nesses cadernos meus tem a caracteriacutestica de natildeo querer jamais ser definitivoraquo34 laquoFalta-me um alematildeo que conclua as minhas ideacuteiasraquo35 assim expressa-se o poeta numa irocircnica referecircncia aos gigantescos sistemas do Idealismo Alematildeo Natildeo terminar recusar-se a cumprir o dever mdashexigecircncia tatildeo presente no capitalismo burguecircsmdash de resultar em algo veio a ser uma espeacutecie de deliacutecia para esse escritor que se concentrava no fluir de todas as coisas e agrave possibilidade de formular na loacutegica desse fluir Dizia assim em uma de suas recorrentes metaacuteforas sobre sua escritura que seu trabalho como escritor era anaacutelogo ao de uma fiel Peneacutelope a fazer e a desfazer o manto e a esperar por um aventureiro Odisseu36 Desse modo atraveacutes do fragmento ele pode maisfacilmente transitar de frase em frase de palavra em palavra sem nunca se entregar ao perigo de uma conclusatildeo final e abordar com mais desenvoltura e rapidez os seus variados temas Isso implica naturalmente a ocorrecircncia quase inevitaacutevel de uma seacuterie de contradiccedilotildees Mas o poeta natildeo as nega e natildeo as esconde ao contraacuterio natildeo raro as incita e as valora de modo positivo Pois elas natildeo representam hesitaccedilotildees recuos arrependimentos culpas mas sobretudo etapas a serem cumpridas laquoNossas contradiccedilotildeesraquo lucidamente escreve laquosatildeo o testemunho e os efeitos da atividade de nosso pensamentoraquo37

A arte que se pratica eacute portanto a arte do ensaio Ensaio cujo iniacutecio se desconhece e cujo fim foi interrompido A escritura de Valeacutery eacute assimrelativamente anaacuteloga agravequela que Michel de Montaigne inaugurou apesar do distanciamento cronoloacutegico que o separa do fidalgo com quem parece natildeo ter muitas afinidades temaacuteticas38 ele poderia muito bem dizer laquoNatildeo retrato o ser Retrato a passagemraquo39 Todavia trata-se agora de retratar a dimensatildeo mais abstrata mais eteacuterea da passagem uma dimensatildeo em ruiacutenas de retratar a si mesmoum espiacuterito que ao refletir e escrever mdashou ao menos tentar refletir e escrevermdashsobre inuacutemeros temas com isso frequumlentemente aspira por um lado agrave sua proacutepria dissoluccedilatildeo enquanto escritor e por outro a sua proacutepria construccedilatildeo enquanto eu Os escritos de Valeacutery configuram-se como uma anti-obra

111 DA CRISE Agrave AUTARQUIA ESPIRITUAL

34 C1rsquo p 635 C5 p 16736 Cf C1rsquo p 9 cf C1rsquo p 1137 Œ1 p 37738 Cf C1rsquo p 20639 MONTAIGNE Michel de Cap II - Do arrependimento in Os Ensaios III trad Rosemary Costhek Abiacutelio Martins Fontes Satildeo Paulo 2001 p 27

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Convencer eacute infrutiacuteferoWalter Benjamin Rua de matildeo uacutenica

Contudo toda essa diletante variedade temaacutetica e incompletude toda essa fragmentaccedilatildeo natildeo resultam apenas da resposta mecacircnica agraves limitaccedilotildees e possibilidades impostas por um contexto histoacuterico e pela desconfianccedila nobeneplaacutecito do sistema Haacute tambeacutem em Valeacutery em seu oscilante itineraacuterio espiritual o peso de um confesso e estranho periacuteodo de crise40 cujas consequumlecircncias fazem-se presentes reverberam em reflexotildees sobre si mesmo e sua atividadecomo escritor sobre sua concepccedilatildeo acerca da linguagem e sua criacutetica agrave filosofia sobre grande parte desse seu proceder de seu meacutetodo e meta41 O aacutepice desse periacuteodo eacute frequumlentemente datado (sem muita precisatildeo42) da noite do dia 4 ao dia 5 de Outubro do ano de 1892 o local um quarto de um ex-convento restauradoem apartamentos um dos quais pertencente a sua tia e a seu tio os Cabella na Salita di san Francesco uma ruela em Gecircnova43 onde juntamente com sua matildee Fanny e seu irmatildeo Jules Valeacutery o poeta empreendia uma viajem agrave Itaacutelia de seus antepassados (pelo lado materno seu avocirc era genovecircs e sua avoacute triestina) Amiuacutede foi batizada pelo proacuteprio poeta de laquoNoite de Gecircnovaraquo44 (laquoNuit de Gecircnesraquo) ou sugestivamente adjetivada de laquoGolpe de estadoraquo45 (laquoCoup drsquoeacutetatraquo) expressatildeo esta bastante recorrente em seus escritos

Os relatos dessa noite satildeo pelo suposto impacto sofrido pateacuteticos edesconexos como soem ser frequumlentemente todas os momentos de crises todos os iniacutecios Mas o inteacuterprete natildeo pode deixar de descartar que haja neles muito de dramatizaccedilatildeo e exagero de mise en scegravene dir-se-ia que faz parte da lenda

40 BERTHOLET Denis Chapitre 5 - Crise (1891-1892) amp Chapitre 6 - Coup drsquoeacutetat (1892-1894) in Paul Valeacutery - 1871-1945 Biographies Plon Paris 1995 JARRETY Michel Chapitre VIII - Salita di san Francesco in Paul Valeacutery Fayard 200841 O modo como um autor define ou usa um determinado conceito em seus primeiros escritos natildeo eacute necessariamente o mesmo que em seus uacuteltimos ele pode moldaacute-lo refazecirc-lo de acordo com os contextos e as frases que engendra de acordo com seus objetivos imediatos e contingentes de acordo com a sua proacutepria trajetoacuteria de vida Pressupotildee-se portanto que haja nisso uma evoluccedilatildeo talvez ateacute mesmo uma espeacutecie de progresso rumo a algo inicialmente desconhecido Daiacute natildeo raro uma obra poder ser encarada como o registro de um movimento limitado no tempo e no espaccedilo da vida que a executa A historicidade opera assim tanto entre as geraccedilotildees e as tradiccedilotildees quanto internamente no pensamento vivido e no pensamento escrito de uma soacute pessoa Valeacutery todavia natildeo foge a essa regra Contudo haacute uma particularidade jaacute foi dito por natildeo mais de um criacutetico que ele parece ter ldquonascido prontordquo tal o grau de maturidade de seus primeiros escritos Suas variadas obsessotildees e mesmo o seu estilo continuam basicamente os mesmos ao longo de toda sua vida Em grande medida sua obra eacute portanto composta por revisotildees e atualizaccedilotildees sobre temas em grande parte determinados em sua juventude Esses temas permanecem o que muda ou pode vir a mudar eacute o modo como o poeta os compreende (Cf CIORAN Emile Valeacutery faces agrave ses idoles in Œuvres Quarto Eacuteditions Gallimard 1995especialmente p 1566)42 Cf Œ2 p 143543 Cf JARRETY Michel Chapitre VIII - Salita di san Francesco in Paul Valeacutery in Paul Valeacutery Fayard 2008 especialmente pp 111-11244 Cf C1rsquo pp 86 113 145 190 e 1447 C2rsquo pp 460 e 87545 Cf C2rsquo p 460

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do poeta lenda que ele mesmo sentiu em vida e natildeo quis dissipar46 laquoNoite horriacutevelraquo assim escreve Valeacutery num ceacutelebre relato laquopermaneccedilo sentado sobre minha cama Tempestade por todo lado Meu quarto me assombra a cada claratildeo E todo o meu destino se concentra em minha cabeccedila Eu estou entre eu e eu Noite infinita CRIacuteTICA Talvez seja o efeito desta tensatildeo do ar e do espiacuterito E essas violentas rebentaccedilotildees redobradas do ceacuteu essas bruscas iluminaccedilotildees sofreadas entre os muros puros de cal nua Eu me sinto OUTRO esta manhatilde Mas mdash sentir-se Outro mdash isso natildeo pode durar mdash [] que o novo homem absorva e anule o primeiroraquo47

Haacute doravante um outro relato justamente no iniacutecio do ensaio Au sujet drsquolsquoEurecirckarsquo no qual Valeacutery descreve de modo mais preciso o seu estado de espiacuterito no periacuteodo de crise e ao redor da Noite de Gecircnova eacute uma compreensatildeo de si nada condescendente que revela o quanto o entusiasmo acerca das ideacuteias torna-se na oscilante juventude ldquofogo-de-palhardquo nasce e morre com grande facilidade laquoEu tinha vinte anos e acreditava no poder do pensamento Sofria estranhamente de ser e de natildeo ser Por vezes sentia infinitas forccedilas Elas caiacuteamante os problemas e a fraqueza de meus poderes positivos me desesperava Eu era taciturno ligeiro faacutecil em aparecircncia duro no fundo extremo no desprezo absoluto na admiraccedilatildeo faacutecil de impressionar impossiacutevel de convencer Tinha feacute em algumas ideacuteias que vieram a ter comigo Eu tomava a conformidade que elas tinham com meu ser que as haviam engendrado por uma marca de seu valor universal aquilo que se aparecia tatildeo nitidamente ao meu espiacuterito parecia invenciacutevel o que engendra o desejo eacute sempre o que resulta mais claro Conservava essas sombras de ideacuteias como segredos de Estado Tinha vergonha de suas estranhezas tinha medo que fossem absurdas sabia o que elas eram e o que elas natildeo eram Eram vatildes por si mesmas poderosas pela forccedila singular que me davam a confidecircncia que me guardava A inveja desse misteacuterio de debilidade me inundava de uma espeacutecie de vigor Havia deixado de fazer versos quase natildeo lia As novelas e os poemas me pareciam apenas aplicaccedilotildees particulares impuras e semi-inconscientes de algumas propriedades aplicadas a esses famosos segredos que acreditei encontrar um dia somente por esta garantia sem relaxamento que eles deveriam necessariamente existir Quanto aos filoacutesofos os quais havia apenas frequumlentado me irritava sobre esse pouco que eles natildeo respondiam nunca a nenhuma das dificuldades que me atormentavam Soacute me produziam aborrecimentos jamais o sentimento de que comunicassem qualquer poder verificaacutevel E ademais me parecia inuacutetil especular sobre abstraccedilotildees que natildeo se houvera definido anteriormente [] Havia metido o nariz em alguns 46 BERTHOLET Denis Paul Valeacutery - 1871-1945 Biographies Plon Paris 1995 p 91 JARRETY Michel Chapitre VIII - Salita di san Francesco in Paul Valeacutery Fayard 2008 pp 116-11747 Œ2 pp 1435-1436

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miacutesticos Resulta impossiacutevel criticaacute-los pois neles soacute se encontra o que se colocaraquo48

O que desencadeou o periacuteodo de crise e a Noite de Gecircnova mdashesta que para a Histoacuteria da Literatura Moderna eacute menos como um fato e mais como um siacutembolo como a concentraccedilatildeo de todo uma transformaccedilatildeo e um raacutepido amadurecimentomdashfoi em parte e segundo alguns comentadores a paixatildeo natildeo declarada a uma tal dama de Rovira Mme de Rovira49 baronesa catalatilde mas tambeacutem natildeo se pode descartar uma seacuterie de outros acontecimentos que desde haacute muito se acumulavam na vida do jovem e hipersensiacutevel poeta o doloroso serviccedilo militar50 o teacutermino de seus estudos universitaacuterios e as incertas perspectivas profissionais (incertezas que sempre formam uma sombra em sua biografia51) a releitura de Eureka de Poe e a leitura de Illuminations de Rimbaud os estudos matemaacuteticos e cientiacuteficos a lhe revelarem um mundo de ldquoprecisatildeordquo e ldquorigorrdquo diferente do ldquovagordquo mundo da literatura e da miacutestica a morte do pai a doenccedila da matildee um primeiro contato com as ruas os cafeacutes os salotildees de uma efervescente Paris52

Entretanto todos esses acontecimentos pertencem mais agrave ordem factual da vida do que espiritual Nesta a mais importante o periacuteodo de crise e a Noite de Gecircnova ambos podem muito bem ser interpretados como o resultado e a conscientizaccedilatildeo de uma tensatildeo Tensatildeo que indeleacutevel natildeo cessaraacute de todo e marcaraacute a pessoa e todo o pensamento de Valeacutery entre dois poacutelos dois impulsos dois desejos entre o sentimento e a inteligecircncia entre a pessoalidade e a impessoalidade entre um lado emocional facilmente excitaacutevel e um lado intelectual que aspira por um maior grau de consciecircncia e por controle Como confessa o proacuteprio poeta numa frase exemplar que em muito sintetiza o teor do seu espiacuterito e obra laquoEu penso como um racionalista arqui-puro Eu sinto como um miacutesticoraquo53 (laquoJe pense en rationaliste archi-pur Je sens en mystqueraquo) Ou ainda laquoPor um lado eu considero e julgo as coisas com uma extrema e 48 Œ1 pp 854-85549 Cf CVG p 107 CVF p 28 e 125 BERTHOLET Denis Paul Valeacutery - 1871-1945 Biographies Plon Paris 1995 pp 77-78 e 85-88 JARRETY Michel Chapitre VII - Madame de R in Paul Valeacutery Fayard 200850 Sobre a questatildeo fisioloacutegica ou ldquomuscularrdquo em Valeacutery cf C1rsquo pp 130-13151 Apesar de ter estudado na Faculteacute de Droit de Montpellier Valeacutery diferentemente de seu irmatildeo Jules nunca exerceu ou pretendeu exercer a advocacia De 1897 a 1900 serviu como funcionaacuterio puacuteblico no Ministegravere de la Guerre depois trabalhou como secretaacuterio particular de um dos principais administradores da Agence Havas M Eacuteduard Lebey para quem entre outras atividades lia e comentava jornais e revistas profissatildeo que muito provavelmente lhe auxiliou a formar o repertoacuterio necessaacuterio para as suas constantes reflexotildees sobre a Modernidade presente em todos esses escritos Depois contando com sua celebridade palestrou e ministrou conferecircncias pela Europa e jaacute em idade avanccedilada lecionou poeacutetica no Collegravege de France (Cf Œ1 pp 24-25 e 27 respectivamente BERTHOLET Denis Paul Valeacutery - 1871-1945 Biographies Plon Paris 1995 JARRETY Michel Paul Valeacutery Fayard 2008)52 BERTHOLET Denis Paul Valeacutery - 1871-1945 Biographies Plon Paris 1995 pp 36-102 JARRETY Michel Chapitre VII - Madame de R amp Chapitre VIII - Salita di san Francesco in Paul Valeacutery Fayard 2008 53 C2rsquo p 418

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assustadora frieza por outro eu as sinto terrivelmente E entre essas coisas a idade as outras pessoasraquo54 Essa tensatildeo ainda se multiplicaraacute e se desdobraraacute em sua obra em outras tantas particularizaacuteveis no plano epistemoloacutegico entre a abstraccedilatildeo e a concretude o siacutembolo e o iacutecone entre um espiritualismo racionalista e um sensualismo empirista ou ainda como diz Maurice Blanchot entre laquoA abstenccedilatildeo criadora e a presenccedila invencivelmente atual entre o desejo do espiacuterito de estar separado e sua necessidade de perguntar ao corpo a prova de seus poderes entre o nada que eacute a vida da consciecircncia e o nada da consciecircncia que eacute vivaraquo55 no plano eacutetico entre o desengajamento e o engajamento entre a vita contemplativa e a vita ativa

Soma-se a essa tensatildeo mistura-se a ela a partir do periacuteodo de crise e da Noite de Gecircnova a aquisiccedilatildeo de uma consciecircncia extrema visceral bem aos moldes do Ceticismo Antigo do quanto agrave realidade esta eacute composta e mediada por convenccedilotildeeshumanas demasiado humanas por arbitrariedades sejam estas fiacutesicas ou psiacutequicas eacuteticas ou esteacuteticas sejam essas necessaacuterias ou desnecessaacuterias do quanto tudo eacute relativo Para usar de uma reflexatildeo que soa ao estilo de Leibniz se haacute um espanto filosoacutefico valeacuteryano esse espanto natildeo eacute ante o haver alguma coisa ao inveacutes do nada (como geralmente ocorre no registro do Cristianismo) mas ante as coisas serem assim e natildeo de outro modo (como geralmente ocorre no registro da Antiguumlidade Claacutessica) laquomdash O impressionante natildeo eacute que as coisas sejam mas que elas sejam dessa maneira e natildeo de outraraquo56 O delirante pensamento mdashde que ldquotudo pode ser realmente diferente natildeo de modo metafoacuterico mas literalrdquomdash eacute uma possibilidade ldquouniversalrdquo E eacute essa possibilidade uma das fontes mais poderosas do insone pensamento de Valeacutery

Aquilo que outrora num mundo menos laicizado poder-se-ia ser compreendido como morte e renascimento espiritual a superaccedilatildeo do periacuteodo de crise e da Noite de Gecircnova o conduziu a um progressivo aniquilamento de todas essas tensotildees ou ao menos a uma conciliaccedilatildeo possiacutevel entre as polaridades que a constituem conduziu-o tambeacutem a uma progressiva conversatildeo a si mesmo O que haacute que se dizer natildeo impediu que ele sofresse outras tantas crises de menor impacto jaacute que tudo se constitui como uma tentativa A partir de entatildeo na esfera privada o poeta busca suprimir estoicamente as ilusotildees causadas pelas ldquopaixotildeesrdquo e na esfera puacuteblica suspende ao menos provisoriamente a escritura de poesias57 escritura agrave qual posteriormente retomaraacute mais por interesse na poeacutetica ou na loacutegica da estrutura verbal do poema do que pelo poema em si e se

54 C1rsquo p 9955 BLANCHOT MauriceValeacutery et Faust in La part du Feu Nrf Gallimard 1949 p 28256 Œ1 p 122157 Esse periacuteodo seraacute compreendido pela criacutetica com o Grande Silecircncio (Cf BEacuteMOL Maurice Paul Valeacutery G de Bussac Clermont-Ferrand 1949 p 27 e pp 30-60)

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afasta em definitivo dos pressupostos parnasianos e de um misticismo idealista-romacircntico do tipo fin-de-siegravecle decadentista que anterior aderira e doravantedenunciou como inadequados a seu novo caminhar a partir de entatildeo ele define aquilo que seraacute denominado aqui como uma espeacutecie de programa deautoconsciecircncia58 cuja manifestaccedilatildeo exterior mais contundente se expressa em seus Cahiers e em menor grau em sua obra puacuteblica

Esse programa de autoconsciecircncia mdashque obviamente natildeo pode ser estabelecidocomo um planejar o caminho antes de caminhar mas um planejar o caminho no proacuteprio caminharmdash inicia-se com extremo radicalismo com uma espeacutecie de tabula rasa ou ao menos uma tentativa (e tatildeo-somente tentativa) de comeccedilar ou recomeccedilar de um postulado zero eacute inicialmente um aspirar um almejar aquilo que aqui pode ser denominado de autarquia intelectual de autarquia espiritual eacute umtornar o seu espiacuterito o mais distanciado o mais autocircnomo o mais livre possiacutevel do legado de problemas de uma tradiccedilatildeo literaacuterio-filosoacutefica Pois esses problemas natildeo satildeo necessariamente considerados como problemas por aquele que os recebe Se ele o poeta os aceita sem refletir sem analisaacute-los ou destrinccedilaacute-los sem sentir ou intuircomo tais entatildeo ele os aceita comodamente com automatismo mdashe automatismo eacutejustamente aquilo que deve ser evitado sendo um estado contraacuterio ao exigido pelo seu proacuteprio programa de autoconsciecircnciamdash A adesatildeo a uma ideacuteia tal processo deve ocorrer portanto com extremo cuidado se realmente deve ocorrer Porque ao fim o caminho espiritual ou intelectual de um homem somente pode ser caminhado por ele e tatildeo somente por ele Natildeo se pode pensar o que um outro pode pensar natildeo de modo idecircntico porque entatildeo ambos seriam o mesmo do mesmo modo que natildeo se pode viver o que um outro pode viver natildeo de modo idecircntico porque entatildeo ambos seriam o mesmo Haacute no maacuteximo analogias paralelismos parentescos influecircncias um caminhar junto mas jamais identidades absolutas entre pensamentos ou entre sistemas de pensamentos assim como entre trajetoacuterias de vida Tudo o que vem de fora tudo o que vem dos outros todas as ideacuteias todas as crenccedilas e doutrinas todos os dogmas e aporias todas as perguntas e respostas todas as certezas e duacutevidas que durante largo tempo foram se configurando e por vezes se cristalizando ao grau de serem natildeo rarointrojetadas como condiccedilotildees naturais intriacutensecas natildeo deveriam ser aceitas a partir de entatildeo displicente e comodamente como se o espiacuterito fosse apenas um vasto depositaacuterio relativamente passivo daquilo que outros inventaram e

58 A expressatildeo mdashprograma de autoconsciecircnciamdash natildeo eacute gratuita o termo ldquoprogramardquo evoca a ideacuteia de que haacute uma disciplina a ser cumprida agrave qual toda uma obra futura deveraacute estar condicionada algo portanto consoante ao espiacuterito valeacuteryano avesso ao improviso e amante do treino jaacute o termo ldquoautoconsciecircnciardquo evoca a ideacuteia de lucidez e controle sobre si mesmo e estaacute presente nos proacuteprios escritos de Valeacutery que o escreve em inglecircs ldquoself-consciousnessrdquo remetendo-se tambeacutem assim agraves exigecircncias de racionalidade no fazer literaacuterio preconizadas por Edgar Allan Poe (Cf C1rsquo p 317 cf C2rsquo p 318)

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legaram e natildeo um poderoso crivo e um transformador criacutetico de tudo aquilo que recebe

Eis porque natildeo raro Valeacutery que tanto apreciava as definiccedilotildees metafoacutericas e sinteacuteticas frequumlentemente refere-se a si mesmo como um Robson Crusoeacute do espiacuterito59 O fantaacutestico e paradigmaacutetico personagem de Daniel Defoe vasto siacutembolo de uma ambiacutegua e engenhosa vontade civilizadora do homem que a partir da natureza bruta inventa suas proacuteprias artificialidades e problemas representa para o poeta natildeo apenas a teacutecnica que lhe permite accedilatildeo no mundo exterior mas sobretudo a teacutecnica que lhe permite accedilatildeo no mundo interior isto eacute um homem que inventa seus proacuteprios problemas teoacutericos e tenta solucionaacute-los com os proacuteprios meios de que dispotildee sem recorrer a outros laquoSou um miseraacutevel Robinsonraquo descreve-se laquonuma ilha de carne e de espiacuterito rodeado por todas as partes de ignoracircncia e fabrico generosamente meus utensiacutelios e minhas artesraquo60 Assim se manifesta o ldquoindividualismordquo o ldquoegotismordquo valeacuteryanocomo uma poderosa feacute em si mesmo um insistente querer fazer as coisas por simesmo e independente dos outros e do que os outros iratildeo pensar ou julgar

Um exemplo dessa incisiva atitude encontra-se de modo exagerado e paradoxal num breve diaacutelogo socraacutetico intitulado Orgueil pour orgueil Nesse diaacutelogo cuja estrutura remete agrave eriacutestica sofiacutestica Anaxaacutegoras confronta-se com Soacutecrates mas um Soacutecrates relativamente distinto daquele que seraacute apresentado nosgrandes diaacutelogos Eupalinos e Lrsquoacircme et la danse

laquoANAXAacuteGORAS Se vocecirc tem razatildeo posto que eu natildeo sou vocecirc vocecirc natildeo pode ter verdadeiramente razatildeo oacute Soacutecrates Eacute necessaacuterio entatildeo que eu ainda reflita Eacute necessaacuterio que retomando o que vocecirc me disse e partindo do estado no qual vocecirc colocou o meu pensamentotendo combatido e vencido eu encontro finalmente uma razatildeo em mim que por sua vez conteacutem a sua proacutepria e justifique entretanto minha opiniatildeo precedente E isso sob pena de minha morte Pois de outro modo ao que rimaria minha existecircncia SOacuteCRATES Que orgulho Anaxaacutegoras O orgulho eacute o sentimento de ser nascido para alguma coisa que somente noacutes podemos conceber e esta coisa [eacute] mais grande e mais importante que todas as outras [] A coisa que eu quero deve ser sempre superior agravequela que quer qualqueroutro Tal eacute o orgulho Ele natildeo emana das coisas feitas nem daquilo que se eacute Mas meu ideal eacute infinitamente acima do seu pois ele eacute meu unicamente porque ele eacute meuraquo61

O assunto desse diaacutelogo natildeo aparece nem necessita aparecer pois o que estaacute em jogo eacute a relaccedilatildeo entre seus dois personagens ou vozes Note-se que Soacutecrates e Anaxaacutegoras concordam que as suas respectivas razotildees satildeo verdadeiras masapenas para cada um deles mesmo que o outro natildeo as aceite como tal Na terminologia de Valeacutery o orgulho que eacute uma espeacutecie de servilismo a si mesmo impede que ambos sejam seduzidos pela vaidade que eacute uma espeacutecie deservilismo aos outros62 Haacute assim a concepccedilatildeo de que cada um foi feito mdashque

59 Cf C1rsquo p 41 126 157 158 196 e 440 cf C2 p 49 473 649 cf Œ2 pp 411-420 60 Œ1 p 96161 Œ1 p 36062 Cf C1rsquo p 284

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cada um deve se fazermdash para seguir o seu proacuteprio caminho para cumprir o seu proacuteprio papel no teatro do mundo

A aspiraccedilatildeo por uma autarquia intelectual uma autarquia espiritual e a concepccedilatildeo de um itineraacuterio irredutiacutevel a outrem o orgulho de si coadunam-seharmonizam-se por conseguinte com a perspectiva criacutetica de Valeacutery frente a qualquer forma ou qualquer ato de proselitismo63 O proseacutelito eacute contraacuterio ao correto pensar Ser intelectualmente livre tambeacutem implica ser necessariamente livre do desejo de doutrinar de convencer ou ateacute mesmo de compartilhar com o outro algo que natildeo se sabe ser verdadeiro ou falso Daiacute toda a intenccedilatildeo naturalmente jamaiscumprida do poeta em escrever uma obra de caraacuteter privado e ateacute mesmo inventar uma linguagem de caraacuteter privado uma linguagem pura como se com isso fosse possiacutevel viver uma vida toda privada totalmente enclausurada em seus proacuteprios problemas e soluccedilotildees laquoO proselitismo eacute inimigo da honestidaderaquo insistentemente anota o poeta laquomdash Seus meios satildeo todos impuros (Seduzir espantar embrulhar as coisas) Eu tenho horror dele de querer dar minha opiniatildeo a quem natildeo a quer daquele que quer substituir pela sua O homem honesto diz seu pensamento e estabelece como para si-mesmo [] Ainda sobre o fato mesmo de o comunicar eu aplicaria a sentenccedila de S[t] Paulo sobre o casamento Natildeo temos desejo de conquistar ningueacutem quando damos conta que o uacutenico que devemos conquistar estaacute em noacutes mesmos [Grifo do autor] Lave seus peacutes antes de batizar os outrosraquo64 E mais laquoEu natildeo quero convencer ningueacutem nem por ningueacutem ser convencidoraquo65 laquoRepugna-me a todos que querem me convencer mdashUm partido uma religiatildeo em procura adeptos que desejam o nome e a propagaccedilatildeo satildeo cheios (para mim) de ignomiacutenia Uma doutrina deve para ser nobre em nada ceder ao desejo de ser compartilhada Que ela seja como ela eacute ou que ela natildeo seja Eu natildeo desejo fazer aos outros o que eu natildeo quero que me faccedilam [] mdash Ter razatildeo Desejo de ter razatildeo mdash Propagar Desejar convencer Isso conduz aos milagres agrave ldquopublicidaderdquoraquo66 Entretanto toda essa radical recusa em praticar proselitismo tambeacutem encontra explicaccedilatildeo numa confessa e compreensiacutevel ldquotentaccedilatildeordquo de por em praacutetica as ideacuteias de colocaacute-las diante deprovas de passar da dimensatildeo da especulaccedilatildeo para a da accedilatildeo especialmente em questotildees poliacuteticas e pedagoacutegicas como se pode constatar agraves vezes em seus escritos sobre anarquia e sobre educaccedilatildeo laquoPor vezes eu me sinto como que exasperado = desesperadoraquo confessa Valeacutery laquopela sensaccedilatildeo de natildeo poder fazer agir minhas ideacuteias no mundo quando eu as sinto justasraquo67 Mas senti-las justas

63 C1rsquo p 6564 C1rsquo pp 78-7965 C1rsquo p 10666 C1rsquo pp 132-13367 C25 p 182

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natildeo garante que elas sejam para outros justas tampouco legitima que elas sejam propagadas como verdades tampouco lhe daacute o direito de doutrinar

Natildeo eacute por acaso que em sua obra puacuteblica e em maior grau em seus CahiersValeacutery se propocircs algo raras vezes tentado na Histoacuteria da Filosofia Ocidental algo que possui raiacutezes iacutentimas com essa sua expliacutecita e recorrente recusa em praticar proselitismos intelectuais ele se propocircs a considerar os pensamentos como conjetura como especulaccedilatildeo como algo eminentemente pessoal ele se propocircs a escrevecirc-los a representaacute-los independentemente de crer ou descrer na importacircncia no valor deles independentemente de os considerar corretos ou incorretos independentemente deles poderem corresponder objetivamente a alguma verdade ou a realidade Por que deveria se preocupar em provar ou refutar o que escreve Natildeo bastaria a utilidade de um escrito para si mesmo por que deveria tambeacutem ser uacutetil a outro ou a todos Desejar universalizar o seu pensamento qual o verdadeiro motivo a impulsionar tal comportamento Tudo se passa como se o poeta natildeo mais necessitasse sentir apego ou aversatildeo ao que pensa e escreve mdashe de tudo o que pensa e escreve ele vem a ser um mero contempladormdash laquoAquilo que me vem ao espiacuteritoraquo confidencia Valeacutery laquonatildeo se torna verdadeiramente ldquomeu pensamentordquo minha opiniatildeo mdash meu projeto mdash que depois de estar controlado aceito adotado ao menos provisoriamente e destinado a uma elaboraccedilatildeo ou a uma conservaccedilatildeo ou a uma aplicaccedilatildeo mdash mdash Assim o que eu escrevo aqui [nos Cahiers] eacute muitas vezes escrito natildeo como meu ldquopensamentordquo mas como pensamento possiacutevel que seraacute meu ou natildeo e [depois poderaacute ser] eliminadoraquo68

laquoEu escrevo aqui as ideacuteias que me vecircm Mas isso natildeo quer dizer que eu as aceite Eacute o seu primeiro estado Ainda mal despertoraquo69 Dessarte natildeo se pode considerar de modo estrito ou totalmente literal as reflexotildees de Valeacutery como sendo a traduccedilatildeo exata ou necessaacuteria das suas proacuteprias ldquocrenccedilasrdquo daquilo que ele considera verdadeiro ou correto daquilo a que ele aderiu aceitou ou refutou Daiacute tambeacutem toda a dificuldade e todo o cuidado em se interpretar as consideraccedilotildees que tece sobre um determinado tema laquoNesses cadernosraquo sentencia laquoeu natildeo escrevo minhas ldquoopiniotildeesrdquo mas eu escrevo minhas formaccedilotildeesraquo70

A sua obra puacuteblica e em maior grau os seus Cahiers natildeo satildeo enfim simplesmente uma soma de ensaios e de fragmentos sobre variados temas eles tambeacutem satildeo sobretudo um aacutelbum mdashde rastros e vestiacutegios de espoacutelios do que sobroumdash no qual registra o seu processo o seu programa de autoconsciecircncia de autarquia espiritual Eacute uma ascese intelectual o que enfim Valeacutery pratica Com esses ou atraveacutes desses escritos ele almeja ser primeiramente servil agrave obra maior oculta invisiacutevel aquela que verdadeiramente importa aquela que opera 68 C1rsquo p 769 C1rsquo p 770 C1rsquo p 7

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em seu proacuteprio espiacuterito O puacuteblico os criacuteticos todos aqueles que possivelmente a leratildeo todos aqueles que possivelmente a interpretaratildeo satildeo apenas um plausiacutevel desdobramento sobre os quais ele natildeo tem nem quer ter controle natildeo constituem e natildeo devem constituir a sua motivaccedilatildeo Sem desprezar a ldquonaturezardquo comunicativa de toda liacutengua a possibilidade de ser compreendida a meta daquele que escreve natildeo deve ser o outro a meta daquele que escreve deve ser o proacuteprio ato de escrever pois esse ato esse processo a atenccedilatildeo e o esforccedilo em se registrar pensamentos em formas verbais auxilia o escritor mdashque natildeo deixa de ser um ser humanomdash a realizar uma maior consciecircncia de si mesmo de suas possibilidades a realizar um maior grau de lucidez

Para Valeacutery escrever era escrever-se fazer era fazer-se laquoEscrever mdash para se conhecer mdash eis tudoraquo71 Que a filosofia e a literatura como qualquer forma de pensamento e arte como qualquer atividade executada de modo asceacutetico comatenccedilatildeo e esforccedilo com sacrifiacutecios pode ser um veiacuteculo material para se atingir um fim espiritual (religiosos ou laico) eacute algo relativamente praticado desde haacute muito mesmo que isso tenha sido constrangido ou escamoteado na Modernidade Atualizando essa possibilidade o poeta assume a antiga concepccedilatildeo de que o conhecimento do mundo eacute mdashpara ser efetivado na sua maior amplitude e siacutentesemdash inseparaacutevel do conhecimento de si Poder-se-ia dizer portanto que afunccedilatildeo capital de sua insone e estranha escritura por vezes reconhecida e almejada como privada72 eacute ser enfim parte de seu meacutetodo o culto ao Iacutedolo do intelecto cuja meta eacute o eu puro a purificaccedilatildeo do espiacuterito

1111 O CULTO AO IacuteDOLO DO INTELECTO O EU PURO

A despersonalizaccedilatildeo como a grande objetivaccedilatildeo de si mesmo A maior exteriorizaccedilatildeo a que se chegaClarice Lispector A paixatildeo segundo G H

A palavra espiacuterito muitos satildeo os significados dados a ela muitos satildeo os usos que sofre muitas satildeo suas nuances e variaccedilotildees especificaccedilotildees e ampliaccedilotildees Na Antiguumlidade Claacutessica aquelas que semanticamente mais dela se aproximam e que

portanto se compreende como sinocircnimos satildeo as palavras ψυχή e anima ambas

frequumlentemente traduzidas por alma a substacircncia intelectual e incorpoacuterea quesobrevive supostamente agrave morte do corpo como ocorre em doutrinas espirituais platocircnicas e neo-platocircnicas como ocorre no Cristianismo ou num outro aspecto natildeo tatildeo distante deste a uma espeacutecie de energia que vivifica que 71 C2rsquo p 99172 Cf BOURJEA Serge Paul Valeacutery - Le sujet de lrsquoeacutecriture LrsquoHarmattan Codeacute-sur-Noireau 1997 cf PIKCERING Robert Genegravese du concept valeacuterryen laquo pouvoir raquo et laquo conquecircte meacutethodique raquo de lrsquoeacutecriture laquo Archives Paul Valeacutery raquo 8 Archives des Lettres Modeacuternes 234 Lettres Modernes Paris 1990 amp Paul Valeacutery - La page lrsquoeacutecriture Litteacuteratures Centre de Recherches sur Les Litteacuteratures Modernes et Contemporaines 1996

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anima o corpo mas que natildeo necessariamente lhe sobrevive como ocorre emcertas vertentes do aristotelismo e do estoicismo Essa acepccedilatildeo perdura com enorme forccedila e resistecircncia apesar das inuacutemeras variaccedilotildees que adquire ateacute a Modernidade verificando-se na linguagem ordinaacuteria e nas crenccedilas do senso-comum marcou profundamente todas as outras acepccedilotildees possiacuteveis da palavra mesmo quando talvez de modo mais metafoacuterico do que literal designa por exemplo e com influxos idealistas a caracteriacutestica ou as caracteriacutesticas centrais o cerne ou o conteuacutedo de alguma disciplina ou instituiccedilatildeo assim como quando se diz ldquoo espiacuterito da fiacutesicardquo ou ldquoo espiacuterito de um povordquo Entretanto o conceito de espiacuterito (ou de alma) como eu como consciecircncia de si como consciecircncia de que se eacute uma consciecircncia pensante e relativamente distinta das demais e do mundo eacute raronos escritos e por inferecircncia no pensamento da Antiguumlidade Claacutessica e mesmo no Medievo e na Renascenccedila Em todos esses largos periacuteodos as mentalidadesoperam grosso modo a partir da concepccedilatildeo segundo a qual o cosmo eacute umaldquounidaderdquo ontologicamente sustentada e consequumlentemente haveria umainterdependecircncia entre todas as coisas teologias visionaacuterias como as de Santo Agostinho e Lutero certamente acenam para concepccedilotildees relativamente mais modernas mas em ambas o homem mesmo quando volta a si mesmo ainda eacute criatura e Deus o criador

Somente com o advento da burguesia um aspirar agrave ascensatildeo social e riqueza somente com o advento de um pensar que se quer autocircnomo e livre em relaccedilatildeo agraves instituiccedilotildees e tradiccedilotildees religiosas um aspirar agrave criaccedilatildeo artiacutestica filosoacutefica e cientiacutefica natildeo necessariamente dependente de esquemas consideradosimutaacuteveis somente com essas convulsas transformaccedilotildees o conceito de espiacuterito como eu comeccedila a se fazer mais presente e atuante A visatildeo do homem deixa de ser pouco a pouco totalmente cosmocecircntrica do todo para a parte e passa a ser centrada no proacuteprio homem no sujeito da parte para o todo O polifacetadopensamento de Montaigne essa espeacutecie de antropologia de si mesmo e de suas idiossincrasias constitui um preluacutedio a esse novo paradigma histoacuterico73doravante na cesura filosoacutefica que promove na aspiraccedilatildeo a uma ciecircncia laica Descartes mesmo mantendo-se relativamente fiel ao Cristianismo foi o mais ceacutelebre e polecircmico de seus arautos Com ele o subjetivismo moderno pode finalmente se desenvolver de modo sistemaacutetico e a concepccedilatildeo do espiacuterito como eu como consciecircncia e consciecircncia de si ou mais especificamente como razatildeo eintelecto se cristaliza deixando margem para o posterior desenvolvimento do conceito de indiviacuteduo Trata-se entretanto da compreensatildeo do espiacuterito natildeo maiscomo totalmente participante ou dependente da ordem coacutesmica natural mas de

73 Cf MONTAIGNE Michel Os ensaios I-III trad Rosemary Costhek Abiacutelio Martins Fontes Satildeo Paulo 2000

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algum modo relativamente separado ou apartado dela trata-se da compreensatildeo do espiacuterito como substacircncia como algo em si Em Descartes haacute que se dizer ele ainda guardaria certo ponto-de-contato certo grau de atuaccedilatildeo no corpo e no mundo74 mas posteriormente em certas linhas mais exacerbadas do Cartesianismo nascente como no Ocasionalismo de Malebranche no qual eacute sempre Deus o mediador que atua define-se realmente como totalmente separado do corpo e do mundo

Todavia como se sabe esse espiacuterito autocircnomo acabou por se revelar mais como um ideal como uma utopia ou um sonho como um grito por liberdadedo que um fato E mesmo as inuacutemeras especulaccedilotildees do Idealismo Alematildeo notadamente de Hegel em atualizar o cosmocentrismo claacutessico e cristatildeo emdistinguir espiacuterito finito (o intelecto) do espiacuterito objetivo (as instituiccedilotildees) e do espiacuteritoabsoluto (arte filosofia e religiatildeo) todos manifestaccedilotildees e instrumentos da Ideacuteia ou da Razatildeo Infinita tampouco essas distinccedilotildees que parecem eliminar o livre-arbiacutetrio jamais excluem o fato de que o ser humano seu espiacuterito eacute aquele que sempre vive o que vive e sofre o que sofre e natildeo raro culpa-se pelo que faz oudeixou de fazer A vontade de viver de Schopenhauer e a vontade de potecircncia deNietzsche o inconsciente de Freud esses e outros tantos conceitos representam tentativas teoacutericas modernas de explicar aquilo que sempre se operou na praacutetica aquilo que a arte e a literatura sempre representaram de modo simboacutelico que o espiacuterito o espiacuterito humano por mais que tente natildeo eacute senhor absoluto de si mesmo e que natildeo somente forccedilas exteriores e materiais o condicionam como a seus proacuteprios pensamentos mas tambeacutem forccedilas consideradas irracionais subterraneamente o controlam e o escravizam

Intuindo que toda essa trajetoacuteria semacircntica e ideoloacutegica eacute um dos iacutendicesmais significativos da trajetoacuteria mesma da Modernidade na medida em que estanatildeo deixa de ser em grande medida uma grave acentuaccedilatildeo do espiacuterito como eu e como indiviacuteduo Valeacutery natildeo deixa de dar continuidade a ela transformando-a esempre se resguardando em preservar a sua proacutepria idiossincrasia Em seus escritos tanto em prosa quanto em poesia a palavra espiacuterito mdashtalvez aquela a qual a sua imagem puacuteblica ficou mais livre e imprecisamente associadamdash ocorre quase sempre como na tradiccedilatildeo francesa racionalista-cartesiana da qual natildeo deixa de ser direta e simultaneamente herdeira e criacutetica com a acepccedilatildeo geral de eu deconsciecircncia e consciecircncia de si de intelecto ou mais propriamente de inteligecircncia Uma inteligecircncia capaz de analisar o mundo exterior e o mundo interior e note-segenericamente inteligecircncia eacute um termo mais facilmente associado agrave palavra francesa ldquoespritrdquo do que agrave palavra portuguesa ldquoespiacuteritordquo Todavia o que soacutei

74 Cf DESCARTES Reneacute As paixotildees da alma trad J Guinsburg e Bento Prado Juacutenior Os Pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1979

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constituir a diferenccedila central em relaccedilatildeo a essa tradiccedilatildeo e mesmo em relaccedilatildeo a todas as demais tradiccedilotildees do periacuteodo preacute-moderno e do Idealismo Alematildeo reside no fato de que o conceito de espiacuterito com o qual o poeta mais constitui e opera raramente designa ou alude agrave alma imortal e o que eacute deveras mais importante jamais se insere em algum sistema metafiacutesico-idealista a ambicionar expandir por exemplo o conceito de espiacuterito a ponto de por vezes tornaacute-louma espeacutecie de divindade reguladora limitando assim o seu uso praacutetico fisioloacutegico ou psicoloacutegico

Ademais Valeacutery poeta apoliacuteneo do mar do sol e da luz eacute deveras reticentecom relaccedilatildeo agraves teorias modernas mdashirracionalismo psicanaacutelise etcmdash segundo agraves quais o espiacuterito seria regido por forccedilas irracionais subconscientes Mas reticentenatildeo significa aqui necessariamente contraacuterio ao sentido geral da criacutetica dessas teorias significa antes uma divergecircncia quanto ao modo de compreender o ser humano e por conseguinte a si mesmo como absoluta e totalmente controlado e escravizado por irracionalidades por inconsciecircncias etc sem que haja nenhuma possibilidade mdashe sempre haacute possibilidadesmdash de escapatoacuteria ou de superaccedilatildeodessa condiccedilatildeo O naturalismo o determinismo dessas teorias eis o que verdadeiramente se questiona Porque Valeacutery natildeo nega natildeo pode negar tudo aquilo que condiciona o espiacuterito mas ele simplesmente ldquoapostardquo na possibilidadedeste vir a ser em determinado sentido e atraveacutes de determinado meacutetodo senhor de si mesmo E mais natildeo credita exagerada fetichizada sacralizada importacircncia agraveirracionalidade ao inconsciente mdashnote-se que inconsciente eacute um termo que ele busca conscientemente utilizar o miacutenimo possiacutevelmdash como fatores ou causas que estariam subterraneamente impulsionando a accedilatildeo o fazer Para o poeta a parte obscura a parte do espiacuterito que natildeo eacute iluminado pela razatildeo pela consciecircncia tem naturalmente seu papel na vida jaacute que toda a memoacuteria todas as lembranccedilas todas as representaccedilotildees das experiecircncias passadas aiacute supostamente se preservam o que natildeo implica que essa parte seja totalmente determinante mdashmas tatildeo somente condicionantemdash para as decisotildees para as escolhas que o proacuteprio espiacuterito toma no momento presente O inconsciente natildeo eacute um territoacuterio movediccedilo uma danccedila de imagens ocultas regida por afetividades e desejos mas meramente um armazenamento e num sentido quase mecacircnico laquoEstou convencidoraquo escreve de um modo um tanto categoacuterico laquoque se pudeacutessemos penetrar desenvolver o famoso subconsciente [inconsciente] noacutes apenas veriacuteamos miseacuteria ou algumas leis simples afetando os elementos e os comandos daquilo que faz sentimentos ideacuteias e vontades daquilo que daacute valor perspectiva agraves coisas Tudo eacute superfiacutecieraquo75 Natildeo se caminha na escuridatildeo absoluta tudo que o humano realizaeacute de algum modo resultado de racionalidade de consciecircncia mesmo que haja

75 C2rsquo p 238

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mescla com fatores obscuros E aumentar o grau de racionalidade de consciecircncia eacute a tarefa que o poeta se impotildee projetar luz sobre tudo Pois laquonatildeo haacute ldquogecircniordquo puramente inconsciente Mas o homem de gecircnio eacute ao contraacuterio aquele que aproveita das figuras lanccediladas pelo acaso Ele retira delas uma fonte infinita vasta como o mundo [] Gecircnio = consciecircncia das inconsciecircnciasraquo76 Isso porque eacute somente com consciecircncia que se eacute capaz de guiar a accedilatildeo o fazer um espiacuterito totalmente inconsciente nada agiria nada faria um ser totalmente inconsciente simplesmente natildeo existiria laquoA consciecircncia eacute a possibilidade de atosraquo77 E laquoldquooinconscienterdquo eacute talvez capaz de fornecer uma soluccedilatildeoraquo diz o poeta laquoMas assegurar que essa soluccedilatildeo eacute boa mas colocar o problema mdash natildeoraquo78 Por conseguinte o proacuteprio sonho mdashse compreendido como espeacutecie de portal de acesso agrave parte obscura do espiacuteritomdash natildeo pode ser explicado reduzido a uma uacutenica teoria o sonho suas imagens e sensaccedilotildees seus signos dispersos natildeo se transforma em mateacuteria prima utilizaacutevel se natildeo for dado agrave consciecircncia se natildeo for racionalizado79 E eacute nesse sentido todo que a perspectiva ldquoapoliacuteneardquo de Valeacutery mais explicitamente se manifesta e partir do qual o seu conceito de espiacuterito pode ser enfim compreendido

Quando o poeta o evoca natildeo se refere portanto a um eu substancial em si mas a um eu funcional em relaccedilatildeo Ele eacute como que um elemento ou um fenocircmeno do mundo A separaccedilatildeo promulgada pelo Racionalismo entre rescogitans e res extensa entre pensamento de um lado e corpo e mundo de outro inexiste e consequumlentemente todos os intrincados e quase insoluacuteveis problemas em se articular esse radical dualismo Dir-se-ia que para o poeta inclinado a uma espeacutecie de ambiacuteguo ldquosensualismo materialistardquo esse dualismo natildeo opera espiacuterito e mateacuteria satildeo em uacuteltima instacircncia a mesma coisa contemplada atraveacutes de diferentes perspectivas laquoa organizaccedilatildeo a coisa organizada o produto dessa organizaccedilatildeo e o organizador satildeo inseparaacuteveis ldquoO espiacuteritordquo eacute inseparaacutevel da mateacuteria mdash e reciprocamente Por outro lado essa distinccedilatildeo depende doobservadorraquo80

76 C2rsquo p 990 77 C1rsquo p 91178 C2rsquo p 21479 Nesse sentido Valeacutery se posiciona sim contraacuterio agrave Psicanaacutelise suas criacuteticas a Freud satildeo diretas laquoSe as teorias de Freud tecircm um valor terapecircutico mdash eacute uma grande probabilidade que elas natildeo tenham nenhum valor ldquocientiacuteficordquoraquo (C1rsquo p 995) Quanto ao sonho Valeacutery chega inclusive a duvidar da possibilidade de se representaacute-lo atraveacutes de palavras atraveacutes da narrativa do reacutecit o que a Psicanaacutelise faria nesse sentido seria tatildeo somente a anaacutelise da narrativa do sonho natildeo do sonho logo de uma mediaccedilatildeo que pode muito bem falsear o proacuteprio sonho laquoO que me prova que as teorias do sonho agrave la Freud satildeo vatildes eacute que a anaacutelise ai se comporta sobre as coisas descritiacuteveis em termos ordinaacuterios mdash entretanto o sonho deveria ser indescritiacutevel mdash ou descritiacutevel por contradiccedilotildees ou particcedilotildees (como mdash havia um cavalo mas eu sabia que natildeo era um cavalo mdash mdash)raquo (C2rsquo p 177) Sobre a Psicanaacutelise cf ainda C2rsquo pp 527-52880 C1rsquo p 562

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Assim na praacutetica na praacutetica da vida Valeacutery compreende o espiacuterito ou melhor o expotildee como algo sempre em circunstacircncia em situaccedilatildeo num dado tempo e espaccedilo em sua fragilidade real extremamente condicionado a si mesmo aos outros e ao mundo Daiacute aludir que apenas fez o que pode fazer natildeo aquilo quenecessariamente desejava fazer laquoApoacutes tudo eu fiz o que eu puderaquo81 Assim se ele aspira a uma accedilatildeo a um fazer cumpre num primeiro momento considerar o espiacuterito na uacutenica perspectiva em que eacute passiacutevel de ser realmente percebido ou vivido somente por aquele que o eacute em sua forma empiacuterica concreta com todas as suas crenccedilas e descrenccedilas com todas as suas verdades e mentiras com todas as suas contradiccedilotildees com todos os seus momentos com todas as suas limitaccedilotildees e possibilidades mdashdadas tanto por si mesmo como pelo mundo no qual eacutecircunstanciado situadomdash E para representar toda essa intensa oscilaccedilatildeo e fluxo toda essa impermanecircncia esse incessante saltar de um assunto a outro de umarepresentaccedilatildeo a outra Valeacutery cunha a expressatildeo laquoself-varianceraquo82 que pode ser parcamente traduzida como auto-variaccedilatildeo variaccedilatildeo-do-ser variaccedilatildeo-de-si etc Essa expressatildeo comumente designa a caracteriacutestica considerada a mais importante no espiacuterito o espiacuterito mesmo o fato deste ser no plano da consciecircncia pensamento e portanto pura variaccedilatildeo um processo ou um devir um movimento interior que virtualmente natildeo tem fim uma seacuterie dinacircmica e mutaacutevel de representaccedilotildees ou signos mas que apesar de todas as mudanccedilas e mutaccedilotildees eacute sempre a variaccedilatildeo de um mesmo a variaccedilatildeo que natildeo elimina a unidade daconsciecircncia-de-si ou melhor a identidade pois por mais que o espiacuterito pense distraia-se e vagueie manteacutem a consciecircncia de que eacute sempre ele que pensa o que pensa percebe o que percebe faz o que faz A laquoself-varianceraquo indicia portanto o tempo a temporalidade que o proacuteprio espiacuterito cria e atua na medida em que ospensamentos deste natildeo passam de uma corrente que opera quase instantaneamente por similaridades e contiguumlidades o que lhe possibilita qualificaacute-los hierarquizaacute-los dar sentido e valor a eles configurar um destino Haacute certamente recorrecircncias padrotildees e obsessotildees nessa contiacutenua atividade interior mas jamais um teacutermino tudo eacute retomada e reinvenccedilatildeo (Note-se que aescritura fragmentada do poeta natildeo deixa de ser em determinado sentido uma representaccedilatildeo mais condizente mais icocircnica a um espiacuterito assim descrito)

Consequumlentemente da concepccedilatildeo mdashou simplesmente da constataccedilatildeomdashdo espiacuterito como laquoself-varianceraquo haacute duas implicaccedilotildees duas caracteriacutesticas mais ou menos impliacutecitas nos fragmentos de Valeacutery

81 C2rsquo p 38882 Cf C1rsquo pp 837 969-970 1051-1052 e 1351 cf C2rsquo p 9

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Primeira a dificuldade ou mesmo a impossibilidade do espiacuterito pensar em uma laquoideacuteia fixaraquo83 (laquolrsquoideacutee fixeraquo) isto eacute uma representaccedilatildeo natildeo passiacutevel de ser fragmentada indivisiacutevel atocircmica que para o poeta soacute pode ser postuladaartificialmente na dimensatildeo da palavra da linguagem convencional e simboacutelica que em certa medida a falseia pois nenhuma ideacuteia nenhum estado mental nenhum pensamento e sentimento nem mesmo o prazer ou a dor existe como uma unidade ou como uma linha homogecircnea mas como um fenocircmeno contiacutenuo que ocorre em matizes em gradaccedilotildees de maior ou menor intensidade de maior ou menor distraccedilatildeo ou atenccedilatildeo Para o poeta a ideacuteia fixa eacute portanto um conceito que simplesmente natildeo condiz com o comportamento mental laquoTodo conhecimento toda representaccedilatildeo eacute compostaraquo escreve laquoToda consciecircncia eacute incessantemente mutaacutevelraquo84 O instante esse ldquoponto virtualrdquo entre o passado e o futuro natildeo eacute passiacutevel de ser capturado ou melhor eacute um contra-senso pensar que se possa capturaacute-lo pois ele soacute existe no ou como devir e o devir por sua vez soacute existe no ou como instante que se precipita no futuro Essa concepccedilatildeo natildeo estaacute longe da concepccedilatildeo de Bergson segundo a qual o ser humano natildeo vive numtempo homogecircneo quantitativo matemaacutetico ou mecacircnico mas no tempo heterogecircneo e qualitativo da consciecircncia na dureacutee85

Segunda implicaccedilatildeo a dificuldade ou mesmo a impossibilidade do espiacuterito apreender perceber ou captar a si mesmo de forma absoluta total como se por um momento supremo pudesse reter o todo de sua memoacuteria o todo de suaslembranccedilas o todo das representaccedilotildees das suas experiecircncias passadas como se por um momento supremo pudesse pensar um pensamento oniabrangente edefinitivo algo que enquanto ideacuteia parece ter fascinado ao poeta e a tantos outros pois mesmo que haja consciecircncia-de-si mesmo que haja unidade-de-si essa consciecircncia e essa unidade soacute satildeo dadas como ou no fluxo como ou no devir jaacute que soacute eacute possiacutevel pensar um pensamento ou um panorama de pensamento de cada vez jaacute que muitas das percepccedilotildees mesmo captadas pelo corpo escapam agrave consciecircncia esta o espiacuterito costuma se ater ao que lhe importa e lhe interessa Como diz insistentemente o poeta laquoNatildeo existe pensamento que extermina o poder de pensar e o conclui mdash uma certa posiccedilatildeo da linguumleta que

83 Cf Lrsquoideacutee fixe ou deux hommes agrave la mer in Œ2 pp 195-275 Essa obra eacute um estranho e fictiacutecio diaacutelogo beira-mar dir-se-ia solar e terapecircutico entre Valeacutery e um convicto meacutedico que tece reflexotildees sobre a filosofia o pensamento e a representaccedilatildeo a intelecccedilatildeo e a intuiccedilatildeo a transitoriedade do mundo e principalmente sobre o conceito de saber como poder de previsatildeo fenomenoloacutegica e de accedilatildeo sobre o mundo O interlocutor imaginaacuterio do poeta eacute como parte de seus personagens um homem que permanece na tensatildeo entre a accedilatildeo e a contemplaccedilatildeo De feacuterias longe de seus pacientes que tanto o instigam ele procura fazer algo que jamais conseguiu nada fazer Dizia possuir o mal da atividade constata que isso eacute entretanto impossiacutevel pois ateacute mesmo o pensamento eacute uma forma de accedilatildeo de accedilatildeo interior84 C6rsquorsquo p 22685 BERGSON Henri Chapitre II - De la multipliciteacute des eacutetats de conscience lrsquoideacutee de dureacutee in Essai sur les donneacutees immeacutediates de la conscience Presses Universitaires de France Paris 2005

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fecha definitivamente a fechadura Natildeo nada de pensamento que seja para o pensamento uma resoluccedilatildeo nascida de seu proacuteprio desenvolvimento como acordo final dessa dissonacircncia permanenteraquo86 laquoNatildeo existe absolutamente uacuteltimo pensamento em si e por si Em alguns insetos machos haacute um uacuteltimo ato que eacute de amor apoacutes o qual morrem Mas natildeo haacute pensamento que esgote a virtualidade do espiacuteritoraquo sentencia Valeacutery para logo em seguida concluir com esta estranha frase de caraacuteter heuriacutestico laquoExiste no entanto uma estranha tendecircncia (em todos os espiacuteritos de uma certa ordem) que eacute avanccedilar sempre para natildeo sei que ponto de natildeo sei que ceacuteuraquo87 Mas esse ceacuteu natildeo tem fim eacute apenas um ideal ao qual o pensamento sempre tende

Dessarte como Soacutecrates ou Platatildeo ao poeta agrada pensar o pensamento

(διάνοια) qualificaacute-lo como uma espeacutecie de conflito de dialeacutetica de diaacutelogo

interior como uma espeacutecie de laquodissonacircncia permanenteraquo de jogo ldquoininterruptordquo de laquopergunta-respostaraquo (laquodemande-reponseraquo) laquoP-Rraquo (laquoD-Rraquo) Jogo no qual quem pergunta e quem responde eacute sempre o mesmo o mesmo que se multiplica em dois ou em mais para poder assim chegar sempre a si mesmo e assim sucessivamente Pensar conduz portanto a uma espeacutecie de separaccedilatildeo a dividir-se a ser outro mesmo sendo si mesmo a jamais manter uma uacutenica identidade a deslocar-se a multiplicar-se laquoA linguagem interior cria um Outro no Mesmoraquo88 Por vezes Valeacutery tambeacutem chega ao extremo de dizer que todo pensamento natildeo deixa de ser uma forma de adaptaccedilatildeo (laquoPensar mdash eacute se adaptarraquo89) tanto a um pensamento preteacuterito quanto ao meio-ambiente no qual pensa portanto uma soma de respostas a uma soma de demandas ou ainda um sistema espiritual de ato-reflexo Essa visatildeo seraacute recorrentemente atualizada e personificada transformada em literatura quando da formulaccedilatildeo de seus personagens como Leonardo e Teste e em seus diaacutelogos socraacuteticos

Todavia diante dessa laquoself-varianceraquo Valeacutery natildeo entra em ldquodesesperordquo quanto a isso sua atitude eacute de controle Pois a partir do periacuteodo de crise e da Noite de Gecircnova ele determina precisa o seu programa de autoconsciecircncia o seu meacutetodo agravequilo que foi compreendido pelo proacuteprio poeta em trabalhos de ficccedilatildeo e de criacutetica como o culto ao espiacuterito o culto ao laquoIacutedolo do intelectoraquo90 (laquoIdole de lrsquointellectraquo) mdashatraveacutes do qual ele supostamente chegou ou pode chegar ao proacuteprio conceito de laquoself-varianceraquomdash91 Esse culto pode ser postulado aqui natildeo como um deixar o pensamento solto a flanar e distrair-se de laacute para caacute em busca deste ou daquele desiderato fugaz mas sobretudo como uma forma de meditaccedilatildeo eacute um manter um 86 Œ1 pp 1219-122087 Œ1 pp 1219-122088 C1rsquo p 46189 C1rsquo p 90190 Œ2 p 3791 Cf Œ2 p 37

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sustentar com esforccedilo e sacrifiacutecio o maior grau de lucidez controle e rigor o maior grau de consciecircncia possiacutevel durante qualquer accedilatildeo durante qualquer fazer durante qualquer processo mental seja este iacutentimo seja visando findar em arte filosofia ou ciecircncia eacute a constante tentativa de atentar-se e controlar a si mesmo o mecanismo dos proacuteprios processos mentais de um modo reto eliminando do pensamento as oscilaccedilotildees e o supeacuterfluo Valeacutery sonha com um estado de eterna vigiacutelia Em seu itineraacuterio o sacrificium intellectus seria um ato de preguiccedila ecovardia Ao ecircxtase natildeo se entregaria se tivesse que abandonar a razatildeo Mas esseculto ao Iacutedolo do intelecto natildeo se restringe apenas agrave meditaccedilatildeo analiacutetica de si mesmotambeacutem se manifesta exteriormente como a anaacutelise da gecircnese ou dos processos das obras humanas suas ou de outros (Seus escritos de criacutetica literaacuteria e artiacutestica partem desse princiacutepio e por isso quase sempre vatildeo aleacutem da mera interpretaccedilatildeo do objeto interpretado apresentando tambeacutem inuacutemeras reflexotildees pessoais) Acompanhar mesmo que na imaginaccedilatildeo mesmo que de modo conjetural os passos de algueacutem que cria filoacutesofo artista ou cientista interpretar e criticar obras alheias vem a ser um modo de cultuar de meditar sobre si mesmo Interpretar eacute interpretar-se

Grande parte do que o Valeacutery escreveu ou deixou de escrever em sua obrapuacuteblica e principalmente em seus Cahiers essa sua diletante variedade temaacutetica eincompletude pode ser compreendida como o resultado dessa inaudita concepccedilatildeolaquoSomente o nosso proacuteprio funcionamentoraquo escreve laquoeacute que pode ensinar alguma coisa sobre toda e qualquer coisa Nosso conhecimento no meu entender tem por limite a consciecircncia que podemos ter de nosso ser mdash e talvez do nosso corpo Quem quer que seja X o pensamento que tenho dele se eu o aprofundar tende para mim quem quer que seja eu Pode-se ignoraacute-lo ou conhececirc-lo suportaacute-lo ou desejaacute-lo mas natildeo haacute escapatoacuteria natildeo haacute outra saiacuteda A intenccedilatildeo de todo o pensamento estaacute em noacutesraquo92 Em certo sentido poder-se-ia dizer que para profunda e verdadeiramente compreender o mundo exterior eacute necessaacuterio compreender o mundo interior um e outro satildeo pois solidaacuterios e inseparaacuteveis A ceacutelebre maacutexima mdashconhece a ti mesmomdash natildeo deixa de estar longe daquilo que Valeacuterybusca praticar todavia dentro das condiccedilotildees dos limites e possibilidades postos pela Modernidade sem esperanccedila alguma de realmente conhecer todavia refrataacuterio a qualquer doutrina metafiacutesica a qualquer substancialismo a qualquer ideacuteia de salvaccedilatildeo ou prediccedilatildeo a qualquer poacutes-morte Se haacute um autoconhecimentono pensamento do poema este soacute pode ocorrer materialmente fisicamente no aqui e no agora

Naturalmente para que esse culto ao Iacutedolo do intelecto realmente venha a se efetivar faz-se necessaacuterio um contiacutenuo e disciplinado exerciacutecio de atenccedilatildeo e esforccediloda proacutepria vontade quando posta numa accedilatildeo num fazer Ele pode ser difiacutecil de ser

92 Œ1 pp 1232-1233

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mantido por periacuteodos prolongados ele pode ser aacuterduo doloroso mas eacute o uacutenico meio de educar e de fortalecer o proacuteprio espiacuterito laquoEu aprecio em todas as coisasraquo escreve Valeacutery laquoapenas a facilidade ou a dificuldade em conhececirc-la em consumaacute-la Ponho um cuidado extremo em medir esses degraus a natildeo me apegar E que me importa aquilo que estou farto de saberraquo93 Entretanto quando o espiacuterito eacute constantemente constrangido forccedilado a atuar no mundo exterior a ter que se envolver com as exigecircncias do corpo e principalmente daqueles que o cercam isso se torna verdadeiramente problemaacutetico principalmente nas condiccedilotildees do mundo atual que segundo Valeacutery constantemente propagam a ilusatildeo de que as obras satildeo engendradas justamente sem atenccedilatildeo e esforccedilo o que se torna bastante grave para a delicada economia do proacuteprio espiacuterito laquoA vida moderna tende a poupar-nos o esforccedilo intelectual como o faz com o esforccedilofiacutesicoraquo escreve laquoEla substitui por exemplo a imaginaccedilatildeo pelas imagens o raciociacutenio pelos siacutembolos e pela escrita ou por mecanismos e frequumlentemente por nada Ela nos oferece todas as facilidades todos os meios curtos para se atingir o objetivo sem ter percorrido o caminho E isso eacute oacutetimo mas muito perigoso Isso se combina com outras causas que natildeo vou enumerar para produzir como direi uma certa diminuiccedilatildeo geral dos valores e dos esforccedilos na ordem do espiacuterito Gostaria de estar enganado mas infelizmente minha observaccedilatildeo eacute fortalecida pelas de outras pessoas Com a necessidade de esforccedilo fiacutesico diminuiacuteda pela maacutequina o atletismo veio felizmente salvar e ateacute exaltar o ser muscular Talvez fosse preciso sonhar com a conveniecircncia de se fazer para o espiacuterito o que se faz para o corpo Natildeo tenho a ousadia de dizer que tudo o que natildeo solicita esforccedilo seja apenas tempo perdido Mas existem alguns aacutetomos de verdade nessa foacutermula atrozraquo94

Contudo Valeacutery natildeo apenas delineia o culto ao Iacutedolo do intelecto e a atenccedilatildeo e o esforccedilo que este exige ele ainda faz uma distinccedilatildeo entre dois tipos de espiacuterito dois tipos de eu95 (Haacute que se dizer todavia que ao fazer essa distinccedilatildeo assim como outras ele natildeo eacute muito fiel a elas as suas proacuteprias terminologias e o leitor deve ter cuidado ao lecirc-las pois natildeo raro ao escrever a palavra ldquoespiacuteritordquo ou ldquoeurdquo ele pode estar se referindo a um determinado tipo ou a outro) Ele se refere natildeo apenas a um espiacuterito enquanto eu (moiacute) empiacuterico a self-variance mas tambeacutem a umespiacuterito enquanto eu puro (moi pure) por vezes denominado simplesmente de eu(moi) ao qual muitas vezes vem a ser um constante alvo de suas reflexotildees a sua meta a qual o culto ao Iacutedolo do intelecto tende Esse uacuteltimo conceito talvez seja ao mesmo tempo um dos mais instaacuteveis mais problemaacuteticos do poeta um dos mais difiacuteceis de ser compreendido pois eacute expresso em passagens demasiadas 93 Œ2 p 1994 Œ1 p 113795 Cf CELEYRETTE-Pietri Nicole Valeacutery et le moi - Des Cahiers agrave lrsquoŒuvre Klincksieck Paris 1979

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obscuras de um modo tatildeo fragmentaacuterio tatildeo incompleto tatildeo solto tatildeo contraditoacuterio e paradoxal que facilmente se intui se tratar de algo que nem mesmo para o proacuteprio Valeacutery eacute claro e satisfatoacuterio embora ele intua ser por vezes de importacircncia capital E isso se deve principalmente porque eacute extremante difiacutecil falar ou escrever sobre o espiacuterito sobre o mundo interior com os meios disponiacuteveis na linguagem verbal as palavras aiacute entram em terreno movediccedilo Em seu ensaio Descartes o poeta assim escreve sobre laquoa extrema dificuldade que nos opotildee a linguagem quando queremos obrigaacute-la a descrever os fenocircmenos da mente Que fazer com esses termos que natildeo podemos precisar sem recriaacute-los Pensamento a proacutepria mente razatildeo inteligecircncia compreensatildeo intuiccedilatildeo ou inspiraccedilatildeo Cada um desses nomes eacute ao mesmo tempo um meio e um fim um problema e uma soluccedilatildeo um estado e uma ideacuteia e cada um deles eacute em cada um de noacutes suficiente ou insuficiente segundo a funccedilatildeo que lhe outorgue a circunstacircnciaraquo96 Daiacute o uso recorrente de distorccedilotildees de metaacuteforas e ldquoconsequumlentementerdquo uma maior abertura agraves ambiguumlidades e indeterminaccedilotildees

De qualquer modo eacute possiacutevel constatar que o conceito de eu puro valeacuteryanopossui certamente fortes ecos do conceito de eu substancial racionalista e cartesiano e numa leitura raacutepida e descontextualizada das passagens que versam sobre ele ainda tambeacutem pode evocar o conceito de eu absoluto do Idealismo Alematildeo notadamente de um Fichte e de um Schelling Mas uma leitura mais acurada indica que natildeo haacute equivalecircncia entre o primeiro e os dois uacuteltimosconceitos afinal o termo ldquopurordquo natildeo eacute em todos os casos sinocircnimo do termoldquosubstancialrdquo ou ldquoabsolutordquo Duas satildeo aqui as instacircncias ou momentospossiacuteveis desse eu puro momentos naturalmente sempre provisoacuterios e que natildeo se excluem mutuamente mas que se complementam e demonstram asindeterminaccedilotildees os avanccedilos e os recuos as oscilaccedilotildees do proacuteprio poeta diante dafragilidade das suas proacuteprias formulaccedilotildees

A primeira refere-se ao eu puro como sendo simplesmente a laquoinvariacircnciaraquo97

(laquoinvarianceraquo) o laquoinvarianteraquo98 (laquoinvariantraquo) aquilo que no espiacuterito natildeo varia natildeo muda laquoO eu mdash eacute um invariante que resulta de toda a produccedilatildeo de fenocircmenos suficientemente consciente e complexaraquo99 laquoO E[u] eacute invarianteraquo assim se repete Valeacutery laquoorigem meio ou campo eacute uma propriedade funcional da consciecircnciaraquo100 Esse eu pode ser compreendido portanto numa imagem geomeacutetrica como um nuacutecleo duro ou como um ponto ou um centro ao redor do qual todo o resto toda a esfera movente do espiacuterito suas lembranccedilas e aspiraccedilotildees suas

96 Œ1 p 79797 Cf C2rsquo p 29598 Cf C2rsquo p 330 cf C2rsquo p 31299 C2rsquo p 312100 C2rsquo p 315

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representaccedilotildees seus pensamentos e desejos gravitam Valeacutery que tinha uma excecircntrica fascinaccedilatildeo pela matemaacutetica costuma simbolizaacute-lo como iluminou Ulrike Heetfeld101 com os seguintes siacutembolos matemaacuteticos 0 1 e infin 0 eacute o signo da negaccedilatildeo a resposta que sempre eacute negada no sistema dialoacutegico de laquoperguntas-e-respostasraquo (laquodemande-reponseraquo) do espiacuterito 1 eacute o signo da unidade do espiacuterito ante as possibilidades e infin eacute o signo da pura possibilidade do espiacuterito Em todo esse estranho simbolismo o eu puro eacute estabelecido sempre como heuriacutestico como uma virtualidade natildeo como uma realidade laquoA palavra Eu designa sempre virtualidades mdash Natildeo haacute Eu redutiacutevel ao atualraquo102 laquoO eu (como eu o entendo)raquo escreve Valeacutery laquomdash eu o olho como uma propriedade fundamental da consciecircncia mdash um ponto virtual [] para o qual [] o meu conhecimento se ordenaraquo103

A segunda instacircncia ou momento do conceito de eu puro refere-se sobretudo ao eu como o que aqui pode ser denominado de um estado de espiacuteritoao qual o eu ou o espiacuterito empiacuterico e singular valeacuteryano aspira e tende um possiacutevelque deve ser sobretudo conquistado realizado estabelecido no agir no fazerEsse estado pode ser postulado da seguinte maneira o eu puro valeacuteryano eacute o espiacuterito quando este cumprindo o seu culto ao Iacutedolo do intelecto encontra-se totalmente purificado mdashe o conceito de pureza seraacute extremamente recorrente no pensamento valeacuteryano aplicado a muitas dimensotildeesmdash de todas as ldquoemoccedilotildeesrdquo e de todos os ldquosentimentosrdquo de todas as ldquopaixotildeesrdquo104 de todos os iacutedolos outros desnecessaacuterios de tudo aquilo que o poeta considera como empecilhos a um pensar livre de opiniotildees e de subjetividades livre de metafiacutesicas e portanto reduzido assim a mais pura inteligecircncia ao mais puro intelecto o eu puro eacute o eu sem a pessoa o eu puro eacute o espiacuterito quando este se encontra num estado de totaldespersonalizaccedilatildeo ou para usar termo mais radical num estado de totaldesumanizaccedilatildeo silenciado tranquumlilo esvaziado sem anguacutestias porque sem esperanccedilas sem sofrimentos porque sem desejos105 laquoNada mais IMPESSOAL que este EUraquo106 laquoEacute preciso sair da personalidade para entrar no euraquo107 assim formula o poeta pois a personalidade mdashcomo o proacuteprio eacutetimo da palavra 101 HEETFELD Ulrike La conception matheacutematique du laquo Moi pur raquo das les lsquoCahiersrsquo in GIFORD Paul amp STIMPSON Brian (orgs) Paul Valeacutery - Musique Mystique Matheacutematique Presses Universitaires de Lille Lille 1993 especialmente pp195-196102 C23 p 311103 C2rsquo p 284104 laquoToda emoccedilatildeo todo sentimento eacute uma marca de defeito de adaptaccedilatildeoraquo (C2rsquo p 354) laquoToda a vida afetiva natildeo passa de besteira e circulo viciosoraquo (C2rsquo p 382)105 Essa despersonalizaccedilatildeo essa desumanizaccedilatildeo parece jaacute estar esboccedilada quando Valeacutery escreve com mais tranquumlilidade sobre a fatiacutedica Noite de Gecircnova sobre aquilo em que seu meacutetodo vem a se constituir laquoFoi um periacuteodo muito duro e muito fecundo mdash Uma luta com os diabos Noite de Gecircnova em out[ubro] de [18]92 Paris em novembro E tudo isso me conduziu ao meu ldquomeacutetodordquo mdash o qual era pureza mdash separaccedilatildeo dos domiacutenios φ [filosofia] e ψ [psicologia]raquo (C1rsquo p 190)106 C2rsquo p 315107 C2rsquo p 299 cf C2rsquo p 312

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indicamdash eacute uma maacutescara uma ilusatildeo uma espeacutecie de acuacutemulo ou excesso sobre o espiacuterito sobre este espiacuterito que almeja a ser eu puro Gostos e desgostos alegrias e tristezas emoccedilotildees e sentimentos tudo isso se configura como personalidade porque laquoa personalidade eacute uma probabilidade QUE PODE MUDARraquo108 Daiacutetambeacutem o poeta distinguir em certas passagens poeacuteticas o laquoeuraquo (laquomoiraquo) como superior ao laquomimraquo (laquomienraquo) porque este possui ego e aquele natildeo O eu puro eacute portanto natildeo um ldquoeu pensordquo e a consciecircncia de se estar pensando mas um ldquopensa-serdquo e a consciecircncia de se estar pensando

Haacute que se dizer por conseguinte que Valeacutery natildeo confere confessadamente ao eu puro assim como a grande parte de seus conceitos epropostas valores morais ao menos natildeo em sentido estrito certo enrijecimento do haacutebito a moral tambeacutem deve ser superada posto que a poderosa distinccedilatildeo entre bem e mal entre o certo e o errado soacute ocorre na dimensatildeo da personalidade das convenccedilotildees e da cultura No fundo esse conceito essa proposta o eu puro representa enfim uma forma de neutralidade e de incondicionalidade mas uma neutralidade e incondicionalidade que natildeo se estabelecem de modo transcendente fora do mundo mas de modo imanente nomundo com tudo o que este estabelecer de limites e possibilidades Pois comoMaurice Blanchot diz de modo luminoso e paradoxal agrave respeito do poeta e dos personagens deste laquoO grande espiacuterito eacute [] unicamente em si e unicamente fora de si absolutamente separado e absolutamente presente ao mundoraquo109 Haacute ainda uma passagem extremamente laminar nos Cahiers que evoca toda essa ideacuteia de um eu como neutro e incondicional laquoO verdadeiro Deus eacute intima uniatildeo com o eu [] O eu puro eacute como a foacutermula de Deusraquo110

Ante uma tal concepccedilatildeo torna-se relativamente faacutecil associar o pensamento de Valeacutery ao dos miacutesticos associaccedilatildeo que apesar de todo o distanciamento criacutetico do poeta com relaccedilatildeo agrave religiatildeo institucionalizada (seu paradigma eacute quase sempre o Catolicismo com quem tem ambiacuteguas relaccedilotildees111) eacute entretanto

108 C2rsquo p 312109 BLANCHOT Maurice Valeacutery et Faust La part du Feu Nrf Gallimard 1949 p 281110 C2rsquo p 293111 Natildeo se pode superestimar a influecircncia do Catolicismo sobre Valeacutery Eacute fato que numa carta a Pierre Louis ele escreve duras e polecircmicas consideraccedilotildees sobre suas ambiacuteguas inclinaccedilotildees religiosas Consideraccedilotildees que alguns criacuteticos natildeo tardariam supostamente em interpretar como anti-semitas qualificativo este que por vezes realmente pairou sobre a imagem do poeta laquoCom relaccedilatildeo agrave Biacutebliaraquo escreve ele laquoeu creio que vocecirc despreza o objeto de minhas preferecircncias miacutesticas Eu sou sobretudo catoacutelico quase idoacutelatra e detesto todo calvinismo e jansenismo isto eacute todas as seitas inartiacutesticas () Eu natildeo gosto dos Judeus pois eles natildeo tecircm arte Das raccedilas vizinhas eles pilharam tudo em mateacuteria de arquitetura etcraquo (LQ p 13) Contudo jaacute nesse trecho citado haacute obviamente muito de ironia pois o valor das religiotildees eacute dado pelo aspecto esteacutetico e natildeo pelo eacutetico pela forma e natildeo pelo conteuacutedo mdashprocedimento que seraacute recorrente no poetamdash Ademais essa carta foi escrita em 1890 portanto dois anos antes do periacuteodo de crise e da Noite de Gecircnova a partir das quais ante qualquer religiatildeo Valeacutery adotaum agnosticismo lato particular posiccedilatildeo epistemoloacutegica que natildeo deixa de ser derivada ou anaacuteloga ao seu ceticismo geral

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relativamente legiacutetima A obsessatildeo pelo Uno de um Plotino os oxiacutemoros poeacuteticos de um Satildeo Joatildeo da Cruz ou a rigidez militar de um Sto Inaacutecio de Loyola todos esses e outros registros estatildeo relativamente presentes em seus escritos todas essas figuras satildeo em certa medida admiradas mas sempre com estrateacutegica cautela Pois o que o poeta preza na via miacutestica eacute menos a possibilidade do ecircxtase ou da realizaccedilatildeo da dimensatildeo sagrada sem mediaccedilotildees e mais o treinamento os aacuterduos exerciacutecios de meditaccedilatildeo praticados exerciacutecios de algum modo relativamente semelhantes aos seus proacuteprios exerciacutecios compreendidos no seu programa de autoconsciecircncia O poeta conjectura que a disciplina que a via miacutestica mdashnesse caso natildeo haacute muitas diferenccedilas com relaccedilatildeo agrave via asceacuteticamdash instaura relativamente estranha agrave mentalidade e aos interesses pragmaacuteticos da Modernidade natildeo deve ser de todo desprezada deve ser antes reinventada e continuada atualizada justamente para tempos mais positivos e cientiacuteficos logo sem necessariamente almejar a visatildeo ou a uniatildeo com o suposto Deus sem aesperanccedila ou a feacute de outrora laquoTudo o que foi encontrado de bom e de belo pela via miacutesticaraquo escreve laquodeve poder ser encontrado pela via realraquo112 Assimse haacute uma miacutestica ou uma ascese em Valeacutery ela soacute seraacute compreendida paradoxalmente em sentido secular ou laico dessacralizada e metaforizadaDesprovida de qualquer desejo de transcendecircncia eacute uma miacutestica ou ascese formal a sua autoconsciecircncia Uma miacutestica ou uma ascese que natildeo deseja realizar Deus mas tatildeo-somente realizar-se e realizar-se sem fim laquoO problema capital na vidaraquo escreve Valeacutery laquomdash eacute o da ascese que eu entendo como possessatildeo de si e tambeacutem como exploraccedilatildeo Natildeo haacute que duvidar que a busca do progresso interior (como dizem os miacutesticos) eacute o Uacutenico objeto possiacutevel e as ciecircncias natildeo deixam de ser uma particularizaccedilatildeo dessa buscaraquo113 Essas palavras parecem enfim sintetizar o cerne de grande parte do pensamento de Valeacutery Haacute uma ascese intelectual a ser cumprida postulada e exigida pelo sujeito a si mesmo eque na Modernidade natildeo deve recusar as ciecircncias e as artes justamente porqueas ciecircncias e as artes mdashque por princiacutepio natildeo se distinguem umas das outrasmdashpodem ser tanto como praacuteticas quanto pelo que contribuem agraves especulaccedilotildees do espiacuterito meios dessa proacutepria ascese

1112 FAZER SEM CRER

O ceacutetico eacute o homem menos misterioso que existe e entretanto a partir de um certo momento ele natildeo pertence mais a esse mundo

Emile Cioran O mau demiurgo

112 Π Folio 109113 C6 p 738

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Haacute toda uma seacuterie de recorrecircncias desconexa e plural de ldquocrise e conversatildeo espiritualrdquo na Histoacuteria da Filosofia e da Literatura Ocidental Satildeo Paulo e Santo Agostinho Pascal Rousseau e Kant Tolstoi Wronksi Jacques e Raiumlssa Maritain todos eles e tantos outros passaram em maior ou menor grau de acordo com suas idiossincrasias e os contextos histoacutericos em que viviam por modificaccedilotildees abruptas em suas respectivas formas de pensar por cesuras Oitineraacuterio espiritual de Valeacutery com o periacuteodo de crise e a Noite de Gecircnova natildeo deixa de ser uma variaccedilatildeo desse recorrente acontecimento de ordem simultaneamente privada e puacuteblica remete agrave Crise de Tournon (29 de marccedilo a 6 de abril de 1866) de seu mestre Mallarmeacute114 da qual consciente ou inconscientemente talvez tenha buscado alguma filiaccedilatildeo115 Mas eacute sobretudo passiacutevel de ser posto aqui em comparaccedilatildeo e paralelismo com o itineraacuterio espiritual deste outro filoacutesofo que tambeacutem sofreu ou diz ter sofrido uma transiccedilatildeo abrupta em seu pensamento (10a 11 de novembro de 1619) e marcou seja por contraste ou identidade indistintamente todo o pensamento do poeta assim como toda a tradiccedilatildeo moderna Descartes A insatisfaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo de seu tempo com uma intransigente Escolaacutestica como um proceder que amiuacutede encara o conhecimento como uma eterna recapitulaccedilatildeo e o intento de alcanccedilar ldquoideacuteias claras e distintasrdquo um saber verdadeiramente seguro116 natildeo deixa de ser um movimento relativamente anaacutelogo ao do poeta mdashe quanto a isso a influecircncia natildeo parece gratuitamdash Tambeacutem ele demonstrou insatisfaccedilatildeo apoacutes o periacuteodo de crise e a Noite de 114 As reflexotildees de Valeacutery sobre a Crise de Tournon de Mallarmeacute in Œ1 p 676-679 especialmente 677 A crise de Mallarmeacute eacute mais de ordem poeacutetica laquoInfelizmente escavando os versos a este ponto eu encontrei dois abismos que me desesperamraquo diz ele laquoUm eacute o Nada ao qual cheguei sem conhecer o budismo e eu estou ainda bastante desolado para poder inclusive acreditar em minha poesia e me lanccedilar ao trabalho que esse pensamento esmagador me fez abandonarraquo (MALLARMEacute Steacutephane Œuvres completes I org Bertrand Marchal Bibliothegraveque de la Pleacuteiade Gallimard Paris 1998 p XLIX)115 Cf JARRETY Michel Paul Valeacutery Fayard 2008 p 119116 Cf DESCARTES Reneacute Discurso do meacutetodo trad J Guisnburg e Bento Prado Juacutenior Os Pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1979 pp 25-113 Em seu ensaio Une vue de Descartes Valeacutery escreve sem pudor sobre o filoacutesofo do cogito como se escrevesse sobre si mesmo sobre o seu periacuteodo de crise e a sua Noite de Gecircnova sobre o seu programa de autoconsciecircncia laquoO conjunto desse dia 10 de novembro e a noite que se seguiu constituem um drama intelectual extraordinaacuterio Suponho que Descartes natildeo nos enganou e que o relato que nos faz eacute tatildeo certo quanto uma lembranccedila carregada de sonhos natildeo haacute razatildeo para duvidar de sua sinceridade Conheccedilo muitos outros exemplos de tais iluminaccedilotildees do espiacuterito posteriores a longas lutas interiores a tormentos anaacutelogos a dores do parto De golpe a verdade de algueacutem se faz e brilha nele A comparaccedilatildeo luminosa se impotildee pois nada daacute uma imagem mais justa desse fenocircmeno iacutentimo que a intervenccedilatildeo da luz num meio escuro no qual soacute eacute possiacutevel mover-se a apalpadelas Com a luz aparece a caminhada em linha reta e a relaccedilatildeo imediata das coordenaccedilotildees do caminhar com o desejo e o fim O movimento se converte numa funccedilatildeo de seu objeto [] no caso de Descartes eacute toda uma vida que se ilumina na qual todos os atos seratildeo a partir de agora ordenados para a obra que seraacute seu fim A linha reta estaacute balizada Uma inteligecircncia descobriu ou projetou aquilo para o qual foi criada formou de uma vez por todas o modelo de todo o seu exerciacutecio futuro [Grifo do autor] Natildeo se deve confundir creio esses golpes de Estado intelectuais com as conversotildees na ordem da feacute que tanto se assemelham aos tormentos preliminares e pela suacutebita declaraccedilatildeo do ldquohomem novordquo Encontro efetivamente uma notaacutevel diferenccedila entre esses modos de transformaccedilatildeo transcendente Enquanto na ordem miacutestica a modificaccedilatildeo pode se produzir em qualquer idade na ordem intelectual ela parece ter lugar geralmente entre dezenove e vinte quatro anos ao menos assim foi com as poucas ldquoespeacuteciesrdquo conhecidas por mimraquo (Œ1 pp 814-815)

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Gecircnova com grande parte do que lhe concedia a filosofia a arte e a literatura de seu tempo atividades que lhe pareciam extremamente fundamentadas emimprecisotildees arbitrariedades e gratuidades

Mas entre o filoacutesofo e o poeta haacute uma diferenccedila crucial Enquanto Descartes aspirando superar o ceticismo utiliza-se da duacutevida metoacutedica da duacutevida heuriacutestica como um momento ou etapa de uma linha de raciociacutenio que levaraacute agrave supostamente inviolaacutevel certeza do cogito e agraves reflexotildees sobre o meacutetodo Valeacuteryconstroacutei seu pensamento sempre com algum grau de negatividade E portantoabre-se a reformulaccedilotildees a inuacutemeras reformulaccedilotildees Ele se fez conduzir portanto natildeo agrave crenccedila ou agrave adesatildeo a alguma doutrina dada por outros ou formulada por si mesmo natildeo a uma certeza inviolaacutevel sagrada e em grande medida consoladora mas diferentemente a um constante e idiossincraacutetico ceticismo117 Esse ceticismo eacute lato isto eacute natildeo se filia e natildeo pode se filiar a nenhuma escola ou doutrina especifica Refere-se direciona-se sobretudo a um estado que de acordo com o texto em questatildeo adquire maior ou menor intensidade deduacutevida mdashcaracterizada menos como riacutegida descrenccedila e mais como simplesdesconfianccedilamdash frente a qualquer pensamento filosoacutefico que extrapole em demasia os limites legitimados pela experiecircncia frente a qualquer forma de metafiacutesica particularmente a qualquer forma de idealismo frente agrave universalidade e agrave veracidade dos problemas metafiacutesicos quando estes satildeo sobretudocompreendidos analisados por uma perspectiva puramente funcionalista puramente formal e linguumliacutestica a qual o poeta sempre buscou adotar laquoDesconfie sem cessarraquo118 (laquoMeacutefie-toi sans cesseraquo) Eis uma das inuacutemeras e poderosas divisas que toma para si escrevendo-a e afixando-a no seu quarto de estudante

O pensamento de Valeacutery quando contemplado pela perspectiva dessa desconfianccedila natildeo raro se aproxima do desafiador Pirronismo Claacutessico na medida em que sempre se ateacutem ao conceito de possibilidade que seraacute tatildeo bem encarnado pelas personagens Leonardo da Vince e principalmente Edmond Teste Pois natildeo adentra no paradoxal ceticismo dogmaacutetico que nega por princiacutepio qualquer possibilidade de se formular alguma verdade ou algum criteacuterio de verdade desde que entretanto essas possibilidades sejam proposiccedilotildees bem formuladas precisas Aproxima-se tambeacutem dos momentos ceacuteticos de Montaigne na medida em que mesmo assentando-se na eacutepoche na suspensatildeo do assentimento (conceito relativamente anaacutelogo e incluso ao de culto ao Iacutedolo do intelecto) e na busca por uma ataraxia por uma tranquumlilidade da alma (conceito relativamente anaacutelogo e incluso ao de eu puro) natildeo deixa de na dimensatildeo socialdo conviacutevio humano do senso-comum emitir juiacutezos de valor de referir-se a seus

117 Cf CHARNEY Hanna K Le scepticisme de Valeacutery Dider Paris 1969118 BERTHOLET Denis Paul Valeacutery - 1871-1945 Biographies Plon Paris 1995 pp 39 e 92

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gostos e desgostos aos seus caprichos as suas obsessotildees de ironizar de criticarde contestar de refutar de tomar partido de defender uma ideacuteia ao inveacutes de outra Comportamento esse que pode muito bem ser contemplado em seus ensaios sobre literatura e arte assim como em seus ensaios de poliacutetica

Todavia entre todas as vertentes da tradiccedilatildeo preacute-moderna a qual o pensamento de Valeacutery pode estar relativamente filiado ou elucidado a dos tatildeo excessivamente criticados antigos sofistas parece ser uma das mais recorrentes e confessas laquoO retoacuterico e o sofista sal da terraraquo anota o poeta laquoIdoacutelatras satildeo todos os outros que trocam as palavras pelas coisas e as frases pelos atosraquo119 A ceacutelebre maacutexima de Protaacutegoras mdashO homem eacute a medida de todas as coisas da existecircncia das coisas que satildeo e da natildeo-existecircncia das coisas que natildeo satildeo120mdash eacute uma divisa operante e amiuacutede citada direta ou indiretamente em seus escritos Todavia para atualizar essa maacutexima ao vocabulaacuterio valeacuteryano dir-se-ia agora que o eu eacute a mediada de todas as coisas ou mais exatamente o eu que sou eacute a medida de todas as coisas Pois o homem no que afirma e no que nega no que sente e no que natildeo sente estaacute circunscrito a sua esfera de percepccedilotildees e a sua esfera de pensamentos ao seu proacuteprio horizonte estaacute circunscrito a sua proacutepria perspectiva que em parte recebe do mundo exterior e em parte cria de acordo com suas proacuteprias categorias Se ele crecirc que o mundo eacute deste modo ou de outro se ele crecirc que sua crenccedila natildeo pode ser qualificada como crenccedila posto consideraacute-la uma verdade objetiva e universalmente vaacutelida uma cosmovisatildeo correta essa certeza em nadamuda o ldquofatordquo o insistente ldquofatordquo de que para o outro para ele a verdade alheia pode continuar sendo crenccedila ou um erro Dir-se-ia que eacute toda uma concepccedilatildeoldquoantropocecircntricardquo ou melhor ldquoegocecircntricardquo que eacute todo um ldquorelativismordquo ou melhor um ldquoperspectivismordquo o prisma atraveacutes do qual grande parte do pensamento de Valeacutery se estabelece E isso natildeo porque ele confere importacircnciaao homem ou a si mesmo mas ao contraacuterio justamente porque desconfia do ldquohumanismordquo porque sente uma certa ldquoindiferenccedilardquo um certo ldquodesprezordquo com relaccedilatildeo ao humano compreendendo este como uma soma de subjetividades quenatildeo raro obliteram a compreensatildeo do funcionamento do proacuteprio espiacuterito laquoNofundoraquo diz ele laquoaquilo que pode ser a raiz da minha incredulidade essencial substancial mdash eacute a ideacuteia ou o sentimento bastante depreciativo que eu tenho do homem a impossibilidade de dar a ele uma importacircncia metafiacutesicaraquo121 Em seu pensamento a noccedilatildeo geneacuterica de uma natureza humana a habitar os homens seus coraccedilotildees em todos as eras e geografias tornando-os substancialmente idecircnticoseacute algo a ser evitado por um pensamento que se quer livre inclusive de si mesmo

119 Œ2 p 619120 PLATO Theaetetus no 123 trad Harold North Fowler org Jeffrey Henderson Loeb Classical Library 152 A p 40-41121 C2rsquo p 610

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Displicentemente forjado numa tradiccedilatildeo laica de racionalismo empirismo e positivismo Valeacutery natildeo pode mais operar com o conceito de uma essecircncia perpeacutetua imutaacutevel imanente agraves coisas ao mundo e principalmente ao homem Homem que em suas matildeos esvaziou-se tornou-se puro devir pura linguagemEsfacelou-se Para o poeta jaacute natildeo haacute natildeo faz sentido haver mais a Verdade masapenas verdades jaacute natildeo haacute mais o Ser mas apenas seres

Dessarte a questatildeo fundamental do ldquoceticismordquo ou do ldquorelativismordquo de Valeacutery natildeo se refere agrave questatildeo da verdade ou da possibilidade ou natildeo de se alcanccedilar agrave verdade refere-se sobretudo agrave questatildeo do estatuto da crenccedila isto eacute da importacircncia e do valor da funccedilatildeo que esta adquire para o espiacuterito que crecirc ou descrecirc para o espiacuterito que a ela adere e ou dela se utiliza E o conceito de crenccedila eacute amiuacutede em seus escritos compreendido ou reduzido a tudo aquilo que estaacute numa primeira instacircncia aleacutem do que pode ser verificado ou corroborado pela experiecircncia logo posto em relativa oposiccedilatildeo ao conceito mesmo de saberCrenccedila eacute toda adesatildeo a uma conjetura a uma especulaccedilatildeo agravequilo que natildeo se comprova ou ainda natildeo foi comprovado laquoEu creio que noacutes natildeo podemos crer somente sem o saberraquo122 escreve Valeacutery um tanto taxativamente Estado natildeo muito distante do ldquosentimentordquo estado que talvez seja tatildeo-somente ldquosentimentordquo crer eacute portanto uma espeacutecie de excesso de exagero do espiacuterito que supostamente natildeo se contentando com a realidade fenomecircnica presente almeja por um futuro por um transcender e se inclina por esse transcender que pode ou natildeo se revelar posteriormente uma ilusatildeo na medida em que natildeo eacute suficientemente sustentado ou legitimado por nenhuma experiecircncia real nesse sentido eacute sempre laquouma concessatildeo mdash um estado provisoacuterioraquo123 laquoCrer natildeo eacute no fundo que sentirraquo124 A crenccedila assim compreendida eacute um estado que deve ser evitado

Haacute quanto a essa recusa uma poderosa e desconcertante maacutexima mdashamiuacutede citada entre tantas outras que cultivou e repetiumdash que sem pudor algum reza laquoFazer sem crerraquo125 (laquoFaire sans croireraquo) Essa maacutexima mdashquiccedilaacute outro modo de compreender o estado representado pelo conceito de eu puromdashpode ser explicada interpretada da seguinte forma Quatildeo difiacutecil eacute para o senso comum e mesmo para muitas filosofias crer que se possa agir sem crer crer que se possa agir sem ter esperanccedila ou medo que essa accedilatildeo resulte crer que se possa agir sem que haja um princiacutepio para accedilatildeo que remeta ao sujeito da proacutepria accedilatildeoPois supostamente dentro de um padratildeo psiacutequico relativamente corriqueiro a descrenccedila absoluta levaria como que naturalmente agrave paralisia absoluta da accedilatildeo

122 Π Folio 134123 Π Folio 75124 Π Texte 7 (VIII 428)125 Cf C1rsquo p 131

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do fazer Todavia para Valeacutery mdashassim como para grande parte dos ceacuteticos antigosmdash isso nem sempre ocorre E mais o contraacuterio se faz necessaacuterio Toda a accedilatildeo todo o fazer cumpre ser conduzida pelo mais puro desinteresse Agir fazerrequer desapego laquoQuem faz o bem por dever o faz mal e o faz sem arteraquo126 sentencia o poeta E eacute nessa sentido que o seu culto ao Iacutedolo do intelecto eacute um meacutetodo atraveacutes do qual o espiacuterito trabalha para se tornar um eu puro mas um meacutetodo que exclui a esperanccedila um meacutetodo que jaacute eacute meta Pois natildeo eacute necessaacuterio nada aleacutem do processo

Talvez seja por isso por todo esse modo de se comportar e por tantas

outras excecircntricas regras intelectuais aplicadas a si mesmo que agrave respeito dos

inuacutemeros qualificativos que foram consagrados ao poeta Edgar Degas tenha lhe

reservado um dos mais enigmaacuteticos e afetuosos mas tambeacutem um dos mais

precisos o pintor costumava chamaacute-lo de Senhor Anjo127 Encantado Valeacutery

aceita tal qualificativo e o interpreta obviamente natildeo como a designaccedilatildeo de um

mensageiro da vontade divina mas como a designaccedilatildeo de um estrangeiro um

estranho um solitaacuterio que em meio aos tortuosos e contraditoacuterios caminhos da

Modernidade vive a estudar o mundo e a si mesmo mas tambeacutem a constatar

como um Soacutecrates desencantado sua contiacutenua ignoracircncia laquoTudo o que eacute humano

me eacute estranhoraquo128 diz enigmaticamente quiccedilaacute evocando o seu espiacuterito

funcionalista Note-se que a figura do anjo eacute como na poesia de Rilke

relativamente recorrente na sua proacutepria E natildeo deixa de ser providencial que um

de seus uacuteltimos escritos um poema em prosa intitulado Lrsquoange de 1945 no qual

um anjo admirando todo este mundo humano de erracircncia e contradiccedilotildees finde

com esta poderosa frase laquoE durante uma eternidade ele natildeo cessou de conhecer e de natildeo

compreenderraquo129 (laquoEt pendant une eacuteteacuterniteacute il ne cessa de connaicirctre et de ne pas comprendreraquo)

126 C1rsquo 1973 p 620 127 C1rsquo p 131128 C2rsquo p 320129 Œ1 p 206

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2 PERSONAGENSESCOacuteLIOS

Hoje jaacute natildeo tenho personalidade quanto em mim haja de humano eu o dividi entre os autores vaacuterios de cuja obra tenho sido o executor Sou hoje o ponto de reuniatildeo de uma pequena humanidade soacute minha

Fernando Pessoa A gecircnese dos heterocircnimos

21 MODOS DE VIDA

Na Histoacuteria da Filosofia Ocidental o laborioso artifiacutecio da personificaccedilatildeo foi recorrentemente utilizado apesar de ser considerado por vezes um devaneio excessivo e arriscado supostamente prejudicial agrave universalidade almejada pelo pensamento racional Afinal como diz o proacuteprio poeta laquoA possibilidade de ser muitos eacute necessaacuteria agrave razatildeo mas eacute a desrazatildeo que a utilizaraquo130 Todavia os exemplos satildeo canocircnicos Mesmo antes do pleno desenvolvimento do poderoso conceito de indiviacuteduo Platatildeo em seus diaacutelogos transformou-se em dissonantes vozes e polemizou com seus contemporacircneos posteriormente Kierkegaard em suas imensas digressotildees em estranhos pseudocircnimos como Johannes Climacus e Anti-Climacus posteriormente Nietzsche na corrosiva poeacutetica de seus aforismos em um errante Zaratustra e em um alegre Dioniacutesio

Em certa consonacircncia com esses filoacutesofos Valeacutery tambeacutem natildeo deixou de brincar de ser outro de forjar suas maacutescaras e de propositadamente confundir-se com elas O seu programa de autoconsciecircncia e o fato de jamais abandonar por mais que ambiacutegua e ironicamente dissesse pretender o sempre fantasioso plano da literatura e da poesia o conduz a reinventar-se a multiplicar-se laquoEle conteacutemraquo confessa sobre si mesmo na sugestiva terceira pessoa do singular em um texto poacutestumo breve e autobiograacutefico intitulado Moi laquomuitos e diversos personagens e uma testemunha principal que observa todos esses fantoches se agitaremraquo131

Como William Butler Yeats e seu anti-eu132 como Ezdra Pound e suas personaelig133 como Fernando Pessoa na invenccedilatildeo de seus ceacutelebres e desconcertantes heterocircnimos134 como parte desta restrita Modernidade que arduamente se desencanta frente a uma religiatildeo predominante Valeacutery desconfia da unidade do sujeito daquele que amiuacutede diz saber com absoluta certeza e secreto orgulho o que pensa e o que deseja todavia natildeo ao ponto de dilaceraacute-lo sua preciosa e ideal unidade empiacuterica em valores e crenccedilas demasiadamente contraditoacuterios em doutrinas totalmente divergentes E se apesar de estrategicamente dizer (ou 130 C1rsquo p 407131 LQ p 22132 Cf YEATS W B Autobiographies Macmillian amp Co Ltda London Toronto 1961 amp A vision Papermac Pan Macmillian Publishers London Basingstone Hong Kong 1992133 Cf POUND Ezdra Personaelig - Collected shorter poems of Ezra Pound Faber and Faber Londres mcmlii 134 Cf PESSOA Fernando Os outros eus in Obras em prosa Em um volume Nova Aguilar Rio de Janeiro 1985

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justamente por isso) que seu laquoponto de vista filosoacutefico eacute a diversidade de pontos de vistaraquo135 ele diferentemente do plural poeta portuguecircs com quem tem tantas afinidades artiacutesticas principalmente no gosto pela dissimulaccedilatildeo natildeo se multiplica para ser literariamente outro mas para ser literalmente si mesmo laquoEu tenho o espiacuterito unitaacuterio em mil pedaccedilosraquo136 assim revela ou ainda mantendo certa relaccedilatildeo com a heranccedila cartesiana laquoEm suma eu sou uma transformaccedilatildeo que conserva uma certa probabilidade de mdash conservaccedilatildeoraquo137 Essa atitude natildeo deixa de estar tambeacutem relacionada agrave vontade ou agrave necessidade em praticar mesmo que diletantemente uma multiplicidade de outras atividades em adentrar um nuacutemero variado de registros para cumprir adequadamente aquilo que primeiramente se propotildee laquose o loacutegico nunca pudesse ser algo aleacutem de loacutegicoraquo diz laquoele natildeo seria e natildeo poderia ser loacutegico e que se o outro [o poeta] nunca fosse algo aleacutem de poeta sem a menor esperanccedila de abstrair e de raciocinar ele natildeo deixaraacute atraacutes de si qualquer traccedilo poeacutetico Penso muito sinceramente que se cada homem natildeo pudesse viver uma quantidade de outras vidas que natildeo a sua ele natildeo poderia viver a suaraquo138 laquoEu natildeo seria eu se eu natildeo pudesse ser um outroraquo139

Leonardo da Vinci e Edmond Teste satildeo as duas mais recorrentes e exemplares dessas personificaccedilotildees desses outros Extrapolando os limites dos escritos que foram inteiramente consagrados a esses homens imaginaacuterios estatildeo tambeacutem presentes em outras partes da obra de Valeacutery que frequumlentemente deles se serve como pretextos ou veiacuteculos para expressar algo diverso como siacutembolos Em diferentes circunstacircncias culturais e econocircmicas ambos representam variaccedilotildees possiacuteveis deste espiacuterito apoliacuteneo luacutecido predisposto a iluminar o todo do mundo e de si mesmo intelectualmente autaacuterquico a que o poeta buscou constantemente construir natildeo raro em oposiccedilatildeo agraves opressotildees da vida social Ambos satildeo postulados como aqueles que buscam agir independente das filosofias alheias independente do meio que os cercam e com um maacuteximo de atenccedilatildeo e controle sobre suas proacuteprias atividades sejam estas meramente psiacutequicas ou fiacutesicas encarnam e sintetizam assim o proacuteprio programa de autoconsciecircncia de Valeacutery mas em perspectivas distintas o primeiro numa miacutetica Renascenccedila eacute a potencialidade que se transforma em ato pois trabalha a si mesmo atraveacutes dos mecanismos do mundo exterior o uacuteltimo numa miacutetica Modernidade a potencialidade que permanece potencialidade pois trabalha a si mesmo atraveacutes dos mecanismos do mundo interior Natildeo satildeo opostos um eacute quiccedilaacute a exacerbaccedilatildeo do outro a sua continuidade o seu desdobramento ao extremo

135 C1rsquo p 494136 C1rsquo p 26137 C1rsquo p 1022138 Œ1 p 1320139 C2rsquo p 285

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numa realidade tambeacutem mais extrema porque mais fragmentada e menos propiacutecia agraves obras que exigem o labor virtualmente infinito labor segundo Valeacutery necessaacuterio ao desenvolvimento espiritual mas notadamente desvalorizado na pragmaacutetica sociedade moderna que seduzida pelas facilidades teacutecnicas e regida por uma feacuterrica administraccedilatildeo frequumlentemente exige um fim artificial e um resultado objetivo e rentaacutevel a todo trabalho humano

Como graves antagonistas dessa intransigente realidade Leonardo e Teste personificam sobretudo e respectivamente mdashmas nunca de modo a isto se reduziremmdash um dos dois principais conceitos mediante os quais a consciecircncia restringe-se em operar se soacutei torna-se autoconsciecircncia se soacutei compreender a si mesmo o seu funcionamento ldquoo fazerrdquo e ldquoo possiacutevelrdquo Ambos podem ser enquadrados portanto natildeo apenas na categoria de personagens literaacuterias mas tambeacutem na de personagens conceituais140 na medida em que expressam ou encarnam explicitamente questotildees ditas filosoacuteficas em escrituras que procuram eliminar o recurso da narrativa do reacutecit Condensando em breves espaccedilos textuais uma enorme variedade de discursos ocultos de subentendidos esse procedimento eacute bastante eficaz para desconstruir para matizar ou relativizar a pretensatildeo de validade universal de determinadas doutrinas relativamente dominantes Ao inveacutes de descrever abstratamente uma eacutetica ou uma esteacutetica descreve-se concretamente um indiviacuteduo imaginaacuterio que cumpre ou negue total ou parcialmente essa eacutetica ou essa esteacutetica iluminando assim as ldquovirtudesrdquo e os ldquodefeitosrdquo destas e consequumlentemente o simples e natildeo raro escamoteado fato de que nem todos aderem aos mesmos valores e crenccedilas de que nem todos operam com os mesmos conceitos e a mesma loacutegica Logo um personagem conceitual expressa sobretudo um modo de vida um modo de vida possiacutevel entre tantos e tatildeo diversos outros uma alteridade No caso de Valeacutery natildeo satildeo naturalmente tipos-ideais a representar determinadas classes ou grupos sociais a que se quer estudar louvar ou depreciar mas singularidades a representar indiviacuteduos 140 Uma postulaccedilatildeo mais dramaacutetica dessa expressatildeo encontra-se em Gilles Deleuze autor do conceito segundo o qual os personagens conceituais (personnages conceptuels) laquosatildeo os ldquoheterocircnimosrdquo do filoacutesofo e o nome do filoacutesofo o simples pseudocircnimo de seus personagens Eu natildeo sou mais eu mas aptidatildeo do pensamento para se ver e se desenvolver atraveacutes de um plano que me atravessa em vaacuterios lugares O personagem conceitual nada tem a ver com uma personificaccedilatildeo abstrata um siacutembolo ou uma alegoria pois ele vive ele insiste O filoacutesofo eacute a idiossincrasia de seus personagens conceituais E o destino do filoacutesofo eacute de transformar-se em seu ou seus personagens conceituais ao mesmo tempo em que esses personagens se tornam eles mesmos coisa diferente do que satildeo historicamente mitologicamente comumente [] O personagem conceitual eacute o devir e o sujeito de uma filosofia [] Os atos de fala na vida comum remetem a tipos psicossociais que testemunham de fato uma terceira pessoa subjacente eu decreto a mobilizaccedilatildeo enquanto presidente da repuacuteblica eu te falo enquanto pai Igualmente o decircictico [decircitico] filosoacutefico eacute um ato de fala em terceira pessoa em que eacute sempre um personagem conceitual que diz Eu [] Na enunciaccedilatildeo filosoacutefica natildeo se faz algo dizendo-o mas faz-se o movimento pensando-o por intermeacutedio de um personagem conceitual Assim os personagens conceituais satildeo verdadeiros agente de enunciaccedilatildeo Quem eacute eu eacute sempre uma terceira pessoaraquo (DELEUZE Gilles amp GUATTARI Feacutelix O que eacute a filosofia trad Bento Prado Jr amp Alberto Alonzo Muntildeos Editora 34 Rio de Janeiro 2000 pp 86-87)

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distintos e excecircntricos cujos comportamentos contrastam com o ditado pelo senso comum Atraveacutes de seus personagens conceituais o poeta expotildee natildeo apenas a sua proacutepria dissonacircncia com relaccedilatildeo ao mundo mas tambeacutem a sua recusa em natildeo se sujeitar a esse mundo imaginando e descrevendo a si mesmo mas a si mesmo num grau mais potencializado mais evoluiacutedo explorando ao maacuteximo o limite das suas proacuteprias idiossincrasias e propoacutesitos Ele os considera seus ldquoalter egosrdquo seus ldquoalter egosrdquo futuros um outro eu para o amanhatilde A rara arte em imaginaacute-los e em descrevecirc-los eacute sobretudo a rara arte em forjar natildeo para os outros mas para si mesmo determinados modelos de perfeiccedilatildeo de pureza

Leonardo e Teste podem ser compreendidos como seres a quem se almeja imitar modos de vida a serem mdashse natildeo de modo literal ao menos heuristicamentemdash realizados141 Correspondem a uma meta a um projeto de vir-a-ser a um destino possiacutevel a ser cumprido por aquele que os constroacutei Em outros tempos e lugares o magro e obstinado asceta buscava integrar-se ao seu inefaacutevel e poderoso avatar todavia no pensamento eliacuteptico do poeta o asceta e o avatar se transformam naquilo que desde sempre satildeo na mesma pessoa142

211 LEONARDO DA VINCE

Ao se evocar um nome ceacutelebre repetidamente surge uma seacuterie de qualificativos que podem ser usados para raacutepida e sinteticamente descrevecirc-lo qualificaacute-lo ou desqualificaacute-lo Diz-se este foi filoacutesofo pois filosofou aquele artista pois criou obras de arte O indiviacuteduo eacute assim reduzido agrave atividade na qual mais se exercitou e pela qual mais admiraccedilatildeo ou repulsa causou mesmo que natildeo tenha com ela se identificado mesmo que tenha praticado inuacutemeras outras Tal procedimento eacute frequumlente quiccedilaacute seja de um pragmatismo didaacutetico uacutetil para aquietar num primeiro momento a consciecircncia que deseja julgar rapidamente Mas o autor nunca deixa de ser uma idealizaccedilatildeo posterior agrave obra uma construccedilatildeo realizada por leitores e comentadores por editores por todos aqueles que possuem voz e se fazem ouvir os que verdadeiramente definem a estatuto do texto na tradiccedilatildeo A pessoa por detraacutes de um nome nunca eacute completamente atingida talvez nem mesmo por aqueles que a conheceram pessoalmente e sua imagem sempre varia no transcorrer da histoacuteria

Oportunamente Valeacutery iluminava esse jogo laquoDa obra natildeo se pode jamais remontar um verdadeiro autorraquo escreve laquoMas um autor fictiacutecioraquo143 laquoNatildeo se pode jamais concluir da obra um autor mdash mas da obra uma maacutescara mdash e da

141 STAROBISNKI Jean laquoSoy reaccioacuten a lo que soyraquo (Paul Valeacutery) in Accioacuten y reaccioacuten - Vida y aventuras de una pareja trad Eliane Casenave Tapieacute Isoard Fondo de Cultura Econoacutemica Meacutexico 2001142 Cf LUSSY Florence de Introduction in CL p 21143 C2rsquo p 1194

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maacutescara uma maacutequinaraquo144 Numa perspectiva puramente positiva soacute se conclui apenas uma seacuterie de procedimentos a engenhosidade natildeo o engenheiro As obras laquosatildeo sempre falsificaccedilotildees arranjosraquo reitera laquonunca sendo o autor felizmente o homem A vida deste natildeo eacute a vida daquele acumulem todos os detalhes que puderem sobre a vida de Racine natildeo tiraratildeo dele a arte de fazer seus versos Toda criacutetica estaacute dominada por esse princiacutepio superado o homem eacute a causa da obra mdash assim como o criminoso aos olhos da lei eacute a causa do crime Eles satildeo antes o seu efeito Mas esse princiacutepio pragmaacutetico alivia o juiz e a criacutetica a biografia eacute mais simples do que a anaacutelise [] A verdadeira vida de um homem sempre mal definida mesmo para seu vizinho mesmo para si mesmo natildeo pode ser utilizada numa explicaccedilatildeo de suas obras a natildeo ser que seja indiretamente e mediante uma elaboraccedilatildeo muito cuidadosaraquo145 laquoA vida do autor natildeo eacute a vida do homem que ele eacuteraquo146 Naturalmente natildeo eacute porque assim seja que Valeacutery se privou de escrever retratos a fabulosa ideacuteia de uma literatura despersonalizada feita apenas de tiacutetulos de obras e sem que nome algum seja referido ele que a intuiu natildeo a cumpre Contudo haacute que se ter consciecircncia de que todo exerciacutecio criacutetico natildeo deixa de ser tambeacutem um exerciacutecio literaacuterio Nada impede que um autor (como qualquer personagem histoacuterica) seja tratado natildeo como uma realidade mas como uma espeacutecie de ficccedilatildeo como uma personagem pertencente a esta literatura chamada Histoacuteria da Literatura a esta filosofia chamada Histoacuteria da Filosofia O interesse a afinidade eletiva o apreccedilo ou o desprezo o fetiche pela suposta personalidade do artista e por sua obra eacute transformado em um princiacutepio de criaccedilatildeo Que diferenccedila haacute entre um autor imaginaacuterio e um autor real quando eacute o pensamento mdashpara aleacutem da concretude do seu portadormdash o que verdadeiramente importa Dessa maneira quando escreve sobre um outro autor e uma outra obra Valeacutery pouco explicita aquilo que pertence ao seu pensamento daquilo que pertence ao alheio Haacute natildeo raro uma iacutentima fusatildeo entre sujeito e objeto em seus escritos justificada pela moderna concepccedilatildeo de que como qualquer escritor o criacutetico ao criticar tambeacutem se revela tambeacutem critica a si mesmo e a proacutepria criacutetica que faz O inteacuterprete ao interpretar interpreta-se O outro eacute um atalho para se chegar a si mesmo laquoPensamos o que ele pensou e podemos reencontrar entre suas obras esse pensamento que lhe eacute dado por noacutes podemos refazer esse pensamento a imagem do nossoraquo147

Valeacutery raramente permanece portanto no seguro e cocircmodo limite das hipoacuteteses Ultrapassando o territoacuterio onde estas satildeo passiacuteveis de serem comprovadas ou refutadas lanccedilava-se a conjeturas Natildeo praticava somente a

144 Œ2 p 581145 Œ1 pp 1230-1231146 Œ1 p 1230147 Œ1 p 1153

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interpretaccedilatildeo mas sobretudo a invenccedilatildeo148 Pouco lhe interessava o que um criador quis ou natildeo verdadeiramente dizer com o que criou antes entregava-se a descrever o que tal criaccedilatildeo suscita agrave consciecircncia que o estuda A criacutetica por ele praticada era baseada em suas proacuteprias intenccedilotildees como pensador afim portanto ao modo como Baudelaire a compreendia como tarefa subjetiva e semioacutetica que implica em criaccedilatildeo e natildeo em neutralidade laquoEu creio sinceramenteraquo dizia o poeta das Les fleurs du mal laquoque a melhor criacutetica eacute a que eacute divertida e poeacutetica natildeo aquela fria e algeacutebrica que com o pretexto de tudo explicar natildeo sente nem oacutedio nem amor e se despoja voluntariamente de qualquer espeacutecie de temperamento [] [] a melhor anaacutelise de um quadro poderaacute ser um soneto ou uma elegia [] para ser justa isto eacute para ter sua razatildeo de ser a criacutetica deve ser parcial apaixonada poliacutetica isto eacute feita a partir de um ponto de vista que abra o maior nuacutemero de horizontesraquo149

O exemplo mais contundente e mais excessivo de todo esse ousado e polecircmico procedimento exegeacutetico mdashpoder-se-ia ainda evocar os diversos estudos dedicados a Descartes Mallarmeacute e Degas pois Valeacutery tambeacutem fez desses outros ldquoheroacuteis do espiacuteritordquo um espelho para o seu pensamento todavia em menor grau quiccedilaacute pela iacutentima proximidade biograacutefica que o unia aos dois uacuteltimos e pela secura filosoacutefica do primeiro pouco dado agraves questotildees da linguagem e da artemdash encontra-se principalmente nos escritos dedicados agrave emblemaacutetica e misteriosa figura de Leonardo cujos famosos e idiossincraacuteticos manuscritos e desenhos o poeta teve a oportunidade de estudaacute-los na Biblioteca Nacional jaacute

148 Essa praacutetica interpretativa na qual ldquotudo ou quase tudo eacute vaacutelidordquo na criacutetica literaacuteria e de artes foi denominada de laquoniilismo hermenecircuticoraquo em claro tom de ressalva por Gadamer (GADAMER Hans-Georg Verdade e meacutetodo - Traccedilos fundamentais de uma hermenecircutica filosoacutefica trad Flaacutevio Paulo Meurer nova revisatildeo da trad Enio Paulo Giachini Vozes amp Editora Universitaacuteria Satildeo Francisco Petroacutepolis amp Braganccedila Paulista 2004 p 146) Em seu ensaio sobre poeacutetica Au sujet du lsquoCeacutemitiegravere Marinrsquo no qual discute uma aula e as explicaccedilotildees dadas sobre o seu poema em questatildeo Valeacutery formula a ceacutelebre justificaccedilatildeo dessa praacutetica para ele sempre pessoal mas haacute que se dizer ele a formula referindo-se muito mais agrave interpretaccedilatildeo de poesia (na perspectiva da poesia pura) do que a de prosa laquoQuanto agrave interpretaccedilatildeo da letra []raquo escreve laquonatildeo haacute sentido verdadeiro de um texto [il nrsquoy a pas de vrai sens drsquoum texte] Natildeo haacute autoridade do autor Seja o que for que tenha pretendido dizer escreveu o que escreveu Uma vez publicado um texto eacute como uma maacutequina que qualquer um pode usar agrave sua vontade e de acordo com seus meios natildeo eacute evidente que o construtor a use melhor que os outros Do resto se ele conhece bem o que quis fazer esse conhecimento sempre perturba nele a perfeiccedilatildeo daquilo que fezraquo (Œ1 p 1507) Cite-se tambeacutem o debate sobre os limites da interpretaccedilatildeo no qual Umberto Eco evoca uma clara distinccedilatildeo que permeia o senso comum entre interpretaccedilatildeo (o que uma obra legitimaria que dela seja dito) e uso (o que uma obra natildeo legitimaria que dela seja dita) (Cf ECO Umberto Lector in fabula - A cooperaccedilatildeo interpretativa nos textos narrativos trad Attiacutelio Cancian Estudos Perspectiva Satildeo Paulo 2004 pp 43-44) Usando a terminologia do semioacutetico italiano eacute certamente mais um uso do que uma interpretaccedilatildeo aquilo que Valeacutery faz de Leonardo da obra deste assim como tambeacutem em muitos outros escritos de criacutetica mas eacute justamente isso que o poeta conscientemente se propotildee fazer para ele o registro da leitura de uma obra deve ser tambeacutem uma outra obra149 BAUDELAIRE Charles Salatildeo de 1846 in Poesia e prosa vol uacutenico org Ivo Barroso trad Cleone Augusto Rodrigues Joana Angeacutelica DrsquoAacutevila Melo Marcella Mortara Pliacutenio Augusto Coelho amp Suely Cassal Nova Aguilar Rio de Janeiro 2002 p 673

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em 1891150 Sem reserva alguma quanto a possiacuteveis criacuteticas a exigir uma fidelidade historiograacutefica ele que natildeo cessa de referir-se aos seus proacuteprios procedimentos assim confessa laquonatildeo encontrei coisa melhor eu atribuir ao desafortunado Leonardo minhas proacuteprias agitaccedilotildees transportando a desordem de meu espiacuterito para a complexidade do seu Infligi-lhe todos os meus desejos a tiacutetulo de coisas possuiacutedas Atribuiacute-lhe muitas das dificuldades que me acossavam naquele tempo como se ele as houvesse encontrado e superado Transformei meus embaraccedilos no seu poder suposto Ousei considerar-me sob seu nome e utilizar sob minha pessoa Isso era falso mas vivo No final das contas natildeo deve um jovem curioso de mil coisas parecer bastante com um homem da Renascenccedilaraquo151

Os artigos Leacuteonard de Vinci e Lrsquoœuvre eacutecritte de Leacuteonard de Vinci152 determinadas passagens dos Cahiers a trilogia de ensaios Introduction agrave la meacutethode de Leonard de Vinci Note et digression e principalmente Leacuteonard et les philosophes - Lettre agrave Leacuteo Ferrero satildeo apesar de breves virtuoses escritos compostos por longas digressotildees atraveacutes dos quais Valeacutery buscou desde os 23 anos e por mais de trecircs deacutecadas de desenvolvimento a construccedilatildeo de uma personagem que fosse a encarnaccedilatildeo mais perfeita do laquohomem completoraquo153 (laquohomme completraquo) ou para usar uma expressatildeo mais conhecida do espiacuterito universal com o qual sempresonhou construir todavia nunca realmente terminou e isso a tal ponto que mdashcioso tanto da imagem do livro quanto da imagem que um texto adquire na paacutegina a ser lida no livromdash lateralmente ao corpo central desses seus trecircs principais escritos sobre Leonardo ele acrescentou em publicaccedilotildees posteriores muitas notas laterais aforismos e fragmentos que desenvolvem e por vezes criticam determinadas ideacuteias suas anteriormente expressas

laquoNa realidade denominei homem e Leonardo o que me surgia entatildeo como o poder do espiacuteritoraquo154 laquoO meu propoacutesitoraquo assim expotildee Valeacutery numa ceacutelebrepassagem laquoeacute imaginar um homem de quem teriam aparecido accedilotildees tatildeo distintas que se eu vier a lhes atribuir um pensamento natildeo existiraacute outro de maior extensatildeo E pretendo que ele tenha da diferenccedila das coisas um sentimento infinitamente vivo [grifo do autor] cujas aventuras poderiacuteamos muito bem chamar de anaacutelise Vejo que tudo o orienta eacute no universo que ele pensa e no rigor Ele eacute feito para natildeo esquecer nada do que entra na confusatildeo do que eacute nenhum arbusto Desce agrave profundeza do que pertence a todo mundo afasta- 150 Numa carta a Gustave Fourmet Valeacutery escreve laquoOntem eu fui bem sucedido ao me introduzir na Biblioteca [Nacional] sem carteira Eu folheei os manuscritos de da Vice Albert Duumlrer e Mallarmeacuteraquo(Cf CVF p 122) Cf BERTHOLET Denis Paul Valeacutery - 1871-1945 Plon Biographies Paris 1995 p 81151 Œ1 p 1232152 Cf V pp 217-227153 Cf Œ1 p 1011154 Œ1 p 1155

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se dele e se olha Atinge os haacutebitos e as estruturas naturais trabalha-os por todos os lados e acontece-lhe ser o uacutenico que constroacutei enumera emociona Deixa de peacute igrejas fortalezas executa ornamentos cheios de doccedilura e de grandeza mil engenhos e as figuraccedilotildees rigorosas de muitas pesquisas Abandona os destroccedilos de natildeo sei que grandes jogos Nesses passatempos que se misturam agrave sua ciecircncia a qual natildeo se distingue de uma paixatildeo tem o encanto de parecer que estaacute sempre pensando em outra coisaraquo155 laquoVia neleraquo posteriormente historia com maior poder de siacutentese laquoa personagem principal dessa Comeacutedia Intelectual [laquoComeacutedie Intellectuelleraquo] que ateacute agora natildeo encontrou o seu poeta e que seria para meu gosto muito mais preciosa do que A comeacutedia humana e ateacute do que A divina comeacutedia Sentia que esse senhor dos seus meios esse possuidor do desenho das imagens do caacutelculo havia encontrado a atitude central [grifo do autor] a partir da qual as empresas do conhecimento e as operaccedilotildees da arte satildeo igualmente possiacuteveis as trocas felizes entre as anaacutelises e os atos singularmente provaacuteveis pensamento maravilhosamente excitanteraquo156

Para que a construccedilatildeo desse espiacuterito universal assim se realize Valeacutery prefere naturalmente ater-se natildeo agrave pessoa de Leonardo agrave qual as biografias tentam dar conta de modo sempre incompleto laquoO que eacute mais verdadeiro a cerca de um indiviacuteduo e mais Ele Mesmoraquo sentencia laquoeacute seu possiacutevel mdash que sua histoacuteria resgata apenas de maneira incerta O que lhe acontece pode natildeo inferir daiacute o que ele ignora de si mesmo Um sino que nunca foi tocado natildeo libera o som fundamental que seria o seu Por isso eacute que minha tentativa foi antes conceber agrave minha maneira o Possiacutevel de um Leonardo que o Leonardo da Histoacuteriaraquo157

laquoAmava nas minhas trevas a lei iacutentima desse grande Leonardo Natildeo queria sua histoacuteria nem apenas produccedilotildees de seu pensamento Dessa fronte carregada de coroas sonhava somente com a amecircndoaraquo158

Avesso ao registro das filigranas da vida cotidiana Valeacutery nunca pretendeu atuar como historiador praacutetica agrave qual concebia ser mais uma construccedilatildeo subjetiva do que objetiva nunca pretendeu portanto referir-se agrave concepccedilatildeo de um homem tiacutepico do Renascimento Tal concepccedilatildeo eacute apesar de ainda hoje vulgarmente difundida e aceita ao menos fora das academias algo que tende a falsear em muito a imagem de um determinado periacuteodo histoacuterico de um determinado recorte convencional de um passado em grande medida tambeacutem convencional Leonardo natildeo era o homem tiacutepico da Renascenccedila assim como Platatildeo natildeo era o homem tiacutepico da Antiguidade Claacutessica assim como Valeacutery mdashque sempre desconfiou das riacutegidas periodizaccedilotildees e do culto de personalidades

155 Œ1 p 1155156 Œ1 p 1201157 Œ1 pp 1203-1204158 Œ1 p 1204

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histoacutericas apesar de ter se servido desses procedimentos meramente como ficccedilotildees uacuteteismdash natildeo era o homem tiacutepico da Modernidade Pois esses homens todos natildeo representam uma maioria antes a exceccedilatildeo do que a regra eles satildeo mdashe eacute justamente esta interpretaccedilatildeo a qual o poeta trabalhamdash determinadas possibilidades de ser numa determinada eacutepoca com todos as facilidades e dificuldades que esta lhes impotildee

O excecircntrico propoacutesito de Valeacutery nunca deixou de ser afinal uma variaccedilatildeo da sua proacutepria idiossincrasia Almejava contemplar inventar em Leonardo no espiacuterito universal a laquoatitude centralraquo um meacutetodo E meacutetodo mdashtermo cartesiano e que entatildeo ficaraacute ligado agrave imagem do poetamdash representa natildeo os procedimentos das ciecircncias ou das artes particulares mas algo mais abrangente e vital um caminho como filologicamente foi estabelecido um modo de se relacionar de comungar com o mundo real atraveacutes de um pensamento extremamente praacutetico que se exterioriza em projetos que possam transformar o mundo e ao projetartransformar a si mesmo159 A incessante busca em tornar-se senhor de seus proacuteprios processos intelectuais de si mesmo enfim o programa de autoconsciecircnciavaleacuteryano desenvolve-se com o advento de um Leonardo imaginaacuterio atraveacutes da accedilatildeo do fazer

2111 O FAZER

Sonho algum encobre-lhe as proacuteprias coisas subentendido algum traz-lhe certezas e natildeo lecirc seu destino em alguma imagem favorita como o abismo de Pascal [Leonardo] Natildeo lutou contra os monstros descobriu seus mecanismos desarmou-os pela atenccedilatildeo e os reduziu agrave condiccedilatildeo de coisas conhecidas () faz o que quer passa agrave vontade do conhecimento agrave vida com uma elegacircncia superior Nada fez onde natildeo soubesse o que fazia e a operaccedilatildeo da arte como o ato de respirar ou de viver natildeo ultrapassa seu conhecimento Encontrou a ldquoatitude centralrdquo a partir da qual eacute igualmente possiacutevel conhecer agir e criar porque a accedilatildeo e a vida tornada exerciacutecios natildeo satildeo contraacuterias ao desinteresse do entendimento Eacute um ldquopoder intelectualrdquo o ldquohomem do espiacuteritordquo

Maurice Marleau-Ponty A duacutevida de Ceacutezanne

O enigmaacutetico inventor que escrevia ao inverso encarnou o projeto de Valeacutery em construir um espiacuterito universal com espantosa providecircncia Haacute como que uma filiaccedilatildeo entre o habitual modo de proceder do artista e o do poeta o primeiro tanto por sua misteriosa recusa em ater-se agrave religiatildeo e agrave metafiacutesica como por seuinteresse pela natureza e pelos sentidos que a captam prefigura a Modernidade mas natildeo a cumpre o uacuteltimo a cumpre mas a critica no que ele tem de mais brutal o aprisionamento do indiviacuteduo constrangido a resultar em algo fixo e determinado Ambos satildeo incapazes da completude do acabamento e soacute podem se expressar atraveacutes de rupturas e de digressotildees de saltos e de desvios de fragmentos ambos sofriam de uma abundante criatividade maior que o tempo

159 Cf MACKAY Agnes Ethel The universal self - A study of Paul Valeacutery University of Toronto Press Toronto 1961 especialmente pp 76-82

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de vida que tinham para concretizaacute-la Acidentes e convenccedilotildees os prazos eram apenas as datas do provisoacuterio abandono de suas obras estavam como que condenados a tudo pensar e nada concluir Talvez sustentassem exigecircncias que superavam a capacidade humana de cumpri-las Daiacute os manuscritos de ambos apresentarem semelhanccedilas expliacutecitas e o poeta ser o ldquoplagiadorrdquo consciente do artista Os escritos e os esboccedilos mais do que as escassas pinturas e esculturas ainda fragilmente preservadas de Leonardo fantasias que pareciam se mostrarem suas gecircneses e intenccedilotildees fascinam Valeacutery porque este estava confessadamente mais interessado no formalismo dos meacutetodos do que no conteuacutedo das metas no contiacutenuo dos processos laquoDesses milhares de notas e de desenhosraquo explicita num trecho que pode ser compreendido como uma descriccedilatildeo de seus proacuteprios Cahiers laquoeu guardava impressotildees extraordinaacuterias de um conjunto alucinante de fagulhas arrancadas pelos golpes mais diversos de alguma fantaacutestica fabricaccedilatildeo Maacuteximas receitas conselhos a si mesmo tentativas de um raciociacutenio que se retoma agraves vezes uma descriccedilatildeo acabada outras vezes fala a si mesmo e se tuteiaraquo160 Contudo esse Leonardo natildeo se caracteriza apenas por esse aspecto formal tampouco apenas pela celebrada versatilidade e facilidade na praacutetica de muitas aacutereas da ciecircncia e da teacutecnica pela polivalecircncia161 muito menos pela vasta erudiccedilatildeo agrave qual do abuso do excesso Valeacutery cuja obra evita citaccedilotildees e referecircncias era notoacuterio criacutetico laquoTento dar uma visatildeo sobre o detalhe de uma vida intelectualraquo escreve laquouma sugestatildeo dos meacutetodos que qualquer criaccedilatildeo implica uma escolhida entre a multidatildeo de coisas imaginaacuterias modelo que adivinhamos grosseiro mas de qualquer forma preferiacutevel agraves sequumlecircncias de anedotas duvidosas aos comentaacuterios dos cataacutelogos de coleccedilotildees agraves datas Tal erudiccedilatildeo soacute iria falsear a intenccedilatildeo totalmente hipoteacutetica deste ensaio [Introduction agrave la meacutethode de Leonard de Vinci]raquo162

O que assim se torna mais relevante eacute principalmente o meacutetodo como o artista exerce todas as inuacutemeras atividades agraves quais se propotildee natildeo desvinculando natildeo separando de todo de modo absoluto mdashtal qual estados ou momentos completamente autocircnomos ou intercambiaacuteveismdash o pensamento simboacutelico e o pensamento conceitual a imaginaccedilatildeo e a razatildeo como frequumlentemente ocorre nas filosofias ou metafiacutesicas racionalistas em muito justamente fundamentadas por essas inuacutemeras separaccedilotildees Porque o pensamento simboacutelico e o pensamento conceitual a imaginaccedilatildeo e a razatildeo talvez sejam apenas plenamente distinguiacuteveis plenamente separaacuteveis no acircmbito do discurso e natildeo no acircmbito da realidade Quiccedilaacute para o espiacuterito para a consciecircncia empiacuterica mdashna qual o proacuteprio pensamento ocorre de modo constante fluido passando rapidamente de um 160 Œ1 p 1202161 V p 219162 Œ1 p 1156

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signo a outro atraveacutes de uma fusatildeo de contiguumlidades e analogiasmdash todas as faculdades mentais sejam necessaacuterias umas agraves outras imanentes umas agraves outrascada uma delas isoladamente natildeo existiria A distinccedilatildeo entre o simbolizar e o conceituar entre o imaginar e o raciocinar soacute pode ocorrer portanto mediante um determinado didatismo ou artificialismo mediante uma convenccedilatildeoConvenccedilatildeo que se tornou ao menos ateacute determinadas filosofias romacircnticas como as de um Schelling e um Novalis dogmaticamente excessiva e acompanhada de uma quase inevitaacutevel valoraccedilatildeo hieraacuterquica do conceito sobre a

imagem da razatildeo sobre a imaginaccedilatildeo ou indo mais longe do loacutegos (λόγος) sobre

o mito (μύθος) Desde a criacutetica de Xenoacutefanes e Platatildeo aos antropomoacuterficos e

destemperados deuses gregos essas distinccedilotildees todas se acentuam com maior ou menor intensidade sobretudo com o advento do Iluminismo quando entatildeo se almeja a construccedilatildeo de um pensar plenamente racional infaliacutevel universalmente correto ou verdadeiro

Mas o Leonardo valeacuteryano em suas accedilotildees ou no resultado de suas accedilotildees parece simplesmente desconsiderar ou desconhecer o problemaacutetico dualismodessas distinccedilotildees laquoUsando indiferentemente do desenho do caacutelculo da definiccedilatildeo ou da descriccedilatildeo pela linguagem a mais exata ele parece ignorar as distinccedilotildees didaacuteticas que noacutes colocamos entre as ciecircncias e as artes entre a teoria e a praacutetica a anaacutelise e a siacutentese a loacutegica e a analogia distinccedilotildees essas todas exteriores que natildeo existem na atividade iacutentima do espiacuterito quando ele ardentemente se liberta para a produccedilatildeo do conhecimento que ele deseja [] [] Criar construir eram para ele indivisiacuteveis do conhecer e do compreenderraquo163 Comportando-se como cientista ou engenheiro multiplicando seus estudos de oacutetica e anatomia simplesmente para pintar um uacutenico quadro164 uma uacutenica folha ou flor o artista assim natildeo separa a dimensatildeo da arte da dimensatildeo do saber E se a convencional e riacutegida divisatildeo entre ambas as praacuteticas fez-se outrora como hoje necessaacuteria ao desenvolvimento da proacutepria Ciecircncia Moderna isso natildeo implica que natildeo possam ser derivadas de uma mesma fonte e compreendidas como formas de linguagem sistemas de signos com fundamentos comuns mas com funccedilotildees sociais relativamente especiacuteficas Ao posicionar-se sempre nessa compreensatildeo eminentemente semioacutetica do mundo o Leonardo valeacuteryano jamais se submete agravequilo que posteriormente iraacute ser com justa insistecircncia denominado e criticado de logocentrismo165 Seja porque atua num periacuteodo histoacuterico no qual magia e ciecircncia alquimia e quiacutemica astrologia e astronomia ainda se confundiam seja porque sinta a natureza de uma outra

163 V pp 218-219164 Cf C1rsquo p 358165 Cf DERRIDA Jaques Qual quelle - Les sources de Valeacutery in Marges de la philosophie Minuit Paris 1972

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forma de modo mais holiacutestico ele demonstra ter a singular consciecircncia de que nem todo o conhecimento eacute ou precisa ser exclusiva e necessariamente logoteoacuterico fundamentado na suposta supremacia do pensamento racional consciecircncia de que a linguagem verbal a liacutengua natildeo eacute a uacutenica e exclusiva expressatildeo das interpretaccedilotildees e das crenccedilas das cosmovisotildees que as pessoas fazem da realidade consciecircncia que todo o artificialmente produzido do alfinete agrave cidade do poema agrave teoria pode ser compreendido como exteriorizaccedilatildeo de um pensamento que se faz representar na particularizaccedilatildeo de atividades as mais variadas Pois a poesia a danccedila a muacutesica a cenografia a ornamentaccedilatildeo o desenho a pintura a escultura a arquitetura a urbaniacutestica a engenharia a ciecircncia todas essas e tantas outras atividades tambeacutem satildeo usadas para transmitir interpretaccedilotildees e crenccedilas cosmovisotildees sejam estas coletivas ou individuais e cujos efeitos na mentalidade alheia satildeo efetivos muitas vezes tatildeo ou mais efetivos quanto o comunicar atraveacutes da linguagem verbal da liacutengua

Uma das principais ldquovantagensrdquo mdasha expressatildeo natildeo eacute a mais adequada mas de algum modo exprime a intenccedilatildeo aqui preteridamdash de Leonardo sobre os Filoacutesofos mdashe Valeacutery compraz-se em comparaacute-los e assim criticar a proacutepria filosofiamdash eacute simplesmente esta natildeo se limitar natildeo limitar o pensamento natildeo condicionaacute-lo apenas agrave expressatildeo pela proacutepria linguagem verbal pela liacutengua falada ou escrita Enquanto os uacuteltimos costumam proceder desse modo seja pela crenccedila na sacralidade ou no caraacuteter civilizador da palavra seja pela precisatildeo e abrangecircncia que esta supostamente concede o primeiro quiccedilaacute nunca satisfeito com o que pode expressar com o que pode realizar pensa e almeja a transmissatildeo do pensamento atraveacutes de inuacutemeras outras formas como se devesse explodir estilhaccedilar-se por todos os lados

Eis portanto o espiacuterito do Leonardo valeacuteryano essa vontade demanifestar-se atraveacutes de todas as linguagens disponiacuteveis em sua eacutepoca e em seu meio sendo capaz de conjeturar e inventar outras se assim for necessaacuterio essa vontade de manifestar-se atraveacutes de todas as inuacutemeras possibilidades derepresentaccedilatildeo do pensamento Porque somente assim ao dispor-se a experimentar a colocar esse seu pensamento em uma determinada accedilatildeo em um determinado fazer seraacute possiacutevel afirmaacute-lo ou negaacute-lo verificaacute-lo ou falseaacute-lo justificaacute-lo ou simplesmente continuar a desenvolvecirc-lo Para o artista o horizonte de suas praacuteticas natildeo finda apenas na anaacutelise mas continua na transformaccedilatildeo que pode executar a partir dessa anaacutelise Cumpre a praacutetica dar continuidade agraveinterpretaccedilatildeo cumpre a praacutetica tambeacutem ser interpretaccedilatildeo Potencialidade que sempre se atualiza que sempre se exterioriza em realizaccedilotildees Leonardo revela-se nesse sentido uma inteligecircncia isto eacute uma maacutequina de ponderaccedilotildees de escolhas e de decisotildees que diante do real natildeo se acanha ou se intimida e estaacute sempre a

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calcular as concretas possibilidades de accedilatildeo de feitura Retirar das circunstacircncias nas quais sempre se encontra sejam estas favoraacuteveis ou desfavoraacuteveis o maacuteximo possiacutevel vencecirc-las e natildeo ser por elas vencido fazer da fraqueza uma forccedila da queda uma ascensatildeo do erro um acerto do presente um futuro nunca esperar e sempre fazer esse eacute o ldquosegredordquo de sua existecircncia devotada agrave expressatildeo agrave realizaccedilatildeo mdashmesmo que os resultados sejam apenas uma soma de incontaacuteveis fragmentosmdash laquoNada de revelaccedilotildees para Leonardo Nada de abismo aberto agrave sua direita Um abismoraquo insiste Valeacutery mais de uma vez laquofaacute-lo-ia pensar numa ponte Um abismo poderia servir para experiecircncias com algum grande paacutessaro mecacircnicoraquo166 laquoseu pensamento se desenvolve cada vez mais sobre o controle perpeacutetuo das resistecircncias exteriores Nada de real lhe parece indigno de ocupar sua poderosa atenccedilatildeoraquo167 Diante dos fenocircmenos ele se concentra simplesmente nos projetos e construccedilotildees que esses fenocircmenos legitimam e evocam no espiacuterito na consciecircncia O real natildeo eacute para ser posto como um altar a ser simplesmente contemplado com espanto o real eacute para ser usado

Eacute atraveacutes dessa perspectiva que o artista passa a representar portanto para o poeta uma espeacutecie de siacutembolo da proacutepria accedilatildeo do proacuteprio fazer Fazer que eacute tanto o resultado quanto o aperfeiccediloamento de um saber seja este compreendido como arte ou ciecircncia168 laquoMeu primeiro movimento de espiacuterito foi sonhar com o Fazerraquo confessa Valeacutery em um trecho memoraacutevel o quanto esse conceito geneacuterico lhe eacute tatildeo caro laquoA ideacuteia de Fazer eacute a primeira e a mais humana ldquoExplicarrdquo nunca eacute mais que descrever uma maneira e fazer eacute apenas refazer atraveacutes do pensamento O Porquecirc e o Como que satildeo apenas expressotildees do que eacute exigido por essa ideacuteia inserem-se a todo instante ordenando que os satisfaccedilamos a qualquer preccedilo A metafiacutesica e a ciecircncia somente desenvolvem sem limites essa exigecircncia Ela pode ateacute levar-nos a supor que ignoramos o que sabemos quando o que sabemos natildeo se reduz claramente a alguma habilidade Eacute isso recuperar os sentidos na sua fonteraquo169 Entretanto soacute se deve agir soacute se deve fazer com rigor com laquoobstinado rigorraquo (laquohostinato rigoreraquo)170 Esta eacute uma das maacuteximas divisas de

166 Œ1 p 1210167 V p 219168 Maurice Blanchot em seu ensaio sobre a peccedila Mon Faust de Valeacutery compara estes trecircs personagens Fausto Teste e Leonardo e ousa ir ainda mais longe na interpretaccedilatildeo do uacuteltimo encarando-o natildeo apenas como um paradigma para o indiviacuteduo mas como um paradigma para toda a humanidade laquoO homem real segundo da Vinci aplica sua vida agrave conquista e ao exerciacutecio de todos os meios de fazer o real eacute tudo aquilo que ele pode Leonardo eacute um siacutembolo porque ele figura no limite um homem para o qual toda a realidade eacute consagrada ao possiacutevel que transforma tudo o que ele eacute em operaccedilotildees realizaacuteveis e verificaacuteveis e tem assim a sua disposiccedilatildeo sob a forma de uma capacidade infinita de atos toda a sua histoacuteria e esta da humanidaderaquo (BLANCHOT Maurice Valeacutery et Faust in La part du feu Nrf Gallimard 1949 p 275)169 Œ1 pp 891-892170 Œ1 p 1155 Como Leonardo Valeacutery tambeacutem escreve a palavra italiana ostinato (obstinado) com ldquohrdquo quando o registro corrente eacute sem segundo uma interpretaccedilatildeo relativamente frequumlente o italiano (como

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Leonardo agrave qual Valeacutery constata e adere buscando cumpri-la em todos os aspectos de sua obra e de sua vida Para se passar do pensamento agrave accedilatildeo para se passar do pensamento ao fazer para que o espiacuterito se insira atraveacutes da praacutetica por ele escolhida no devir do mundo o seu cultivo cotidiano obstinado e obsessivo o seu culto faz-se necessaacuterio A sua exigecircncia natildeo eacute mero preciosismo Compreendido como tenacidade e exatidatildeo e natildeo como falta de flexibilidade o rigor proposto eacute o modo mesmo pelo qual se busca obter entendimento clareza luminosidade na obra e no processo de elaboraccedilatildeo daproacutepria obra171 pelo qual o espiacuterito a consciecircncia busca laquonatildeo sei que total possessatildeo de sua maacutequina de agir a elegacircncia ideal da accedilatildeo criadoraraquo172 Natildeo por acaso Walter Benjamim descrever o Leonardo valeacuteryano e consequumlentemente o proacuteprio Valeacutery justamente como laquoo artista que em nenhum momento de sua obra desiste de alcanccedilar uma noccedilatildeo maximamente exata de seu trabalho e de sua maneira de executaacute-loraquo173

Dessarte ao almejar assim proceder o Leonardo valeacuteryano deve comeccedilarrecusando o modo como as pessoas em geral contemplam o mundo atraveacutes de um pensamento que abstrai e julga precipitadamente Pois elas estatildeo muito carregadas inflacionadas de conceitos a cultura pesa sobre elas como uma segunda natureza natildeo como uma convenccedilatildeo da qual elas possam facilmente se livrar ou trocar Supotildee-se que ao longo de incontaacuteveis processos histoacutericos e biograacuteficos na sedimentaccedilatildeo e na cristalizaccedilatildeo de interpretaccedilotildees e afirmaccedilotildees elas se esqueceram de conviver com a realidade que os sentidos lhes oferecem jaacute natildeo podem mais percebecirc-la sem a espessa lente dos valores e das crenccedilas das palavras Suas especulaccedilotildees as lanccedilam para outros mundos que natildeo este quiccedilaacute ilusoriamente mais controlaacuteveis e consoladores quiccedilaacute mais suportaacuteveis laquoA maioria das pessoas vecirc atraveacutes do intelecto com uma frequumlecircncia bem maior do que atraveacutes dos olhosraquo diagnostica Valeacutery laquoAo inveacutes de espaccedilos coloridos tomam conhecimento de conceitos Uma forma cuacutebica esbranquiccedilada em relevo e trespassada por reflexos de vidros imediatamente eacute uma casa para eles Lar Ideacuteia complexa acordo de qualidades abstratas Se se deslocam o movimento das filas de janelas a translaccedilatildeo das superfiacutecies que desfigura continuamente suas sensaccedilotildees escapam mdash pois o conceito natildeo muda Percebem mais de acordo com parte dos humanistas de seu tempo) buscava ser fiel agrave linguagem popular e assim distanciar-se da linguagem erudita171 Referindo-se retoricamente a esse seu Leonardo que almeja tudo iluminar Valeacutery se pergunta laquoO que haacute de mais sedutor do que um deus que repele o misteacuterio [] que natildeo direciona seus prestiacutegios para o mais obscuro para o mais terno para o mais sinistro de noacutes mesmos que nos forccedila a concordar e natildeo a se submeter e cujo milagre eacute esclarecer-se cuja profundidade uma perspectiva bem deduzida Existe melhor marca de um poder autecircntico e legiacutetimo do que natildeo se exercer debaixo de um veacuteuraquo (Œ1 p 1201)172 V p 219173 BENJAMIM Walter Sobre a atual posiccedilatildeo do escritor francecircs in Walter Benjamin trad Flaacutevio R Kothe Sociologia Aacutetica Satildeo Paulo 1985 p 179

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o leacutexico do que segundo a retina aproximam tatildeo mal os objetos conhecem tatildeo vagamente os prazeres e os sofrimentos de ver que inventaram os belos locais Ignoram o resto Mas quando isso acontece regalam-se com um conceito que formiga de palavrasraquo174 E tudo isso porque o laquodemocircnio da generalizaccedilatildeoraquo175

raramente dorme laquoFaacutecil cosa egrave farsi universale Eacute faacutecil universalizar-seraquo176 Difiacutecil eacute fazer com que o pensamento natildeo adentre universalizaccedilotildees extremas demasiado extremas difiacutecil eacute portanto natildeo ousar filosofar e filosofar somente atraveacutes do pensamento racional atraveacutes da linguagem verbal da liacutengua de palavras Pois o espiacuterito a consciecircncia mdashdiferentemente do olho que em certo sentido sempre vecirc mais diferentemente de qualquer outro sentido fiacutesico que sempre percebe ou recebe maismdash tende a agrupar a conjugar a aglutinar como que natural e imediatamente num mesmo conceito sob uma mesma designaccedilatildeo uma infinidade de fenocircmenos sempre diferentes e sempre fluidos como se esquecesse das diferenccedilas para compreender para gerar conhecimento faz-se necessaacuterio falsificar ficcionar

Todavia o Leonardo valeacuteryano assim aprende laquopor esse estudo constante rigoroso e amoroso das coisas da natureza que natildeo haacute detalhes na realidade [grifo do autor] e que se [o nosso] espiacuterito nos obriga a abstrair e a simplificar a confundir os seres inominaacuteveis sob quaisquer pobres nomes e a substituir a sua variedade infinita os ldquoconceitosrdquo as classes e as entidades isso natildeo passa de uma necessidade de nosso entendimento [] Noacutes percebemos bem mais do que podemos conceberraquo177 Eis portanto como o Leonardo valeacuteryano emcontraste com esse impulso ou ambiccedilatildeo relativamente natural de abstrairconceitualmente principia qualquer accedilatildeo qualquer fazer suspendendo provisoriamente a ideacuteia a especulaccedilatildeo sobre o suposto valor ontoloacutegico dos fenocircmenos a funccedilatildeo e a hierarquia que estes possam ter no cosmo para pensaro maior tempo possiacutevel as impressotildees primeiras os fenocircmenos simplesmente Disciplinando o pensamento e purificando a percepccedilatildeo o espiacuterito universal deve assim comeccedilar mdashironicamentemdash pelas particularidades Ele escreve Valeacutery laquotambeacutem comeccedila simplesmente contemplando e volta sempre a impregnar-se de espetaacuteculos Retorna aos ecircxtases do instinto particular e agrave emoccedilatildeo dada pela menor coisa realraquo178 Sente laquoa embriaguez dessas coisas particulares das quais natildeo existe ciecircncia179 [] [Sente] como uma delicadeza especial a voluacutepia da

174 Œ1 p 1165175 Œ1 p 1503176 Œ1 p 1160177 V pp 219-120178 Œ1 pp 1164-1165179 Essa ideacuteia natildeo estaacute muito distante do que posteriormente Roland Barthes sugestivamente denominou de laquoMathesis singularisraquo referindo-se agrave fotografia como uma ciecircncia das coisas particulares portanto como uma ciecircncia impossiacutevel (Cf BARTHES Roland La Chambre Claire in Œuvres Completes III 1974-1980 org Eacuteric Marty Eacuteditions du Seuil 1995 sect 3 p 1114)

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individualidade dos objetos [] Nada eacute mais poderoso na vida imaginativa O objeto escolhido torna-se como que o centro de associaccedilotildees cada vez mais numerosas conforme esse objeto seja mais ou menos complexo No fundo essa faculdade natildeo pode ser outra coisa senatildeo um meio de excitar a vitalidade imaginativa de transformar uma energia potencial em atualraquo180 Que se vaacute primeiro aos fenocircmenos particulares e que depois se adentre no perigoso e sedutor labirinto da abstraccedilatildeo conceitual pois assim se aventurar eacute da ldquonaturezardquo mesma do pensamento que opera por distanciamentos por excessos e economias mas tambeacutem que se traga o precioso fio que reconduz a dele sair que os peacutes se mantenham na terra e a cabeccedila no ceacuteu Esse eacute aqui o estranho princiacutepio para a construccedilatildeo de um saber relativamente mais purgado de especulaccedilotildees de preconceitos de ilusotildees metafiacutesicas Eacute por isso que as ldquoaparecircnciasrdquo as imagens as artes plaacutesticas que tradicionalmente copiam os fenocircmenos particulares que tradicionalmente os representam por semelhanccedilas como o desenho e a pintura satildeo tatildeo caras tatildeo necessaacuterias ao Leonardo valeacuteryano181 para este como afirma o poeta a pintura substitui a filosofia182 Porque olhar um objeto eacute uma coisa olhaacute-lo desenhando-o e pintando-o fazendo-o na representaccedilatildeo artiacutestica eacute outra Fazendo-o na representaccedilatildeo artiacutestica eacute descobrir algo no mundo que o espiacuterito a consciecircncia dispersa em suas especulaccedilotildees natildeo descobriria A representaccedilatildeo artiacutestica que aiacute se faz da realidade eacute icocircnica portanto composta de uma fidelidade direta com o abstraiacutedo atenta agrave proacutepria realidadepercebida a um aspecto dela

E isso faz com que Valeacutery mdashatraveacutes desse seu Leonardo em quem opensamento simboacutelico e o pensamento conceitual a imaginaccedilatildeo e a razatildeo se fundemmdash sonhe com um projeto de estudo futuro o qual o poeta denomina delaquoloacutegica imaginativaraquo183 (laquologique imaginativeraquo) ou de laquoanaloacutegicaraquo184 (laquoanalogiqueraquo) 180 Œ1 pp 1170-1171181 Note-se que o proacuteprio Leonardo histoacuterico daacute grande valor agrave pintura o que eacute naturalmente bastante caracteriacutestica da cultura humaniacutestica do Renascimento a valorar relativamente fiel ao pensamento da Antiguumlidade Claacutessica que atualiza e reinventa uma determinada arte pela maior ou menor capacidade de imitaccedilatildeo que esta tem do mundo sensiacutevel material Tal criteacuterio obviamente jaacute natildeo mais poderaacute ser sustentado na Modernidade na qual a fotografia e o cinema por exemplo passam a existir e em massa mas ele teve a sua razatildeo de ser na medida em que era mais ou menos servil a uma doutrina neo-platocircnica supostamente conhecida por Leonardo que dir-se-ia muito ambiacutegua e frouxamente a ela adere mais agrave parte que teoriza a arte como mimese e menos agrave parte que teoriza o mundo sensiacutevel material como corruptiacutevel O que corrobora as ousadas intuiccedilotildees e usos de Valeacutery laquoA pinturaraquo escreve o artista laquoserve a um mais digno sentido que a poesia pois representa com maior verdade as obras da natureza que o poeta E satildeo muito mais dignas as obras da natureza que as palavras as quais satildeo obra do homem pois tal desproporccedilatildeo existe entre as obras do homem e as obras da natureza com aquela que existe entre Deus e o homem Daiacute ser mais digno imitar as obras da natureza verdadeiras semelhanccedilas em ato que imitar com palavras os fatos e os ditos dos homensraquo (LEONARDO da Vince Os escritos de Leonardo da Vince sobre a arte da pintura trad Eduardo Carreira Imprensa Oficial amp Editora Universidade de Brasiacutelia Satildeo Paulo 2000 p 59)182 Cf Œ1 p 1261 183 Œ1 p 1194184 Œ1 p 1267

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Tambeacutem derivado das experiecircncias poeacuteticas do Simbolismo esse projeto seria uma verdadeira investigaccedilatildeo da poderosa capacidade espiritual de fazer analogias de abstrair graficamente elementos semelhantes de fenocircmenos postos em comparaccedilatildeocomo um modo eficaz de representar e compreender a realidade e de ater-se a ela Isso porque a analogia jaacute seria um dado imprescindiacutevel na vida e nas proacuteprias praacuteticas humanas algumas dessas seriam impossiacuteveis se a analogia natildeo fossesistematizada e convencionada como certa arquitetura feita a partir de projetos que a representam no espaccedilo e certa muacutesica feita a partir de partituras que a representam no tempo jaacute que como diz o poeta de modo preciso laquoO graacutefico eacute capaz do contiacutenuo de que a palavra eacute incapazraquo185

A arte revela-se portanto na concepccedilatildeo do Leonardo valeacuteryano como essa praacutetica de ir aos fenocircmenos particulares cujo desenvolvimento daacute-se sobretudopela analogia pela metaacutefora a arte revela-se portanto como um saber em estado nascente A sua muacuteltipla e irredutiacutevel ldquofunccedilatildeordquo (se o termo funccedilatildeo lhe eacute aplicaacutevel) mesmo quando inserida em uma forte heteroniacutemia religiosa mesmo que em contradiccedilatildeo com o impulso ao transcendente natildeo deixa de ter um caraacuteter eminentemente a-metafiacutesico posto ser frequumlentemente uma relaccedilatildeo muito proacutepria e iacutentima com a realidade sensiacutevel material Se a filosofia e a ciecircncia tenderiam mdashmenos por si mesmas e mais pela ideoloacutegica imagem que delas se fazemmdash a afastar as pessoas das coisas a arte as aproximaria delas se a tarefa do filoacutesofo e a do cientista torna-se em grande parte a construccedilatildeo de mundos cujas abstraccedilotildees satildeo gerais a tarefa do artista eacute a construccedilatildeo de mundos cujas abstraccedilotildees satildeo particulares laquoUtilidade dos artistasraquo assim define Valeacutery em breves e capitais aforismos laquoConservaccedilatildeo da sutileza e da instabilidade sensoriais Um artista moderno deve perder dois terccedilos de seu tempo tentando ver o que eacute visiacutevel e principalmente natildeo ver o que eacute invisiacutevel Com muita frequumlecircncia os filoacutesofos expiam a culpa de terem agido ao contraacuterioraquo186 laquoUma obra de arteraquo dizia laquodeveria ensinar-nos sempre que natildeo haviacuteamos visto o que vemosraquo187 laquoA educaccedilatildeo profunda consiste em desfazer a educaccedilatildeo primitivaraquo188

Mediaccedilatildeo a desconstruir mediaccedilotildees a arte seria justamente uma meditaccedilatildeoprodutiva sobre os fenocircmenos particulares A sua praacutetica enquanto criacutetica pode ser usada assim como um poderoso meio para purificar as especulaccedilotildees para purificar os valores e as crenccedilas as palavras que obliteram a proacutepria percepccedilatildeo do real para quebrar haacutebitos mentais A consequumlecircncia mais relevante desse estranho ideaacuterio o qual Valeacutery doravante reelaboraria e ampliaria de um modo

185 Œ1 p 1266 laquoEacute necessaacuterio prover-se de instrumentos reais como o desenho e o poder do desenhoraquo enigmaticamente afirma Valeacutery laquoPor quecirc mdash Sobretudo contra a metafiacutesicaraquo (C1rsquo p 331)186 Œ1 p 1165187 Œ1 p 1165188 Œ1 pp 1165-1166

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ainda mais poeacutetico principalmente em seus diaacutelogos socraacuteticos eacute por conseguinte uma reconciliaccedilatildeo com o mundo sensiacutevel material189 A exigecircncia do pensamento de Leonardo sentencia o poeta laquoo reconduz ao mundo sensiacutevel e sua meditaccedilatildeo tem por saiacuteda o apelo agraves forccedilas que constrangem a mateacuteria O ato do artista superior eacute o de restituir atraveacutes das operaccedilotildees conscientes o valor dasensualidade e o poder emotivo das coisasraquo190

O meacutetodo do Leonardo valeacuteryano pode ser compreendido sintetizado enfim como a conjunccedilatildeo perfeitamente harmocircnica entre dois siacutembolos maacuteximos e indissociaacuteveis do proacuteprio poeta a Matildeo (que age que faz) e o Olho (que contempla a realidade passiacutevel de sofrer accedilotildees feituras)191 Naturalmente essemeacutetodo mdashque natildeo passa na esfera do espiacuterito da consciecircncia de uma idiossincrasia de uma fidelidade a si mesmo aos seus processosmdash possui no pensamento de Valeacutery ainda uma outra e capital funccedilatildeo aumentar pela proacutepria atenccedilatildeo e esforccediloque exige do espiacuterito da consciecircncia que pratica alguma arte ou ciecircncia a proacutepria autoconsciecircncia seu mais raacutepido e pleno desenvolvimento e purificaccedilatildeo jaacute que esta se adquire na perspectiva do Leonardo valeacuteryano natildeo na especulaccedilatildeo circular e

189 Um outro exemplo de como Valeacutery infligia seus proacuteprios pensamentos em seus escritos de criacutetica literaacuteria e artiacutestica de como eram recorrentes suas obsessotildees de seu laquoniilismo hermenecircuticoraquo faz-se oportuno o que ele diz sobre o seu Goethe tambeacutem eacute igual e surpreendentemente vaacutelido para o seu Leonardo laquoGoethe eacute o grande apologista da Aparecircncia Presta ao que acontece na superfiacutecie das coisas um interesse e um valor nos quais encontro uma fraqueza e uma determinaccedilatildeo das mais importantes Compreendeu que se percebemos uma infinidade de sensaccedilotildees inuacuteteis em si eacute delas entretanto por mais indiferentes que sejam que retiramos atraveacutes de uma curiosidade inteiramente gratuita e uma atenccedilatildeo de puro luxo todas as nossas ciecircncias e artes Penso algumas vezes que existe para alguns como para ele uma vida exterior de intensidade e de profundidade no miacutenimo iguais as que emprestamos agraves trevas iacutentimas e aos segredos descobertos dos ascetas e dos sufis Que revelaccedilatildeo deveser para um cego nato as primeiras as dolorosas e maravilhosas tonalidades do dia na retina E que progressos firmes e definitivos sente estar fazendo aos poucos em direccedilatildeo ao conhecimento limite mdash a nitidez das formas e dos corpos E ao contraacuterio o mundo interior estaacute sempre ameaccedilado por uma confusatildeo de sensaccedilotildees obscuras de lembranccedilas de tensotildees de palavras virtuais onde o que queremos observar e apreender altera corrompe de alguma forma a proacutepria observaccedilatildeo Quase natildeo podemos conceber e esboccedilar o que significa pensar o pensamento e a partir desse segundo grau desde que tentemos elevar nossa consciecircncia a essa segunda potecircncia imediatamente tudo se perturba Goethe observa contempla e ora nas obras de arte plaacutestica ora na Natureza persegue a forma tenta ler a intenccedilatildeo de quem traccedilou ou modelou a obra ou o objeto que examina O mesmo homem capaz de tanta paixatildeo de tanta liberdade dos caprichos do sentimento e das criaccedilotildees imprevistas do espiacuterito poeacutetico transforma-se deliciosamente em um observador com uma paciecircncia inesgotaacutevel [] Mas o amor pela forma natildeo se limita para Goethe ao deleite contemplativo Qualquer forma viva eacute um elemento de uma transformaccedilatildeo e qualquer parte de alguma forma eacute talvez uma modificaccedilatildeo de alguma outraraquo (Œ1 pp 542-543)190 V p 220191 Para o Leonardo histoacuterico o olho era realmente um oacutergatildeo essencial para o desenvolvimento das artes e das ciecircncias para que a matildeo possa executar laquoO olho abarca a beleza do mundo todo Ele eacute senhor da astrologia ele cria a cosmografia ele endireita todas as artes humanas ele eacute priacutencipe das matemaacuteticas e suas ciecircncias satildeo acertadiacutessimas mede a distacircncia [] descobre os elementos e as suas posiccedilotildees [] engendra a arquitetura a perspectiva e a divina pintura [] Janela do corpo humano que atraveacutes de si reflete a beleza do mundo e nela goza por ele a alma se alegra em sua prisatildeo humana sem a qual a vida seria tormento Por ele a humana induacutestria descobriu o fogo graccedilas ao qual o olho recupera o que entatildeo lhe eacute arrebatado pelas trevas Ele ornou a natureza com a agricultura e com os jardins deliciososraquo (LEONARDO da Vince Os escritos de Leonardo da Vince sobre a arte da pintura trad Eduardo Carreira Imprensa Oficial amp Editora Universidade de Brasiacutelia Satildeo Paulo 2000 pp 69-70)

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esteacuteril mas essencialmente na proacutepria accedilatildeo no proacuteprio fazer Algo que seraacute fortemente explicitado por um outro personagem conceitual o Soacutecrates valeacuteryano no fim do diaacutelogo Eupalinos E eacute por isso por buscar manter-se com rigor nesse meacutetodo nesse caminho que o Leonardo valeacuteryano foi facilmentequalificado natildeo apenas de gecircnio (o termo eacute demasiado idealista e romacircntico para o poeta) mas tambeacutem de monstro192 Um monstro que compreende a si mesmocomo uma unidade de intelecto e corpo destinada agrave praacutetica sem fim O proacuteprio poeta assim escreve laquoEm relaccedilatildeo aos nossos haacutebitos Leonardo parece como que um monstro um centauro ou uma quimera por causa da espeacutecie ambiacutegua que ele representa para espiacuteritos empenhados demais em dividir a nossa natureza [grifo do autor] e em considerar filoacutesofos sem matildeos e sem olhos artistas com cabeccedilas tatildeo reduzidas que natildeo possuem nelas nada mais que instintosraquo193

Todavia feliz ou infelizmente esse monstro talvez jaacute natildeo possa mais ser Aquilo que outrora constituiacutea muito de seu poder hoje provavelmente constituiria muito de sua fraqueza a polivalecircncia natildeo raro seria denominada de dispersatildeo o rigor de intransigecircncia O espiacuterito universal talvez esteja fadado a morrer em longa e pateacutetica agonia Nada ou muito pouco concretizaria num mundo no qual a especializaccedilatildeo a divisatildeo do trabalho e do saber se alastraram por grande parte das esferas sociais no qual as relaccedilotildees demandam um fim determinado e por vezes uacutenico Nunca a ciecircncia dependeu de tantos esforccedilos conjuntos nunca se soube tanto com relaccedilatildeo agrave quantidade de conhecimento do passado e tatildeo pouco com relaccedilatildeo agrave quantidade de conhecimento do presente nunca a memoacuteria humana esse acumular de lembranccedilas e de contiacutenuas deformaccedilotildees subjetivas apresentou-se tatildeo fraacutegil e tatildeo incapaz de abarcar todo o diversificado conhecimento que a humanidade constantemente reformula e incrementa Dir-se-ia que o espiacuterito universal se restringiu cada vez mais a ser universal em algumas em poucas atividades e assim sucessivamente ateacute o limite

192 Segundo Emile Cioran frequumlentemente exagerado em suas afirmaccedilotildees laquoum monstro que possui todos os poderes os que natildeo temos e os que gostariacuteamos de ter Responde a essa necessidade de nos vermos acabados realizados em algueacutem que imaginamos e que representa o resumo ideal de todas as ilusotildees que criamos a nosso respeito heroacutei que venceu suas proacuteprias impossibilidadesraquo (CIORAN Emile Valeacutery face agrave ses Idoles in Œuvres Quarto Eacuteditions Gallimard 1995 p 1566) e segundo Marleau-Ponty sempre mais contido em suas afirmaccedilotildees laquoum monstro de liberdade pura sem amantes credor anedota aventurasraquo (Cf MERELAU-PONTY Maurice A duacutevida de Ceacutezanne trad Marilena de Souza Chauiacute Nelson Alfredo Aguilar amp Pedro de Souza Moraes Os Pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1980 p 123) Note-se ainda que parte do programa filosoacutefico de Marleau-Ponty mdasha compreensatildeo da esteacutetica como o resgate desta dimensatildeo relativamente negligenciada pela filosofia tradicional o mundo dos fenocircmenos sensiacuteveis materiais isto eacute o mundo do corpo do corpo natildeo mais submetido agrave suposta superioridade da almamdash eacute relativamente muito proacuteximo ao de Valeacutery Natildeo agrave toa o filoacutesofo francecircs utilizar-se do poeta francecircs e o seu Ceacutezanne ter muitas semelhanccedilas com o Leonardo do outro os personagens de ambos viam na arte natildeo apenas um modo de expressatildeo mas tambeacutem um modo de conhecimento e objetivaccedilatildeo do mundo (Cf MERELAU-PONTY Maurice A duacutevida de Ceacutezanne trad Marilena de Souza Chauiacute Nelson Alfredo Aguilar amp Pedro de Souza Moraes Os Pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1980)193 Œ1 p 1261

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no qual soacute pode vir a ser o especialista daquilo que mais ningueacutem eacute por princiacutepio capaz de ser de si mesmo Situado nos antiacutepodas de Leonardo este outro monstro valeacuteryano Edmond Teste vem a ser tal especialista Ele talvez seja na Modernidade o uacutenico espiacuterito universal possiacutevel aquele que renunciou a accedilatildeo aquele que renunciou ao proacuteprio fazer para somente dedicar-se a se fazer

212 EDMOND TESTE

A solitaacuteria e por vezes sofrida relaccedilatildeo do ser humano com aquilo que ohabita com sua proacutepria interioridade natildeo foi na perspectiva laica amiuacutede representada pelos gecircneros narrativos da literatura ateacute o desenvolvimento da sociedade burguesa com sua heterogecircnea cultura cientiacutefica e teacutecnica na qual o prestigioso conceito de indiviacuteduo se cristaliza e se manifesta se impotildee com mais veemecircncia e constacircncia conceito que tem em filoacutesofos como o transigente Montaigne os racionalistas Descartes e notadamente Leibniz seus principais arautos e em Soacutecrates e Santo Agostinho nobres precursores de uma antiguidade em muito voltada para uma ldquointerioridaderdquo regida pelo divino voltada natildeo para os homens em suas singularidades mas para o homem em sua generalidade A descriccedilatildeo de tipos ideais frequumlente em registros orais e na passagem destes para os escritos faz-se a partir de entatildeo menos constante e necessaacuteria Personagens singulares especiacuteficos por vezes anocircnimos distantes do restrito ciacuterculo das decisotildees poliacuteticas e econocircmicas marginais por opccedilatildeo ou por destino mergulhados numa sombria monotonia de iacutentimas cogitaccedilotildees agora tambeacutem podem ser eleitos protagonistas A transformaccedilatildeo de um indiviacuteduo suas epifanias e ecircxtases seus desesperos e crises ou mesmo as suas paralisias essas intensas metamorfoses agraves quais como que inevitavelmente todos passam natildeo precisam necessariamente ocorrer ou serem descritas em cenaacuterios monumentais em qualquer lugar em qualquer periacuteodo e em qualquer circunstacircncia elas podem surgir Anaacuterquicos na escolha de suas temaacuteticas muitos dos autores modernos mdashque tambeacutem se posicionam como indiviacuteduos principalmente quando se posicionam como autoresmdash descobrem aquilo que sempre souberam que toda trajetoacuteria pode ser contada que uma existecircncia exterior e ordinaacuteria pode ocultar uma existecircncia interior e extraordinaacuteria que a literatura assim como qualquer arte assim como a proacutepria filosofia pode se utilizar e se apropriar de qualquer elemento de uma visatildeo ou lampejo de um miacutenimo fragmento de realidade outrora supostamente fraacutegil e insignificante Natildeo haacute detalhes natildeo precisa haver tudo importa porque tudo agora vem a ser motivo e momento para a proacutepria criaccedilatildeo tudo agora vem a ser propiacutecio A vida do espiacuterito revela uma aventura igualmente excelsa quanto agrave vida do corpo Um drama pode ser estaacutetico uma

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vida imoacutevel Do sonhador cavaleiro andante de Cervantes aos desesperadospersonagens de Dostoieacutevski passando pelos pateacuteticos burgueses de um Balzac e chegando agraves aniquiladas quase-personagens de um Kafka e um Beckett tal parece ter sido uma das mais constantes orientaccedilotildees da Literatura Moderna

Ao herdaacute-las Valeacutery tambeacutem as radicaliza a um plano de abstraccedilatildeo extrema isso naturalmente faz parte desse recorrente jogo em jamais aceitar o que lhe eacute dado sem conscientemente crivaacute-lo transformaacute-lo ou mesmo distorcecirc-lo Grande parte de sua obra natildeo deixa de ser simplesmente o registro verbal de uma ou de parte de uma intensa interioridade de uma interioridade a fazer-se ou a querer fazer-se sempre e cada vez mais luacutecida e objetiva Nela tudo se passa como se jaacute natildeo fosse mais necessaacuterio explicitar elementos que a todos fossem comuns Por que registrar o exato momento em que a matildeo foi cortada quando eacute a dor que interessa e o que essa dor suscita Dando importacircncia relativa agraves localidades e datas o poeta prefere dizer como o espiacuterito eacute afetado pela comida ou pela bebida do que dizer o que comeu e bebeu prefere registrar a reflexatildeo sobre o fato do que o fato pois este apesar de necessaacuterio eacute de ordem contingente e aquele pode servir de elemento para a formulaccedilatildeo de uma lei interna Preferecircncia essa que natildeo implica na abertura para uma generalizaccedilatildeo excessiva ou para uma universalizaccedilatildeo dada a partir da crenccedila em uma natureza humana comum facilmente propagada pela filosofia mas que implica sobretudo em avaliar a si mesmo como um fenocircmeno um fenocircmeno qualquer nem mais nem menos importante nem superior nem inferior a qualquer outro fenocircmeno exterior Como reescreve num tipo de siacutentese que lhe eacute muito proacutepria Jorge Luis Borges acerca da lucidez daquele que talvez tenha sido um de seus secretos mestres laquoOs fatos para ele soacute valem como estimulantes do pensamento pensamento para ele soacute vale enquanto o podemos observar a observaccedilatildeo tambeacutem lhe interessaraquo194 E assim sucessivamente num processo circular que o contista argentino muito bem poderia simbolizar na forma de um labirinto sem fim

Composta ao longo de grande parte da vida de Valeacutery La soireacutee avec Monsieur Teste ou simplesmente Monsieur Teste (a primeira ediccedilatildeo data de 1925 doravante outros trechos foram continuamente acrescentados e publicados postumamente afora as referecircncias diretas ou indiretas presentes nos Cahiers e nas Histoiresbriseacutees) natildeo deixa de ser entre os seus outros escritos um caso limite de todo esse modo de proceder Numa primeira aproximaccedilatildeo o leitor poderia julgar estar diante de um romance de algum modo indiretamente aparentado com os romances filosoacuteficos praticados por Voltaire ou Diderot Entretanto essa obra

194 BORGES Jorge Luis Paul Valeacutery in Textos Cautivos in Obras Completas 4 1923-1949 Emenceacute Editores Buenos Aires 2005 p 263

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estranhiacutessima inclusive para contexto experimental da literatura do seacuteculo XX dificilmente seraacute assim classificada Fragmentada ao extremo eacute provaacutevel que tenha sido deliberadamente estruturada como antiacutepoda a uma forma que apesar de extremamente resistente e plaacutestica constituiacuteda por um subjetivo prosaiacutesmo mais propiacutecio a destrinccedilar os conflitos psicoloacutegicos do que a objetividade poeacutetica da epopeacuteia veio a se tornar inadequada para conter os extremos graus de enleio abstraccedilatildeo e rigor almejado por um escritor que jamais se propocircs a romancear mas registrar os movimentos de um espiacuterito singular Note-se que Valeacutery natildeo valora o proacuteprio romance como grande parte da criacutetica literaacuteria de sua eacutepoca tampouco como os romancistas Proust ou Gide Considerava-o um gecircnerodemasiado impuro voltado agraves inuacutemeras filigranas cotidianas aos prazeres e desprazeres da vida e por conseguinte segundo a sua proacutepria concepccedilatildeo de literatura como um exerciacutecio ideal de precisatildeo e de siacutentese irredutiacutevel agrave expressatildeo de elementos aleatoacuterios e gratuitos Elementos em muito oriundos de um automatismo a ser superado pelo escritor que almeja uma literatura pura logo poeacutetica laquoPara fazer romancesraquo diz ele de um modo talvez excessivamente criacutetico laquoeacute necessaacuterio considerar os homens como unidades ou elementos bem definidosraquo195 Ou ainda laquoO romance responde a uma necessidade bem mais ingecircnua que o poema mdash Pois ele demanda crenccedila credulidade abstenccedilatildeo de si mdash e o poema exige colaboraccedilatildeo ativaraquo196

Assim se haacute um gecircnero em que essa obra esse anti-romance de um hibridismo avassalador possa ser compreendido de um modo lato talvez seja o do retrato Os incisivos moralistas do seacuteculo XVII e XVIII que enquanto estilistas tanto apreciavam essa forma hoje relativamente esquecida possuem certa filiaccedilatildeo com o tipo da criacutetica que Valeacutery em Monsieur Teste costuma lanccedilar sobre a moral vigente todavia este diferentemente daqueles natildeo busca pintar a maacutescara que uma ldquocelebridaderdquo adquire perante os seus num determinado ciacuterculo social nem a sua suposta decadecircncia e queda suas pateacuteticas excentricidades mas principalmente um homem extremo envolvido em praacuteticas intelectuais extremas A obra debruccedila-se assim no perfil e na exposiccedilatildeo do pensamento deste personagem o Senhor Edmond Teste um discreto e pacato burguecircs a viver de modestas aplicaccedilotildees na bolsa de valores no iniacutecio do seacuteculo XX numa Paris somente esboccedilada mas sempre presente em suas raacutepidas e

195 C2rsquo p 1206196 C2rsquo p 1206 Ainda quanto a essa criacutetica haacute uma curiosa ldquoanedotardquo Dizem que Andreacute Breton sabia de cor Monsieur Teste e no Premier manifeste du Surreacutealisme revela que Valeacutery mdasha quem chegou a considerar seu mestre vindo posteriormente a dele se desvincularmdash lhe disse que jamais escreveria a seguinte frase laquoA marquesa saiu agraves cinco horasraquo (CHARPIER Jacques amp SEGHERS Pierre (orgs) Lrsquoart poeacutetique Editions Seghers Paris 1956 p 580) Se isso eacute verdade ou natildeo natildeo eacute possiacutevel confirmar De qualquer modo uma tal ldquoanedotardquo acaba demonstrando em certa medida como Valeacutery realmente compreendia a arte literaacuteria como uma praacutetica que natildeo deve conter arbitrariedades Por que a marquesa saiu agraves cinco horas e natildeo agraves quatro ou agraves seis

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convulsivas transformaccedilotildees urbanas e sociais A obra se constitui de requintada e hermeacutetica prosa (ou poesia posto que a diferenccedila entre uma e outra nela se dilui)de estilo filiado ao do Simbolismo sem entretanto estar aprisionada por essa corrente tampouco pelo procedimento do monoacutelogo interior do fluxo daconsciecircncia (stream of consciousness) de um James Joyce ou de uma Virginia Woolf ao qual um autor que se proponha na Modernidade narrar a vida de uma uacutenicapersonagem poderia facilmente adotar A obra Monsieur Teste natildeo pode serenquadrada numa corrente estiliacutestica especiacutefica responde mais a princiacutepios esteacuteticos pessoais do que coletivos a uma iacutentima exigecircncia a siacutentese de um princiacutepio a partir do qual a reflexatildeo e a criaccedilatildeo se desenvolvem e se identificam laquoMeu ldquoCogitordquoraquo revela Valeacutery a grande importacircncia que lhe deu laquomdash ele estaacute inscrito na Soireacute avec M Testeraquo197 laquoSr Teste eacute meu espantalho quando eu natildeo sou saacutebio eu penso neleraquo198 Entre os trechos que o compotildee (dez capiacutetulos miacutenimos todos aparentemente incompletos e que podem ser lidos aleatoriamente) natildeo haacute um plano definido uma sequumlecircncia cronoloacutegica previamente estabelecida A estrutura causal dos eventos que se sucedem como aneacuteis de uma corrente mdashtatildeo caracteriacutestico no desdobramento de uma histoacuteria dita linearmdash natildeo eacute intencionada a trama o plot em sentido estrito natildeo existe ou eacute reduzida a um miacutenimo necessaacuterio A reflexatildeo a quase tudo preenche e uma certa monotonia se faz presente

O que essencialmente a caracteriza entretanto natildeo eacute mais a iluminaccedilatildeo dos processos da consciecircncia atraveacutes de uma accedilatildeo um fazer e que parte de uma contemplaccedilatildeo ou meditaccedilatildeo exterior como ocorre nos escritos sobre Leonardo mas atraveacutes de uma recusa em agir em fazer e que parte de uma contemplaccedilatildeo ou meditaccedilatildeo interior portanto uma devoccedilatildeo para com a vida da consciecircncia em suainterioridade aquietada e para com as natildeo convencionais e desconcertantes maacuteximas de conduta daquele que a vive uma laquomitologia do espiacuteritoraquo199 diraacute ironicamente Valeacutery compreendo que se trata de uma empresa que natildeo se furta agrave estilizaccedilatildeo e ao exagero Enquanto obra simultaneamente herdeira e criacutetica de uma sequumlecircncia histoacuterica literaacuteria Monsieur Teste eacute um verdadeiro eacutepico ao avesso como que substitui a civilizaccedilatildeo pela pessoa e pela pessoa em seu mais deliberado distanciamento e introspecccedilatildeo apartada laquoDe que sofri maisraquo pergunta-se essa personagem laquoTalvez do haacutebito de desenvolver todo o meu pensamento mdash de ir ateacute o final de mimraquo200 E isso com tal intensidade que para ele jaacute natildeo basta mais alcanccedilar os abismos de sua proacutepria interioridade cumpre superaacute-los cumpre negaacute-los201 A

197 C1rsquo p 196198 C1rsquo p 21199 C1rsquo p 202 200 Œ2 p 45201 Cf MACKAY Agnes Ethel Monsieur Teste in The universal self - A study of Paul Valeacutery University of Toronto Press Toronto 1961

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existecircncia como soacutei ser concebida deixa de ser assim referida e valorada com os habituais criteacuterios morais e passa a ser concebida por Teste apenas como pura possibilidade

2121 O POSSIacuteVEL

[Teste] representa o mais alto poder de agir ligado a mais completa maestria de si mesmo ele pode tanto o que ele quer e seu poder natildeo eacute uma capacidade vaga mais uma virtualidade de poderes definidos determinados e mesuraacuteveis anaacutelogos agravequeles de uma maacutequina na qual o rendimento faz o objeto de caacutelculos exatos Dizemos de um tal homem que se ele se virou contra o mundo o poder regular de seu espiacuterito laquonada lhe resistiriaraquo Mas a sua superioridade natildeo eacute somente da sua maestria ela estaacute na indiferenccedila em relaccedilatildeo a essa superioridade no anonimato que ela guarda Senhor Teste deve permanecer desconhecido senatildeo ele se perde ele se rebaixa a ser Ceacutesar ou Deus (laquoA divindade eacute faacutecilraquo diz ele com um suntuoso desprezo) Do mesmo modo ele natildeo faz nada

Maurice Blanchot Valeacutery e Fausto

Valeacutery natildeo se propocircs por conseguinte a descrever um teatro mas um ator que se recusa a atuar a participar desta trageacutedia sentimental que eacute a vida da sociedade para se manter na comeacutedia intelectual que eacute a vida do espiacuterito A contemplaccedilatildeo ou a meditaccedilatildeo tem primazia Na esfera social isso se reflete naturalmente em um certo quietismo em uma certa recusa em agir em fazer uma recusa em se engajar ativamente no mundo Dessarte Teste se desliga progressivamente do desejo de concretizar de pocircr agrave prova seus proacuteprios talentos e capacidades os quais supostamente satildeo muitos e extraordinaacuterios do desejo em produzir obras de qualquer espeacutecie artiacutesticas filosoacuteficas ou cientiacuteficas em deixar um legado em ser reconhecido contemporacircnea ou postumamente Diz que chegou a escrever diletantemente algumas paacuteginas natildeo se sabe que prosas e poemas em algum tempo de sua vida Todavia agora declina-se mdashalgo que o proacuteprio Valeacutery parece ter tambeacutem buscado a sua proacutepria aniquilaccedilatildeo como literato como escritormdash a ser artista filoacutesofo ou cientista a se dedicar a esta ou aquela atividade ou especialidade a ser um fazedor como o eacute tatildeo intensamente Leonardo Ademais tambeacutem procura reduzir ao miacutenimo os conflitos com o outro As tumultuadas relaccedilotildees regidas por afetos e por desafetos frequumlentes na vida cotidiana e familiar parecem-lhes desgastantes em demasia desagradaacuteveis em demasia totalmente desnecessaacuterias Como um bom ceacutetico Teste compreende que grande parte dos problemas existenciais eacute apesar de intensamente operante oriunda de uma espeacutecie de esquecimento das convenccedilotildeesque fundamentam a sociedade Convenccedilotildees que ao se cristalizarem em crenccedilas e desejos satildeo aceitas amiuacutede como se inerentes agrave proacutepria natureza natildeo como arbitrariedades natildeo como artificialidades inventadas com o passar das geraccedilotildees e passiacuteveis de serem modificadas ou destruiacutedas

Contudo isso natildeo faz dele um misantropo ou um eremita tampouco um preguiccediloso do contraacuterio teria filiaccedilatildeo com estas estranhas personagens da

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literatura russa os homens superficiais como um Eugene Onegin de Pushkin ou umOblomov de Goncharov A sua recusa eacute mais espiritual do que corporal eacute uma adequaccedilatildeo uma adaptaccedilatildeo da conduta Pois ele natildeo deixa de frequumlentar as festas os salotildees e as oacuteperas as instituiccedilotildees e as convenccedilotildees mas tudo de um modo bastante distanciado controlado e neutro Faz-se presente sem participar Parece que tem certo apreccedilo em observar como um ciacutenico antropoacutelogo de seu proacuteprio meio social todas as encenaccedilotildees de futilidade da vida burguesa o que natildeo implica na falta de discernimento para com as atividades que visam alimentar uma vaidade sempre vatilde Na carta de um amigo seu lecirc-se como esse meio social a Europa intelectual e literaacuteria da deacutecada de 1920 eacute compreendido prenhe de interesses e egoiacutesmos no qual cada um se preocupa menos com o que faz e mais com o que iraacute ser dito daquilo que faz laquoParis enclausura e combina consome e consuma a maior parte dos infortunados com o brilho que o destino chamou agraves profissotildees delirantes Chamo assim agraves profissotildees que tecircm o principal instrumento na opiniatildeo que fazemos de noacutes proacuteprios e cuja mateacuteria-prima eacute a opiniatildeo dos outros sobre noacutes Votadas a uma candidatura eterna as pessoas que as exercem satildeo necessaacuteria e permanentemente afligidas por um determinado deliacuterio degrandezas que um determinado deliacuterio da perseguiccedilatildeo trespassa e atormenta sem treacuteguas Neste povo de uacutenicos impera a lei de fazer aquilo que nunca ningueacutem fez nem faraacute Eacute pelo menos assim a lei dos melhores quer dizer dos que estatildeo empenhados em querer com muita clareza qualquer coisa de absurdo Soacute vivem para conseguir e fazer duraacutevel a ilusatildeo de estar a soacutes mdash pois a superioridade natildeo passa de solidatildeo levada aos atuais limites de uma espeacutecie Cada qual alicerccedila a existecircncia sobre a inexistecircncia dos outros a quem temos no entanto de arrancar um consentimento para natildeo existiremraquo202

Todavia natildeo eacute porque compreenda as contradiccedilotildees e as hipocrisias humanas que Teste se propotildee a ser o profeta de uma outra e redentora moralidade Ele natildeo estaacute em luta contra ningueacutem natildeo se desespera diante dos comportamentos alheios da condiccedilatildeo social da pobreza e da miseacuteria da injusticcedila natildeo imagina desnorteado diagnoacutesticos a serem relatados ou utopias a serem realizadas natildeo eacute um Hamlet imerso em dramas e remorsos nem um Quixote em ideais e sonhos Diferente desses outros seres imaginaacuterios que povoam os sonhos da Literatura Universal ele talvez saiba que as accedilotildees cometidas com drama ou com comeacutedia com desesperanccedila ou com esperanccedila com qualquer sentimento extremo pouco ou nada resultam Definitivamente natildeo eacute um revolucionaacuterio203 Quanto a isso as enigmaacuteticas palavras de Benjamim parecem certeiras laquoPois quem eacute Monsieur Teste se natildeo o sujeito que jaacute estaacute a

202 Œ2 p 49203 VALEacuteRY Franccedilois Paul Valeacutery et la politique in PA pp 185-211

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ponto de transpor o umbral da histoacuteria para aleacutem do qual o indiviacuteduo harmonicamente constituiacutedo e auto-suficiente se prepara a fim de se transformar em teacutecnico e em especialista pronto para em seu devido posto e lugar inserir-se num grande planejamento Transpor essa ideacuteia de planejamento do campo da obra de arte para o da comunidade humana eacute algo que Valeacutery natildeo foi capaz de fazer O umbral natildeo foi transposto aiacute o intelecto continua sendo privado e este eacute o melancoacutelico segredo de Monsieur Teste Dois ou trecircs dececircnios antes Lautreacuteamont dissera ldquoA poesia deve ser feita por todos Natildeo por um soacuterdquo Essas palavras natildeo chegaram a Monsieur Testeraquo204

Essas palavras tambeacutem natildeo chegaram e talvez nunca chegariam ao poeta para quem a poesia no sentido moderno cumpre ser realmente feita por um soacute natildeo porque lhe faltava ouvido para ouvi-las mas porque nunca se propocircs na sua desconfianccedila para com toda forma de proselitismo transpor o umbral da histoacuteria passar na perspectiva poliacutetica da contemplaccedilatildeo para a accedilatildeo para o fazer O ensimesmado Teste natildeo deixa de ser a mais bem acabada encarnaccedilatildeo dessa posiccedilatildeo A sua proacutepria existecircncia revela em contraste com aqueles que os cercam como vultos quase imperceptiacuteveis os perigos em se voltar apenas para o engajamento sem estar munido da negatividade da criacutetica205 Ele eacute aquele que natildeo faz de seu pensamento servil a um pragmatismo inconsequumlente mesmo que para isso tenha que escolher um modo de vida para muitos um tanto extremado e anacrocircnico pois difiacutecil eacute natildeo participar quando todos participam pois difiacutecil eacute dizer natildeo quando todos dizem sim A sua recusa eacute uma renuacutencia206 Natildeo deixa de ser tambeacutem uma forma de resistecircncia estranhamente paciacutefica agraves exigecircncias morais de uma sociedade que parece estar cada vez mais arraigada numa programaacutetica instrumentaccedilatildeo do indiviacuteduo Ao se negar a viver a vida que lhe eacute imposta ele vive ao se negar a ser ele eacute Porque agraves vezes eacute necessaacuterio abjurar o mundo para melhor compreendecirc-lo assim como a si mesmo Preferindo ser somente aquele que observa aquele que presencia e contempla laquoO Sr Teste eacute o testemunhoraquo207 O sacrifiacutecio da accedilatildeo do fazer em prol do espiacuterito Intrigante saber as supostas etimologias do seu estranho nome no francecircs antigo teste designa 204 Cf BENJAMIM Walter Sobre a atual posiccedilatildeo do escritor francecircs in Walter Benjamin trad Flaacutevio R Kothe Sociologia Aacutetica Satildeo Paulo 1985 p 178205 laquoNesse pontoraquo escreve Adorno laquoValeacutery natildeo aceitou ingenuamente a posiccedilatildeo do artista isolado e alienado nem fez abstraccedilatildeo da histoacuteria tampouco criou ilusotildees sobre o processo social que levou agrave alienaccedilatildeo Contra os arrendataacuterios da interioridade privada contra a astuacutecia que frequumlentemente preenche sua funccedilatildeo no mercado simulando a pureza daqueles que natildeo sabem o que se passa Valeacutery cita uma beliacutessima frase de Degas ldquoMais um desses ermitotildees que sabem o horaacuterio dos trensrdquo (p 1217) Com toda a dureza possiacutevel sem nenhum ingrediente ideoloacutegico mais radicalmente que qualquer teoacuterico da sociedade poderia fazer Valeacutery exprime a contradiccedilatildeo do trabalho artiacutestico nas condiccedilotildees sociais da produccedilatildeo material que reinam hoje na sociedaderaquo (ADORNO Theodor W La fonction vicariante du funambule in Notes sur la littteacuterature trad Sibylle Muller Flammarion Paris 1984 p 77)206 Teste chega ao limite de dizer laquoO espiacuterito natildeo deve se ocupar das pessoas De personis non curandumraquo (Œ2 p 70)207 Œ2 p 64

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cabeccedila e no latim testis espectador testemunha Valeacutery natildeo deixa de descrever assim a estaacutetica aventura desse seu personagem conceitual pelo sentido da existecircncia sentido que natildeo deve ser encontrado na religiatildeo ou na filosofia tampouco na histoacuteria mas que deve ser sobretudo construiacutedo inventado nele e talvez em todos por um disciplinado difiacutecil e natildeo raro doloroso programa de autoconsciecircncia

Teste tambeacutem o pratica o cumpre objetivando uma evoluccedilatildeo E nisso eacute o duplo de seu criador que a ele ou a si mesmo assim se refere laquoA imensa diferenccedila entre os Stendhal os Amiel e eu ou o S Teste mdash eacute que eles se interessam por seus estados e por si mesmos em funccedilatildeo do conteuacutedo dos seus estados enquanto que eu me interesso ao contraacuterio por aquilo que nesses estados natildeo eacute ainda pessoal pois os conteuacutedos a pessoa me parecem subordinadas a duas condiccedilotildees 1o a consciecircncia impessoal 2o a mecacircnica e a estatiacutesticaraquo208 Pergunta-se laquomdash Mas natildeo eacute esta afinal a procura do Sr Teste retirar-se do eu mdash do eu vulgar tentando constantemente diminuir combater compensar a desigualdade a anisotropia da consciecircnciaraquo209 Teste luta portanto para manter seu pensamento o mais reto possiacutevel e para manter-se ausente a qualquer ldquoemoccedilatildeordquoou ldquosentimentordquo sereno imperturbaacutevel ante as seduccedilotildees e os desvios do mundo Sua meta tambeacutem eacute fazer-se um eu puro Trata-se portanto mais uma vez de um processo de despersonalizaccedilatildeo de desumanizaccedilatildeo Algo que foi indiciado desde aepiacutegrafe do primeiro capiacutetulo La soireacutee avec Monsieur Teste como uma vida cartesiana laquoVita Cartesii est simplicissimaraquo210 Naturalmente ao evocar o nome deDescartes Valeacutery natildeo almeja discutir sobre questotildees gnosioloacutegicas como a idealidade do conhecimento se o mundo exterior existe realmente ou se eacute uma representaccedilatildeo da consciecircncia mas sobre o singular egotismo mdashracionalista ou melhor analiacutetico e por vezes no limiar do solipsismomdash praticado por seupersonagem conceitual laquoConfesso que fiz um iacutedolo do meu espiacuteritoraquo este assim confessa numa ceacutelebre passagem laquosendo tambeacutem verdade que natildeo encontrei outro Tratei-o com oferendas com injuacuterias Natildeo como coisa que me pertencesseraquo211 O programa de autoconsciecircncia de Teste revela assim um radicalismo muito mais intenso do que aquele praticado por seu proacuteprio criador pois ocorreparadoxalmente por um constante exerciacutecio intelectual de negaccedilatildeo de natildeoidentificaccedilatildeo

O modo como Valeacutery expressa essa negatividade essa natildeo identificaccedilatildeo eacute bastante inventivo Assemelha-se ao modo como amiuacutede eacute descrito a vida e o pensamento dos semi-miacuteticos ldquofundadoresrdquo das grandes religiotildees atraveacutes de

208 C1rsquo p 119209 Œ2 p 66210 Œ2 p 15211 Œ2 p 37

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breves e simboacutelicas biografias de compilaccedilotildees de uma perspectiva sempre singular pessoal e incompleta Naturalmente um suposto evangelho de Teste nada exigiria de ningueacutem Seus discursos seus ditos sempre circunstanciaisfrases esparsas e miacutenimas que aqui e ali aparecem seus pensamentos a solta satildeo demasiado esoteacutericos e costumam assumir a aporia e a contradiccedilatildeo como imanentes agrave loacutegica que os rege outros tambeacutem deixam seus testemunhos reflexos de uma tentativa infausta de compreendecirc-lo Dir-se-ia que quase tudo o que dele se pode saber repousa nos dizeres e nos escritos alheios em lembranccedilas e interpretaccedilotildees alheias nos disciacutepulos que o representam e natildeo o seguem isto eacute em mediaccedilotildees Satildeo os outros que se referem a ele mais do que ele mesmo a si mesmo um desconhecido que discursa sobre um primeiro encontro na oacutepera e uma luacutecida noite de conversa a carta de sua esposa Eacutemilie Teste na qual esta confessa entre tantas revelaccedilotildees o estranho amor que a une ao esposo a carta de um amigo um diaacutelogo fragmentos

Todavia essas descriccedilotildees todas satildeo por demais evasivas hermeacuteticas revelam a impossibilidade de se manter durante muito tempo uma imagem fixa e segura sobre essa personagem conceitual Fica-se apenas com flutuaccedilotildees com dominacircncias e movimentos com padrotildees laquoNatildeo existe imagem certa do Sr Teste Os seus retratos satildeo todos diferentesraquo laquoNa verdade natildeo se pode dizer nada dele que natildeo seja inexato no mesmo instanteraquo212 Teste revela-se para usar a feliz e ambiacutegua expressatildeo titular de Robert Musil sobre Ulrich o protagonista de seu mais vasto romance Der Mann ohne Eigenschaften213 um homem sem qualidades sem atributos um homem indefinido indefinido justamente porque laquoO homem ldquointeligenterdquo repugna se sentir uma pessoa um senhor bem definidoraquo214 Natildeo por acaso Benjamim dizer que ele laquoeacute uma personificaccedilatildeo do intelecto que lembra muito o Deus de que trata a teologia negativa de Nicolau de Cusa Tudo o que noacutes podemos saber de Teste desemboca na negaccedilatildeoraquo215 Em uacuteltima instacircncia o inteacuterprete valeacuteryano se encontra encurralado pois natildeo pode dizer categoricamente o que ele realmente eacute mas tatildeo-somente o que ele natildeo eacuteDefini-lo portanto eacute uma aproximaccedilatildeo sempre imperfeita ou incompleta Natildeo apenas porque a totalidade de uma pessoa sempre escapa agraves representaccedilotildees de seus contemporacircneos mesmo dos mais proacuteximos e iacutentimos mesmo de si mesmo mas principalmente porque Teste mdashnatildeo dando relevacircncia alguma ao que os outros julgam sobre simdash aceita a self-variance e se propotildee a negar a natildeo se identificar com nada nem com o mundo nem com o si mesmo nem com os

212 Œ2 p 29213 Cf MUSIL Robert O homem sem qualidades trad Lya Luft amp Carlos Abbenseth Nova Fronteira Rio de Janeiro 1989214 C2rsquo p 331215 BENJAMIN Walter Paul Valeacutery - Pour son soixantiegraveme anniversaire in Œuvres II trad Maurice de Gandillac Rainier Rochlitz amp Pierre Rusch Folio Essais Gallimard 2000 p 325

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fenocircmenos exteriores que estatildeo sempre a mudar nem com os fenocircmenos interiores que tambeacutem estatildeo sempre a mudar Tatildeo logo pense ser algo ele busca contemplar em que sentido o pensamento de ser algo ldquoopostordquo ou ldquoextremordquo tambeacutem eacute vaacutelido tatildeo logo pense ser algueacutem ele busca contemplar em que sentido o pensamento de ser um outro tambeacutem eacute vaacutelido216 laquoNatildeo sou toloraquo diz resumindo duramente esse seu procedimento capital laquoporque todas as vezes que me encontro tolo nego-me mdash mato-meraquo217

Teste conjura portanto ldquocontrardquo si mesmo executando uma espeacutecie dereduccedilatildeo fenomenoloacutegica de si mesmo uma espeacutecie de epocheacute de si mesmo Supor-se-ia que desse modo almeje realizar um estado uacuteltimo e absoluto no qual seu espiacuterito seria incapaz de negar aquilo que entatildeo contemplaria realmente ser uma espeacutecie de evidente irrefutaacutevel e inefaacutevel verdade Mas isso se constitui apenas como um procedimento heuriacutestico218 Pois seu intuito natildeo eacute realizar um egotranscendental apartado do mundo com o qual Descartes e Husserl sonham seu intuito eacute simplesmente permanecer em devir em devir negativo e portanto controlado laquoSr T[este] que eu concebiraquo diz Valeacutery laquomdash inuacutemeras vezes mdash seraacute o tipo de poliacutetica do pensamento mdash em frente a elemdash e inclusive contra ele O fim dessa poliacutetica eacute a manutenccedilatildeo e a extensatildeo e a ideacuteia que noacutes temos de noacutes mesmos Preparar incessantemente o momento do acaso afastar toda a definiccedilatildeo prematura de si mesmo [] mdash adquirir o poder de desdenhar nada menos do que cada fase de si mesmo mdash servir-se das ideacuteias e natildeo servi-las mdash eis o quadroraquo219 Daiacute tambeacutem ter sido denominado por seu proacuteprio criador em raras ocasiotildees de Teste Apocaliacuteptico220 (Apocalypte Teste) laquomdashBem (diz S Teste) O essencial eacute contra a vidaraquo221 Natildeo ter apego a nenhum estado de espiacuterito de consciecircncia natildeo ter apego a nenhuma representaccedilatildeo mental a nenhum pensamento eis portanto o simples procedimento adotado no seu itineraacuterio ao eu puro agrave despersonalizaccedilatildeo agrave desumanizaccedilatildeo

216 laquoSenhor Teste tinha adquirido o estranho haacutebito de se considerar como uma peccedila de seu jogo ou bem como uma peccedila de certo jogo Ele se via Ele se colocava sobre a mesa Por vezes ele se desinteressava da partida O emprego sistemaacutetico de um Eu (Moi) como um Ele (Lui)raquo (C1rsquo p 94 e 95)217 Œ2 p 45218 Eis uma estranha oraccedilatildeo de Teste que corrobora essa interpretaccedilatildeo laquoSenhor eu estava no nada infinitamente calmo Fui perturbado desse estado para ser lanccedilado a um estranho carnaval e a cuidados vossos ser dotado do necessaacuterio para sofrer fruir compreender e enganar-me atributos desiguais poreacutem Considero-vos senhor deste negro que vou olhando enquanto penso e sobre o qual haacute-de inscrever-se o derradeiro pensamento Concedei oacute Negro mdash concedei o supremo pensamento Mas o pensamento qualquer pensamento pode ser todo ele laquosupremo pensamentoraquo De outro modo a ser supremo em si e por si poderiacuteamos tecirc-lo por reflexatildeo ou acaso e uma vez tido deviacuteamos morrer Seria isto poder morrer de um pensamento determinado e apenas por natildeo haver outro que o prolongasseraquo (Œ2 p 37)219 C1rsquo p 236220 Cf C1rsquo p 1206 cf C2rsquo p 386 704 e 1356221 C2rsquo p 1424

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Consequumlentemente para Teste qualquer pensamento por mais sedutor poderoso e verdadeiro que possa aparentar natildeo deve ser tatildeo-somente um fim mas tambeacutem um meio um caminho no qual o pensante ininterruptamente caminha doravante quando eacute chegado o propiacutecio momento deve se ter coragem de abandonaacute-lo se assim necessaacuterio for sem remorso nas longiacutenquas margens da memoacuteria Ele sabe que o seu valor reside sobretudo no seu poder de alterar no que pode contribuir para a evoluccedilatildeo do espiacuterito natildeo se deve portanto querer cristalizaacute-lo paraacute-lo laquoAs ldquoIdeacuteiasrdquo [] satildeo meios de transformaccedilatildeoraquo afirma laquomdashe por consequumlecircncia partes ou momentos de alguma mudanccedilaraquo222 as ideacuteias satildeo pontes que levam a outras pontes Cumpre ao pensamento fazer daquele quepensa mais autaacuterquico Daiacute tambeacutem a sua justificada busca por tudo o que demanda esforccedilo por tudo o que eacute difiacutecil pois o difiacutecil exige da consciecircncia ser consciente o faacutecil em contrapartida eacute tudo aquilo que eacute executado inconscientemente automaticamente laquoSeja qual for a coisaraquo dizia laquosoacute aprecio a facilidade ou a dificuldade em conhececirc-la em consumaacute-la [] Que me importa aquilo que estou farto de saberraquo223 Para Teste os pensamentos satildeo etapas deuma transformaccedilatildeo mas tambeacutem catalizadores de maior ou menor eficaacutecia dessa transformaccedilatildeo

E eacute justamente por isso que a precisa personagem do Abade (ou do PadreMosson224) suposto confessor de sua esposa se escandaliza com a sua maneira de ser assustadoramente neutra amoral jamais submetida a um padratildeo de comportamento baseado e constrangido em direitos e deveres em recompensas e castigos laquoAbstrai-se pavorosamente do bemraquo diz o Abade (o Padre) laquomas felizmente abstrai-se do mal Haacute nele natildeo sei que assustadora pureza que distanciamento que incontaacuteveis forccedilas e luz Nunca vi uma falta de perturbaccedilotildees e duacutevidas como esta numa inteligecircncia trabalhada tatildeo a fundo Ele eacute terrivelmente calmo Natildeo se lhe pode atribuir nenhuma doenccedila de alma nenhumas sombras interiores mdash e nada aliaacutes que derive dos instintos do medo e da cobiccedila Mas nada se orienta para a Caridaderaquo225 Para Teste o movimento do mundo e de si mesmo um dos grandes problemas da filosofia grega claacutessica tampouco a justificaccedilatildeo moral e teleoloacutegica da existecircncia de todas as coisascriadas que natildeo raro resulta em doutrinas soterioloacutegicas um dos grandes problemas da filosofia cristatilde constituem realmente questotildees a serem postas e resolvidas Seu interesse seu foco eacute justamente outro eliminar qualquer busca por uma suposta essecircncia das coisas e por uma suposta moralidade universalmente vaacutelida e inscrita nas coisas pois muitas vezes tais intentos o

222 Œ2 p 71223 Œ2 p 19224 Œ2 p 31225 Œ2 pp 33-34

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modo mesmo de assim pensar oblitera a percepccedilatildeo da realidade na medida em que a idealiza ou a falseia em termos absolutos seja por uma constacircncia ontoloacutegica seja pelas problemaacuteticas categorias de bem e de mal A esse tipo de preocupaccedilatildeo de crenccedila a esse tipo de metafiacutesica dualista Teste eacute refrataacuterio prefere antes questionar-se natildeo sobre o que deve ou natildeo deve fazer natildeo sobre o que lhe eacute ou natildeo socialmente permitido fazer mas sobre o que pode ou natildeo podefazer e isso mesmo que depois nada faccedila prefere questionar-se sobre a relaccedilatildeo entre as circunstacircncias nas quais se encontra e as escolhas que a partir delas eacute capaz de tomar sem que haja nenhuma intermediaccedilatildeo nenhuma crenccedila a limitar ou a restringir essa mesma relaccedilatildeo Atualizando uma de suas principais questotildees Valeacutery assim se pergunta imperiosamente laquoQue pode um homemraquo226 Eis a suprema questatildeo inuacutemeras vezes repetida e reformulada a uacutenica quiccedilaacute que pode ser verdadeiramente respondida Teste eacute assim inventado desde o iniacutecio como laquoo democircnio mesmo da possibilidade [] Ele soacute conhece dois valores duas categorias da consciecircncia reduzida aos seus atos o possiacutevel e o impossiacutevelraquo227

Qualquer outra forma de pensar que natildeo se estabeleccedila dentro desse criteacuterio por essas duas simples ldquocategoriasrdquo lhe parece um contra-senso esteacuteril228 As perguntas mdashldquoO que seirdquo e ldquoO que devo fazerrdquomdash satildeo como que substituiacutedas por uma mais pragmaacutetica mais dura mas tambeacutem mais humilde ldquoO que posso fazerrdquo Teste poderia muito bem dizer ldquoEu natildeo sou o que sou eu sou o meu futurordquo229 laquoQuem eacute vocecircraquo pergunta-se retoricamente laquoEu sou o que eu posso eu me digoraquo230

Entretanto Valeacutery natildeo pocircde desprezar o fato de que o ser humano eacute condicionado e finito que esquecimento e morte fazem parte de seu horizonte Assim apesar da intenccedilatildeo em descrever uma personagem conceitual no mais alto grau de interioridade de despersonalizaccedilatildeo de desumanizaccedilatildeo imperturbaacutevel ante a miseacuteria ele natildeo pode descrevecirc-la furtando-se totalmente agraves leis naturais agraves

226 C1rsquo p 196227 Œ2 p 14228 Eacute por isso que em algumas passagens dos Cahiers Valeacutery chega a compreender seu personagem conceitual como o siacutembolo da reforma de maneiras de pensar da passagem de um operar com essecircncias para um operar com funccedilotildees Teste anota o poeta de modo um tanto obscuro laquobusca reformar maneiras de pensar mdash maneiras de sentir que tem milhotildees de anos de possessatildeo de estado que satildeo impostas pela linguagem pelo decoro porque haacute mais poder sobre um homem [] Pois por maneira de pensar eu natildeo entendo as ideacuteias sozinhas Ele natildeo muda opiniotildees Ele busca uma educaccedilatildeo outramente profunda despedaccedilamentos reais mdash manobras de uma delicadeza incomum como de guardar os poderes devidos a uma ilusatildeo mesmaraquo (C1rsquo pp 331-332) Ou ainda laquoSr Teste mdash demonstra ao Abade [ao Padre] que seu sistema eacute mais puro que toda a religiatildeoraquo (C2rsquo p 1332)229 laquoldquoQue pode um homemrdquoraquo lecirc-se numa passagem dos Cahiers laquo(Teste) eacute decididamente a mais grande questatildeo Mas poder tem 2 sentidos mdash um passivo e outro ativo Eu POSSO entender sentir suportar ser modificado sofrer etc mdash eacute o sentido ldquopropriedaderdquo mdash e o aspecto sensibilidade Eu POSSO fazer agir modificar mdash eacute o sentido faculdade mdash e o aspecto accedilatildeoEntre os dois duas possiacuteveis misturas Eu posso me lembrar mdash e eacute necessaacuterio acrescentar a isso todas as accedilotildees que satildeo ora reflexas ora voluntaacuteriasraquo (C1rsquo p 371)230 Œ2 p 1513

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necessidades e limites do corpo veiacuteculo de prazer e dor Em algum momento cedo ou tarde o sofrimento deve em Teste fazer-se presente como fenocircmeno e tema a ser enfrentado231 Do contraacuterio comprometer-se-ia a concepccedilatildeo que dele faz natildeo um ser acabado mas um ser em processo laquoOacute Meuraquo exclama num poema que revela justamente esse processo laquomdash que ainda natildeo eacutes inteiramente Euraquo232 laquoEacute muito curiosoraquo ainda confessa laquode repente fico-me visiacutevel distingo o fundo das minhas camadas de carne sinto zonas de dor aneacuteis poacutelos coroas de dor Estaacute a ver estas figuras vivas a geometria do meu sofrimento [] Luto contra tudo mdash salvo o sofrimento do meu corpo para laacute de uma determinada grandeza Portanto por aiacute eacute que eu devia comeccedilar Porque sofrer eacute prestar uma atenccedilatildeo suprema a qualquer coisa e de certa forma sou um homem da atenccedilatildeoraquo233

Teste refere-se aiacute ao sofrimento fiacutesico ante o qual ele natildeo se furta em aceitar e analisar Quanto ao sofrimento espiritual este eacute ao fim consequumlecircncia dosproacuteprios pensamentos ou mais precisamente da maneira como em geral o espiacuterito a consciecircncia com eles se relacionam como uma coisa a ser possuiacuteda enatildeo plasmada Daiacute todo o seu esforccedilo para negaacute-los para natildeo se identificar com eles e consequumlentemente para natildeo se entregar agrave esperanccedila Porque a esperanccedilafaz parte da predisposiccedilatildeo geral da personalidade da humanidade em crer e julgar subjetivamente os acontecimentos o tempo e em dar uma importacircncia demasiada agrave proacutepria identidade uma predisposiccedilatildeo da qual o medo o sofrimento tambeacutem participariam Isso natildeo implica todavia que Teste tatildeo desumanizado expresse-se desumanamente Eacute novamente a sua proacutepria esposa que assim paradoxalmente sintetiza laquoNa linguagem que usa tem natildeo sei que forccedila capaz de fazer ver e ouvir o que haacute de mais oculto E no entanto que frases humanas as suas e soacute humanas interioriacutessimas formas de feacute e mais nada reconstituiacutedas por artifiacutecio e articuladas maravilhosamente por um incomparaacutevel espiacuterito em audaacutecia e profundidade Explorou a frio dir-se-aacute a alma fervente Mas recompondo assim o meu coraccedilatildeo em chamas e a sua feacute falta-lhe pavorosamente a essecircncia que eacute esperanccedila Natildeo haacute um gratildeo de esperanccedila em toda a substacircncia do Sr Teste e eacute por isso que eu sinto um certo mal-estar com o exerciacutecio de seu poderraquo234

Como natildeo necessita de explicaccedilotildees religiosas filosoacuteficas ou metafiacutesicas que o guiem e que o consolem ele que almejava contemplar o mundo e a si mesmosem deformaccedilotildees Teste foi encarado pelo Abade (ou Padre) numa expressatildeo extremamente sinteacutetica e paradoxal como um laquomiacutestico sem Deusraquo235 (laquomystique sans

231 STAROBISNKI Monsieur Teste face agrave la douleur in JARRETY Michel (org) Valeacutery por quoi Les Impressions Nouvelles Paris 1987232 Œ2 p 43233 Œ2 p 25234 Œ2 p 35235 Œ2 p 34

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Dieuraquo) Um miacutestico sem Deus porque pratica seu programa de autoconsciecircncia sem esperanccedila alguma de realizaacute-lo plenamente porque para ele a palavra Deus natildeo designa um ser transcendente mas o si mesmo laquoDeus natildeo estaacute longeraquo afirmalaquoEacute o que haacute de mais pertoraquo236 O laquoSr Testeraquo confirma Valeacutery em seus Cahiers laquoeacute um miacutestico e um fiacutesico da auto-consciecircncia mdash pura e aplicadaraquo237

236 Œ2 p 65237 C1rsquo p 263

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3 SABER E PODER

31 SOB O SIGNO DA CIEcircNCIA

Os escritos que versam sobre Leonardo e Teste natildeo se desenvolveram de modo totalmente arbitraacuterios ou isolados devem-se ao proacuteprio programa de autoconsciecircncia desencadeada em grande medida pelo periacuteodo de crise e pela Noite de Gecircnova e consequumlentemente ao crescente e genuiacuteno interesse de um jovem Valeacutery pela Matemaacutetica e pela Ciecircncia Moderna Interesse jaacute iniciado com o primeiro contato com Eureka de Poe e com as aulas e discussotildees que nos anos de estudo na Faculteacute de Droit de Montpellier tinha com seu grande amigo Pierre Feacuteline238 e que uma vez desenvolvido jamais o abandonou Data dessa eacutepoca uacuteltima deacutecada do seacuteculo XIX as suas primeiras leituras e estudos dos trabalhos de cientistas como Michael Faraday James Clerk Maxwell Lord Kelvin Bernard Riemann Henri Poincareacute Albert Einstein e natildeo menos significativo do excecircntrico matemaacutetico polonecircs Hoeumlneacute Wroński239 Este com seu messianismo com sua busca por um saber supremo parece ter influenciado em muito o pensamento de Valeacutery (que o considerava um louco mas um louco genial) notadamente com a La philosophie de lrsquoinfini e Messianisme ou reforme absolu du savoire humain Aquele que pode ser considerado o primeiro de todos os Cahiers um ldquoproto-cahierrdquo iniciado talvez natildeo por acaso no mesmo periacuteodo da composiccedilatildeo dos escritos sobre Leonardo e Teste o pequeniacutessimo Carnet de Londres de 1890 quando de uma viajem a Inglaterra revela natildeo apenas o registro da leitura dessa obra mas tambeacutem a crescente fascinaccedilatildeo pela Matemaacutetica e pela Ciecircncia Moderna e em breves lampejos a intrincada gecircnese desses dois personagens capitais

A compreensatildeo do pensamento de Leonardo como natildeo fundamentado no verbalismo e como precursor do espiacuterito empirista contemporacircneo os ditos espirituosos e polecircmicos de Teste sobre a importacircncia da ignoracircncia da duacutevida e do pensamento negativo na formulaccedilatildeo e no avanccedilo do saber todas essas colocaccedilotildees somadas agraves inuacutemeras e incompletas reflexotildees sobre epistemologia e teoria do conhecimento em seus Cahiers contribuiacuteram doravante para aldquoexageradardquo imagem de Valeacutery como um grande ldquoentendedorrdquo da Matemaacutetica e da Ciecircncia Moderna da complexidade e do esoterismo destas como algueacutem

238 Cf FEacuteLINE Pierre Souvenirs sur Paul Valeacutery Mercure de France 321 1954 cf BERTHOLETDenis Paul Valeacutery - 1871-1945 Biographies Plon Paris 1995 pp 38-39 cf CELEYRETTE-PIETRI Valeacutery Valeacutery et Wronski in GIFFORD Paul amp STIMPSON Brian (orgs) Paul Valeacutery - Musique Mystique Matheacutematique Presses Universitaires de Lille Lille 1993 pp 147-162 239 Cf BERTHOLET Denis Paul Valeacutery - 1871-1945 Biographies Plon Paris 1995 p 85

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capaz de discutir de explicar com desenvoltura a Termodinacircmica e a Teoria da Relatividade ou mesmo problemas de uma posterior Neurociecircncia240

Todavia haacute que se dizer aqui que o interesse e os estudos do poeta seratildeo e continuaratildeo sendo mdashapesar de todos os seus inuacutemeros insights sobre o funcionamento do fazer cientiacuteficomdash extremamente diletantes para natildeo dizer amadores Supotildee-se que seus conhecimentos sobre a Matemaacutetica e a Ciecircncia Moderna aacutereas cada vez mais desdobraacuteveis e especiacuteficas nunca foram realmente tatildeo aprofundados como parte da criacutetica de divulgaccedilatildeo por vezes induz a crer E disso o poeta tinha plena consciecircncia que o saber ou melhor a diversidade dos saberes das ciecircncias especiacuteficas na Modernidade jaacute natildeo eacute passiacutevel de ser dominada por uma uacutenica pessoa e por conseguinte a formulaccedilatildeo de uma siacutentese relativa a esses saberes torna-se muito mais complicada Haacute que se dizer aqui mais uma vez que Valeacutery jamais pretendeu ser um especialista fazer ciecircncia oufilosofia da ciecircncia O que pretendeu foi antes algo mais proacuteprio a um literatoque escreve numa sociedade jaacute transformada e traumatizada pelo advento do espiacuterito positivo deixar-se contaminar pelo rigor e pela impessoalidade patente daMatemaacutetica e da Ciecircncia Moderna e transpor essas ldquoqualidadesrdquo essas ldquovirtudesrdquo para a sua praacutetica de escrituraccedilatildeo para o seu proacuteprio programa de autoconsciecircncia241 jaacute que num movimento que poderia muito bem ser denominado de cartesiano a literatura de sua eacutepoca adquiriu para ele para as suas exigecircncias um caraacuteter de vagueza e de gratuidade que em parte o impedia de praticaacute-la da maneira como ateacute entatildeo era praticada Daiacute todo o vasto imaginaacuterio cientiacutefico emsua obra seja em prosa ou poesia e esta escrituraccedilatildeo hiacutebrida um tanto inclassificaacutevel estranha mescla de ldquocaacutelculordquo e ldquoversordquo242 A ciecircncia lhe interessa sim mas talvez muito mais como uma especulaccedilatildeo Uma especulaccedilatildeo que diferentemente das especulaccedilotildees filosoacuteficas ou metafiacutesicas resulta em algo que funciona mas que tambeacutem eacute capaz de lhe fornecer sobretudo imagens Imagens poeacuteticas sobre o mundo ou sobre partes do mundo mateacuteria-prima para a reflexatildeo Porque toda forma de pensamento para Valeacutery acaba se tornando em uacuteltima instacircncia uma deacutelice E eacute enquanto deliacutecia mdashnatildeo enquanto verdademdash quepode ser um auxiliar no programa de autoconsciecircncia na ascese do espiacuterito Daiacute o irocircnico adaacutegio bem ao gosto do poeta segundo o qual a ciecircncia eacute uma ficccedilatildeo mas uma ficccedilatildeo que funciona laquoQuanto a mimraquo escreve ele laquoadmito facilmente ignorar o

240 Cf ROBINSON-VALEacuteRY Judith (org) Fonctions de lrsquoesprit - treize savants redeacutecouvrent Paul Valeacutery Hermann Paris 1983241 Cf ROBINSON-VALEacuteRY Judith Chapter 4 - The fascination of science in GIFFORD Paul amp STIMPSON Brian (orgs) Reading Paul Valeacutery - Universe in Mind Cambridge University Press Cambridge 1998 pp 70-84 especialmente p 70242 Cf VIRTANEN Reino Lrsquoimagerie scientifique de Paul Valeacutery Librarie philosophique J Vrin Paris 1975

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que ignoro [] Se a hipoacutetese eacute sedutora ou se a teoria eacute bela deleito-me sem pensar na verdaderaquo243

Eacute nessa perspectiva relativamente irocircnica que a concepccedilatildeo valeacuteryana desaber se constroacutei Para ele todo saber mdashtodo saber que eacute ciecircnciamdash corresponde necessariamente a uma controlada e rigorosa praxis a um laquoconjunto de receitas e procedimentos que sempre datildeo certo a uma foacutermula de atosraquo244 E o termo receita mdashrecorrente no pensamento do poetamdash eacute como uma representaccedilatildeo de atos possiacuteveis de sequumlecircncias de atos possiacuteveis que se posta em praacutetica se seguida leva a um determinado resultado previsto logo natildeo haacute na compreensatildeo do poeta nenhuma noccedilatildeo como do conceito de saber como ldquoconhecimento do objetordquo mas simplesmente como ldquoconhecimento de relaccedilotildees de funccedilotildees possiacuteveisrdquo conhecer algo eacute saber o que se pode fazer com esse algo e isso implica conhecer as relaccedilotildees possiacuteveis ao redor imediato desse algo Dessarte o poeta inuacutemeras vezes escreveu e reescreveu atualizou e insistiu que a uacutenica garantia do saber real eacute o poder poder de prever e de fazer mdashe que todo o resto natildeo passa de literaturamdash245 Dir-se-ia um tanto exageradamente que para Valeacutery saber eacute saber agir saber eacute saber fazer E isso implica consequumlentemente na anaacutelise dos fenocircmenos do mundo implica na fusatildeo ou na conciliaccedilatildeo entre racionalismo e empirismo essa dialeacutetica esse jogo entreir a experiecircncia e ir ao intelecto que a analisa assim propondo modelos e leis a partir da interpretaccedilatildeo da regularidade dos fenocircmenos naturais Note-se que em sentido geral a concepccedilatildeo valeacuteryana de saber natildeo eacute de modo algum nova Foi consagrada e difundida a partir do seacuteculo XVII particularmente a partir daprogramaacutetica filosofia de Francis Bacon segundo o qual o objetivo do saber transformado em teacutecnica era libertar a humanidade cada vez mais das necessidades materiais246 a partir da filosofia de Descartes que rompe com a tradiccedilatildeo Escolaacutestica e a Magia da Renascenccedila laicizando o pensamento247 Haacute que se dizer assim que juntamente com o espiacuterito cartesiano o espiacuterito baconiano estaacute mesmo que sub-reptiacuteciamente bastante presente no pensamento de Valeacutery acerca da ciecircncia o poeta rariacutessimas vezes cita o autor da inacabadaInstauratio Magna ao contraacuterio do autor do Discours de la Meacutethode inuacutemeras vezes referido

Soma-se a isso um certo positivismo Um positivismo que entretantodiferentemente da versatildeo de Auguste Comte laiciza-se adquire uma maiorflexibilidade uma maior plasticidade excluindo o impulso pelas categorizaccedilotildees

243 Œ1 p 899244 Œ1 p 1253245 Cf Œ1 p 1253246 Cf BACON Francis The new organon org Lisa Jardine amp Michael Silverthorne Cambridge University Press Cambridge 2000247 Cf DESCARTES Reneacute Discurso do Meacutetodo Meditaccedilotildees Objeccedilotildees e respostas amp As paixotildees da alma Cartas trad J Guinsburg e Bento Prado Juacutenior Os Pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1979

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demasiado fixas em prol da plasticidade do discurso fragmentado Pois para Valeacutery se o saber eacute verdadeiramente saber isto eacute cientiacutefico entatildeo deve sempre se referir de algum modo a uma realidade mesmo que essa realidade natildeo seja percebida pelos sentidos mesmo que natildeo esteja na dimensatildeo ou na escala dos sentidos mesmo que seja uma seacuterie de acumuladas e fabulosas inferecircncias248

Mas tambeacutem deve ser ldquoem mimrdquo e ldquonum outrordquo uma representaccedilatildeo que possa ser transmitida compreendida aceita e compartilhada e sobretudo de um mesmo modo E eacute isso que confere na perspectiva social o seu caraacuteter de ldquoobjetividaderdquo Logo eacute com relaccedilatildeo a uma comunidade uma comunidade cientiacutefica que o saber tambeacutem se instaura e natildeo somente aos seus pressupostos internos Nesse sentido jaacute se disse que para Valeacutery aquilo que eacute verbal logoteoria natildeo eacute ou natildeo pode ser cientiacuteficoporque o que eacute verbal logoteoacuterico implicaria na possibilidade de muitas e distintas interpretaccedilotildees implicaria em muitas ambiguumlidades isto eacute na imprecisatildeo na falta de um acordo com relaccedilatildeo agraves definiccedilotildees e agraves significaccedilotildees do que estaacute em jogo na medida em que uma proposiccedilatildeo verbal estaacute muito mais sujeita a ser apropriada a ser interpretada por diversas e contraditoacuterias maneiras do que umaequaccedilatildeo matemaacutetica ou fiacutesica agrave qual parece natildeo ter senatildeo funcionalidade Isso talvez seja um belo exagero jaacute que no pensamento do poeta eacute possiacutevel encontrarnatildeo apenas a ideacuteia da possibilidade de um saber cientifico mas tambeacutem da possibilidade de um saber humaniacutestico

Por outro lado todo esse modo de compreender o saber pode induzir facilmente a interpretar que Valeacutery postula ou busca postular uma linha ou um limite um criteacuterio preciso de demarcaccedilatildeo de cesura epistemoloacutegica entre o que eacute ciecircncia de um lado e o que natildeo eacute ciecircncia de outro e que o poder (e nada mais) eacute justamente esse criteacuterio que o saber soacute eacute saber porque se desdobra em poder real ou potencial ou ainda que todo poder corresponderia a um saber etc Em certo sentido essa eacute uma interpretaccedilatildeo possiacutevel e bastante compreensiacutevel jaacute que muitas passagens dos escritos valeacuteryanos tomadas mais isoladamente realmente a legitimam Ademais o poeta tambeacutem se refere constantemente agrave ideacuteia de que na Ciecircncia Moderna deve haver mesmo que natildeo de todo sistematizada algum tipo de verificaccedilatildeo ou de controle pensamento este relativamente compartilhadocom o Positivismo loacutegico do Wiener Kreis 248 Em Lrsquoideacutee fixe - ou deux hommes agrave la mer Valeacutery atraveacutes da voz ou personagem do meacutedico refere-se por exemplo agrave necessidade que a Ciecircncia Moderna tem de criar novos meios de representaccedilatildeo para fenocircmenos que natildeo satildeo diretamente captados pelos sentidos (como o demasiado grande e o demasiado pequeno) mas somente inferidos mediante novos instrumentos de captaccedilatildeo e novas teorias de anaacutelise laquoas investigaccedilotildees nos conduziram com bastante prontidatildeo fora do domiacutenio primitivo de nossas percepccedilotildees Encontramos novos meios de ver e de atuar Mas tais meios satildeo indiretos [] Haacute que se interpretar ou ilustrar suas indicaccedilotildees mediante imagens ou ideacuteias necessariamente tomadas de nosso depoacutesito fundamental e invariaacutevel [] Como imaginar um mundo no qual eacute impensaacutevel o ver o tocar em que natildeo existam a figura nem as categorias no qual ateacute as noccedilotildees de posiccedilatildeo e movimento satildeo de certo modo incompatiacuteveis Os fiacutesicos tratam de sair adiante mediante incriacuteveis sutilezasraquo (Œ2 p 269)

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Todavia a intenccedilatildeo em postular ou buscar postular um criteacuterio preciso de demarcaccedilatildeo de cesura epistemoloacutegica parece entrar em ldquocontradiccedilatildeordquo com a proacutepria concepccedilatildeo sustentada por Valeacutery segundo a qual arte e ciecircncia (e mesmo todas as atividades espirituais) satildeo variaccedilotildees exteriores por vezes apenas nominais de um mesmo interior249 Essa ldquocontradiccedilatildeordquo em certa dimensatildeo interpretativapermanece em seus escritos como uma oscilaccedilatildeo de maior ou menor intensidade agraves vezes ele a afirma agraves vezes a matiza agraves vezes simplesmente a ignora250 Pode ser compreendida como consequumlecircncia dos ambiacuteguos impulsos ou momentos mais positivistas de Valeacutery de seu apreccedilo ldquocartesianordquo ou ldquoracionalistardquo pela Matemaacutetica e pela Ciecircncia Moderna por formas cristalinas de representar os fenocircmenos do mundo Entretanto o que talvez esteja em jogo nessa contradiccedilatildeo nessa oscilaccedilatildeo pode ser assim posto e resolvido se por um lado eacute possiacutevel distinguir entre a ciecircncia e a natildeo ciecircncia por outro natildeo eacute possiacutevel precisar a fronteira de demarcaccedilatildeo entre a ciecircncia e a natildeo ciecircncia se existe se eacute necessaacuterio existir para este ou aquele sistema de pensamento essa fronteira sofre de imprecisatildeo Ela natildeo pode ser nitidamente distinguiacutevel E isso se deve tanto pela dinacircmica das proacuteprias ciecircncias especiacuteficas que estatildeo sempre se reinventando de acordo com as novas descobertas e teorias assim como pela variada idiossincrasia daqueles que epistemologicamente as dimensionam e precisam

Cumpre dizer tambeacutem e principalmente que contemplando os escritos do poeta na sua totalidade e verificando o quanto de subentendidos de ironia eretoacuterica estes encerram de experimentalismos compreende-se que muitas vezes o que ele pretende eacute simplesmente constatar mdashveementemente constatar e quase nada maismdash uma espeacutecie de impulso de predisposiccedilatildeo espiritual dele e de grande parte da mentalidade operante na Modernidade em comumente compreender e aceitar o saber como poder E isso devido principalmente aos inuacutemeros efeitos praacuteticos suas consequumlecircncias e seus impactos da CiecircnciaModerna quando esta se revela uma espeacutecie de ldquoadivinhaccedilatildeordquo baseada em experiecircncias e inferecircncias rigorosas quanto esta se identifica se transmuta e se desdobra em teacutecnica e consequumlentemente acaba operando de um modo quiccedilaacute irrefutaacutevel na vida cotidiana E nesse sentido o alvo de Valeacutery mdashrelativamente anaacutelogo ao proacuteprio espiacuterito baconiano que em parte natildeo deixa de aspirar a umaespeacutecie de sociologia do sabermdash natildeo eacute tanto a ciecircncia em sentido interno com relaccedilatildeo aos seus proacuteprios pressupostos mas muito mais a ciecircncia em sentido externo com 249 Cf PIETRA Reacutegine Valeacutery et la reflexion eacutepisteacutemologique dans les dix derniers anneacutees du XIXe siegravecle ndash Valeacutery et Poincareacute in CELEYRETTE-PIETRI Nicole amp SOULEZ Antonia (orgs) Valeacutery la logique et le langage Sud - Revue litteraire bimestrielle Val de Marne le 29 novembre 1986 Universiteacute Paris XII Paris 1988 p 54 250 Note-se que essa ldquocontradiccedilatildeordquo ocorre agraves vezes num mesmo escrito sobretudo nos escritos sobre Leonardo nos quais Valeacutery afirma que o artista italiano eacute aquele cujo meacutetodo natildeo separa a ciecircncia da arte o compreender do criar mas tambeacutem aquele que sempre estaacute pensando no poder no poder de agir de fazer

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relaccedilatildeo agrave sociedade na qual eacute feita e da qual transforma e eacute transformada dir-se-ia assim que satildeo os resultados dela que ldquoinduzemrdquo que ldquoconvidamrdquo a pensaacute-la mais como poder e menos como conhecimento Pois numa sociedade que se estabelece em grande medida num ldquopragmatismordquo num ldquoimediatismordquo numa intensa racionalidade e burocratizaccedilatildeo dos meios o que estaacute em jogo eacute sobretudo a funcionalidade ou melhor a eficaacutecia das construccedilotildees intelectuais humanas e muito pouco a possibilidade de serem representaccedilotildees ldquocorretasrdquo da realidade ou dos fenocircmenos da realidade a possibilidade de serem ldquoverdadesrdquo

Valeacutery simplesmente atenta portanto para aquilo que a ciecircncia sempre foi e ainda eacute para o ser humano que dela se utiliza que dela se apropria um tipo de saber que fornece um controle ou domiacutenio mesmo que relativamente limitado sobre o mundo sensiacutevel material Mundo que natildeo pode refutar e que portanto anseia por dominaacute-lo O que se torna patente justamente em seus ensaios e fragmentos sobre Descartes nos quais avalia propositadamente menos a filosofia deste e mais o impacto do Cartesianismo dessa acircnsia desmesurada natildeo raro ldquofalsificadorardquo em estender a matemaacutetica como modelo uacutenico para todos os campos do saber Num desses ensaios lecirc-se estas certeiras palavras laquoEste mundo estaacute penetrado das aplicaccedilotildees da medida Nossa vida se encontra cada vez mais ordenada segundo determinaccedilotildees numeacutericas e tudo aquilo que escapa agraverepresentaccedilatildeo atraveacutes dos nuacutemeros todo conhecimento natildeo mesuraacutevel eacute castigado com uma sentenccedila de depreciaccedilatildeo Nega-se cada vez mais o nome de ldquoCiecircnciardquo a todo saber intraduziacutevel em cifras Eis a singular observaccedilatildeo sobre a que se remataraacute esta concepccedilatildeo o caraacuteter eminente desta modificaccedilatildeo da vida que consiste em organizaacute-la segundo o nuacutemero e o tamanho tatildeo pura quanto seja possiacutevel de tal modo que o verdadeiro dos modernos relacionado exatamente ao seu poder de accedilatildeo sobre a natureza parece opor-se mais e mais agravequilo que nossa imaginaccedilatildeo e nossos sentimentos quisessem que fossem verdadeiroraquo251

As esparsas consideraccedilotildees que Valeacutery tece sobre o saber referem-se portanto natildeo apenas ao impacto teacutecnico mas tambeacutem ao impacto espiritualsobre o modo de pensar e de se comportar da sociedade em geral mdashmesmo que isso ocorra (e ocorre) de um modo relativamente fantasioso e leve a uma problemaacutetica mitificaccedilatildeo do proacuteprio saber a um cientificismo cujo caraacuteter natildeo deixe de ser por vezes ilusoacuteriomdash O desenvolvimento da Matemaacutetica e da Ciecircncia Moderna e as inuacutemeras imagens ou idealizaccedilotildees os inuacutemeros sonhos que delas se fizeram projetar acabaram contribuindo em muito para o processo de laicizaccedilatildeo e racionalizaccedilatildeo da Modernidade acabaram minando ou transformando seja no todo ou em determinadas partes vaacuterias concepccedilotildees de mundo vaacuterias crenccedilas e descrenccedilas vaacuterias religiotildees e metafiacutesicas Estas foram

251 Œ1 pp 843-844

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obrigadas a natildeo raro se adaptar ou abandonar muitas de suas concepccedilotildeesoutrora por vezes consideradas certas e perenes Desenvolve-se adquire dominacircncia todo um modo de refletir sobre a realidade menos ldquoespeculativordquo menos ldquofantasiosordquo porque em certo sentido mais ldquolimitadordquo mais ldquohumilhadordquo pelo que legitima as dimensotildees da experiecircncia e da razatildeo ambasrigorosamente conduzidas focadas mais cioso no que se propotildee a pesquisar e a teorizar Um modo de refletir que natildeo busque o ldquoporquecircrdquo mas somente o ldquocomordquo das coisas que natildeo alimente pretensotildees de fornecer representaccedilatildeo de sentidos ou de essecircncias O que consequumlentemente favoreceu em grande medida o desenvolvimento de uma poderosa consciecircncia criacutetica e analiacutetica aplicaacutevel a todas as aacutereas do saber humano e da qual Valeacutery se posiciona neste caso como um singular herdeiro particularizando-a no seu programa deautoconsciecircncia no seu exerciacutecio cotidiano que busca iluminar os seus proacuteprios processos e representaccedilatildeo Poder-se-ia dizer seguindo o caraacuteter do seu pensamento avesso agrave rigidez das crenccedilas cristalizadas e mesmo a toda a crenccedilaque conforme o ser humano amplia seus poderes de atuaccedilatildeo no mundo e sobre o mundo conforme inventa a sua ciecircncia e as suas teacutecnicas as suas crenccedilas do que seja o proacuteprio mundo a isso tendem a se adaptar a se transformar haacute portanto uma espeacutecie de dialeacutetica entre o que se eacute capaz de agir de fazer e o que se crecirc Daiacute a primazia que o poeta daacute a accedilatildeo a feitura A accedilatildeo a feitura condicionantes crivos do pensamento

Assim em particular sobre a filosofia mdashisto eacute sobre a metafiacutesicamdash duas consequumlecircncias se apresentam e se imbricam

Primeira conforme as ciecircncias especiacuteficas se desenvolviam a princiacutepio as naturais como a fiacutesica e a biologia para depois as humanas como a sociologia e psicologia haacute como que uma amarga constataccedilatildeo de que a proacutepria filosofia da qual essas mesmas ciecircncias especiacuteficas em grande medida se depreenderam vai gradualmente como que perdendo seus objetos de reflexatildeo vai gradualmente se esvaziando Isso porque quando constroem abordagens particulares sobre seu objeto particular uma epistemologia suficientemente riacutegida e positiva as ciecircncias especiacuteficas adquirem relativa autonomia e dinacircmica E nesse mesmo processo proacuteprio da racionalizaccedilatildeo na Modernidade a filosofia esvaziada acaba muitas vezes se tornando um modo particular de abordar e analisar seus objetos sejam estes cientiacuteficos ou artiacutesticos torna-se tambeacutem natildeo raro uma disciplina particular e especiacutefica entre tantas outras disciplinas particulares e especiacuteficas O que naturalmente pode trazer natildeo apenas malefiacutecios mas benefiacutecios agrave proacutepria filosofia forccedilada a buscar novas formas de abordagem e novos objetos a concentrar-se e inventar-se no que lhe eacute mais proacutepria

Segunda consequumlecircncia a filosofia deixa de ser novamente identificada em parte ou no todo com a ciecircncia ou melhor com o saber como era no periacuteodo

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em que seu eacutetimo foi fixado identificaccedilatildeo essa ainda relativamente patente no conturbado seacuteculo XVII quando todo o processo de particularizaccedilatildeo do proacuteprio saber teve iniacutecio de modo sistemaacutetico e crescente Isso porque na perspectiva valeacuteryana a filosofia natildeo fornece natildeo pode fornecer justamente nenhuma ou quase nenhuma teacutecnica de verificaccedilatildeo de controle nenhuma teacutecnica de previsibilidade e de accedilatildeo de feitura sobre a natureza exterior materialmente moldaacutevel a filosofia natildeo fornece nenhum poder252 mdashao menos natildeo de modo estritamente positivomdash Com ela nada ou muito pouco se pode fazer com ela as coisas permanecem como estatildeo serve talvez mdasho que jaacute eacute muitomdash agraves elucidaccedilotildees dos labirintos mentais do proacuteprio filoacutesofo que a filosofa Pergunta-se O que fazer com as Ideacuteias de Platatildeo ou as Categorias de Aristoacuteteles o que fazer com o Uno de Plotino ou a Trindade de Santo Agostinho o que fazer com o Deus de Espinosa ou as Mocircnadas de Leibniz o que fazer com o Espiacuterito de Hegel Como objetivar tais ldquoinvenccedilotildeesrdquo Como compartilhaacute-lasverdadeiramente Situada paradoxalmente aqueacutem ou aleacutem do universo que as experiecircncias legitimariam aqueacutem ou aleacutem das possibilidades da experiecircncia portanto fora do alcance de ser objetivamente comprovada ou refutada a filosofia enquanto metafiacutesica foi doravante natildeo raro compreendida como uma construccedilatildeo ilusoacuteria quimera incapaz de revelar qualquer elemento a ser objetivamente transmitido Em grande medida Valeacutery compartilha desse modo de compreendecirc-la E toda a sua criacutetica agrave filosofia ou melhor a sua desconfianccedila a sua refraccedilatildeo agrave filosofia estaacute dessarte sob o imperioso impacto sob o signo da Matemaacutetica e da Ciecircncia Moderna Hoje como ele mesmo diz laquotoda a metafiacutesica e mesmo uma teoria do conhecimento quaisquer que sejam elas encontram-se brutalmente separadas e distintas daquilo que todos mais ou menos conscientemente consideram o uacutenico saber real mdash exigiacutevel em outroraquo253

[Grifo do autor]Diante de todo esse estado de coisas diante do impacto da Ciecircncia

Moderna e da Matemaacutetica tatildeo duramente diagnosticado pelo poeta e por outros chegou-se inclusive a anunciar a morte da filosofia Numa passagem dos seus Cahiers Valeacutery tendo em mente o espiacuterito funcionalista de seu Sistemajamais cumprido vai por exemplo ainda mais longe talvez demasiado longe numa espeacutecie de profecia criacutetica extrema acerca do destino da filosofia laquoEm suma todas as noccedilotildees que natildeo permitem combinar exatamente mdash e que natildeo se referem a observaccedilotildees permanentes satildeo maacutes noccedilotildees Haveraacute um tempo (isto eacute um homem) mdash no qual as palavras de nossa filosofia pareceratildeo antiguidades e soacute seratildeo conhecidas por eruditos Noacutes natildeo falaremos mais de pensamento Hoje a

252 Œ1 p 1256253 Œ1 p 1240

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palavra Beleza natildeo tem ou quase natildeo tem mais uso filosoacutefico Os proacuteprios nomes de filosofia de psicologia seratildeo como o da alquimiaraquo254

Naturalmente qualquer diagnoacutestico desse tipo mdashseja pelo vieacutes marxista a proclamar a necessidade do pensamento vir a ser praacutexis criacutetica e transformadora da sociedade ou pelo vieacutes da anaacutelise linguumliacutestica a desconfiar da veracidade dos problemas metafiacutesicos etcmdash ateacute hoje revelou-sehistoricamente falso Falso natildeo na medida em que tais posiccedilotildees natildeo possam ser adotadas porque elas satildeo mas na medida em que na perspectiva social sob o termo ldquofilosofiardquo se agrupam ontem e hoje praacuteticas plurais natildeo raro divergentes contraditoacuterias entre si um sem-nuacutemero de propostas que por vezes se assemelham numa mesmice excessiva e por vezes se distanciam umasdas outras a ponto de natildeo serem reconhecidas como praacuteticas designadas pelo mesmo termo Ademais e principalmente os seres humanos mdashcomo quesupostamente insatisfeitos com o estado presente do saber e da ordem do mundo condicionados pelo nascer e pelo morrer pela dor e pelo sofrimento por uma existecircncia que natildeo revela seu sentido nem ao menos se possui ou natildeo sentidomdash continuam simplesmente a duvidar e a desejar crer a se questionar a se colocar as mesmas velhas questotildees e outras novas a se colocar as mesmasvelhas respostas e outras novas num processo de atualizaccedilotildees e descobertas que perpetuam os seus itineraacuterios espirituais O termo ldquofilosofiardquo pode ateacute deixar de ser usado isso pouco ou nada importa Mas a praacutetica que ela ainda hoje representa continua sob uma miriacuteade de outros nomes ou misturada a outras tantas praacuteticas de uma forma ou de outra A filosofia permanece porque permanece o humano

Apesar das suas irocircnicas reflexotildees quanto ao futuro da proacutepria filosofia o poeta tambeacutem tem consciecircncia dessa permanecircncia No diaacutelogo Lrsquoideacutee fixe ou deux hommes agrave la mer ele escreve atraveacutes da voz ou personagem doidiossincraacutetico meacutedico sobre a diferenccedila entre o homem e o animal O animal como que preso agrave dimensatildeo das necessidades imediatas natildeo pode fazer absolutamente nada que natildeo for uacutetil mas o homem ao ser capaz de sedistanciar da dimensatildeo das necessidades imediatas inventou religiotildees artes filosofias e ciecircncias concepccedilotildees de mundo e outros mundos Inventou 254 C1rsquo p 574 Natildeo deixa de ser intrigante ler num dos fragmentos dos Cahiers a seguinte passagem confissatildeo da vontade de imaginar um homem para aleacutem inclusive de Leonardo e Teste que viveria e pensaria apenas com categorias meramente funcionais isto eacute um homem puramente ldquopositivordquo ldquocientiacuteficordquo laquoEu imagino com bastante frequumlecircncia um homem que seria em possessatildeo de tudo o que noacutes sabemos feito de operaccedilotildees precisas e de receitas mas inteiramente ignorante de todas as noccedilotildees e de todas as palavras que natildeo nos datildeo imagens claras nem natildeo despertam atos uniformes e [que] podem ser repetidos Ele jamais entendeu [o que eacute] falar de espiacuterito de alma de pensamento de substacircncia de liberdade de vontade de tempo de espaccedilo de forccedilas de vida de instintos de memoacuteria de causa de deuses nem de moral nem de origens e em suma ele sabe tudo o que noacutes sabemos e ignora tudo o que noacutes ignoramos Mas ele disso ignora inclusive os nomes [] eu o coloco em movimento e eu o solto no meio das circunstacircnciasraquo (C1rsquo p 573-574)

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portanto o inuacutetil Mas esse inuacutetil eacute todo um vasto e complexo tesouro de riquezas simboacutelicas laquosob pressatildeo exterior ou orgacircnica imediata a vaca vecirc as estrelas e natildeo extrai uma astronomia como a caldeacuteia nem uma moral como a de Kant nem uma metafiacutesica como a de todo mundo [] Se um objeto novo a espanta ela o deixa e nunca sentiraacute a tentaccedilatildeo de voltar a ele com precauccedilatildeo e concupiscecircncia intelectual para identificaacute-lo e classificaacute-lo em seu sistema de mundoraquo255

311 CRIacuteTICA Agrave HISTOacuteRIA

Todavia natildeo apenas a filosofia sofre com o desenvolvimento da Matemaacutetica e da Ciecircncia Moderna com o desenvolvimento da concepccedilatildeo do saber como poder mas tambeacutem as proacuteprias Ciecircncias Humanas as Ciecircncias doEspiacuterito e em particular a histoacuteria Dando sempre mais importacircncia aoindiviacuteduo do que ao coletivo professando na dimensatildeo poliacutetica uma espeacutecie deparadoxal anarquismo aristocraacutetico256 Valeacutery continua sempre um racionalista e como tal relativamente desconfiado de um pensamento histoacuterico ou que se apegue a tradiccedilotildees demasiada riacutegidas Possui por conseguinte particular predileccedilatildeo em criticar as ilusotildees na qual a histoacuteria mdashenquanto disciplinaatividademdash opera e resulta257 sobretudo em Discours de lrsquohistoire e outras passagens de seus Essais quasi politiques Trata-se entretanto de uma criacutetica cujorepertoacuterio eacute uma praacutetica herdeira de historiadores-pensadores como HyppolyteTaine e Alexis de Tocqueville e principalmente Jules Michelet (a cuja obra o poeta eacute bastante avesso258) Uma praacutetica herdeira dos seacuteculos XVIII e XIX ainda muito atrelada a perspectivas idealistas romacircnticas e positivistas natildeo raro operando atraveacutes da crenccedila de uma filosofia da histoacuteria em bases metafiacutesicas da crenccedila que haacute um destino natildeo apenas individual mas coletivo a reger tudo o que pode ser designado por grandiosas e geneacutericas palavras como raccedila sociedade civilizaccedilatildeo humanidade Logo natildeo se pode compreender o pouco que Valeacutery mdashnesse aspecto bastante nominalistamdash escreve sobre a histoacuteria pela perspectiva do que foi produzido posteriormente a ele as propostas teoacutericas da Eacutecole des Annalesde um Marc Bloch e um Lucien Febvre de um Georges Duby e um Jacques Le

255 Œ2 p 230256 Cf PA257 Numa carta a Anatole de Monzie o poeta chega a fazer a distinccedilatildeo entre Histoacuteria com H maiuacutescula e histoacuteria com h minuacutesculo a primeira designa um mito o mito que nasce ao se personificar um termo abstrato em tornaacute-lo uma espeacutecie de deus mito que eacute exemplificado em expressotildees como a laquoHistoacuteria nos ensinaraquo a laquoHistoacuteria julgaraacuteraquo a segunda a histoacuteria enquanto praacutetica do historiador enquanto disciplina atividade E eacute nesse segundo aspecto que sua reflexatildeo realmente mais se desdobra (Cf Œ2 p 1549)258 Œ2 p 1549

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Goff escapam em grande medida agrave criacutetica valeacuteryana jaacute que em parte coadunam-se com esta

O pressuposto do qual o poeta parte eacute relativamente simples e tem como criteacuterio naturalmente a sua proacutepria concepccedilatildeo de saber como poder Nunca ensinando nada ou muito pouco a histoacuteria eacute para o poeta laquoa ciecircncia das coisas que natildeo se repetemraquo259 dos acontecimentos que ao acontecer acontecem uma uacutenica vez singularmente Portanto dos acontecimentos que num sentidopositivo natildeo satildeo passiacuteveis de serem representados de serem sintetizados de um modo preciso e seguro sob o signo de uma mesma lei geral induzida ou abstraiacuteda pelo espiacuterito que analisa os documentos ou os rastros que supostamente os representam Consequumlentemente soacute com muito cuidadopodem ser usados como modelos para a anaacutelise da sua ocorrecircncia no presente ou da previsatildeo da sua ocorrecircncia no futuro como frequumlentemente ocorre nas ciecircncias naturais Eacute certo que haacute acontecimentos que satildeo denominados por exemplo pela esfera semacircntica de uma mesma palavra como a palavra guerramas nenhuma guerra eacute igual agrave outra guerra e natildeo o eacute a tal ponto que natildeo se pode construir uma lei geral de todas as guerras como se todas devessem seguir um plano preacute-determinado e fora do tempo um mesmo padratildeo de desenvolvimento de surgimento e desaparecimento Dir-se-ia assim que os acontecimentoshistoacutericos natildeo satildeo passiacuteveis de serem compreendidos como tendo a mesma intensidade de semelhanccedila que os acontecimentos naturais os primeiros nos quais o elemento humano eacute central satildeo como que plaacutesticos em demasia os uacuteltimos nos quais o elemento humano parece ausentar-se satildeo como que riacutegidos o suficiente Algumas palavras que Valeacutery escreve sobre o desenvolvimento da Ciecircncia Moderna e sobre a poliacutetica exemplificam essa concepccedilatildeo laquoEnquanto que nas ciecircncias da natureza as pesquisas multiplicadas depois de trecircs seacuteculos nosrefizeram uma maneira de ver e substituiu a visatildeo e a classificaccedilatildeo ingecircnua de seus objetos por sistemas de noccedilatildeo especialmente elaborados noacutes permaneciacuteamos na ordem histoacuterica-poliacutetica no estado de consideraccedilatildeo passiva e de observaccedilatildeo desordenada O mesmo indiviacuteduo que pode pensar [a] fiacutesica ou [a] biologia com instrumentos de pensamento comparaacuteveis a instrumentos de precisatildeo pensa a poliacutetica [e a histoacuteria] atraveacutes de meios impuros de noccedilotildees variaacuteveis de metaacuteforas ilusoacuteriasraquo260

Desse modo para um poeta que almeja uma independecircncia com relaccedilatildeo agraves crenccedilas passadas uma autarquia intelectual que compreende o saber como poder como poder utilizaacutevel torna-se compreensiacutevel toda a sua desconfianccedila com relaccedilatildeo ao que a histoacuteria possa realmente vir a lhe oferecer laquoQue me

259 Œ1 p 1135260 Œ2 p 920

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importa [] o que acontece apenas uma vez A histoacuteria eacute para mimraquo confessa laquoum excitante e natildeo um alimento O que ela informa natildeo se muda em tipos de atos em funccedilotildees e operaccedilotildees de nosso espiacuterito Quando o espiacuterito estaacute bem desperto tem necessidade apenas do presente e de si mesmoraquo261 Todavia Valeacutery tambeacutem reconhece que a histoacuteria pode sim ser utilizaacutevel Natildeo agrave coletividademas somente ao indiviacuteduo mediante a inserccedilatildeo no passado particular desseindiviacuteduo laquoO melhor meacutetodo para se ter uma ideacuteia do valor e do uso da histoacuteria mdash a melhor maneira de aprender a lecirc-la e a servir-se dela mdashraquo escreve laquoconsiste em tomar como modelo de acontecimento acontecimentos realizados sua experiecircncia proacutepria e em acolher no presente o modelo de nossa curiosidade pelo passado O que vimos com nossos proacuteprios olhos aquilo por que passamos em pessoa o que fomos o que fizemos mdash eis o que deve nos fornecer o questionaacuterio deduzido de nossa proacutepria vida que proporemos em seguida agrave histoacuteria para que preencha e ao qual ela deveraacute se esforccedilar em responder quando a interrogamos sobre eacutepocas em que natildeo vivemos Como era possiacutevel viver naquela eacutepoca Esta eacute no fundo toda a questatildeo Todas as abstraccedilotildees e noccedilotildees encontradas nos livros satildeo inuacuteteis se natildeo lhes fornecerem o meio de reencontraacute-las a partir do indiviacuteduoraquo262 Ou ainda de modo mais direto a laquoHistoacuteria deveria ser a tentativa de responder atraveacutes de documentos a uma taacutebua de questotildees formadas a partir da anaacutelise do presenteraquo263

A partir dessa perspectiva avessa a todo historicismo a toda proposta de compreender o passado posicionando-se no passado a subsequumlente criacutetica de Valeacutery agrave histoacuteria pode ser compreendida ou sintetizada em dois momentos que se imbricam e se complementam

O primeiro momento mais abrangente refere-se ao modo como em gerala histoacuteria eacute expressa pelos historiadores e natildeo deixa de ser algo distante da criacuteticavaleacuteryana agrave literatura de caraacuteter narrativo e realista como o romance Enquantodisciplina enquanto atividade a histoacuteria natildeo se refere agrave ldquomemoacuteria coletivardquo isto eacute aos signos compartilhados por uma coletividade a histoacuteria refere-se sobretudo a uma intenccedilatildeo almeja a construccedilatildeo a representaccedilatildeo de um determinado passado de um determinado periacuteodo do passado Representaccedilatildeogeralmente composta de palavras de discursos verbais composta portanto a partir de uma escritura264 que se transforma num texto cuja forma dominante eacute a narrativa o reacutecit265 A histoacuteria nessa perspectiva apresenta-se como uma ordem cronoloacutegica natildeo raro linear de uma seacuterie de representaccedilotildees dos acontecimentos 261 Œ1 pp 1202-1203262 Œ1 pp 1133-1134263 C13 p 519264 Cf JARRETY Michel 8 - Ecritures de lrsquoHistoire in Valeacutery devant la litteacuterature - Mesure de la limite PUF Paris 1991 pp 351-389265 C23 p 507

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de uma seacuterie de causas e efeitos entre as representaccedilotildees dos acontecimentos Assim procedendo aqueles que a escrevem os historiadores intentariam sobretudo a realizaccedilatildeo de um maior realismo dar um caraacuteter de verdade ou melhor de verossimilhanccedila aos seus proacuteprios escritos de plausibilidade E eacute por isso que Valeacutery afirma que laquoA histoacuteria eacute feita de 2 ingredientes essenciais do papel escrito e da faculdade de crer no que haacute sobre esse papelraquo266 Todavia tudo isso eacuteartificial demasiado artificial ateacute mesmo falso Porque a narrativa o reacutecit porque as causas e os efeitos todos esses procedimentos ou subterfuacutegios natildeo passam de postulaccedilotildees de ligaccedilotildees e concatenaccedilotildees de interpretaccedilotildees feitas mdashposteriormentemdash pelos historiadores mediante a anaacutelise de documentos mais ou menos liacutecitos Consequumlentemente haveria pouca diferenccedila entre a literatura propriamente dita e a histoacuteria a qual o poeta natildeo tardaria em qualificar como laquoa forma mais ingecircnua de literaturaraquo267 Pois laquoningueacutem jamais poderia definir a diferenccedila que haacute no estado de espiacuterito de um leitor de Balzac e de um leitor de Michelet A meu ver tudo estaacute aiacute Eacute o mesmo ilusionismo Resultado [do fato] de que nada distingue quanto ao efeito produzido um documento verdadeiro de um documento falso que acreditamos ser verdadeiro Etcraquo268

Por conseguinte o ideaacuterio positivista em representar em resgatar o passadointegralmente tal qual foi como se fosse possiacutevel ressuscitar os mortos acaba se tornando uma esperanccedilosa ilusatildeo um contra-senso Pois na praacutetica da histoacuteriatudo eacute representaccedilatildeo e uma representaccedilatildeo natildeo do acontecimento que jaacute natildeo eacute mais mas de uma representaccedilatildeo que dele ou de um aspecto dele permaneceu logo uma reduccedilatildeo e uma interpretaccedilatildeo Uma laquohistoacuteria puraraquo uma histoacuteria factual seria portanto laquocompletamente insignificante pois os fatos por si natildeo tecircm significado Algumas vezes dizem Isso eacute um fato Inclinem-se diante do fato Eacute a mesma coisa dizer Creiam Creiam pois aqui o homem natildeo interveio e satildeo as proacuteprias coisas que falam Eacute um fato Sim Mas o que fazer com um fato Nada se parece tanto com um fato quanto os oraacuteculos de Piacutetia ou entatildeo quanto os sonhos reais que os Joseacutes e os Danieacuteis na Biacuteblia explicam aos monarcas espantados Na histoacuteria [] o que eacute positivo fica ambiacuteguo O que eacute real presta-se a uma infinidade de interpretaccedilotildeesraquo269 Baseada portanto no poder da imaginaccedilatildeo e da linguagem em representar algo que natildeo existe mais portanto algo que simplesmente natildeo existe a histoacuteria para Valeacutery natildeo estaacute longe de operar dentro de uma espeacutecie de paradoxo pois laquosupotildee um observador impossiacutevel cujos resultados de observaccedilatildeo satildeo inverificaacuteveisraquo270

266 C22 p 66267 C14 p 829268 Œ2 p 1549 269 Œ1 p 1133270 C23 p 773

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O segundo momento da criacutetica de Valeacutery agrave histoacuteria que se insere no primeiro refere-se agrave questatildeo do valor E o ato de laquovalorarraquo de ldquoavaliarrdquo qualquer coisa que seja eacute segundo Valeacutery laquoo grande negoacutecio do sistema que pensaraquo271relativamente ausente na praacutetica da Matemaacutetica e das Ciecircncias Naturais mas extremamente presente na praacutetica da histoacuteria Esta pressupotildee uma seacuterie deescolhas tanto do recorte temaacutetico e temporal a ser estudado quanto dosacontecimentos ou melhor das representaccedilotildees de acontecimentos a serem expostos hierarquizados e interpretados a serem estruturados em uma narrativaum reacutecit E todo esse processo eacute ele mesmo uma vasta tentativa de fixar valores como se com isso o passado viesse a ser elucidado em expressar quais acontecimentos satildeo mais ou menos importantes mais ou menos relevantes quais acontecimentos devem ser expostos agrave luz e quais devem ser condenados agravesombra O que implica necessariamente um sujeito um sujeito humano que assim valore Para o poeta natildeo eacute possiacutevel portanto separar laquoo observador do objeto observado e a histoacuteria do historiadorraquo272 Daiacute tambeacutem as inuacutemeras abordagens de um mesmo tema e temporalidade e uma historiografia sempre crescente e contraditoacuteria Levados por este ou aquele sistema de crenccedilasideologias preferecircncias ou interesses uns iratildeo dar mais peso a um dadoacontecimento e outros menos uns iratildeo valorar positivamente um dado acontecimento e outros negativamente O acuacutemulo de um sem-nuacutemero de versotildees de explicaccedilotildees de um mesmo tema e temporalidade torna-se inevitaacutevel O que incitaria o leitor de um livro de histoacuteria a fazer estas questotildees quem historia de onde se historia e para quem se historia O que o levaria a intuir que aquele que escreve sobre o passado tambeacutem escreve por vias indiretas sobre o presente e sobre si mesmo Toda essa falta de impessoalidade de neutralidade na praacutetica da histoacuteria eacute o que em muito caracteriza a sua natildeo cientificidade dela e de muitas das Ciecircncias Humanas Mas tambeacutem natildeo deixa de expressar mesmo que implicitamente o desejo tatildeo humano em dar um sentido aos acontecimentos e agrave vida ou ainda se o pressuposto eacute a crenccedila em um destino que a tudo concatena e justifica em encontrar nos acontecimentos e na vida um sentido

Eis como se expressa Valeacutery laquoTodo mundo concorda que Luiacutes XIV morreu em 1715 Mas em 1715 passou-se uma infinidade de outras coisas observaacuteveis que tornaria necessaacuteria uma infinidade de palavras de livros e mesmo de bibliotecas para conservaacute-las por escrito Eacute preciso portanto escolher ou seja convencionar natildeo apenas a existecircncia como tambeacutem a importacircncia do fatoe essa convenccedilatildeo eacute vital A convenccedilatildeo de existecircncia significa que os homens soacute podem crer no que lhes parece menos afetado pelo humano e que consideram

271 Œ2 p 222272 Œ1 p 1130

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esse acordo como muito provaacutevel para eliminar suas personalidades seus instintos seus interesses sua visatildeo singular fontes de erro e forccedila de falsificaccedilatildeo Mas jaacute que natildeo podemos guardar tudo e que precisamos retirar do infinito alguns fatos pelo julgamento de sua utilidade posterior relativa essa decisatildeo sobre a importacircncia introduz de novo e inevitavelmente na obra histoacuterica exatamente aquilo que acabamos de tentar eliminar [] a importacircncia eacute completamente subjetiva A importacircncia estaacute para o nosso discernimento assim como o valor dos testemunhos Racionalmente pode-se pensar que a descoberta das propriedades do quinina eacute mais importante que um tal tratado concluiacutedo aproximadamente na mesma eacutepoca e na realidade em 1932 as consequumlecircncias desse instrumento diplomaacutetico podem estar totalmente perdidas e como que difusas no caos dos acontecimentos enquanto a febre eacute sempre reconheciacutevel as regiotildees pantanosas do globo satildeo cada vez mais visitadas ou exploradas e oquinina foi talvez indispensaacutevel para a prospecccedilatildeo e para a ocupaccedilatildeo da Terra toda que eacute a meu ver o fato dominante do nosso seacuteculo Vejam que eu tambeacutem estou fazendo minhas convenccedilotildees de importacircnciaraquo273

Toda a criacutetica de Valeacutery agrave histoacuteria pode portanto ser sintetizada pela constataccedilatildeo de que a histoacuteria enquanto praacutetica eacute sobretudo uma forma especiacutefica de literatura e de linguagem e de que os historiadores escondem frequumlentemente as convenccedilotildees das quais se servem ao escrevecirc-la274 Contudo o poeta sabe que laquotodas essas convenccedilotildees satildeo inevitaacuteveisraquo275 do contraacuterio talvez a proacutepria histoacuteria natildeo seria possiacutevel enquanto praacutetica laquoMinha uacutenica criacutetica eacute a negligecircncia que natildeo as torna expliacutecitas conscientes sensiacuteveis ao espiacuterito Lamento que natildeo se tenha feito com a histoacuteria o que as ciecircncias exatas fizeram consigo mesmas quando revisaram seus fundamentos pesquisaram com maior cuidado seus axiomas enumeraram seus postulados Talvez seja porque a histoacuteria eacute principalmente Musa e porque preferimos que a seja [] Eu reverencio as Musas Isso acontece tambeacutem porque o Passado eacute algo totalmente mental Ele eacute apenas imagens e crenccedilasraquo276 A histoacuteria portanto natildeo iraacute apontar necessariamente os caminhos do Futuro Ela nada legitima Tudo pode ser incerto Todavia o ser humano natildeo tem outro material com o qual conjeturar e projetar a natildeo ser essas laquoimagensraquo e laquocrenccedilasraquo como sumariza Valeacutery sempre muito cuidadoso no exerciacutecio de profetizar laquoentramos no futuro de marcha agrave reacuteraquo277

273 Œ1 pp 1130-1131274 Cf JARRETY Michel 8 - Ecritures de lrsquoHistoire in Valeacutery devant la litteacuterature - Mesure de la limite PUF Paris 1991 pp 351-389275 Œ1 p 1132276 Œ1 p 1132277 Œ1 p 1135

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4 CRIacuteTICA Agrave FILOSOFIA

SOacuteCRATES Quando algueacutem diz ldquoferrordquo ou ldquopratardquo natildeo eacute verdade que todos entendemos o mesmoFEDRO CertamenteSOacuteCRATES E quando algueacutem diz ldquojustordquo e ldquobomrdquo Natildeo vai cada um por um lado e discordamos uns com os outros e tambeacutem com noacutes mesmosFEDRO CertamenteSOacuteCRATES Entatildeo em algumas questotildees estamos de acordo e em outras natildeoFEDRO CertamenteSOacuteCRATES E em quais dessas duas questotildees somos mais suscetiacuteveis de ser enganados e em quais a retoacuterica tem mais forccedilaFEDRO Evidentemente naquelas que haacute vaguidadeSOacuteCRATES Entatildeo aquele que se propotildee adquirir a arte da retoacuterica deve primeiramente adquirir clareza e fazer uma divisatildeo metoacutedica dessas duas classes de questotildees aquela na qual as pessoas tecircm necessariamente ideacuteias vagas e aquela na qual natildeo FEDRO Oacute Soacutecrates aquele que isso soubesse racionaria a partir de um excelente princiacutepioSOacuteCRATES Depois penso ante um caso particular natildeo ignoraraacute mas perceberaacute com clareza a qual dessas duas classes pertence agrave questatildeo de que se vai falar

Platatildeo Fedro

41 O PRIMADO DA LINGUAGEM

Em contraste com o pensamento antigo dir-se-ia que o pensamento moderno estaacute sob o signo da linguagem A linguagem se tornou natildeo raro um importante baluarte ao redor do qual gravitam antigas reflexotildees e problemas agora atraveacutes de novas abordagens A essa mudanccedila de interesse de foco alguns pensadores ousaram mdashreferindo-se primeiramente agrave filosofia analiacuteticamdash historiaacute-la como uma contundente reviravolta ou giro linguumliacutestico278 (linguistic turn) A concepccedilatildeo de que eacute impossiacutevel filosofar sem passar quase que necessariamente por uma reflexatildeo sobre a linguagem tornou-se em alguns pensadores hoje canocircnicos de uma recorrecircncia proliacutefera e polecircmica Precursores capitais como Mauthner e Wittgenstein propunham-se cada um a seu modo a fazer da filosofia das suas filosofias uma criacutetica da linguagem279 (Sprachkritik) ateacute mesmo aqueles com fortes inclinaccedilotildees metafiacutesicas devedores da tradiccedilatildeo teoloacutegica e miacutestica como Heidegger natildeo escaparam a essa atitude e dela fizeram um dos seus principais motes Posteriormente o pensamento sobre o sentido e a escrituraccedilatildeo natildeo regidos por uma loacutegica exclusivamente fundamentada na razatildeotradicional de um Deleuze e um Derrida a ela tambeacutem se coaduna Essa geneacuterica tendecircncia natildeo se restringe entretanto a uma uacutenica disciplina Tornou-se um espiacuterito do tempo (Zeitgeist) sintoma de toda uma eacutepoca Tambeacutem as ciecircncias humanas particulares que em maior ou menor grau lutam por um ldquotardiordquo reconhecimento epistemoloacutegico em comparaccedilatildeo com as naturais compreendem 278 Cf RORTY Richard M (org) The linguistic turn - Essays in philosophical method - With two retrospective essays The University of Chicago Press Chicago amp Londres 1992279 Cf WITTGENSTEIN Ludwing Tratactus logico-philosophicus ed biliacutenguumle trad apresentaccedilatildeo e ensaio introdutoacuterio Luis Henrique Lopes dos Santos intr Bertrand Russell EDUSP Satildeo Paulo 1994 sobretudo sect 40031 pp 164-165 cf MAUTHNER Fritz Contribuciones a uma criacutetica del lenguage trad Joseacute Moreno Villa Herder Barcelona 2001

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a linguagem como de importacircncia capital natildeo raro posicionando-a como o proacuteprio objeto de estudo ou como um importante vieacutes pelo qual os demais fenocircmenos sociais podem ser estudados A consagrada frase do hermeneuta Gadamer mdashlaquoO ser que pode ser compreendido eacute a linguagemraquo280mdash pode ser assim considerada tanto como uma proposta quanto uma constataccedilatildeo

Tambeacutem a arte da linguagem verbal a literatura na Modernidade trilha caminhos relativamente anaacutelogos Seus produtores os literatos parecem amiuacutede ter encontrado na proacutepria liacutengua (ou liacutenguas) da qual se utilizam muito da mateacuteria-prima para as obras agraves quais se propotildeem a executar transformando-as em sedutores desafios para a leitura e para a exegeacutetica Do hermetismo poeacutetico de Mallarmeacute aos malabarismos verbais de Joyce passando pelos devaneios dos surrealistas as sempre e naturalmente excessivas praacuteticas da poesia e da ficccedilatildeo buscam romper insistente e propositadamente com os procedimentos tradicionais do discurso e da narrativa buscam inusitadas formas de expressatildeo Aliacutengua essa gigantesca e maleaacutevel forma de arte cujo anocircnimo autor eacute a soma dasgeraccedilotildees pode ser compreendida por vezes como uma espeacutecie de personagem central ldquoonipresenterdquo no universo imaginaacuterio da ficccedilatildeo senhora e escrava daqueles que a manipulam Em grande medida passou-se portanto do registro ontoloacutegico para o registro linguumliacutestico O que natildeo implica que o primeiro tenha sido abolido pelo uacuteltimo tampouco desqualifica a plural totalidade do pensamento antigo no que concerne a uma suposta falta de preocupaccedilatildeo de consciecircncia da linguagem Conjetura-se simplesmente que outrora natildeo havia necessidade em manifestar explicitamente essa consciecircncia Generalizando o pensamento antigo parece natildeo ter muitas duacutevidas sobre o que discursa e sobre o que narra em contrapartida o pensamento moderno mdashque pode ser compreendido como um ldquoromantismo desencantadordquomdash natildeo procede do mesmo modo e deseja explicitar natildeo apenas o objeto com o qual se ocupa mas tambeacutem a forma como o analisa e o compreende a tal ponto de chegar a duvidar no transcurso de sua anaacutelise se o proacuteprio objeto existe A Antiguumlidade quando reflete sobre a linguagem mdashrepare-se no Craacutetilo de Platatildeo e para ir mais aleacutem na questatildeo dos universais da Escolaacutesticamdash dificilmente reprime suas esperanccedilas ontoloacutegicas dificilmente deixa de aderir ou formular uma metafiacutesica de mesclar-se imiscuir-se confundir-se com abrangentes concepccedilotildees de mundo com a frequumlente ideacuteia de que a existecircncia eacute separada em duas dimensotildees uma espiritual e outra material sejam quais forem as variaccedilotildees que se decircem a essa divisatildeo Esse princiacutepio de fundamentaccedilatildeo religiosa a restrita Modernidade laica e fragmentada em saberes particulares frequumlentemente o abandona na busca de uma maior 280 GADAMER Hans-Georg Verdade e meacutetodo - Traccedilos fundamentais de uma hermenecircutica filosoacutefica I trad Flaacutevio Paulo Meurer nova revisatildeo da trad Enio Paulo Giachini Vozes amp Editora Universitaacuteria Satildeo Francisco Petroacutepolis amp Braganccedila Paulista 2004 p 612

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autonomia de suas disciplinas e meacutetodos e isso se reflete por conseguinte nos modos como a proacutepria linguagem eacute nela compreendida

A obra de Valeacutery no campo da literatura talvez seja um dos exemplos mais caracteriacutesticos desse ldquonovordquo registro Sobre a linguagem suas reflexotildees se dispersam em seus escritos Todavia o poeta as desenvolveu de modo relativamente autocircnomo paralelo agraves denominadas modernas filosofias da linguagem e epistemologias Diferentemente do positivismo loacutegico (desenvolvido a partir do Wiener Kreis) e da filosofia analiacutetica (desenvolvida a partir do Cambridge-Oxford philosophy) diferentemente do estruturalismo ao qual por vezes eacute hojefacilmente associado281 principalmente numa ldquosupostardquo radical concepccedilatildeo de mundo anti-metafiacutesica anti-histoacuterica e anti-pessoal a uma busca pela enunciaccedilatildeo objetiva que a todos em maior menor grau relativamente caracterizariam o poeta apesar do paralelismo possiacutevel entre o seu pensamento com o dessas correntes natildeo adquire o que aqui se cunhou de consciecircncia da linguagem mdashisto eacute dos seus mecanismos e da relaccedilatildeo que esta tem com o pensamento do modo como ambos se confundem e se condicionam mutuamentemdash tatildeo somente a partir de reflexotildees consideradas eminentemente epistemoloacutegicas derivadas em grande medida do fasciacutenio pelo rigor e precisatildeo da Matemaacutetica e das Ciecircncias Naturais modernas282 das obras de um Ernst Mach um Henri Poincareacute ou de obras como a La Science du langage de Max Muumlller283 Tambeacutem a poesia contribui e com enorme peso nessa aquisiccedilatildeo notadamente o Simbolismo francecircs as poesias e as poeacuteticas simultaneamente ldquoracionaisrdquo e ldquoespirituaisrdquo ldquoanaliacuteticasrdquo e ldquosinteacuteticasrdquo de um Poe um Baudelaire um Mallarmeacute284 Dir-se-ia portanto que uma e outra dessas atividades do espiacuterito que ldquorigorrdquo e ldquoretoacutericardquo ldquociecircnciardquo e ldquopoesiardquo

281 Nos escritos de Valeacutery natildeo haacute referecircncias diretas a essas correntes apesar de realmente haver vaacuterios pontos em comum Sabe-se hoje pelo inventaacuterio de sua biblioteca e pelas notas deixadas em alguns de seus livros prenhes de apontamentos trabalho feito por Judith Robinson-Valeacutery que ele chegou ao menos a ter contato com a produccedilatildeo do Wiener Kreis Tambeacutem segundo relato de seu filho Franccedilois Valeacutery o proacuteprio poeta teria afirmado a existecircncia de determinadas afinidades entre o seu pensamento e o dos radicais epistemoacutelogos vienenses Entretanto isso parece ter ocorrido somente apoacutes a deacutecada de 1930 portanto num periacuteodo tardio jaacute mais proacuteximo da Segunda Guerra Mundial da tomada de Paris e da velhice do poeta (Cf ROBINSON-VALERY Judith Valeacutery et le Cercle de Vienne - Lectures affiniteacutes et diffeacuterences in CELEYRETTE-PIETRI Nicole amp SOULEZ Antonia (orgs) Valeacutery la logique et le langage Sud - Revue litteraire bimestrielle Val de Marne le 29 novembre 1986 Universiteacute Paris XII Paris 1988 pp 31-46 especialmente pp 41-42)282 Cf VIRTANEN Reino Lrsquoimagerie scientifique de Paul Valeacutery Essais drsquoArt et de Philosophie Librarie Philosophique J Vrin Paris 1975283 Sobre a influencia de Poincareacute no pensamento de Valeacutery cf PIETRA Regina Valeacutery et la reacuteflexion eacutepisteacutemologique das les dix derniegraveres anneacutees di XIXe siegravecle - Valeacutery et Poincareacute in CELEYRETTE-PIETRI Nicole amp SOULEZ Antonia (orgs) Valeacutery la logique et le langage Sud - Revue litteraire bimestrielle Val de Marne le 29 novembre 1986 Universiteacute Paris XII Paris 1988 pp 47-68 sobre a influecircncia de Max Muumlller notadamente a concepccedilatildeo da linguagem como um um sistema loacutegico imperfeito cf SCHMIDT-RADEFELDT Juumlrger Paul Valeacutery lecteur de Max Muumlller in CELEYRETTE-PIETRI Nicole amp SOULEZ Antonia (orgs) Valeacutery la logique et le langage Sud - Revue litteraire bimestrielle Val de Marne le 29 novembre 1986 Universiteacute Paris XII Paris 1988 pp 69-82284 ELIOT T S De Poe a Valeacutery in Ensaios escolhidos org e trad Maria Adelaide Ramos Cotovia Lisboa 1992

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intensamente influenciam ou direcionam o pensamento de Valeacutery285 a sua tensatildeo o seu desenvolvimento em direccedilatildeo a essa consciecircncia da linguagem mdasha qual natildeo difere da consciecircncia de si mesmomdash

Contudo ele eacute muito cuidadoso (por vezes refrataacuterio) com relaccedilatildeo agraves influecircncias que recebe Assim quanto a esse comeccedilar pela linguagem o seu percurso eacute sobretudo como sempre quis e esforccedilou-se para ser pessoal e privado o mais autocircnomo ou o mais livre possiacutevel das crenccedilas alheias tal qual um Robinson do intelecto cumpre percorrer Deriva tambeacutem de uma necessidade iacutentima e natildeo apenas de uma resposta a influecircncias confessas ou inconfessas a pressotildees ou exigecircncias alheias a um deixar-se levar pela tendecircncia ou modismos do tempo presente Logo essa consciecircncia da linguagem em grande medida nele nasce e se desenvolve (assim pode ser rastreada) de modo geral de seu proacuteprio programa de autoconsciecircncia e de modo especiacutefico de sua atividade como poeta e como escritor que natildeo deixa de ser a partir do periacuteodo de crise e da Noite de Gecircnova uma derivaccedilatildeo ou continuidade daquele agora com claras intenccedilotildees de praticar um ascetismo intelectual Eacute a escrituraccedilatildeo que revela as questotildees da escrituraccedilatildeo286 a questatildeo da linguagem escrever exige mdashexige-lhe ele faz exigirmdash um cuidadodiferenciado com as palavras e as frases com os inuacutemeros jogos que com essas palavras e frases se pode jogar Eacute portanto muito mais uma accedilatildeo um fazer o fazerpoesia (o poema) e o refletir sobre o fazer poesia (a poeacutetica) muito mais o exerciacutecio de uma constante e incompleta escrituraccedilatildeo sobre assuntos os mais diversos e sobre si mesmo exemplificada principalmente na fragmentaccedilatildeo de seus Cahiers que o conduz a pensar a analisar a destrinccedilar toda e qualquer ideacuteia sua ou alheia sempre pelo modo como esta eacute enunciada mediada representada pelo vieacutes pelo prisma ldquoonipresenterdquo da linguagem Eacute o que Valeacutery denominou principalmente num dos seus mais ceacutelebres e fundantes ensaios de poeacutetica Poeacutesie et penseacutee abstraite conferecircncia proferida na Universidade de Oxford em 1939 com a feliz expressatildeo laquolimpeza da situaccedilatildeo verbalraquo (laquonettoyage de la situation verbaleraquo) expressatildeo que representa um pressuposto de qualquer meacutetodo de abordagem laquoQuanto a mimraquo escreve laquotenho a estranha e perigosa mania de querer em qualquer mateacuteria comeccedilar pelo comeccedilo (ou seja por meu comeccedilo individual) o que vem a dar em recomeccedilar em refazer uma estrada completa como se tantos outros jaacute natildeo houvessem traccedilado e percorrido Essa estrada eacute a que nos eacute oferecida ou imposta pela linguagem Em qualquer questatildeo e antes de qualquer exame sobre o conteuacutedo olho para a linguagem tenho o costume de agir como

285 KOumlHLER Hartmut Paul Valeacutery poeacutesie et connaissance lrsquoœuvre lyrique agrave la lumiegravere des lsquoCahiersrsquo trad Colette Kowalski Klincksieck Paris 1985286 Cf BOURJEA Serge Paul Valeacutery - Le sujet de lrsquoeacutecriture LrsquoHarmattan Codeacute-sur-Noireau 1997

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os meacutedicos que purificam primeiro suas matildeos e preparam seu campo operatoacuterio Eacute o que chamo de limpeza da situaccedilatildeo verbalraquo287

Propor compreender cada palavra cada proposiccedilatildeo ou frase como condicionada a um contexto para soacute depois observar se haacute ou natildeo um real problema a ser enfrentado uma tal abordagem tem grandes consequumlecircncias ou relaccedilotildees diretas para como o poeta frequumlentemente encara e critica a filosofia mdashcriacutetica desenvolvida principalmente nos seus Cahiers nos seus ensaios sobre poeacutetica e nesta siacutentese de seu pensamento filosoacutefico que eacute o uacuteltimo ensaio da trilogia sobre Leonardo Leacuteonard et les philosophesmdash assim como todas as demais atividades do espiacuterito e a si mesmo Essa criacutetica natildeo deixa de ser resultado de um impulso ceacutetico e pode ser compreendida como uma variaccedilatildeo ou derivaccedilatildeo deste constante interesse e atenccedilatildeo que Valeacutery nutre pelo aspecto formal de todas as atividades humanas e de toda a realidade

411 INSUFICIEcircNCIA CONVENCcedilAtildeO TRANSITORIEDADE

Apesar de ser um obsessivo formulador de definiccedilotildees Valeacutery natildeo se prende muito a elas termina sempre por reformulaacute-las e assim sucessivamente sem esperanccedila alguma que esse trabalho tenha virtualmente algum fim Dessarte ele tambeacutem natildeo costuma fazer uma distinccedilatildeo muito precisa mdashhoje um tanto mais frequumlente pelo desenvolvimento mesmo da linguumliacutestica moderna e da semioacuteticamdashentre linguagem e liacutengua (palavras que muitas vezes satildeo sinocircnimas) Em seus escritos por vezes esses dois conceitos satildeo identificados e compreendidos como idioma como linguagem verbal por vezes somente o uacuteltimo eacute assim compreendido e o primeiro como um conceito mais abrangente como uma aptidatildeo humana geral para desenvolver sistemas de representaccedilotildees ou comunicaccedilotildees os mais variados e distintos sejam quais forem as formas empiacutericas adotadas verbais ou natildeo Diante dessa falta de discriminaccedilatildeo haacute que se dizer que definiccedilotildees tambeacutem satildeo questotildees semacircnticas natildeo raro prenhes de arbitrariedade e de ideologia que muitas vezes dilatando-se ou contraindo o significado de um conceito restringindo-o ou ampliando-o pode-se dizer que ldquoA eacute Brdquo num determinado caso e que ldquoA eacute natildeo Brdquo em outro sem que com isso o representado ou o conhecimento que dele se tenha venha a mudar significativamente Por isso diante da pergunta mdashlaquoSe eacute possiacutevel pensar sem linguagemraquomdash Valeacutery pondera laquoMas a linguagem eacute tal liacutengua mdash aprendida Tudo depende das definiccedilotildees escolhidas p[ara] pensar e p[ara] linguagemraquo288 O pensamento pode ser definido como linguagem verbal ou como linguagem

287 Œ1 p 1316288 C1rsquo p 448

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verbal e natildeo verbal assim como a linguagem pode ser definida como linguagem verbal ou como linguagem verbal e natildeo verbal E isso de acordo com asabordagens adotadas que podem manifestar diferenccedilas reais de concepccedilatildeo ou meras diferenccedilas semacircnticas Logo a resposta agrave pergunta mdashldquoeacute possiacutevel pensar sem linguagemrdquomdash estaacute condicionada aos pressupostos dos quais a reflexatildeo parte

De qualquer modo poder-se-ia dizer que para Valeacutery o pensamento jaacute eacute linguagem uma forma de linguagem dada pela natureza Porque amiuacutede compreende todas as coisas natildeo apenas como coisas mas tambeacutem para o espiacuterito para a consciecircncia que as percebe como signos ou possibilidade de signos e por conseguinte todas as atividades humanas por mais diferenciadas que possam parecer ser de uma linguagem verbal convencional como formas variadas de linguagem Daiacute a proacutepria linguagem nesse sentido tambeacutem ser compreendida como laquoobjeto de eterna meditaccedilatildeoraquo laquopois eacute o universo do pensamentoraquo289 E o pensamento como uma abstraccedilatildeo um resumo da realidade percebida laquoTodas as coisas se substituemraquo escreve laquomdash natildeo seria isso a definiccedilatildeo das coisasraquo290 Para corroborar ainda mais essa perspectiva gnosioloacutegica haacute uma outra frase laminar do poeta que demonstra a forte compreensatildeo do caraacuteter eminentemente representacional do proacuteprio pensamento e que remete agraves inuacutemeras definiccedilotildees de signo formuladas por Peirce291 laquoTodo pensamento exige que se tome uma coisa por uma outra um segundo por um anoraquo292 A sua concepccedilatildeo de mundo poderia ser portanto muito bem denominada hoje de semioacutetica

Valeacutery atenta natildeo apenas para os limites ou possibilidades do pensamento mas tambeacutem para os limites ou possibilidades da representaccedilatildeo exterior do proacuteprio pensamento de um modo dir-se-ia cientiacutefico Daiacute expressar certo ldquodesconfortordquo certa ldquoinsatisfaccedilatildeordquo para com a suposta insuficiecircncia a suposta carecircncia da linguagem mdashno caso da liacutengua jaacute que ele principalmente escreve utiliza-se de palavrasmdash para tal Ele natildeo se furta em dizer mdashe por vezes eacute nisso bastante enfaacutetico e radicalmdash o quanto ela eacute imperfeita impura para aquele que como ele almeja um expressar ou comunicar mais rigoroso e preciso possiacutevel laquoeu vejo que me falta um sistema de representaccedilatildeoraquo insistentemente confessa laquoA linguagem ordinaacuteria natildeo me permite especular sobre os elementos pois ela natildeo institui nenhuma relaccedilatildeo (de construccedilatildeo) entre esses elementos Cada palavra eacute construiacuteda agrave parte e as relaccedilotildees entre palavras natildeo permitem transformaccedilotildees de uma em outrasraquo293 laquoA linguagem comum natildeo coincide com aquela de nossos

289 C1rsquo p 416290 Œ1 p 1225291 Cf PEIRCE Charles S Logic as semiotic the theory of signs in Philosophical writings of Peirce org Jusus Buchler Dover Publications New York 292 Œ1 p 1264293 C1rsquo p 382

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meios reais de pensamento Ela natildeo a divisa nem a compotildee exatamenteraquo294

Reflexotildees como essas obscuras e opacas satildeo patentes nos Cahiers E eacute por isso que Valeacutery tambeacutem costuma evocar mdashmas de um modo

bastante vago e inconstantemdash o antigo intento em ldquodescobrirrdquo ou em inventar uma linguagem perfeita uma linguagem pura295 Diz ele que tinha a princiacutepio a ideacuteia de laquoconceber uma linguagem artificial fundada sobre o real do pensamento linguagem pura sistema de signos mdash explicitando todos os modos de representaccedilatildeo mdash que satildeo para a linguagem natural aquilo que a geom[etria] cartes[iana] eacute para a g[eometria] dos Gregos excluindo a crenccedila nos significados dos termos em si estipulando a composiccedilatildeo dos termos complexos definindo e enumerando todos os modos de composiccedilatildeoraquo296 E isso partindo sempre de si mesmo das suas proacuteprias questotildees da concepccedilatildeo de que a laquoLinguagem verdadeira eacute esta na qual noacutes reconhecemos todos os termos como nossos isto eacute como se n[oacute]s os tiveacutessemos criados por nossas necessidades e por eles Eles satildeo da nossa vozraquo297

Feliz ou infelizmente o poeta natildeo fornece muitos dados do que realmente seria essa linguagem perfeita essa linguagem pura Tudo permanece extremamente nebuloso Todavia determinadas revelaccedilotildees dos Cahiers o haacutebito em criar notaccedilotildees pessoais em traduzir simbolicamente uma estrutura linguumliacutestica numa estrutura matemaacutetica e ou loacutegica essas idiossincrasias permitem especular a intenccedilatildeo geneacuterica de axiomatizar ou formalizar o discurso verbal de construir uma espeacutecie de linguagem formal como as que foram esboccediladas por Ramon Llull e sua Ars magna generalis e principalmente por Leibniz e sua Elementa characteristicaeuniversalis298 mas mais plenamente desenvolvida no universo circunscrito da loacutegica-matemaacutetica por Frege e Russel Mas Valeacutery parece ter buscado algo ainda mais abrangente valorizou antes e sobretudo a construccedilatildeo de uma linguagem

294 C1rsquo p 427295 Para uma abordagem geral do desenvolvimento histoacuterico desse ideaacuterio cf ECO Umberto A busca da liacutengua perfeita na cultura europeacuteia trad Antonio Angonese Edusc Bauru 2002 para uma abordagem da problemaacutetica filosoacutefica desse ideaacuterio cf MARLEAU-PONTY Maurice O fantasma de uma liacutengua pura in A prosa do mundo trad Paulo Neves Cosac amp Naify Satildeo Paulo 2002296 C1rsquo p 425297 C1rsquo p 455298 As referecircncias ao teoacutelogo da Catalunha e ao filoacutesofo de Leipzig satildeo relativamente constantes nos Cahiers naturalmente diferente desses dois pensadores o poeta natildeo buscou a formulaccedilatildeo de uma linguagem perfeita de uma linguagem pura com o intuito de provar as supostas verdades da religiatildeo cristatilde e com isso colaborar numa mais eficaz conversatildeo de infieacuteis (Cf C1rsquo p 384) De qualquer modo frases como esta mdashlaquoEu soube que minha ambiccedilatildeo literaacuteria era (tecnicamente) organizar minha linguagem de modo a fazer dela um instrumento de exposiccedilatildeo e de deduccedilatildeo de descobertas e de observaccedilotildees rigorosasraquo (C1rsquo p 386)mdash remetem em muito agraves especulaccedilotildees do filoacutesofo das mocircnadas Valeacutery tambeacutem chega a mencionar Descartes quanto agrave formulaccedilatildeo de uma linguagem perfeita de uma linguagempura Possivelmente ele se refira agrave correspondecircncia do filoacutesofo com o Padre Mersenne especialmente a de 20-11-1629 (DESCARTES Reneacute Œuvres de Descartes - Correspondences - avril 1622-feacutevrier 1638 I org Charles Adam amp Paul Tannery Librairie Philosophique J Vrin Paris 1996 pp 76-82) na qual se encontra a reflexatildeo sobre uma linguagem da razatildeo que pudesse representar toda a filosofia

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perfeita de uma linguagem pura que representasse de modo rigoroso preciso e exato as percepccedilotildees do mundo exterior e do mundo interior por conseguinte todos os processos da vida do espiacuterito da consciecircncia e de um espiacuterito de uma consciecircncia particular purgada dos estados psicoloacutegicos emotivos e sentimentaisEsse seu intento natildeo deixa de ser portanto uma derivaccedilatildeo da proacutepria e inconclusa ideacuteia de Sistema que reduz tudo a funccedilotildees assim como da proacutepria e inconclusa ideacuteia de eu puro uma linguagem perfeita uma linguagem pura seria supostamente a linguagem desse eu puro uma linguagem privada

Todavia o poeta natildeo cumpre doravante com esse intento Implicitamente duas satildeo as possiacuteveis razotildees para tal Primeira Valeacutery jamais abdica jamais pode abdicar da questatildeo dos significados significados sempre presentes no pensamento e na vontade que o executa e quanto a isso uma linguagem formal mesmo tendo certas regras semacircnticas miacutenimas mesmo natildeo sendo um sistema logiacutestico puro algo que seria apenas sintaxe eacute sempre bastante restrita Segunda toda linguagem sempre pressupotildee o outro uma linguagem perfeita uma linguagem pura como linguagem privada seria a linguagem de um soacute e isso natildeo seria simplesmente linguagem nenhuma Em suma ao pretender referir-se ao mundo exterior e ao mundo interior aos processos da consciecircncia do espiacuterito a linguagem deve funcionar deve comunicar deve ser um sistema passiacutevel de ser por outros compreendido usado e transformado e portanto deve carregar um sem-nuacutemero de subentendidos e estar sujeita ateacute certo grau agraves interpretaccedilotildees agraves variaccedilotildees agraves indeterminaccedilotildeessemacircnticas desses outros a linguagem se linguagem deve ser portanto imperfeita impura Assim Valeacutery acaba compreendendo que para os seus estranhos propoacutesitos uma linguagem perfeita uma linguagem pura no padratildeo das linguagens naturais natildeo eacute realmente possiacutevel mdashassim como tambeacutem natildeo o eacute em termos puramente empiacutericos o eu puro e a poesia puramdash Eacute apenas uma ilusatildeo ou um sonho continuamente acalentado um absurdo um contra-senso talvez laquoMeu projeto primitivo mdash de me fazer uma linguagem proacutepria mdashraquo ele assim confessa laquoeu natildeo pude desenvolvecirc-lo Dele soacute me restou apenas a abstenccedilatildeo de certas palavras (quanto eu penso para mim) e o haacutebito de compreender as palavras somente como expedientes individuais Eu coloco o significado somente nos indiviacuteduos determinadosraquo299 Como todo escritor que se impotildee secretas regras de uso linguumliacutestico Valeacutery acaba assim se contentando apenas em ter uma escrita altamente idiossincraacutetica permeada de pausas e lacunas e em como diz abster-se do uso de certas expressotildees e palavras as quais considera demasiadaimprecisas e recorrentes no uso metafiacutesico demasiada desgastadas ele acaba optando por uma espeacutecie de navalha de Ockham uma censura aplicada aos vocaacutebulos a um index verborum prohibitorum que apesar de nem sempre ser

299 C1rsquo p 428

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operante na sua escritura revela-se sobretudo como uma regra de construccedilatildeoestiliacutestica como um procedimento de escritura

Em contrapartida em Valeacutery sempre permaneceraacute a ldquoinsatisfaccedilatildeordquo com relaccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo agrave impureza da linguagem300 O que natildeo deixa de ser algoproacuteprio dos literatos e dos poetas em geral a expressarem consciecircncia dos limites e possibilidades da proacutepria linguagem a expressarem suas dificuldades suas anguacutestias e seus tormentos em escolher palavras ou em desenvolver frases suas experiecircncias interiores a luta para representar aquilo que inicialmente segundo Tiacutetiro personagem ou voz do Dialoge de lrsquoarbre se supotildee como a laquofonte do pranto O INEFAacuteVEL Pois nosso pranto a meu ver eacute a expressatildeo de nossa incapacidade de exprimir ou seja de nos livrar pela palavra da opressatildeo daquilo que somosraquo301 Por isso que Valeacutery tanto o prosador quanto o poeta apresenta em seus escritos estas duas caracteriacutesticas tatildeo presentes na tradiccedilatildeo miacutestica o pensamento negativo e a manifestaccedilatildeo da impossibilidade da linguagem em representar experiecircncias que natildeo satildeo comuns a todos mdashposto que todo signo que cumpre com sua funccedilatildeo comunicativa como a palavra pressupotildee hipoteticamente uma experiecircncia compartilhada entre dois ou mais espiacuteritos um ponto de contato que possibilite a comunicaccedilatildeomdash O que natildeo raro acaba por desembocar na praacutetica de uma escritura sempre fragmentada e incompleta que se utiliza frequumlentemente de figuras de linguagem contraditoacuterias e paradoxais como uma tentativa de transmitir o que o outro natildeo vivencia

Desse modo o sonho de uma linguagem perfeita de uma linguagem pura eacute no pensamento do poeta passiacutevel de ser interpretada natildeo como uma utopia positiva mas como uma utopia negativa natildeo como uma meta que se espera ser realmente realizada mas como uma meta cuja funccedilatildeo eacute sobretudo heuriacutestica um ideal que sendo a sua concretizaccedilatildeo impossiacutevel ou absurda serve ao menoscomo um artifiacutecio ou um subterfuacutegio um alvo inexistente ao qual o presente trabalho de escrituraccedilatildeo seja prosaico ou poeacutetico deve se balizar e ao menos tentar ser um como se Afinal o que eacute escrever mdashradicalmentemdash senatildeo a tentativa de escrever e de escrever o que natildeo eacute passiacutevel de o ser Haacute assim algo de paradoxal em tudo isso Pois partindo da ldquoinsatisfaccedilatildeordquo com relaccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo agrave impureza da linguagem e conjeturando construir uma linguagem perfeita linguagempura Valeacutery acaba portanto por ldquoconceberrdquo que a proacutepria imperfeiccedilatildeo a proacutepriaimpureza da linguagem revela-se natildeo apenas como um dos fatores que a possibilitam mas tambeacutem como um dos fatores da sua constante renovaccedilatildeo

300 Quanto a isso Valeacutery chegou a se questionar inclusive da possibilidade ou natildeo de acrescentar outras formas de notaccedilatildeo na proacutepria liacutengua o que supostamente faria com que esta adquirisse um maior ou mais exato poder de representaccedilatildeo laquoPor que natildeo signos como os que haacute na muacutesica (na qual faltam alguns tambeacutem)raquo questiona-se laquoSignos de vitalidade fortemente articulados mdash de paradas de diferentes duraccedilotildees De ldquovivacerdquo ldquosolennerdquo staccato scherazandoraquo (C1rsquo p 574)301 Œ2 p 183

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pois favorece o impulso criador o desenvolvimento da poesia e da filosofia e num sentido mais extremo do proacuteprio pensamento laquoSe a linguagem fosse perfeitaraquo escreve de modo excessivo laquoo homem cessaria de pensar A aacutelgebra dispensa o raciociacutenio aritmeacuteticoraquo302 Porque a linguagem mdashnatildeo sendo formal e privadamdash eacute sobretudo coisa puacuteblica ou passiacutevel de ser coisa puacuteblica uma construccedilatildeo social e contiacutenua porque a linguagem eacute portanto uma convenccedilatildeo

Natildeo haacute como representar a realidade sem usar-se de convenccedilatildeo natildeo haacute como viver em sociedade sem servir-se dela Daiacute tambeacutem a enorme dificuldade em se precisar em se separar o que eacute no variado comportamento do ser humano realmente o natural e o artificial o que eacute dado e o que eacute inventado Sempre flanando com o ceticismo e o relativismo Valeacutery jamais hipostasia as pretensotildees agrave universalidade absoluta e compreende a civilizaccedilatildeo como fundada sobretudo sobre um tenso circuito de convenccedilotildees convenccedilotildees natildeo raro invisiacuteveis e sedimentadas mas que cumprem serem reveladas303 Dentre elas a linguagem pode ser compreendida como uma das mais complexas e perturbadoras um sistema que se baseia num acordo taacutecito num pacto ou contrato inaudito mas fortemente interiorizado naturalizado entre seus praticantes Afinal todo dizer eacute sempre uma ldquoapostardquo mdashuma aposta que quase natildeo se sente mas que haacutemdash que o outro compreenda de algum modo relativamente anaacutelogo agrave intenccedilatildeo daquele que diz o dito Como bom racionalista e iluminista o poeta natildeo credita por conseguinte na hipoacutetese de uma protolinguagem de uma linguagem adacircmica original aniquilada ou esquecida apoacutes a suposta confusio linguarum babeacutelica apoacutes o distanciamento da unidade divina na qual todos harmonicamente se entenderiam e comungariam questotildees de ldquoorigemrdquo304 que comumente fazem evocar qualquer forma de platonismo ou realismo a partir da qual as coisas se originam ou degeneram satildeo por elesimplesmente compreendidas como faacutebulas ou ficccedilotildees305

Seu convencionalismo possui entretanto relaccedilotildees com o estranho pensamento de Mallarmeacute em parte natildeo deixa de ser uma continuidade uma ecircnfase uma acentuaccedilatildeo de reflexotildees poeacuteticas jaacute contidas em estudos como a Petite philologie agrave lrsquousage des classes et du monde les mots anglais e Notes sur le langage nos quais o autor de Un coup de deacutes descreve seu iacutentimo envolvimento com o idioma que lecionava o inglecircs especialmente o goacutetico e o anglo-saxatildeo e com a linguagem em geral principalmente com a sonoridade das palavras relevante para a poesia Simbolista Forte eacute a ligaccedilatildeo do pensamento dos dois poetas menos com a

302 C1rsquo p 400303 CHARNEY Hanna K Le Scepticisme de Valeacutery Dider Paris 1969 cf Œ1 p 1132304 Œ2 pp 177-194305 Cf DERRIDA Jaques Qual quelle - Les sources de Valeacutery in Marges de la philosophie Minuit Paris 1972 pp 327-363

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tradiccedilatildeo do verbum na Teologia Cristatilde e mais como Gerard Gennette exemplarmente iluminou306 com a poderosa tradiccedilatildeo propagada a partir do Craacutetlio - ou da justeza (exatidatildeo) das palavras de Platatildeo o diaacutelogo seminal sobre filosofia da linguagem na Antiguumlidade Claacutessica307 Duas teorias ambas referindo-se sobre como deve se dar sobre qual criteacuterio deve se dar agrave justeza (exatidatildeo) daspalavras a relaccedilatildeo entre estas e o que elas representam satildeo confrontadas nesse diaacutelogo a defendida por Craacutetilo a naturalista segundo a qual cada objeto do mundo recebe um nome justo de acordo com uma conveniecircncia natural e a defendida por Hermoacutegenes a convencionalista segundo a qual cada objeto do mundo recebe um nome de acordo com uma convenccedilatildeo uma conveniecircncia artificial Portanto uma defende a adequaccedilatildeo entre linguagem e mundo a outra natildeo uma defende a mimese mdasha imitaccedilatildeo ou a representaccedilatildeo icocircnicamdash entre linguagem e mundo a outra natildeo O trunfo da argumentaccedilatildeo de Craacutetilo satildeo as palavras compostas por outras palavras ldquoderivadasrdquo o que daacute a impressatildeo de que estas se auto-explicam o de Hermoacutegenes a existecircncia de palavras que natildeo se decompotildeem em outras ldquoprimitivasrdquo o que daacute a impressatildeo que estas satildeo meramente arbitraacuterias Todavia usando-se da dialeacutetica e ao fim interessado mais na formulaccedilatildeo de uma teoria do conhecimento do que no inquirir etimologias Soacutecrates acaba tambeacutem esboccedilando uma terceira teoria mescla ou negaccedilatildeo das outras duas segundo a qual haveria sim uma conveniecircncia natural entre palavras e coisas todavia natildeo de modo onomatopaico como insiste Craacutetilo mas de modo essencial Nesse sentido se a ceacutelebre Teoria das Ideacuteias308 estiver em pauta as palavras mdashsupostamentemdash representariam ou deveriam representar (porque de fato natildeo o fazem de modo perfeito) mais as Ideacuteias do que as proacuteprias coisas sensiacuteveis a adequaccedilatildeo a justeza das palavras deve ter portanto como criteacuterio o conhecimento que no ideaacuterio platocircnico natildeo raro se identifica com a dimensatildeo ontoloacutegica e natildeo fenomecircnica Tambeacutem reconhecendo a insuficiecircncia da linguagem para tanto Soacutecrates conjetura que o conhecimento deve ser antes adquirido pelo pensamento e independentemente das palavras guias falhos e perigosos Haacute que se partir da realidade e natildeo daquilo que a imita ou a representa As suas instigantes reflexotildees entretanto permanecem bastante

306 Cf GENETTE Geacuterard Au deacutefaut des langues in Mimologiques - Voyage en Cratylie Eacuteditions du Seuil Paris 1976 cf MOTTA Leda Tenoacuterio da O abismo da palavra in Catedral em Obras - Ensaios de Literatura Iluminuras Satildeo Paulo 1995307 Note-se que o Platonismo seraacute enquanto paradigma filosoacutefico constantemente criticado nos escritos de Valeacutery principalmente em seus diaacutelogos socraacuteticos308 Cumpre dizer que a Teoria das Ideacuteias no Craacutetilo eacute somente esboccedilada inicialmente pelo proacuteprio Craacutetilo e ao fim por Soacutecrates ainda natildeo se apresenta de modo plenamente desenvolvida como no Feacutedon diaacutelogo posterior agravequele no qual a separaccedilatildeo entre mundo das Ideacuteias de um lado e mundo sensiacutevel concreto de outro se acentua assim como todos os problemas que essa separaccedilatildeo acarreta (Cf PLATO Cratylus IV no 167 trad Harold North Fowler org G P Goold Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 1992 cf PLATO Phaedo I no 36 trad Harold North Fowler org Jefrey Henderson Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 2005)

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obscuras ao fim ele abandona o diaacutelogo com seus interlocutores e como decostume nada conclui309

O espiacuterito desse diaacutelogo reverberou doravante na Escolaacutestica especialmente na questatildeo dos universais A ldquodisputardquo talvez menos loacutegico-linguumliacutestica e mais ontoloacutegica entre realistas (creditando numa universalia ante rem) e nominalistas (creditando numa universalia sunt realia) com todas as minuciosas variaccedilotildees que entre um e outro se formularam tambeacutem ressoam nas reflexotildees de Mallarmeacute e principalmente como Michel Jarrety elucida310 em ValeacuteryInteressado no modo como uma liacutengua se comporta ou se desdobrafilologicamente evolui e eacute contaminada por outras liacutenguas e por si mesma o primeiro acaba atentando para o possiacutevel limite do caraacuteter convencional das liacutenguas foneacuteticas estas tambeacutem produzem palavras por analogia por semelhanccedila foneacutetica por iconicidade e natildeo apenas por mera convenccedilatildeo laquocriando as analogias das coisas pelas analogias dos sonsraquo311 (laquoen creacuteant les analogies des choses par les analogies des sonsraquo) assim escreve Ele enfatiza um processo para manter o termo grego mimeacutetico todavia relativamente restrito e preciso a mimese do signo verbal com relaccedilatildeo a outro signo verbal natildeo com relaccedilatildeo direta ao que representam a mimese no interior de uma linguagem ou entre linguagens natildeo portanto com relaccedilatildeo direta agrave realidade que representam Eacute o caso da semelhanccedila por vezes simultaneamente semacircntica e foneacutetica entre palavras de idiomas de mesmo tronco ou num mesmo idioma Esse evidente fenocircmeno linguumliacutestico faz com que Mallarmeacute vaacute mais aleacutem e busque (idiossincraticamente) revelar certa constacircncia certa leientre a semacircntica e a foneacutetica das palavras da liacutengua inglesa ao atribuir ou encontrar valores semacircnticos semelhantes a um conjunto de palavras de foneacutetica semelhantes quiccedilaacute tambeacutem tendo como intenccedilatildeo que a aliteraccedilatildeo um dos grandes recursos da poesia natildeo se decirc apenas como uma seacuterie de sons semelhantes mas tambeacutem como de significados semelhantes

Doravante desconfiando de qualquer explicaccedilatildeo que aponte aessencialidades natildeo compartilhando das teorias de Craacutetilo (ldquoingecircnuardquo demais) oude Soacutecrates (ldquoplatocircnicardquo demais) Valeacutery por sua vez eacute em certo sentido muito mais nominalista do que seu mestre que natildeo deixa de acenar para um platonismo de caraacuteter miacutestico como se depreende por esta bela e enigmaacutetica frase laquoO Verbo atraveacutes da Ideacuteia e do Tempo que satildeo ldquoa negaccedilatildeo idecircntica da essecircnciardquo do

309 Cf PLATO Cratylus IV no 167 trad Harold North Fowler org G P Goold Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 1992310 Sobre o nominalismo de Valeacutery cf JARRETY Michel 1 Nominalisme et imaginaire in Valeacutery devat la litteacuterature - Mesure de la limite PUF Paris 1991311 MALLARMEacute Steacutephane Œuvres completes I org Bertrand Marchal Gallimard Bibliothegraveque de la Peacuteiade Paris 1998 p 506

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Devir torna-se a Linguagemraquo312 (laquoLe Verbe agrave travers lrsquoIdeacutee et le Temps qui sont ldquola negation identique agrave lrsquoessence rdquo du Devenir devient le Langageraquo) O disciacutepulo natildeo nega obviamente que as palavras se formem tambeacutem por analogia a outras desconfia tatildeo-somente que tal fenocircmeno legitime a formulaccedilatildeo de uma lei substancial ademais foi ele que tambeacutem cogitou a formulaccedilatildeo de uma espeacutecie de laquoloacutegica imaginativaraquo ou laquoanaloacutegicaraquo jamais inferiorizando o pensamento por analogia por semelhanccedila por iconicidade em comparaccedilatildeo com o pensamento por contiguumlidade como se depreende em seus escritos sobre Leonardo Dir-se-ia assim simplesmente que para Valeacutery natildeo faz mais sentido buscar ou formular um criteacuterio de adequaccedilatildeo de justeza para as palavras (e nisso ele natildeo se coaduna com Hermoacutegenes) Constata-se apenas que elas satildeo engendradas por um processo imperfeito impuro por mimese (relaccedilatildeo entre signo e signo) e por convenccedilatildeo (relaccedilatildeo entre signo e objeto) dependendo do aspecto que se contemple mas natildeo por uma seacuterie de regras e relaccedilotildees absolutamente riacutegidas e substanciais Com efeito para Valeacutery a parte convencional eacute justamente a relaccedilatildeo entre a foneacutetica e a semacircntica (e nisso ele se coaduna com Hermoacutegenes) a palavra se configura sobretudo como laquouma montagem instantacircnea de um some um sentido sem qualquer relaccedilatildeo entre elasraquo313 Natildeo haacute ao menos nas liacutenguas foneacuteticas como o francecircs e o portuguecircs (a referecircncia eacute obviamente sempre agraves do tronco hindo-europeu e natildeo agraves que se utilizam tambeacutem de ideogramas ou hieroacuteglifos) uma necessaacuteria ligaccedilatildeo mimeacutetica de representaccedilatildeo icocircnica entre o representante e o representado Com relaccedilatildeo ao objeto que represente ou agrave funccedilatildeo que tenha o signo linguumliacutestico eacute realmente arbitraacuterio essa eacute sua marca mais patente como insiste Valeacutery consoante nesse aspecto com a linguumliacutestica de Saussure314

E poder-se-ia natildeo sem um pouco de exagero ir ainda mais aleacutem em todo esse insone raciociacutenio Pelo que se interpreta mais pela totalidade de seus escritos do que por frases soltas a linguagem para o poeta natildeo se caracterizaria como sendo consequumlecircncia de um princiacutepio ontoloacutegico de uma relaccedilatildeo isomoacuterfica com arealidade Por detraacutes dela natildeo haacute um substrato ou uma loacutegica essencial simetricamente perfeita com relaccedilatildeo a um suposto substrato ou loacutegica essencial do mundo O que em grande medida tambeacutem descartaria a possibilidade de construccedilatildeo de uma gramaacutetica geral ou universal matriz gerativa a partir da qual todas as demais seriam variaccedilotildees empiacutericas e natildeo apenas a possibilidade de uma

312 MALLARMEacute Steacutephane Œuvres completes I org Bertrand Marchal Gallimard Bibliothegraveque de la Peacuteiade Paris 1998 p 506313 Œ1 p 1328314 Cf SAUSSURE Ferdinand Cours de linguistique geacuteneacuterale orgs Charles Bally Albert Sechehaye amp Albert Riedlinger (colab) Eacutedition critique preacutepareacute par Tullio de Mauro Payothegraveque Payot Paris 1982

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linguagem perfeita uma linguagem pura315 Natildeo haacute portanto a Linguagem haacute tatildeo-somente linguagens ou para usar o conceito central do segundo Wittgenstein haacute inuacutemeros jogos de linguagens316 semelhantes entre si mas natildeo construiacutedos sob ou a partir de um uacutenico princiacutepio ontoloacutegico que se desenvolve e se multiplica como uma aacutervore Tudo eacute uma vasta trama que cresce e se contorce em vaacuterias direccedilotildeesuma trama sem raiz

Isso talvez explique o porquecirc Valeacutery de um lado constate a imperfeiccedilatildeo a impureza da linguagem e conjeture a formulaccedilatildeo de uma linguagem perfeita pura e por outro interprete como Mallarmeacute os diversos usos e apropriaccedilotildees falas e escritas das linguagens particulares das liacutenguas naturais como uma espeacutecie de intensa reforma ou reinvenccedilatildeo como um contiacutenuo aperfeiccediloamento Aperfeiccediloamento engendrado pelos propoacutesitos usuaacuterios que ao receber tais liacutenguas da tradiccedilatildeo as adaptam agraves suas idiossincrasias e modos de ser Processoque ocorre naturalmente de um modo bastante informal e natildeo finalista Desse modo o proacuteprio qualificativo de imperfeiccedilatildeo atrelado agrave linguagem adquire por conseguinte aqui menos o significado hodierno de algo defeituoso do que de incompleto de inacabado e portanto de uma forccedila evolutiva A metaacutefora mdashessa poderosa figura de linguagem que natildeo deixa de ser um dos mais conhecidos

315 Roland Barthes em 1977 na ceacutelebre aula inaugural para o curso de semiologia literaacuteria no Collegravege de France na mesma sala onde Valeacutery havia professado sua Premiegravere leccedilon du cours de poeacutetique (1937) (Œ1 p 1828) refere-se a um ideaacuterio similar presente natildeo apenas na linguagem mas tambeacutem na proacutepria literatura laquoDesde os tempos mais antigos ateacute as tentativas de vanguarda a literatura se afaina na representaccedilatildeo de alguma coisaraquo diz o semioacutelogo laquoO quecirc Direi brutalmente o real O real natildeo eacute representaacutevel e eacute porque os homens querem constantemente representaacute-lo por palavras que haacute uma histoacuteria da literatura Que o real natildeo seja representaacutevel mdash mas somente demonstraacutevel mdash pode ser dito de vaacuterios modos quer o definamos com Lacan como o impossiacutevel o que natildeo pode ser atingido e escapa ao discurso quer se verifique em termos topoloacutegicos que natildeo se pode fazer coincidir uma ordem pluridimensional (o real) e uma ordem unidimensional (a linguagem) Ora eacute precisamente a essa impossibilidade topoloacutegica que a literatura natildeo quer nunca quer render-se Que natildeo haja paralelismo entre o real e a linguagem com isso os homens natildeo se conformam e eacute essa recusa talvez tatildeo velha quanto a proacutepria linguagem que produz numa faina incessante a literatura Poderiacuteamos imaginar uma histoacuteria da literatura ou melhor das produccedilotildees de linguagens que seria a histoacuteria dos expedientes verbais muitas vezes louquiacutessimos que os homens usaram para reduzir aprisionar negar ou pelo contraacuterio assumir o que eacute sempre um deliacuterio isto eacute a inadequaccedilatildeo fundamental da linguagem ao real Eu dizia haacute pouco a respeito do saber que a literatura eacute categoricamente realista na medida em que ela sempre tem o real por objeto de desejo e direi agora sem me contradizer porque emprego a palavra em sua acepccedilatildeo familiar que ela eacute tambeacutem obstinadamente irrealista ela acredita sensato o desejo do impossiacutevel Essa funccedilatildeo talvez perversa portanto feliz tem um nome eacute a funccedilatildeo utoacutepica Reencontramos aqui a Histoacuteria Pois foi na segunda metade do seacuteculo XIX num dos periacuteodos mais desolados da infelicidade capitalista que a literatura encontrou pelo menos para noacutes franceses Mallarmeacute sua figura exata a modernidade mdash que entatildeo comeccedila mdash pode ser definida por este fato novo nela se concebem utopias delinguagem Nenhuma ldquohistoacuteria da literaturardquo (se ainda se escrever alguma) poderia ser justa se se contentasse como no passado com encadear escolas sem marcar o corte que potildee a nu um novo profetismo o da escrituraraquo (BARTHES Roland Leccedilon in Œuvres Completes III 1974-1980 org Eacuteric Marty Eacuteditions du Seuil 1995 pp 806-807) laquoO uacutenico real na arte eacute a arteraquo (Œ1 p 613) assim tambeacutem jaacute escrevia Valeacutery em La Tentation de (Saint) Flaubert no qual critica o ideaacuterio do Realismo que natildeo raro baseando-se em erudiccedilatildeo documental descreve os objetos e os acontecimentos com grande profusatildeo de detalhes pretendendo com isso dar uma suposta objetividade agrave representaccedilatildeo literaacuteria 316 WITTGENSTEIN Investigaccedilotildees filosoacuteficas trad Joseacute Carlos Bruni Os pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1979

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resultados da capacidade de analogia da consciecircncia uma forma de compararrepresentaccedilotildees para com isso conotar outrasmdash eacute uma dos exemplos mais patentes dessa reinvenccedilatildeo da linguagem no interior da proacutepria linguagem da qual a poesia vem a ser um dos grandes paradigmas Revela-se muitas vezes como um modo de precisar o dizer ou ateacute mesmo o uacutenico modo de dizer aquilo que de modo literal direto natildeo seria possiacutevel Pois a precisatildeo natildeo se refere apenas ao literal agraves vezes o metafoacuterico o que eacute dito pelo desvio vem a ser o mais preciso Toda a reflexatildeo linguumliacutestica de Valeacutery acaba mostrando portanto o lado positivo do convencionalismo a capacidade de inventar signos convencionais siacutembolos de multiplicaacute-los e de relacionaacute-los eacute a capacidade mesma de representar abstraccedilotildees Com os siacutembolos tornou-se possiacutevel representar de um modo abstrato natildeo apenas o mundo exterior mas tambeacutem o mundo interior o espiacuterito a consciecircncia e o que nesse espiacuterito nessa consciecircncia se conjetura e desejatornou-se possiacutevel representar inclusive aquilo que natildeo existe ou ao menos aquilo que eacute tatildeo somente especulado ou experimentado por um soacute laquoO maior progresso foi feito no dia em que os signos convencionais apareceramraquo assim exclama o poeta317

Conjetura-se que a invenccedilatildeo de signos convencionais a invenccedilatildeo da linguagem adveio sobretudo pela necessidade ou pelo desejo humano de interaccedilatildeo com os outros e com o mundo de construir um instrumento de comunicaccedilatildeo isto eacute um instrumento comum Entretanto esse instrumento tambeacutem pode ser usado mdashcomo que num segundo momento heuristicamente conjeturadomdash para expressar perplexidades filosoacuteficas Poder-se-ia dizer assim que a filosofia seria uma espeacutecie de desvio de desvirtuamento de abuso da funccedilatildeo agrave qual a linguagem estaria a princiacutepio destinada O que se constata tambeacutem na complexa formaccedilatildeo do vocabulaacuterio filosoacutefico frequumlentemente de grande abstraccedilatildeo este se inicia em grande medida a partir do vocabulaacuterio utilizado cotidianamente pragmaacutetico construiacutedo imediatamente atraveacutes de uma direta relaccedilatildeo com o mundo sensiacutevel concreto que entatildeo eacute manipulado ou reformulado resignificado quando inserido nas mais diversas especulaccedilotildees Supotildee-se que assim os seres humanos comeccedilam a representar os objetos da realidade que percebem com determinadas palavras cunhadas para tal para entatildeo depois passarem a representar objetos de realidades que conjeturam atraveacutes dessas mesmas palavras agora transformadas distorcidas em metaacuteforas ocultas318 laquoTodas

317 C1rsquo p 418 cf C1rsquo p 457318 Semelhante reflexatildeo foi desenvolvida por Nietzsche em sua criacutetica ao conceito de verdade este assim se pergunta laquoO que eacute a verdade Um batalhatildeo moacutevel de metaacuteforas metoniacutemias antropomorfismos enfim a soma de relaccedilotildees humanas que foram enfatizadas poeacutetica e retoricamente transpostas enfeitadas e que apoacutes longo uso parecem a um povo soacutelidas canocircnicas e obrigatoacuterias as verdades satildeo as ilusotildees das quais se esqueceu que o satildeo metaacuteforas que se tornaram gastas e sem forccedila sensiacutevel moedas que perderam a sua efiacutegie e agora soacute entram em consideraccedilatildeo como metal natildeo mais

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as nossas abstraccedilotildees tecircm essas experiecircncias pessoais e singulares como origemraquodiscursa informalmente Valeacutery laquotodas as palavras do pensamento mais abstrato satildeo palavras retiradas do uso mais simples mais comum que corrompemos para filosofar com elas Vocecircs sabiam que a palavra latina da qual tiramos a palavra mundo significa simplesmente ldquoornamentordquo mas certamente vocecircs sabem que as palavras hipoacutetese ou substacircncia alma ou espiacuterito ou ideacuteia as palavras pensar ou entender satildeo nomes de atos elementares como colocar pocircr pegar respirar ou ver que aos poucos foram se carregando de sentidos e ressonacircncias extraordinaacuterias ou ao contraacuterio foram se despojando progressivamente ateacute perderem tudo o que teria impedido de combinaacute-las com uma liberdade praticamente ilimitada A noccedilatildeo de pesar natildeo estaacute presente na noccedilatildeo de pensar e a respiraccedilatildeo natildeo eacute mais sugerida pelos termos do espiacuterito e da almaraquo319

Contudo haveria um entrave em todo esse processo linguumliacutestico Se no plano da linguagem ordinaacuteria todos os interlocutores em geral se entenderiamde modo mais faacutecil no plano da linguagem filosoacutefica haveria os maiores desentendimentos os maiores desacordos e disputas Quanto a isso as reflexotildees de Valeacutery satildeo incisivas e assumem um caraacuteter jaacute claacutessico remetem tanto a Santo Agostinho quanto a Wittgenstein laquoVocecircs jaacute notaram [] de que tal palavra perfeitamente clara quando a ouvem ou empregam na linguagem normalraquo assim pergunta o poeta laquonatildeo oferecendo a menor dificuldade quando comprometida no andamento raacutepido de uma frase comum torna-se magicamente problemaacutetica introduz uma resistecircncia estranha frustra todos os esforccedilos de definiccedilatildeo assim que vocecircs a retiram de circulaccedilatildeo para examinaacute-la agrave parte procurando um sentido apoacutes tecirc-la subtraiacutedo agrave sua funccedilatildeo momentacircnea Eacute quase cocircmico perguntar-se o que significa ao certo um termo que se utiliza a todo instante e obter satisfaccedilatildeo total Por exemplo escolhi [] a palavra Tempo Essa palavra era totalmente liacutempida precisa honesta e fiel ao seu serviccedilo enquanto desempenhava a sua parte em um propoacutesito e era pronunciada por algueacutem que queria dizer alguma coisa Mas ei-la sozinha presa pelas asas Ela se vinga Faz-nos acreditar que tem mais sentidos que funccedilotildees Era apenas um meio e ei-la transformada em fim transformada no objeto de um terriacutevel desejo filosoacutefico Permuta-se em enigma em abismo em tormento para o pensamento Acontece o mesmo com a palavra Vida e com todas as outras320 Esse

como moedaraquo (NIETZSCHE Friedrich Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral trad Rubens Rodrigues Torres Filho Os pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1974 p 84)319 Œ1 pp 1093-1094320 A ceacutelebre reflexatildeo de Santo Agostinho mdashlaquoO que eacute portanto o tempo se ningueacutem me pergunta eu sei se quiser explicar a quem me fizer a pergunta natildeo seiraquo (laquoQuid est ergo tempus Si nemo ex me quaerat scio si quaerenti explicare velim nescioraquo (SantrsquoAGOSTINO Le confessioni in Opere di SantrsquoAgostino I Edizione latino-italiana Nuova Biblioteca Agostiniana Cittagrave Nuoava Editrice Roma 1993 Liber XI sect 14 pp 380-381))mdash denuncia que a consciecircncia desse fenocircmeno eacute bastante antiga (cf a epiacutegrafe deste capiacutetulo) Wittgenstein que a cita logo em seguida pondera laquoAquilo que se sabe quando

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fenocircmeno facilmente observaacutevel adquiriu um grande valor criacutetico para mim Fiz dele aliaacutes uma imagem que me representa bastante bem essa estranha condiccedilatildeo de nosso material verbal [] cada uma das palavras que nos permite atravessar tatildeo rapidamente o espaccedilo de um pensamento e acompanhar o impulso da ideacuteia que constroacutei por si mesma sua expressatildeo parece-me uma dessas pranchas leves que jogamos sobre uma vala ou sobre uma fenda na montanha e que suportam a passagem de um homem em movimento raacutepido Mas que ele passe sem pesar que passe sem se deter mdash e principalmente que natildeo se divirta danccedilando sobre a prancha fina para testar a resistecircncia A ponte fraacutegil imediatamente oscila ou rompe-se e tudo se vai nas profundezas Consultem sua experiecircncia e constataratildeo que soacute compreendemos os outros e que soacute compreendemos a noacutes mesmos graccedilas agrave velocidade de nossa passagem pelas palavras Natildeo se deve de forma alguma oprimi-las sob o risco de se ver o discurso mais claro decompor-se em enigmas em ilusotildees mais ou menos eruditasraquo321

Esse discurso revela em siacutentese como o poeta compreende enfim a linguagem como um vasto sistema em devir como algo eminentemente provisoacuterio como algo eminentemente transitoacuterio Uma transitoriedade naturalmente feita de padrotildees de regras de normas E a palavra mdashe laquoNatildeo haacute palavra isolaacutevelraquo322mdash eacute apenas um elemento dessa transitoriedade um anel pertencente a uma correnteque se rompida pode acabar por obscurecer toda a compreensatildeo do que se intentou comunicar ela natildeo deve ser uma estaccedilatildeo-final mas uma estaccedilatildeo na qual se paacutera se permanece por pouco tempo depois se parte e assim sucessivamente num processo que virtualmente natildeo tem fim A palavra eacute assim como uma moedapossui valor de troca valor dependente somente da confianccedila nela depositada valor fiduciaacuterio Seu significado natildeo eacute dado por ela mas pelo que eacute possiacutevel ou natildeo se fazer com ela pelo seu uso ou numa outra perspectiva pelo seu contexto pelo contextoproposicional ou pela forma de vida para usar a expressatildeo do segundo Wittgenstein323 pelo tempo e pelo espaccedilo na qual se insere laquoEacute a frase que esclarece a palavraraquo324 A teoria semacircntica que o poeta sustenta eacute portanto um contextualismo semacircntico Nesse contextualismo o modo como uma palavra eacute frequumlentemente apropriada usada ou significada mdashcom padrotildees que se repetemanalogamentemdash daacute a ela uma suficiente estabilidade semacircntica para manter o poder de comunicaccedilatildeo da linguagem na medida em que impediria uma alteraccedilatildeo caoacutetica e

ningueacutem nos interroga mas que natildeo se sabe mais quando devemos explicar eacute algo sobre o que se deve refletir (E evidentemente algo sobre o que por alguma razatildeo dificilmente se reflete)raquo (WITTGENSTEIN Ludwing Investigaccedilotildees filosoacuteficas trad Joseacute Carlos Bruni Os pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1979 p 49)321 Œ1 pp 1317-1318322 C1rsquo p 454323 Cf WITTGENSTEIN Ludwing Investigaccedilotildees filosoacuteficas trad Joseacute Carlos Bruni Os Pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1979324 C1rsquo p 433

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arbitraacuteria dos seus proacuteprios usos ou significados Um usuaacuterio (um falante ou um escritor) se almeja ser compreendido natildeo pode querer fazer o que bem quiser com ela Natildeo pode querer usaacute-la ou significaacute-la sempre do mesmo modo o que se configuraria como um dogmatismo semacircntico absoluto assim como natildeo se pode querer usaacute-la ou significaacute-la sempre de modo diferente o que configuraria um ceticismo semacircntico absoluto Em ambos os casos a comunicaccedilatildeo no plano cotidiano ou ordinaacuterio estaria no miacutenimo prejudicada Toda palavra assim como todo signo tem portanto algum grau de determinaccedilatildeo semacircntica ou algum grau deindeterminaccedilatildeo semacircntica natildeo possui fixidez nem fluidez absolutas mdashe isso a faz funcionarmdash Uma laquolinguagem supotildee uma criaccedilatildeo estatiacutestica constante [Grifo do autor]raquo sintetiza Valeacutery laquocada qual potildee nela algo de si mesmo a desfigura a enriquece a capta e a comunica a sua maneira [] A necessidade de muacutetua compreensatildeo eacute a uacutenica normativa que atenua e retarda sua alteraccedilatildeo e esta eacute tatildeo soacute possiacutevel em virtude da natureza arbitraacuteria das correspondecircncias de signos e de sentido que a constituemraquo325

E eacute por isso que Valeacutery tambeacutem chega a se referir relativamente anaacutelogo agraves reflexotildees de um Rousseau326 e de um Condillac327 agrave linguagem como sendo mdashao menos ldquooriginalmenterdquomdash derivada do corpo do gesto e do grito328 o que significa que se almeja cumprir plenamente com seu objetivo pragmaacutetico deve morrer e morrer no outro no entendimento do outro o outro que a faraacute renascer laquoA linguagem articulada verbal parte do gesto mdash e o exige uma vez por todasraquo329 assim escreve laquoEnsaiar se exprimir por gestos Isto eacute tocar o cerne da linguagem ordinaacuteria)raquo330 Em uacuteltima instacircncia Valeacutery como ele mesmo confessa a compreende mdashum modo que poderia ser denominado de ldquopositivordquo ou ldquocientiacuteficordquomdash primordialmente como instrumento como laquofunccedilatildeoraquo331 natildeo como ldquocoisardquo ou ldquoessecircnciardquo O que talvez seria mais condizente a um poeta de poesias metafiacutesicas mas natildeo o eacute porque Valeacutery tambeacutem compreende a poesia natildeo raro como um retorno a esse gesto e a esse grito agora respectivamente transformados purificados em danccedila e em canccedilatildeo laquoO poeta que multiplica as figurasraquo escreve laquonada mais faz do que reencontrar em si mesmo a linguagem em estadonascenteraquo332 Nesse sentido ateacute mesmo o seu ldquonominalismordquo se relativiza pois em 325 Œ2 pp 480-481326 Cf ROUSSEAU Essais sur lrsquoorigine des langues org Jean Starobinski Folio - Essais Gallimard Paris 1993327 Cf CONDILLAC Eacutetienne Bonnot de Essai sur lrsquoorigine des connaissances humaines ndash Ouvrage ougrave lrsquoon reacuteduit agrave un seul principe tout ce qui concerne lrsquoentendement org Raymond Lenoir Librairie Armand Colin 1924328 Sobre a linguagem como gesto cf SOULEZ Antonia La phrase-geste - Valeacutery et Wittgenstein in CELEYRETTE-PIETRI Nicole amp SOULEZ Antonia (orgs) Valeacutery la logique et le langage Val de Marne le 29 novembre 1986 Universiteacute Paris XII Paris 1988 pp 135-155329 C1rsquo p 457330 C1rsquo p 410331 C1rsquo p 458332 Œ1 p 1440

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seu pensamento jaacute natildeo estaacute mais em jogo nenhuma preocupaccedilatildeo ontoloacutegica Todo substancialismo eacute substituiacutedo por um funcionalismo um funcionalismo contextualista porque a linguagem deve ser o que sempre foi uma accedilatildeo um fazer

4111 AUTOMATISMO VERBAL

mdash Vocecirc estaacute seguro de que esta eacute a traduccedilatildeo correta em palavras de seus pensamentos sem palavrasLudwing Wittgenstein Investigaccedilotildees filosoacuteficas

As palavras que possuem caraacuteter denotativo que se referem a algo as palavras ldquocategoremaacuteticasrdquo quiccedilaacute com exceccedilatildeo dos nomes e dos nuacutemeros podem ser compreendidas como generalia como signos gerais Representam um conjunto uma infinidade de objetos concretos ou abstratos subjetivos ou objetivos reais ou irreais que na perspectiva supostamente constante e natural da percepccedilatildeo e ou da intelecccedilatildeo humana se assemelham num tal extremo que satildeo postas como iguais e eacute justamente por essa ldquoigualdaderdquo por uma convencional desconsideraccedilatildeodas diferenccedilas do vasto grau de matizes da realidade que inuacutemeros objetos podem ser denominados por uma mesma palavra e assim tambeacutem para com todos os demais Natildeo haacute nada de igual passiacutevel de ser pelos sentidos percebido na realidade exterior ou intuiacutedo na realidade interior ao menos ateacute hoje natildeo se constatou que houvesse Nenhuma pedra eacute igual agrave outra pedra no entanto todas satildeo denominadas pedras nenhuma tristeza eacute igual agrave outra tristeza no entanto todas satildeo denominadas tristezas De algum modo e quiccedilaacute por se estar envolto com preocupaccedilotildees metafiacutesicas e religiosas por se almejar essecircncias um ir aleacutem do que se percebe tal relaccedilatildeo entre linguagem e realidade pode ldquofacilmenterdquo induzir ou incitar mdashe isso eacute meramente uma hipoacutetesemdash a crer que haveria natildeo apenas um objeto primordial e perfeito a partir do qual todos os outros seriam versotildees incompletas imperfeitas mas tambeacutem que haveria um significado correto absoluto verdadeiro referente como o jaacute acenado por Soacutecrates no Craacutetilo natildeo aos diversos objetos percebidos ou intuiacutedos que satildeo denominados por uma mesma palavra mas antes ao objeto primordial e perfeito333 A antiga concepccedilatildeo mdashplatocircnica ou realistamdash segundo a qual a palavra manifestaria a verdadeira essecircncia da coisa que representa explicita em muito essa crenccedila mdashe quanto a isso natildeo deixa de ser instigante saber que no Grego Claacutessico uma das palavras

para palavra (ὄνομα) tambeacutem designa o conceito de nomemdash Entretanto hoje

quando tal crenccedila natildeo se faz tatildeo presente quando o espiacuterito nominalista (e ldquomaisrdquo cientiacutefico) parece ter relativamente se imposto ao espiacuterito realista (e ldquomaisrdquo metafiacutesico) o que ainda ocorre mais explicita e precisamente eacute como

333 Cf NIETZSCHE Friedrich Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral trad Rubens Rodrigues Torres Filho Os Pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1974 p 84

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que um apego um apego a um determinado significado ou gama de significados a um determinado discurso O que muitas vezes prejudica ou inviabilizaria o diaacutelogo com outros a formularem outros significados ou gama de significados o diaacutelogo com outros discursos

Todo esse modo categorial de compreender as palavras e por conseguinte a linguagem modo que Valeacutery natildeo tardaria em julgar supostamente como ldquoantigordquo como ldquoanacrocircnicordquo posto desenvolvido numa eacutepoca preacute-cientiacutefica miacutetica seria um dos erros mais incisivos e recorrentes mais pateacuteticos da filosofia Esta opera constroacutei-se natildeo raro subestimando mdashesquecendo ou ignorandomdashesse constante e imperioso caraacuteter polissecircmico plaacutestico volaacutetil das palavras compreendido como muito mais vasto e complexo do que as preciosas definiccedilotildees enumeraccedilotildees que os dicionaacuterios proporcionam e que compreensivelmente natildeo abarcam todas as possibilidades334 ou dito com mais precisatildeo subestimando os variados usos ou significados que as pessoas tanto na linguagem cotidiana como na linguagem filosoacutefica tanto na prosa como na poesia concedem com maior ou menor rigor agraves proacuteprias palavras o grau de indeterminaccedilatildeo semacircntica que elas podem sofrer A filosofia tende a compreenderque se existe muitos usos ou significados de uma mesma palavra somente um ou uma gama muito limitada ou restrita deles deve ser o correto o absoluto o verdadeiro Mas como para o poeta a linguagem caracteriza-se sobretudo como insuficiente convencional e transitoacuteria como uma laquocriaccedilatildeo estatiacutestica constanteraquo como as palavras natildeo mascaram ou encobrem essecircncias laquonatildeo encobrem misteacuterios mdash mas embaraccedilos incoerecircncias acasosraquo335 natildeo haacute natildeo faz sentido haver por conseguinte o significado correto absoluto verdadeiro mas tatildeo somente inuacutemeros usos ou significaccedilotildees possiacuteveis E isso porque definiccedilotildees isto eacute tentativas de dar contornos ou limites semacircnticos fixidez agraves palavras natildeo satildeo representaccedilotildees de uma realidade ontoloacutegica para aleacutem dos espiacuteritos das consciecircncias

A filosofia ldquopecardquo portanto por um dogmatismo semacircntico ou pelo que aqui pode ser denominado de platonismo semacircntico ou realismo semacircntico a ilusoacuteria crenccedila no significado em si a ilusoacuteria crenccedila na palavra em si336 a ilusoacuteria crenccedila que haacute um em si representado pelo signo verbal No discurso que promove no discurso que eacute ela a filosofia cristaliza fixa as significaccedilotildees que adquire ou formula para ou estaca nas palavras em geral as mais abstratas (consequumlentemente as mais propiacutecias e relevantes ao pensamento metafiacutesico) quando estas devem ser ou soacute podem ser compreendidas como pontes como partes de frases de textos e de contextos e assim sucessivamente a filosofia faria portanto justamente aquilo que Valeacutery considera ser extremamente ldquoperigosordquo e ldquoesteacuterilrdquo isola as palavras e isoladas elas 334 C1rsquo p 391335 C1rsquo p 390336 Cf C1rsquo p 460-461

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se tornam laquoincompletasraquo laquoionizadasraquo337 isoladas elas se tornam portas para o enigma inesgotaacuteveis fontes de especulaccedilotildees filosoacuteficas de antinomias A palavra torna-se aquilo que o fazedor de poemas intuitivamente sabe que pode ocorrerum laquoabismo sem fimraquo338 laquoQuando noacutes nos interrogamos sobre o significado de uma palavra mdash o que eacute a atitude do fazedor de dicionaacuterios ou do ldquofiloacutesofordquo ou do criacutetico etc mdash noacutes somos conduzidos inconscientemente a inventar um significado ldquoidealrdquo e falso Pois 1o noacutes consideramos a palavra isoladamente 2o noacutes recusamos o significado dessa palavra quando a observamos no uso imediato e que parece incompleta ou absurda ou peticcedilotildees de princiacutepio Noacutes supomos que cada palavra possui um significado mdash determinado que natildeo seja o seu e que corresponde a qualquer coisa mdash correspondecircncia uniforme mdash e que o sistema perfeito de palavras eacute em alguma parte mdash a disposiccedilatildeo de um espiacuterito bastante poderoso e sutil para o esperarraquo339 laquoO filoacutesoforaquo portanto escreve o poeta laquocrecirc na palavra em si mdash e seus problemas satildeo problemas de palavras em si de palavras que se obscurecem pelo imobilismo e isolamento mdash e que ele esclarece de seu melhor criando-as de seu melhor e artificialmente por uma voz refletida e imaginativa aquilo que precisamente suas paradas e suas duacutevidas o levaram mdashseu caraacuteter de transiccedilatildeo mdash via de comunicaccedilatildeoraquo340 Segundo Valeacutery os filoacutesofos viveriam muito mais a disputar tatildeo-somente definiccedilotildees significaccedilotildees de palavrassemacircnticas do que proposiccedilotildees construccedilotildees que se atenham a ldquofenocircmenos reaisrdquo eacute justamente nesse sentido que ele chega a dizer ironicamente que toda a filosofia inclina-se a ser tatildeo-somente uma laquoDivinizaccedilatildeo do verbo serraquo341 (Esse comportamento filosoacutefico eacute de algum modo bastante compreensiacutevel supondo a tendecircncia tatildeo caracteriacutestica do pensamento da Antiguumlidade Claacutessica a fundamentar e influenciar grande parte da Tradiccedilatildeo Filosoacutefica Ocidental em buscar algum princiacutepio algum ldquoserrdquo ontologicamente inscrito sob a desesperadora transitoriedade do mundo Transitoriedade que de modo algum natildeo perturba o poeta)

Dessarte da criacutetica ao modo como os filoacutesofos frequumlentemente utilizam-sedas palavras fixando-se nelas da falta de consciecircncias da linguagem destes342 o poeta amiuacutede considera consequumlentemente que tambeacutem a grande parte ou a totalidade

337 C1rsquo p 438338 Œ1 p 686339 C1rsquo pp 438-439340 C1rsquo p 430341 C1rsquo p 620342 O modo como Valeacutery escreve em geral sobre a filosofia eacute realmente bastante sedutor Assim quando Emile Cioran o critica como um escritor que tambeacutem se deixou levar pela doenccedila da linguagem imagina-se que ao contraacuterio o elogia irocircnico nega-o para afirmaacute-lo confessando por quem se deixou influenciar laquoO horror que tinha do jargatildeo filosoacutefico eacute tatildeo convincente tatildeo contagiante que dele partilhamos para sempre soacute podemos ler um filoacutesofo seacuterio com desconfianccedila ou repugnacircncia e nos recusarmos daiacute em diante a todo termo falsamente misterioso ou eruditoraquo (CIORAN Emile Valeacutery face agrave ses idoles Œuvres Quarto Eacuteditions Gallimard 1995 p 1567)

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dos problemas que a filosofia ou a metafiacutesica inventa e lega agrave tradiccedilatildeo tanto filosoacutefica ou metafiacutesica quanto o que talvez seja mais problemaacutetico e polecircmico para aleacutem dela constitui-se natildeo de erros mas simplesmente de falsos problemas de contra-sensos de ilusotildees de quimeras ou de abusos a partir dos quais na acircnsia de resolvecirc-los de realizaacute-los muitas vezes satildeo arquitetados e construiacutedos verdadeiros mundos de fantasia laquoToda a filosofia nasceu de ilusotildees sobre o saber que satildeo ilusotildees sobre a linguagemraquo343 laquoNatildeo existe um uacutenico problema em filosofiaraquo escreve de modo irocircnico e taxativo laquoque natildeo se tenha podido enunciar de maneira tal que natildeo subsista qualquer duacutevida sobre a sua existecircnciaraquo344 Entretanto natildeo se trata assim pode ser interpretado de um ceticismo positivo ou dogmaacutetico natildeo eacute mais uma questatildeo tanto de crer ou de descrer nesses problemas na legitimidade ou ilegitimidade de acreditar na veracidade ou na falsidade deles na concordacircncia com a realidade que dispotildeem representar Porque eles satildeo justamente apenas falsos problemas contra-sensos isto eacute eles simplesmente natildeo tecircm sentido eles simplesmente natildeo existem para fora do universo linguumliacutestico no qual se inserem Constituem-se antes em ilusotildeesgramaticais Afinal natildeo se pode duvidar de algo mal enunciado impreciso natildeo se pode duvidar de algo que se intui natildeo ser compreendido nem mesmo por aqueles que o enunciam mdashargumento esse naturalmente deveras subjetivomdash laquoA maior parte dos problemas da filosofia satildeo contra-sensosraquo escreve Valeacutery tambeacutem se referindo ao devir do saber cientiacutefico laquoeu quero dizer que eacute geralmente impossiacutevel de os ldquocolocarrdquo de uma maneira precisa sem os destruir Assim esses problemas geralmente natildeo resultam de um estudo direto mas satildeo engendrados por teorias ou modos de expressatildeo mais antigos que ao se tornarem insuficiente e em desacordo com os fatos ou com uma anaacutelise mais fina fizeram nascer paradoxos Eacute assim que o argumento sobre a divisibilidade do tempo e do espaccedilo repousa sobre a imprecisatildeo desta operaccedilatildeo Haacute somente que voltar ao que se passa quando se o divide seja fisicamente seja (de uma maneira bastante diferente) intelectualmente para anular o argumentoraquo345

343 C1rsquo p 413344 Œ1 pp 1264-1265345 C1rsquo pp 532-533 Essa concepccedilatildeo se coaduna com a concepccedilatildeo do que vem a ser a filosofia para Wittgenstein uma atividade cujo fim natildeo eacute a resoluccedilatildeo mas a eliminaccedilatildeo dos problemas filosoacuteficos a diferenccedila mais marcante entre os dois pensadores eacute mais de caraacuteter semacircntico este se colocava dentro da filosofia como filoacutesofo e Valeacutery fora dela como natildeo filoacutesofo Jaacute na sua primeira obra o loacutegico austriacuteaco escreve laquoA maioria das questotildees e proposiccedilotildees dos filoacutesofos proveacutem de natildeo entendermos a loacutegica de nossa linguagem (Satildeo da mesma espeacutecie que a questatildeo de saber se o bem eacute mais ou menos idecircntico ao belo) E natildeo eacute de admirar que os problemas mais profundos natildeo sejam propriamente problemasraquo (Cf WITTGENSTEIN Ludwing Tratactus logico-philosophicus trad Luiz Henrique Lopes dos Santos EDUSP Satildeo Paulo 1994 sect 4003 pp 164-165) Essas aacuteridas palavras poderiam muito bem ser de Valeacutery compare-se tambeacutem tanto na forma fragmentada como no conteuacutedo os Cahiers de um e as Philosophische Untersuchungen do outro

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Extrapolando toda essa criacutetica da esfera filosoacutefica e estendendo-a toda ateacute a esfera social chegar-se-ia ao ponto extremo em que se poderia afirmar ser qualquer crenccedila natildeo apenas as tecnicamente filosoacuteficas ou metafiacutesicas uma maacute formulaccedilatildeo linguumliacutestica que natildeo raro assume um valor capital na vida daquele que crecirc O lema mdashlaquoFaire sans croireraquomdash tambeacutem natildeo deixe de estar relacionado a isso pois talvez para Valeacutery toda crenccedila tenha no fundo um caraacuteter filosoacutefico-metafiacutesico e seja portanto ilusoacuteria Tal concepccedilatildeo pode parecer de uma brutalidade de um niilismo epistemoloacutegico visceral principalmente quando se contempla o quanto a grande parte das pessoas facilmente adere ou se submete natildeo raro miseravelmente a qualquer sistema de valores relativamente fechado que o vasto mercado das ideacuteias oferece e vende especialmente os que se encontram nas religiotildees institucionalizadas em busca de consolo psicoloacutegico e de esperanccedilas Isso natildeo implica obviamente que natildeo se possa compreender a importacircncia e a funccedilatildeo das crenccedilas para uma determinada sociedade para a vida e continuidade de uma determinada sociedade para aqueles que as aceitam e as seguem como sempre observava Kant a considerar a razatildeo praacutetica como mais importante para a vida do que a razatildeo pura Disso o poeta apresenta plena consciecircncia Considerava impossiacutevel ou ao menos muito improvaacutevel a construccedilatildeo de uma civilizaccedilatildeo que prescinda de crenccedilas de princiacutepios natildeo verificaacuteveis de representaccedilotildees vagas imprecisas e ldquomal formuladasrdquo de aspiraccedilotildees de sonhos e ilusotildees Pois em uacuteltima instacircncia laquoA metafiacutesica eacute a base das sociedadesraquo346

Numa passagem mais generosa e condescendente Valeacutery matiza assimessa sua proacutepria criacutetica quanto aos problemas filosoacutefico-metafiacutesicos serem contra-sensos referindo-se ao teor pessoal dessa criacutetica As palavras diz ele laquopassaram por tantas bocas por tantas frases por tantos usos e abusos que as precauccedilotildees mais delicadas se impotildeem para evitar uma enorme confusatildeo em nossos espiacuteritos entre o que pensamos e tentamos pensar e o que o dicionaacuterio os autores e de resto todo o gecircnero humano desde a origem da linguagem querem que pensemos [] Confesso ter o costume de distinguir nos problemas do espiacuterito aqueles que eu teria inventado e que exprimem uma necessidade real sentida por meu pensamento e os outros que satildeo problemas alheios Entre esses uacuteltimos haacute muitos [] que me parecem natildeo existir ser apenas aparecircncia de problemas eu natildeo os sinto E quanto ao resto haacute muitos que me parecem mal enunciados Natildeo estou dizendo que eu tenho razatildeo Estou dizendo que vejo em mim o que se passa quando tento substituir as formas verbais por valores e significados natildeo verbais que sejam independentes da linguagem adotada [Grifo do autor] Encontro aiacute impulsos e imagens ingecircnuas produtos brutos de minhas necessidades e de minhas experiecircncias pessoais Eacute a minha vida que se espanta Eacute ela que deve me fornecer se

346 Π folio 94 recto

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puder minhas respostas pois eacute somente nas reaccedilotildees de nossa vida que pode residir toda a forccedila e a necessidade de nossa verdade O pensamento que emana dessa vida nunca se serve com ela mesma de certas palavras que lhe pareccedilam boas para o uso externo nem de outras nas quais natildeo veja o conteuacutedo e que soacute pode enganaacute-lo sobre sua forccedila e valores reaisraquo347

Mediante essas palavras facilmente se constroacutei aqui uma estrateacutegia de argumentaccedilatildeo Supotildee-se que se os problemas filosoacutefico-metafiacutesicos fossem enunciados com proposiccedilotildees mais exatas ou precisas simplesmente natildeo existiriam se estivessem em outro registro ordenadas a partir de outros princiacutepios postos em uma outra loacutegica simplesmente natildeo viriam a ser simplesmente natildeo seriam pensados e ou creditados pois a existecircncia desses problemas mdashenquanto enunciados objetivos de validade universalmdash estaacute intimamente condicionada agrave proacutepria linguagem agraves convenccedilotildees estatiacutesticas (e por conseguinte agrave proacutepria cultura) com as quais natildeo simplesmente se vestem massatildeo por vezes inteiramente constitutivos Como o pensamento tende a condicionar a sua forma de expressatildeo exterior assim como a forma de expressatildeo exteriortende a condicionar o pensamento um problema filosoacutefico-metafiacutesico genuiacuteno (se isso ainda for possiacutevel no pensamento do poeta se isso natildeo for demasiado idealista) deveria existir deveria poder se sustentar independentemente dos veiacuteculos ou dos meios no qual se corporifica e se lanccedila como mensagem exterior agraves interpretaccedilotildees alheias E a partir disso eacute liacutecito formular uma espeacutecie de ldquoregrardquo simples e laminar indispensaacutevel a uma laquonettoyage de la situation verbaleraquo que se faz realmente rigorosa Um problema filosoacutefico enunciado de uma outra forma transposto em um outro sistema de signos sem a mediaccedilatildeo ou sem a vestimenta por exemplo das palavras da linguagem verbal permaneceria como problema e como problema filosoacutefico Um problema filosoacutefico o que dele sobra retirada a sua forma exterior Essa muacuteltipla questatildeo acena aqui para um crivo o crivo daquilo que se pode denominar aqui de traduccedilatildeo semioacutetica (natildeo meramente entre linguagens verbais mas sobretudo entre linguagens entre formas distintas de representaccedilatildeo) acena para o que pode ser cuidadosamente designado aqui de pensamento puro de semiose pura isto eacute de uma representaccedilatildeo mental natural ou natildeo convencional como o substrato mais adequado para a reflexatildeo verdadeiramente autocircnoma pensamento livre mdasheis o que enfim se buscamdash das convenccedilotildees das amarras da linguagem verbal do idioma livre justamente porque consciente delas no ato mesmo de expressaacute-las Livre de todo o laquoautomatismo verbalraquo (laquoautomatisme verbalraquo)

Plenamente formulada em Leacuteonard et les philosophes essa expressatildeo mesmo que natildeo abundantemente repetida eacute um dos mais significativos conceitos-chave do pensamento de Valeacutery siacutentese do que ele realmente critica na filosofia ou

347 Œ1 pp 1318-1319

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metafiacutesica348 Pois compreendendo o itineraacuterio de seus escritos como um todoeacute justamente contra o automatismo contra o automatismo de qualquer espeacutecie seja em qualquer esfera na vida privada ou puacuteblica seja consigo mesmo ou com os outros seja com relaccedilatildeo agraves crenccedilas que a sociedade natildeo raro exige seja com relaccedilatildeo a um mero problema teoacuterico que ele sempre se empenhou em se precaver e contra o qual lutar mesmo reconhecendo que isso em termos absolutos seja talvez impossiacutevel Eis a passagem na qual a expressatildeo laquoautomatismoverbalraquo eacute mais eloquumlentemente formulada laquoO filoacutesofo descreve aquilo que pensou Um sistema de filosofia se resume numa classificaccedilatildeo de palavras ou num quadro de definiccedilotildees A loacutegica eacute apenas a permanecircncia das propriedades desse quadro e a maneira de usaacute-lo Eis a que estamos acostumados e porque temos que dar agrave linguagem articulada um lugar todo especial e todo central no regime de nossos espiacuteritos Eacute bem verdade que esse lugar eacute devido e que essa linguagem [] eacute quase noacutes mesmos Quase natildeo podemos pensar sem ela e natildeo podemos sem ela dirigir conservar retornar nosso pensamento e sobretudo prevecirc-lo de alguma maneira Mas olhemos um pouco mais de perto examinemos em noacutes mesmos Mal nosso pensamento tende a se aprofundar isto eacute a se aproximar de seu objeto tentando operar sobre as proacuteprias coisas (por mais que seu ato produza coisas) e natildeo mais sobre signos quaisquer que excitam as ideacuteias superficiais das coisas mal vivemos esse pensamento sentimo-lo separar-se de toda a linguagem convencional Por mais intimamente que seja tramada em nossa presenccedila e por mais densa que seja a distribuiccedilatildeo de suas chances por mais sensiacutevel que seja essa organizaccedilatildeo adquirida e por mais pronta que ela esteja a intervir podemos por esforccedilo por uma espeacutecie de aumento e por uma maneira de pressatildeo de duraccedilatildeo separaacute-la de nossa vida mental pertinaz Sentimos que nos faltam as palavras e percebemos que natildeo existe razatildeo para encontrar algumas que nos correspondem isto eacute que nos substituam porque o poder das palavras (de onde elas tiram a sua utilidade) eacute nos fazer voltar a passar pela proximidade de estados jaacute experimentados regularizar ou instituir a repeticcedilatildeo e eis que natildeo se repete nunca Talvez isso mesmo eacute que seja pensar profundamente o que natildeo quer dizer pensar mais utilmente mais exatamente mais completamente que de costume eacute apenas pensar longe pensar o mais longe possiacutevel do automatismo verbal [penser le plus loin possible de lrsquoautomatisme verbal] Sentimos entatildeo que o vocabulaacuterio e a gramaacutetica satildeo dons estranhos res inter alios actas Percebemos diretamente que a linguagem por mais orgacircnica e indispensaacutevel que seja natildeo pode acabar nada no mundo do pensamento onde nada fixa sua natureza

348 A expressatildeo laquoautomatismo verbalraquo tambeacutem natildeo estaacute longe do que o segundo Wittgenstein denominou de enfeiticcedilamento da linguagem escreve ele que laquoA filosofia eacute uma luta contra o enfeiticcedilamento do nosso entendimento pelos meios da nossa linguagemraquo (WITTGENSTEIN Ludwing Investigaccedilotildees filosoacuteficas trad Joseacute Carlos Bruni Os pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1975 p 54)

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transitiva Nossa atenccedilatildeo distingue-a de noacutes Nosso rigor como nosso fervor nos opotildeem a elaraquo349

O pensar profundamente eis a meta Na medida em que o pensamento se ldquoapegardquo agrave linguagem verbal mdashlinguagem que o artificializa ao operar com as palavras incapazes de representar a sua transitoriedademdash naturalizando-a como as roupas ao corpo ao grau de natildeo raro ser incapaz de pensar atraveacutes de outras formas e por si soacute faz-se necessaacuterio uma espeacutecie de ldquodes-automatizaccedilatildeo do verbordquo uma purificaccedilatildeo Purificaccedilatildeo que ocorre no proacuteprio programa de autoconsciecircncia valeacuteryano na lucidez na atenccedilatildeo e no esforccedilo que este demanda e do qual a praacutetica dos Cahiers e como se veraacute da poesia pura satildeo exemplos praacuteticos Purificaccedilatildeo que eacute portanto a aquisiccedilatildeo de uma consciecircncia radical do funcionamento do pensamento sobretudo durante o processo mesmo de agir de fazer algo Conhecer as relaccedilotildees entre o pensamento e a linguagem deveria ser assim se postula uma prerrogativa primeira a qualquer filosofia ou a qualquer filoacutesofo e por extensatildeo a qualquer formulaccedilatildeo teoacuterica Isso garantiria que natildeo se fosse levado a crer que determinadas palavras devem necessariamente representar objetos reais porque a existecircncia de um signo natildeo eacute a prova ou a contra-prova da existecircncia daquilo que esse signo representa O espiacuterito a consciecircncia que almeja um poder de transformaccedilatildeo real sobre o mundo e sobre si mesmo deve ater-se agraves ligaccedilotildees entre o real e as representaccedilotildees do real deve garantir-se vigilante e constantemente laquocontra o perigo de parecer perseguir um objeto puramente verbalraquo350 Esse espiacuterito essa consciecircncia encarna-se naturalmente nos principais personagensconceituais de Valeacutery Leonardo e Teste seriam justamente aqueles que diferentemente dos filoacutesofos possuiriam atraveacutes do meacutetodo de um ou da negatividade do outro uma maior consciecircncia da linguagem buscando natildeo se deixarenredar pelo automatismo verbal ou por qualquer outra forma de automatismo

Consequumlentemente libertados do dogmatismo semacircntico do platonismo ou realismo semacircnticos libertados desse automatismo verbal plenamente inseridos num registro cientiacutefico e teacutecnico plenamente inseridos na Modernidade dir-se-ia que agora jaacute natildeo eacute mais a tarefa a de Valeacutery a do pensador (seria este agora denominado de filoacutesofo) saber o que eacute o Tempo o Deus o Ser o Signo ou o Amor etc mas muito mais a de verificar os diversos usos ou significados que as palavras tradicionalmente propiacutecias agrave especulaccedilatildeo metafiacutesica como Tempo Deus Ser Signo ou Amor etc podem adquirir num determinado discurso numa determinada forma num determinado tempo e espaccedilo Por vezes a tarefa tambeacutem eacute a de natildeo usar ou significar essas palavras ou a de propor outros usos ou significados a elas Porque natildeo haacute mais valores constantes mas valores funcionais

349 Œ1 pp 1263-1264350 Œ1 p 1268

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porque natildeo haacute mais sentido responder portanto uma das questotildees outrora fundamentais para o Pensamento Ocidental ldquoo que uma coisa eacuterdquo faz muito mais sentido responder ldquoo que uma coisa pode serrdquo O que implicaria em avaliaras possibilidades passadas e a partir delas conjeturar possibilidades futuras em resultados efetivos e reais Com efeito que as palavras e as frases sejam mudadasque se conceda e se aceite tambeacutem os usos ou os significados que o outro faz das palavras e das frases e determinados desacordos se revelariam ilusoacuterios porque entatildeo se perceberia que por vezes as pessoas dizem a mesma coisa por meios distintosSe o almejado eacute uma possiacutevel conciliaccedilatildeo entre as reflexotildees de um e outro cumpre aceitar os subentendidos as referecircncias e os ocultamentos as generalizaccedilotildees e as exceccedilotildees os excessos e as retoacutericas que nos discursos habitam cumpre aceitar ainda que nem todos se utilizam dos mesmos meios das mesmas formas das mesmas palavras mdashou mesmo de palavrasmdash para seus discursos

Compreende-se enfim sob que pressuposto a criacutetica agrave filosofia de Valeacutery se erige na concepccedilatildeo de que natildeo haacute uma hierarquia entre os diversos sistemas de signos de que a linguagem verbal natildeo eacute superior nem inferior agraves outras formas de linguagem na tarefa de representar o pensamento e principalmente que o saber natildeo se reduz agrave palavra Por conseguinte denuncia-se mais uma vez como nos escritos sobre Teste e principalmente sobre Leonardo o logocentrismo351 o idealismo restritivo da ideologia que tradicionalmente encara o logos mdasho discurso conceitualmdash como o uacutenico caminho seguro para a verdade natildeo raro em detrimento de todas as outras formas de representaccedilatildeo Apesar dos quase incontestaacuteveis poderes de comunicaccedilatildeo que possui apesar de ser instrumento indispensaacutevel para a comunicaccedilatildeo cotidiana e para a ciecircncia a linguagem verbal possui sim precisatildeo mas relativa e natildeo absoluta estaacute circunscrita a sua aacuterea aquilo a que foi proposta Ela natildeo poderaacute dizer o que outras formas de comunicaccedilatildeo dizem assim como as outras formas de comunicaccedilatildeo natildeo poderatildeo dizer o que ela diz Natildeo haacute equivalecircncias natildeo haacute traduccedilotildees absolutas porque toda representaccedilatildeo natildeo deixa de ser uma abstraccedilatildeo ou reduccedilatildeo do representado do contraacuterio seria o proacuteprio representado Na concepccedilatildeo de Valeacutery a filosofia mdashquando definida apenas por sua forma verbalmdash seria enfim um fenocircmenocultural uma modalidade uma forma de pensamento entre tantas outras possiacuteveis e irredutiacuteveis entre si

412 FILOSOFIA COMO FORMA

351 Eacute nesse sentido que Derrida em seu ensaio sobre Valeacutery Qual quelle - Les sources de Valeacutery refere-se a este como um pensador eminentemente escritural diferentemente da tradiccedilatildeo que vai de Descartes a Husserl laquoValeacutery faz lembrar ao filoacutesofo que a filosofia se escreve E que o filoacutesofo eacute filoacutesofo pelo tanto que esqueceraquo (DERRIDA Jaques Qual quelle - Les sources de Valeacutery in Marges de la philosophie Minuit Paris 1972 p 346)

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Filoacutesofo Valeacutery jamais se considerou ou quis se considerar dizia natildeo ter a honra de o ser como dizia em determinadas ocasiotildees tambeacutem natildeo ser literato e ateacute mesmo poeta mdashtal atitude naturalmente faz parte da sua negatividademdashDoravante muitas de suas reflexotildees mesmo fragmentadas satildeo hoje cada vez mais comumente denominadas de filosoacuteficas (justamente porque a proacutepria filosofia transformou-se tornou-se mais analiacutetica) e a sua imagem ultimamente tende a ser pela heterogecircnea evoluccedilatildeo de sua crescente fortuna criacutetica mais a do pensador do que a do poeta352 O que constitui um surpreendente paradoxohistoriograacutefico posto que natildeo raro para o poeta poesia e pensamento abstrato natildeo satildeo necessariamente excludentes e o proacuteprio pensamento quando operando na mais intensa autoconsciecircncia possiacutevel pode ser compreendido como um processo artiacutestico Eacute por tal discrepacircncia que a criacutetica que ele lanccedila a filosofia atraveacutes dasua laquonettoyage de la situation verbaleraquo tambeacutem deve ser aqui restringida erelativizada

Essa criacutetica tem como alvo as obras que se estendem grosso modo ateacute este periacuteodo da Histoacuteria do Pensamento no qual o Idealismo Alematildeo em geral e o monumental sistema de Hegel em particular erigem-se simultaneamente como aacutepice e fim no qual a proacutepria filosofia mdashagrave parte o sempre presente incocircmodo dos ceacuteticos e empiristas agrave qual o poeta por vezes facilmente se aproxima353mdash eacute amiuacutede identificada com uma metafiacutesica idealista com uma construccedilatildeo que almeja compreender o mundo em uma totalidade de sentido fechada e orgacircnica e cumpre dizer natildeo com epistemologia anaacutelise linguumliacutestica ou criacutetica social caminhos estes mais prementes e fecundos no desiludido seacuteculo XX Valeacutery teve relativo contato com correntes a ele contemporacircneas portanto com hodiernas formas de pensamento que natildeo se estabelecem que natildeo se constroem apesar das compreensiacuteveis divergecircncias entre si a partir de um princiacutepio ontoloacutegico mas

352 Cf como um criacutetico como Edmund Wilson considera entre as deacutecadas de 1930 e 1950 a prosa de Valeacutery algo inferior agrave sua poesia (WILSON Edmund Paul Valeacutery in O castelo de Axel - Estudo dobre a literatura imaginativa de 1870 a 1930 trad Joseacute Paulo Paes Companhia das Letras Satildeo Paulo pp 85-108) Muito em funccedilatildeo da publicaccedilatildeo e divulgaccedilatildeo dos Cahiers hoje a tendecircncia eacute justamente contraacuteria Por um lado a criacutetica atual o posiciona cada vez mais como aquele pensador refinado que se interessa em observar seus proacuteprios procedimentos e em avaliar o impacto da Modernidade cientiacutefica e teacutecnica na arte e na vida por outro relega a sua posiccedilatildeo de poeta a um plano por vezes secundaacuterio posto que sua poesia mescla de elementos do Classicismo e Simbolismo eacute considerada de um rigor e hermetismo um tanto anacrocircnico difiacutecil para o ouvido moderno jaacute habituado ao sedutor verso livre (Cf KLUBACK William Paul Valeacutery a philosopher for philosophers - The sage Peter Lang New York 2000)353 Haacute que se lembrar dessas tradiccedilotildees das quais Valeacutery eacute em certa medida herdeiro o Ceticismo e o Empirismo portanto de um tipo de pensamento que apesar de tambeacutem bastante variado apresenta a possibilidade em se abster da formulaccedilatildeo de uma metafiacutesica Isso porque de algum modo a historiografiafilosoacutefica tende a reduzir a filosofia agrave metafiacutesica ou ao menos a dar importacircncia central a ela Daiacute que por exemplo o poeta tenha considerado que o pensamento de um Montaigne com quem tem muitas e ambiacuteguas afinidades dificilmente seria considerado filosoacutefico laquoNela [na filosofia] natildeo figura mais Montaigne Um homem que respondesse Natildeo sei a todas as questotildees de um formulaacuterio filosoacutefico natildeo seria considerado filoacutesofo E no entantoraquo (Œ1 p 1251)

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principiam por uma determinada perspectiva e recorte da realidade empiacuterica uma concretude social e linguumliacutestica As escassas tradiccedilotildees filosoacuteficas que amiuacutede fazem-se explicitamente presentes em seus escritos raramente ultrapassam esse periacuteodo Referecircncias diretas a Alain (um de seus primeiros inteacuterpretes) a filoacutesofos evolucionistas e espiritualistas como Henri Bergson e Teilhard de Chardin podem ser consideradas exceccedilotildees quiccedilaacute devido agrave amizade ou correspondecircncia que com estes o poeta cultivava

Os filoacutesofos aos quais se refere nos mais polecircmicos e divertidos comentaacuterios principalmente em seus Cahiers (nos quais sempre se daacute maior liberdade em dizer disparates em ser mais aacutecido do que em sua obra puacuteblica) pertencem a esse registro anterior que ele natildeo demora em qualificar de ldquoantigordquo os Preacute-socraacuteticos satildeo caricaturados como grifos cujos laquofragmentos [] nos fazem sonhar com vestiacutegios de touros alados cabeccedilas de leatildeo extraordinaacuterias coacutepulas de profundidade e de absurdoraquo354 Platatildeo apesar da expliacutecita influecircncia formal ou literaacuteria natildeo recebe muito creacutedito como um dos Pais do Ocidente sobretudo pelas consequumlecircncias da Teoria das Ideacuteias355 Aristoacuteteles poucas satildeo as foacutermulas que do filoacutesofo de Estagira se pode reter Plotino e Espinosa dois dos grandes monistas sofrem de uma tremenda ldquoingenuidaderdquo metafiacutesica e Kant eacute um laquoatordoadoraquo (laquoeacutetourdiraquo) que apesar da intrincada cesura epistemoloacutegica que instaura natildeo foi radical o suficiente em suas criacuteticas356 Pascal eacute certamente um dos mais atacados natildeo simplesmente porque desgosta da pintura masprincipalmente porque diferentemente de Leonardo divide o espiacuterito a consciecircncia em meacutetodos distintos357 Quanto a Hegel Valeacutery diz com ldquocerto orgulhordquo que jamais o leu Em contrapartida pensadores (tambeacutem sistecircmicos) como Santo Tomaacutes de Aquino (por natildeo separar de todo o corpo e a alma e por natildeo rebaixar a razatildeo) como Llull e Leibniz (de ambos pela forccedila analiacutetica e pela conjetura de uma linguagem perfeita pura) possuem outro e relativo estatuto na sua contraditoacuteria hierarquia de valores e gostos Tambeacutem os que se estabelecem num registro de desconstruccedilatildeo da Metafiacutesica Ocidental como Marx Schopenhauer e Nietzsche parecem receber entretanto alguma e contida admiraccedilatildeo Das Kapital e Die Welt als Wille und Vorstellung lhe pareceram performances esplecircndidas e a aforiacutestica e contraditoacuteria obra do criador do

354 C1rsquo p 503 cf PEITRA Regina An art of rethinking Valeacutery lsquonegative philosophyrsquo in GIFFORD Paul amp STIMPSON Brian (orgs) Reading Paul Valeacutery - Universe in mind Cambridge Studies in French Cambridge University Press Cambridge 1998 p 90355 Cf Œ2 p 77-147 cf PEITRA Regina An art of rethinking Valeacutery lsquonegative philosophyrsquo in GIFFORD Paul amp STIMPSON Brian (orgs) Reading Paul Valeacutery - Universe in mind Cambridge Studies in French Cambridge University Press Cambridge 1998 pp 90-91356 Cf PEITRA Regina An art of rethinking Valeacutery lsquonegative philosophyrsquo in GIFFORD Paul amp STIMPSON Brian (orgs) Reading Paul Valeacutery - Universe in mind Cambridge Studies in French Cambridge University Press Cambridge 1998 pp 90-91357 Œ1 pp 458-473

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Zaratustra moderno se natildeo lhe era um alimento era-lhe um verdadeiro excitante358

Todavia sobre os filoacutesofos as consideraccedilotildees de Valeacutery revelam toda a sua ambiguumlidade quando ele se refere a Descartes a ceacutelebre foacutermula ldquocogito ergo sumrdquo certeza primeira e momento de superaccedilatildeo do ldquoceticismo metoacutedicordquo natildeo possuipara o poeta ldquosentidordquo algum pois demonstra o quanto um homem pode ser laquoldquomedusadordquo pelo verbo Serraquo359 jaacute que o verbo ldquoserrdquo quando nada conecta tambeacutem carece de sentido todavia possui um grande ldquovalorrdquo natildeo eacute um ldquosilogismordquo ou um ldquopostuladordquo eacute um ldquoGolpe de estadordquo intelectual a afirmaccedilatildeo daquilo que ele denominou de egotismo cartesiano a afirmaccedilatildeo da consciecircncia do Eu que confia na sua proacutepria capacidade em formular um conhecimento seguro sobre si e sobre o mundo360 Egotismo do qual Valeacutery eacute herdeiro Enumerando-se assim o que ele escreveu sobre filoacutesofos especiacuteficos361 suas avaliaccedilotildees soam profundamente injustas quase crueacuteis Entretanto parece haver uma espeacutecie de burla de ironia e cinismo quanto a essas qualificaccedilotildees quando o leitor depara-se com frases como esta laquoEacute necessaacuterio ser profundamente injusto Senatildeo natildeo se misture nisso mdash Seja justoraquo362

A importacircncia dessas irocircnicas consideraccedilotildees sobre filoacutesofos especiacuteficos reside em grande medida no conceito que Valeacutery formula sobre a ldquonaturezardquo ouldquopraacuteticardquo da filosofia e natildeo apenas nas suas severas criacuteticas a ela Para o poeta laquotoda Filosofia eacute uma questatildeo de formaraquo mdashesse eacute um dos seus mais caracteriacutesticos leitmotivmdash laquoa forma mais compreensiacutevel que um determinado indiviacuteduo pode dar ao conjunto de suas experiecircncias internas ou externas e isso independente dos conhecimentos que possa possuir esse homemraquo363 isto eacute a organizaccedilatildeo que um determinado indiviacuteduo pode dar pelo discurso pela representaccedilatildeo verbal natildeo raro sistecircmica e doutrinaacuteria de tudo o que percebe conjetura e sonha de todas as suas lembranccedilas e esquecimentos de tudo o que pode condensar resumir A filosofia eacute nesse sentido uma tentativa de se passar no plano da representaccedilatildeodo caos agrave ordem ou melhor de dar ordem a certo caos uma tentativa de se hierarquizar em escalas de valores a realidade enquanto totalidade e unidade de

358 Cf PEITRA Regina An art of rethinking Valeacutery lsquonegative philosophyrsquo in GIFFORD Paul amp STIMPSON Brian (orgs) Reading Paul Valeacutery - Universe in mind Cambridge Studies in French Cambridge University Press Cambridge 1998 pp 90-92 cf GAEDE Edouard Valeacutery et Nietzsche Gallimard Paris 1962359 C1rsquo p 619360 Cf Œ1 pp 785-853 cf CR361 Cf MACKAY Agnes Ethel 3 - Valeacutery and the philosophers in The universal self - A study of Paul Valeacutery University of Toronto Press Toronto 1961 cf KAHN Gilbert Valeacutery et les philosophes in Paul Valeacutery 8 Un noveau regard sur Valeacutery orgs Nicole Celeyrette-Pietri amp Brian Stimpson La revue des lettres modernes Lettres Modernes Paris 1995362 C4 p 368 cf PEITRA Regina An art of rethinking Valeacutery lsquonegative philosophyrsquo in GIFFORD Paul amp STIMPSON Brian (orgs) Reading Paul Valeacutery - Universe in mind Cambridge Studies in French Cambridge University Press Cambridge 1998 p 91363 Œ1 pp 1238-1239

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sentido364 laquoA vasta empreitada da filosofia considerada no proacuteprio coraccedilatildeo do filoacutesofo consiste [] numa tentativa de transmutar tudo o que sabemos no que gostariacuteamos de saber e essa operaccedilatildeo exige ser efetuada ou ao menos apresentaacutevel numa certa ordemraquo365 Em qualquer lugar ou periacuteodo que ocorra a filosofiaadveacutem das leituras e das interpretaccedilotildees das escutas e das conversas dessa divisatildeo e anaacutelise dessa soma e siacutenteses de sensaccedilotildees e reflexotildees sobre as experiecircncias dos sofrimentos daqueles e somente daqueles que a empreenderam eacute portanto consequumlecircncia de uma relaccedilatildeo relaccedilatildeo entre uma pessoa temperamentoou idiossincrasia frente agraves circunstacircncias particulares nas quais essa mesma pessoa inevitavelmente se insere a cada momento Daiacute a ecircnfase no seu caraacuteter eminentemente pessoal Contudo isso eacute justamente aquilo que a filosofia natildeo deseja ser Seu laquoviacutecio fundamentalraquo eacute a sua pretensatildeo agrave pura impessoalidade objetividade e universalidade a ser vaacutelida para todos e em qualquer periacuteodo ou lugar laquoEla eacute uma coisa pessoal e natildeo quer secirc-lo Ela quer formar como a ciecircncia um capital transmissiacutevel sempre crescente Daiacute os sistemas que pretendem ser de ningueacutemraquo366

E essa pretensatildeo se explicita principalmente nas sempre fracassadas tentativas do filoacutesofo por vezes movido por boa-feacute ou por outros escamoteados interesses em fazer da sua filosofia uma Eacutetica e uma Esteacutetica e destas natildeo apenas disciplinas teoacutericas e hermenecircuticas mas doutrinas natildeo apenas descriccedilotildeese reflexotildees mas normas e regras Ele almeja laquoconstruir para si uma ciecircncia dos valores da accedilatildeo e uma ciecircncia dos valores da expressatildeo ou da criaccedilatildeo das emoccedilotildees mdash uma EacuteTICA e uma ESTEacuteTICA mdash como se o Palaacutecio do seu Pensamento tivesse de parecer-lhe imperfeito sem essas duas alas simeacutetricas nas quais seu Eu todo-poderoso e abstrato poderia manter cativa a paixatildeo a accedilatildeo a emoccedilatildeo e a invenccedilatildeo Todo o filoacutesofo depois que terminou com Deus com Si-Mesmo com Tempo o Espaccedilo a Mateacuteria as Categorias e as Essecircncias volta-se para os homens e suas obras Por conseguinte assim como havia inventado o Verdadeiro o Filoacutesofo inventou o Bem e o Belo e assim como havia inventado as regras de consonacircncia do pensamento isolado consigo mesmo do mesmo modo ocupou-se em prescrever regras de conformidade da accedilatildeo e da expressatildeo a preceitos ou a modelos subtraiacutedos aos caprichos e agraves duacutevidas de cada um pelaconsideraccedilatildeo de um Princiacutepio uacutenico e universal que ele precisa portanto antes de qualquer coisa e independente de toda a experiecircncia particular definir ou designar [] da mesma forma que ainda estamos bastante presos agrave ideacuteia de uma ciecircncia pura desenvolvida com todo rigor a partir de evidecircncias locais cujas propriedades

364 Cf REY Jean Michel Paul Valeacutery - Lrsquoaventure drsquoune œuvre La Librairie du XXe siegravecle Eacuteditions du Seuil 1991365 Œ1 p 1237366 Œ1 p 1164

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poderiam estender-se indefinitivamente de identidade em identidade estamosainda meio convencidos da existecircncia de uma Moral e de uma Belezaindependentes dos tempos dos lugares das raccedilas e das pessoasraquo367 Em outras palavras apoacutes ter formulado a sua ordem isto eacute a sua filosofia o filoacutesofo volta-semdashcomo tatildeo bem intuiu Nietzschemdash para o querer normatizar e regrar para o querer disciplinar controlar e comandar natildeo apenas a si mesmo mas tambeacutem e principalmente o outro o modo como o outro deve agir (Eacutetica) e o modo como o outro deve se expressar (Esteacutetica)

Todavia para Valeacutery todo esse movimento parte de um falso pressuposto Pois juiacutezos de valor como os representados pelas categorias de bem e mal de belo e feio soacute existem em relaccedilatildeo a um determinado tipo de sujeito que estabelecendo criteacuterio de distinccedilotildees o enuncia e que supostamente aceita para si para seu mundo a operacionalidade de tais juiacutezos Apesar de poderem ser culturalmente compartilhados juiacutezos de valor eacuteticos ou esteacuteticos ou melhor o significado e o valorde um modo de agir e de um modo de exprimir pertencem agrave esfera da subjetividade Aquele que manteacutem a pretensatildeo de fornecer ou de impor uma filosofia aplicaacutevel a todos os outros ignora ou finge ignorar que os outros natildeo precisam aderir necessariamente agraves mesmas crenccedilas Eacutetica e Esteacutetica soacute podem ser disciplinas teoacutericas e hermenecircuticas descriccedilotildees e reflexotildees do contraacuterio configuram-secomo laquoproblemas de legislaccedilatildeo de estatiacutestica de histoacuteria ou de fisiologia em ilusotildees perdidasraquo368 Para o poeta toda filosofia natildeo deixa de ser assim consciente ou inconscientemente uma autobiografia cuidadosamente velada do proacuteprio filoacutesofo que a faz e todos os problemas filosoacuteficos antropomorfismosnatildeo raro falseados em verdades

Eacute vatildeo toda a pretensatildeo em desejar tornar pura impessoal objetiva e universal a forma a ordem pessoal que constitui qualquer filosofia Porque afinal o mundo eacute prenhe de cores e contrastes de diferenccedilas E em cada momento o outro a existecircncia do outro a existecircncia de modos de pensar e de viver diferentes daquele que se crecirc como o correto e o verdadeiro denuncia a extrema fragilidade das filosofias enquanto doutrinas universais e incita naturalmente a adesatildeo a um maior ldquorelativismordquo laquoNa verdade a existecircncia dos outros eacute sempre inquietante para o esplecircndido egoiacutesmo de um pensador Pode acontecer no entanto que ele natildeo se choque com o grande enigma que o arbitraacuterio de outrem lhe propotildee O sentimento o pensamento o ato de outrem quase sempre nos parecem arbitraacuterios Toda preferecircncia que damos aos nossos noacutes a fortificamos mediante uma necessidade da qual acreditamos ser o agente Mas afinal o outro existe e o enigma nos oprimeraquo369 Daiacute Valeacutery reconhecer que natildeo eacute possiacutevel ou ao menos 367 Œ1 pp 1238-1239368 Œ1 p 1240369 Œ1 pp 1237-1238

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extremamente difiacutecil o consenso absoluto a compatibilidade exata entre os variados sistemas ou doutrinas filosoacuteficas entre as variadas eacuteticas e esteacuteticas370 daiacute tambeacutem dizer natildeo sem ironia considerar um laquoproblema capital da filosofiaraquo a seguinte pergunta astuta e relativamente proacutexima do tropo ceacutetico da diaphocircnia das opiniotildees laquoComo isto pode acontecer que exista mais de uma filosofiaraquo371 [Grifo do autor] Que esta entatildeo seja aquilo que natildeo pode deixar de ser forma ou ordempessoal

Assim sendo o poeta natildeo pode deixar de considerar a filosofia tambeacutem como um modo de vida Sabe entretanto que na Modernidade este tende a se dissociar daquela algo pouco frequumlente no pensamento da Antiguumlidade Claacutessicae do Oriente Um estoacuteico um ceacutetico e um ciacutenico um Soacutecrates e um Dioacutegenes um platocircnico todos ou quase todos aqueles que se integravam agraves escolas filosoacuteficas natildeo compreendiam as doutrinas como separadas como isoladas da vida Para esses homens tatildeo distantes da fragmentada vida moderna treinados a pensar o mundo como racionalmente ordenado a filosofia seu centro localizava-se muito mais numa determinada e correta atitude ante o mundo ante o outro e ante si mesmo natildeo apenas em sua interpretaccedilatildeo e compreensatildeo em sua teorizaccedilatildeo Era realmente um modo de vida associado ou relativo a uma formaou ordem pessoal de compreender o mundo e natildeo apenas uma forma ou ordem pessoal de compreender o mundo Com isso revela-se algo fundamental na condiccedilatildeo de grande parte do pensamento da Modernidade o filoacutesofo (agora mero autor ou escritor) pode ser algo totalmente dissociado e dissonante de sua proacutepria filosofia (agora mera obra ou escritura) Mas Valeacutery mdashao menos no que se depreende de seuproacuteprio programa de autoconsciecircnciamdash natildeo credita que essa dissociaccedilatildeo seja necessariamente adequada ou salutar para o sujeito o pensamento cumpre ser sim um instrumento para a vida mdashpois ele jaacute eacute uma resposta para a vidamdash

Por isso e por tantas foacutermulas paradoxais sobre a impermanecircncia do espiacuterito da consciecircncia e do mundo alguns criacuteticos o aproximaram natildeo apenas do Pensamento Antigo mas tambeacutem do pensamento do Oriente em particulardo Budismo372 segundo o qual a ldquofilosofiardquo natildeo passa de um veiacuteculo tal qual um

370 Semelhante reflexatildeo pode tambeacutem ser evocada da leitura do poema em prosa Le visionaire laquoO anjo me deu um livro e me disse laquoEste livro conteacutem tudo o que tu podes desejar saberraquo E ele partiu E euabri este livro que era medianamente grosso Estava escrito numa escritura desconhecida Os saacutebios o traduziram mas cada um deu-lhe uma versatildeo totalmente diferente das outras E eles diferiam de opiniatildeo quanto ao proacuteprio significado da leitura Natildeo concordando nem sobre o alto nem sobre o baixo nem sobre o comeccedilo nem sobre o fim Perto do fim desta visatildeo pareceu-me que este livro se fundia com o mundo que nos cercavaraquo (Œ1 p 333)371 CR p 59372 Sobre os paralelos entre o pensamento de Valeacutery e o Budismo cf TSUNEKAWA Kunio Paul Valeacutery est-il bouddhiste in GIFFORD Paul PICKERING Robert amp SCHMIDT-RADEFELDT (orgs) Juumlrgen Paul Valeacutery agrave tous points de vue - Hommage agrave Judith Robinson-Valeacutery LrsquoHarmattan Paris 2003 cf GIFFORD Paul amp STIMPSON Brian (orgs) Paul Valeacutery - Musique Mystique Matheacutematique Presses Universitaire de Lille Lille 1993

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barco usado para atravessar um rio mas que deve ser abandonado na outra margem jaacute que de nada serviria carregaacute-lo em terra Para o poeta toda laquoFilosofia eacute vatilde quando natildeo tende a modificar os filoacutesofos em profundidade - ou mais filoacutesofo (no meu sentido) eacute aquele que tende a se modificar em profundidade atraveacutes de exerciacutecios [] de atos propriamente emanados do espiacuteritoraquo373 O valor do pensamento ou de uma teoria reside menos na verdade que esse pensamento e essa teoria possam conter e como Leonardo e sobretudo Teste demonstram mais nos efeitos que possam causar no espiacuterito na consciecircncia na capacidade em modificar ou eliminar crenccedilas haacutebitos mentais laquoO verdadeiro valor das lsquoteoriasrsquorsquo natildeo eacute o valor teoacuterico Mas antes os efeitos reaisraquo374 A mera reflexatildeo sobre o mundo possui relativa importacircncia se natildeo tem como fim fazer daquele que reflete cada vez mais senhor de si mesmo consciente de seus poderes de suas possibilidades de sua accedilatildeo de seu fazer

413 FILOSOFIA COMO LITERATURA

O modo como Valeacutery encara a filosofia eacute portanto extremamente ambiacuteguo Se por um lado ele a repudia a condena sem poupar duras criacuteticas como uma praacutetica esteacuteril natildeo cientiacutefica e verbal natildeo raro desprovida da consciecircncia dessas caracteriacutesticas e por isso fadada a um labirinto de falsos problemas por outro como nas passagens finais de Leacuteonard et les philosophes a resgata a salva mdashe o que eacute surpreendente natildeo raro justamente pelo mesmo motivo justamente pelos mesmos argumentos por ser natildeo cientiacutefica e verbalmdash natildeo apenas como um modo devida o que na Modernidade eacute para ele bastante difiacutecil mas tambeacutem e explicitamente como um laquogecircnero literaacuterio particularraquo na medida em que ela natildeo deixa de ser como a poesia da qual natildeo deseja se identificar um uso particular das palavras distante do pragmaacutetico uso cotidiano ordinaacuterio A filosofia laquodefinida por sua obra que eacute obra escritaraquo assim sintetiza Valeacutery laquoeacute objetivamente um gecircnero literaacuterio particular caracterizado por certos assuntos e pela frequumlecircncia de certos termos e de certas formas Esse gecircnero tatildeo particular de trabalho mental e de produccedilatildeo verbal tem pretensotildees no entanto a uma situaccedilatildeo suprema pela generalidade de seus propoacutesitos e de suas foacutermulas mas como ele eacute destituiacutedo de toda e qualquer comprovaccedilatildeo exterior como natildeo culmina na instituiccedilatildeo de nenhum poder como essa generalidade mesma que evoca natildeo pode e nem deve ser considerada transitoacuteria como meio nem como expressatildeo de resultados comprovaacuteveis devemos colocaacute-lo natildeo muito afastado da poesiaraquo375

373 Π 1938-1939 Texte 57 (XXII 635) [fin de page]374 PA p 132375 Œ1 p 1256

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Essas palavras revelam a polecircmica perspectiva a siacutentese na qual desemboca o mdashporque natildeo dizer contraditoacuteriomdash pensamento do poeta acerca da filosofia o qual tambeacutem pode ser assim enunciado ao criticar a filosofia Valeacutery a estetiza a compreende como arte ao criticar o filoacutesofo Valeacutery o compreende como artista um artista que em geral se ignora que natildeo possui consciecircncia do caraacuteter ficcional ou ao menos dos elementos ficcionais do seu proacuteprio pensamento Nessa valoraccedilatildeo talvez resida uma outra e uacuteltima estrateacutegia da sua proacutepria criacutetica mais humorada mas tambeacutem muito mais desconcertante do que simplesmente apontar as supostas ilusotildees nas quais adentra afilosofia seus possiacuteveis contra-sensos Pois diante de qualquer argumento pode-se muito bem contra-argumentar diante de uma proposiccedilatildeo pode-se muito bem apresentar a proposiccedilatildeo contraacuteria mas diante de um ldquojuiacutezo esteacuteticordquo diante de uma confissatildeo de uma assertiva de caraacuteter pessoal que reza simplesmente desconfiarda verdade de uma doutrina e em contrapartida tambeacutem reza sentir a harmoniae a beleza dessa mesma doutrina o jogo torna-se outro Dir-se-ia que natildeo se pode refutar o que um outro sente ou diz sentir natildeo se pode refutar o que um outro aprecia ou diz apreciar natildeo se pode simplesmente porque mdashse for dado creacutedito a esse outromdash natildeo faz sentido refutar a interioridade alheia Interioridade somente acessiacutevel agravequele eu que a vive

Contudo a justificativa para tal valoraccedilatildeo se baseia em grande medida numa certa ldquoconsciecircncia histoacutericardquo na compreensatildeo das possibilidades e impossibilidades do tempo presente no tipo de escrita que eacute hoje passiacutevel de ser escrita e no tipo de crenccedila que eacute hoje passiacutevel de ser creditada Porque talvez somente laquouma interpretaccedilatildeo esteacuteticaraquo poderia realmente resgatar salvar a filosofia do processo de laicizaccedilatildeo da Modernidade do desenvolvimento da Matemaacutetica e da Ciecircncia Moderna e do desenvolvimento do espiacuterito que analisaminuciosamente tudo pelo prisma da linguagem somente assim poder-se-ia laquosubtrair agrave ruiacutena de seus postulados mais ou menos ocultos aos efeitos destrutivos da anaacutelise da linguagem e do espiacuterito os veneraacuteveis monumentos da metafiacutesicaraquo376 Afinal o que restaria dessa atividade tatildeo intensamente praticadaidolatrada e vituperada mas laquoassediada obsedada por descobertas cuja imprevisibilidade deu origem agraves maiores duacutevidas sobre sua virtude e sobre os valores das ideacuteias e das deduccedilotildees do espiacuterito reduzido Em que se transforma quando pressionada oprimida atravessada surpreendida a cada instante pela furiosa atividade das ciecircncias fiacutesicas [] hostilizada e ameaccedilada em seus haacutebitos os mais antigos os mais tenazes (e talvez os mais lamentaacuteveis) pelo trabalho lento e minucioso dos filoacutelogos e dos linguumlistas Em que se transforma Eu penso e em que se transforma Eu existo O que se torna ou o

376 Œ1 p 1247

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que volta a ser esse verbo SER que fez uma carreira tatildeo grande no vazioraquo377 A perspectiva de Valeacutery como notou Jean Sebeski378 aproxima-se assim da perspectiva de Carnap segundo o qual o metafiacutesico eacute um laquomuacutesico sem talento musicalraquo379 Mas haacute uma diferenccedila capital Enquanto o filoacutesofo parte para o desdenho no intento positivista de purgar o pensamento racional de toda a preocupaccedilatildeo e de todo elemento ontoloacutegico o poeta encara a proacutepria metafiacutesica como uma forma de arte realmente genuiacutena O poeta ousa inclusive comparaacute-la agraves grandes estaacutetuas de distantes eacutepocas cuja funccedilatildeo maacutegico-ritual foi pouco a pouco abolida e substituiacuteda por uma funccedilatildeo esteacutetica quando entatildeo o que eacute deveras caracteriacutestico da Modernidade laica a estaacutetua do deus tornou-se obra de arte laquoo iacutedolo se fez beloraquo380 laquoPoderia eu sem chocarraquo pergunta-se Valeacutery laquosem irritar cruelmente o sentimento filosoacutefico comparar essas verdades tatildeo adoradas esses princiacutepios essas Ideacuteias esse Ser essas Essecircncias essas Categorias esses Nuacutemenos esses Universo toda essa infinidade de noccedilotildees que parecem sucessivamente necessaacuterias aos iacutedolos de que eu estava falando Indaguem-se agora que filosofia seria para a filosofia tradicional o que eacute uma estaacutetua do seacuteculo V para as divindades sem rosto dos seacuteculos muito remotosraquo381 Em outras palavras se a filosofia se dessacraliza se a crenccedila no conteuacutedo nos conceitos de uma filosofia desaparece ou se transforma radicalmente entatildeo que ao menos permaneccedila a sua forma que ao menos permaneccedila reabilitadacomo forma laquoSeraacute possiacutevel que o filoacutesofo pense que uma Eacutetica ou uma Monadologia sejam coisas mais seacuterias que uma suite em reacute menorraquo382 o poeta novamente se pergunta laquoSe refutarmos um Platatildeo um Espinosa natildeo restaraacute pois nada de suas espantosas construccedilotildees Natildeo resta absolutamente nada se natildeo restarem obras de arteraquo383 Exposta assim de modo intenso dramaacutetico essa concepccedilatildeo remete mais ao estetismo de um Oscar Wilde do que de um Novalis e sobretudo de um Mallarmeacute para quem mdashlaquoo mundo foi feito para terminar num belo livroraquo384 (laquole monde est fait pour aboutir agrave un beau livreraquo)mdash

A proposta em estetizar a filosofia natildeo deixa de ser fruto de uma concepccedilatildeo de mundo que preza ou priorize o lado formal da existecircncia (em contraposiccedilatildeo aos ldquoidealismosrdquo e ldquoessencialismosrdquo) o lado loacutegico ou semioacutetico Proposta essa que

377 Œ1 p 1255378 SEBESKI Jean Confluenes valeryennes in CELEYRETTE-PIETRI Nicole amp SOULEZ Antonia (orgs) Valeacutery la logique et le langage - Revue Litteraire Bimestrielle Val de Marne le 29 novembre 1986 Universiteacute Paris XII Paris 1988 pp 24-24379 CARNAP Rudolph Le deacutepassement de la meacutetaphysique par lrsquoanalyse logique du langage in SOULEZ Antonia (org) Manifeste du Cercle de Vienne et autres eacutecrists PUF Paris 1985 p 177380 Œ1 p 1248381 Œ1 p 1248382 Œ1 p 1236383 Œ1 p 1250384 Frase dita a HURET Jules in Enquecircte sur lrsquoeacutevolution litteacuteraire in lthttpwwwuni-duisburg-essendelyriquetheorietexte1891_hurethtmlgt 2008

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reverberou numa determinada genealogia da literatura posterior Basta pensar nas obsessotildees metafiacutesicas de um Jorge Luis Borges e nos jogos metalinguumliacutesticos de um Iacutetalo Calvino autores confessadamente influenciados por Valeacutery385 basta pensar nesse tipo de ficccedilatildeo e poesia por vezes denominada Poacutes-moderna na qual haacute uma permanecircncia tanto de referecircncias a diversas tradiccedilotildees de pensamento quanto de questionamentos acerca da estrutura ontoloacutegica da realidade Estetizar a filosofia aponta assim para um ideaacuterio literaacuterio possiacutevel cujo objetivo eacute sobretudo transformar ou encarar a proacutepria filosofia seus sistemas ou doutrinas seus filosofemas suas perguntas e respostas suas problemaacuteticas assim como as problemaacuteticas gnosioloacutegicas e epistemoloacutegicas em literatura ou melhor em literatura fantaacutestica Os poemas os personagens conceituais e os diaacutelogos socraacuteticos de Valeacutery assim como suas Histoires briseacutees e em seus projetos de contos contidos em seus Cahier natildeo deixam de ser exemplos praacuteticos dessa proposta386

laquoDecirc-me uma pluma um papelraquo provocava o poeta laquomdash que eu vos escreverei um livro de histoacuteria um texto sagrado como o Alcoratildeo ou os Vedas Eu inventarei um rei da Franccedila uma cosmogonia uma moral e uma gnose O que preveniria um ignorante e uma crianccedila que eu os engane Em que eacute diferente a imaginaccedilatildeo excitada por textos falsos da imaginaccedilatildeo excitada por textos autecircnticosraquo387

O estetismo de Valeacutery estaacute portanto intimamente relacionado com essa sua desconfianccedila ante as pretensotildees da filosofia agrave pura impessoalidade objetividade e universalidade ante as pretensotildees dos filoacutesofos a modificar a vida Escrever literatura fazer arte tambeacutem acaba se tornando para o poeta um natildeo pretender dogmatizar reflexotildees metafiacutesicas um natildeo passar a valorar conjeturascomo verdades Ele compreende e faz compreender enfim que o pensamento deve ser livre do opressivo dever de buscar pela proacutepria verdade (o que natildeo impede de se ir buscaacute-la) que laquoo ensinamento da filosofia quando natildeo eacute acompanhadodo ensinamento da liberdade de cada espiacuterito natildeo soacute com relaccedilatildeo agraves doutrinasmas tambeacutem com relaccedilatildeo aos proacuteprios problemas eacute a meu ver antifilosoacutefico Trata-se de criar a necessidade de uma voluacutepia de filosofarraquo388 Se a filosofia natildeo cumpre ser feita por prazer cumpre ser feita com prazer 385 Leiam-se as palavras do escritor italiano laquoEntre os valores que gostaria que fossem transferidos para o proacuteximo milecircnio estaacute principalmente este o de uma literatura que tome para si o gosto da ordem intelectual e da exatidatildeo a inteligecircncia da poesia juntamente com a da ciecircncia e da filosofia como a do Valeacutery ensaiacutesta e prosador [] Se tivesse de apontar quem na literatura realizou perfeitamente o ideal esteacutetico de Valeacutery da exatidatildeo de imaginaccedilatildeo e de linguagem construindo obras que correspondem agrave rigorosa geometria do cristal e agrave abstraccedilatildeo de um raciociacutenio dedutivo diria sem hesitar Jorge Luis Borgesraquo (CALVINO Iacutetalo Seis propostas para o proacuteximo milecircnio trad Ivo Barroso Companhia das Letras Satildeo Paulo 1998 p 133)386 Natildeo agrave toa uma Simone Weil considerar Paul Valeacutery natildeo um ceacutetico mas um metafiacutesico naturalmente ela se referia mais ao poeta do que ao prosador (Cf LUSSY Florence de Paul Valeacutery et Simone Weil deux natures mystiques deus penseacutees antitheacutetiques in GIFFORD Paul amp STIMPSON Brian (orgs) Paul Valeacutery musique mystique matheacutematique Presses Universitaires de Lille Lille 1993)387 Œ2 p 903388 Œ1 pp 1249-1250

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5 POEacuteTICA

Agrave anulaccedilatildeo da razatildeo como caminho para aquele autecircntico humano preferiu o excesso de razatildeo de trabalho intelectual na luta pelo autecircntico

Joatildeo Cabral de Melo Neto Joan Miroacute

51 POESIA CRIacuteTICA

A Poeacutetica Claacutessica de Platatildeo a Horaacutecio e outros passando por Aristoacuteteles possui em geral um caraacuteter descritivo e ou um caraacuteter prescritivo em outras palavras almeja respectivamente descrever a poesia feita ateacute entatildeo teorizaacute-la em termos de passado ou prescrever regras do que seria a boa poesia teorizaacute-la em termos de futuro Naturalmente essa distinccedilatildeo mais didaacutetica do que efetivaocorre por vezes de um modo natildeo muito preciso Uma mesma obra poeacuteticapode ser ambiguamente tanto normativa quanto prescritiva dependendo das passagens que se escolha e interprete

Doravante esse duplo caraacuteter permanece na Poeacutetica Moderna apesar desta ser natildeo raro mais refrataacuteria agrave formulaccedilatildeo de regras fixas para o proacuteprio fazer poeacutetico consciente do problemaacutetico dogmatismo que frequumlentemente surge quando o filoacutesofo ou o teoacuterico se propotildee a guiar o poeta ou qualquer forma de arte Entretanto com o desenvolvimento na histoacuteria da poesia da necessidade em se expressar uma consciecircncia criacutetica de um eu ou uma voz cada vez mais expliacutecito e de um impulso por vezes confessional e autobiograacutefico por parte dos poetas desenvolve-se e acentua-se um terceiro caraacuteter que natildeo raro mescla-se e se confunde aos outros dois de um modo por vezes indissociaacutevel agora com umainsistente frequumlecircncia natildeo satildeo apenas os filoacutesofos ou os teoacutericos que teorizamsobre o fazer poeacutetico mas tambeacutem os proacuteprios poetas os proacuteprios fazedores de poemas E estes diferentemente daqueles amiuacutede fazem uma poeacutetica na qualnatildeo somente descrevem padrotildees poeacuteticos passados e ou futuros natildeo somente descrevem e ou prescrevem mas tambeacutem chegam a refletir mdashe ousam revelarmdashas suas opccedilotildees esteacuteticas os seus itineraacuterios os seus processos as suas consideraccedilotildees pessoais acerca da poesia e por vezes o que eacute mais significativo os seus proacuteprios modos de fazer o poema as suas proacuteprias operaccedilotildees durante o fazer o poemaOs avanccedilos e os retrocessos os acertos e os erros os acreacutescimos e os cortes as inuacutemeras decisotildees os acasos os arrependimentos as noites de vigiacutelia toda uma seacuterie de eventos outrora relativamente ocultados ou esquecidos tambeacutem agora podem ser expostos agrave luz sem que isso venha necessariamente enfraquecer a poesia do poeta que expotildee tais eventos seja atraveacutes de obras teoacutericas em prosa ou mesmo em poemas Os poetas tornam-se ou melhor revelaram ser mdashem palavras em escritosmdash o que sempre foram comentadores e inteacuterpretes criacuteticos de si mesmos de suas proacuteprias criaccedilotildees pois laquotodos os poetas verdadeiros satildeo

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necessariamente criacuteticos de primeira ordemraquo389 A poesia se revela extremamente criacutetica

Poe pode ser considerado como um dos principais arautos dessa concepccedilatildeo do que seja a poeacutetica a Poeacutetica Moderna seus ensaios The poetic principle e Philosophy of composition390 tornaram-se canocircnicos quanto a isso mesmo que soem para alguns leitores contemporacircneos relativamente artificiosos O paradigma que nesses ensaios se encerra influenciou em muito uma plural linhagem de poetasmodernos altamente conscientes das possibilidades e dos limites da liacutengua que vai de Baudelaire a Mallarmeacute e chega a Valeacutery o qual acentua e modifica essas caracteriacutesticas a um grau extremo A laquoera de autoridade nas artes haacute muito tempo estaacute terminadaraquo lecirc-se na sua Premiegravere leccedilon du cours de poeacutetique laquoe a palavra ldquoPoeacuteticardquo soacute desperta agora a ideacuteia de prescriccedilotildees incocircmodas e antiquadas Acreditei entatildeo poder resgataacute-la em um sentido que contempla a etimologia sem ousar contudo pronunciaacute-la Poiumleacutetique [palavra] da qual a fisiologia se serve quando fala de funccedilotildees hematopoeacuteticas ou galactopoeacuteticas Mas eacute enfim a noccedilatildeo bem simples de fazer que eu queria exprimir O fazer o poiumlein do qual desejo me ocupar eacute aquele que termina em alguma obra e que eu acabarei restringindo em breve a esse gecircnero de obras que se convencionou chamar de obras do espiacuterito Satildeo aquelas que os espiacuteritos fazem para seu proacuteprio uso empregando para esse fim todos os meios fiacutesicos que possam lhe servirraquo391

Questions de poeacutesie Poeacutesie et penseacutee abstraite Propos sur la poeacutesie Neacutecessiteacute de la poeacutesie Celepin drsquoun poegravete Fragments des meacutemoires drsquoun poegraveme Le prince et la Jeune Parque Au sujet du lsquoCimetiegravere Marinrsquo Commentaire de lsquoCharmesrsquo etc assim como certas paacuteginas dos Cahiers satildeo outros tantos escritos nos quais esse caraacuteter eminentemente pessoal eacute assumido A reflexatildeo sobre a poesia e sobre o fazer poeacutetico mdashisto eacute a poeacutetica como aqui entatildeo se compreendemdash transforma-se ou se expande nesses escritos como que inevitavelmente em um discurso sobre a linguagem (natildeo por acaso que muito da criacutetica agrave filosofia tecida pelo poeta tambeacutem neles se encontram e com ela se confundem) revelando assim toda a concepccedilatildeo ldquoesteacuteticardquo valeacuteryana esta que mdashparticularizaccedilatildeo de sua concepccedilatildeo geral das atividades humanasmdash preza mais laquoa accedilatildeo que faz do que a coisa feitaraquo392 o fazer do que o resultado do fazer a feitura do poema do que o poema Concepccedilatildeo que tambeacutem pode ser sintetizada pela seguinte maacutexima inuacutemeras vezes atualizada laquoEacute a execuccedilatildeo de um poema que eacute um poemaraquo393 (laquoCrsquoest lrsquoeacutexecution du poegraveme qui

389 Œ1 p 1335390 Cf POE Edgard Allan O princiacutepio poeacutetico amp Filosofia da composiccedilatildeo in Poemas e ensaios trad Oscar Mendes e Milton Amado revisatildeo e notas Carmen Vera Cirne Lima Globo Satildeo Paulo 1999391 Œ1 p 1342392 Œ1 p 1343393 Œ1 p 1350

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est le poegravemeraquo) Porque eacute na execuccedilatildeo das coisas que para o poeta o valor das coisas adquire legitimidade

511 POESIA PURA

O poeta diz e ao dizer faz Este fazer eacute sobretudo um fazer-se a si mesmo a poesia natildeo eacute soacute autoconhecimento mas tambeacutem autocriaccedilatildeo

Octaacutevio Paz Os filhos do limbo

A Antiguumlidade Claacutessica frequumlentemente compreende a poesia como o resultado de uma tendecircncia natural agrave imitaccedilatildeo mas apresenta divergecircncias significativas quanto ao estatuto desta seu lugar na hierarquia de valores das atividades humanas No capiacutetulo X da Repuacuteblica Platatildeo contemplando a capacidade da poesia em excitar as emoccedilotildees notadamente do verso dramaacutetico condena-a e expulsa-a da cidade ideal por perturbar a alma que natildeo deve ser escrava mas senhora das paixotildees394 Na Poeacutetica Aristoacuteteles contemplando a capacidade da poesia em representar o universal notadamente da trageacutedia valora-a como verdade todavia uma verdade que estaacute agrave meia distacircncia entre a historiografia inferior a ela e a filosofia superior a ela395 De qualquer modo seja em qual gecircnero ou forma encarne seja a que propoacutesito sirva a poesia seu estatuto hieraacuterquico dado pelo pensamento filosoacutefico raramente foi de igual ou superior valor ao proacuteprio pensamento filosoacutefico este quase sempre se considerou um aacutepice entre todas as inuacutemeras modalidades do pensar dir-se-ia natildeo sem muito exagero que aquele que trabalha atraveacutes da ldquorazatildeordquo daacute-se o direito de ter razatildeo Concomitantemente a faculdade da imaginaccedilatildeo amiuacutede associada ao trabalho poeacutetico apesar de ser um ldquoveiacuteculordquo poderoso na manutenccedilatildeo da memoacuteria e da identidade tambeacutem natildeo deixou de ser valorada de um modo relativamente anaacutelogo Quiccedilaacute somente com o pensamento de Vico confessadamente avesso ao racionalismo cartesiano e sensiacutevel agrave forccedila poeacutetica do mito na formaccedilatildeo e no destino das civilizaccedilotildees e em certas vertentes doRomantismo como no caso do pensamento de Schiller que chega a identificar o estado poeacutetico com o absoluto eacute que essa perspectiva no cenaacuterio do Pensamento Ocidental comeccedila a se transformar As emoccedilotildees natildeo satildeo mais compreendidas apenas por uma perspectiva estoacuteica como estados necessariamente negativos e a poesia passa a ser julgada natildeo mais como uma verdade parcial incompleta imperfeita mas como um mundo de sentido pleno

394 PLATO Book X in Republic - Books 6-10 trad Paul Shorey Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 2006395 ARISTOTLE Poetics trad Stephen Halliwell Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 2005

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Todavia mesmo natildeo sendo mais considerada como inferior ao pensamento filosoacutefico haacute toda uma mentalidade uma corrente relativamente dominante que a compreende e julga como contraacuteria ao proacuteprio pensamento filosoacutefico como algo pouco racional ou puramente irracional como sendo o resultado direto de emoccedilotildees sem a mediaccedilatildeo do intelecto e como tal visando despertar no outro no ouvinte ou leitor de poesia emoccedilotildees relativamente anaacutelogas a poesia como um objeto verbal feito pela faculdade da imaginaccedilatildeo e para a faculdade da imaginaccedilatildeo e nada mais a poesia como um furor verbal e nada maisConsequumlentemente o poeta tambeacutem acaba sendo estereotipado e muito como uma idiossincrasia contraacuteria agrave do filoacutesofo como relativamente incapaz de um pensamento rigoroso e analiacutetico conceitual em se ater demoradamente no caminho da razatildeo posto cegamente entregue ao intenso mundo dos sentimentos e das emoccedilotildees das imagens

Eacute justamente contra essa mentalidade contra essa corrente que a poeacutetica de Valeacutery se insurge396 laquoEu aspiro uma arte toda fundada sobre a inteligecircnciaraquo escreve ele laquomdash isto eacute natildeo excluindo os inconscientes (o que natildeo faria sentido) mas os evocando [] segundo a ocasiatildeo e sobretudo os provocando assinalando-lhes os problemasraquo397 Sem jamais adentrar na perspectiva de Vicoatrelada a preocupaccedilotildees teoloacutegicas e a do Romantismo que na sua perspectivanatildeo raro exagera e eleva a poesia e o poeta a patamares miacuteticos e divinos ele compreende de um outro modo a arte que praticou com tanta precisatildeo e preciosismo como uma ativaccedilatildeo das potencialidades do intelecto como uma laquofesta do Intelectoraquo398 Dir-se-ia que ele concilia mdashou reconcilia posto ser legiacutetimo pensar que ldquooriginalmenterdquo havia uma unidade das esferas de sentidos e atividadesmdash a poesia e o pensamento ou nas suas proacuteprias palavras a poesia (poeacutesie) e o pensamentoabstrato399 (penseacutee abstraite) conceitual a praacutetica do poeta e a praacutetica do pensador a razatildeo e a imaginaccedilatildeo a razatildeo de Teste e a imaginaccedilatildeo de Leonardo Essa conciliaccedilatildeo mdashnatildeo distante ou mesmo complementar a da empreendida entre corpo e alma executada nos seus diaacutelogos socraacuteticosmdash estaacute sob o signo do conceito ou do ideaacuterio esteacutetico daquilo que comumente se designa com a polecircmica expressatildeo poesia pura (poeacutesie pure) E esta pode ser interpretada aqui atraveacutes dedois ideais que no fundo satildeo indissociaacuteveis o que postula aquilo que o poema deve se tornar e o que postula aquilo que o fazer o poema deve se tornar

Com relaccedilatildeo ao primeiro ideal a poeacutetica de Valeacutery natildeo deixa de ser herdeirae criacutetica de uma variada corrente de poetas e artistas aquela que iraacute determinar 396 Cf KOumlHLER Hartmut Chapitre III - La connaissance corroboreacutee par elle-meme une poeacutetique anticipeacutee in Paul Valeacutery poeacutesie et connaissance lrsquoœuvre lyrique agrave la lumiegravere des lsquoCahiersrsquo trad Colette Kowalski Klincksieck Paris 1985397 C1rsquo p 336398 Œ2 p 546399 Cf Œ1 pp 1314-1339

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em muito o destino da Modernidade literaacuteria do seacuteculo XX o Simbolismo As intensas leituras de poetas como Poe e Baudelaire Verlaine e Rimbaud e posteriormente quando jaacute morando Paris o haacutebito de frequumlentar mdashtal como W B Yeats Rainer Maria Rilke Stefan George Oscar Wilde e Andreacute Gidemdash na Rue Rome400 agraves terccedilas-feiras as soireacutees no salatildeo de seu mais querido e enigmaacutetico mestre Mallarmeacute que promovia discussotildees interminaacuteveis acerca do trabalho e do destino do mundo artiacutestico e filosoacutefico401 eis o que talvez tenha alimentado num jovem poeta da proviacutencia uma certa imagem da poesia e o ldquoencorajourdquo mdashnote-semdash natildeo agrave escritura de poemas mas a empreender reflexotildees a escreversobre o fazer poeacutetico (Haacute que se dizer que o primeiro encontro de Valeacutery com Mallarmeacute ocorreu justamente logo apoacutes o periacuteodo de crise e a Noite de Gecircnova portanto logo apoacutes a decisatildeo natildeo cumprida em abandonar a poesia mas tambeacutem logo apoacutes a decisatildeo em escrever sobre o espiacuterito)

Entretanto segundo o proacuteprio poeta402 soacute muito dificilmente o Simbolismo pode ser compreendido como uma escola Falta-lhe coerecircncia Osseus protagonistas pareciam estar trilhando caminhos proacuteprios e irredutiacuteveisexercitavam-se em invenccedilotildees e experimentaccedilotildees as mais diversas e natildeo rarodivergentes entre si Contudo se os simbolistas natildeo possuiacuteam uma esteacuteticacomum possuiacuteam uma eacutetica comum e eacute somente a partir dessa eacutetica que padrotildees e procedimentos estiliacutesticos podem ser hoje relativamente depreendidos e estudados O que os une eacute antes uma devoccedilatildeo religiosa e asceacutetica para com a poesia como exerciacutecio verbal extremo Uma devoccedilatildeo num tal grau queldquodesconsiderardquo o puacuteblico leitor a comunicaccedilatildeo clara popular frequumlentemente almejada por correntes relativamente antagocircnicas como o Realismo e o Naturalismo das quais Valeacutery sempre se distanciou Dir-se-ia que por essa eacutetica cumpre ao poeta escrever um poema sobre um objeto qualquer mas jamais revelar qual objeto eacute esse cumpre ao poeta escondecirc-lo atraveacutes do poema este se torna portanto como que o ocultamento daquilo a que se refere o siacutembolo de algo jamais dito jamais profanado jamais maculado e que ao fim pode representar para os muacuteltiplos leitores muito mais objetos do que originalmente intuiu o poeta ao compocirc-lo se realmente ele o intuiu ou se apenas o escreveu e nada mais O poeta pinta natildeo a coisa mas a sua ausecircncia o efeito que ela produz ou pode produzir e a poesia torna-se por conseguinte um artefato verbalextremamente hermeacutetico difiacutecil diante do qual o leitor eacute como que convidado a agir como uma espeacutecie de decifrador de adivinho a adivinhar o que estaacute

400 Sobre o primeiro encontro de Valeacutery com Mallarmeacute cf BERTHOLET Denis Paul Valeacutery - 1871-1945 Biographies Plon Paris p 81401 Cf LALOU Reneacute Lrsquoideacutee de poeacutesie pure em France in Deacutefense de lrsquohomme (intelligence et sensualiteacute) Sagitaire Simon Kra Paris 1926402 Cf Œ1 pp 686-706

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sempre a lhe fugir Nessa perspectiva o Simbolismo acaba se tornando como que uma incessante busca atraveacutes de diversos caminhos em representar verbalmente o que natildeo eacute passiacutevel de ser representado verbalmente algoindiziacutevel inefaacutevel Natildeo agrave toa compreender de modo geneacuterico a metaacutefora em contrapartida com a rigidez semacircntica da alegoria como o centro ou a partiacutecula uacuteltima da poesia que preze pela musicalidade pelo espiritualismo e pelo misticismo

Eacute nesse contexto que o conceito de poesia pura nasce e se desenvolve Jaacute presente nas poeacuteticas de Poe Baudelaire e Mallarmeacute403 como sendo justamente essa poesia musical espiritual e miacutestica refrataacuteria agrave interpretaccedilatildeo que parte deuma loacutegica tradicional adquire em Valeacutery mdashprincipalmente a partir de seu ceacutelebre Avant-propos agrave la Connaissance de la deacuteesse404 livro de Lucien Fabremdash forccedilateoacuterica e novos contornos Refere-se na perspectiva do que um poema deve se tornar a um afastamento a um distanciamento da prosa mais especificamente da prosa narrativa em outras palavras a poesia pura seria a realizaccedilatildeo do poemapurgado das formas prosaicas e narrativas purgado do reacutecit poema que assim ficaria reduzido simplificado a um estado puramente poeacutetico a poesia pura seria o estado de pura poesia405

Essa concepccedilatildeo claramente moderna acaba considerando consequumlentementegecircneros poeacuteticos claacutessicos como o mito a faacutebula a eacutepica e a trageacutedia poemas impuros (o que naturalmente natildeo quer dizer que tenham um valor hierarquicamente inferior) jaacute que estes satildeo tambeacutem narrativos passiveis natildeo raro de serem recontados e recontados de um outro modo Mas tambeacutempressupotildee por conseguinte a distinccedilatildeo ideal relativamente riacutegida no pensamento valeacuteryano entre prosa e poesia Em termos riacutegidos a prosa seria o discursoverbal que tende a adquirir uma significaccedilatildeo a mais uniacutevoca possiacutevel que prezamais pelo significado do que pelo som no qual elementos gratuitos entrariam em jogo e consequumlentemente quando parafraseada manteria o propoacutesito de sua mensagem a poesia ao contraacuterio seria um discurso verbal que tende a uma significaccedilatildeo a mais plural possiacutevel que preza tanto pelo significado como pelo som (e por vezes mais pelo som) no qual nenhum elemento gratuito entraria em jogo e consequumlentemente quando parafraseado deixaria de ser Para usar derecorrentes metaacuteforas a prosa eacute como uma linha ou um caminhar a poesia como um ciacuterculo ou uma danccedilar

403 Cf ZAMBRANO Mariacutea Filosofia y poesiacutea Fondo de cultura econoacutemica Meacutexico D F 1996 pp 120-121404 Cf Œ1 pp 1269-1280405 Henry Bremond em seu conhecido escrito La poeacutesie pure tambeacutem se refere ao conceito de poesia pura mas a este acrescenta ressonacircncias religiosas Apesar da confessa influecircncia simbolista Bremond apresenta portanto uma poeacutetica relativamente distinta da proposta por Valeacutery que se ateacutem sobretudo aos procedimentos formais e ao que esses procedimentos podem suscitar no espiacuterito do poeta (Cf BREMOND Henry La poeacutesie pure in CHARPIER Jacques amp SEGHERS Pierre (orgs) Lrsquoart poeacutetique Editions Seghers Paris 1956)

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Daiacute Valeacutery constantemente refletir que laquoNatildeo se pode resumir um poema como se resume um ldquouniversordquo Resumir uma tese eacute reter-lhe o essencial Resumir (ou substituir por um esquema) uma obra de arte eacute perder-lhe o essencial Vecirc-se o quanto essa circunstacircncia (se se compreender o seu alcance) torna ilusoacuteria a anaacutelise do estetaraquo406 A ceacutelebre e por vezes didaacutetica divisatildeo entre forma e conteuacutedotenderia assim a desaparecer no poema (ou na obra de arte) quando este aspira a ser poesia pura (ou na obra de arte pura) laquoNo universo liacutericoraquo continua Valeacutery laquocada instante deve consumir uma alianccedila indefiniacutevel entre o sentido e o significado Resulta daiacute que a composiccedilatildeo eacute de alguma forma contiacutenua e natildeo pode se isolar em um outro tempo que natildeo aquele da execuccedilatildeo Natildeo haacute tempo para o ldquoconteuacutedordquo e um tempo para a ldquoformardquo e a composiccedilatildeo nesse gecircnero se opotildee natildeo somente agrave desordem ou agrave desproporccedilatildeo mas tambeacutem agrave decomposiccedilatildeo Se o sentido e o som (ou se o conteuacutedo e a forma) podem ser facilmente dissociados o poema se decompotildee Consequumlecircncia fundamental as ldquoideacuteiasrdquo que aparecem em uma obra poeacutetica natildeo desempenham o mesmo papel natildeo satildeo absolutamente valores da mesma espeacutecie que as ldquoideacuteiasrdquo da prosaraquo407 Diferentemente desta o poema mdashque no fundo soacute ocorre no ato presente da leitura na relaccedilatildeo entre autor e leitor mediado pelo texto408mdash torna-se ou revela-se assim no sucessivo de suas interpretaccedilotildees uma espeacutecie de fecircnix verbal renasce em cada declamaccedilatildeo em cada leitura sempre o mesmo e sempre o outro laquonatildeo morre por ter vivido ele eacute feito expressamente para renascer de suas cinzas e vir a ser indefinidamente o que acabou de ser A poesia reconhece-se por esta propriedade ela tende a se fazer reproduzir em sua forma ela nos excita a reconstituiacute-la identicamenteraquo409 Natildeo haveria portanto um objeto uacutenico ao qual o poema estaria representando Este eacute simplesmente um resultado fruto de uma accedilatildeo de um fazer E laquose me interrogarem se se inquietarem (como acontece e agraves vezes intensamente) sobre o que eu ldquoquis dizerrdquo em tal poemaraquo diz Valeacutery numaceacutelebre e polecircmica passagem laquorespondo que natildeo quis dizer e sim quis fazer e que foi a intenccedilatildeo de fazer que quis o que eu disseraquo410 Dessarte o poema deveria ser tal como uma maacutequina Uma maacutequina a causar os mais diversos divergentes e

406 Œ1 p 1244407 Œ1 p 1505408 Cf JARRETY Michel Chapter 6 - The poetics of practice and theory in GIFFORD Paul amp STIMPSON Brian (orgs) Reading Paul Valeacutery - Universe in mind Cambridge Studies in French Cambridge University Press Cambridge 1998 pp 105-137409 Œ1 p 1331410 Œ1 p 1503 Valeacutery se repete laquoO filoacutesofo natildeo concebe facilmente que o artista passa quase indiferentemente da forma ao conteuacutedo e do conteuacutedo agrave forma que lhe ocorra um tipo de frase e que em seguida procure completaacute-la e justificaacute-la por um sentido que a ideacuteia de uma forma seja o mesmo para ele que a ideacuteia que requer uma forma Etcraquo (Œ1 p 1244) Ou ainda laquoO filoacutesofo natildeo concebe facilmente que o artista passe de maneira quase indiferente da forma ao conteuacutedo e do conteuacutedo agrave forma que lhe ocorra uma forma antes do sentido que daraacute a ela nem que a ideacuteia de uma forma seja igual para ele agrave ideacuteia que requer uma formaraquo (Œ1 p 1245)

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imprevistos efeitos poeacuteticos nos leitores as mais diversas interpretaccedilotildees usos e significaccedilotildees e como maacutequina todos os seus elementos mdashisto eacute todas as suas palavras os seus sintagmas os seus versos os seus silecircncios etcmdash devem ter uma funccedilatildeo especiacutefica dentro do sistema formal e tatildeo-somente formal que se constroacutei dentro do poema neste natildeo pode haver nada de supeacuterfluo nada de gratuito nenhum elemento poderia ser retirado ou colocado sem que com isso se prejudicasse a sua proacutepria forccedila tudo nele eacute importante Natildeo haacute detalhes na construccedilatildeo poeacutetica A poesia como sonha Mallarmeacute aspira a eliminar o acasoTudo nela aspira a ser necessaacuterio

Naturalmente assim como os conceitos de eu puro e de linguagem pura o conceito de poesia pura mdashe as distinccedilotildees que este implica entre prosa e poesia entre poema e poesiamdash constitui-se nesse sentido mais como um ideal mais como ldquopoesiardquo distinta do poema real Ideal que de algum modo guia o trabalhopoeacutetico conduz o que deve ou natildeo ser feito na escrituraccedilatildeo particular do poetaPois na realidade natildeo haacute poema que seja ou que realize plenamente a poesiapura a ldquopoesiardquo que natildeo contenha elementos prosaicos e narrativos que natildeo seja passiacutevel de ser interpretado mesmo que artificialmente em uma espeacutecie deconteuacutedo e uma espeacutecie de forma Em outras palavras um poema jamais alcanccedilaria o estado de pureza absoluta Ele seria sempre uma tentativa uma tendecircncia a esse estado Porque eacute da sua natureza ou melhor da natureza de todo espiacuterito ser capaz de analisar e decompor de recontar qualquer coisa tudo eacute passiacutevel de compreensatildeo laquoA poesia sem duacutevida natildeo eacute tatildeo livre quanto a muacutesica com relaccedilatildeo a seus meiosraquo assim escreve o poeta laquoSoacute com grande esforccedilo ela pode a seu grado ordenar as palavras as formas os objetos da prosa Se ela a isso alcanccedilar seraacute poesia pura Mas eis um nome que foi fortemente criticado Aqueles que me censuraram esqueceram que eu havia escrito que a poesia pura nada mais eacute do que um limite situado no infinito um ideal do poder de beleza da linguagem Mas eacute a direccedilatildeo que importa a tendecircncia em direccedilatildeo a obra pura Eacute importante saber que toda a poesia se orienta em direccedilatildeo a alguma poesiaabsolutaraquo411 E isso talvez seja um outro fator do porquecirc Valeacutery considerar seusproacuteprios poemas obras inacabadas e perpetuamente inacabadas a um tal ideaacuterio de poesia um poema jamais seria realmente terminado412 Ademais como

411 Œ1 pp 676-677412 Quanto ao natildeo acabamento agrave imperfeiccedilatildeo de todo poema eis uma bela passagem de Valeacutery que poderia muito bem se referir agrave escritura dos seus proacuteprios Cahiers laquoUm poema natildeo estaacute nunca acabadoraquo sempre afirma e reafirma o poeta laquoEacute sempre um acidente o que o termina isto eacute o que o daacute ao puacuteblico Satildeo a lassitude a solicitude do editor o surgir de um outro poema Mas nunca o estado mesmo da obra (se o autor natildeo eacute um imbecil) revela que esta natildeo poderia ser trabalhada modificada considerada como primeira aproximaccedilatildeo ou origem de uma nova busca Eu concebo quanto a mim que o mesmo tema e quase as mesmas palavras poderiam ser indefinidamente revisadas e ocupar toda uma vida ldquoPerfeiccedilatildeordquo eacute trabalhoraquo (Œ2 p 553)

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salientou Joatildeo Alexandre Barbosa413 haacute um descompasso significativo entre os poemas e as ldquoprescriccedilotildeesrdquo de Valeacutery dir-se-ia que ele natildeo eacute muito fiel ao que teoriza ou ao que propotildee como ideal poeacutetico Diferentemente dos radicais experimentos de Mallarmeacute (que dito de modo anacrocircnico parece ter realmente buscado praticar a poeacutetica de Valeacutery) e da revoluccedilatildeo e aceitaccedilatildeo plena do verso livre sua poesia quase sempre se revela sob as riacutegidas formas da tradiccedilatildeo claacutessicanatildeo se afasta tanto assim do reacutecit e apesar de um patente hermetismo constitui em geral numa espeacutecie de concentrado discurso filosoacutefico e criacutetico coadunando-se harmonizando-se assim com a sua ideacuteia de compreender a proacutepria filosofia como literatura414 Todavia esse descompasso natildeo parece ter muita relevacircncia jaacute que o foco de Valeacutery eacute principalmente apoacutes o seu retorno agrave poesia menos o poema e mais o processo poeacutetico ou em outros termos uma transformaccedilatildeo no espiacuterito mediante o proacuteprio processo poeacutetico

Assim com relaccedilatildeo ao segundo ideal o que postula aquilo que o fazer o poema deve se tornar a poeacutetica de Valeacutery sintoniza-se com o longo poema De arte poetica415

de Horaacutecio e com todo o espiacuterito Claacutessico (especificamente Parnasiano) mas tambeacutem e principalmente natildeo deixa de revelar-se como o resultado do seu proacuteprio programa de autoconsciecircncia O que a torna em grande medida relativamente contraacuteria a correntes literaacuterias que creditam em uma espeacutecie de origem ou fonte poeacutetica da qual brotariam como que por encanto as obras poeacuteticas tal como certas vertentes do Romantismo com sua metafiacutesica do sublime e seu ldquoemocionalismordquo tal como o Surrealismo com sua escrita automaacuteticae seus experimentos de livre associaccedilatildeo E isso se revela principalmente na criacutetica valeacuteryana agrave inspiraccedilatildeo

Categoria extremamente problemaacutetica para qualquer abordagem criacutetica mas sempre tentadora a inspiraccedilatildeo pode ser amiuacutede compreendida como um impulso uma forccedila um sopro criador proveniente de deuses e ou dos espiacuteritos como muito da Antiguumlidade costuma creditar ou do Inconsciente como a Modernidade costuma postular O poeta nesse sentido acaba se tornando no todo ou em parte um veiacuteculo uma espeacutecie de meacutedium portanto deixa de ser em grande medida o uacutenico autor da poesia que faz ou o autor consciente da poesia que faz Algueacutem que ouve ou lecirc um poema e o considera admiraacutevel e belo pode logo afirmar que o poeta a quem em geral natildeo conhece o compocircs com inspiraccedilatildeo mas isso eacute apenas uma conjetura e a palavra inspiraccedilatildeo torna-se tatildeo-somente um elogio Um elogio ambiacuteguo mesmo que natildeo se queira pois soa

413 Cf BARBOSA Joatildeo Alexandre Mallarmeacute segundo Valeacutery in A comeacutedia intelectual de Paul Valeacutery Iluminuras Satildeo Paulo 2007 pp 27-51414 Cf GIFFORD Paul PICKERING Robert amp SCHMIDT-RADEFELDT Juumlger (org) Paul Valeacutery agrave tous points de vue - Hommage agrave Judith Robinson-Valeacutery LrsquoHarmattan Paris Budapeste Turim 2003 415 Cf HORACE Ars poeacutetica trad H R Fairclough org Jeffrey Henderson Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 2005

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tambeacutem como se dissesse ldquoningueacutem seria capaz de criar um tal poema sem algum auxiacutelio exterior ningueacutem mereceria ser capazrdquo a inspiraccedilatildeo torna-se assim uma laquoatribuiccedilatildeo gratuita feita pelo leitor ao seu poeta o leitor nos oferece os meacuteritos transcendentes das forccedilas e das graccedilas que se desenvolvem nele Ele procura e encontra em noacutes a causa admiraacutevel de sua admiraccedilatildeoraquo416 Mas haacute algomais problemaacutetico esse tipo de compreensatildeo e valoraccedilatildeo da obra poeacutetica tende a desconsiderar ou ateacute mesmo a escamotear o trabalho e o esforccedilo417 elementos que natildeo raro possuem grande e secreto valor para o poeta para aquele que trabalhou e se esforccedilou Contudo haacute que se fazer justiccedila agrave poeacutetica agrave criacutetica valeacuteryana Estase instaura menos contra a existecircncia ou natildeo do fenocircmeno da inspiraccedilatildeo e maiscontra a crenccedila de que somente com esse fenocircmeno o poema se concretizaria Qualquer um pode realmente sentir-se ou crer-se inspirado qualquer um pode pelo acaso ou pelo destino ser tomado possuiacutedo por um estado criativo mas esse estado pouco ou nada resulta se natildeo houvesse trabalho e esforccedilo se natildeo houvesse previamente um saber adquirido em longas etapas um domiacutenio efetivo da linguagem verbal isto eacute dos meios materiais e convencionais disponiacuteveis para passar da intenccedilatildeo ao ato Um poeta puramente sentimental puramente romacircntico nesse sentido natildeo escreveria natildeo seria capaz de escrever nenhum poema mesmo que tivesse sido tomado pela mais intensa das inspiraccedilotildees O controle faz-se necessaacuterio o controle sobre o poder criador

Haacute um minucioso relato de Valeacutery que desmente a sua recorrente imagem como poeta que rechaccedila necessariamente a existecircncia da inspiraccedilatildeo e explicita sobremaneira essa concepccedilatildeo laquoTinha saiacutedo de casa para descansar de algum trabalho enfadonho atraveacutes da caminhada e dos olhares variados que ela atrai Enquanto ia pela rua em que moro fui tomado de repente por um ritmo que se impunha e que logo me deu a impressatildeo de um funcionamento estranho Como se algueacutem estivesse usando a minha maacutequina de viver Um outro ritmo veio entatildeo reforccedilar o primeiro combinando-se com ele e estabeleceram-se natildeo sei que leis transversais entre essas duas leis (estou explicando da maneira que posso) Isso estava combinando o movimento de minhas pernas andando e natildeo sei que canto eu murmurava ou melhor que se murmurava atraveacutes de mim Essa composiccedilatildeo se tornou cada vez mais complicada e logo ultrapassou em complexidade tudo o

416 Œ1 p 1321417 laquoComo os vestiacutegios do esforccedilo as repeticcedilotildees as correccedilotildees a quantidade de tempo os dias ruins e os desgostos desapareceram apagados pela suprema volta do espiacuterito para a sua obra algumas pessoas vendo apenas a perfeiccedilatildeo do resultado a consideraratildeo o resultado de uma espeacutecie de prodiacutegio denominado INSPIRACcedilAtildeO Fazem portanto do poeta uma espeacutecie de meacutedium momentacircneo Se focircssemos nos deleitar desenvolvendo rigorosamente a doutrina da inspiraccedilatildeo pura as consequumlecircncias seriam bem estranhas Achariacuteamos por exemplo que esse poeta que se limita a transmitir o que recebe ao comunicar a desconhecidos o que sabe do desconhecido natildeo precisa entatildeo compreender o que escreve o que lhe eacute ditado por uma voz misteriosa Ele poderia escrever poemas em uma liacutengua que ignorasseraquo (Œ1 p 1335)

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que eu podia produzir racionalmente de acordo com minhas faculdade riacutetmicas comuns e utilizaacuteveis Nesse momento a sensaccedilatildeo de estranheza da qual falei tornou-se quase penosa quase inquietante Natildeo sou muacutesico ignoro totalmente a teacutecnica musical e eis que estava preso por um desenvolvimento de diversas partes de uma complicaccedilatildeo com a qual nenhum poeta sonhou algum dia Dizia-me entatildeo que havia erro de pessoa que essa graccedila enganava-se de cabeccedila jaacute que eu nada podia fazer com esse dom mdash que em um muacutesico teria sem duacutevida tomado valor forma e duraccedilatildeo enquanto essas partes que se misturavam e desligavam-se ofereciam-me inutilmente uma produccedilatildeo cuja continuaccedilatildeo culta e organizada maravilhava e desesperava minha ignoracircnciaraquo418 A esse relato segue-se um outro mais ceacutelebre e irocircnico mas de mesmo teor laquoO grande pintor Degas muitas vezes me contou essa frase de Mallarmeacute tatildeo justa e tatildeo simples Degas agraves vezes fazia versos e deixou alguns deliciosos Mas constantemente encontrava grandes dificuldades nesse trabalho acessoacuterio de sua pintura (Aliaacutes era homem de introduzir em qualquer arte a dificuldade possiacutevel) Um dia disse a Mallarmeacute ldquoSua profissatildeo eacute infernal Natildeo consigo fazer o que quero e no entanto estou cheio de ideacuteiasrdquo E Mallarmeacute lhe respondeu ldquoAbsolutamente natildeo eacute com ideacuteias meu caro Degas que se fazem versos Eacute com palavrasraquo419 O poeta para Valeacuterysoacute pode ser soacute pode acontecer como um faber poeta natildeo como um vate poeta

Como um verdadeiro artista claacutessico ele concebe assim uma poeacutetica na qual o fazer poeacutetico natildeo atua atraveacutes do improviso e do descontrole mas atraveacutes do rigor e da disciplina o sonho e o devaneio podem ateacute fornecer e certamente fornecem elementos para o poema mas esses elementos devem ser trabalhados e trabalhados na vigiacutelia e na lucidez pois o sonho e o devaneio nada resultam se natildeo forem racionalizados Ou como diz o poeta laquoNem o sonho nem o devaneio satildeo necessariamente poeacuteticos eles podem secirc-los mas figuras formadas ao acaso somente por acaso satildeo figuras harmoniosasraquo420 Porque laquoeacute necessaacuterio estar ldquodespertordquo para expressarraquo421 porque para se passar da intenccedilatildeo agrave accedilatildeo da intenccedilatildeo ao construiacutedo eacute necessaacuterio projetar arquitetar Para o poeta portanto fazer poemas eacute sobretudo o ato de estar constantemente consciente de sua feitura e por 418 Œ1 p 1322419 Œ1 p 1324 Na sequumlecircncia Valeacutery ainda comenta laquoMallarmeacute tinha razatildeo Mas quando Degas falava de ideacuteias pensava em discursos internos ou em imagens que afinal pudessem ser exprimidas em palavras Mas essas palavras mas essas frases iacutentimas que ele chamava de suas ideacuteias todas essas intenccedilotildees e percepccedilotildees do espiacuterito mdash nada disso faz versos Haacute portanto algo mais uma modificaccedilatildeo ou natildeo que se interpotildee necessariamente entre esse pensamento produtor de ideacuteias essa atividade e essa multiplicidade de questotildees e de resoluccedilotildees internas e depois esses discursos tatildeo diferentes do discurso comum os versos extravagantemente ordenados que natildeo atendem a qualquer necessidade a natildeo ser agraves necessidades que devem ser criadas por eles mesmos que sempre falam apenas de coisas ausentes ou de coisas profunda e secretamente sentidas estranhos discursos que aprecem feitos por outro personagem que natildeo aquele que os diz e dirigir-se a outro que natildeo aquele que os escuta Em suma eacute uma linguagem dentro de uma linguagemraquo (Œ1 p 1324)420 Œ1 p 1321421 Œ1 p 881

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conseguinte um exerciacutecio especiacutefico de autoconsciecircncia no caso o exerciacutecio de natildeo se deixar manobrar pelas palavras fazer poemas eacute portanto uma ldquodesautomatismordquo verbal uma ldquodesautomatizaccedilatildeordquo da proacutepria linguagem usada laquoEacute me fazendo estas questotildees ldquoO que eu quero rdquo e ldquoO que eu posso quererrdquoraquo confessa o poeta de modo lacunar laquomdash (essas questotildees comparadas constituem o fundamento da MINHA Sabedoria) que eu orientei apoacutes [19]92 minha vida espiritual [Noite de Gecircnova] E eu entendi natildeo me deixar manobrar pela linguagem [Grifo do autor] Isso eu devo em parte ao trabalho com a poesia em suas condiccedilotildees formais agraves quais induz a tomar as palavras e as ideacuteias por suas maleabilidades materiaisraquo422 O surpreendenteeacute que para Valeacutery o trabalho a experiecircncia com a poesia tambeacutem o tenha conduzido em parte agravequilo que foi por ele compreendido como o pressuposto de qualquer meacutetodo de abordagem agrave laquolimpeza da situaccedilatildeo verbalraquo (laquonettoyage de la situation verbaleraquo) E eacute justamente nesse ponto que sua poeacutetica se entrelaccedila de modo mais veemente com sua criacutetica agrave filosofia Daiacute tambeacutem ele recomendaraos filoacutesofos423 mdashe de um modo que soa menos irocircnico do que sinceromdash se aventurarem ao trabalho poeacutetico ao fazer poesia o que de algum modoexcecircntrico incitaria colaboraria para a aquisiccedilatildeo de uma maior consciecircncia dalinguagem laquoEu gostaria de falar de filoacutesofos mdash e aos filoacutesofosraquo424 escreve um tanto solenemente laquoEu gostaria de lhes mostrar que seria infinitamente mais proveitoso praticar esta laboriosa poesia que conduz insensivelmente a estudar as combinaccedilotildees das palavras natildeo tanto pela conformidade de significaccedilotildees desses grupamentos com uma ideacuteia ou pensamento que noacutes tomamos para exprimir mas ao contraacuterio por seus efeitos uma vez formados entre aqueles que noacutes escolhemos Em geral noacutes tentamos ldquoexprimir seu pensamentordquo isto eacute passar de uma forma impura e misturada de todos os meios do espiacuterito a uma forma pura isto eacute somente verbal e organizada que se reduz a um sistema de atos ou de contrastes arranjados Mas a arte poeacutetica conduz singularmente a visar agraves formas puras nelas mesmasraquo425 laquoAcrescento (mas somente para alguns)raquo depois ainda sintetiza laquoque aquela vontade de natildeo se deixar manobrar por palavras natildeo estaacute totalmente dissociada daquilo que denominei ou acreditei denominar poesiapuraraquo426 Isso natildeo quer dizer naturalmente que os poetas todos estejam isentos de adentrar em ilusotildees gramaticais mas tatildeo somente que a praacutetica poeacutetica pode ser segundo Valeacutery auxiliar agrave ldquodesautomatizaccedilatildeordquo verbal auxiliar agrave proacutepria autoconsciecircncia

422 C1rsquo pp 181-182423 Cf DERRIDA Jaques Qual quelle - Les sources de Paul Valeacutery in Marges de la philosophie Minuit Paris 1972424 Œ1 p 1451425 Œ1 p 1451426 Œ1 p 1246

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Em Valeacutery o conceito de poesia pura adquire assim natildeo mais no ideal que postula o que o poema deve se tornar mas no ideal que postula o que o fazer o poema deve se tornar um outro uso Representa essa poesia mdashessa praacuteticamdash na qual o espiacuterito natildeo se deixaria enredar pela linguagem na qual o espiacuterito mdasho espiacuterito do poeta o espiacuterito daquele que se faz momentaneamente poetamdash seria um pensador da linguagem e como tal senhor e natildeo escravo da linguagem O espiacuterito compreenderia numa accedilatildeo num fazer o quanto as palavras esses ldquoobjetosrdquo com os quais tanto tempo convive no poema que estaacute sendo composto satildeo passiacuteveis de serem transformadas passiacuteveis de serem re-usadas ou re-significadas manipuladas distorcidas servis a este ou aquele discurso a este ou aquele contexto a balizar suas potencialidades semacircnticas o espiacuterito compreenderia portanto o quanto os problemas filosoacuteficos podem ser meros verbalismos Misteacuterios sem misteacuterios os poemas se tornamos discursos os contextos nos quais as palavras poderiam adquirir e adquirem a maior e mais inusitada variaccedilatildeo semacircntica possiacutevel os poemas se tornam os contextos nos quais em teoriatudo o que for possiacutevel fazer com as palavras seraacute feito Os poemas se tornam assim o devir daproacutepria linguagem a sua potecircncia em ato Nesse sentido a idiossincraacutetica poeacuteticavaleacuteryana revela-se toda ela natildeo como legataacuteria da lrsquoart pour lrsquoart da arte desengajada a subordinar a eacutetica agrave esteacutetica tampouco da arte engajada a subordinar a esteacutetica agrave eacutetica427 pois compreende simultaneamente a autonomia do poema como um objeto formal sujeito a muacuteltiplas e divergentes interpretaccedilotildees interpretaccedilotildees para aleacutem das intenccedilotildees do poeta mas tambeacutem postula uma certa funccedilatildeo ao fazer poeacutetico o esclarecimento daquele que o pratica Escrever poemas eacute um treino a si mesmo Todavia haacute que se dizer enfim algo oacutebvio Uma tal poeacutetica sua importacircncia seu valor eacute sempre de caraacuteter eminentemente pessoal O que natildeo poderia ser diferente jaacute que se trata meramente de uma ldquoteoria esteacuteticardquo laquoImagino sobre a essecircncia da Poesiaraquoescreve o poeta consciente disso laquoque ela tenha de acordo com as diversas naturezas dos espiacuteritos valor nulo ou importacircncia infinita o que a assemelha ao proacuteprio Deusraquo428

427 Cf ADORNO Theodor W La fonction vicariante du funambule in Notes sur la littteacuterature trad Sibylle Muller Flammarion Paris 1984428 Œ1 p 1283

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6 DIAacuteLOGOS SOCRAacuteTICOSESCOacuteLIOS

Saibam pois o que eacute a arte o meio para alguns os solitaacuterios de se auto-realizaremRainer Maria Rilke O diaacuterio de Florenccedila

61 A REINVENCcedilAtildeO DE UM GEcircNERO

O diaacutelogo (διάλογος) possui estatuto privilegiado na Antiguumlidade Eacuteconstantemente considerado como uma das formas mais adequadas para a manifestaccedilatildeo do pensamento filosoacutefico Inserido numa tradiccedilatildeo que preza pelos esforccedilos de memorizaccedilatildeo na manutenccedilatildeo dos valores da comunidade filoacutesofos como Platatildeo abrem concessatildeo agrave sua versatildeo escrita a que Sophron de Siracusa supostamente iniciou quiccedilaacute somente pela sua maior verossimilhanccedila agrave proacutepria fala agrave proacutepria oralidade Por natildeo representar o homem no jogo intelectual consigo mesmo um forte caraacuteter poliacutetico tambeacutem foi associado a esse gecircnero Atraveacutes de sua proacutepria disposiccedilatildeo formal o diaacutelogo possibilita expor diferentes opiniotildees e doutrinas num mesmo espaccedilo textual diferentes posiccedilotildees que podem muito bem se contradizer Devido a essa polifocircnica organizaccedilatildeo haacute quem diga que ele representaria consequumlentemente uma genuiacutena forma de toleracircncia Talvez haja nisso um romacircntico exagero Compreensiacutevel na medida em que se deseje identificar uma relaccedilatildeo humana que se abstenha da violecircncia e prefira ser amigaacutevel troca entre razotildees com um gecircnero literaacuterio no qual representaccedilotildees de personagens ou vozes distintas se manifestem em torno de um tema ou uma seacuterie de temas independente de serem ou natildeo partidaacuterias dos mesmos valores Pois nada impede que esse uacuteltimo represente um pensamento cristalizado intransigente pronto a cometer proselitismos

O proacuteprio Platatildeo seu pensamento natildeo deixa de ser exemplar quanto a isso Entre o respeito pela tradiccedilatildeo e o anseio pela reforma ele revela em certas passagens um caraacuteter a que muitos hoje considerariam autoritaacuterio mas que todavia cumpre ser matizado quando inserido na totalidade de sua obra Afinal o conspiacutecuo disciacutepulo de Soacutecrates nunca deixou de ser aquilo que hodiernamente denomina-se de dialeacutetico Se por um lado no Craacutetilo429 a discussatildeo sobre a natureza das palavras permanece inconclusa por outro naRepuacuteblica430 apesar das inuacutemeras digressotildees de seus participantes grande parte das reflexotildees ao fim convergem para uma espeacutecie de utopia avant-la-lettre uma forma de governo que submete os seres humanos a uma sociedade ideal de

429 Cf PLATO Cratylus IV no 167 trad Harold North Fowler org G P Goold Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 1992430 Cf PLATO Republic - Books 6-10 trad Paul Shorey Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 2006

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riacutegidas hierarquias Tomados como uma totalidade os diaacutelogos platocircnicos equilibram-se assim ambiguamente entre a sugestatildeo e a imposiccedilatildeo entre o dogma e a aporia E eacute a lendaacuteria e carismaacutetica personagem ou voz de Soacutecrates uma das causas desse processo pois amiuacutede conduz mediante desconcertantes refutaccedilotildees e perguntas seus interlocutores a um circular labirinto de volaacuteteis definiccedilotildees deixando deliberadamente muitas das respostas e conclusotildees para

um futuro que parece nunca poder se concretizar O elenkos (ἒλεγχος)

socraacutetico pode ser considerado como uma estrateacutegia de argumentaccedilatildeo negativaque parece conter a intenccedilatildeo de fazer o diaacutelogo mdasho dialogarmdash um processo virtualmente infinito Pois toda resposta pode ser negada e a ela posta um sem-nuacutemero de outras respostas referentes a uma mesma pergunta

O desenvolvimento do diaacutelogo enquanto gecircnero filosoacutefico no Ocidente eacute a partir de entatildeo influenciado pelo pensamento socraacutetico-platocircnico O Cristianismo tambeacutem dele se apropria um tanto circunstancialmente doravante jaacute como religiatildeo oficial prefere formas tradicionalmente mais vinculadas agrave interpretaccedilatildeo da doutrina como os tratados as sumas e os comentaacuterios Ceacutelebres ldquoexceccedilotildeesrdquo a essa preferecircncia podem ser encontradas nas obras de Santo Agostinho e Pedro Abelardo Todavia principalmente com o desenvolvimento do Humanismo o diaacutelogo enquanto gecircnero filosoacutefico renova forccedilas devido a enorme idealizaccedilatildeo e valorizaccedilatildeo do passado claacutessico surgem inuacutemeros imitadores de Platatildeo na Renascenccedila Quando ainda natildeo se diferenciava de todo do pensamento filosoacutefico a Ciecircncia Moderna emergente tambeacutem dele se utilizou Giordano Bruno e Galileu Galilei o praticam esteacabou no caacutercere privado aquele na fogueira Diante desse quadro histoacuterico e a partir da relaccedilatildeo entre a intenccedilatildeo de um escrito e a sua recepccedilatildeo hodierna poder-se-ia conjeturar que o diaacutelogo filosoacutefico justamente por estar associado agrave pluralidade de opiniotildees e a aceitaccedilatildeo dessa pluralidade tenderia a florescer em eacutepocas de maior liberdade de expressatildeo Assim sempre sob o quase onipresente peso do estilo platocircnico431 Descartes Leibniz Berkeley Hume Shaftsebury e Diderot tambeacutem o praticaram mas cuidadosamente entre a antiga tradiccedilatildeo metafiacutesica e o impacto da Ciecircncia Moderna Contudo frente aos pressupostos de objetividade que esta exige o diaacutelogo enquanto gecircnero filosoacuteficovem a ser considerado por vezes um modelo quase anacrocircnico relativamenteinadequado ao saber positivo Tendo em vista tambeacutem a sua diferenciaccedilatildeo das peccedilas de teatro ou daqueles que naturalmente se inserem em outros gecircneros literaacuterios ele mais raramente se sustenta na Modernidade de modo autocircnomo

431 Cf COSSUTTA Freacutedeacuteric (org) Le dialogue introduction agrave un genre philosophique Press Universitaires du Septentrion Paris 2004

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Poucos possuem o mesmo tipo de recepccedilatildeo que por exemplo um romanceum reacutecit

Prezando pela entonaccedilatildeo pela presenccedila da voz na literatura escrita Paul Valeacutery foi nas deacutecadas de 20 e 30 do seacuteculo XX um dos autores que como Alain e Claudel atualizaram e reinventaram o diaacutelogo filosoacutefico notadamente do tipo socraacutetico e de ldquoinspiraccedilatildeordquo humaniacutestica mesmo que na moderna praacutetica das formas breves432 Interessa-o sobretudo a lucidez e a plasticidade a possibilidade de contraccedilatildeo e de dilataccedilatildeo desta que considera a laquomais flexiacutevel da formas de expressatildeoraquo433 (laquola plus souple des formes drsquoexpressionraquo) interessa-o a sedutora e difiacutecil ideacuteia de suspender a presenccedila do sujeito da pessoa atraveacutes do mascaramento em personagens ou vozes diversas algo condizente com a concepccedilatildeo de literatura impessoal ou natildeo-autoral por ele almejada Alguns desconexos e truncados fragmentos sobre Mon Faust em seus Cahiersdemonstram o desejo em se apropriar desse gecircnero em sua autonomia esteacutetica laquoAssim no teatro o diaacutelogo eacute condiccedilatildeo imediata mdash e eu escrevo sem abandonar o diaacutelogo Mas mdash depois de certo uso mdash eu comeccedilo a sentir esta formaindependentemente de toda a aplicaccedilatildeo e a mim se impotildee agrave necessidade de isolar claramente de conservar formalmente sua funccedilatildeo seu lugar numa resoluccedilatildeode certa resistecircncia ou circunstacircncia e suas caracteriacutesticas funcionais completas Eu tenho entatildeo necessidade de uma ldquoideacuteiardquo ou foacutermula que me faccedila do diaacutelogo algo como uma operaccedilatildeo = O diaacutelogo eacute a operaccedilatildeo que transforma os dados por via de trocas (PR) (pergunta-resposta) entre sistemas [] nos quais a desigualdade eacute suposta O nuacutemero de variaacuteveis (desses sistemas) que entram em jogo eacute variaacutevel e define o gecircnero [] [do] diaacutelogo filosoacutefico ateacute ao mais ordinaacuterio Onde o tom etc Na base o diaacutelogo interior mdash Monoacutelogo natildeo existe mdash [] A anaacutelise do tipo diaacutelogo seraacute fecunda Como o ldquopensamentordquo tende a este tipo e natildeo eacute que aparecircncia de monoacutelogo ele seraacute elucidado por aqueleraquo434

Ou ainda laquoTodo monoacutelogo eacute um diaacutelogoraquo435

Dessarte o diaacutelogo seria como que a forma mais ldquonaturalrdquo a mais fiel ao mecanismo do proacuteprio pensamento deste tende a tornar-se um iacutecone Representa aquela divisatildeo interna e o jogo de diferenccedilas entre as partes dessa divisatildeo interna a que Valeacutery frequumlentemente alude quando se refere agrave laquoself-varianceraquo do espiacuterito Sem um outro real ou sem um outro conceitual tanto o diaacutelogo quanto o pensamento natildeo existiriam porque supostamente natildeo haveria o que dizer Seria o puro silecircncio Isso parece se materializar na forma

432 Cf MARX William The Dialogues and lsquoMon Faustrsquo the inner politics of thought in GIFFORD Paul amp STIMPSON Brian (orgs) Reading Paul Valeacutery - Universe in mind Cambridge University Press Cambridge 1998 pp 164-165433 Œ1 p 448434 C1rsquo pp 299-300435 C2rsquo p 519

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com que o proacuteprio poeta concebe as suas personagens ou vozes Estas estatildeo separadas mas num outro plano tambeacutem natildeo deixam de ser uma soacute436 Todos os seus diaacutelogos podem ser considerados como diz o emblemaacutetico tiacutetulo de um deles um Coloacutequio dentro de um ser (Colloque dans un ecirctre437) Eles natildeo se abrem diretamente para o coletivo Natildeo eacute como se o Valeacutery escritor se identificasse com apenas uma de suas personagens ou vozes a que considere a portadora da verdade e fizesse das demais portadoras do equiacutevoco natildeo eacute como se defendesse por contraste com outras ideacuteias uma ideacuteia uacutenica Eacute como se ele fosse realmente todas as suas personagens ou vozes e as possiacuteveis contradiccedilotildees e polecircmicas entre elas Contradiccedilotildees e polecircmicas que ocorrem internamente em uma uacutenica consciecircncia que se multiplica em vaacuterias para melhor ser Como diz Maurice Blanchot acerca de Valeacutery laquoSeu pensamento aspira a dialogarraquo eacute uma laquodiversidade de falas nascidas do eco de uma mesma vozraquo438

Ademais haacute uma relaccedilatildeo extremamente ambiacutegua com a tradiccedilatildeo Apesar de sua chistosa confissatildeo de pouco conhecer a Antiguumlidade a cultura grega e latina de natildeo ter sido um leitor assiacuteduo de Platatildeo considerando a influecircncia deste como laquomdash Puramente imaginaacuteriaraquo439 Valeacutery demonstra mdashsupotildee-se que em grande parte justamente por essa confessa displicecircnciamdash uma quase maliciosa engenhosidade ao escrever seus diaacutelogos socraacuteticos As referecircncias aos elementos filosoacuteficos da Antiguumlidade satildeo taacutecitas natildeo raro indiretas como que propositadamente escondidas todavia presentes para um leitor atento Ele se preocupa muito mais com uma siacutentese abstrata do objeto ou dos objetos queescolhe e analisa do que com referecircncias Nos seus escritos talvez o mais importante natildeo seja o expliacutecito mas o impliacutecito os subentendidos Seus diaacutelogossocraacuteticos satildeo paradigmas desse recorrente procedimento Natildeo deixam de serfieacuteis portanto agrave desconfianccedila de Valeacutery a essa tentativa de legitimar uma ideacuteia atraveacutes da evocaccedilatildeo de autoridades e de documentos passados de provas Como seus escritos sobre Leonardo eles dispensam um determinado tipo de rigor histoacuterico de matriz positivista e instauram-se paralelamente distante de um realismo literaacuterio direto num tempo e num espaccedilo indeterminados laquoO

436 Cf MARX William The Dialogues and lsquoMon Faustrsquo the inner politics of thought in GIFFORD Paul amp STIMPSON Brian (orgs) Reading Paul Valeacutery - Universe in mind Cambridge University Press Cambridge 1998 pp 156-159437 Cf Œ1 pp 360-366438 BLANCHOT Maurice Valeacutery et Faust in La part du Feu Nrf Gallimard 1949 p 273439 laquoEu penso que nesse assuntoraquo acrescenta Valeacutery evocando mais uma vez a sua habitual reticecircncia com relaccedilatildeo agrave Histoacuteria laquoa grandeza dos erros que noacutes cometemos sem informaccedilatildeo eacute sensivelmente a mesma do que aqueles que cometem com informaccedilatildeo Reconstituir uma certa Greacutecia com um miacutenimo de dados e convenccedilotildees homogecircneas natildeo eacute mais criticaacutevel do que reconstituir atraveacutes de uma quantidade de documentos que quanto mais numerosos mais contraditoacuteriosraquo (Cf Œ2 p 1399) Cfo programa de leituras de Valeacutery que inclui uma seacuterie de heterogecircneos autores entre eles Platatildeo in BERTHOLET Denis Paul Valeacutery - 1871-1945 Biographies Plon Paris pp 82-83

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pouco que noacutes sabemos agraves vezes eacute mais ativo e fecundo que o muitoraquo diz provocativamente laquoPois ele excita ou obriga a inventar a falta e esse produto vivo nascente eacute mais ativo mdash por vezes mais ldquoverdadeirordquo que o verdadeiro-morto Certo efeito reproduzido sem causa por inteira conservaccedilatildeo eacute menospoderoso que o efeito semelhante produzido atualmente por qualquer causa anaacuteloga O excessivamente pouco que eu sabia de Platatildeo e que obtive em dez ou quinze linhas me produziu Eupalinos mdash cf Leonardo tambeacutem e Goetheraquo440

Apesar dessas palavras confissatildeo de um escritor cioso de sua capacidade de transformar o pouco em muito Valeacutery era apreciador das formas e do proacuteprio modo de filosofar dos antigos Habituado ao uso de elementos claacutessicos em sua poesia ele contudo natildeo se esquiva de todo do canocircnico paradigma platocircnico-socraacutetico todavia o transporta mais profundamente aos padrotildees esteacuteticos da Literatura Moderna e natildeo o encara como um helenista ou um historiador preso por princiacutepio ao rigor filoloacutegico mas como um literato livre para adentrar o devaneio e a fantasia Atraveacutes do diaacutelogo socraacutetico o poeta posiciona seu pensamento como que nas antiacutepodas de seus antigos e ilustres precursores Diferentemente de grande parte da tradiccedilatildeo desenvolvida a partir de Soacutecrates e Platatildeo natildeo busca pela verdade ou por uma verdade como se esta existisse em algum lugar objetivo porque todo conceito eacute ao mesmo tempo uma limitaccedilatildeo e uma possibilidade porque todo conceito pode ter inuacutemeras definiccedilotildees variando com a perspectiva que se adote com quem o define e para quem eacute definido Assim a aporia se impotildee sobre o dogma o negativo sobre o positivo E isso se personifica no comportamento de seus personagens ou vozes aquela tentativa de convencer inculcar ou mesmo humilhar seu interlocutor em direccedilatildeo a uma determinada concepccedilatildeo sistema ou doutrina se dilui em dimensotildees ambiacuteguas haacute apenas a reflexatildeo conjunta de duas ou mais personagens ou vozes na busca de algo por vezes ainda natildeo verbalizado de

iniacutecio ainda inefaacutevel no estaacutegio em que falam A velha ironia (εἰρωνεία) por

vezes cruel instrumento pedagoacutegico eacute matizada Nesses diaacutelogos socraacuteticos a distinccedilatildeo entre quem eacute o mestre e quem eacute o disciacutepulo tende a desaparecer ou a se inverter Esvaecem-se as estruturas de poder Todos os seus personagens ou vozes aprendem todos ensaiam porque tudo eacute verdadeiramente ensaio Nenhum deles se impotildee em demasia aos demais o que naturalmente natildeo os impede de defenderem argumentos linhas de pensamento Natildeo sendo propostas doutrinaacuterias mas livres intuiccedilotildees de um pensador que natildeo se propotildee inventar teorias em sentido pleno e acabado os diaacutelogos socraacuteticos de Valeacutery tornam-se um instigante exerciacutecio de sugestotildees e de alusotildees Muitas vezes jogam com proposiccedilotildeesabstratas proacuteprias do discurso do filoacutesofo ao inveacutes de imagens concretas

440 C1rsquo p 283

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como seriam relativamente mais presentes nos devaneios de um poeta A belezaeacute a estranha e enigmaacutetica dimensatildeo que natildeo raro verdadeiramente parece ter primazia Valeacutery mdashque jamais deixou de ser um estetamdash parece se deleitar com a frase bem construiacuteda com os achados literaacuterios no fundo ele natildeo deixa de perseguir este procedimento de composiccedilatildeo no qual o conteuacutedo natildeo eacute uma dimensatildeo anterior agrave forma no qual esta natildeo raro evoca e ordena aquele O que no seu caso natildeo o impede de manter o rigor de sempre estar a respeitar a relaccedilatildeo de coerecircncia entre a representaccedilatildeo e o representado seja este real ou imaginaacuterio O estilo natildeo deve matar a precisatildeo assim como a precisatildeo natildeo deve matar o estilo um natildeo pode pesar mais que o outro Eis um lema o qual o poeta Valeacutery poderia muito bem adotar jaacute que na praacutetica o cumpria

Tudo se passa como se apoacutes um longo e aacuterduo aprendizado um desencanto o deus da razatildeo e da luz Apolo sem deixar de lado o refinamento e a coerente loacutegica de sua linguagem aprendesse a arte da prestidigitaccedilatildeo e da fantasia com o deus da embriaguez e da alegria Dioniacutesio um e outro se fundem num jogo sem fim um e outro se cumprimentam um e outro se conciliam Pelo intenso lirismo pelo aacuterduo trabalho entre som e sentido que apresentam os diaacutelogos socraacuteticos de Valeacutery podem ser facilmente considerados como ldquopoemas em prosardquo Quem os comenta quem os analisa ou os destrinccedila natildeo pode deixar de contemplar a recorrente e jaacute referida postura valeacuteryana em estetizar a filosofia Estetizaccedilatildeo que agora natildeo se apresenta apenas de modo teoacuterico mas opera na praacutetica de obras literaacuterias com tudo o que estas possam ter de excentricidades

O diaacutelogo eacute portanto um gecircnero literaacuterio privilegiado na obra de Valeacutery Encontra-se em La Soireacute avec Monsieur Teste encontra-se enquanto fragmentos em Tel quel em Mauvaises penseacutees e naturalmente em seus Cahiers encontra-se na forma de versos na hermeacutetica peccedila ldquoMon Faustrdquo - Eacutebauches e no ldquoteatro lituacutergicordquo de ambiacuteguas referecircncias claacutessicas e catoacutelicas Amphion - Meacutelodrame SeacutemiramisCantate du Narcisse e Colloque pour deux flucirctes encontra-se no ensaio epistemoloacutegico Lrsquoideacutee fixe encontra-se em Meacutelange em Colloque dans un ecirctre em nos breviacutessimos Coloacutequios Orgueil pour orgueil e Socrate et son meacutedicin Nestes dois uacuteltimos jaacute se configura uma problemaacutetica estritamente filosoacutefica Contudo o que soacutei ser aqui de interesse prioritaacuterio satildeo os seus diaacutelogos mais plenamente desenvolvidos agravequeles que correspondem seja por assentimento contraste ou inversatildeo agravedominacircncia do registro metafiacutesico no pensamento da Antiguumlidade Nesse sentido Valeacutery compotildee mdashtodavia como de haacutebito circunstancialmente e sem teacuterminomdash um conjunto de diaacutelogos socraacuteticos que podem ser para fins interpretativos estrategicamente ordenados na seguinte trajetoacuteria Lrsquoacircme et la danse pertencente ao subgecircnero do simpoacutesio refere-se a um Soacutecrates vivo todavia jaacute na dolorosa

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desconfianccedila de que o mundo eacute tatildeo-somente puro movimento e instabilidadeEupalinos - Ou lrsquoarchitecte pertencente ao subgecircnero do dialogo de mortos quiccedilaacute seu mais ceacutelebre e citado diaacutelogo refere-se em contrapartida a um Soacutecrates morto

jaacute na plena perturbaccedilatildeo de suas crenccedilas Περὶ τῶν τοῦ θεοῦ - Ou des choses

divines em puro estado de fragmento talvez o mais ambicioso e hoje o mais desconhecido de seus diaacutelogos eacute aquele que se refere aos conhecidos e aos disciacutepulos de Soacutecrates que logo apoacutes a morte do mestre permanecem em discussatildeo

Todos esses diaacutelogos representam em maior ou menor grau a reinvenccedilatildeo deste personagem Soacutecrates pela sua presenccedila ou ausecircncia em diferentes momentos e que juntamente com Leonardo e Teste pode ser compreendido como um dos emblemas maacuteximos da obra de Valeacutery mas diferentemente destes eacute mais um instrumento criacutetico e menos a personificaccedilatildeo de um ideal a ser seguido Dir-se-ia que o Soacutecrates valeacuteryano eacute humanizado tanto em comparaccedilatildeo a outras personagens suas como em comparaccedilatildeo agrave personagem histoacuterica Numa perspectiva progressista ele natildeo representaria o espiacuterito universal intelectualmenteautaacuterquico ao qual o poeta almeja se tornar representaria antes um processo um caminho a esse ideal o estaacutegio anterior ao de um Teste ou de um Leonardo Estaacutegio no qual o Soacutecrates valeacuteryano adquire consciecircncia criacutetica de sua pateacutetica condiccedilatildeo e do que deve realmente realizar ou deixar de realizar E com isso Valeacutery tambeacutem acaba por distinguir uma diferenccedila capital entre o espiacuterito da Antiguumlidade e o da Modernidade entre a completude e a incompletude

611 A DANCcedilA DE ATHIKTEcirc

Os diaacutelogos platocircnicos apesar dos seus ldquosubtiacutetulosrdquo serem diretos quanto ao tema a ser abordado satildeo em muito devido agrave aporia que os conforma um amaacutelgama de outros ora somente postos ora exaustivamente discutidos A falta de linearidade os desvios as digressotildees configuram uma estranha verossimilhanccedila com o proacuteprio pensamento que natildeo tendo que resultar em texto ou em conclusatildeo segura flana mais livremente entre os objetos que o seduzem natildeo raro de modo desordenado e confuso A inquietaccedilatildeo proacutepria da proacutepria filosofia assim se faz presente O tema central de um diaacutelogo platocircnico por mais que se tente precisar por mais que se tente aprisionaacute-lo em uma uacutenica palavra (seja esta beleza bondade justiccedila alma) natildeo eacute portanto uacutenico e preciso

De lucidez mortal ao mesmo tempo delicado e delirante Lrsquoacircme et la danse (escrito em 1921 e publicado pela primeira vez em 1923) assume esse caraacuteter digressivo ao extremo Descreve as reflexotildees ou as sensaccedilotildees de Soacutecrates e de

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seus companheiros o meacutedico Erixiacutemaco e o jovem Fedro apoacutes um farto banquete Nisso jaacute se evidencia um primeiro paralelo possiacutevel com o Simpoacutesio441

de Platatildeo no qual durante um farto banquete (natildeo agrave toa tambeacutem ser assim intitulado) o amor e a relaccedilatildeo deste com a beleza o bem e o imemorial desejo de vencer a morte satildeo postos e discutidos De um hermetismo muito mais intenso do que o habitual mesmo para os padrotildees de Valeacutery Lrsquoacircme et la dansetoca levemente essas temaacuteticas Todavia como herdeiro do evasivo estilo simbolista natildeo possui um tema central claramente definido do qual parece gravitar sem jamais revelar Configura-se sobretudo como um intrincado labirinto de frases cuja loacutegica explora a contradiccedilatildeo e o paradoxo entre tantos e tatildeo raacutepidos assuntos evocados e dissipados Suas personagens ou vozes na estaacutetica modorra em que se encontram devido agrave digestatildeo de seus estocircmagos refletem sobre uma das mais corriqueiras e necessaacuterias atividades da vida sobre aquilo que acabaram de fazer o ato mesmo de se alimentar tema sub-repticiamente presente em todo o diaacutelogo442 Soacutecrates mdashapoacutes ser ironizado por Erixiacutemaco que dele diz ser um tanto incapaz de ficar sem meditar por conseguinte de ficar sem filosofar e expressar suas ideacuteiasmdash questiona-o se laquoo homem que come eacute o mais justo dos homensraquo443 A duacutevida natildeo eacute vatilde Porque na necessidade assim como na dor e no sofrimento (por vezes atrelados agrave proacutepria necessidade) porque nos incessantes chamados do corpo no clamor da fome do frio e do calor os seres humanos independentemente de suas crenccedilas podem ser fisicamente igualados Aproveitando a oportunidade desse tema tatildeo calcado na concretude da vida Erixiacutemaco como meacutedico discursa sobre os inuacutemeros remeacutedios para o corpo contudo Soacutecrates mdashcuja tendecircncia intelectual principalmente nos diaacutelogos platocircnicos eacute como percebeu Valeacutery refletir a partir de inevitaacuteveis situaccedilotildees cotidianasmdash extrapola e polemiza dizendo que para a alma haacute somente dois

laquoA verdade e a mentira [] Natildeo se comportam entre elas como a vigiacutelia e o sono Natildeo procuras tu o despertar e a nitidez da luz quando um mau sonho te atormenta Natildeo nos ressuscita o sol em pessoa e natildeo nos fortifica a presenccedila de corpos soacutelidos mdash Mas em contrapartida natildeo eacute ao sono e aos sonhos que pedimos que dissolvam as afliccedilotildees e que suspendam as dores que nos aguilhoam no mundo do dia E assim fugimos de um para o outro

441 PLATO Symposium trad W R M Lamb org Jeffrey Henderson amp G P Goold Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 2001442 Essa proposta eacute expressa numa carta de agradecimento de Valeacutery a Lous Seacutechan em agosto de 1930 o trecho que se segue a sintetiza laquoO pensamento constante do Diaacutelogo [Lrsquoacircme et la danse] eacute fisioloacutegico mdash depois dos problemas digestivos do comeccedilo do preluacutedio ateacute a sincope final O homem eacute escravo do simpaacutetico e do [] gaacutestrico Sensaccedilotildees suntuaacuterias movimentos de luxo e pensamentos especulativos existem apenas em favor do valor da tirania da nossa vida vegetativa A danccedila eacute o tipo de escape Quanto agrave forma do conjunto eu tentei fazer do proacuteprio Diaacutelogo uma espeacutecie de baleacute no qual a Imagem e a Ideacuteia satildeo alternativamente os Corifeus O abstrato e o sensiacutevel se conduzem alternativamente e se unem enfim na vertigem Em suma eu natildeo persegui nenhum grau de rigor histoacuterico ou teacutecnico [] Eu fiz intervir livremente o que me precisou para entreter o meu Baleacute e em variar as suas figurasraquo (Œ2 p 1408 ou LQ p 190)443 Œ2 p 149

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invocando o dia no meio da noite implorando ao contraacuterio as trevas enquanto temos a luz ansiosos de saber felizes demais por ignorar procuramos no que eacute um remeacutedio ao que natildeo eacute e no que natildeo eacute um aliacutevio para o que eacute Ora o real ora a ilusatildeo nos recolhe e a alma em definitivo natildeo tem outros meios exceto o verdadeiro que eacute sua arma mdash e a mentira sua armaduraERIXIacuteMACO [] natildeo tens medo caro Soacutecrates de uma certa consequumlecircncia desse pensamento que te ocorreu [] Esta a verdade e a mentira tendem para o mesmo fim Eacute uma mesma coisa que tomando-se diversamente nos faz mentirosos ou veriacutedicos e como ora quente ora frio ora nos atacam ora nos defendem assim o verdadeiro e o falso e as vontades opostas a que se ligam SOacuteCRATES Nada mais certo Nada posso fazer Eacute a proacutepria vida que assim o quer [] Tudo ajuda a vida Erixiacutemaco para que a vida nada conclua Isto eacute concluir apenas a si mesma Natildeo eacute ela esse movimento misterioso que pelo desvio de tudo o que acontece transformou-me incessantemente em mim mesmo e que me devolve bastante raacutepido a este Soacutecrates para que eu o reencontre e que imaginando necessariamente reconhececirc-lo eu exista mdash Ela eacute uma mulher que danccedila e que deixaria de ser uma mulher divinamente se pudesse saltar ateacute as nuvens Mas como natildeo podemos ir ao infinito nem no sono nem na vigiacutelia ela de modo semelhante reconverte-se sempre a si mesma deixa de ser floco paacutessaro ideacuteia mdash de ser enfim tudo que a flauta quis que dela fosse feito pois a mesma Terra que a mandou convoca e entrega-a toda palpitante agrave sua natureza de mulher e a seu amigoraquo444

Nesse momento extremamente fecundo no qual verdade e mentira satildeo estabelecidas como conceitos entrelaccedilados dependentes um do outro e a vida eacute comparada a uma mulher que danccedila surge como que de um ato providencial e emblemaacutetico Athiktecirc com seus prodigiosos e provocativos movimentos Ela eacute imediatamente reconhecida como danccedilarina ceacutelebre considerada como a melhor entre todas ali presentes mas como qualquer outra aparentemente serve para entreter as figuras masculinas dedicadas a uma tarefa tradicionalmente masculina a especulaccedilatildeo filosoacutefica ou metafiacutesica Todavia ante a sua feminina presenccedila o diaacutelogo que rumava para dimensotildees puramente conceituais e abstratas parece entatildeo abruptamente redirecionar-se A escolha da danccedila no diaacutelogo natildeo parece ser gratuita Para Valeacutery essa atividade do corpo enquanto arte difere como a poesia da prosa de outras formas de movimento de accedilatildeo principalmente por ter seu fim em seu proacuteprio meio sua meta em seu proacuteprio meacutetodo por natildeo almejar um resultado que seja exterior a si mesma mas ao seu proacuteprio desenvolvimento445 As personagens ou vozes do

444 Œ2 pp 150-151445 laquoA maior parte de nossos movimentos voluntaacuteriosraquo escreve Valeacutery em seu ceacutelebre ensaio Degas Dance Dessin laquotem uma accedilatildeo exterior como fim alcanccedilar um lugar ou um objeto ou modificar alguma percepccedilatildeo ou sensaccedilatildeo em um ponto determinado Satildeo Tomaacutes dizia muito bem laquoPrimum in causando ultimum est in causatoraquo Atingido o objetivo terminada a atividade nosso movimento que estava inscrito na relaccedilatildeo de nosso corpo com o objeto e com nossa intenccedilatildeo cessa Sua determinaccedilatildeo continha sua exterminaccedilatildeo natildeo se podia nem concebecirc-lo nem executaacute-lo sem a presenccedila e o concurso da ideacuteia de um acontecimento que fosse seu termo [] Se penso em me dirigir da Eacutetoile ao Museu natildeo pensaria nunca que posso tambeacutem realizar meu desiacutegnio passando pelo Pantheacuteon Mas haacute outros movimentos cuja evoluccedilatildeo natildeo eacute excitada nem determinada nem possiacutevel de ser causada e concluiacuteda por nenhum objeto localizado Nenhuma coisa que alcanccedilada traga a resoluccedilatildeo desses atos Cessam apenas mediante alguma intervenccedilatildeo alheia a sua causa sua figura sua espeacutecie e em vez de estarem submetidos a condiccedilotildees de economia parecem ao contraacuterio ter a proacutepria dissipaccedilatildeo por objeto Os saltos por exemplo e as cambalhotas de uma crianccedila ou de um catildeo a caminhada pela caminhada o nado pelo nado satildeo atividades que tecircm como fim apenas modificar nosso sentimento de energia criar certo estado desse sentimento Os atos dessa classe podem e devem multiplicar-se ateacute que uma circunstacircncia completamente diversa de uma modificaccedilatildeo exterior que eles tiverem produzidos intervenha Essa circunstacircncia seraacute uma qualquer em relaccedilatildeo a eles cansaccedilo por exemplo ou convenccedilatildeoraquo Em outra passagem prossegue laquono Universo da danccedila o repouso natildeo tem lugar a imobilidade eacute coisa

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poeta parecem assim na extrema ambiguumlidade que as rege natildeo poder suportar a encantadora danccedila de Athiktecirc Danccedila que natildeo segue natildeo se submete agraves limitadas regras de um raciociacutenio pragmaacutetico a visar consequumlecircncias pragmaacuteticas que natildeo tenha um objetivo plenamente justificado e preciso Nela os filoacutesofosobservam oportunamente um verdadeiro incocircmodo um verdadeiro desafio agrave razatildeo Daiacute o Soacutecrates valeacuteryano desse diaacutelogo (como talvez fizesse a sua versatildeo platocircnica) ousar questionar a inteligecircncia da beldade querendo talvez com isso aproximaacute-la da loucura relativamente contraacuteria agrave lucidez filosoacutefica laquomdash Essa moccedila seraacute talvez uma tolaraquo perguntar-se-aacute ateacute o fim laquomdash E quem sabe que supersticcedilotildees e bagatelas formam sua alma cotidianaraquo446 O natildeo sentido dessasperguntas acaba contudo revelando-se A danccedila de Athiktecirc aqueles que a contemplam e pouco a compreendem constatam como a razatildeo o grande guia intelectual do gecircnero humano natildeo raro voltado a instrumentalizar as generalizaccedilotildees e abstraccedilotildees que executa com o objetivo de conquistar a natureza eacute particularmente deacutebil frente aos sutis e secretos desiacutegnio do corpoSeus limites satildeo configurados pelo tempo e pelo espaccedilo pela experiecircncia sensiacutevel pela materialidade pela corporeidade agrave qual se condiciona intimamente pois surge e se desenvolve a partir de uma incessante relaccedilatildeo com a proacutepria corporeidade para entatildeo buscar natildeo raro e insistentemente desta se depreender Os movimentos da razatildeo e os movimentos do corpo se condicionam mutuamente apesar do constante desejo de autonomia do primeiro com relaccedilatildeo ao segundo Fiel a esse desejo o Soacutecrates valeacuteryano discursa sobre os sonhos da proacutepria razatildeo sobre a possibilidade de compreender o que todos ali contemplam sobre a inteligibilidade das coisas e Erixiacutemaco intui que todos estejam ante algo que remete ao divino

laquoSOacuteCRATES Alma voluptuosa vecircs aqui o contraacuterio de um sonho e o acaso ausente Mas o contraacuterio de um sonho que eacute Fedro senatildeo outro sonho Um sonho de vigilacircncia e de tensatildeo que a proacutepria Razatildeo faria E que sonharia uma Razatildeo mdash Pois se uma Razatildeo sonhasse [] o sonho que ela faria natildeo haveria de ser isso que agora vemos mdash esse mundo de forccedilas exatas e de estudadas ilusotildees mdash Sonho [] inteiro penetrado de simetrias soacute ordem soacute ato e sequumlecircncia Quem sabe quais as Leis augustas sonham aqui ter tomado claras faces e concordado no desiacutegnio de manifestar aos mortais de que modo o real o irreal e o inteligiacutevel se podem fundir e combinar-se conforme o poder das MusasERIXIacuteMACO Eacute bem verdade Soacutecrates que o tesouro dessas imagens eacute inestimaacutevel Natildeo eacutes de opiniatildeo que o pensamento dos Imortais seja precisamente o que estamos vendo e que a infinidade dessas nobres semelhanccedilas as conversotildees as inversotildees as diversotildees inesgotaacuteveis que se respondem e deduzem diante de noacutes nos transportam aos conhecimentos divinosraquo447

imposta e forccedilada estado de passagem e quase violecircncia enquanto os saltos os passos contados as pontas os entrechat ou as rotaccedilotildees vertiginosas satildeo maneiras completamente naturais de ser e fazer Mas no Universo ordinaacuterio e comum os atos satildeo apenas transiccedilotildees e toda a energia que por vezes nele aplicamos soacute eacute empregada para esgotar alguma tarefa sem repeticcedilatildeo e sem regeneraccedilatildeo de si mesma pelo impulso de um corpo sobre-excitado Assim o que eacute provaacutevel em um desses Universos eacute no outro um acaso dos mais rarosraquo (Œ2 p 1172)446 Œ2 p 171447 Œ2 pp 154-155

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Natildeo se trata portanto de permanecer e discursar apenas sobre uma atividade artiacutestica especiacutefica que entatildeo se apresenta Transgredindo as significaccedilotildees da linguagem cotidiana as vozes ou personagens da Lrsquoacircme et la danse fazem da palavra danccedila mais do que um signo da danccedila transformam-naem um siacutembolo um siacutembolo divino cujo objeto se existe natildeo se revela laquoMallarmeacuteraquo o simbolista Valeacutery enigmaticamente registra laquodisse que a bailarina natildeo eacute uma mulher que danccedila pois ela natildeo eacute uma mulher e natildeo danccedilaraquo448 Fedro e Erixiacutemaco possuem assim extremas dificuldades em apreender e interpretar o suposto significado da danccedila de Athiktecirc A princiacutepio cada um de acordo com o seu temperamento procura debilmente compreendecirc-la dir-se-ia que apenas atraveacutes da mediaccedilatildeo do conceito Buscando uma ideacuteia segura e constante ldquoclara e distintardquo pretendem encerraacute-la numa definiccedilatildeo precisa como se isso fosse estritamente necessaacuterio Apesar de jaacute desconfiarem da existecircncia de outros planos de consciecircncia ainda operam portanto com a pretensa razatildeo supostamente onipotente e pura que natildeo se tranquumliliza se natildeo puder compreender se natildeo for capaz de categorizar e hierarquizar os fenocircmenos dentro de um sistema de mundo total no qual cada coisa possui seu lugar e funccedilatildeo Sempre mais idealista e impulsivo Fedro quer que ela a danccedila de Athiktecirc represente aquilo com que sonha o amor sempre mais nominalista e contido Erixiacutemaco quer que ela represente aquilo que percebe apenas um exerciacutecio do corpo

Talvez porque busque uma postura intermediaacuteria entre esses ldquoextremosrdquopossiacuteveis ou intua que tudo pode ser uma maviosa miragem a burla de algum deus oculto e brincalhatildeo Soacutecrates todavia e apesar de sua quase natural tendecircncia em inquirir sobre as profundezas do ser ou da realidade final insiste em permanecer como aquele que ainda estaacute em busca de sabedoria natildeo como aquele que jaacute a possui como um filoacutesofo natildeo como um saacutebio algueacutem que sabe apenas que nada sabe e portanto nada mais pode afirmar com absoluta certeza que faz da sua ignoracircncia uma profissatildeo de feacute e uma via Nesse momento ele eacuteretratado como o tipo ideal ao qual o Ceticismo Antigo costuma elaborar e insistir tipo que adota como poliacutetica do espiacuterito a luacutecida recusa em afirmar ou em negar o que seja a verdade para assentar-se no aacuterido universo do possiacutevel Como outrora em natildeo raros diaacutelogos de Platatildeo Soacutecrates natildeo se decide por esta ou aquela definiccedilatildeo por esta ou aquela teoria e abandona seus interlocutores com suas opiniotildees e duacutevidas Prefere suspender o juiacutezo permanecer na deleitaacutevel contemplaccedilatildeo sem julgamento sem assentimento da danccedila de Athiktecirc prefere aceitar as incessantes mudanccedilas que constituem essa danccedila e aceitar que essas incessantes mudanccedilas talvez natildeo possam ser cristalizadas por

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um conceito uacutenico e preciso mas tambeacutem talvez natildeo precisem ser cristalizadaspor um conceito uacutenico e preciso prefere aceitar que uma coisa possa receber muitos significados e significados contraditoacuterios entre si e que isso natildeo necessariamente precise ser valorado como algo negativo Mesmo considerando a danccedila de Athiktecirc um incocircmodo um desafio agrave razatildeo Soacutecrates ensaia pensar assim como depois seus amigos ensaiaratildeo que o sentido das coisas surge natildeo pela vontade exclusiva do homem no qual habita mas de uma relaccedilatildeo de uma relaccedilatildeo mdashincessantemdash entre o proacuteprio homem e as proacuteprias coisas Pois a compreensatildeo do mundo pode ocorrer natildeo apenas pelo distanciamento racional mas tambeacutem pela consciente entrega ao fluxo do proacuteprio mundo do qual a arte eacute um dos modelos mais representativos

laquoSOacuteCRATES Oacute meus amigos o que eacute verdadeiramente a danccedilaERIXIacuteMACO [] mdash Que queres de mais claro sobre a danccedila aleacutem da danccedila nela mesma []SOacuteCRATES [] Um olhar frio tomaria com facilidade por demente essa mulher bizarramente desenraizada que se arranca sem cessar da proacutepria forma [] Afinal por que tudo isso mdash Basta que a alma se fixe e faccedila uma recusa para soacute conceber a estranheza e o repulsivo dessa agitaccedilatildeo ridiacutecula Se quiseres alma tudo isso eacute absurdo []FEDRO Queres dizer amado Soacutecrates que tua razatildeo considera a danccedila como uma estrangeira cuja linguagem ela despreza cujos costumes lhe parecem inexplicaacuteveis senatildeo chocantes ou ateacute mesmo totalmente obscenosERIXIacuteMACO A razatildeo por vezes me parece ser a faculdade que nossa alma tem de nada entender de nosso corpo [Grifo do autor]FEDRO [] Athiktecirc me parecia representar o amor []ERIXIacuteMACO Fedro quer a todo custo que ela represente alguma coisaFEDRO Que pensas Soacutecrates [] Crecircs que ela representa alguma coisa SOacuteCRATES Coisa nenhuma caro Fedro Mas qualquer coisa Erixiacutemaco [] Natildeo sentis que ela eacute o ato puro das metamorfosesFEDRO [] natildeo posso ouvir-te sem acreditar em ti nem acreditar sem ter prazer em mim mesmo ao acreditar em ti Mas que a danccedila de Athiktecirc nada represente e natildeo seja acima de tudo uma imagem dos transportes e das graccedilas do amor eis o que considero quase insuportaacutevel de ouvirSOacuteCRATES Eu nada disse de tatildeo cruel ainda mdash Oacute amigos nada faccedilo aleacutem de perguntar-vos o que eacute a danccedila um e outro de voacutes parece respectivamente sabecirc-lo mas sabecirc-lo totalmente em separado Um me diz que ela eacute o que eacute e que se reduz agravequilo que nossos olhos estatildeo vendo e o outro insiste em que ela represente alguma coisa e que natildeo existe entatildeo inteiramente nela mesma mas principalmente em noacutes[Grifo do autor] Quanto a mim meus amigos minha incerteza fica intacta Meus pensamentos satildeo numerosos mdash o que nunca eacute bom sinalraquo449

Eacute certo que o proacuteprio Soacutecrates pergunta laquoo que eacute verdadeiramente a danccedilaraquo a tiacutepica pergunta filosoacutefica cuja resposta revelaria atraveacutes de umprocesso dialeacutetico a essecircncia mesma das coisas Doravante tambeacutem se recusa solenemente a respondecirc-la eacute relativamente reticente quanto agrave sua adesatildeo a esta ou aquela interpretaccedilatildeo Talvez abrace a esperanccedila de poder encontrar um meio-termo uma conciliaccedilatildeo possiacutevel entre a o ldquoromantismordquo de Fedro e o ldquopragmatismordquo de Erixiacutemaco entre o objetivismo de um e o subjetivismo do outro Contudo observando a pura metamorfose da danccedila de Athiktecirc Soacutecrates muda aparentemente de assunto e retorna agrave temaacutetica inicial do diaacutelogo Com maliacutecia ele pergunta mdashapesar de jaacute conhecer a resposta a sua respostamdash a Erixiacutemaco se haacute um remeacutedio natildeo para o corpo mas para a alma para a alma

449 Œ2 pp 161-165

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racional para o que agora surpreendentemente denomina de laquoteacutedio de viverraquo para o taedium vitae Um teacutedio que natildeo tem origem em nenhum infortuacutenio particular mas que surge da extrema lucidez ante a vida Aparentemente essa pergunta surge como um surpreendente despropoacutesito um absurdo tanto para o curso do diaacutelogo como para a visatildeo das preocupaccedilotildees tipicamente socraacuteticas laquoPara curar um mal tatildeo racional [o teacutedio de viver] [] nada de mais moacuterbido em si mesmo nada de tatildeo inimigo da natureza do que ver as coisas como elas satildeoraquo diz Erixiacutemaco

laquoUma fria e perfeita clareza eacute veneno impossiacutevel de se combater O real em estado puro paralisa o coraccedilatildeo Basta uma gota dessa linfa glacial para distender numa alma os mecanismos e as palpitaccedilotildees do desejo exterminar todas as esperanccedilas arruinar todos os deuses que estavam em nosso sangue [] A alma surge diante de si mesma como uma forma vazia e mensuraacutevel mdash Eis que as coisas tais quais satildeo se juntam se limitam e se encadeiam de modo mais rigoroso e mais fatal [] o universo natildeo pode suportar um soacute instante ser apenas o que eacute Eacute estranho pensar que aquilo que eacute o Todo natildeo possa ser suficiente a si mesmo Seu pavor de ser o que eacute fez com que criasse e pintasse mil maacutescaras para si natildeo haacute outra razatildeo para as existecircncias dos mortais Por que existem os mortais mdash Ocupam-se de conhecer [] E o que eacute conhecer mdash Eacute assumir natildeo ser o que se eacute mdash Eis entatildeo os humanos delirando e pensando introduzindo na natureza o princiacutepio dos erros sem limite e essa miriacuteade de maravilhas [] Tudo ameaccedila logo perecer e Soacutecrates em pessoa vem me pedir um medicamento para essa caso desesperado de clarividecircncia e teacutedioSOacuteCRATES [] uma vez que natildeo existe medicamento podes dizer-me ao menos que estado eacute o mais contraacuterio a esse horriacutevel estado de desengano puro lucidez assassina e nitidez inexoraacutevelERIXIacuteMACO Vejo inicialmente os deliacuterios natildeo-melancoacutelicos [] A embriaguez e a categoria das ilusotildees devidas aos vapores capitososSOacuteCRATES Bem Mas natildeo haacute formas de embriaguez que natildeo se devem ao vinhoERIXIacuteMACO Sem duacutevida O amor o oacutedio a avidez embriagam O sentimento de poderSOacuteCRATES Tudo isso daacute cor e gosto agrave vida Mas a chance de odiar ou de amar ou de adquirir grandes quantidades de bens estaacute ligada a todos os acasos do real Natildeo vecircs entatildeo Erixiacutemaco que dentre todas as formas de embriaguez a mais nobre e a mais oposta ao grande teacutedio eacute a embriaguez causada pelos atos Nossos atos e singularmente os atos que potildeem nosso corpo em agitaccedilatildeo podem nos introduzir a um estado estranho e admiraacutevel Eacute o estado mais distante desse triste estado em que haviacuteamos deixado o observador luacutecido e imoacutevel que imaginamos a poucoraquo450

Os atos os atos do corpo eis enfim o remeacutedio para o teacutedio esse laquomal tatildeo racionalraquo esse laquotriste estadoraquo A danccedila de Athiktecirc Soacutecrates a compreende como a embriaguez capaz de purificar a proacutepria razatildeo ao momentaneamente afastaacute-la do desejo por uma realidade verdadeira uniacutevoca e imoacutevel agrave qual Erixiacutemaco conjetura ser paralisante e ao aproximaacute-la da realidade sensiacutevel plural e movente

Ao fim numa espeacutecie de febre de deliacuterio miacutestico e altamente hermeacutetico pouco frequumlente em um homem racional Soacutecrates tambeacutem acaba cedendo ao exerciacutecio hermenecircutico de seus companheiros e interpreta aquilo que contempla Entretanto sua interpretaccedilatildeo daacute-se pela negativa natildeo eacute atraveacutes da definiccedilatildeo de uma palavra natildeo eacute a afirmaccedilatildeo categoacuterica de que as coisas sejam deste ou daquele modo mas simplesmente a afirmaccedilatildeo daquilo que um fenocircmeno pode suscitar pode evocar no espiacuterito em seu caso a evocaccedilatildeo poeacutetica de um vasto siacutembolo o siacutembolo da chama Ao comparar esse fenocircmeno natural ao fenocircmeno

450 Œ2 pp 167-169

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cultural da danccedila do movimento ele simplesmente considera que se tudo o que ocorre ocorre singularmente de modo uacutenico inimitaacutevel irrecuperaacutevel que ocorra entatildeo como a mais perfeita forma possiacutevel laquoCoisa divina e vivaraquo declama ferozmente Soacutecrates laquoMas o que eacute uma chama oacute amigos senatildeo o proacuteprio momento [] E uma chama natildeo eacute tambeacutem a forma intangiacutevel e orgulhosa da mais nobre destruiccedilatildeo mdash O que nunca mais aconteceraacute acontece magnificamente diante de nossos olhos mdash O que nunca mais aconteceraacute deve acontecer o mais magnificamente possiacutevel [] Mas como [o corpo] luta contra o espiacuterito Natildeo percebeis que quer vencer em velocidade e variedade a sua alma mdash Tem estranho ciuacuteme dessa liberdade e dessa ubiquumlidade que ele crecirc que o espiacuterito possui Sem duacutevida o objeto uacutenico e perpeacutetuo da alma eacute bem aquilo que natildeo existe o que foi e natildeo eacute mais o que seraacute e natildeo eacute ainda o que eacute possiacutevel o que eacute impossiacutevel mdash satildeo bem esses os assuntos da alma mas nunca nunca aquilo que eacute E o corpo que eacute o que eacute eis que natildeo pode mais se conter na extensatildeo mdash Onde ficar mdash Que mudar mdash Essa unidade aspira ao papel do Todo Quer representar a universalidade da alma Quer remediar sua identidade pelo nuacutemero de seus atos Sendo coisa explode em acontecimentos mdash Exalta-se [] Essa mulher que ali estava foi devorada por figuras inumeraacuteveis Esse corpo em seus rompantes me propotildee um pensamento extremo assim como abandonamos nossa alma a muitas coisas para as quais ela natildeo eacute feita e lhes exigimos que nos esclareccedila que profetize que adivinhe o futuro encarregando-a ateacute de descobrir o Deus mdash assim o corpo que ali estaacute quer atingir uma posse completa de si mesmo e um grau sobrenatural de gloacuteria Mas acontece-lhe o mesmo do que com a alma para qual o Deus e a sabedoria e a profundeza que lhes satildeo exigidas natildeo satildeo e natildeo podem ser senatildeo momentos vislumbres fragmentos de um tempo estrangeiro saltos desesperados para aleacutem de sua formaraquo451 Todavia natildeo eacute de Soacutecrates mas de Athiktecirc providencialmente calada durante toda a danccedila a derradeira palavra laquoAsilo asilo oacute meu asilo Turbilhatildeoraquo ela grita laquomdash Eu estava em ti oacute movimento e fora de todas as coisasraquo452 Natildeo eacute sem motivo que etimologicamente a palavra athiktecirc

(ldquoἄθικτήrdquo) variaccedilatildeo proveniente do grego antigo ἄθικτος refira-se natildeo

apenas agrave casta e agrave virgem mas tambeacutem ldquoagrave intocadardquo ldquoao que natildeo se deve ou natildeo se eacute capaz de tocar por ser sagradordquo Seraacute ela tambeacutem uma sacerdotisa

O diaacutelogo Lrsquoacircme et la danse revela-se assim uma espeacutecie de polifocircnico discurso a versar natildeo apenas sobre a fixidez das formas mas principalmentesobre as variaccedilotildees das formas que incessantemente o espiacuterito a consciecircncia vecirc nascer e morrer num processo que parece natildeo ter fim No digressivo labirinto de

451 Œ2 pp 171-172452 Œ2 p 176

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seu texto haacute uma relaccedilatildeo relativamente simeacutetrica entre a alma atenta ao tempo passado e futuro como siacutembolo da busca pelo que haacute de uno constante

permanente eterno e racional da busca por algum Ser (τὸ ὄν) e a danccedila atenta ao

tempo presente como siacutembolo da entrega ao que haacute de muacuteltiplo inconstante

impermanente temporal e irracional da entrega ao Devir (γίγνεσθαι) Sobre a

intensa relaccedilatildeo de todos esses poderosos pares de conceitos assim polarizados conta-se que Platatildeo mdashque fora disciacutepulo de Craacutetilo que por sua vez fora disciacutepulo de Heraacuteclitomdash professou a princiacutepio a doutrina heraclitiana domovimento substancial e somente depois apoacutes encontrar Soacutecrates acabou tambeacutem por aceitar a ideacuteia da existecircncia de um substrato eterno e imutaacutevel fundindo em sua filosofia tambeacutem o pensamento ldquoimobilistardquo de Parmecircnides Dir-se-ia ainda um tanto excessiva e esquematicamente que parte da Histoacuteria da Filosofia Ocidental a partir de entatildeo pode ser tambeacutem compreendida como um embate uma luta constante e sem teacutermino aparente entre todos esses pares de conceitos polarizados e a todos as outras polaridades que eles evocam atraem e repelem O diaacutelogo Lrsquoacircme et la danse natildeo deixa de ser herdeiro desse embate dessa luta Demonstra atraveacutes desse Soacutecrates valeacuteryano que a alma e a danccedila (ou o corpo que danccedila) talvez aspirem a realizar uma mesma meta imanente a ambos e em ambos designada por expressotildees distintas respectivamente laquodescobrir o Deusraquo ou laquouma posse completa de si mesmoraquo Todavia isso eacute apenas um desejo um ideal pois a alma parece ser incapaz de alcanccedilar algo aleacutem dos fenocircmenos e a danccedila parece ser incapaz de alcanccedilar a sua proacutepria perfeiccedilatildeo Ser torna-se apenas a aspiraccedilatildeo de ser Portanto haacute que se aceitar o Devir o movimento entregar-se a ele ao fluxo incessante do mundo agraves passagens O que conduz agrave seguinte questatildeopor que deveria haver portanto um antagonismo necessaacuterio entre o compreender e o criar entre o filoacutesofo que se distancia das coisas e do corpo e o artista que se entrega agraves coisas e ao corpo Essa questatildeo em grande parte presente no pensamento de Valeacutery eacute esboccedilada nesse diaacutelogo de vivos Lrsquoacircme et la danse mas plenamente desenvolvida no Eupalinos no qual a ldquoverdaderdquo eacute revelada agravequeles que dialogam no qual o teacutedio referido por Soacutecrates se evidencia de modo inevitaacutevel e atroz no qual o foco recai justamente sobre a alma e o corpo na medida em que se trata de um diaacutelogo de mortos

612 NO MUNDO DOS MORTOS

A morte eacute tradicionalmente um dos fenocircmenos naturais que mais instigam agrave reflexatildeo e agrave imaginaccedilatildeo humanas Com frequumlecircncia o medo eacute a ela associado Muitos tendem a encaraacute-la natildeo como um processo contiacutenuo e imanente agrave proacutepria vida mas como oposta a ela como um momento uacutenico a

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findar a existecircncia ou como uma cesura a separar duas modalidades da existecircncia a do corpo pereciacutevel limitado no tempo e no espaccedilo e a da almaque perdura em alguma outra dimensatildeo A partir dessa crenccedila mais ou menos generalizada mais ou menos dominante jaacute foi dito que se natildeo a totalidade ao menos a grande parte das metafiacutesicas (ou grande parte delas das que se mesclam com um pensamento mais estritamente religioso) seriam oriundas consciente ou inconscientemente de uma reflexatildeo sobre a morte ou sobre o apoacutes a morte o que pressuporia em natildeo raros casos uma reflexatildeo paralela sobre a assim considerada brevidade da vida e sobre o destino da alma sobre a finitude humana mesmo que tais metafiacutesicas a isso natildeo se referissem direta ou explicitamente Basta lembrar dos espirituosos ditos de um Ciacutecero e de um Michel de Montaigne amiuacutede voltados a refletir sobre a melhor forma de se viver Dir-se-ia natildeo sem ironia que por serem mortais os homens filosofam deuses imortais por definiccedilatildeo natildeo necessitariam de filosofia

Num dos seus mais ceacutelebres mitos imagem cujo padratildeo eacute surpreendentemente mais ou menos recorrente em outras culturas e temporalidades Platatildeo tambeacutem reflete sobre a existecircncia do e no ldquomundo dos

mortosrdquo Em seu diaacutelogo Fedro ele imagina um lugar supra-celeste (τόπος ὑπερουράνιος) que laquonenhum poeta cantou nem jamais cantaraacute

dignamenteraquo453 e onde a alma tanto dos homens quanto dos deuses eacute comparada a um carro alado composto por um cocheiro representante da razatildeo e por dois cavalos ambos doacuteceis no caso da alma dos deuses um doacutecil e o outro indoacutecil no caso da alma dos homens Numa eterna cavalgada a alma dos homens ao contraacuterio da alma dos deuses eacute aquela que naturalmente natildeo conseguiria manter por muito tempo o equiliacutebrio Daiacute a queda daiacute as sucessivasreencarnaccedilotildees no ldquomundo dos vivosrdquo e tudo o que adveacutem ao se ter um corpo pereciacutevel que nasce cresce e envelhece Em seu estado original ou natural a alma dos homens tambeacutem seria capaz de contemplar de acordo com o seu maior ou menor grau de pureza uma maior ou menor quantidade destes ldquoentes

eternosrdquo natildeo sujeitos ao devir do mundo sensiacutevel material as Ideacuteias (εἶδος)

formas modelos ou arqueacutetipos regras ou leis ldquosobretudordquo dos objetosmatemaacuteticos e dos objetos de valores (como o belo o bom o justo etc)454

453 PLATO Phaedrus I no 36 trad Harold North Fowler org Jefrey Henderson Harvard University Press Loeb Classical Library Cambridge amp London 2005 247 C-D sect 27 p 475454 Note-se que o conceito de Ideacuteia em Platatildeo natildeo eacute tatildeo determinado No diaacutelogo Parmecircnides por exemplo lecirc-se que os objetos dos quais haacute certamente participaccedilatildeo nas Ideacuteias satildeo os objetos matemaacuteticos e os objetos de valor (o belo o bom o justo etc) quanto aos objetos sensiacuteveis materiais como o homem o fogo a aacutegua etc existe duacutevida se possuem participaccedilatildeo nas Ideacuteias quanto a outros objetos sensiacuteveis materiais desprovidos de valor como o cabelo a lama a sujeira etc estes certamente natildeo possuem participaccedilatildeo nas Ideacuteias (Cf PLATO Parmenides trad Harold North Fowler org Jefrey

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Quando entretanto envolta por um corpo a alma perceberia apenas as coisassensiacuteveis materiais com exceccedilatildeo daquela que se dedicasse agrave filosofia capaz ao menos de ter um certo vislumbre das Ideacuteias O que insinuaria certa relaccedilatildeo certo ponto de contato certa participaccedilatildeo entre o ldquomundo dos mortosrdquo e o ldquomundo dos vivosrdquo455 Supotildee-se que depois da morte o homem voltando a ser somente alma voltando a ser aquilo que sempre foi poderaacute novamente contemplar aquilo que em vida natildeo era tatildeo capaz456

Toda essa cosmovisatildeo poderia facilmente sugerir a escrituraccedilatildeo de um diaacutelogo de mortos Influenciado por Menippus de Gadara (seacuteculo III aC) o aventureiro semita Luciano de Samoacutesata (seacuteculo II dC) escreve entre tantas obras o seu ceacutelebre Diaacutelogo dos Mortos457 e lega uma influecircncia natildeo menos proveitosa para o seacuteculo XVI francecircs com seus inuacutemeros personagens homens heroacuteis e deuses a satirizar a fama a gloacuteria e a vaidade dos homens No seacuteculo XVII o cartesiano Bernard le Bouvier de Fontenelle e o ceacutelebre arcebispo de Combrai Franccedilois de Salignac de la Mothe-Feacutenelon tambeacutem publicam as suas versotildees

Contudo talvez tenha sido Valeacutery o autor que realmente explorou de modo expliacutecito essa rica possibilidade formal descrevendo a imaginaacuteria aventura intelectual e memorialista de um Soacutecrates e de um Fedro ambos desencarnados ante um estranho mundo natildeo-sensiacutevel natildeo-material No seu ceacutelebre Dialogues des morts o Eupalinos458 (1921) ele natildeo se questiona estrategicamente sobre o porquecirc do fenocircmeno da morte pois a morte laquoessa aventura extraordinaacuteria essa modificaccedilatildeo maacutegica essa coisa incriacutevel que acontece a todos os outros enquanto eles satildeo outrosraquo459 laquonatildeo julga a vida Natildeo eacute objeto da vidaraquo460 Tampouco em momento algum refere-se a uma feacuterrica loacutegica de recompensas e de puniccedilotildees a qualquer tipo de salvaccedilatildeo ou perdiccedilatildeo que supostamente a alma estaria sujeita como frequumlentemente ocorre nos grandes sistemas religiosos do

Henderson Harvard University Press Loeb Classical Library Cambridge amp London 2002 130 A-E pp 208-213)455 Cf PLATO Phaedrus I no 36 trad Harold North Fowler org Jefrey Henderson Harvard University Press Loeb Classical Library Cambridge amp London 2005456 Cf PLATO Phaedo I no 36 trad Harold North Fowler org Jefrey Henderson Harvard University Press Loeb Classical Library Cambridge amp London 2005457 Cf LUCIAN Dialog of the dead VII no 431 trad M D Macleod org G P Goold Harvard University Press Loeb Classical Library Cambridge amp London 1992 pp 1-175458 O proacuteprio Valeacutery numa carta a Paul Souday historia como veio a escrever esse diaacutelogo de circunstacircncia laquoEu recebi a comissatildeo de escrever um texto para o aacutelbum Architectures que eacute uma coleccedilatildeo de gravuras e de plantas Esse texto que deveria ser magnificamente impresso in-folio e exatamente ajustado agrave decoraccedilatildeo e agrave paginaccedilatildeo da obra pediram-me para lhe dar um tamanho exato de 115800 palavras 115800 caracteres Eacute verdade que eram caracteres suntuosos Eu aceitei Meu diaacutelogo entatildeo foi muito longo Eu o diminuiacute e depois um pouco mais curto mdash eu o aumentei Acabai por considerar essas exigecircncias muito interessantes Mas eacute possiacutevel que o texto mesmo tenha sofrido um poucoraquo (Œ1 p 1401 ou LQ p 147)459 Π 1925-1925 Texte 28 (X 657)460 Π 1921-1922 Texte 11 (VIII 471)

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Ocidente Natildeo haacute a faacutecil evocaccedilatildeo de uma doutrina que julgue o ser humano pondo minuciosamente numa balanccedila os viacutecios e as virtudes as intenccedilotildees e as accedilotildees que possa ter cometido ou deixado de cometer em vida para entatildeo marcar a sua pertenccedila na eternidade O poeta purga seu diaacutelogo desse tipo de polecircmica religiosa e de qualquer tentativa de promulgar uma soteriologia uma moral

Escrito como diz a sua calorosa epiacutegrafe simplesmente laquoPara agradarraquo (laquoΠρός χάρινraquo461) e natildeo para doutrinar o Eupalinos natildeo deixa de ser uma poderosa

representaccedilatildeo de um pensamento sobre a vida e para a vida esta eacute o que verdadeiramente importa esta eacute o que parece ser sub-repticiamente a meta capital de todo esse diaacutelogo

A princiacutepio o fiel disciacutepulo busca o seu querido mestre que como habitualmente fazia em vida havia se isolado agora natildeo dos outros vivos mas dos outros mortos nas laquofronteiras deste impeacuterio transparenteraquo462 para perder-se em si mesmo Questionado por Fedro sobre o que estaacute pensando Soacutecrates daacute o insoacutelito tom de todo o diaacutelogo laquoEspera Natildeo posso responder Bem sabes que nos mortos a reflexatildeo eacute indivisiacutevel Estamos agora muito simplificados para que uma ideacuteia natildeo nos absorva ateacute o final de seu curso Os viventes tecircm um corpo que lhes permite sair do conhecimento e neles reentrar Satildeo feitos de uma casa e de uma abelharaquo463 Doravante como bons gregos que se comprazem em tudo discutir eles procuram friamente avaliar a nova e estranha condiccedilatildeo na qual se encontram O mundo percebido pelos sentidos o mundo dos vivos por mais caoacutetico que possa agraves vezes parecer ou ser assim considerado natildeo deixa de ter uma ordenada heterogeneidade de ldquocoresrdquo e ldquoformasrdquo haacute uma loacutegica talvez natildeo nele mas que dele pode ser depreendido Essa propriedade e a contiacutenua apariccedilatildeo e desapariccedilatildeo de fenocircmenos que a razatildeo avalia como semelhantes ou diferentes permitem o prodigioso desenvolvimento mesmo da linguagem e da ciecircncia jaacute que estas se assentam em regularidades Dir-se-ia que esse mundo natildeo eacute um caos uma desordem mas um cosmos uma ordem O ser humano qualquer um pode nele mdashe ao fazer parte delemdash distinguir um objeto do outro pode nomeaacute-lo e passar esse nome agraves geraccedilotildees futuras na relativa esperanccedila que os objetos continuem mais ou menos como satildeo pode observar onde esta paacutegina comeccedila e termina e assim reconhececirc-la e chamaacute-la de paacutegina assim como tambeacutem pode distinguir o tamanho ou a extensatildeo de seu corpo mediante a diferenciaccedilatildeo de outros corpos que isto eacute sua matildeo e isto a pena que sua matildeo segura e com a qual escreve

461 Œ2 p 79462 Œ2 p 79463 Œ2 p 79

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Em seu comportamento o mundo dos mortos descrito e induzido por Valeacutery contrasta enormemente com um assim posto mundo dos vivos a princiacutepio natildeo se distancia em muito do que segundo o proacuteprio Soacutecrates de Platatildeo deve ser laquoa realidade que eacute verdadeiramente sem cor sem forma impalpaacutevel e que soacute pode ser contemplada pela razatildeo piloto da almaraquo464 Contudo diferentemente do que essa razatildeo possa habitualmente conjeturar eacute um lugar esteacuteril sem referecircncias fluido em demasia Os mortos satildeo assim incapazes de precisar os contrastes e os limites de distinguir onde ou quando uma coisa termina e outra comeccedila consequumlentemente descrevecirc-las nomeaacute-las torna-se quase impossiacutevel Capturados por essa celerada realidade Soacutecrates e Fedro estatildeo como que impedidos de retirar do que percebem representaccedilotildees fixas e portanto generalizaccedilotildees das quais se possa novamente especular Inventar uma nova linguagem e uma nova ciecircncia uma nova filosofia fazer teorias a partir desse mundo tais tarefas seriam como que impossiacuteveis e ingratas jaacute que a linguagem e a ciecircncia e mesmo a filosofia satildeo ao menos em seus movimentos iniciais derivadas da incessante relaccedilatildeo com os fenocircmenos sensiacuteveis materiais derivadas da experiecircncia Porque nesse imortal mundo onde as almas aportam tudo eacute pura passagem tempo sem mateacuteria tempo mdashparadoxalmentemdash sem espaccedilo

laquoFEDRO Comeccedilo a enxergar algo Mas nada distingo Meus olhos por instantes seguem tudo o que passa e o que deriva mas perdem-se antes de ter discernido Se eu natildeo estivesse morto ficaria nauseado com esse movimento tatildeo triste e irresistiacutevel Ou entatildeo sentir-me-ia constrangido a imitaacute-lo agrave maneira dos corpos humanos adormeceria para tambeacutem fluir []FEDRO Creio a cada momento que vou discernir alguma forma mas o que acreditei ver natildeo desperta em meu espiacuterito a menor similitudeSOacuteCRATES Eacute que assistes [] ao verdadeiro fluir dos seres Desta margem tatildeo pura vemos todas as coisas humanas e as formas naturais movidas segundo a velocidade proacutepria de sua essecircncia Somos como o sonhador em cujo seio figuras e pensamentos bizarramente alterados pela proacutepria fuga os seres se compotildeem com suas mudanccedilas Aqui tudo eacute indiferente e no entanto tudo importa Os crimes engendram imensos benefiacutecios e as maiores virtudes desencadeiam consequumlecircncias funestas o julgamento natildeo se fixa em parte alguma a ideacuteia faz-se sensaccedilatildeo sob o olhar e cada homem arrasta consigo uma sucessatildeo de monstros inextrincavelmente surgidos de seus atos e das formas sucessivas de seu corpo Penso na presenccedila e nos haacutebitos dos mortais nesse curso tatildeo fluido e que estive entre eles tratando de ver todas as coisas como as vejo precisamente agora Eu colocava a Sabedoria na postura eterna em que estamos Mas daqui tudo eacute irreconheciacutevel A verdade estaacute diante de noacutes e natildeo compreendemos mais nadaraquo465

A verdade (ἀληθής) natildeo a pragmaacutetica natildeo a postulada pela correta

relaccedilatildeo entre proposiccedilatildeo e representado como adaequatio intellectus et rei mas a ontoloacutegica enquanto descobrimento ou desvelamento daquilo que estaacute oculto enquanto passagem do sensiacutevel para o inteligiacutevel enquanto abertura para o real o homem que eacute capaz de reconhececirc-la torna-se incapaz de compreendecirc-la a verdade miseravelmente pouco ou de nada lhes serve Eis assim que se

464 PLATO Phaedrus I no 36 trad Harold North Fowler org Jefrey Henderson Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 2005 247C-D sect27 pp 474-475465 Œ2 pp 80-81

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configura a elegante e capital ironia de Valeacutery e a partir da qual o seu diaacutelogo de mortos se desenvolve as almas errantes de Fedro e de Soacutecrates natildeo encontram mdashpara grande espanto de ambos os filoacutesofosmdash algo que poderiam dizer com convicccedilatildeo serem as Ideacuteias466 nenhum arqueacutetipo nenhuma hierarquia celeste nenhuma entidade eterna e nenhum Demiurgo os aguardavam a eles que buscaram em vida caminhar na retidatildeo da justiccedila e da virtude tampouco ocorre nenhum julgamento das almas como jaacute no Fedro se anuncia Nada daquilo que foi ldquoutopicamenterdquo prometido por uma doutrina que eles mesmos (ou Platatildeo) desenvolveram (ou reinventaram a partir da experiecircncia com a tradiccedilatildeo religiosa grega) no exerciacutecio especulativo de seus diaacutelogos terrenos ali se encontra Naturalmente tampouco a mateacuteria as coisas ou os fenocircmenos mdashos simulacros imperfeitos das Ideacuteiasmdash Nesse estranho e conjetural mundo dos mortos a essecircncia eacute movente e natildeo estaacutetica excessivamente movente a ponto de a tudo liquidar ou transformar o que em vida se considerava bom em morte pode ser considerado mal os opostos se misturam ou se invertem

Aqui evidencia-se que o diaacutelogo Eupalinos propositadamente ou natildeo dialoga com os diaacutelogos platocircnicos mais precisamente com o proacuteprio Fedro Neste agraves margens do rio Ilisso em meio a uma caminhada procurando responder a quem se deve agradar discutindo sobre a beleza e o amor Soacutecrates conta a um jovem Fedro justamente o mito da alma como carro alado e uma das versotildees da sua Teoria das Ideacuteias naquele no mundo dos mortos eacute Fedro que agora conta a Soacutecrates suas justificadas desconfianccedilas para com as reais vantagens que uma alma totalmente liberta do corpo venha a ter e consequumlentemente seus sentimentos para com a proacutepria noccedilatildeo daquilo que venha a ser realmente o polivalente conceito de Ideacuteia particularmente o da

Ideacuteia do Belo (κάλος) mdashagrave qual o Soacutecrates valeacuteryano e Eupalinos perseguemmdash

Como um ousado aprendiz que honra seu mestre ao contradizecirc-lo ao refutaacute-lo ele a questiona e a transforma passa a natildeo (mais) acreditar Nela comorealidade em si Onde o Belo se encontra se natildeo haacute objetos sensiacuteveis dos quais se possa dizer que satildeo ou natildeo verdadeiramente belos A beleza eacute sempre inexoravelmente transitoacuteria a beleza eacute portanto para manter-se no registro do espiacuterito antigo uma condiccedilatildeo possiacutevel daquilo que natildeo eacute Ela soacute poderia ocorrer na vida natildeo na morte na mateacuteria natildeo no espiacuterito no que passa natildeo no que fica em tudo o que eacute ldquoirrealrdquo A Beleza deriva das belas coisas O seu conceito como qualquer outro que natildeo tenha como ser mesurado ou quantificado como qualquer outro qualificativo e abstraccedilatildeo natildeo eacute objetivo condiciona-se agraves subjetividades e agraves culturas aos interesses (conscientes ou inconscientes) daqueles que o professam ao modo como determinados padrotildees

466 Sobre a Teoria das Ideacuteias em Paul Valeacutery cf C1rsquo pp 545 622 e 624 cf C2rsquo pp 954 e 1361

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formais satildeo valorados Porque todo conceito deriva de uma experiecircncia sensiacutevel de um choque entre um eu e um natildeo-eu E a beleza mdashque tantas discussotildees suscitamdash a isso natildeo foge

laquoFEDRO [] O que haacute de mais belo natildeo figura no eterno [] Nada de belo eacute separaacutevel da vida e vida eacute o que morreSOacuteCRATES Eacute possiacutevel dizecirc-lo desse modo Mas a maior parte dos homens tem da beleza uma noccedilatildeo imortalFEDRO Eu te direi Soacutecrates que a beleza segundo o Fedro que eu fuiSOacuteCRATES Platatildeo natildeo estaacute nessas paragens FEDRO Falo contra eleSOacuteCRATES Pois bem falaFEDRO natildeo reside em certos raros objetos nem mesmo nesses modelos situados fora da natureza e contemplados pelas almas mais nobres como exemplares de seus desenhos e os tipos secretos de seus trabalhos coisas sagradas e das quais conviria falar com as proacuteprias palavras do poeta

Gloacuteria do longo desejo Ideacuteias [Gloire du long deacutesir Ideacutees]SOacuteCRATES Qual poetaFEDRO O admirabiliacutessimo Stephanos467 que apareceu tantos seacuteculos depois de noacutes Mas em meu sentimento a ideacuteia dessas Ideacuteias das quais nosso maravilhoso Platatildeo eacute o pai eacute excessivamente simples e tambeacutem pura demais para explicar a diversidade das Belezas a mudanccedila das preferecircncias dos homens o esquecimento de tantas obras que haviam sido elevadas agraves nuvens as criaccedilotildees novas e as ressurreiccedilotildees impossiacuteveis de prever Haacute muitas outras objeccedilotildeesraquo468

A partir dessa proposta de discurso apoacutes o espanto Soacutecrates e Fedro refletem e divagam sobre algo mais especiacutefico em que o conceito mesmo de beleza costuma ser atrelado sobre a arte e os procedimentos artiacutesticos sobre a accedilatildeo o fazer a arte de um distanciado amigo de Fedro o enigmaacutetico arquiteto Eupalinos de Meacutegara469 a quem Soacutecrates desconhecia e para quem ao fim acaba rendendohomenagens Na eternidade na qual se encontram restam a eles apenas a rememoraccedilatildeo e a conversa resta a eles talvez esta atividade que reduzida agrave sua maacutexima simplicidade soacute necessita de consciecircncia e de memoacuteria das experiecircncias que natildeo podem mais se repetir a filosofia que agora adquire um caraacuteter de consolaccedilatildeo Visionaacuterios de um passado a ser revistado continuamente eles acabam trocando pensamentos quase melancoacutelicos como anjos que se debruccedilam sobre a preocupada cabeccedila dos imortais suas vozes natildeo versam mais sobre o Ceacuteu e o incondicionado mas sobre a Terra e o condicionado No mundo dos mortos os mortos se voltam para o mundo dos vivos

Assim da colocaccedilatildeo do Fedro valeacuteryano mdashmais malicioso do que o singelo que se apresenta na versatildeo platocircnicamdash de querer falar contra Platatildeo inicia-se 467 Valeacutery refere-se a Steacutephane Mallarmeacute deste o verso citado pertence ao poema Prose (pour des Esseintes) publicado pela primeira vez na La Revue indeacutependante em 1885 (Cf MALLARMEacute Steacutephane Œuvres complegravetes I Gallimard Bibliothegraveque de la Peacuteiade Paris 1998 pp 28-30)468 Œ2 pp 87-88469 laquoO nome de Eupalinos eu o adquiriraquo revela Valeacutery laquoquando procurava o nome de um arquiteto na Encyclopeacutedie Berthelot no artigo ldquoArquiteturardquo Aprendi depois por um trabalho do saacutebio helenista Bidez (de Grand) que Eupalinos mais engenheiro do que arquiteto cavou canais e construiu poucos templos eu o emprestei minhas ideacuteias como o fiz com Soacutecrates e Fedro Ademais eu nunca estive na Greacutecia e quanto ao grego eu sou infelizmente limitado um escolar dos mais mediacuteocres que se apega ao original de Platatildeo e o encontra nas traduccedilotildees terrivelmente longo e por vezes aborrecidoraquo (Œ2p 1402 ou LQ p 215)

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uma engenhosa criacutetica agrave antiga metafiacutesica idealista Essa criacutetica pode ser enunciada em siacutentese pelo seguinte paralelo se os diaacutelogos platocircnico-socraacuteticos tecircm na pluralidade dos seus interesses e contradiccedilotildees como uma das metas centrais a descriccedilatildeo o elogio e a promulgaccedilatildeo do Mundo das Ideacuteias daquilo que eacute impereciacutevel imutaacutevel os breves diaacutelogos socraacuteticos de Valeacutery mdashdo qual o Eupalinospode ser compreendido como a sua versatildeo mais acabada e completa aquele que cumpre essa concepccedilatildeo com mais vigormdash referem-se quase vinte quatro seacuteculos depois apoacutes a secularizaccedilatildeo de grande parte da civilizaccedilatildeo e o advento da Ciecircncia Moderna ao Mundo dos Fenocircmenos daquilo que eacute pereciacutevel mutaacutevel se uns se atecircm agrave realidade espiritual os outros se atecircm agrave realidade material Dir-se-ia talvez um tanto excessivamente que os uacuteltimos situam-se apesar de suas despretensiosas brevidades nas antiacutepodas dos primeiros todavia nada impede que eles tambeacutem natildeo possam ser considerados como estranhas continuaccedilotildees dos primeiros Afinal tudo o que se estabelece como criacutetica tambeacutem se estabelece dialeticamente como herdeiro Uma inversatildeo do platonismo sim talvez sejajustamente isso o que no Eupalinos se realiza ou se busca realizar A fidelidade aTerra e ao Corpo470 como promulga Nietzsche eacute nesse diaacutelogo de mortos irocircnica e humildemente representada natildeo como uma dogmaacutetica e intransigente defesa da dimensatildeo sensiacutevel material mas como suave e estranha ficccedilatildeo que apenas afirma a realidade e a importacircncia dessa dimensatildeo sensiacutevel material sem desprezar as abstraccedilotildees e a razatildeo do espiacuterito E afirma justamente para a proacutepria vida do espiacuterito para o proacuteprio programa de autoconsciecircncia valeacuteryano

6121 A ORACcedilAtildeO DE EUPALINOS

Nessas condiccedilotildees compreende-se sem duacutevida qual eacute para mim a funccedilatildeo da poesia Eacute alimentar o espiacuterito do homem fazendo-o desembocar no cosmo Basta rebaixar nossa pretensatildeo de dominar a natureza e elevar nossa pretensatildeo de fazer fisicamente parte dela para que a reconciliaccedilatildeo tenha lugar

Francis Ponge Meacutetodos

Durante muito tempo foi insistentemente engendrada e propagada a antropocecircntrica crenccedila de que este mundo mdashpor se degenerar por se estar em constante movimento por ser uma derivaccedilatildeo do pecado original ou por qualquer outro motivo que a isso se relacionemdash eacute essencialmente mal corrompido e tudo que nele se insira todas as criaturas todas as invenccedilotildees e artes humanas tambeacutem compartilham em maior ou menor grau dessa deacutebil natureza A filosofia de Platatildeo e sua posterior apropriaccedilatildeo pelo Judaiacutesmo e pelo Cristianismo promoveram em muito essa cosmovisatildeo a tal ponto que se tornou em maior ou menor grau uma relativa constante na mentalidade do

470 Cf DELEUZE Gilles Platatildeo e o Simulacro in Loacutegica dos Sentidos trad Luiz Roberto Salinas FortesPerspectiva Satildeo Paulo 2000

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Ocidente E se hoje apoacutes o advento da Ciecircncia Moderna da industrializaccedilatildeo e do processo de laicizaccedilatildeo jaacute natildeo eacute tatildeo operante e jaacute tenha sido intensamente criticada inclusive pelo proacuteprio Cristianismo as caracteriacutesticas morais a ela atreladas seus duros elementos psicoloacutegicos transcendidas de seu contexto original como pecado culpa e remorso ainda o satildeo persistem Atrelado a isso quiccedilaacute o que mais sofreu com isso foi o corpo Este foi definido por Platatildeo e principalmente por Aristoacuteteles como um instrumento da alma mas tambeacutem como uma prisatildeo a obliterar e a degenerar a proacutepria alma a impedi-la de ser o que plenamente eacute

Como criacutetica a essa uacuteltima concepccedilatildeo e ao que ela costuma acarretar levanta-se parte do pensamento moderno jaacute um tanto incapaz de suportar tal aversatildeo aos desejos e aos afetos frequumlentemente condicionados pela dimensatildeo fiacutesica do mundo assim como Valeacutery que nunca deixou de escrever paradoxalmente entre a voluacutepia das sensaccedilotildees e o ascetismo do intelecto laquopelo

olhar do espiritualraquo sentencia o poeta em seu diaacutelogo Περὶ τῶν τοῦ θεοῦ -

Ou des choses divines laquoo mundo mdash humano eacute maldito mdashraquo471 Nesse sentido o Eupalinos eacute mesmo que sub-repticiamente mesmo que na multiplicidade de suas tatildeo diversas reflexotildees um dos seus mais incisivos escritos natildeo se limita apenas ao questionamento da doutrina das Ideacuteias platocircnicas atraveacutes da ausecircncia destas no mundo dos mortos mas tambeacutem vai ao questionamento da tradicional desvalorizaccedilatildeo sofrida pelo corpo desvalorizaccedilatildeo que em parte surge de uma apropriaccedilatildeo ou interpretaccedilatildeo da proacutepria Teoria das Ideacuteias platocircnicas assim como de tantas outras metafiacutesicas idealistas Inverter o platonismo natildeo eacute portanto mera criacutetica a Platatildeo pois muitas vezes a tradiccedilatildeo que leva seu nome dele se distancia inverter o platonismo eacute sobretudo desconfiar da crenccedila segundo a qual o importante para a vida transcende necessariamente a proacutepria vida segundo a qual a dimensatildeo do fenocircmeno o mundo transitoacuterio que aos sentidos assim se apresenta eacute numa suposta hierarquia eacuteticado cosmos inferior agrave dimensatildeo da nuacutemeno agraves construccedilotildees mentais que representam supostas estruturas eternas e imutaacuteveis inverter o platonismo eacute portanto conferir um outro valor ao corpo e agraves coisas do corpo Inserido numa sociedade que tende a aceitar com mais toleracircncia essa inversatildeo na medida em que ela jaacute vem se operando em maior ou menor grau como que naturalmente desde a quase inevitaacutevel cesura entre metafiacutesica tradicional e Ciecircncia Moderna o Eupalinos de Valeacutery torna-se assim um verdadeiro discurso agrave aceitaccedilatildeo da materialidade do mundo e a vaacutelida tentativa de atraveacutes de atividades como ciecircncia teacutecnica e arte transformar mesmo que passageiramente mesmo que de modo natildeo duraacutevel essa materialidade sem a necessidade de uma crenccedila qualquer em

471 Π Folio 108

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um outro transcendente que a sustente e a justifique que conforte e console Por que compreender alma e corpo como duas substacircncias distintas opostas ou contraacuterias por que ao se almejar a felicidade eterna acabe-se por adquirir uma natildeo rara aversatildeo ao corpo e ao mundo sensiacutevel material como se assim se pudesse afastar do sofrimento que adveacutem do apego ao proacuteprio corpo e ao proacuteprio mundo sensiacutevel material Natildeo seria isso ignorar ou querer ignorar que natildeo eacute necessaacuterio sofrer se ao admirar a beleza que sente ante a ocorrecircncia de um determinado fenocircmeno aceitar que este iraacute nascer crescer envelhecer morrer e se transformar em algo outro que este natildeo dura para sempre

Valeacutery defende assim pela poesia em prosa de seu diaacutelogo de mortos a possibilidade dessa perspectiva a importacircncia do corpo sobretudo para a consciecircncia que soacute entatildeo plenamente se desenvolveraacute atraveacutes dele laquoO pensamento natildeo eacute seacuterio senatildeo pelo corporaquo472 afirma laquoEacute a apariccedilatildeo do corpo que daacute o seu peso sua forccedila suas consequumlecircncias e seus efeitos definitivosraquo473

laquoTodo Sistema filosoacutefico no qual o Corpo do homem natildeo tem um papel fundamental eacute inepto inaptoraquo474 laquoO filoacutesofo natildeo tem o inteacuterprete do corporaquo475 E tais reflexotildees esparsas natildeo deixam de estar relativamente proacuteximas da filosofia de Nietzsche476 segundo a qual laquoaquele que estaacute desperto aquele que eacute saacutebio diz sou o corpo todo e nenhuma outra coisa e a alma eacute somente uma palavra para designar algo no corpo O corpo eacute uma grande razatildeo uma pluralidade dotada de um uacutenico sentido uma guerra e uma paz um rebanho e um pastorraquo477

Em favor dessa revalorizaccedilatildeo redentora do mundo sensiacutevel material e por conseguinte do corpo Fedro evoca estrategicamente caras lembranccedilas seus diaacutelogos com Eupalinos o arquiteto que lhe mostrou como executar uma arte que diferentemente do que se possa esteticamente idealizar eacute sobretudo um embate constante e iacutentimo com as possibilidades e os limites da natureza da mateacuteria Para surpresa de Soacutecrates os fins do arquiteto natildeo lhe parecem ser tatildeo diferentes dos promulgados pelos filoacutesofos pois natildeo se reduzem apenas a questotildees de ordem pragmaacutetica como a busca da funcionalidade de um edifiacutecio e da beleza que este cumpre suscitar mas tambeacutem a si mesmo ao autoconhecimento socraacutetico ou agrave autoconsciecircncia valeacuteryana laquoQuanto mais medito sobre minha arteraquo diz o arquiteto a Fedro laquomais a exerccedilo quanto mais penso e faccedilo mais sofro e me regozijo como arquiteto mdash e mais me sinto eu mesmo

472 C1rsquo p 1120 473 C1rsquo p 1120 474 C1rsquo p 1124475 Π Folio 107476 Cf GAEgraveDE Edouard Valeacutery et Nietzsche Gallimard Paris 1962477 NIETZSCHE Friedrich Asiacute habloacute Zaratustra trad Andreacute Sanches Pascual Alianza Editorial Madrid 1996 p 60

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com voluacutepia e clareza sempre mais precisas [] avanccedilo em minha proacutepria edificaccedilatildeo aproximo-me de tatildeo exata correspondecircncia entre meus desejos e minhas forccedilas que tenho a impressatildeo de haver feito da existecircncia que me foi dada uma espeacutecie de obra humana De tanto construir disse-me sorrindo creio ter-me construiacutedo a mim mesmoraquo478 laquoConstruir-se conhecer-se a si mesmo satildeo dois atos ou natildeoraquo479 pergunta-se Soacutecrates A resposta a essa capital pergunta para Valeacutery eacute naturalmente afirmativa conhecer-se tambeacutem eacute construir-se Conhecer-se eacute agir-se fazer-se Contudo para um Soacutecrates valeacuteryano que como o platocircnico radicalmente diz laquojamais tive outra prisatildeo aleacutem do meu corporaquo480 resta a Fedro referir-se ao ideal de Eupalinos laquoImagina pois com nitidez um mortal bastante puro razoaacutevel sutil e tenaz poderosamente armado por Minerva para meditar ateacute o fundo do seu ser logo ateacute o extremo da realidaderaquo assim propotildee o arquiteto laquoessa estranha alianccedila de formas visiacuteveis com efecircmeras combinaccedilotildees de sons sucessivos pensa de que origem iacutentima e universal se aproximaria a que precioso ponto se alccedilaria que deus encontraria em sua proacutepria carne E possuindo-se enfim nesse estado de divina ambiguumlidade propusesse a si proacuteprio construir natildeo sei quais monumentos [] Imagina que edifiacutecios [] Certa vez estive infinitamente perto de experimentaacute-lo mas somente da maneira como possuiacutemos durante um sonho o objeto amado Posso apenas falar-te das aproximaccedilotildees a algo tatildeo grandioso Ao anunciar-se caro Fedro difiro logo de mim mesmo [] Sou completamente outro eu [] As forccedilas acorrem [] Ei-las carregadas de clareza e de erro o verdadeiro e o falso brilham igualmente em seus olhos [] Esmagam-me com seus dons assediam-me com suas asas Fedro eis aqui o perigo Nada haacute mais difiacutecil no mundo Oacute momento supremo e dilaceramento capital Essas graccedilas superabundantes e misteriosas longe de acolhecirc-las tais e quais deduzidas unicamente do grande desejo inocentemente formadas pela extrema espera da alma eacute necessaacuterio que eu as suspenda oacute Fedro e que elas aguardem o meu sinal E tendo-as obtido por uma espeacutecie de interrupccedilatildeo de minha vida (adoraacutevel suspensatildeo do tempo comum) quero ainda dividir o indivisiacutevel moderar e interromper o nascimento das Ideacuteias [Grifo do autor] mdash Oacuteinfeliz disse-lhe eu que queres fazer no aacutetimo de um relacircmpago mdash Ser livre [] haacute tudo nesse instante e tudo com que se ocupam os filoacutesofos passa-se entre o olhar que cai sobre um objeto e o conhecimento que daiacute resulta para concluiacuterem sempre prematuramente mdash Natildeo te compreendo Esforccedilas-te pois em retardar as Ideacuteias mdash Eacute necessaacuterio Impeccedilo-as de me satisfazer difiro a pura felicidade []Importa-me acima de tudo obter do que iraacute ser que 478 Œ2 pp 91-92479 Œ2 pp 91-92480 Œ2 p 94

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satisfaccedila com todo o vigor de sua novidade as exigecircncias razoaacuteveis daquilo que foiraquo481

Partindo de um artista ideal de um homem universal o Eupalinos valeacuteryano propotildee com outras palavras e num outro contexto o mesmo meacutetodo do Leonardo valeacuteryano Ambos satildeo personificaccedilotildees de uma compreensatildeo formalista da criaccedilatildeo artiacutestica ambos natildeo creditam um significado uacutenico e fixo agraves obras que executam e se aproximam naturalmente no modo como contemplam e como trabalham as coisas que lhe satildeo dadas procuram natildeo concluir prematuramente procuram suspender ao menos provisoriamente a tendecircncia que a consciecircncia tem em generalizar e em universalizar em abstrair para poder com isso ater-se agrave realidade sensiacutevel e compreender melhor sem conceitos como sua arte deveraacute ser concebida e construiacuteda Humilde o arquiteto natildeo se refere a si mesmo como algueacutem que alcanccedilou a plenitude dessa singular suspensatildeo ele caminha em direccedilatildeo a ela e seu caminho eacute uma ascese Pratica atraveacutes de sua arte o autoconhecimento socraacutetico ou a autoconsciecircncia valeacuteryana Contudo diferentemente dos filoacutesofos convencionais sua meta natildeo eacute apenas um ir a si mesmo fora do mundo mas um ir a si mesmo no mundo natildeo eacute um distanciar-se mas um aproximar-se eacute sobretudo uma imprescindiacutevel conciliaccedilatildeo oupara usar uma palavra mais condizente com uma visatildeo relativamente idealista do passado uma re-conciliaccedilatildeo ou ainda na sugestiva e misteriosa palavra do poeta uma laquoalianccedilaraquo482 (laquoallianceraquo) Uma alianccedila natildeo como aquela que Deus impotildee ao homem mas entre o corpo e a alma entre a mateacuteria e o espiacuterito entre o profano e o sagrado mas tambeacutem consequumlentemente entre a ciecircncia teacutecnica e arte483

Conciliaccedilatildeo plenamente realizaacutevel atraveacutes da accedilatildeo ou do fazer do fazer a arte e da qual nasce a tatildeo ansiada e procurada beleza Assim em sua pragmaacutetica Eupalinos acaba professando uma sincera e delirante ldquooraccedilatildeo sobre o corpordquo484 a partir da qual posteriormente Fedro e Soacutecrates iratildeo especular e

481 Œ2 pp 96-97482 Œ2 p 99483 A filoacutesofa e miacutestica de orientaccedilatildeo marxista Simone Weil que chegou a trocar correspondecircncias com Valeacutery e a assistir alguns de seus cursos (cf WEIL Simone Quelques reacutefleacutexions autour de la notion de valeur in Œuvres org Florence de Lussy Quarto Gallimard Paris 1999) supostamente muito com o intuito de escrever poesias lega essas memoraacuteveis frases de inspiraccedilatildeo valeacuteryana em uma passagem sobre a miacutestica do trabalho laquoA grandeza do homem eacute sempre recriar sua vida Recriar o que lhe eacute dado Forjar aquilo mesmo que sofre Pelo trabalho ele produz sua proacutepria existecircncia natural Pela ciecircncia recria o universo por meio de siacutembolos Pela arte recria a alianccedila entre seu corpo e sua alma (cf o discurso de Eupalinos) Notar que cada uma dessas trecircs coisas eacute pobre vazia fuacutetil tomada em si mesma e sem relaccedilatildeo com as outras duasraquo (WEIL Simone A gravidade e a graccedila trad Paulo Neves Martins Fontes Satildeo Paulo 1993 p 201)484 Um dos aacutepices poeacuteticos do Eupalinos essa oraccedilatildeo que eleva o corpo que o concilia agrave alma relaciona-se mdashdifiacutecil saber se Valeacutery assim a projetou ou se foi obra do acasomdash com uma outra que em grande medida o rebaixa Esta se encontra no Feacutedon de Platatildeo que mais de vinte seacuteculos antes relata os derradeiros momentos da vida de Soacutecrates entre amigos e disciacutepulos antes de beber a cicuta como o momento sugere o diaacutelogo eacute uma reflexatildeo sobre o prazer e a dor sobre as necessidades da existecircncia material sobre como somente os mortos podem contemplar a verdade

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ultimar por si mesmos os desiacutegnios de um pensamento que seja ao mesmo tempo praacutetico e teoacuterico que resulte em obras de arte laquoNatildeo sei como esclarecer-te muito bem a respeito do que para mim mesmo natildeo estaacute claroraquo comeccedila Eupalinos

laquoao compor uma morada (quer para os deuses quer para os homens) ao buscar sua forma com amor aplicando-me em criar um objeto que delicie os olhos que se entretenha com o espiacuterito que esteja de acordo com a razatildeo e as numerosas conveniecircncias eu te direi esta coisa estranha que me parece entranhar-se na obra toda o meu corpo [] O corpo eacute um instrumento admiraacutevel pelo qual me asseguro de que os viventes tendo-o cada qual a seu serviccedilo dele natildeo dispotildeem em plenitude extraem apenas prazer dor e os atos indispensaacuteveis para viver Ora confundem-se com ele ora distraem-se por algum tempo de sua existecircncia ora animais ora puros espiacuteritos ignoram os viacutenculos universais que possuem Graccedilas no entanto agrave prodigiosa substacircncia de que satildeo feitos participam do que vecircem e do que apalpam satildeo pedras aacutervores trocam contatos e intimidade com a mateacuteria que os engloba tocam satildeo tocados pensam e sustentam pesos movem e transportam suas virtudes e seus viacutecios e quando entram em devaneio ou em sono indefinido reproduzem a natureza das aacuteguas fazem-se areias e nuvens Em outras ocasiotildees acumulam e projetam o raio Mas sua alma natildeo sabe se servir exatamente dessa natureza que lhe estaacute tatildeo proacutexima e que ela penetra Adianta-se atrasa-se parece fugir do proacuteprio instante Abalada ou impelida retira-se para dentro dela mesma onde se perde em seu vazio gerando fumaccedila Mas eu inteiramente ao contraacuterio instruiacutedo pelos meus erros digo em plena luz repito a cada aurora ldquoOacute corpo meu que me lembrais a todo momento o temperamento de minha iacutendole o equiliacutebrio de vossos oacutergatildeos as justas proporccedilotildees de vossas partes que voz fazem existir e vos restabelecem no seio das coisas moventes vigiai minha obra ensinai-me silenciosamente as exigecircncias da natureza comunicai-me essa grande arte da qual sois feito da qual sois dotado de sobreviver agraves estaccedilotildees e de vos refazer dos acasos Que eu encontre em vossa alianccedila [alliance] o sentimento das coisas verdadeiras moderai fortalecei assegurai meus

como somente a alma livre do proacuteprio corpo eacute capaz de contemplaacute-la A passagem aqui referida eacute uma eloquumlente fala do Soacutecrates platocircnico a sintetizar o que ateacute entatildeo foi discutido na sua magniacutefica ambiguumlidade eacutetica na sua argumentaccedilatildeo possui um teor relativamente proacuteximo do discurso deste grande e polecircmico propagandista do Cristianismo o convertido Paulo de Tarso Nela haacute algo de profeacutetico reflete como entatildeo pela filosofia e pela religiatildeo o corpo iraacute ser insistentemente ldquodesvalorizadordquo laquoldquoTalvez haja uma espeacutecie de caminho que nos leve e aos nossos raciociacutenios ao fimraquo discursa Soacutecrates em tom de ldquoconclusatildeo provisoacuteriardquo laquoporque enquanto tivermos um corpo e a esse mal nossa alma esteja mesclada jamais alcanccedilaremos de maneira suficiente o que desejamos E dissemos que o que desejamos eacute a verdade Com efeito satildeo um sem fim de preocupaccedilotildees que nos procura o corpo pela culpa de sua necessaacuteria alimentaccedilatildeo e ademais se nos ataca alguma doenccedila nos impede a caccedila da verdade Enche-nos de amores de desejos de temores de imagens de todas as classes de um montatildeo de nadas e loucuras de tal maneira que como se diz por culpa sua natildeo nos eacute possiacutevel ter um uacutenico pensamento sensato Guerras revoluccedilotildees e lutas ningueacutem as causa senatildeo o corpo e seus desejos pois eacute pela aquisiccedilatildeo de riquezas que nos vemos obrigado pelo corpo porque somos escravos de seus cuidados e daiacute que por todas essas causas natildeo tenhamos tempo para dedicar agrave filosofia E o pior de tudo eacute que se noacutes temos algum tempo livre de seus cuidados e nos dedicamos a refletir sobre algo o corpo inesperadamente se apresenta em todas as partes de nossas investigaccedilotildees e nos alborota nos perturba e nos deixa perplexos de maneira que por sua culpa natildeo podemos contemplar a verdade Ao contraacuterio nos fica verdadeiramente demonstrado que se alguma vez soubermos algo de puro ou absoluto temos de nos desvencilhar dele e contemplar somente com a alma as coisas em si mesmas Entatildeo segundo parece teriacuteamos aquilo que desejamos e que declaramos amantes a sabedoria tatildeo soacute entatildeo uma vez mortos segundo indica o raciociacutenio e natildeo em vida Com efeito se natildeo eacute possiacutevel conhecer nada de uma maneira pura com o corpo uma de dois ou eacute impossiacutevel adquirir o saber ou soacute eacute possiacutevel enquanto estejamos mortos pois eacute entatildeo quando a alma fica soacute consigo mesma separada do corpo e natildeo antes E enquanto estamos em vida mais perto estamos de conhecer segundo parece se em todo o possiacutevel natildeo tenhamos nenhum trato com o corpo salvo aquilo que seja de toda necessidade nem nos contaminarmos de sua natureza mantendo-nos puro de seu contato ateacute que a divindade nos livre dele Dessa maneira purificados e desembaraccedilados da loucura do corpo estaremos como eacute natural entre gente semelhante a noacutes e conheceremos por noacutes mesmos tudo o que eacute puro e isto talvez seja o verdadeiro Pois ao que natildeo eacute puro eacute de temer que esteja vedado o alcanccedilar o purordquoraquo (PLATO Phaedo I no 36 trad Harold North Fowler org Jefrey Henderson Harvard University Press Loeb Classical Library Cambridge amp London 2005 66B-67A sect11 pp 229-231)

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pensamentos Pereciacutevel que sois voacutes os sois bem menos que meus sonhos perdurais mais que uma fantasia pagais pelos meus atos expiais pelos meus erros Instrumento vivo da vida sois para cada um de noacutes o uacutenico objeto que se compara ao universo A esfera inteira vos tem por centro oacute coisa reciacuteproca da atenccedilatildeo de todo o ceacuteu estrelado Sois verdadeiramente a medida do mundo do qual minha alma apresenta-me apenas o exterior Ela o concebe sem profundidade e tatildeo futilmente que por vezes se engana contando-o entre seus sonhos ela duvida do sol Enfatuada de suas efecircmeras fabricaccedilotildees crecirc-se capaz de uma infinidade de realidades diferentes imagina existirem outros mundos mas voacutes a chamais de novo a voacutes mesmos como a acircncora a si o navio Minha inteligecircncia mais bem inspirada natildeo cessaraacute caro corpo de chamar-vos a si doravante nem voacutes eu o espero de prodigar-lhe vossas presenccedilas vossas instacircncias vossos afetos pontuais pois encontramos finalmente voacutes e eu o meio de nos unirmos o noacutes indissoluacutevel de nossas diferenccedilas uma obra que seja nossa filha Atuaacutevamos cada qual de seu lado Voacutes viviacuteeis eu sonhava Minhas vastas fantasias limitavam-se a ilimitada impotecircncia Mas possa a obra que agora quero fazer e que natildeo se faz por si mesma obrigar-nos a nos responder e surgir unicamente de nosso entendimento Este corpo e este espiacuterito esta presenccedila invencivelmente atual e esta ausecircncia criadora que disputam o ser e que eacute preciso enfim compor mas este finito e este infinito que trazemos em noacutes mesmos cada qual segundo sua natureza cumpre agora que se unam em uma construccedilatildeo bem ordenada E queiram os deuses se trabalhem de acordo trocando conveniecircncias e graccedila beleza e solidez movimentos contra linhas e nuacutemeros contra pensamentos teratildeo enfim descoberto sua verdadeira relaccedilatildeo seu ato Que se combinem que se compreendam atraveacutes da mateacuteria de minha arte Pedras e forccedilas perfis e massas luzes e sombras agrupamentos artificiais ilusotildees de perspectiva e realidades da gravidade estes satildeo os objetos de seu comeacutercio e seu lucro a incorruptiacutevel riqueza que chamo PerfeiccedilatildeordquoSOacuteCRATES Que oraccedilatildeo sem igual [] Todas essas palavras soam estranhas neste lugar Despojados agora de nossos corpos devemos seguramente nos lastimar e com o mesmo olho invejoso com que outrora contemplaacutevamos o jardim das sombras felizes consideremos a vida que deixamos Obras e desejos aqui natildeo nos acompanham mas haacute lugar para os arrependimentosraquo485

Livre de seu invoacutelucro fiacutesico e de seus condicionamentos livre das possibilidades da doenccedila e da velhice livre tanto da dor quanto do prazer livre da morte e do corpo que morre livre de tudo aquilo que a limita uma alma natildeo teria numa perspectiva puramente pragmaacutetica porque transformar o que eacute natural em artificial Teacutecnicas para melhor viver para melhor trabalhar e habitar para progredir tais invenccedilotildees seriam totalmente estranhas No mundo dos mortos de Valeacutery nem a arquitetura nem a medicina seriam necessaacuterias Qual a utilidade de duas atividades que respondem agraves necessidades fiacutesicas para a alma que natildeo adoece envelhece e morre que natildeo necessita de alimentos e de higiene que natildeo necessita se proteger das intempeacuteries da natureza portanto de tudo aquilo que um corpo precisa para viver no mundo de vivos Ela poderia muito facilmente existir em eterna quietude e imobilidade sem ter nenhum outro contato com outras almas natildeo haveria mais a bruta necessidade que une ou desune os seres humanos natildeo haveria mais a dependecircncia fiacutesica que direta ou indiretamente condena a todos aqui ao conviacutevio e a poliacutetica a relaccedilatildeo com o outro e os desejos e necessidades do outro a uma incessante busca de equiliacutebrio entre as aspiraccedilotildees individuais e as limitaccedilotildees coletivas entre os desejos e poderes de um e os desejos e poderes do outro

485 Œ2 pp 98-100

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Essa visatildeo a princiacutepio poderia ser considerada como amiuacutede foi uma boa ventura Contudo no Eupalinos assim como em grande parte da obra de Valeacutery consequumlecircncias natildeo tatildeo favoraacuteveis ou positivas satildeo expostas486 Num tal mundo dos mortos separados alma e corpo natildeo agem natildeo fazem natildeo fazemnada de concreto um torna-se potecircncia inconsciente o outro impotecircncia consciente Somente quando unidos e inseridos num mundo material eacute que ambos satildeo capazes de realmente agir de fazer Por conseguinte tambeacutem a artenatildeo existiria natildeo poderia existir pois mesmo natildeo sendo uma manifestaccedilatildeo direta das necessidades fiacutesicas ela eacute uma particular transformaccedilatildeo das formas da materialidade logo eacute feita pelo corpo e tendo em vista a realidade especiacuteficaque este pelos sentidos recebe e ou constroacutei laquoA cada homem que nasce como haacute um corpo haacute um mundo e um tempo etcraquo487 E se qualquer accedilatildeo qualquer fazer concreto fica assim interdito a uma alma sem corpo fica tambeacutem interdito o principal veiacuteculo para o autoconhecimento ou a autoconsciecircncia posto que realizar agir e fazer natildeo tecircm apenas como fim a transformaccedilatildeo da realidade exterior mas tambeacutem a realidade interior o si mesmo O corpo possibilita eacute um dos princiacutepios da proacutepria possibilidade revela-se portanto natildeo como uma mera limitaccedilatildeo natildeo apenas como a mera prisatildeo-instrumento que a alma possui para acessar a moldaacutevel materialidade da qual a arte se constitui mas tambeacutem comoo modo mesmo da proacutepria alma acessar a si mesmo e nesse acessar transformar-se O maispleno autoconhecimento ou autoconsciecircncia se daacute atraveacutes da mateacuteria A alianccedila entre essas duas categorias tatildeo recorrentemente postas em dramaacutetica oposiccedilatildeo e conflitos por grande parte da tradiccedilatildeo Ocidental entre o corpo e a alma tem aiacute a sua justificativa natildeo simplesmente ldquoeacuteticardquo mas sobretudo ldquoesteacuteticardquo E a arte vem a ser tanto em sua accedilatildeo em seu fazer como em seus resultados um dos principais meios materiais dessa alianccedila a arte torna-se o meacutetodo capital de

486 Natildeo agrave toa Valeacutery leitor de Santo Tomaacutes de Aquino jaacute ter conjeturado de modo um tanto irocircnico e esdruacutexulo a morte como um verdadeiro desastre para o pensamento na mediada em que amiuacutede o fim uacuteltimo deste eacute na pragmaacutetica postura do poeta a proacutepria accedilatildeo o proacuteprio fazer e eacute Leonardo que se torna novamente o paradigma de um singular amante do corpo laquoa morte interpretada como um desastre para a almaraquo exclama um espirituoso Valeacutery laquoA morte do corpo diminuiccedilatildeo dessa coisa divina A morte atingindo a alma ateacute agraves laacutegrimas e em sua obra mais cara pela destruiccedilatildeo de uma tal arquitetura que ele havia feito para nela habitar [] A Igreja mdash na medida em que a Igreja eacute tomista mdash natildeo confere agrave alma separada uma existecircncia muito invejaacutevel Nada mais pobre do que a alma que perdeu seu corpo Quase natildeo tem outra coisa que o ser mesmo eacute um miacutenimo loacutegico uma espeacutecie de vida latente na qual ela eacute inconcebiacutevel para noacutes e certamente para si mesma Ela se despojou de tudo poder querer saber talvez Nem mesmo sei se pode lembrar-se de ter sido no tempo ou em alguma parte a forma e o ato de seu corpo Resta-lhe a honra de sua autonomia Uma condiccedilatildeo tatildeo vatilde e tatildeo insiacutepida felizmente eacute passageira mdash se eacute que esta palavra fora do tempo tem algum sentido a razatildeo pede e o dogma impotildee a restituiccedilatildeo da carne [] De qualquer modo a alma desencarnada deve segundo a teologia reencontrar num determinado corpo uma determinada vida funcional e mediante esse corpo novo uma espeacutecie de mateacuteria que permita suas operaccedilotildees e encha de maravilhas incorruptiacuteveis as suas vazias categorias intelectuaisraquo (Cf Œ1 pp 1213-1215)487 Π 1921-1922 Texte 2 (VII 312-314)

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autoconhecimento ou autoconsciecircncia mdasha ascese que natildeo nega o mundo sensiacutevelmdash Eis o sentido do aprendizado do incorpoacutereo e querido Soacutecrates valeacuteryano

6122 ANTI-SOacuteCRATES

Como tantas outras figuras que se instauram entre a lenda e a histoacuteria Soacutecrates recebeu inuacutemeras maacutescaras ele que eacute natildeo raro considerado em maior ou menor consenso como um dos mais presentes avatares daquilo que tatildeo genericamente se denomina Ocidente Aristoacutefanes o ridicularizou como um ingecircnuo e pateacutetico sofista Xenofonte o desenhou como um modelo de serenidade e simplicidade o oraacuteculo de Delfos o proclamou como o homem mais saacutebio de seu tempo Platatildeo o considerava como o homem mais justo que conhecera Sob o nebuloso pretexto de corromper os jovens e de instaurar novos deuses o grande questionador foi condenado agrave morte destino que aceitou de um modo extremamente resoluto paciacutefico como se natildeo houvesse muita diferenccedila entre este e o outro mundo Posteriormente outros talvez imbuiacutedos de um forte sentimento profeacutetico nele viram a exemplificaccedilatildeo avant-la-lettre da humildade asceacutetica frequumlentemente recomendada ou exigida peloCristianismo Medieval Tal interpretaccedilatildeo possui fortes justificativas Com a ironia de um ldquosaber que ignorardquo Soacutecrates natildeo apenas tinha por haacutebito desobrigar-se de professar a verdade doravante parecia por vezes conhececirc-la em segredo mas pondo no centro da vida a questatildeo eacutetica encarava a proacutepria filosofia como um modo de vida como um exerciacutecio um veiacuteculo a algo mais essencial quiccedilaacute inefaacutevel agraves palavras ao discurso Esse comportamento representa hoje uma cesura canocircnica com relaccedilatildeo aos ditos ldquopreacute-socraacuteticosrdquo aos fisioacutelogos que aparentemente preocupavam-se mais com questotildees cosmoloacutegicas e em especular sobre a natureza da realidade Daiacute tambeacutem as caracteriacutesticas da riacutegida conduta de Soacutecrates que tanto influenciaram as posteriores escolas filosoacuteficas que na Heacutelade se instauraram sua simplicidade e pobreza seu despojamento e desapego uma fidelidade inquebrantaacutevel a si mesmo a seu proacuteprio aprendizado Assim dentre todas as imagens que se pode fazer desse filoacutesofo paradigmaacutetico desse filoacutesofo-conceito natildeo raro contraditoacuterias entre si uma das mais constantes na tradiccedilatildeo eacute aquela que justifica e amplia essas caracteriacutesticas a de um homem extremamente voltado para o espiacuterito que se entreteacutem com o conceito e a abstraccedilatildeo com a universalidade

Eacute justamente dessa intensa e constante imagem que Valeacutery principia manteacutem a concepccedilatildeo de um Soacutecrates aprendiz mdashconcepccedilatildeo quiccedilaacute aquela que mais carisma emanamdash e a transforma para que atenda a suas proacuteprias

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intenccedilotildees Se Leonardo da Vince eacute aquele que nada espera e tudo faz se Edmond Teste eacute aquele que nada espera nada faz e para quem tudo eacute permitido se essas duas estranhas figuras representam tipos-ideais de consciecircncias extremas que vivem de um modo quase inumano a primeira numa sociedade preacute-cientiacutefica e a segunda numa sociedade jaacute totalmente industrializada entatildeo Soacutecrates agora transformado em uma outra personagem conceitual mesmo em morte mesmo para aleacutem de qualquer sociedade possiacutevel aparece como a representaccedilatildeo de um humano que descobre a sua proacutepria humanidade Ele natildeo eacute no Eupalinos retratado mdashcomo natildeo o foi por seus contemporacircneosmdash como um saacutebio ldquooniscienterdquo dono de todas as respostas como uma pessoa acabada definitiva mas como um homem provisoacuterio nobre justamente por natildeo temer o por vezes angustioso movimento da duacutevida do desconfiar do reconsiderar do desconstruir do retornar jamais se esquecendoda rara e difiacutecil arte de desistir sabe intui saber que suas crenccedilas natildeo satildeo blocos monoliacuteticos a desafiar as intempeacuteries sociais mas estatildeo como que em constante transformaccedilatildeo moldando-se conforme os adventos e as circunstacircncias Assim a princiacutepio quando receacutem adentrou o estranho mundo dos mortos o Soacutecratesvaleacuteryano natildeo poderia deixar de ser relativamente fiel agrave sua imagem canocircnica e portanto de ter os mesmos princiacutepios que o imortalizaram frente agraves inuacutemeras geraccedilotildees vindouras Como seu antigo mestre Parmecircnides coerente com o registro da Antiguidade Claacutessica que frequumlentemente postulava a ciecircncia do Ser como a ciecircncia suprema hierarquicamente superior a todas as demais acredita que o conceito de verdade deva referir-se exclusivamente a uma universalidade e natildeo a uma particularidade que cumpre ao espiacuterito retirar-se da massa de fenocircmenos sensiacuteveis e repousar no inteligiacutevel Doravante no digressivo transcurso do diaacutelogo suas concepccedilotildees vatildeo pouco a pouco se modificando lapidando-se evoluindo como todo pensamento cumpre ser auxilia-o naturalmente sua condiccedilatildeo de desencarnado e a abstrata realidade na qual se encontra Conforme Fedro lhe incita e lhe aponta como outrora ele mesmo o fazia em vida outros caminhos para a realizaccedilatildeo daquilo que sempre e tatildeo-somente buscou realizar o que haacute de mais excelso no homem a divindade interna e sempre presente Soacutecrates pondera reconsidera e vai se descobrindo outro As seguintes palavras gentis e sinceras corroboram e reiteram mais uma vez um dos pontos mais incisivos e constantes da criacutetica que Valeacutery tece agrave filosofia e ao filoacutesofo

laquoFEDRO Uma soacute coisa Soacutecrates uma soacute te faltou Homem divino talvez natildeo sentias necessidade alguma das belezas materiais do mundo pois mal as apreciavas Sei que natildeo desdenhas a doccedilura dos campos o esplendor da cidade os mananciais de aacutegua cristalina a sombra delicada do plaacutetano mas tudo isso natildeo era para ti senatildeo distantes ornamentos de tuas

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meditaccedilotildees fronteiras prazerosas de tuas daacutedivas terreno favoraacutevel aos teus passos interiores O que havia de mais belo para bem longe de si te conduzindo vias sempre outra coisa488

SOacuteCRATES O homem e o espiacuterito do homemFEDRO Mas entatildeo natildeo encontraste entre os homens alguns cuja singular paixatildeo pelas formas e pelas aparecircncias te surpreendesse [] E dos quais inteligecircncia e virtude nada deixavam a desejar SOacuteCRATES Por certoFEDRO Tu os situavas acima ou abaixo dos filoacutesofosSOacuteCRATES DependeFEDRO O alvo dessas criaturas te parecia mais digno ou menos digno de procura e de amor que o teu proacuteprioSOacuteCRATES Natildeo se trata de seu alvo Natildeo posso pensar que existam vaacuterios Bem-SupremosMas eacute-me obscuro difiacutecil entender que homens tatildeo puros quanto agrave inteligecircncia tenham tido necessidades de formas sensiacuteveis e de graccedilas corpoacutereas para atingir seu estado mais elevadoraquo489

A partir de entatildeo todo o diaacutelogo natildeo deixa de ser um contiacutenuo e natildeo raro sofrido aprendizado de Soacutecrates Este ao fim compreende o significado da alianccedila entre corpo e alma que natildeo eacute necessaacuterio sacrificar o material em favor do imaterial o sensiacutevel em favor do intelectual que essas duas esferas podem coexistir em harmonia pois de fato talvez sejam uma soacute compreende que pode haver prazer sem aversatildeo ou conflito ante os elementos naturais ou artificiais forjados ou natildeo pela industriosa matildeo humana compreende que a arquitetura a escultura a pintura a danccedila a muacutesica a poesia todas estas e outras tantas formas de se contemplar as laquobelezas materiais do mundoraquo atraveacutes do ato de concebecirc-las e fazecirc-las satildeo praacuteticas que natildeo distintas do pensamento filosoacutefico do puro trabalhar com conceitos tambeacutem transformam o espiacuterito tambeacutem elevam tambeacutem purificam pois tambeacutem exigem o imperioso e difiacutecil exerciacutecio das principais faculdades prezadas por Valeacutery a razatildeo a atenccedilatildeo e o esforccedilo Mas essa compreensatildeo natildeo deixa de ser acompanhada por uma profunda melancolia Estando morto resta-lhe pouca coisa resta-lhe apenas o voltar-se para a pura especulaccedilatildeo para o que fez e deixou de fazer para o que poderia ter feito em vida Soacutecrates entatildeo reconsidera Conjetura aquilo que o poeta insistentemente expressa ser necessaacuterio a qualquer praacutetica que deveria ter sido em vida tanto um filoacutesofo como um artista Ele que sempre procurou a si mesmo acaba ao fim por descobrir mediante a concepccedilatildeo de arte de Eupalinos que um dos mais efetivos caminhos para se encontrar ou para se realizar Deus mdashum Deus que

488 Essa construtiva criacutetica insinua-se no iniacutecio do Feacutedon de Platatildeo Questionado sobre o porquecirc ter versificado as faacutebulas de Esopo e um hino a Apolo Soacutecrates responde que em recorrentes sonhos disseram-no que ele deveria praticar muacutesica isto eacute poesia ele aceita o encargo e conclui que o que ateacute entatildeo havia praticado a filosofia natildeo deixa de ser a muacutesica mais excelsa Essa decisatildeo entretanto veio muito proacutexima a sua condenaccedilatildeo por ter corrompido os jovens de Atenas o que supotildee-se pouco importava para algueacutem que mdashna versatildeo platocircnicamdash possivelmente acreditava na imortalidade da alma e na doutrina da palingenesia Assim num momento em que tudo convidava agrave fuga e ao desespero a natildeo mais empreender qualquer projeto o filoacutesofo ainda conversa e parece querer deixar a vida do mesmo modo que viveu envolto num estado de imperturbabilidade racional Essa atitude descreve natildeo apenas um espiacuterito que aceita sua proacutepria condiccedilatildeo de condenado mas continua a querer a aprender (Cf Plato Phaedo I no 36 trad Harold North Fowler org Jefrey Henderson Harvard University Press Loeb Classical Library Cambridge amp London 2005 60D-61B sect4 pp 210-213)489 Œ2 p 91

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parece ser imanente ao mundo puro movimento e pura continuidademdash eacute como jaacute anuncia a desconcertante danccedila de Athiktecirc o da accedilatildeo do fazer

laquoFEDRO Que queres pintar sobre o nadaSOacuteCRATES O Anti-SoacutecratesFEDRO Imagino-o mais de um Haacute muitos que satildeo contraacuterios a Soacutecrates SOacuteCRATES Pois este seraacute o construtorFEDRO [] O Anti-Fedro o escutaSOacuteCRATES [] Natildeo foi proveitoso temo-o buscar durante toda a minha vida esse Deus que tentei descobrir perseguindo-o unicamente atraveacutes de pensamentos procurando-o com o variado sentimento do justo e do injusto instando-o a render-se agrave solicitaccedilatildeo da dialeacutetica mais refinada Esse Deus assim encontrado eacute apenas palavra nascida de palavra e retorna agrave palavra Pois a resposta que forjamos para noacutes mesmos seguramente natildeo deixa nunca de ser a proacutepria questatildeo e toda questatildeo do espiacuterito ao proacuteprio espiacuterito natildeo eacute e natildeo pode ser senatildeo ingenuidade Mas ao contraacuterio nos atos e na combinaccedilatildeo dos atos eacute que devemos encontrar o sentimento mais imediato da presenccedila do divino e o melhor emprego dessa parte de nossas forccedilas inuacutetil agrave vida e que parece reservada agrave busca de um objeto indefiniacutevel que nos ultrapassa infinitamente Pois se o universo eacute o efeito de algum ato esse ato de um Ser e de uma necessidade de um pensamento de uma ciecircncia e de um poder pertencentes a esse Ser somente com atos poderaacutes integrar-se no grande designo e propor a ti mesmo a imitaccedilatildeo do que fez todas as coisas Esta eacute a maneira mais natural de te introduzir no lugar do proacuteprio Deusraquo490

E eis que no Eupalinos o Soacutecrates valeacuteryano parece arrepender-se parece entatildeo sentir um quase doloroso sentimento de nostalgia algo que poderia ser denominado de saudade saudade do tempo em que vivia e caminhava nas praccedilas e nos mercados em companhia das multidotildees e das contradiccedilotildees dos homens Do mesmo modo que um exilado pode vir a conhecer e avaliar melhor a sua proacutepria terra natal quando se encontra em uma terra estrangeira entre idiomas e costumes distintos ele conhece e avalia mais adequadamente os seus proacuteprios pensamentos quando deles se distancia quando os contempla atraveacutes de uma perspectiva que natildeo aquela na qual foram originalmente engendrados Na laboriosa pena de Valeacutery o ceacutelebre filho do talhador de pedras Sofronisco tatildeo-somente pode refletir e discursar sobre a importacircncia do mundo sensiacutevel no mundo inteligiacutevel onde qualquer praacutetica teacutecnica e artiacutestica eacute justamente desnecessaacuteria e impossiacutevel onde os atos de conceber de projetar e de construir natildeo passam de lembranccedilas pois natildeo haacute a mateacuteria e as leis que a regem e a condicionam Dir-se-ia que eacute pela falta atraveacutes do duro e fabuloso exerciacutecio espiritual da rememoraccedilatildeo mdashuma espeacutecie de anamnese praticada no mundo dos mortosmdash que o ceacutelebre ldquopai da ironiardquo pode compreender a importacircncia daquilo a que outrora era amiuacutede refrataacuterio Eacute a ausecircncia determinando o valor daquilo que estaacute ausente Se na vida Soacutecrates volta-se para a morte na morte Soacutecrates volta-se para a vida Quiccedilaacute tambeacutem ele natildeo queira retornar Retornar para poder enfim encontrar-se com Deus Natildeo atraveacutes da especulaccedilatildeo dos labirintos da linguagem verbal na qual eacute mera palavra passiacutevel de ser usadapelos mais variados discursos e desconectada da realidade mas atraveacutes da accedilatildeo do fazer no qual insere-se na realidade e revela-se para o indiviacuteduo como uma 490 Œ2 pp 142-143

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praacutetica Eis portanto o que conclui o Soacutecrates valeacuteryano Deus eacute o nome dado a uma praacutetica Deus revela-se numa praacutetica

613 NO MUNDO DOS VIVOS

CONCLUSAtildeO

Obras autocircnomas geralmente escritas em funccedilatildeo de comissotildees determinadas os diaacutelogos socraacuteticos de Valeacutery possuem independecircncia um emrelaccedilatildeo ao outro assim tambeacutem em relaccedilatildeo a outros diaacutelogos seus mas eacute bastante proveitoso observar como certas argumentaccedilotildees e concepccedilotildees repetem-se em todos eles haacute toda uma intertextualidade relativamente oculta entre elesassim como entre muito dos escritos do poeta No intento de mostrar que laquoo pensamento puro e a busca da verdade em si natildeo podem jamais aspirar agrave descoberta ou a construccedilatildeo de alguma formaraquo491 tanto em Lrsquoacircme et la danse como em Eupalinos a riacutegida e hieraacuterquica divisatildeo entre alma e corpo mateacuteria e espiacuterito eacute alvo de severa criacutetica para tal ambos os diaacutelogos evocam ao fim surpreendentemente e como em Monsieur Teste o conceito de Deus Providencial que doravante este seja justamente um dos principais temas para um terceiro diaacutelogo socraacutetico agora novamente entre vivos estranha e simultaneamente

intitulado em grego e francecircs de Περὶ τῶν τοῦ θεοῦ - Ou des choses divines

(1944) Fragmentado e inacabado verdadeiro desafio para a criacutetica essa estilhaccedilada obra da qual alguns trechos tambeacutem pertencem aos Cahiers eacute juntamente com Alphabet Lrsquoange e principalmente a esoteacuterica peccedila Mon Faust uma daquelas que exemplarmente retratam as reflexotildees da uacuteltima fase da vida de Valeacutery ateacute hoje muito pouco estudada e natildeo raro bastante incocircmoda para os inteacuterpretes que crecircem num retrato relativamente fixo de um poeta supostamente avesso agrave religiatildeo e agrave miacutestica492 Dando continuidade a sua estrateacutegia literaacuteria ele agora imagina supotildee-se um diaacutelogo entre os disciacutepulos e conhecidos de Soacutecrates apoacutes a morte deste e inclusive entre personalidades histoacutericas Natildeo chega contudo a escolhecirc-los em definitivo Sabe-se que podem ser as jaacute conhecidas personagens ou vozes de Fedro Erixiacutemaco e Athiktecirc mas tambeacutem asfiguras de Zenatildeo de Eleacuteia e Timeu Zithon Filebo Proteu Teoacutefilo e principalmente do proacuteprio Daimon de Soacutecrates curiosamente chamado de Hypnos o Sem Corpo (laquoSans Corpsraquo493) um espiacuterito a conversar a falar em

491 Œ1 p 1401 ou LQ p 146492 Cf GIFORD Paul Paul Valeacutery - Le dialogue des choses divines Corti Paris 1989 cf GIFORD Paul amp STIMPSON Brian (orgs) Paul Valeacutery - Musique Mystique Matheacutematique Presses Universitaires de Lille Lille 1993493 Π folio 80

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versos brancos494 com os vivos por vezes tambeacutem evoca aquilo que denomina de dramatis personnae como as de Santo Anselmo Santo Tomaacutes de Aquino Dante Pascal e Descartes Haacute portanto muitas opccedilotildees de vozes oupersonagens todas recorrentes em outros tantos escritos de Valeacutery Mas natildeo houve tempo de fazer as escolhas pois a morte logo veio a ter com o poeta

Um das principais propostas desse diaacutelogo embrionaacuterio eacute sobretudo investigar o que faz o homem usar tatildeo frequumlentemente o conceito de Deus para explicar o mundo laquoo que faz o homem recorrer agrave noccedilatildeo mdash ou notaccedilatildeo de Deusraquo495 para entatildeo ao que grande parte dele indica laquoarruinar o que estaacute arruinado mdash o Divino tradicional [] que natildeo estaacute mais em equiliacutebrio como a manobra mental possiacutevel e as [] descobertasraquo496 que natildeo estaacute mais portanto em consonacircncia ou em harmonia com o advento da Ciecircncia Moderna e de modos de pensar mais analiacuteticos Quanto agraves causas evocadas do surgimento e do uso conceito de Deus e mesmo de outras tantos outros do discurso religioso duas se destacam

Uma refere-se mdashnatildeo se distanciando em muito de uma visatildeo jaacute claacutessica da origem das crenccedilas religiosasmdash ao espanto ao medo diante de tudo o que existe497 laquoO medo e as ilusotildees dos selvagens e dos primeiros humanosraquo lecirc-se por exemplo numa quase intransigente passagem dura como a dos primeiros etnoacutelogos de orientaccedilatildeo positivista laquocriaram os espiacuteritos e os deuses como reaccedilotildees ingecircnuas mdash e produtos brutos de brutos mdash e essas obras grosseiras [foram] enobrecidas e refinadas pelas eras seguintesraquo498 e isso a tal ponto que o Deus dos filoacutesofos e dos teoacutelogos por exemplo frequumlentemente se transformanum laquofetiche abstrato um iacutedolo no fim do raciociacutenio mdashraquo499 Com isso a criacutetica de Valeacutery parece natildeo almejar simplesmente a fraqueza humana a engendrar personificaccedilotildees antropomorfismos formas psicoloacutegicas usadas de modo egoiacutestico para suportar o peso da realidade a doenccedila a velhice e a morte o sofrimento mas principalmente mdashe o que eacute aqui centralmdash as terriacuteveis consequumlecircncias de se criar e de se usar qualquer conceito por mais adequado que possa parecer no momento nascente sob o impeacuterio do medo numa frase memoraacutevel lecirc-se laquoAquilo que eacute engendrado pelo medo [] engendra o medoraquo500 Aquilo que eacute engendrado pelo medo perturba o espiacuterito ou melhor demonstra o quanto o proacuteprio espiacuterito jaacute se encontra em perturbaccedilatildeo e portanto que soacute muito dificilmente seraacute capaz de engendrar conceitos adequados agrave realidade Dir-se-ia

494 Π folio 3495 Π folio 132496 Π 1938-1939 Texte 57 (XXII 635)497 Π folio 49 recto498 Π 1921-1922 Texte 2 (VII 312-314) passage p 313499 Π 1921-1922 Texte 14 (VIII 569)500 Π 1921-1922 Texte 5 (VIII 390)

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que para o poeta em seu programa de autoconsciecircncia assim como para seus principais personagens conceituais Leonardo e sobretudo Teste um pensamento puroeacute um pensamento sem medo

Coadunando-se harmonizando-se com essa concepccedilatildeo a segunda causa do surgimento e do uso do conceito de Deus evocada mdashidecircntica agraveargumentaccedilatildeo que Valeacutery utiliza contra a filosofiamdash refere-se justamente ao automatismo verbal tambeacutem recorrente e enormemente recorrente no pensamento religioso a engendrar contra-sensos falsos problemas e falsas soluccedilotildees Uma das palavras mais propensa a variaccedilotildees semacircnticas uma das palavras mais servil aosdiscursos metafiacutesicos Deus natildeo deixa de ser tambeacutem o signo o resultado do esquecimento ou da ignoracircncia do funcionamento da linguagem Ele eacute laquoum viacutecio de construccedilatildeoraquo501 E devido justamente ao advento da Ciecircncia Moderna e de modos de pensar mais analiacuteticos Valeacutery natildeo tarda em afirmar que laquoQuanto mais vocecirc compreender menos deus haveraacuteraquo502 laquoNum mundo preciso natildeo haacute lugar para o deus mdashraquo503 Ou ainda laquoToda disputa acerca da feacute seria imediatamente abolida se somente fosse possiacutevel agarrar representar exatamente o estado do crente tal qual aparece e ele mesmoraquo504 Dessarte o que eacute tradicionalmente atrelado aos desiacutegnios de Deus os dogmas Cristatildeos eacute veementemente questionado (como tambeacutem ocorre em Au sujet drsquolsquoEurecirckarsquo e Dialogue de lrsquoarbre) sobretudo a Escatologia corpo doutrinaacuterio segundo o qual o homem e o mundo rumam ao fim dos tempos e em contrapartida o Criacionismo corpo doutrinaacuterio segundo o qual Deus criou o mundo e o criou a partir do nada Ambas as concepccedilotildees (que contribuiacuteram para a formaccedilatildeo de uma concepccedilatildeo linear do tempo e da histoacuteria) satildeo para Valeacutery (refrataacuterio agraves filosofias histoacutericas idealistas) natildeo apenas tristes propagadoras da esperanccedila e do medo mas principalmente contra-sensos Pois ao espiacuterito agrave consciecircncia (agrave razatildeo) simplesmente natildeo faz sentido pensar o nada um comeccedilo e um fim o nada umcomeccedilo e um fim soacute satildeo passiacuteveis de serem pensados enquanto conceitos-limite enquanto representaccedilotildees natildeo enquanto tais natildeo enquanto representados pois eles natildeo remetem a nada de real laquodizer que um deus criou o mundoraquo escreveo poeta laquoeacute nada dizer ideacuteia nula posto inimaginaacutevelraquo505 laquoeacute perfeitamente vatilde dizer um deus fez o mundo se noacutes natildeo podemos dar nenhuma ideacuteia dessa operaccedilatildeoraquo506

Contudo haacute que se matizar a insipiente e lacunar criacutetica de Valeacutery ao conceito de Deus ou melhor aos usos do conceito de Deus pois haacute outros

501 Π folio 52502 Π folio 54503 Π folio 84504 Π 1921-1922 Texte 2 (VII 312-314) passage p 313505 Π folio 81506 Π 1921-1922 Texte 17 (VIII 701)

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tantos fragmentos que parecem deliberadamente contradizer o que anteriormente foi dito que parecem atacar o problema atraveacutes de outra perspectiva (Afinal trata-se de um escrito extremamente incompleto e natildeo haacute como distinguir precisamente quem realmente se expressa o autor ou as suas vozes ou personagens e nestas quem estaacute a expressar isto ou aquilo) Agraves vezes o diaacutelogo acorda por exemplo em fazer a distinccedilatildeo entre Deus ou deuses de um lado e as coisas divinas de outro quanto a isso alguns fragmentos assim rezam laquoAs coisas divinas satildeo mais raras que os deuses mdash Mais divinas tambeacutemraquo507

laquoEu natildeo vejo uma razatildeo para deus mas eu natildeo digo que o divino seja inexistenteraquo508 laquomdash o divino mdash uma pura possibilidaderaquo509 Mas essa distinccedilatildeo eacute muito pouco clara quiccedilaacute as coisas divinas ou o divino refiram-se ao que haacute de mais valoroso a um espiacuterito particular sem que este tenha qualquer intenccedilatildeo de universalizar de propagar sua proacutepria hierarquia de valores e Deus a um valor que um ou vaacuterios espiacuteritos particulares intentam universalizar propagar a todos os demais independentemente destes assim tambeacutem considerarem ou natildeo Entretanto haacute uma outra passagem que incita a matizar ainda mais a criacutetica de Valeacutery ao conceito de Deus laquoTodos os insultos que noacutes fazemos a deusraquoescreve ele laquotodas as mais graves injuacuterias [] tecircm por raiz o nosso censuraacute-lo natildeo sermos um deus de natildeo [nos] convir agrave ideacuteia que temos de um deus Mas essa ideacuteia mesma eacute deduzida da ideacuteia que noacutes temos do homem e de noacutes mesmosraquo510 laquoEle [Deus] assume tudo o que eacute [] impossiacutevel tudo o que falta [] ele [Deus] eacute a ligaccedilatildeo do espiacuterito impotenteraquo511 Deus compreendido portanto como o signo o resultado da consciecircncia que o ser humano tem dos seus proacuteprios limites e impotecircncias Eacute justamente atraveacutes desse tipo de reflexatildeoque Valeacutery ao fim desse derradeiro diaacutelogo socraacutetico adentra novamente agrave miacutesticaO que entretanto ele acrescenta agrave sua jaacute referida proposta de uniatildeo entre o espiacuterito e Deus ou melhor entre o espiacuterito e si mesmo proposta de possessatildeo de si mesmo eacute a concepccedilatildeo segundo a qual tal uniatildeo tal possessatildeo soacute se daraacuteplenamente como intui o Soacutecrates valeacuteryano no Eupalinos atraveacutes do corpo Pois este eacute segundo o que se lecirc nesse diaacutelogo o veiacuteculo mesmo a Deus laquoO miacutestico eacute a possessatildeo corporal do deus a busca mdash do deus pelo corpo O corpo instrumento da busca e da presenccedila do deusraquo512

No diaacutelogo Περὶ τῶν τοῦ θεοῦ - Ou des choses divines Deus tambeacutem acaba

se revelando enfim como a meta pessoal que o espiacuterito atraveacutes do corpo no qual ocorre se propotildee alcanccedilar o sentido o fim uacuteltimo que o espiacuterito daacute ou pode dar agrave 507 Π folio 143 ou Π 1935-1936 Texte 47 (XVIII 850)508 Π 1921-1922 Texte 2 (VII 312-314)509 Π 1921-1922 Texte 3 (VIII 355)510 Π folio 47511 Π folio 52512 Π folio 76

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totalidade de suas proacuteprias accedilotildees a totalidades de seus proacuteprios fazeres ao todo de seu destino Sentido fim uacuteltimo que no caso de Valeacutery pode ser nomeado como oconceito de eu puro Daiacute o poeta intensamente se questionar mdashe isso natildeo deixa de ser uma verdadeira siacutentese do modo como procede seu pensamentomdash sobre a adequaccedilatildeo a validade de um Deus que foi concebido em outras eacutepocas e com outros pressupostos por outro ou por outros e natildeo por si mesmo o Deus mesmo da tradiccedilatildeo mdashde qualquer tradiccedilatildeomdash agrave qual as pessoas com menor ou maior consciecircncia aderem ou recusam-se a aderir como aceitar um Deus que foi criado por problemaacuteticas alheias laquocomo ligar-se a um Deus de outroraquo ele assim se pergunta laquoa um deus que noacutes natildeo inventamos []raquo513 laquoQuem sabe se toda tua paixatildeo seus erros suas blasfecircmias suas sujeiras atos e crimes natildeo satildeo um caminho que leva a Deus e o uacutenico que vocecirc poderaacute seguirraquo514 Ou ainda laquoO valor de teu deus eacute o do teu pensamentoraquo515 Com isso toda a criacutetica de Valeacutery ao proselitismo intelectual transfere-se agora ao proselitismo religioso agraves doutrinasreligiosas que afirmam ter superado as aporias surgidas no pensamento sobre Deus e alcanccedilado o conhecimento da verdade acerca Dele verdade que deve ser aceita por todos Mas o poeta mdashpara quem a liberdade eacute a liberdade do pensamentomdash sabe que uma verdade deixa de ser verdade quando eacute forccedilada quando eacute imposta que uma verdade deixa de ser verdade quando haacute o desejo de universalizaacute-la laquoO poderoso gosto de ldquoter razatildeordquo de convencer de seduzir ou de reduzir os espiacuteritos de excitaacute-los em favor ou contra a qualquer um ou a qualquer coisaraquo revela laquome eacute essencialmente estranho para natildeo dizer odioso [] Nada me choca mais que o proselitismo e seus meios sempre impuros [] Aconselho Esconda teu Deus pois ele eacute o seu faliacutevel a partir do momento em que os outros o conheccedilamraquo516 A miacutestica de Valeacutery eacute negativa apofaacutetica e num grau extremo natildeo somente porque quase sempre nega a referir-se a Deus atraveacutes de proposiccedilotildees afirmativas mas tambeacutem porque nega radicalmente revelar a face do Deus que cria para si Assim como todo o seu pensamento com o qual se confunde essa miacutestica acaba no silecircncio No silecircncio do eu puro no silecircncio que sempre almejou realizar

513 Π folio 88514 Π folio 134515 Π 1940-1941 Texte 67 (XXIV 859)516 Œ1 p 1471

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mdash O Senhor Teste trad Aniacutebal Fernandes Reloacutegio dacuteaacutegua Lisboa 1985

mdash Variedades antologia org Joatildeo Alexandre Barbosa trad Maiza Martins de Siqueira Iluminuras Satildeo Paulo 1999

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GAEgraveDE Edouard Valeacutery et Nietzsche Gallimard Paris 1962

GIFORD Paul Paul Valeacutery - le dialogue des choses divines Joseacute Corti Paris 1989

HOUPERT Jean-Marc Paul Valeacutery - Lumiegravere eacutecriture et tragique Meacuteridiens Klincksieck Paris 1986

JARRETY Michel Valeacutery devant la litteacuterature -Mesure de la limite PUF Paris 1991

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mdash Museu Valeacutery Proust in Prismas - Criacutetica Cultural e Sociedade trad Augustin Wernet amp Jorge Mattos Brito de Almeida Aacutetica Satildeo Paulo 1998

BARBOSA Joatildeo Alexandre A comeacutedia intelectual de Paul Valeacutery Iluminuras Satildeo Paulo 2007

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mdash Paul Valeacutery e a comeacutedia intelectual in A biblioteca imaginaacuteria Atelier Editorial Satildeo Paulo 1996

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OBRAS DIVERSAS

AMIEL Henri-Freacutedeacuteric Journal Intime - Janvier-juin 1854 Texte inteacutegral publieacute par la premiegravere fois avec une postface des notes et un index par Philippe M Monnier Bibliothegraveque Romande Lausanne 1973

- 186 -

ARISTOTLE Poetics trad Stephen Halliwell Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 2005

ADORNO Theodor Teoria esteacutetica trad Artur Moratildeo Ediccedilotildees 70 Lisboa

SantrsquoAGOSTINO Le Confessioni in Opere di SantrsquoAgostino I edizione latino-italiana Nuova Biblioteca Agostiniana Cittagrave Nuoava Editrice Roma 1993

BACON Francis The new organon org Lisa Jardine amp Michael Silverthorne Cambridge University Press Cambridge 2000

BARTHES Roland Œuvres Completes III 1974-1980 org Eacuteric Marty Eacuteditions du Seuil 1995

BAUDELAIRE Charles Poesia e prosa vol uacutenico org Ivo Barroso trad Cleone Augusto Rodrigues Joana Angeacutelica DrsquoAacutevila Melo Marcella Mortara Pliacutenio Augusto Coelho amp Suely Cassal Nova Aguilar Rio de Janeiro 2002

BENJAMIM Walter A obra de arte na eacutepoca de suas teacutecnicas de reproduccedilatildeo Sobre alguns temas em Baudelaire trad Joseacute Lino Grunnewald amp outros Os pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1980

mdash Sobre a atual posiccedilatildeo do escritor francecircs in WalterBenjamin trad Flaacutevio R Kothe Sociologia Aacutetica Satildeo Paulo 1985

BERGSON Henri Essai sur les donneacutees immeacutediates de la conscience PUF Paris 2005

BRADBURY Malcom amp McFARLANE James (org) Modernismo - Guia geral trad Denise Bottmann Companhia das Letras Satildeo Paulo 1998

BORGES Jorge Luis Obras completas I-IV Emeceacute Editores Buenos Aires 1989

CALVINO Iacutetalo Seis propostas para o proacuteximo milecircnio trad Ivo Barroso Companhia das Letras Satildeo Paulo 1999

CARNAP Rudolph Le deacutepassement de la meacutetaphysique par lrsquoanalyse logique du langage in SOULEZ Antonia (org) Manifeste du Cercle de Vienne et autres eacutecrists PUF Paris 1985

CHARPIER Jacques amp SEGHERS Pierre(orgs) Lrsquoart poeacutetique Editions Seghers Paris 1956

CIORAN Emile Œuvres Quarto Eacuteditions Gallimard 1995

CONDILLAC Eacutetienne Bonnot de Essai sur lrsquoorigine des connaissances humaines - Ouvrage ougrave lrsquoon reacuteduit agrave un seul principe tout ce qui concerne lrsquoentendement org Raymond Lenoir Librairie Armand Colin 1924

COSSUTTA Freacutedeacuteric (org) Le dialogue introduction agrave un genre philosophique Press Universitaires du Septentrion Paris 2004

DESCARTES Reneacute Discurso do MeacutetodoMeditaccedilotildees Objeccedilotildees e respostas amp As paixotildees da alma Cartas trad J Guinsburg e Bento Prado Juacutenior Os Pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1979

mdash Œuvres de Descartes - Correspondences - avril 1622-feacutevrier 1638 I ed Charles Adam amp Paul Tannery Librairie Philosophique J Vrin Paris 1996

DELEUZE Gilles Loacutegica dos sentidos trad Luiz Roberto Salinas Fortes Perspectiva Satildeo Paulo 2000

mdash amp GUATTARI Feacutelix O que eacute a Filosofia trad Bento Prado Jr amp Alberto Alonzo Muntildeos Editora 34 Rio de Janeiro 2000

DERRIDA Jaques De la grammatologie Minuit 1967

mdash Marges de la philosophie Minuit Paris 1972mdash La voix et le pheacutenomegravene PUF Paris 1967mdash Lrsquoeacutecriture et la diffeacuterence Eacuteditions du Seuil

Paris 1967ECO Umberto A busca da liacutengua perfeita na

cultura europeacuteia trad Antonio Angonese Edusc Bauru 2002

mdash Lector in fabula - A cooperaccedilatildeo interpretativa nos textos narrativos trad Attiacutelio Cancian Estudos Perspectiva Satildeo Paulo 2004

GADAMER Hans-Georg Verdade e meacutetodo -Traccedilos fundamentais de uma hermenecircutica filosoacutefica I-II trad Flaacutevio Paulo Meurer nova revisatildeo da trad Enio Paulo Giachini Vozes amp Editora Universitaacuteria Satildeo Francisco Petroacutepolis amp Braganccedila Paulista 2004

GIDE Andreacute Journal - 1939-1949 - Souvenirs Bibliothegraveque de la Pleacuteiade Gallimard Paris 1988

HAUSER Arnold Histoacuteria social de la literatura y del arte III trad A Tovar amp Varas-Reyes Guadarrana Madri 1976

HORACE Ars poeacutetica trad H R Fairclough org Jeffrey Henderson Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 2005

HURET Jules in Enquecircte sur lrsquoeacutevolution litteacuteraire in lthttpwwwuni-duisburg-essendelyriquetheorietexte1891_hurethtmlgt 2008

KARL Frederick R O Moderno e o Modernismo -A soberania do artista - 1885-1925 trad Henrrique Mesquita Imago Rio de Janeiro 1988

LALOU Reneacute Deacutefense de lrsquohomme (intelligence et sensualiteacute) Sagitaire Simon Kra Paris 1926

LEONARDO da Vince Os escritos de Leonardo da Vince sobre a arte da pintura trad Eduardo Carreira Imprensa Oficial amp Editora Universidade de Brasiacutelia Satildeo Paulo 2000

- 187 -

LUCIAN Dialog of the dead VII no 431 trad M D Macleod org G P Goold Harvard University Press Loeb Classical Library Cambridge amp London 1992

MALLARMEacute Steacutephane Œuvres complegravetes I (1998) e II (2003) org Bertrand Marchal Bibliothegraveque de la Pleacuteiade Gallimard Paris

MAUTHNER Fritz Contribuciones a uma criacutetica del lenguage trad Joseacute Moreno Villa Herder Barcelona 2001

MERELAU-PONTY Maurice A duacutevida de Ceacutezanne trad Marilena de Souza Chauiacute Nelson Alfredo Aguilar amp Pedro de Souza Moraes Os Pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1980

mdash A prosa do mundo trad Paulo Neves Cosac amp Naify Satildeo Paulo 2002

MONTAIGNE Michel Os ensaios I (2002) II (2000) e III (2001) trad Rosemary Costhek Abiacutelio Martins Fontes Satildeo Paulo 2000

MUSIL Robert O homem sem qualidades trad Lya Luft amp Carlos Abbenseth Nova Fronteira Rio de Janeiro 1989

NIETZSCHE Friedrich Asiacute habloacute Zaratustra trad Andreacute Sanches Pascual Alianza Editorial Madrid 1996

mdash Sobre verdade e mentira no sentido extra-moraltrad Rubens Rodrigues Torres Filho Os Pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1974

mdash O nascimento da trageacutedia - Ou helenismo e pessimismo trad J Guinsburg Companhia das Letras Satildeo Paulo 1999

PEIRCE Charles S Philosophical writings of Peirce org Jusus Buchler Dover Publications New York

PESSOA Fernando Obras em Prosa Em umvolume Nova Aguilar Rio de Janeiro 1985

PLATO Cratylus IV no 167 trad Harold North Fowler org G P Goold Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 1992

mdash Parmenides trad Harold North Fowler org Jefrey Henderson Harvard University Press Loeb Classical Library Cambridge amp London 2002 130 A-E pp 208-213

mdash Phaedo Phaedrus I no 36 trad Harold North Fowler org Jefrey Henderson Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 2005

mdash Republic - Books 6-10 trad Paul Shorey Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 2006

mdash Symposium trad W R M Lamb org Jeffrey Henderson amp G P Goold Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 2001

mdash Theaetetus Sophist no 123 trad Harold North Fowler org Jeffrey Henderson Loeb Classical Library Cambridge amp London 2006

POE Edgard Allan Eureka - A prose poem Prometheus Books Nova York 1997

mdash Poemas e ensaios trad Oscar Mendes e Milton Amado revisatildeo e notas Carmen Vera Cirne Lima Globo Satildeo Paulo 1999

PONGE Francis Meacutetodos trad Leda Tenoacuterio da Motta Imago Rio de Janeiro 1997

POPKIN Richard The History of Scepticism -From Savonarola to Bayle Oxford University Press New York 2003

POUND Ezdra Personaelig - Collected shorter poems of Ezra Pound Faber and Faber Londres mcmlii

RORTY Richard M (org) The linguistic turn -Essays in philosophical method - With two retrospective essays The University of Chicago Press Chicago amp Londres 1992

ROUSSEAU Essais sur lrsquoorigine des langues org Jean Starobinski Folio - Essais Gallimard Paris 1993

SAUSSURE Ferdinand Cours de linguistique geacuteneacuterale ed Charles Bally Albert Sechehaye amp Albert Riedlinger (colab) Eacutedition critique preacutepareacute par Tullio de Mauro Payothegraveque Payot Paris 1982

SOULEZ Antonia (org) Manifeste du Cercle de Vienne et autres eacutecrists PUF Paris 1985

WEIL Simone A gravidade e a graccedila trad Paulo Neves Martins Fontes Satildeo Paulo 1993

WITTGENSTEIN Ludwing Investigaccedilotildeesfilosoacuteficas trad Joseacute Carlos Bruni Os Pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1979

mdash Tratactus Logico-Philosophicus trad Luiz Henrique Lopes dos Santos EDUSP Satildeo Paulo 1994

YEATS W B Autobiographies Macmillian amp Co Ltda London Toronto 1961 amp A vision Papermac Pan Macmillian Publishers London Basingstone Hong Kong 1992

ZAMBRANO Maria Filosofiacutea y poesiacutea Fondo de Cultura Econoacutemica Cidade do Meacutexico 1996

PAGE

Universidade de Satildeo Paulo

Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas

Departamento de Filosofia

Programa de poacutes-graduaccedilatildeo em filosofia

Brutus Abel Fratuce Pimentel

Paul Valeacutery

Estudos filosoacuteficos

Satildeo Paulo

2008

Brutus Abel Fratuce Pimentel

Paul Valeacutery

Estudos filosoacuteficos

Tese apresentada ao programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Filosofia sob a orientaccedilatildeo da Profa Dra Olgaacuteria Matos

Satildeo Paulo

2008

Brutus Abel Fratuce Pimentel

Paul Valeacutery - Estudos filosoacuteficos

Tese apresentada ao programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Filosofia sob a orientaccedilatildeo da Profa Dra Olgaacuteria Matos

Comissatildeo examinadora

Prof(a) Dr(a) ________________________

Instituiccedilatildeo ___________________________ Assinatura _____________________

Prof(a) Dr(a) ________________________

Instituiccedilatildeo ___________________________ Assinatura _____________________

Prof(a) Dr(a) ________________________

Instituiccedilatildeo ___________________________ Assinatura _____________________

Prof(a) Dr(a) ________________________

Instituiccedilatildeo ___________________________ Assinatura _____________________

Prof(a) Dr(a) ________________________

Instituiccedilatildeo ___________________________ Assinatura _____________________

Satildeo Paulo _____ de ____________ de _____

A Luto Pimentel Hurtado

Il faut ecirctre leacuteger comme lrsquooiseau et non comme la plume

Paul Valeacutery

SUMAacuteRIO

Resumo 7

Abstract 8

Agradecimentos 9

Abreviaturas 10

1 Diretrizes espirituais 11

11 Caracterizaccedilatildeo a escritura do fragmento ( Introduccedilatildeo) 11

111 Da crise agrave autarquia espiritual 19

1111 O culto ao Iacutedolo do intelecto o eu puro 28

1112 Fazer sem crer 41

2 Personagens ( Escoacutelios) 47

21 Modos de vida 47

211 Leonardo da Vince 50

2111 O fazer 55

212 Edmond Teste 66

2121 O possiacutevel 70

3 Saber e poder 80

31 Sob o signo da ciecircncia 80

311 Criacutetica agrave histoacuteria 89

4 Criacutetica agrave filosofia 95

41 O primado da linguagem 95

411 Insuficiecircncia convenccedilatildeo transitoriedade 99

4111 Automatismo verbal 113

412 Filosofia como forma 121

413 Filosofia como literatura 128

5 Poeacutetica 132

51 Poesia criacutetica 132

511 Poesia pura 134

6 Diaacutelogos socraacuteticos ( Escoacutelios) 145

61 A reinvenccedilatildeo de um gecircnero 145

611 A danccedila de Athiktecirc 151

612 No mundo dos mortos 159

6121 A oraccedilatildeo de Eupalinos 166

6122 Anti-Soacutecrates 174

613 No mundo dos vivos ( Conclusatildeo) 178

Bibliografia 183

Obras de Paul Valeacutery 183

Obras de Paul Valeacutery em portuguecircs 183

Obras coletivas sobre Paul Valeacutery 183

Obras individuais sobre Paul Valeacutery 184

Artigos sobre Paul Valeacutery 185

Obras diversas 185

Resumo

Brutus Abel Paul Valeacutery - Estudos filosoacuteficos Tese (Doutorado) Departamento de Filosofia Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2008

No intuito de realizar um laquoeu puroraquo (laquomoi pureraquo) o poeta Paul Valeacutery (1871-1945) dedica-se ao culto do laquo Iacutedolo do intelectoraquo (laquo Idole de lrsquointellectraquo) a um meacutetodo ceacutetico de auto- consciecircncia expresso numa escrituraccedilatildeo extremamente fragmentada sobre os processos mentais e o fazer artiacutestico (na sua obra puacuteblica e principalmente nos seus Cahiers) Uma das principais consequumlecircncias desse meacutetodo eacute uma digressiva e ambiacutegua critica agrave filosofia a qual esta Tese postula e desenvolve mediante os seguintes estudos sobre a elaboraccedilatildeo de um modo de vida relativamente autocircnomo simultaneamente praacutetico e contemplativo (principalmente nos seus ensaios sobre Leacuteonard de Vinci e Edmond Teste) sobre a diferenccedila entre filosofia e ciecircncia na perspectiva de que todo saber eacute poder sobre a compreensatildeo dos problemas metafiacutesicos como contra-sensos como resultados do laquo automatismo verbalraquo (laquo automatisme verbalraquo) da falta de consciecircncia do funcionamento da linguagem sobre a poeacutetica da poesia pura como aboliccedilatildeo do reacutecit e conciliaccedilatildeo entre poesia e pensamento abstrato sobre a inversatildeo do platonismo em obras hiacutebridas de ficccedilatildeo (principalmente nos seus diaacutelogos socraacuteticos como Lrsquoacircme et la danse e Eupalinos - Ou lrsquoarchitecte) Em todos esses estudos a filosofia eacute compreendida natildeo como uma ciecircncia mas tal como a poesia como um gecircnero artiacutestico uma forma pessoal de organizar esteticamente o caos do mundo

Palavras-chave Paul Valeacutery auto-consciecircncia linguagem filosofia e esteacutetica

Abstract

Brutus Abel Paul Valeacutery - Philosophical studies Thesis (Doctoral) Departamento de Filosofia Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2008

In order to realize a laquopure selfraquo (laquomoi pureraquo) the poet Paul Valeacutery (1871-1945) dedicates to the laquointellect Idolraquo (laquo Idole de lrsquointellectraquo) cult a self-consciousness skeptic method expressed in an extremely fragmented writing about the mental processes and the artistic making (in his public work and mainly in his Cahiers) One of the main consequences of this method is a digressive and ambiguous critic of philosophy which the present Thesis postulates and develops through the following studies about the elaboration of a relatively autonomous life style at the same time practical and contemplative (mainly in his Leacuteonard de Vinci and Edmond Teste essays) about the difference between philosophy and science understanding that all knowledge is power about the comprehension of metaphysical problems as nonsense as result of the laquo verbal automatismraquo (laquo automatisme verbalraquo) the lack of the language operation consciousness about the pure poetry poetic as the reacutecit abolition and conciliation between poetry and abstract thought about the Platonism inversion in hybrids works of fiction (mainly in his socratic dialogues as Lrsquoacircme et la danse and Eupalinos - Ou lrsquoarchitecte) In all these studies philosophy is understood not as a science but such as poetry as an artistic gender a personal form of organizing aesthetically the world chaos

Keywords Paul Valeacutery self-consciousness language philosophy aesthetic

Agradecimentos

A CAPES pelo indispensaacutevel apoio financeiro Agrave profa Dra Olgaacuteria Matos pela confianccedila no estudo sobre um autor pouco explorado em filosofia pela segura orientaccedilatildeo pela amizade e delicadeza Aos professores Dr Franco Moretti Dr Horaacutecio Costa Dr Jorge de Almeida Dr Leon Kossovitch Dr Franklin de Matos Dra Marilena Chaui e Dr Seacutergio Cardoso com os quais tive a oportunidade de conviver como aluno A todos os funcionaacuterios da Biblioteca e do Departamento de Filosofia mantenedores do indispensaacutevel suporte material aos alunos de graduaccedilatildeo e poacutes-graduaccedilatildeo colegas da vida acadecircmica Do Exame de Qualificaccedilatildeo participaram os professores Dra Maria das Graccedilas e Dr Franklin Leopoldo a eles pela paciecircncia e pelas generosas consideraccedilotildees e sugestotildees Agrave profa Dra Anne Shirley pela iniciaccedilatildeo na pesquisa acadecircmica Agrave Madame Suzanne Roger pelas preciosas aulas Ao saudoso prof Dr Joatildeo Alexandre Barbosa pelas conversas e pelo conselho em natildeo deixar de compreender Valeacutery como poeta Enfim a Tereza Thiago e Max minha famiacutelia

Abreviaturas

As citaccedilotildees usadas na Tese procuram ser fieacuteis ao texto original apresentam portanto as lacunas e a pontuaccedilatildeo das quais Paul Valeacutery se serve

Obras de Paul Valeacutery

Amdash Alphabet org Michel Jarrety Le Livre de Poche - Classique Paris 1999

C1 C2 etcmdash Caheirs I-XXIX fac-simileacute CNRS Paris 1957-1961

C1rsquo amp C2rsquomdash Caheirs I (1973) II (1974) choix de textes org Judith Robinson-Valeacutery Bibliothegraveque de la Pleacuteiade Gallimard Paris

C1rsquorsquo C2rsquorsquo etcmdash Cahiers 1894-1914 I (1987) II (1988) III col Blanche (1990) org Nicole Ceylerette-Pietri amp Judith Robinson-Valeacutery IV 1900-1901 (1992) V 1902-193 (1994) VI 1903-1904 (1997) org Nicole Ceylerette-Pietri VII 1904-1905 (1999) VIII 1905-1906 (2001) IX 1907-1909 (2003) org Nicole Ceylerette-Pietri amp Robert Pickering Gallimard Paris

CCmdash Une chambre conjecturale - Poegravemes ou proses de jeunesse par Paul Valeacutery Fata Morgana Montpellier 1981

CLmdash laquo Carnet de Londres raquo 1894 carnet ineacutedit org Florence de Lussy Bibliothegraveque de la Pleacuteiade Gallimard Paris 2005

CRmdash Cartesius redivivus in Cahier Paul Valeacutery no 4 publications de la Societeacute Paul Valeacutery org Jean Levaillant amp Agathe Rouart-Valeacutery Gallimard Paris 1986

CVFmdash amp Fourment Gustav Correspondance 1887-1933 org Octave Nadal Gallimard Paris 1957

CVGmdash amp Gide Andreacute Correspondance 1890-1942 org Robert Mallet Gallimard Paris 1955

LQ mdash Lettres agrave quelques-uns LrsquoImaginaire Gallimard 1997

œ1mdash œuvres I Bibliothegraveque de la Pleacuteiade Gallimard Paris 1997

œ2mdash œuvres II Bibliothegraveque de la Pleacuteiade Gallimard Paris 1993

Πmdash Περὶ τῶν τοῦ θεοῦ - ou des choses divines org Julia Peslier Kimeacute Paris 2005

PA mdash Les Priacutencipes drsquoan-archie pure et appliqueacutee Gallimard Paris 1984

V mdash Vues La Petite Vermillon La Table Ronde Paris 1948

1 Diretrizes Espirituais

11 Caracterizaccedilatildeo a escritura do fragmento

Introduccedilatildeo

Para si mesmo

Marco Aureacutelio Meditaccedilotildees

A Modernidade eacute frequumlentemente caracterizada como um periacuteodo de intensas transformaccedilotildees sociais natildeo raro contraditoacuterias entre si no qual dimensotildees simultaneamente espirituais e praacuteticas como Religiatildeo Arte Ciecircncia e Poliacutetica outrora relativamente unificadas numa ordem ontoloacutegica de sentido e valor se autonomizam e adquirem outras formas de complexidade e poder instaurando assim a laicizaccedilatildeo de modo aparentemente irreversiacutevel E todo esse processo ocorre sob o imperioso signo do desenvolvimento da classe burguesa assentada sobretudo na possibilidade da dinacircmica de seu status social e do sistema capitalista que no intento de expandir as formas de produccedilatildeo e acumulaccedilatildeo fortemente condiciona todas essas dimensotildees Religiatildeo Arte Ciecircncia e Poliacutetica No plano do pensamento o Racionalismo e o Empirismo instaurando o primeiro a cesura entre mundo coisificado e sujeito pensante e o segundo a influecircncia indeleacutevel desse mundo no proacuteprio sujeito podem ser compreendidos como consequumlecircncias simboacutelicas a todo esse desenvolvimento pois contribuiacuteram para a separaccedilatildeo a autonomizaccedilatildeo dessas dimensotildees para a especializaccedilatildeo do proacuteprio saber para a legitimaccedilatildeo da proacutepria accedilatildeo do ser humano frente agrave natureza e ao proacuteprio ser humano Uma accedilatildeo que eacute sobretudo de controle sobre a mateacuteria Doravante eacute com o Iluminismo que tais concepccedilotildees e perspectivas se acentuam e se difundem natildeo raro acompanhadas por uma grande feacute nas capacidades transformadoras da razatildeo do intelecto humano e no irrefreaacutevel progresso da civilizaccedilatildeo na mudanccedila e na mudanccedila para o melhor

A Modernidade no plano do pensamento afirma-se deve afirmar-se portanto como uma constante ruptura Uma ruptura com relaccedilatildeo agraves tradiccedilotildees nas quais por vezes o conhecimento eacute postulado mais como recapitulaccedilatildeo do que invenccedilatildeo Nela faz-se assim presente uma dupla consciecircncia consciecircncia histoacuterica na medida em que as eras satildeo compreendidas como singulares e irreversiacuteveis e consciecircncia psicoloacutegica posto que centrada na primazia do sujeito em sua interioridade no modo como recebe e constroacutei o mundo E isso a tal grau que na literatura surge um tipo de autor um tipo de escritor cujo espiacuterito natildeo mais sentindo a necessidade a obrigaccedilatildeo de ser exclusivamente fiel agrave tradiccedilatildeo na qual foi criado ou a qualquer outra tradiccedilatildeo manifesta essa dupla consciecircncia manifesta-a na sua proacutepria escritura na medida em que afirma como sendo tatildeo-somente por ele escrita e ele um sujeito condicionado ao seu proacuteprio tempo Desenvolve-se por conseguinte na Modernidade o escritor natildeo apenas criacutetico do mundo mas criacutetico de si mesmo o escritor que natildeo apenas concebe e executa obras mas tambeacutem compraz-se em comentaacute-las em analisar e destrinccedilar seus proacuteprios procedimentos seus proacuteprios mecanismos e operaccedilotildees seus proacuteprios segredos em negar-se e afirmar-se em questionar-se mediante aquilo que escreve ou deixa de escrever em filosofar e isso a tal grau que por vezes a sua proacutepria obra adquire o estatuto paradoxal ela mesma de uma criacutetica a uma obra jamais feita mas tatildeo-somente sonhada

Quanto a esse insigne comportamento o poeta francecircs Paul Valeacutery (Segravete 30101871-Paris 20071945) mdashfilho da cultura mediterracircnea e admirador do Iluminismo e do sensualismo-materialista do seacuteculo XVIIImdash eacute paradigmaacutetico O foco de seus interesses voltava-se confessadamente mais para a forma do que para o conteuacutedo mais para a composiccedilatildeo de textos do que para os proacuteprios textos para a accedilatildeo para o fazer que estes representam o meio lhe era mais importante do que o fim o meacutetodo mais do que a meta Compreensiacutevel portanto que sua obra seja hiacutebrida e amiuacutede considerada como uma das mais estranhas da Literatura Moderna Dois aspectos a caracterizam a diletante variedade temaacutetica e a incompletude A literatura e a criacutetica literaacuteria a poesia e a poeacutetica a pintura a escultura a arquitetura as relaccedilotildees entre as artes as desventuras da histoacuteria e da poliacutetica o peso das condiccedilotildees da vida contemporacircnea sobre o resultado dos projetos humanos o misteacuterio dos sonhos as relaccedilotildees entre corpo e espiacuterito a psicologia e a fiacutesica a ldquonaturezardquo da matemaacutetica e da loacutegica a psicologia a consciecircncia o eu a memoacuteria o tempo a linguagem o saber e o poder a miacutestica Todos esses e outros tantos temas satildeo abordados e refletidos mas de modo intensamente digressivo atraveacutes de cortes e de desvios de evasotildees abruptas atraveacutes de inuacutemeras repeticcedilotildees e atualizaccedilotildees circularmente muitas vezes de um modo bastante difuso e vago como se tudo doravante devesse ser retomado relido e reescrito como se tudo fosse perpeacutetuo rascunho a um escrito porvir Quando um determinado tema eacute assim evocado e analisado este se liga ou se funde a tantos outros e como que momentaneamente desaparece deixando espaccedilo para algo inicialmente oculto e quiccedilaacute mais importante Diferentemente da grande parte dos sistemas filosoacuteficos natildeo haacute sequumlecircncias cronoloacutegicas ou didaacuteticas natildeo haacute hierarquias fixas de sentido e raras satildeo as categorias centrais palavras-chave que possam ser destacadas estudadas interpretadas e usadas em separado Sob o conceito a sombra da duacutevida sempre incide

O segmento dessa obra que primeiro veio a puacuteblico aquele que desencadeou a precoce celebridade do poeta e a primeira fase de sua fortuna criacutetica constitui-se sobretudo de riacutegida poesia metafiacutesica herdeira de um Simbolismo com aspiraccedilotildees musicais e esoteacutericas presente em poemas hoje canocircnicos como La jeune parque Eacutebauche drsquoun serpent e Le cimetiegravere marin constitui-se tambeacutem de criacuteticas discursos e prefaacutecios de ensaios aforismos contos e diaacutelogos todos formas breves como Introduction agrave la meacutethode de Leacuteonard de Vinci Monsieur Teste e diaacutelogos socraacuteticos como Lrsquoacircme et la danse e Eupalinos - Ou lrsquoarchitecte Se vaacuterios desses escritos foram concebidos sob a forccedila das circunstacircncias isto eacute comissionados para leitores ou puacuteblicos determinados e restritos isso se deve tanto agrave judiciosa resistecircncia agrave publicaccedilatildeo quanto ao extremo preciosismo do poeta daiacute as inuacutemeras versotildees de um mesmo poema por vezes consideradas contraditoacuterias Conta-se que demorava muito para revisar e reescrever como esta vasta summa de interpretaccedilotildees e criacuteticas de reflexotildees sobre obras alheias sobre a arte a literatura e a filosofia que compotildeem a sua Varieacuteteacute Nesta num texto exemplar de poeacutetica moderna Au sujet du lsquoCimetiegravere marinrsquo ele chega a se referir a uma laquo Eacutetica da forma que conduz ao trabalho infinitoraquo ao laquotrabalho pelo trabalhoraquo agrave laquoretomada indefinidaraquo concebendo qualquer composiccedilatildeo escrita por mais organizada que aparentemente esteja como nunca verdadeiramente acabada mas simplesmente abandonada devido a um acidente qualquer Porque a finitude das obras eacute determinada pelas contingecircncias da vida natildeo pela intenccedilatildeo daquele que a vive

Da obra de Valeacutery haacute ainda um outro segmento dir-se-ia secreto no qual essas caracteriacutesticas a diletante pluralidade temaacutetica e a incompletude se acentuam ao grau extremo do paroxismo os seus Cahiers Publicados postumamente redefiniram a sua crescente fortuna criacutetica ao mostrar um maior leque de seus interesses e obsessotildees Preenchidos diariamente por volta das seis agraves nove da manhatilde de 1894 a 1945 numa espeacutecie de riacutegida disciplina monaacutestica por palavras frases e paraacutegrafos soltos por esboccedilos desenhos e aquarelas esses 261 dossiecircs podem ser compreendidos como uma coleccedilatildeo de reflexotildees e de foacutermulas de esquemas a representar aquilo que foi denominado de laquoComeacutedia Intelectualraquo (laquoComeacutedie Intellectuelleraquo) mdashcomeacutedia proposta inicialmente em seus ensaios sobre Leonardo mas que natildeo deixaraacute de ser atualizada direta ou indiretamente em outras obras de ficccedilatildeo e poesiamdash laquoAutodiscussatildeo infinitaraquo (laquoAutodiscussion infinieraquo) laquoA teoria de si-mesmoraquo (laquoLa theacuteorie de soi-mecircmeraquo) laquoObra de arte feita com os fatos do proacuteprio pensamentoraquo (laquoœuvre drsquoart faite avec les faits de la penseacutee mecircmeraquo) satildeo outras tantas significativas expressotildees usadas pelo proacuteprio poeta para tentar definir esse idiossincraacutetica empresa por vezes tambeacutem uma espeacutecie de canteiro de experimentaccedilotildees para futuros projetos Daiacute textos autocircnomos prenhes de sarcaacutesticos aforismos e reflexotildees como Meacutelange Tel Quel Mauvaises penseacutees et autres e Regards sur le monde actuel et autres essais serem em determinado aspecto derivaccedilotildees ou recortes dos proacuteprios Cahiers

O procedimento empregado nos Cahiers difere entretanto da simples anotaccedilatildeo comentada de fatos e acontecimentos do tradicional diaacuterio ou journal como os que foram escritos por um Amiel disposto a revelar as intimidades e as anguacutestias da vida cotidiana e um Gide resoluto tambeacutem em representar o panorama social no qual o escritor se engaja laquoEu natildeo escrevo meu ldquodiaacuteriordquoraquo confessa o poeta laquomdash Seria aborrecido escrever aquilo que eu viria a esquecer Aquilo que natildeo custa nada mais do que o tormento imenso de escrever o que natildeo vale nadaraquo Valeacutery desenvolve assim a disciplina de uma escrituraccedilatildeo natildeo sobre a sua vida pessoal natildeo sobre os eventos exteriores e particulares pelos quais passa mas sobre o seu proacuteprio espiacuterito e as leis que o regem sobre os variados temas que lhe satildeo caros na medida em que estes possam principalmente esclarecer sobre essas proacuteprias leis Isso tambeacutem se deve a uma confessa ldquofraquezardquo ou ldquodeficiecircnciardquo mnemocircnica a uma incapacidade em se recordar de eventos de detalhes ou de minuacutecias ou em outras palavras a um idiossincraacutetico desapego ao proacuteprio passado o que talvez iraacute se refletir em certa medida nas suas reflexotildees sobre a aspiraccedilatildeo da histoacuteria em ser uma disciplina positiva ou cientiacutefica O poeta natildeo busca reconstituir tampouco lamenta aquilo que passou aquilo que natildeo realizou ou deixou de realizar aquilo que simplesmente natildeo se pode mudar Para ele o tempo jamais eacute um ldquotempo perdidordquo laquoNatildeo busco o tempo perdidoraquo afirma laquoque eu antes rejeitaria Meu espiacuterito soacute se compraz na accedilatildeoraquo Daiacute que por vezes considerou-se e foi considerado no panorama da Literatura Moderna como uma espeacutecie de ldquoantagocircnicordquo de Proust principalmente no que diz respeito tanto agraves idiossincrasias como aos programas literaacuterios de ambos O seu pensamento eacute sobretudo voltado para este jogo constante entre generalidades e particularidades entre imaginaccedilotildees e abstraccedilotildees entre siacutembolos e iacutecones sem que haja uma hierarquia vertical de valores entre essas polaridades e sobretudo para o tempo presente um tempo presente prenhe de possibilidades laquoOs acontecimentos satildeo a espuma das coisasraquo escreve em tom altamente metafoacuterico laquoMas eacute o mar que me interessa Eacute no mar que se pesca eacute sobre ele que se navega eacute nele que se mergulharaquo

Ademais o poeta constantemente revela que em seus Cahiers aspirou e ateacute mesmo tentou construir uma espeacutecie de laquo Sistemaraquo (laquo Systegravemeraquo) por ele compreendido paradoxalmente ora como filosoacutefico ora como natildeo filosoacutefico Em todo caso seria um Sistema que representasse uma totalidade uma arquitetocircnica soacutelida finita e fechada uma cosmovisatildeo uma doutrina um discurso contiacutenuo coeso e coerente cujas proposiccedilotildees constitutivas se conectariam entre si por uma riacutegida loacutegica e todas a um uacutenico princiacutepio um uacutenico indiviacuteduo um laquoponto individualraquo (laquoEuraquo) (laquopoint individuel (laquoMoiraquo)) e impessoal Esse Sistema seria tambeacutem uma laquoteoria do funcionamentoraquo (laquotheacuteorie du fonctionnementraquo) uma forma de explicar o todo natildeo mais atraveacutes de noccedilotildees consideradas propiacutecias a obscuridades e confusotildees metafiacutesicas como as noccedilotildees de causa realidade tempo e espaccedilo mas atraveacutes da noccedilatildeo de funcionamento uma forma de explicar o todo mdashpor vezes compreendido pelo poeta atraveacutes de trecircs principais categorias amiuacutede referidas laquoCorporaquo (laquo Corpsraquo) laquoEspiacuteritoraquo (laquo Espritraquo) e laquoMundoraquo (laquo Monderaquo) comumente designadas pela sigla CEMmdash natildeo mais atraveacutes da noccedilatildeo de substacircncia mas atraveacutes da noccedilatildeo de funcionamento natildeo mais um substancialismo mas um funcionalismo Esse modo de abordar o todo no qual se busca responder o como e natildeo o porquecirc das coisas e dos agenciamentos das coisas revela o caraacuteter positivo ou cientiacutefico do pensamento valeacuteryano caraacuteter que seraacute uma constante principalmente quando a linguagem e a filosofia estiverem em pauta

Todavia toda essa acircnsia em compreender a totalidade sofre no labiriacutentico e lacunar transcurso dos Cahiers sucessivas contraccedilotildees sucessivas derrotas reduzindo consequumlentemente a abrangecircncia da ambiccedilatildeo ldquoinicialrdquo por vezes o Sistema aparece como meacutetodo (ou literatura potencial) aparece como uma estrateacutegia de laquo imagens funcionaisraquo (laquo images fonctionnellesraquo) que seria na perspectiva valeacuteryana laquouma forma capaz de receber todas as descontinuidades todas as heterogeneidades da consciecircnciaraquo uma forma capaz de axiomatizar a si mesmo seus pensamentos atraveacutes de uma espeacutecie de notaccedilatildeo ou de uma linguagem perfeita uma linguagem pura com a qual se representariam todas as coisas sem deformidades uma laquo Geometria do Todoraquo (laquo Geacuteomeacutetrie du Toutraquo) tal como a geometria analiacutetica de Descartes trata as figuras geomeacutetricas por vezes o Sistema aparece ainda simplesmente mais como um modo de organizar e utilizar seu proacuteprio pensamento que lentamente se acumula nas inuacutemeras paacuteginas que coleciona laquoO problema no qual eu me encontro cada vez mais encurraladoraquo anota por fim laquoeacute o problema de organizar meus pensamentos e de os organizar natildeo exteriormente mas organicamente e utilmenteraquo Daiacute tambeacutem a intenccedilatildeo de estruturar os Cahiers mdashque agora podem muito bem ser compreendidos em parte como o resultado desse Sistema natildeo feitomdashcomo uma espeacutecie de dicionaacuterio filosoacutefico gecircnero que lhe eacute caro e ao qual sempre se refere como o mais adequado (ou o menos problemaacutetico) agrave organizaccedilatildeo de seus escritos Passar os seus pensamentos escritos do caos agrave ordem eis o que acaba sendo ao fim o que simplesmente pretende ou o que simplesmente pode pretender laquoProjeto meu Dicionaacuterio Filosoacutefico ou o meio mais simples de me expor agrave mateacuteria desses cadernos mdash e de me poupar o mal os defeitos e o iacutentimo ridiacuteculo (de mim mesmo) de um Sistemaraquo Ou ainda laquoMinha filosofia mdash eacute necessaacuterio resolver fazer esses cadernos por secccedilotildees e temasraquo

O comportamento de Valeacutery eacute portanto de uma estranha ambiguumlidade Apesar da aspiraccedilatildeo e das inuacutemeras tentativas em construir um Sistema se realmente eacute possiacutevel se referir a tentativas genuiacutenas ele parece natildeo fazer muito esforccedilo para concretizaacute-lo formalmente em uma doutrina ou em um livro acabado Ao mesmo tempo em que o persegue como uma possiacutevel siacutentese de suas reflexotildees rejeita-o como se ele natildeo tivesse tanta importacircncia como se fosse um projeto propositadamente nascido para ser irrealizado Quiccedilaacute ele intua a forte e imperiosa condiccedilatildeo de uma sociedade que por mais que exija o ato de concluir tambeacutem o impede a Ciecircncia Moderna o espiacuterito positivo e a laicizaccedilatildeo constrangem mediante agrave concepccedilatildeo de que o saber eacute uma dinacircmica e natildeo uma estaacutetica os impulsos agrave siacutentese totalizadora que cedem lugar agrave anaacutelise parcial mais pragmaacutetica e propiacutecia a dar resultados efetivos e utilizaacuteveis no campo da praacutetica a vida torna-se cada vez mais uma celerada sucessatildeo de lacunas difiacuteceis de serem preenchidas pelo sujeito que se encontra diante de inuacutemeras e divergentes concepccedilotildees de mundo diante de outras formas de pensar O sentido do todo se esvai ou se relativiza pateticamente confrontando-se com outros tantos sentidos e o sistema torna-se assim um caminho difiacutecil e problemaacutetico Pois por mais que se tente forte eacute a compreensatildeo que haacute sempre um mais aleacutem no mundo algo que as teorias humanas natildeo datildeo conta Como Kierkegaard e Nietzsche como Wittgenstein e Cioran o poeta tambeacutem escreve apoacutes o desencanto do pensamento filosoacutefico para com os grandes edifiacutecios filosoacuteficos e para com as possibilidades de se fazer da metafiacutesica uma ciecircncia das coisas transcendentes um saber e desse saber um absoluto O periacuteodo do Racionalismo Claacutessico de um Descartes um Espinosa e um Leibniz do Idealismo Alematildeo de um Hegel parece jaacute haver passado tampouco o projeto de uma obra de arte total siacutentese aglutinante de todas as outras como o que ainda se propocircs um Wagner tambeacutem foi minado Abarcar a totalidade numa forma de representaccedilatildeo plenamente organizada fazer com que o mundo ou melhor uma representaccedilatildeo do mundo se acomode numa hierarquia fixa de valores e sentidos revelou-se um sonho utoacutepico que por vezes conteacutem mesmo que sub-repticiamente intenccedilotildees totalitaacuterias A identificaccedilatildeo nem sempre verdadeira e justa entre sistema e dogma faz-se agora mais recorrente e por vezes intoleraacutevel Hoje soam falsas e pretensiosas as filosofias que se apresentam como sistemas totais

Entretanto natildeo eacute apenas pelo prisma eacutetico que a aspiraccedilatildeo ao sistema se problematiza mas tambeacutem pelo prisma gnosioloacutegico O proacuteprio Valeacutery demonstra consciecircncia disso Em seu ceacutelebre ensaio Au sujet drsquolsquoEurecirckarsquo no qual versa sobre este que eacute um dos textos que mais marcou seu proacuteprio pensamento a excecircntrica cosmogonia de Edgar Allain Poe Eureka - A prose poem ele executa uma dura criacutetica agrave crenccedila num princiacutepio absoluto agrave crenccedila na criaccedilatildeo do universo e no proacuteprio universo enquanto totalidade ontoloacutegica plenamente apreendida pelo sujeito considerando-o como uma laquoexpressatildeo mitoloacutegicaraquo (laquoexpression mythologiqueraquo) Ao fim todo sistema soacute poderaacute ser um sistema pessoal soacute poderaacute funcionar de modo pleno para aquele que nele crecirc e a ele adere para aquele que o cria e dele se utiliza porque seria necessaacuterio sair de si mesmo e ser todos e cada um porque seria necessaacuterio contemplar cada coisa por todas as perspectivas por todos os acircngulos para se construir verdadeiramente um sistema total Em uacuteltima instacircncia o sujeito eacute capaz de pensar conceitualmente o todo mas natildeo eacute capaz de verificar se esse pensamento conceitual sobre o todo corresponde agrave realidade

O poeta desconfia deve desconfiar portanto da possibilidade de explicar a realidade e a si mesmo o corpo o espiacuterito e o mundo (CEM) por um uacutenico princiacutepio por uma uacutenica obra cativo da intuiccedilatildeo de que a verdade mdashtermo significativamente raro em seus escritos em favor do termo possibilidademdash mesmo sendo em determinada definiccedilatildeo una soacute pode ser enunciada de modo incompleto como perspectiva laquoEsses cadernos satildeo o meu viacutecio Eles satildeo tambeacutem anti-obras anti-finsraquo assim confirma denunciando tambeacutem a artificialidade de todo gecircnero literaacuterio laquoNo que concerne ao ldquopensamentordquo as obras satildeo falsificaccedilotildees pois elas eliminam o provisoacuterio e o natildeo-reiteraacutevel o instantacircneo e a mistura pura e impura desordem e ordemraquo Dessarte o Sistema ou melhor a meta em se constituir um Sistema a acircnsia de compreender a totalidade acaba se tornando nada mais do que um artifiacutecio heuriacutestico Um artifiacutecio cujo resultado eacute a mais intensa soma de ldquofracassosrdquo de ldquotentativasrdquo e ldquoesterilidadesrdquo de repeticcedilotildees e atualizaccedilotildees de experimentaccedilotildees de paraacutegrafos e frases incompletas de palavras soltas de um pensamento que natildeo se quis completar em obra a mais intensa e desconcertante fragmentaccedilatildeo Eis no que se materializa quase tudo aquilo que escreve o material bruto sempre disperso e fluido no qual o inteacuterprete cumpre estudar e cuidar para natildeo falsear em uma ordem (entre tantas outras possiacuteveis) jamais intencionada pelo poeta Os Cahiers nascem assim como um vitral estilhaccedilado um quebra-cabeccedila Satildeo inuacutemeras as peccedilas as passagens ou potencialidades agrave espera que outros executem as suas possiacuteveis montagens e interpretaccedilotildees Se interpretar um conjunto de escritos eacute um constante ir e vir um diaacutelogo ou uma dialeacutetica entre as partes e o todo entatildeo interpretar o pensamento de Valeacutery tambeacutem pressupotildee primeiramente juntar determinados fragmentos que legou numa linha coerente de sentido mas sempre consciente de que o objeto interpretado eacute sobretudo um estado extremamente provisoacuterio e fraacutegil laquoTudo o que eacute escrito nesses cadernos meus tem a caracteriacutestica de natildeo querer jamais ser definitivoraquo laquoFalta-me um alematildeo que conclua as minhas ideacuteiasraquo assim expressa-se o poeta numa irocircnica referecircncia aos gigantescos sistemas do Idealismo Alematildeo Natildeo terminar recusar-se a cumprir o dever mdashexigecircncia tatildeo presente no capitalismo burguecircsmdash de resultar em algo veio a ser uma espeacutecie de deliacutecia para esse escritor que se concentrava no fluir de todas as coisas e agrave possibilidade de formular na loacutegica desse fluir Dizia assim em uma de suas recorrentes metaacuteforas sobre sua escritura que seu trabalho como escritor era anaacutelogo ao de uma fiel Peneacutelope a fazer e a desfazer o manto e a esperar por um aventureiro Odisseu Desse modo atraveacutes do fragmento ele pode mais facilmente transitar de frase em frase de palavra em palavra sem nunca se entregar ao perigo de uma conclusatildeo final e abordar com mais desenvoltura e rapidez os seus variados temas Isso implica naturalmente a ocorrecircncia quase inevitaacutevel de uma seacuterie de contradiccedilotildees Mas o poeta natildeo as nega e natildeo as esconde ao contraacuterio natildeo raro as incita e as valora de modo positivo Pois elas natildeo representam hesitaccedilotildees recuos arrependimentos culpas mas sobretudo etapas a serem cumpridas laquoNossas contradiccedilotildeesraquo lucidamente escreve laquosatildeo o testemunho e os efeitos da atividade de nosso pensamentoraquo

A arte que se pratica eacute portanto a arte do ensaio Ensaio cujo iniacutecio se desconhece e cujo fim foi interrompido A escritura de Valeacutery eacute assim relativamente anaacuteloga agravequela que Michel de Montaigne inaugurou apesar do distanciamento cronoloacutegico que o separa do fidalgo com quem parece natildeo ter muitas afinidades temaacuteticas ele poderia muito bem dizer laquoNatildeo retrato o ser Retrato a passagemraquo Todavia trata-se agora de retratar a dimensatildeo mais abstrata mais eteacuterea da passagem uma dimensatildeo em ruiacutenas de retratar a si mesmo um espiacuterito que ao refletir e escrever mdashou ao menos tentar refletir e escrevermdash sobre inuacutemeros temas com isso frequumlentemente aspira por um lado agrave sua proacutepria dissoluccedilatildeo enquanto escritor e por outro a sua proacutepria construccedilatildeo enquanto eu Os escritos de Valeacutery configuram-se como uma anti-obra

111 Da crise agrave autarquia espiritual

Convencer eacute infrutiacutefero

Walter Benjamin Rua de matildeo uacutenica

Contudo toda essa diletante variedade temaacutetica e incompletude toda essa fragmentaccedilatildeo natildeo resultam apenas da resposta mecacircnica agraves limitaccedilotildees e possibilidades impostas por um contexto histoacuterico e pela desconfianccedila no beneplaacutecito do sistema Haacute tambeacutem em Valeacutery em seu oscilante itineraacuterio espiritual o peso de um confesso e estranho periacuteodo de crise cujas consequumlecircncias fazem-se presentes reverberam em reflexotildees sobre si mesmo e sua atividade como escritor sobre sua concepccedilatildeo acerca da linguagem e sua criacutetica agrave filosofia sobre grande parte desse seu proceder de seu meacutetodo e meta O aacutepice desse periacuteodo eacute frequumlentemente datado (sem muita precisatildeo) da noite do dia 4 ao dia 5 de Outubro do ano de 1892 o local um quarto de um ex-convento restaurado em apartamentos um dos quais pertencente a sua tia e a seu tio os Cabella na Salita di san Francesco uma ruela em Gecircnova onde juntamente com sua matildee Fanny e seu irmatildeo Jules Valeacutery o poeta empreendia uma viajem agrave Itaacutelia de seus antepassados (pelo lado materno seu avocirc era genovecircs e sua avoacute triestina) Amiuacutede foi batizada pelo proacuteprio poeta de laquoNoite de Gecircnovaraquo (laquoNuit de Gecircnesraquo) ou sugestivamente adjetivada de laquoGolpe de estadoraquo (laquoCoup drsquoeacutetatraquo) expressatildeo esta bastante recorrente em seus escritos

Os relatos dessa noite satildeo pelo suposto impacto sofrido pateacuteticos e desconexos como soem ser frequumlentemente todas os momentos de crises todos os iniacutecios Mas o inteacuterprete natildeo pode deixar de descartar que haja neles muito de dramatizaccedilatildeo e exagero de mise en scegravene dir-se-ia que faz parte da lenda do poeta lenda que ele mesmo sentiu em vida e natildeo quis dissipar laquoNoite horriacutevelraquo assim escreve Valeacutery num ceacutelebre relato laquopermaneccedilo sentado sobre minha cama Tempestade por todo lado Meu quarto me assombra a cada claratildeo E todo o meu destino se concentra em minha cabeccedila Eu estou entre eu e eu Noite infinita Criacutetica Talvez seja o efeito desta tensatildeo do ar e do espiacuterito E essas violentas rebentaccedilotildees redobradas do ceacuteu essas bruscas iluminaccedilotildees sofreadas entre os muros puros de cal nua Eu me sinto outro esta manhatilde Mas mdash sentir-se Outro mdash isso natildeo pode durar mdash [] que o novo homem absorva e anule o primeiroraquo

Haacute doravante um outro relato justamente no iniacutecio do ensaio Au sujet drsquolsquoEurecirckarsquo no qual Valeacutery descreve de modo mais preciso o seu estado de espiacuterito no periacuteodo de crise e ao redor da Noite de Gecircnova eacute uma compreensatildeo de si nada condescendente que revela o quanto o entusiasmo acerca das ideacuteias torna-se na oscilante juventude ldquofogo-de-palhardquo nasce e morre com grande facilidade laquoEu tinha vinte anos e acreditava no poder do pensamento Sofria estranhamente de ser e de natildeo ser Por vezes sentia infinitas forccedilas Elas caiacuteam ante os problemas e a fraqueza de meus poderes positivos me desesperava Eu era taciturno ligeiro faacutecil em aparecircncia duro no fundo extremo no desprezo absoluto na admiraccedilatildeo faacutecil de impressionar impossiacutevel de convencer Tinha feacute em algumas ideacuteias que vieram a ter comigo Eu tomava a conformidade que elas tinham com meu ser que as haviam engendrado por uma marca de seu valor universal aquilo que se aparecia tatildeo nitidamente ao meu espiacuterito parecia invenciacutevel o que engendra o desejo eacute sempre o que resulta mais claro Conservava essas sombras de ideacuteias como segredos de Estado Tinha vergonha de suas estranhezas tinha medo que fossem absurdas sabia o que elas eram e o que elas natildeo eram Eram vatildes por si mesmas poderosas pela forccedila singular que me davam a confidecircncia que me guardava A inveja desse misteacuterio de debilidade me inundava de uma espeacutecie de vigor Havia deixado de fazer versos quase natildeo lia As novelas e os poemas me pareciam apenas aplicaccedilotildees particulares impuras e semi-inconscientes de algumas propriedades aplicadas a esses famosos segredos que acreditei encontrar um dia somente por esta garantia sem relaxamento que eles deveriam necessariamente existir Quanto aos filoacutesofos os quais havia apenas frequumlentado me irritava sobre esse pouco que eles natildeo respondiam nunca a nenhuma das dificuldades que me atormentavam Soacute me produziam aborrecimentos jamais o sentimento de que comunicassem qualquer poder verificaacutevel E ademais me parecia inuacutetil especular sobre abstraccedilotildees que natildeo se houvera definido anteriormente [] Havia metido o nariz em alguns miacutesticos Resulta impossiacutevel criticaacute-los pois neles soacute se encontra o que se colocaraquo

O que desencadeou o periacuteodo de crise e a Noite de Gecircnova mdashesta que para a Histoacuteria da Literatura Moderna eacute menos como um fato e mais como um siacutembolo como a concentraccedilatildeo de todo uma transformaccedilatildeo e um raacutepido amadurecimentomdashfoi em parte e segundo alguns comentadores a paixatildeo natildeo declarada a uma tal dama de Rovira Mme de Rovira baronesa catalatilde mas tambeacutem natildeo se pode descartar uma seacuterie de outros acontecimentos que desde haacute muito se acumulavam na vida do jovem e hipersensiacutevel poeta o doloroso serviccedilo militar o teacutermino de seus estudos universitaacuterios e as incertas perspectivas profissionais (incertezas que sempre formam uma sombra em sua biografia) a releitura de Eureka de Poe e a leitura de Illuminations de Rimbaud os estudos matemaacuteticos e cientiacuteficos a lhe revelarem um mundo de ldquoprecisatildeordquo e ldquorigorrdquo diferente do ldquovagordquo mundo da literatura e da miacutestica a morte do pai a doenccedila da matildee um primeiro contato com as ruas os cafeacutes os salotildees de uma efervescente Paris

Entretanto todos esses acontecimentos pertencem mais agrave ordem factual da vida do que espiritual Nesta a mais importante o periacuteodo de crise e a Noite de Gecircnova ambos podem muito bem ser interpretados como o resultado e a conscientizaccedilatildeo de uma tensatildeo Tensatildeo que indeleacutevel natildeo cessaraacute de todo e marcaraacute a pessoa e todo o pensamento de Valeacutery entre dois poacutelos dois impulsos dois desejos entre o sentimento e a inteligecircncia entre a pessoalidade e a impessoalidade entre um lado emocional facilmente excitaacutevel e um lado intelectual que aspira por um maior grau de consciecircncia e por controle Como confessa o proacuteprio poeta numa frase exemplar que em muito sintetiza o teor do seu espiacuterito e obra laquoEu penso como um racionalista arqui-puro Eu sinto como um miacutesticoraquo (laquoJe pense en rationaliste archi-pur Je sens en mystqueraquo) Ou ainda laquoPor um lado eu considero e julgo as coisas com uma extrema e assustadora frieza por outro eu as sinto terrivelmente E entre essas coisas a idade as outras pessoasraquo Essa tensatildeo ainda se multiplicaraacute e se desdobraraacute em sua obra em outras tantas particularizaacuteveis no plano epistemoloacutegico entre a abstraccedilatildeo e a concretude o siacutembolo e o iacutecone entre um espiritualismo racionalista e um sensualismo empirista ou ainda como diz Maurice Blanchot entre laquoA abstenccedilatildeo criadora e a presenccedila invencivelmente atual entre o desejo do espiacuterito de estar separado e sua necessidade de perguntar ao corpo a prova de seus poderes entre o nada que eacute a vida da consciecircncia e o nada da consciecircncia que eacute vivaraquo no plano eacutetico entre o desengajamento e o engajamento entre a vita contemplativa e a vita ativa

Soma-se a essa tensatildeo mistura-se a ela a partir do periacuteodo de crise e da Noite de Gecircnova a aquisiccedilatildeo de uma consciecircncia extrema visceral bem aos moldes do Ceticismo Antigo do quanto agrave realidade esta eacute composta e mediada por convenccedilotildees humanas demasiado humanas por arbitrariedades sejam estas fiacutesicas ou psiacutequicas eacuteticas ou esteacuteticas sejam essas necessaacuterias ou desnecessaacuterias do quanto tudo eacute relativo Para usar de uma reflexatildeo que soa ao estilo de Leibniz se haacute um espanto filosoacutefico valeacuteryano esse espanto natildeo eacute ante o haver alguma coisa ao inveacutes do nada (como geralmente ocorre no registro do Cristianismo) mas ante as coisas serem assim e natildeo de outro modo (como geralmente ocorre no registro da Antiguumlidade Claacutessica) laquomdash O impressionante natildeo eacute que as coisas sejam mas que elas sejam dessa maneira e natildeo de outraraquo O delirante pensamento mdashde que ldquotudo pode ser realmente diferente natildeo de modo metafoacuterico mas literalrdquomdash eacute uma possibilidade ldquouniversalrdquo E eacute essa possibilidade uma das fontes mais poderosas do insone pensamento de Valeacutery

Aquilo que outrora num mundo menos laicizado poder-se-ia ser compreendido como morte e renascimento espiritual a superaccedilatildeo do periacuteodo de crise e da Noite de Gecircnova o conduziu a um progressivo aniquilamento de todas essas tensotildees ou ao menos a uma conciliaccedilatildeo possiacutevel entre as polaridades que a constituem conduziu-o tambeacutem a uma progressiva conversatildeo a si mesmo O que haacute que se dizer natildeo impediu que ele sofresse outras tantas crises de menor impacto jaacute que tudo se constitui como uma tentativa A partir de entatildeo na esfera privada o poeta busca suprimir estoicamente as ilusotildees causadas pelas ldquopaixotildeesrdquo e na esfera puacuteblica suspende ao menos provisoriamente a escritura de poesias escritura agrave qual posteriormente retomaraacute mais por interesse na poeacutetica ou na loacutegica da estrutura verbal do poema do que pelo poema em si e se afasta em definitivo dos pressupostos parnasianos e de um misticismo idealista-romacircntico do tipo fin-de-siegravecle decadentista que anterior aderira e doravante denunciou como inadequados a seu novo caminhar a partir de entatildeo ele define aquilo que seraacute denominado aqui como uma espeacutecie de programa de autoconsciecircncia cuja manifestaccedilatildeo exterior mais contundente se expressa em seus Cahiers e em menor grau em sua obra puacuteblica

Esse programa de autoconsciecircncia mdashque obviamente natildeo pode ser estabelecido como um planejar o caminho antes de caminhar mas um planejar o caminho no proacuteprio caminharmdash inicia-se com extremo radicalismo com uma espeacutecie de tabula rasa ou ao menos uma tentativa (e tatildeo-somente tentativa) de comeccedilar ou recomeccedilar de um postulado zero eacute inicialmente um aspirar um almejar aquilo que aqui pode ser denominado de autarquia intelectual de autarquia espiritual eacute um tornar o seu espiacuterito o mais distanciado o mais autocircnomo o mais livre possiacutevel do legado de problemas de uma tradiccedilatildeo literaacuterio-filosoacutefica Pois esses problemas natildeo satildeo necessariamente considerados como problemas por aquele que os recebe Se ele o poeta os aceita sem refletir sem analisaacute-los ou destrinccedilaacute-los sem sentir ou intuir como tais entatildeo ele os aceita comodamente com automatismo mdashe automatismo eacute justamente aquilo que deve ser evitado sendo um estado contraacuterio ao exigido pelo seu proacuteprio programa de autoconsciecircnciamdash A adesatildeo a uma ideacuteia tal processo deve ocorrer portanto com extremo cuidado se realmente deve ocorrer Porque ao fim o caminho espiritual ou intelectual de um homem somente pode ser caminhado por ele e tatildeo somente por ele Natildeo se pode pensar o que um outro pode pensar natildeo de modo idecircntico porque entatildeo ambos seriam o mesmo do mesmo modo que natildeo se pode viver o que um outro pode viver natildeo de modo idecircntico porque entatildeo ambos seriam o mesmo Haacute no maacuteximo analogias paralelismos parentescos influecircncias um caminhar junto mas jamais identidades absolutas entre pensamentos ou entre sistemas de pensamentos assim como entre trajetoacuterias de vida Tudo o que vem de fora tudo o que vem dos outros todas as ideacuteias todas as crenccedilas e doutrinas todos os dogmas e aporias todas as perguntas e respostas todas as certezas e duacutevidas que durante largo tempo foram se configurando e por vezes se cristalizando ao grau de serem natildeo raro introjetadas como condiccedilotildees naturais intriacutensecas natildeo deveriam ser aceitas a partir de entatildeo displicente e comodamente como se o espiacuterito fosse apenas um vasto depositaacuterio relativamente passivo daquilo que outros inventaram e legaram e natildeo um poderoso crivo e um transformador criacutetico de tudo aquilo que recebe

Eis porque natildeo raro Valeacutery que tanto apreciava as definiccedilotildees metafoacutericas e sinteacuteticas frequumlentemente refere-se a si mesmo como um Robson Crusoeacute do espiacuterito O fantaacutestico e paradigmaacutetico personagem de Daniel Defoe vasto siacutembolo de uma ambiacutegua e engenhosa vontade civilizadora do homem que a partir da natureza bruta inventa suas proacuteprias artificialidades e problemas representa para o poeta natildeo apenas a teacutecnica que lhe permite accedilatildeo no mundo exterior mas sobretudo a teacutecnica que lhe permite accedilatildeo no mundo interior isto eacute um homem que inventa seus proacuteprios problemas teoacutericos e tenta solucionaacute-los com os proacuteprios meios de que dispotildee sem recorrer a outros laquoSou um miseraacutevel Robinsonraquo descreve-se laquonuma ilha de carne e de espiacuterito rodeado por todas as partes de ignoracircncia e fabrico generosamente meus utensiacutelios e minhas artesraquo Assim se manifesta o ldquoindividualismordquo o ldquoegotismordquo valeacuteryano como uma poderosa feacute em si mesmo um insistente querer fazer as coisas por si mesmo e independente dos outros e do que os outros iratildeo pensar ou julgar

Um exemplo dessa incisiva atitude encontra-se de modo exagerado e paradoxal num breve diaacutelogo socraacutetico intitulado Orgueil pour orgueil Nesse diaacutelogo cuja estrutura remete agrave eriacutestica sofiacutestica Anaxaacutegoras confronta-se com Soacutecrates mas um Soacutecrates relativamente distinto daquele que seraacute apresentado nos grandes diaacutelogos Eupalinos e Lrsquoacircme et la danse

laquoAnaxaacutegoras Se vocecirc tem razatildeo posto que eu natildeo sou vocecirc vocecirc natildeo pode ter verdadeiramente razatildeo oacute Soacutecrates Eacute necessaacuterio entatildeo que eu ainda reflita Eacute necessaacuterio que retomando o que vocecirc me disse e partindo do estado no qual vocecirc colocou o meu pensamento tendo combatido e vencido eu encontro finalmente uma razatildeo em mim que por sua vez conteacutem a sua proacutepria e justifique entretanto minha opiniatildeo precedente E isso sob pena de minha morte Pois de outro modo ao que rimaria minha existecircncia

Soacutecrates Que orgulho Anaxaacutegoras O orgulho eacute o sentimento de ser nascido para alguma coisa que somente noacutes podemos conceber e esta coisa [eacute] mais grande e mais importante que todas as outras [] A coisa que eu quero deve ser sempre superior agravequela que quer qualquer outro Tal eacute o orgulho Ele natildeo emana das coisas feitas nem daquilo que se eacute Mas meu ideal eacute infinitamente acima do seu pois ele eacute meu unicamente porque ele eacute meuraquo

O assunto desse diaacutelogo natildeo aparece nem necessita aparecer pois o que estaacute em jogo eacute a relaccedilatildeo entre seus dois personagens ou vozes Note-se que Soacutecrates e Anaxaacutegoras concordam que as suas respectivas razotildees satildeo verdadeiras mas apenas para cada um deles mesmo que o outro natildeo as aceite como tal Na terminologia de Valeacutery o orgulho que eacute uma espeacutecie de servilismo a si mesmo impede que ambos sejam seduzidos pela vaidade que eacute uma espeacutecie de servilismo aos outros Haacute assim a concepccedilatildeo de que cada um foi feito mdashque cada um deve se fazermdash para seguir o seu proacuteprio caminho para cumprir o seu proacuteprio papel no teatro do mundo

A aspiraccedilatildeo por uma autarquia intelectual uma autarquia espiritual e a concepccedilatildeo de um itineraacuterio irredutiacutevel a outrem o orgulho de si coadunam-se harmonizam-se por conseguinte com a perspectiva criacutetica de Valeacutery frente a qualquer forma ou qualquer ato de proselitismo O proseacutelito eacute contraacuterio ao correto pensar Ser intelectualmente livre tambeacutem implica ser necessariamente livre do desejo de doutrinar de convencer ou ateacute mesmo de compartilhar com o outro algo que natildeo se sabe ser verdadeiro ou falso Daiacute toda a intenccedilatildeo naturalmente jamais cumprida do poeta em escrever uma obra de caraacuteter privado e ateacute mesmo inventar uma linguagem de caraacuteter privado uma linguagem pura como se com isso fosse possiacutevel viver uma vida toda privada totalmente enclausurada em seus proacuteprios problemas e soluccedilotildees laquoO proselitismo eacute inimigo da honestidaderaquo insistentemente anota o poeta laquomdash Seus meios satildeo todos impuros (Seduzir espantar embrulhar as coisas) Eu tenho horror dele de querer dar minha opiniatildeo a quem natildeo a quer daquele que quer substituir pela sua O homem honesto diz seu pensamento e estabelece como para si-mesmo [] Ainda sobre o fato mesmo de o comunicar eu aplicaria a sentenccedila de S[t] Paulo sobre o casamento Natildeo temos desejo de conquistar ningueacutem quando damos conta que o uacutenico que devemos conquistar estaacute em noacutes mesmos [Grifo do autor] Lave seus peacutes antes de batizar os outrosraquo E mais laquoEu natildeo quero convencer ningueacutem nem por ningueacutem ser convencidoraquo laquoRepugna-me a todos que querem me convencer mdash Um partido uma religiatildeo em procura adeptos que desejam o nome e a propagaccedilatildeo satildeo cheios (para mim) de ignomiacutenia Uma doutrina deve para ser nobre em nada ceder ao desejo de ser compartilhada Que ela seja como ela eacute ou que ela natildeo seja Eu natildeo desejo fazer aos outros o que eu natildeo quero que me faccedilam [] mdash Ter razatildeo Desejo de ter razatildeo mdash Propagar Desejar convencer Isso conduz aos milagres agrave ldquopublicidaderdquoraquo Entretanto toda essa radical recusa em praticar proselitismo tambeacutem encontra explicaccedilatildeo numa confessa e compreensiacutevel ldquotentaccedilatildeordquo de por em praacutetica as ideacuteias de colocaacute-las diante de provas de passar da dimensatildeo da especulaccedilatildeo para a da accedilatildeo especialmente em questotildees poliacuteticas e pedagoacutegicas como se pode constatar agraves vezes em seus escritos sobre anarquia e sobre educaccedilatildeo laquoPor vezes eu me sinto como que exasperado = desesperadoraquo confessa Valeacutery laquopela sensaccedilatildeo de natildeo poder fazer agir minhas ideacuteias no mundo quando eu as sinto justasraquo Mas senti-las justas natildeo garante que elas sejam para outros justas tampouco legitima que elas sejam propagadas como verdades tampouco lhe daacute o direito de doutrinar

Natildeo eacute por acaso que em sua obra puacuteblica e em maior grau em seus Cahiers Valeacutery se propocircs algo raras vezes tentado na Histoacuteria da Filosofia Ocidental algo que possui raiacutezes iacutentimas com essa sua expliacutecita e recorrente recusa em praticar proselitismos intelectuais ele se propocircs a considerar os pensamentos como conjetura como especulaccedilatildeo como algo eminentemente pessoal ele se propocircs a escrevecirc-los a representaacute-los independentemente de crer ou descrer na importacircncia no valor deles independentemente de os considerar corretos ou incorretos independentemente deles poderem corresponder objetivamente a alguma verdade ou a realidade Por que deveria se preocupar em provar ou refutar o que escreve Natildeo bastaria a utilidade de um escrito para si mesmo por que deveria tambeacutem ser uacutetil a outro ou a todos Desejar universalizar o seu pensamento qual o verdadeiro motivo a impulsionar tal comportamento Tudo se passa como se o poeta natildeo mais necessitasse sentir apego ou aversatildeo ao que pensa e escreve mdashe de tudo o que pensa e escreve ele vem a ser um mero contempladormdash laquoAquilo que me vem ao espiacuteritoraquo confidencia Valeacutery laquonatildeo se torna verdadeiramente ldquomeu pensamentordquo minha opiniatildeo mdash meu projeto mdash que depois de estar controlado aceito adotado ao menos provisoriamente e destinado a uma elaboraccedilatildeo ou a uma conservaccedilatildeo ou a uma aplicaccedilatildeo mdash mdash Assim o que eu escrevo aqui [nos Cahiers] eacute muitas vezes escrito natildeo como meu ldquopensamentordquo mas como pensamento possiacutevel que seraacute meu ou natildeo e [depois poderaacute ser] eliminadoraquo laquoEu escrevo aqui as ideacuteias que me vecircm Mas isso natildeo quer dizer que eu as aceite Eacute o seu primeiro estado Ainda mal despertoraquo Dessarte natildeo se pode considerar de modo estrito ou totalmente literal as reflexotildees de Valeacutery como sendo a traduccedilatildeo exata ou necessaacuteria das suas proacuteprias ldquocrenccedilasrdquo daquilo que ele considera verdadeiro ou correto daquilo a que ele aderiu aceitou ou refutou Daiacute tambeacutem toda a dificuldade e todo o cuidado em se interpretar as consideraccedilotildees que tece sobre um determinado tema laquoNesses cadernosraquo sentencia laquoeu natildeo escrevo minhas ldquoopiniotildeesrdquo mas eu escrevo minhas formaccedilotildeesraquo

A sua obra puacuteblica e em maior grau os seus Cahiers natildeo satildeo enfim simplesmente uma soma de ensaios e de fragmentos sobre variados temas eles tambeacutem satildeo sobretudo um aacutelbum mdashde rastros e vestiacutegios de espoacutelios do que sobroumdash no qual registra o seu processo o seu programa de autoconsciecircncia de autarquia espiritual Eacute uma ascese intelectual o que enfim Valeacutery pratica Com esses ou atraveacutes desses escritos ele almeja ser primeiramente servil agrave obra maior oculta invisiacutevel aquela que verdadeiramente importa aquela que opera em seu proacuteprio espiacuterito O puacuteblico os criacuteticos todos aqueles que possivelmente a leratildeo todos aqueles que possivelmente a interpretaratildeo satildeo apenas um plausiacutevel desdobramento sobre os quais ele natildeo tem nem quer ter controle natildeo constituem e natildeo devem constituir a sua motivaccedilatildeo Sem desprezar a ldquonaturezardquo comunicativa de toda liacutengua a possibilidade de ser compreendida a meta daquele que escreve natildeo deve ser o outro a meta daquele que escreve deve ser o proacuteprio ato de escrever pois esse ato esse processo a atenccedilatildeo e o esforccedilo em se registrar pensamentos em formas verbais auxilia o escritor mdashque natildeo deixa de ser um ser humanomdash a realizar uma maior consciecircncia de si mesmo de suas possibilidades a realizar um maior grau de lucidez

Para Valeacutery escrever era escrever-se fazer era fazer-se laquoEscrever mdash para se conhecer mdash eis tudoraquo Que a filosofia e a literatura como qualquer forma de pensamento e arte como qualquer atividade executada de modo asceacutetico com atenccedilatildeo e esforccedilo com sacrifiacutecios pode ser um veiacuteculo material para se atingir um fim espiritual (religiosos ou laico) eacute algo relativamente praticado desde haacute muito mesmo que isso tenha sido constrangido ou escamoteado na Modernidade Atualizando essa possibilidade o poeta assume a antiga concepccedilatildeo de que o conhecimento do mundo eacute mdashpara ser efetivado na sua maior amplitude e siacutentesemdash inseparaacutevel do conhecimento de si Poder-se-ia dizer portanto que a funccedilatildeo capital de sua insone e estranha escritura por vezes reconhecida e almejada como privada eacute ser enfim parte de seu meacutetodo o culto ao Iacutedolo do intelecto cuja meta eacute o eu puro a purificaccedilatildeo do espiacuterito

1111 O culto ao Iacutedolo do intelecto o eu puro

A despersonalizaccedilatildeo como a grande objetivaccedilatildeo de si mesmo A maior exteriorizaccedilatildeo a que se chega

Clarice Lispector A paixatildeo segundo G H

A palavra espiacuterito muitos satildeo os significados dados a ela muitos satildeo os usos que sofre muitas satildeo suas nuances e variaccedilotildees especificaccedilotildees e ampliaccedilotildees Na Antiguumlidade Claacutessica aquelas que semanticamente mais dela se aproximam e que portanto se compreende como sinocircnimos satildeo as palavras ψυχή e anima ambas frequumlentemente traduzidas por alma a substacircncia intelectual e incorpoacuterea que sobrevive supostamente agrave morte do corpo como ocorre em doutrinas espirituais platocircnicas e neo-platocircnicas como ocorre no Cristianismo ou num outro aspecto natildeo tatildeo distante deste a uma espeacutecie de energia que vivifica que anima o corpo mas que natildeo necessariamente lhe sobrevive como ocorre em certas vertentes do aristotelismo e do estoicismo Essa acepccedilatildeo perdura com enorme forccedila e resistecircncia apesar das inuacutemeras variaccedilotildees que adquire ateacute a Modernidade verificando-se na linguagem ordinaacuteria e nas crenccedilas do senso-comum marcou profundamente todas as outras acepccedilotildees possiacuteveis da palavra mesmo quando talvez de modo mais metafoacuterico do que literal designa por exemplo e com influxos idealistas a caracteriacutestica ou as caracteriacutesticas centrais o cerne ou o conteuacutedo de alguma disciplina ou instituiccedilatildeo assim como quando se diz ldquoo espiacuterito da fiacutesicardquo ou ldquoo espiacuterito de um povordquo Entretanto o conceito de espiacuterito (ou de alma) como eu como consciecircncia de si como consciecircncia de que se eacute uma consciecircncia pensante e relativamente distinta das demais e do mundo eacute raro nos escritos e por inferecircncia no pensamento da Antiguumlidade Claacutessica e mesmo no Medievo e na Renascenccedila Em todos esses largos periacuteodos as mentalidades operam grosso modo a partir da concepccedilatildeo segundo a qual o cosmo eacute uma ldquounidaderdquo ontologicamente sustentada e consequumlentemente haveria uma interdependecircncia entre todas as coisas teologias visionaacuterias como as de Santo Agostinho e Lutero certamente acenam para concepccedilotildees relativamente mais modernas mas em ambas o homem mesmo quando volta a si mesmo ainda eacute criatura e Deus o criador

Somente com o advento da burguesia um aspirar agrave ascensatildeo social e riqueza somente com o advento de um pensar que se quer autocircnomo e livre em relaccedilatildeo agraves instituiccedilotildees e tradiccedilotildees religiosas um aspirar agrave criaccedilatildeo artiacutestica filosoacutefica e cientiacutefica natildeo necessariamente dependente de esquemas considerados imutaacuteveis somente com essas convulsas transformaccedilotildees o conceito de espiacuterito como eu comeccedila a se fazer mais presente e atuante A visatildeo do homem deixa de ser pouco a pouco totalmente cosmocecircntrica do todo para a parte e passa a ser centrada no proacuteprio homem no sujeito da parte para o todo O polifacetado pensamento de Montaigne essa espeacutecie de antropologia de si mesmo e de suas idiossincrasias constitui um preluacutedio a esse novo paradigma histoacuterico doravante na cesura filosoacutefica que promove na aspiraccedilatildeo a uma ciecircncia laica Descartes mesmo mantendo-se relativamente fiel ao Cristianismo foi o mais ceacutelebre e polecircmico de seus arautos Com ele o subjetivismo moderno pode finalmente se desenvolver de modo sistemaacutetico e a concepccedilatildeo do espiacuterito como eu como consciecircncia e consciecircncia de si ou mais especificamente como razatildeo e intelecto se cristaliza deixando margem para o posterior desenvolvimento do conceito de indiviacuteduo Trata-se entretanto da compreensatildeo do espiacuterito natildeo mais como totalmente participante ou dependente da ordem coacutesmica natural mas de algum modo relativamente separado ou apartado dela trata-se da compreensatildeo do espiacuterito como substacircncia como algo em si Em Descartes haacute que se dizer ele ainda guardaria certo ponto-de-contato certo grau de atuaccedilatildeo no corpo e no mundo mas posteriormente em certas linhas mais exacerbadas do Cartesianismo nascente como no Ocasionalismo de Malebranche no qual eacute sempre Deus o mediador que atua define-se realmente como totalmente separado do corpo e do mundo

Todavia como se sabe esse espiacuterito autocircnomo acabou por se revelar mais como um ideal como uma utopia ou um sonho como um grito por liberdade do que um fato E mesmo as inuacutemeras especulaccedilotildees do Idealismo Alematildeo notadamente de Hegel em atualizar o cosmocentrismo claacutessico e cristatildeo em distinguir espiacuterito finito (o intelecto) do espiacuterito objetivo (as instituiccedilotildees) e do espiacuterito absoluto (arte filosofia e religiatildeo) todos manifestaccedilotildees e instrumentos da Ideacuteia ou da Razatildeo Infinita tampouco essas distinccedilotildees que parecem eliminar o livre-arbiacutetrio jamais excluem o fato de que o ser humano seu espiacuterito eacute aquele que sempre vive o que vive e sofre o que sofre e natildeo raro culpa-se pelo que faz ou deixou de fazer A vontade de viver de Schopenhauer e a vontade de potecircncia de Nietzsche o inconsciente de Freud esses e outros tantos conceitos representam tentativas teoacutericas modernas de explicar aquilo que sempre se operou na praacutetica aquilo que a arte e a literatura sempre representaram de modo simboacutelico que o espiacuterito o espiacuterito humano por mais que tente natildeo eacute senhor absoluto de si mesmo e que natildeo somente forccedilas exteriores e materiais o condicionam como a seus proacuteprios pensamentos mas tambeacutem forccedilas consideradas irracionais subterraneamente o controlam e o escravizam

Intuindo que toda essa trajetoacuteria semacircntica e ideoloacutegica eacute um dos iacutendices mais significativos da trajetoacuteria mesma da Modernidade na medida em que esta natildeo deixa de ser em grande medida uma grave acentuaccedilatildeo do espiacuterito como eu e como indiviacuteduo Valeacutery natildeo deixa de dar continuidade a ela transformando-a e sempre se resguardando em preservar a sua proacutepria idiossincrasia Em seus escritos tanto em prosa quanto em poesia a palavra espiacuterito mdashtalvez aquela a qual a sua imagem puacuteblica ficou mais livre e imprecisamente associadamdash ocorre quase sempre como na tradiccedilatildeo francesa racionalista-cartesiana da qual natildeo deixa de ser direta e simultaneamente herdeira e criacutetica com a acepccedilatildeo geral de eu de consciecircncia e consciecircncia de si de intelecto ou mais propriamente de inteligecircncia Uma inteligecircncia capaz de analisar o mundo exterior e o mundo interior e note-se genericamente inteligecircncia eacute um termo mais facilmente associado agrave palavra francesa ldquoespritrdquo do que agrave palavra portuguesa ldquoespiacuteritordquo Todavia o que soacutei constituir a diferenccedila central em relaccedilatildeo a essa tradiccedilatildeo e mesmo em relaccedilatildeo a todas as demais tradiccedilotildees do periacuteodo preacute-moderno e do Idealismo Alematildeo reside no fato de que o conceito de espiacuterito com o qual o poeta mais constitui e opera raramente designa ou alude agrave alma imortal e o que eacute deveras mais importante jamais se insere em algum sistema metafiacutesico-idealista a ambicionar expandir por exemplo o conceito de espiacuterito a ponto de por vezes tornaacute-lo uma espeacutecie de divindade reguladora limitando assim o seu uso praacutetico fisioloacutegico ou psicoloacutegico

Ademais Valeacutery poeta apoliacuteneo do mar do sol e da luz eacute deveras reticente com relaccedilatildeo agraves teorias modernas mdashirracionalismo psicanaacutelise etcmdash segundo agraves quais o espiacuterito seria regido por forccedilas irracionais subconscientes Mas reticente natildeo significa aqui necessariamente contraacuterio ao sentido geral da criacutetica dessas teorias significa antes uma divergecircncia quanto ao modo de compreender o ser humano e por conseguinte a si mesmo como absoluta e totalmente controlado e escravizado por irracionalidades por inconsciecircncias etc sem que haja nenhuma possibilidade mdashe sempre haacute possibilidadesmdash de escapatoacuteria ou de superaccedilatildeo dessa condiccedilatildeo O naturalismo o determinismo dessas teorias eis o que verdadeiramente se questiona Porque Valeacutery natildeo nega natildeo pode negar tudo aquilo que condiciona o espiacuterito mas ele simplesmente ldquo apostardquo na possibilidade deste vir a ser em determinado sentido e atraveacutes de determinado meacutetodo senhor de si mesmo E mais natildeo credita exagerada fetichizada sacralizada importacircncia agrave irracionalidade ao inconsciente mdashnote-se que inconsciente eacute um termo que ele busca conscientemente utilizar o miacutenimo possiacutevelmdash como fatores ou causas que estariam subterraneamente impulsionando a accedilatildeo o fazer Para o poeta a parte obscura a parte do espiacuterito que natildeo eacute iluminado pela razatildeo pela consciecircncia tem naturalmente seu papel na vida jaacute que toda a memoacuteria todas as lembranccedilas todas as representaccedilotildees das experiecircncias passadas aiacute supostamente se preservam o que natildeo implica que essa parte seja totalmente determinante mdashmas tatildeo somente condicionantemdash para as decisotildees para as escolhas que o proacuteprio espiacuterito toma no momento presente O inconsciente natildeo eacute um territoacuterio movediccedilo uma danccedila de imagens ocultas regida por afetividades e desejos mas meramente um armazenamento e num sentido quase mecacircnico laquoEstou convencidoraquo escreve de um modo um tanto categoacuterico laquoque se pudeacutessemos penetrar desenvolver o famoso subconsciente [inconsciente] noacutes apenas veriacuteamos miseacuteria ou algumas leis simples afetando os elementos e os comandos daquilo que faz sentimentos ideacuteias e vontades daquilo que daacute valor perspectiva agraves coisas Tudo eacute superfiacutecieraquo Natildeo se caminha na escuridatildeo absoluta tudo que o humano realiza eacute de algum modo resultado de racionalidade de consciecircncia mesmo que haja mescla com fatores obscuros E aumentar o grau de racionalidade de consciecircncia eacute a tarefa que o poeta se impotildee projetar luz sobre tudo Pois laquonatildeo haacute ldquogecircniordquo puramente inconsciente Mas o homem de gecircnio eacute ao contraacuterio aquele que aproveita das figuras lanccediladas pelo acaso Ele retira delas uma fonte infinita vasta como o mundo [] Gecircnio = consciecircncia das inconsciecircnciasraquo Isso porque eacute somente com consciecircncia que se eacute capaz de guiar a accedilatildeo o fazer um espiacuterito totalmente inconsciente nada agiria nada faria um ser totalmente inconsciente simplesmente natildeo existiria laquoA consciecircncia eacute a possibilidade de atosraquo E laquoldquoo inconscienterdquo eacute talvez capaz de fornecer uma soluccedilatildeoraquo diz o poeta laquoMas assegurar que essa soluccedilatildeo eacute boa mas colocar o problema mdash natildeoraquo Por conseguinte o proacuteprio sonho mdashse compreendido como espeacutecie de portal de acesso agrave parte obscura do espiacuteritomdash natildeo pode ser explicado reduzido a uma uacutenica teoria o sonho suas imagens e sensaccedilotildees seus signos dispersos natildeo se transforma em mateacuteria prima utilizaacutevel se natildeo for dado agrave consciecircncia se natildeo for racionalizado E eacute nesse sentido todo que a perspectiva ldquoapoliacuteneardquo de Valeacutery mais explicitamente se manifesta e partir do qual o seu conceito de espiacuterito pode ser enfim compreendido

Quando o poeta o evoca natildeo se refere portanto a um eu substancial em si mas a um eu funcional em relaccedilatildeo Ele eacute como que um elemento ou um fenocircmeno do mundo A separaccedilatildeo promulgada pelo Racionalismo entre res cogitans e res extensa entre pensamento de um lado e corpo e mundo de outro inexiste e consequumlentemente todos os intrincados e quase insoluacuteveis problemas em se articular esse radical dualismo Dir-se-ia que para o poeta inclinado a uma espeacutecie de ambiacuteguo ldquosensualismo materialistardquo esse dualismo natildeo opera espiacuterito e mateacuteria satildeo em uacuteltima instacircncia a mesma coisa contemplada atraveacutes de diferentes perspectivas laquoa organizaccedilatildeo a coisa organizada o produto dessa organizaccedilatildeo e o organizador satildeo inseparaacuteveis ldquoO espiacuteritordquo eacute inseparaacutevel da mateacuteria mdash e reciprocamente Por outro lado essa distinccedilatildeo depende do observadorraquo

Assim na praacutetica na praacutetica da vida Valeacutery compreende o espiacuterito ou melhor o expotildee como algo sempre em circunstacircncia em situaccedilatildeo num dado tempo e espaccedilo em sua fragilidade real extremamente condicionado a si mesmo aos outros e ao mundo Daiacute aludir que apenas fez o que pode fazer natildeo aquilo que necessariamente desejava fazer laquoApoacutes tudo eu fiz o que eu puderaquo Assim se ele aspira a uma accedilatildeo a um fazer cumpre num primeiro momento considerar o espiacuterito na uacutenica perspectiva em que eacute passiacutevel de ser realmente percebido ou vivido somente por aquele que o eacute em sua forma empiacuterica concreta com todas as suas crenccedilas e descrenccedilas com todas as suas verdades e mentiras com todas as suas contradiccedilotildees com todos os seus momentos com todas as suas limitaccedilotildees e possibilidades mdashdadas tanto por si mesmo como pelo mundo no qual eacute circunstanciado situadomdash E para representar toda essa intensa oscilaccedilatildeo e fluxo toda essa impermanecircncia esse incessante saltar de um assunto a outro de uma representaccedilatildeo a outra Valeacutery cunha a expressatildeo laquoself-varianceraquo que pode ser parcamente traduzida como auto-variaccedilatildeo variaccedilatildeo-do-ser variaccedilatildeo-de-si etc Essa expressatildeo comumente designa a caracteriacutestica considerada a mais importante no espiacuterito o espiacuterito mesmo o fato deste ser no plano da consciecircncia pensamento e portanto pura variaccedilatildeo um processo ou um devir um movimento interior que virtualmente natildeo tem fim uma seacuterie dinacircmica e mutaacutevel de representaccedilotildees ou signos mas que apesar de todas as mudanccedilas e mutaccedilotildees eacute sempre a variaccedilatildeo de um mesmo a variaccedilatildeo que natildeo elimina a unidade da consciecircncia-de-si ou melhor a identidade pois por mais que o espiacuterito pense distraia-se e vagueie manteacutem a consciecircncia de que eacute sempre ele que pensa o que pensa percebe o que percebe faz o que faz A laquoself-varianceraquo indicia portanto o tempo a temporalidade que o proacuteprio espiacuterito cria e atua na medida em que os pensamentos deste natildeo passam de uma corrente que opera quase instantaneamente por similaridades e contiguumlidades o que lhe possibilita qualificaacute-los hierarquizaacute-los dar sentido e valor a eles configurar um destino Haacute certamente recorrecircncias padrotildees e obsessotildees nessa contiacutenua atividade interior mas jamais um teacutermino tudo eacute retomada e reinvenccedilatildeo (Note-se que a escritura fragmentada do poeta natildeo deixa de ser em determinado sentido uma representaccedilatildeo mais condizente mais icocircnica a um espiacuterito assim descrito)

Consequumlentemente da concepccedilatildeo mdashou simplesmente da constataccedilatildeomdash do espiacuterito como laquoself-varianceraquo haacute duas implicaccedilotildees duas caracteriacutesticas mais ou menos impliacutecitas nos fragmentos de Valeacutery

Primeira a dificuldade ou mesmo a impossibilidade do espiacuterito pensar em uma laquo ideacuteia fixaraquo (laquo lrsquoideacutee fixeraquo) isto eacute uma representaccedilatildeo natildeo passiacutevel de ser fragmentada indivisiacutevel atocircmica que para o poeta soacute pode ser postulada artificialmente na dimensatildeo da palavra da linguagem convencional e simboacutelica que em certa medida a falseia pois nenhuma ideacuteia nenhum estado mental nenhum pensamento e sentimento nem mesmo o prazer ou a dor existe como uma unidade ou como uma linha homogecircnea mas como um fenocircmeno contiacutenuo que ocorre em matizes em gradaccedilotildees de maior ou menor intensidade de maior ou menor distraccedilatildeo ou atenccedilatildeo Para o poeta a ideacuteia fixa eacute portanto um conceito que simplesmente natildeo condiz com o comportamento mental laquoTodo conhecimento toda representaccedilatildeo eacute compostaraquo escreve laquoToda consciecircncia eacute incessantemente mutaacutevelraquo O instante esse ldquoponto virtualrdquo entre o passado e o futuro natildeo eacute passiacutevel de ser capturado ou melhor eacute um contra-senso pensar que se possa capturaacute-lo pois ele soacute existe no ou como devir e o devir por sua vez soacute existe no ou como instante que se precipita no futuro Essa concepccedilatildeo natildeo estaacute longe da concepccedilatildeo de Bergson segundo a qual o ser humano natildeo vive num tempo homogecircneo quantitativo matemaacutetico ou mecacircnico mas no tempo heterogecircneo e qualitativo da consciecircncia na dureacutee

Segunda implicaccedilatildeo a dificuldade ou mesmo a impossibilidade do espiacuterito apreender perceber ou captar a si mesmo de forma absoluta total como se por um momento supremo pudesse reter o todo de sua memoacuteria o todo de suas lembranccedilas o todo das representaccedilotildees das suas experiecircncias passadas como se por um momento supremo pudesse pensar um pensamento oniabrangente e definitivo algo que enquanto ideacuteia parece ter fascinado ao poeta e a tantos outros pois mesmo que haja consciecircncia-de-si mesmo que haja unidade-de-si essa consciecircncia e essa unidade soacute satildeo dadas como ou no fluxo como ou no devir jaacute que soacute eacute possiacutevel pensar um pensamento ou um panorama de pensamento de cada vez jaacute que muitas das percepccedilotildees mesmo captadas pelo corpo escapam agrave consciecircncia esta o espiacuterito costuma se ater ao que lhe importa e lhe interessa Como diz insistentemente o poeta laquoNatildeo existe pensamento que extermina o poder de pensar e o conclui mdash uma certa posiccedilatildeo da linguumleta que fecha definitivamente a fechadura Natildeo nada de pensamento que seja para o pensamento uma resoluccedilatildeo nascida de seu proacuteprio desenvolvimento como acordo final dessa dissonacircncia permanenteraquo laquoNatildeo existe absolutamente uacuteltimo pensamento em si e por si Em alguns insetos machos haacute um uacuteltimo ato que eacute de amor apoacutes o qual morrem Mas natildeo haacute pensamento que esgote a virtualidade do espiacuteritoraquo sentencia Valeacutery para logo em seguida concluir com esta estranha frase de caraacuteter heuriacutestico laquoExiste no entanto uma estranha tendecircncia (em todos os espiacuteritos de uma certa ordem) que eacute avanccedilar sempre para natildeo sei que ponto de natildeo sei que ceacuteuraquo Mas esse ceacuteu natildeo tem fim eacute apenas um ideal ao qual o pensamento sempre tende

Dessarte como Soacutecrates ou Platatildeo ao poeta agrada pensar o pensamento (διάνοια) qualificaacute-lo como uma espeacutecie de conflito de dialeacutetica de diaacutelogo interior como uma espeacutecie de laquodissonacircncia permanenteraquo de jogo ldquoininterruptordquo de laquopergunta-respostaraquo (laquodemande-reponseraquo) laquoP-Rraquo (laquoD-Rraquo) Jogo no qual quem pergunta e quem responde eacute sempre o mesmo o mesmo que se multiplica em dois ou em mais para poder assim chegar sempre a si mesmo e assim sucessivamente Pensar conduz portanto a uma espeacutecie de separaccedilatildeo a dividir-se a ser outro mesmo sendo si mesmo a jamais manter uma uacutenica identidade a deslocar-se a multiplicar-se laquoA linguagem interior cria um Outro no Mesmoraquo Por vezes Valeacutery tambeacutem chega ao extremo de dizer que todo pensamento natildeo deixa de ser uma forma de adaptaccedilatildeo (laquoPensar mdash eacute se adaptarraquo) tanto a um pensamento preteacuterito quanto ao meio-ambiente no qual pensa portanto uma soma de respostas a uma soma de demandas ou ainda um sistema espiritual de ato-reflexo Essa visatildeo seraacute recorrentemente atualizada e personificada transformada em literatura quando da formulaccedilatildeo de seus personagens como Leonardo e Teste e em seus diaacutelogos socraacuteticos

Todavia diante dessa laquoself-varianceraquo Valeacutery natildeo entra em ldquodesesperordquo quanto a isso sua atitude eacute de controle Pois a partir do periacuteodo de crise e da Noite de Gecircnova ele determina precisa o seu programa de autoconsciecircncia o seu meacutetodo agravequilo que foi compreendido pelo proacuteprio poeta em trabalhos de ficccedilatildeo e de criacutetica como o culto ao espiacuterito o culto ao laquo Iacutedolo do intelectoraquo (laquo Idole de lrsquointellectraquo) mdashatraveacutes do qual ele supostamente chegou ou pode chegar ao proacuteprio conceito de laquoself-varianceraquomdash Esse culto pode ser postulado aqui natildeo como um deixar o pensamento solto a flanar e distrair-se de laacute para caacute em busca deste ou daquele desiderato fugaz mas sobretudo como uma forma de meditaccedilatildeo eacute um manter um sustentar com esforccedilo e sacrifiacutecio o maior grau de lucidez controle e rigor o maior grau de consciecircncia possiacutevel durante qualquer accedilatildeo durante qualquer fazer durante qualquer processo mental seja este iacutentimo seja visando findar em arte filosofia ou ciecircncia eacute a constante tentativa de atentar-se e controlar a si mesmo o mecanismo dos proacuteprios processos mentais de um modo reto eliminando do pensamento as oscilaccedilotildees e o supeacuterfluo Valeacutery sonha com um estado de eterna vigiacutelia Em seu itineraacuterio o sacrificium intellectus seria um ato de preguiccedila e covardia Ao ecircxtase natildeo se entregaria se tivesse que abandonar a razatildeo Mas esse culto ao Iacutedolo do intelecto natildeo se restringe apenas agrave meditaccedilatildeo analiacutetica de si mesmo tambeacutem se manifesta exteriormente como a anaacutelise da gecircnese ou dos processos das obras humanas suas ou de outros (Seus escritos de criacutetica literaacuteria e artiacutestica partem desse princiacutepio e por isso quase sempre vatildeo aleacutem da mera interpretaccedilatildeo do objeto interpretado apresentando tambeacutem inuacutemeras reflexotildees pessoais) Acompanhar mesmo que na imaginaccedilatildeo mesmo que de modo conjetural os passos de algueacutem que cria filoacutesofo artista ou cientista interpretar e criticar obras alheias vem a ser um modo de cultuar de meditar sobre si mesmo Interpretar eacute interpretar-se

Grande parte do que o Valeacutery escreveu ou deixou de escrever em sua obra puacuteblica e principalmente em seus Cahiers essa sua diletante variedade temaacutetica e incompletude pode ser compreendida como o resultado dessa inaudita concepccedilatildeo laquoSomente o nosso proacuteprio funcionamentoraquo escreve laquoeacute que pode ensinar alguma coisa sobre toda e qualquer coisa Nosso conhecimento no meu entender tem por limite a consciecircncia que podemos ter de nosso ser mdash e talvez do nosso corpo Quem quer que seja X o pensamento que tenho dele se eu o aprofundar tende para mim quem quer que seja eu Pode-se ignoraacute-lo ou conhececirc-lo suportaacute-lo ou desejaacute-lo mas natildeo haacute escapatoacuteria natildeo haacute outra saiacuteda A intenccedilatildeo de todo o pensamento estaacute em noacutesraquo Em certo sentido poder-se-ia dizer que para profunda e verdadeiramente compreender o mundo exterior eacute necessaacuterio compreender o mundo interior um e outro satildeo pois solidaacuterios e inseparaacuteveis A ceacutelebre maacutexima mdash conhece a ti mesmomdash natildeo deixa de estar longe daquilo que Valeacutery busca praticar todavia dentro das condiccedilotildees dos limites e possibilidades postos pela Modernidade sem esperanccedila alguma de realmente conhecer todavia refrataacuterio a qualquer doutrina metafiacutesica a qualquer substancialismo a qualquer ideacuteia de salvaccedilatildeo ou prediccedilatildeo a qualquer poacutes-morte Se haacute um autoconhecimento no pensamento do poema este soacute pode ocorrer materialmente fisicamente no aqui e no agora

Naturalmente para que esse culto ao Iacutedolo do intelecto realmente venha a se efetivar faz-se necessaacuterio um contiacutenuo e disciplinado exerciacutecio de atenccedilatildeo e esforccedilo da proacutepria vontade quando posta numa accedilatildeo num fazer Ele pode ser difiacutecil de ser mantido por periacuteodos prolongados ele pode ser aacuterduo doloroso mas eacute o uacutenico meio de educar e de fortalecer o proacuteprio espiacuterito laquoEu aprecio em todas as coisasraquo escreve Valeacutery laquoapenas a facilidade ou a dificuldade em conhececirc-la em consumaacute-la Ponho um cuidado extremo em medir esses degraus a natildeo me apegar E que me importa aquilo que estou farto de saberraquo Entretanto quando o espiacuterito eacute constantemente constrangido forccedilado a atuar no mundo exterior a ter que se envolver com as exigecircncias do corpo e principalmente daqueles que o cercam isso se torna verdadeiramente problemaacutetico principalmente nas condiccedilotildees do mundo atual que segundo Valeacutery constantemente propagam a ilusatildeo de que as obras satildeo engendradas justamente sem atenccedilatildeo e esforccedilo o que se torna bastante grave para a delicada economia do proacuteprio espiacuterito laquoA vida moderna tende a poupar-nos o esforccedilo intelectual como o faz com o esforccedilo fiacutesicoraquo escreve laquoEla substitui por exemplo a imaginaccedilatildeo pelas imagens o raciociacutenio pelos siacutembolos e pela escrita ou por mecanismos e frequumlentemente por nada Ela nos oferece todas as facilidades todos os meios curtos para se atingir o objetivo sem ter percorrido o caminho E isso eacute oacutetimo mas muito perigoso Isso se combina com outras causas que natildeo vou enumerar para produzir como direi uma certa diminuiccedilatildeo geral dos valores e dos esforccedilos na ordem do espiacuterito Gostaria de estar enganado mas infelizmente minha observaccedilatildeo eacute fortalecida pelas de outras pessoas Com a necessidade de esforccedilo fiacutesico diminuiacuteda pela maacutequina o atletismo veio felizmente salvar e ateacute exaltar o ser muscular Talvez fosse preciso sonhar com a conveniecircncia de se fazer para o espiacuterito o que se faz para o corpo Natildeo tenho a ousadia de dizer que tudo o que natildeo solicita esforccedilo seja apenas tempo perdido Mas existem alguns aacutetomos de verdade nessa foacutermula atrozraquo

Contudo Valeacutery natildeo apenas delineia o culto ao Iacutedolo do intelecto e a atenccedilatildeo e o esforccedilo que este exige ele ainda faz uma distinccedilatildeo entre dois tipos de espiacuterito dois tipos de eu (Haacute que se dizer todavia que ao fazer essa distinccedilatildeo assim como outras ele natildeo eacute muito fiel a elas as suas proacuteprias terminologias e o leitor deve ter cuidado ao lecirc-las pois natildeo raro ao escrever a palavra ldquoespiacuteritordquo ou ldquoeurdquo ele pode estar se referindo a um determinado tipo ou a outro) Ele se refere natildeo apenas a um espiacuterito enquanto eu ( moiacute) empiacuterico a self- variance mas tambeacutem a um espiacuterito enquanto eu puro ( moi pure) por vezes denominado simplesmente de eu ( moi) ao qual muitas vezes vem a ser um constante alvo de suas reflexotildees a sua meta a qual o culto ao Iacutedolo do intelecto tende Esse uacuteltimo conceito talvez seja ao mesmo tempo um dos mais instaacuteveis mais problemaacuteticos do poeta um dos mais difiacuteceis de ser compreendido pois eacute expresso em passagens demasiadas obscuras de um modo tatildeo fragmentaacuterio tatildeo incompleto tatildeo solto tatildeo contraditoacuterio e paradoxal que facilmente se intui se tratar de algo que nem mesmo para o proacuteprio Valeacutery eacute claro e satisfatoacuterio embora ele intua ser por vezes de importacircncia capital E isso se deve principalmente porque eacute extremante difiacutecil falar ou escrever sobre o espiacuterito sobre o mundo interior com os meios disponiacuteveis na linguagem verbal as palavras aiacute entram em terreno movediccedilo Em seu ensaio Descartes o poeta assim escreve sobre laquoa extrema dificuldade que nos opotildee a linguagem quando queremos obrigaacute-la a descrever os fenocircmenos da mente Que fazer com esses termos que natildeo podemos precisar sem recriaacute-los Pensamento a proacutepria mente razatildeo inteligecircncia compreensatildeo intuiccedilatildeo ou inspiraccedilatildeo Cada um desses nomes eacute ao mesmo tempo um meio e um fim um problema e uma soluccedilatildeo um estado e uma ideacuteia e cada um deles eacute em cada um de noacutes suficiente ou insuficiente segundo a funccedilatildeo que lhe outorgue a circunstacircnciaraquo Daiacute o uso recorrente de distorccedilotildees de metaacuteforas e ldquoconsequumlentementerdquo uma maior abertura agraves ambiguumlidades e indeterminaccedilotildees

De qualquer modo eacute possiacutevel constatar que o conceito de eu puro valeacuteryano possui certamente fortes ecos do conceito de eu substancial racionalista e cartesiano e numa leitura raacutepida e descontextualizada das passagens que versam sobre ele ainda tambeacutem pode evocar o conceito de eu absoluto do Idealismo Alematildeo notadamente de um Fichte e de um Schelling Mas uma leitura mais acurada indica que natildeo haacute equivalecircncia entre o primeiro e os dois uacuteltimos conceitos afinal o termo ldquopurordquo natildeo eacute em todos os casos sinocircnimo do termo ldquosubstancialrdquo ou ldquoabsolutordquo Duas satildeo aqui as instacircncias ou momentos possiacuteveis desse eu puro momentos naturalmente sempre provisoacuterios e que natildeo se excluem mutuamente mas que se complementam e demonstram as indeterminaccedilotildees os avanccedilos e os recuos as oscilaccedilotildees do proacuteprio poeta diante da fragilidade das suas proacuteprias formulaccedilotildees

A primeira refere-se ao eu puro como sendo simplesmente a laquoinvariacircnciaraquo (laquoinvarianceraquo) o laquoinvarianteraquo (laquoinvariantraquo) aquilo que no espiacuterito natildeo varia natildeo muda laquoO eu mdash eacute um invariante que resulta de toda a produccedilatildeo de fenocircmenos suficientemente consciente e complexaraquo laquoO E[u] eacute invarianteraquo assim se repete Valeacutery laquoorigem meio ou campo eacute uma propriedade funcional da consciecircnciaraquo Esse eu pode ser compreendido portanto numa imagem geomeacutetrica como um nuacutecleo duro ou como um ponto ou um centro ao redor do qual todo o resto toda a esfera movente do espiacuterito suas lembranccedilas e aspiraccedilotildees suas representaccedilotildees seus pensamentos e desejos gravitam Valeacutery que tinha uma excecircntrica fascinaccedilatildeo pela matemaacutetica costuma simbolizaacute-lo como iluminou Ulrike Heetfeld com os seguintes siacutembolos matemaacuteticos 0 1 e infin 0 eacute o signo da negaccedilatildeo a resposta que sempre eacute negada no sistema dialoacutegico de laquoperguntas-e-respostasraquo (laquodemande-reponseraquo) do espiacuterito 1 eacute o signo da unidade do espiacuterito ante as possibilidades e infin eacute o signo da pura possibilidade do espiacuterito Em todo esse estranho simbolismo o eu puro eacute estabelecido sempre como heuriacutestico como uma virtualidade natildeo como uma realidade laquoA palavra Eu designa sempre virtualidades mdash Natildeo haacute Eu redutiacutevel ao atualraquo laquoO eu (como eu o entendo)raquo escreve Valeacutery laquomdash eu o olho como uma propriedade fundamental da consciecircncia mdash um ponto virtual [] para o qual [] o meu conhecimento se ordenaraquo

A segunda instacircncia ou momento do conceito de eu puro refere-se sobretudo ao eu como o que aqui pode ser denominado de um estado de espiacuterito ao qual o eu ou o espiacuterito empiacuterico e singular valeacuteryano aspira e tende um possiacutevel que deve ser sobretudo conquistado realizado estabelecido no agir no fazer Esse estado pode ser postulado da seguinte maneira o eu puro valeacuteryano eacute o espiacuterito quando este cumprindo o seu culto ao Iacutedolo do intelecto encontra-se totalmente purificado mdashe o conceito de pureza seraacute extremamente recorrente no pensamento valeacuteryano aplicado a muitas dimensotildeesmdash de todas as ldquoemoccedilotildeesrdquo e de todos os ldquosentimentosrdquo de todas as ldquopaixotildeesrdquo de todos os iacutedolos outros desnecessaacuterios de tudo aquilo que o poeta considera como empecilhos a um pensar livre de opiniotildees e de subjetividades livre de metafiacutesicas e portanto reduzido assim a mais pura inteligecircncia ao mais puro intelecto o eu puro eacute o eu sem a pessoa o eu puro eacute o espiacuterito quando este se encontra num estado de total despersonalizaccedilatildeo ou para usar termo mais radical num estado de total desumanizaccedilatildeo silenciado tranquumlilo esvaziado sem anguacutestias porque sem esperanccedilas sem sofrimentos porque sem desejos laquo Nada mais IMPESSOAL que este EUraquo laquoEacute preciso sair da personalidade para entrar no euraquo assim formula o poeta pois a personalidade mdashcomo o proacuteprio eacutetimo da palavra indicamdash eacute uma maacutescara uma ilusatildeo uma espeacutecie de acuacutemulo ou excesso sobre o espiacuterito sobre este espiacuterito que almeja a ser eu puro Gostos e desgostos alegrias e tristezas emoccedilotildees e sentimentos tudo isso se configura como personalidade porque laquoa personalidade eacute uma probabilidade QUE PODE MUDARraquo Daiacute tambeacutem o poeta distinguir em certas passagens poeacuteticas o laquoeuraquo (laquomoiraquo) como superior ao laquomimraquo (laquomienraquo) porque este possui ego e aquele natildeo O eu puro eacute portanto natildeo um ldquoeu pensordquo e a consciecircncia de se estar pensando mas um ldquopensa-serdquo e a consciecircncia de se estar pensando

Haacute que se dizer por conseguinte que Valeacutery natildeo confere confessadamente ao eu puro assim como a grande parte de seus conceitos e propostas valores morais ao menos natildeo em sentido estrito certo enrijecimento do haacutebito a moral tambeacutem deve ser superada posto que a poderosa distinccedilatildeo entre bem e mal entre o certo e o errado soacute ocorre na dimensatildeo da personalidade das convenccedilotildees e da cultura No fundo esse conceito essa proposta o eu puro representa enfim uma forma de neutralidade e de incondicionalidade mas uma neutralidade e incondicionalidade que natildeo se estabelecem de modo transcendente fora do mundo mas de modo imanente no mundo com tudo o que este estabelecer de limites e possibilidades Pois como Maurice Blanchot diz de modo luminoso e paradoxal agrave respeito do poeta e dos personagens deste laquoO grande espiacuterito eacute [] unicamente em si e unicamente fora de si absolutamente separado e absolutamente presente ao mundoraquo Haacute ainda uma passagem extremamente laminar nos Cahiers que evoca toda essa ideacuteia de um eu como neutro e incondicional laquoO verdadeiro Deus eacute intima uniatildeo com o eu [] O eu puro eacute como a foacutermula de Deusraquo

Ante uma tal concepccedilatildeo torna-se relativamente faacutecil associar o pensamento de Valeacutery ao dos miacutesticos associaccedilatildeo que apesar de todo o distanciamento criacutetico do poeta com relaccedilatildeo agrave religiatildeo institucionalizada (seu paradigma eacute quase sempre o Catolicismo com quem tem ambiacuteguas relaccedilotildees) eacute entretanto relativamente legiacutetima A obsessatildeo pelo Uno de um Plotino os oxiacutemoros poeacuteticos de um Satildeo Joatildeo da Cruz ou a rigidez militar de um Sto Inaacutecio de Loyola todos esses e outros registros estatildeo relativamente presentes em seus escritos todas essas figuras satildeo em certa medida admiradas mas sempre com estrateacutegica cautela Pois o que o poeta preza na via miacutestica eacute menos a possibilidade do ecircxtase ou da realizaccedilatildeo da dimensatildeo sagrada sem mediaccedilotildees e mais o treinamento os aacuterduos exerciacutecios de meditaccedilatildeo praticados exerciacutecios de algum modo relativamente semelhantes aos seus proacuteprios exerciacutecios compreendidos no seu programa de autoconsciecircncia O poeta conjectura que a disciplina que a via miacutestica mdashnesse caso natildeo haacute muitas diferenccedilas com relaccedilatildeo agrave via asceacuteticamdash instaura relativamente estranha agrave mentalidade e aos interesses pragmaacuteticos da Modernidade natildeo deve ser de todo desprezada deve ser antes reinventada e continuada atualizada justamente para tempos mais positivos e cientiacuteficos logo sem necessariamente almejar a visatildeo ou a uniatildeo com o suposto Deus sem a esperanccedila ou a feacute de outrora laquoTudo o que foi encontrado de bom e de belo pela via miacutesticaraquo escreve laquodeve poder ser encontrado pela via realraquo Assim se haacute uma miacutestica ou uma ascese em Valeacutery ela soacute seraacute compreendida paradoxalmente em sentido secular ou laico dessacralizada e metaforizada Desprovida de qualquer desejo de transcendecircncia eacute uma miacutestica ou ascese formal a sua autoconsciecircncia Uma miacutestica ou uma ascese que natildeo deseja realizar Deus mas tatildeo-somente realizar-se e realizar-se sem fim laquoO problema capital na vidaraquo escreve Valeacutery laquomdash eacute o da ascese que eu entendo como possessatildeo de si e tambeacutem como exploraccedilatildeo Natildeo haacute que duvidar que a busca do progresso interior (como dizem os miacutesticos) eacute o Uacutenico objeto possiacutevel e as ciecircncias natildeo deixam de ser uma particularizaccedilatildeo dessa buscaraquo Essas palavras parecem enfim sintetizar o cerne de grande parte do pensamento de Valeacutery Haacute uma ascese intelectual a ser cumprida postulada e exigida pelo sujeito a si mesmo e que na Modernidade natildeo deve recusar as ciecircncias e as artes justamente porque as ciecircncias e as artes mdashque por princiacutepio natildeo se distinguem umas das outrasmdash podem ser tanto como praacuteticas quanto pelo que contribuem agraves especulaccedilotildees do espiacuterito meios dessa proacutepria ascese

1112 Fazer sem crer

O ceacutetico eacute o homem menos misterioso que existe e entretanto a partir de um certo momento ele natildeo pertence mais a esse mundo

Emile Cioran O mau demiurgo

Haacute toda uma seacuterie de recorrecircncias desconexa e plural de ldquocrise e conversatildeo espiritualrdquo na Histoacuteria da Filosofia e da Literatura Ocidental Satildeo Paulo e Santo Agostinho Pascal Rousseau e Kant Tolstoi Wronksi Jacques e Raiumlssa Maritain todos eles e tantos outros passaram em maior ou menor grau de acordo com suas idiossincrasias e os contextos histoacutericos em que viviam por modificaccedilotildees abruptas em suas respectivas formas de pensar por cesuras O itineraacuterio espiritual de Valeacutery com o periacuteodo de crise e a Noite de Gecircnova natildeo deixa de ser uma variaccedilatildeo desse recorrente acontecimento de ordem simultaneamente privada e puacuteblica remete agrave Crise de Tournon (29 de marccedilo a 6 de abril de 1866) de seu mestre Mallarmeacute da qual consciente ou inconscientemente talvez tenha buscado alguma filiaccedilatildeo Mas eacute sobretudo passiacutevel de ser posto aqui em comparaccedilatildeo e paralelismo com o itineraacuterio espiritual deste outro filoacutesofo que tambeacutem sofreu ou diz ter sofrido uma transiccedilatildeo abrupta em seu pensamento (10 a 11 de novembro de 1619) e marcou seja por contraste ou identidade indistintamente todo o pensamento do poeta assim como toda a tradiccedilatildeo moderna Descartes A insatisfaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo de seu tempo com uma intransigente Escolaacutestica como um proceder que amiuacutede encara o conhecimento como uma eterna recapitulaccedilatildeo e o intento de alcanccedilar ldquoideacuteias claras e distintasrdquo um saber verdadeiramente seguro natildeo deixa de ser um movimento relativamente anaacutelogo ao do poeta mdashe quanto a isso a influecircncia natildeo parece gratuitamdash Tambeacutem ele demonstrou insatisfaccedilatildeo apoacutes o periacuteodo de crise e a Noite de Gecircnova com grande parte do que lhe concedia a filosofia a arte e a literatura de seu tempo atividades que lhe pareciam extremamente fundamentadas em imprecisotildees arbitrariedades e gratuidades

Mas entre o filoacutesofo e o poeta haacute uma diferenccedila crucial Enquanto Descartes aspirando superar o ceticismo utiliza-se da duacutevida metoacutedica da duacutevida heuriacutestica como um momento ou etapa de uma linha de raciociacutenio que levaraacute agrave supostamente inviolaacutevel certeza do cogito e agraves reflexotildees sobre o meacutetodo Valeacutery constroacutei seu pensamento sempre com algum grau de negatividade E portanto abre-se a reformulaccedilotildees a inuacutemeras reformulaccedilotildees Ele se fez conduzir portanto natildeo agrave crenccedila ou agrave adesatildeo a alguma doutrina dada por outros ou formulada por si mesmo natildeo a uma certeza inviolaacutevel sagrada e em grande medida consoladora mas diferentemente a um constante e idiossincraacutetico ceticismo Esse ceticismo eacute lato isto eacute natildeo se filia e natildeo pode se filiar a nenhuma escola ou doutrina especifica Refere-se direciona-se sobretudo a um estado que de acordo com o texto em questatildeo adquire maior ou menor intensidade de duacutevida mdashcaracterizada menos como riacutegida descrenccedila e mais como simples desconfianccedilamdash frente a qualquer pensamento filosoacutefico que extrapole em demasia os limites legitimados pela experiecircncia frente a qualquer forma de metafiacutesica particularmente a qualquer forma de idealismo frente agrave universalidade e agrave veracidade dos problemas metafiacutesicos quando estes satildeo sobretudo compreendidos analisados por uma perspectiva puramente funcionalista puramente formal e linguumliacutestica a qual o poeta sempre buscou adotar laquoDesconfie sem cessarraquo (laquoMeacutefie-toi sans cesseraquo) Eis uma das inuacutemeras e poderosas divisas que toma para si escrevendo-a e afixando-a no seu quarto de estudante

O pensamento de Valeacutery quando contemplado pela perspectiva dessa desconfianccedila natildeo raro se aproxima do desafiador Pirronismo Claacutessico na medida em que sempre se ateacutem ao conceito de possibilidade que seraacute tatildeo bem encarnado pelas personagens Leonardo da Vince e principalmente Edmond Teste Pois natildeo adentra no paradoxal ceticismo dogmaacutetico que nega por princiacutepio qualquer possibilidade de se formular alguma verdade ou algum criteacuterio de verdade desde que entretanto essas possibilidades sejam proposiccedilotildees bem formuladas precisas Aproxima-se tambeacutem dos momentos ceacuteticos de Montaigne na medida em que mesmo assentando-se na eacutepoche na suspensatildeo do assentimento (conceito relativamente anaacutelogo e incluso ao de culto ao Iacutedolo do intelecto) e na busca por uma ataraxia por uma tranquumlilidade da alma (conceito relativamente anaacutelogo e incluso ao de eu puro) natildeo deixa de na dimensatildeo social do conviacutevio humano do senso-comum emitir juiacutezos de valor de referir-se a seus gostos e desgostos aos seus caprichos as suas obsessotildees de ironizar de criticar de contestar de refutar de tomar partido de defender uma ideacuteia ao inveacutes de outra Comportamento esse que pode muito bem ser contemplado em seus ensaios sobre literatura e arte assim como em seus ensaios de poliacutetica

Todavia entre todas as vertentes da tradiccedilatildeo preacute-moderna a qual o pensamento de Valeacutery pode estar relativamente filiado ou elucidado a dos tatildeo excessivamente criticados antigos sofistas parece ser uma das mais recorrentes e confessas laquoO retoacuterico e o sofista sal da terraraquo anota o poeta laquoIdoacutelatras satildeo todos os outros que trocam as palavras pelas coisas e as frases pelos atosraquo A ceacutelebre maacutexima de Protaacutegoras mdash O homem eacute a medida de todas as coisas da existecircncia das coisas que satildeo e da natildeo-existecircncia das coisas que natildeo satildeomdash eacute uma divisa operante e amiuacutede citada direta ou indiretamente em seus escritos Todavia para atualizar essa maacutexima ao vocabulaacuterio valeacuteryano dir-se-ia agora que o eu eacute a mediada de todas as coisas ou mais exatamente o eu que sou eacute a medida de todas as coisas Pois o homem no que afirma e no que nega no que sente e no que natildeo sente estaacute circunscrito a sua esfera de percepccedilotildees e a sua esfera de pensamentos ao seu proacuteprio horizonte estaacute circunscrito a sua proacutepria perspectiva que em parte recebe do mundo exterior e em parte cria de acordo com suas proacuteprias categorias Se ele crecirc que o mundo eacute deste modo ou de outro se ele crecirc que sua crenccedila natildeo pode ser qualificada como crenccedila posto consideraacute-la uma verdade objetiva e universalmente vaacutelida uma cosmovisatildeo correta essa certeza em nada muda o ldquofatordquo o insistente ldquofatordquo de que para o outro para ele a verdade alheia pode continuar sendo crenccedila ou um erro Dir-se-ia que eacute toda uma concepccedilatildeo ldquoantropocecircntricardquo ou melhor ldquoegocecircntricardquo que eacute todo um ldquorelativismordquo ou melhor um ldquoperspectivismordquo o prisma atraveacutes do qual grande parte do pensamento de Valeacutery se estabelece E isso natildeo porque ele confere importacircncia ao homem ou a si mesmo mas ao contraacuterio justamente porque desconfia do ldquohumanismordquo porque sente uma certa ldquoindiferenccedilardquo um certo ldquodesprezordquo com relaccedilatildeo ao humano compreendendo este como uma soma de subjetividades que natildeo raro obliteram a compreensatildeo do funcionamento do proacuteprio espiacuterito laquoNo fundoraquo diz ele laquoaquilo que pode ser a raiz da minha incredulidade essencial substancial mdash eacute a ideacuteia ou o sentimento bastante depreciativo que eu tenho do homem a impossibilidade de dar a ele uma importacircncia metafiacutesicaraquo Em seu pensamento a noccedilatildeo geneacuterica de uma natureza humana a habitar os homens seus coraccedilotildees em todos as eras e geografias tornando-os substancialmente idecircnticos eacute algo a ser evitado por um pensamento que se quer livre inclusive de si mesmo Displicentemente forjado numa tradiccedilatildeo laica de racionalismo empirismo e positivismo Valeacutery natildeo pode mais operar com o conceito de uma essecircncia perpeacutetua imutaacutevel imanente agraves coisas ao mundo e principalmente ao homem Homem que em suas matildeos esvaziou-se tornou-se puro devir pura linguagem Esfacelou-se Para o poeta jaacute natildeo haacute natildeo faz sentido haver mais a Verdade mas apenas verdades jaacute natildeo haacute mais o Ser mas apenas seres

Dessarte a questatildeo fundamental do ldquoceticismordquo ou do ldquorelativismordquo de Valeacutery natildeo se refere agrave questatildeo da verdade ou da possibilidade ou natildeo de se alcanccedilar agrave verdade refere-se sobretudo agrave questatildeo do estatuto da crenccedila isto eacute da importacircncia e do valor da funccedilatildeo que esta adquire para o espiacuterito que crecirc ou descrecirc para o espiacuterito que a ela adere e ou dela se utiliza E o conceito de crenccedila eacute amiuacutede em seus escritos compreendido ou reduzido a tudo aquilo que estaacute numa primeira instacircncia aleacutem do que pode ser verificado ou corroborado pela experiecircncia logo posto em relativa oposiccedilatildeo ao conceito mesmo de saber Crenccedila eacute toda adesatildeo a uma conjetura a uma especulaccedilatildeo agravequilo que natildeo se comprova ou ainda natildeo foi comprovado laquoEu creio que noacutes natildeo podemos crer somente sem o saberraquo escreve Valeacutery um tanto taxativamente Estado natildeo muito distante do ldquosentimentordquo estado que talvez seja tatildeo-somente ldquosentimentordquo crer eacute portanto uma espeacutecie de excesso de exagero do espiacuterito que supostamente natildeo se contentando com a realidade fenomecircnica presente almeja por um futuro por um transcender e se inclina por esse transcender que pode ou natildeo se revelar posteriormente uma ilusatildeo na medida em que natildeo eacute suficientemente sustentado ou legitimado por nenhuma experiecircncia real nesse sentido eacute sempre laquouma concessatildeo mdash um estado provisoacuterioraquo laquoCrer natildeo eacute no fundo que sentirraquo A crenccedila assim compreendida eacute um estado que deve ser evitado

Haacute quanto a essa recusa uma poderosa e desconcertante maacutexima mdashamiuacutede citada entre tantas outras que cultivou e repetiumdash que sem pudor algum reza laquoFazer sem crerraquo (laquoFaire sans croireraquo) Essa maacutexima mdashquiccedilaacute outro modo de compreender o estado representado pelo conceito de eu puromdash pode ser explicada interpretada da seguinte forma Quatildeo difiacutecil eacute para o senso comum e mesmo para muitas filosofias crer que se possa agir sem crer crer que se possa agir sem ter esperanccedila ou medo que essa accedilatildeo resulte crer que se possa agir sem que haja um princiacutepio para accedilatildeo que remeta ao sujeito da proacutepria accedilatildeo Pois supostamente dentro de um padratildeo psiacutequico relativamente corriqueiro a descrenccedila absoluta levaria como que naturalmente agrave paralisia absoluta da accedilatildeo do fazer Todavia para Valeacutery mdashassim como para grande parte dos ceacuteticos antigosmdash isso nem sempre ocorre E mais o contraacuterio se faz necessaacuterio Toda a accedilatildeo todo o fazer cumpre ser conduzida pelo mais puro desinteresse Agir fazer requer desapego laquoQuem faz o bem por dever o faz mal e o faz sem arteraquo sentencia o poeta E eacute nessa sentido que o seu culto ao Iacutedolo do intelecto eacute um meacutetodo atraveacutes do qual o espiacuterito trabalha para se tornar um eu puro mas um meacutetodo que exclui a esperanccedila um meacutetodo que jaacute eacute meta Pois natildeo eacute necessaacuterio nada aleacutem do processo

Talvez seja por isso por todo esse modo de se comportar e por tantas outras excecircntricas regras intelectuais aplicadas a si mesmo que agrave respeito dos inuacutemeros qualificativos que foram consagrados ao poeta Edgar Degas tenha lhe reservado um dos mais enigmaacuteticos e afetuosos mas tambeacutem um dos mais precisos o pintor costumava chamaacute-lo de Senhor Anjo Encantado Valeacutery aceita tal qualificativo e o interpreta obviamente natildeo como a designaccedilatildeo de um mensageiro da vontade divina mas como a designaccedilatildeo de um estrangeiro um estranho um solitaacuterio que em meio aos tortuosos e contraditoacuterios caminhos da Modernidade vive a estudar o mundo e a si mesmo mas tambeacutem a constatar como um Soacutecrates desencantado sua contiacutenua ignoracircncia laquoTudo o que eacute humano me eacute estranhoraquo diz enigmaticamente quiccedilaacute evocando o seu espiacuterito funcionalista Note-se que a figura do anjo eacute como na poesia de Rilke relativamente recorrente na sua proacutepria E natildeo deixa de ser providencial que um de seus uacuteltimos escritos um poema em prosa intitulado Lrsquoange de 1945 no qual um anjo admirando todo este mundo humano de erracircncia e contradiccedilotildees finde com esta poderosa frase laquo E durante uma eternidade ele natildeo cessou de conhecer e de natildeo compreenderraquo (laquo Et pendant une eacuteteacuterniteacute il ne cessa de connaicirctre et de ne pas comprendreraquo)

2 TC PERSONAGENS Personagens

Escoacutelios

Hoje jaacute natildeo tenho personalidade quanto em mim haja de humano eu o dividi entre os autores vaacuterios de cuja obra tenho sido o executor Sou hoje o ponto de reuniatildeo de uma pequena humanidade soacute minha

Fernando Pessoa A gecircnese dos heterocircnimos

2 TC 1 MODOS DE VIDA 1 Modos de vida

Na Histoacuteria da Filosofia Ocidental o laborioso artifiacutecio da personificaccedilatildeo foi recorrentemente utilizado apesar de ser considerado por vezes um devaneio excessivo e arriscado supostamente prejudicial agrave universalidade almejada pelo pensamento racional Afinal como diz o proacuteprio poeta laquoA possibilidade de ser muitos eacute necessaacuteria agrave razatildeo mas eacute a desrazatildeo que a utilizaraquo Todavia os exemplos satildeo canocircnicos Mesmo antes do pleno desenvolvimento do poderoso conceito de indiviacuteduo Platatildeo em seus diaacutelogos transformou-se em dissonantes vozes e polemizou com seus contemporacircneos posteriormente Kierkegaard em suas imensas digressotildees em estranhos pseudocircnimos como Johannes Climacus e Anti-Climacus posteriormente Nietzsche na corrosiva poeacutetica de seus aforismos em um errante Zaratustra e em um alegre Dioniacutesio

Em certa consonacircncia com esses filoacutesofos Valeacutery tambeacutem natildeo deixou de brincar de ser outro de forjar suas maacutescaras e de propositadamente confundir-se com elas O seu programa de autoconsciecircncia e o fato de jamais abandonar por mais que ambiacutegua e ironicamente dissesse pretender o sempre fantasioso plano da literatura e da poesia o conduz a reinventar-se a multiplicar-se laquoEle conteacutemraquo confessa sobre si mesmo na sugestiva terceira pessoa do singular em um texto poacutestumo breve e autobiograacutefico intitulado Moi laquomuitos e diversos personagens e uma testemunha principal que observa todos esses fantoches se agitaremraquo Como William Butler Yeats e seu anti-eu como Ezdra Pound e suas personaelig como Fernando Pessoa na invenccedilatildeo de seus ceacutelebres e desconcertantes heterocircnimos como parte desta restrita Modernidade que arduamente se desencanta frente a uma religiatildeo predominante Valeacutery desconfia da unidade do sujeito daquele que amiuacutede diz saber com absoluta certeza e secreto orgulho o que pensa e o que deseja todavia natildeo ao ponto de dilaceraacute-lo sua preciosa e ideal unidade empiacuterica em valores e crenccedilas demasiadamente contraditoacuterios em doutrinas totalmente divergentes E se apesar de estrategicamente dizer (ou justamente por isso) que seu laquoponto de vista filosoacutefico eacute a diversidade de pontos de vistaraquo ele diferentemente do plural poeta portuguecircs com quem tem tantas afinidades artiacutesticas principalmente no gosto pela dissimulaccedilatildeo natildeo se multiplica para ser literariamente outro mas para ser literalmente si mesmo laquoEu tenho o espiacuterito unitaacuterio em mil pedaccedilosraquo assim revela ou ainda mantendo certa relaccedilatildeo com a heranccedila cartesiana laquoEm suma eu sou uma transformaccedilatildeo que conserva uma certa probabilidade de mdash conservaccedilatildeoraquo Essa atitude natildeo deixa de estar tambeacutem relacionada agrave vontade ou agrave necessidade em praticar mesmo que diletantemente uma multiplicidade de outras atividades em adentrar um nuacutemero variado de registros para cumprir adequadamente aquilo que primeiramente se propotildee laquose o loacutegico nunca pudesse ser algo aleacutem de loacutegicoraquo diz laquoele natildeo seria e natildeo poderia ser loacutegico e que se o outro [o poeta] nunca fosse algo aleacutem de poeta sem a menor esperanccedila de abstrair e de raciocinar ele natildeo deixaraacute atraacutes de si qualquer traccedilo poeacutetico Penso muito sinceramente que se cada homem natildeo pudesse viver uma quantidade de outras vidas que natildeo a sua ele natildeo poderia viver a suaraquo laquoEu natildeo seria eu se eu natildeo pudesse ser um outroraquo

Leonardo da Vinci e Edmond Teste satildeo as duas mais recorrentes e exemplares dessas personificaccedilotildees desses outros Extrapolando os limites dos escritos que foram inteiramente consagrados a esses homens imaginaacuterios estatildeo tambeacutem presentes em outras partes da obra de Valeacutery que frequumlentemente deles se serve como pretextos ou veiacuteculos para expressar algo diverso como siacutembolos Em diferentes circunstacircncias culturais e econocircmicas ambos representam variaccedilotildees possiacuteveis deste espiacuterito apoliacuteneo luacutecido predisposto a iluminar o todo do mundo e de si mesmo intelectualmente autaacuterquico a que o poeta buscou constantemente construir natildeo raro em oposiccedilatildeo agraves opressotildees da vida social Ambos satildeo postulados como aqueles que buscam agir independente das filosofias alheias independente do meio que os cercam e com um maacuteximo de atenccedilatildeo e controle sobre suas proacuteprias atividades sejam estas meramente psiacutequicas ou fiacutesicas encarnam e sintetizam assim o proacuteprio programa de autoconsciecircncia de Valeacutery mas em perspectivas distintas o primeiro numa miacutetica Renascenccedila eacute a potencialidade que se transforma em ato pois trabalha a si mesmo atraveacutes dos mecanismos do mundo exterior o uacuteltimo numa miacutetica Modernidade a potencialidade que permanece potencialidade pois trabalha a si mesmo atraveacutes dos mecanismos do mundo interior Natildeo satildeo opostos um eacute quiccedilaacute a exacerbaccedilatildeo do outro a sua continuidade o seu desdobramento ao extremo numa realidade tambeacutem mais extrema porque mais fragmentada e menos propiacutecia agraves obras que exigem o labor virtualmente infinito labor segundo Valeacutery necessaacuterio ao desenvolvimento espiritual mas notadamente desvalorizado na pragmaacutetica sociedade moderna que seduzida pelas facilidades teacutecnicas e regida por uma feacuterrica administraccedilatildeo frequumlentemente exige um fim artificial e um resultado objetivo e rentaacutevel a todo trabalho humano

Como graves antagonistas dessa intransigente realidade Leonardo e Teste personificam sobretudo e respectivamente mdashmas nunca de modo a isto se reduziremmdash um dos dois principais conceitos mediante os quais a consciecircncia restringe-se em operar se soacutei torna-se autoconsciecircncia se soacutei compreender a si mesmo o seu funcionamento ldquoo fazerrdquo e ldquoo possiacutevelrdquo Ambos podem ser enquadrados portanto natildeo apenas na categoria de personagens literaacuterias mas tambeacutem na de personagens conceituais na medida em que expressam ou encarnam explicitamente questotildees ditas filosoacuteficas em escrituras que procuram eliminar o recurso da narrativa do reacutecit Condensando em breves espaccedilos textuais uma enorme variedade de discursos ocultos de subentendidos esse procedimento eacute bastante eficaz para desconstruir para matizar ou relativizar a pretensatildeo de validade universal de determinadas doutrinas relativamente dominantes Ao inveacutes de descrever abstratamente uma eacutetica ou uma esteacutetica descreve-se concretamente um indiviacuteduo imaginaacuterio que cumpre ou negue total ou parcialmente essa eacutetica ou essa esteacutetica iluminando assim as ldquovirtudesrdquo e os ldquodefeitosrdquo destas e consequumlentemente o simples e natildeo raro escamoteado fato de que nem todos aderem aos mesmos valores e crenccedilas de que nem todos operam com os mesmos conceitos e a mesma loacutegica Logo um personagem conceitual expressa sobretudo um modo de vida um modo de vida possiacutevel entre tantos e tatildeo diversos outros uma alteridade No caso de Valeacutery natildeo satildeo naturalmente tipos-ideais a representar determinadas classes ou grupos sociais a que se quer estudar louvar ou depreciar mas singularidades a representar indiviacuteduos distintos e excecircntricos cujos comportamentos contrastam com o ditado pelo senso comum Atraveacutes de seus personagens conceituais o poeta expotildee natildeo apenas a sua proacutepria dissonacircncia com relaccedilatildeo ao mundo mas tambeacutem a sua recusa em natildeo se sujeitar a esse mundo imaginando e descrevendo a si mesmo mas a si mesmo num grau mais potencializado mais evoluiacutedo explorando ao maacuteximo o limite das suas proacuteprias idiossincrasias e propoacutesitos Ele os considera seus ldquo alter egosrdquo seus ldquo alter egosrdquo futuros um outro eu para o amanhatilde A rara arte em imaginaacute-los e em descrevecirc-los eacute sobretudo a rara arte em forjar natildeo para os outros mas para si mesmo determinados modelos de perfeiccedilatildeo de pureza

Leonardo e Teste podem ser compreendidos como seres a quem se almeja imitar modos de vida a serem mdashse natildeo de modo literal ao menos heuristicamentemdash realizados Correspondem a uma meta a um projeto de vir-a-ser a um destino possiacutevel a ser cumprido por aquele que os constroacutei Em outros tempos e lugares o magro e obstinado asceta buscava integrar-se ao seu inefaacutevel e poderoso avatar todavia no pensamento eliacuteptico do poeta o asceta e o avatar se transformam naquilo que desde sempre satildeo na mesma pessoa

211 Leonardo da Vince

Ao se evocar um nome ceacutelebre repetidamente surge uma seacuterie de qualificativos que podem ser usados para raacutepida e sinteticamente descrevecirc-lo qualificaacute-lo ou desqualificaacute-lo Diz-se este foi filoacutesofo pois filosofou aquele artista pois criou obras de arte O indiviacuteduo eacute assim reduzido agrave atividade na qual mais se exercitou e pela qual mais admiraccedilatildeo ou repulsa causou mesmo que natildeo tenha com ela se identificado mesmo que tenha praticado inuacutemeras outras Tal procedimento eacute frequumlente quiccedilaacute seja de um pragmatismo didaacutetico uacutetil para aquietar num primeiro momento a consciecircncia que deseja julgar rapidamente Mas o autor nunca deixa de ser uma idealizaccedilatildeo posterior agrave obra uma construccedilatildeo realizada por leitores e comentadores por editores por todos aqueles que possuem voz e se fazem ouvir os que verdadeiramente definem a estatuto do texto na tradiccedilatildeo A pessoa por detraacutes de um nome nunca eacute completamente atingida talvez nem mesmo por aqueles que a conheceram pessoalmente e sua imagem sempre varia no transcorrer da histoacuteria

Oportunamente Valeacutery iluminava esse jogo laquoDa obra natildeo se pode jamais remontar um verdadeiro autorraquo escreve laquoMas um autor fictiacutecioraquo laquoNatildeo se pode jamais concluir da obra um autor mdash mas da obra uma maacutescara mdash e da maacutescara uma maacutequinaraquo Numa perspectiva puramente positiva soacute se conclui apenas uma seacuterie de procedimentos a engenhosidade natildeo o engenheiro As obras laquosatildeo sempre falsificaccedilotildees arranjosraquo reitera laquonunca sendo o autor felizmente o homem A vida deste natildeo eacute a vida daquele acumulem todos os detalhes que puderem sobre a vida de Racine natildeo tiraratildeo dele a arte de fazer seus versos Toda criacutetica estaacute dominada por esse princiacutepio superado o homem eacute a causa da obra mdash assim como o criminoso aos olhos da lei eacute a causa do crime Eles satildeo antes o seu efeito Mas esse princiacutepio pragmaacutetico alivia o juiz e a criacutetica a biografia eacute mais simples do que a anaacutelise [] A verdadeira vida de um homem sempre mal definida mesmo para seu vizinho mesmo para si mesmo natildeo pode ser utilizada numa explicaccedilatildeo de suas obras a natildeo ser que seja indiretamente e mediante uma elaboraccedilatildeo muito cuidadosaraquo laquoA vida do autor natildeo eacute a vida do homem que ele eacuteraquo Naturalmente natildeo eacute porque assim seja que Valeacutery se privou de escrever retratos a fabulosa ideacuteia de uma literatura despersonalizada feita apenas de tiacutetulos de obras e sem que nome algum seja referido ele que a intuiu natildeo a cumpre Contudo haacute que se ter consciecircncia de que todo exerciacutecio criacutetico natildeo deixa de ser tambeacutem um exerciacutecio literaacuterio Nada impede que um autor (como qualquer personagem histoacuterica) seja tratado natildeo como uma realidade mas como uma espeacutecie de ficccedilatildeo como uma personagem pertencente a esta literatura chamada Histoacuteria da Literatura a esta filosofia chamada Histoacuteria da Filosofia O interesse a afinidade eletiva o apreccedilo ou o desprezo o fetiche pela suposta personalidade do artista e por sua obra eacute transformado em um princiacutepio de criaccedilatildeo Que diferenccedila haacute entre um autor imaginaacuterio e um autor real quando eacute o pensamento mdashpara aleacutem da concretude do seu portadormdash o que verdadeiramente importa Dessa maneira quando escreve sobre um outro autor e uma outra obra Valeacutery pouco explicita aquilo que pertence ao seu pensamento daquilo que pertence ao alheio Haacute natildeo raro uma iacutentima fusatildeo entre sujeito e objeto em seus escritos justificada pela moderna concepccedilatildeo de que como qualquer escritor o criacutetico ao criticar tambeacutem se revela tambeacutem critica a si mesmo e a proacutepria criacutetica que faz O inteacuterprete ao interpretar interpreta-se O outro eacute um atalho para se chegar a si mesmo laquoPensamos o que ele pensou e podemos reencontrar entre suas obras esse pensamento que lhe eacute dado por noacutes podemos refazer esse pensamento a imagem do nossoraquo

Valeacutery raramente permanece portanto no seguro e cocircmodo limite das hipoacuteteses Ultrapassando o territoacuterio onde estas satildeo passiacuteveis de serem comprovadas ou refutadas lanccedilava-se a conjeturas Natildeo praticava somente a interpretaccedilatildeo mas sobretudo a invenccedilatildeo Pouco lhe interessava o que um criador quis ou natildeo verdadeiramente dizer com o que criou antes entregava-se a descrever o que tal criaccedilatildeo suscita agrave consciecircncia que o estuda A criacutetica por ele praticada era baseada em suas proacuteprias intenccedilotildees como pensador afim portanto ao modo como Baudelaire a compreendia como tarefa subjetiva e semioacutetica que implica em criaccedilatildeo e natildeo em neutralidade laquoEu creio sinceramenteraquo dizia o poeta das Les fleurs du mal laquoque a melhor criacutetica eacute a que eacute divertida e poeacutetica natildeo aquela fria e algeacutebrica que com o pretexto de tudo explicar natildeo sente nem oacutedio nem amor e se despoja voluntariamente de qualquer espeacutecie de temperamento [] [] a melhor anaacutelise de um quadro poderaacute ser um soneto ou uma elegia [] para ser justa isto eacute para ter sua razatildeo de ser a criacutetica deve ser parcial apaixonada poliacutetica isto eacute feita a partir de um ponto de vista que abra o maior nuacutemero de horizontesraquo

O exemplo mais contundente e mais excessivo de todo esse ousado e polecircmico procedimento exegeacutetico mdashpoder-se-ia ainda evocar os diversos estudos dedicados a Descartes Mallarmeacute e Degas pois Valeacutery tambeacutem fez desses outros ldquoheroacuteis do espiacuteritordquo um espelho para o seu pensamento todavia em menor grau quiccedilaacute pela iacutentima proximidade biograacutefica que o unia aos dois uacuteltimos e pela secura filosoacutefica do primeiro pouco dado agraves questotildees da linguagem e da artemdash encontra-se principalmente nos escritos dedicados agrave emblemaacutetica e misteriosa figura de Leonardo cujos famosos e idiossincraacuteticos manuscritos e desenhos o poeta teve a oportunidade de estudaacute-los na Biblioteca Nacional jaacute em 1891 Sem reserva alguma quanto a possiacuteveis criacuteticas a exigir uma fidelidade historiograacutefica ele que natildeo cessa de referir-se aos seus proacuteprios procedimentos assim confessa laquonatildeo encontrei coisa melhor eu atribuir ao desafortunado Leonardo minhas proacuteprias agitaccedilotildees transportando a desordem de meu espiacuterito para a complexidade do seu Infligi-lhe todos os meus desejos a tiacutetulo de coisas possuiacutedas Atribuiacute-lhe muitas das dificuldades que me acossavam naquele tempo como se ele as houvesse encontrado e superado Transformei meus embaraccedilos no seu poder suposto Ousei considerar-me sob seu nome e utilizar sob minha pessoa Isso era falso mas vivo No final das contas natildeo deve um jovem curioso de mil coisas parecer bastante com um homem da Renascenccedilaraquo

Os artigos Leacuteonard de Vinci e Lrsquoœuvre eacutecritte de Leacuteonard de Vinci determinadas passagens dos Cahiers a trilogia de ensaios Introduction agrave la meacutethode de Leonard de Vinci Note et digression e principalmente Leacuteonard et les philosophes - Lettre agrave Leacuteo Ferrero satildeo apesar de breves virtuoses escritos compostos por longas digressotildees atraveacutes dos quais Valeacutery buscou desde os 23 anos e por mais de trecircs deacutecadas de desenvolvimento a construccedilatildeo de uma personagem que fosse a encarnaccedilatildeo mais perfeita do laquohomem completoraquo (laquohomme completraquo) ou para usar uma expressatildeo mais conhecida do espiacuterito universal com o qual sempre sonhou construir todavia nunca realmente terminou e isso a tal ponto que mdashcioso tanto da imagem do livro quanto da imagem que um texto adquire na paacutegina a ser lida no livromdash lateralmente ao corpo central desses seus trecircs principais escritos sobre Leonardo ele acrescentou em publicaccedilotildees posteriores muitas notas laterais aforismos e fragmentos que desenvolvem e por vezes criticam determinadas ideacuteias suas anteriormente expressas

laquoNa realidade denominei homem e Leonardo o que me surgia entatildeo como o poder do espiacuteritoraquo laquoO meu propoacutesitoraquo assim expotildee Valeacutery numa ceacutelebre passagem laquoeacute imaginar um homem de quem teriam aparecido accedilotildees tatildeo distintas que se eu vier a lhes atribuir um pensamento natildeo existiraacute outro de maior extensatildeo E pretendo que ele tenha da diferenccedila das coisas um sentimento infinitamente vivo [grifo do autor] cujas aventuras poderiacuteamos muito bem chamar de anaacutelise Vejo que tudo o orienta eacute no universo que ele pensa e no rigor Ele eacute feito para natildeo esquecer nada do que entra na confusatildeo do que eacute nenhum arbusto Desce agrave profundeza do que pertence a todo mundo afasta-se dele e se olha Atinge os haacutebitos e as estruturas naturais trabalha-os por todos os lados e acontece-lhe ser o uacutenico que constroacutei enumera emociona Deixa de peacute igrejas fortalezas executa ornamentos cheios de doccedilura e de grandeza mil engenhos e as figuraccedilotildees rigorosas de muitas pesquisas Abandona os destroccedilos de natildeo sei que grandes jogos Nesses passatempos que se misturam agrave sua ciecircncia a qual natildeo se distingue de uma paixatildeo tem o encanto de parecer que estaacute sempre pensando em outra coisaraquo laquoVia neleraquo posteriormente historia com maior poder de siacutentese laquoa personagem principal dessa Comeacutedia Intelectual [laquoComeacutedie Intellectuelleraquo] que ateacute agora natildeo encontrou o seu poeta e que seria para meu gosto muito mais preciosa do que A comeacutedia humana e ateacute do que A divina comeacutedia Sentia que esse senhor dos seus meios esse possuidor do desenho das imagens do caacutelculo havia encontrado a atitude central [grifo do autor] a partir da qual as empresas do conhecimento e as operaccedilotildees da arte satildeo igualmente possiacuteveis as trocas felizes entre as anaacutelises e os atos singularmente provaacuteveis pensamento maravilhosamente excitanteraquo Para que a construccedilatildeo desse espiacuterito universal assim se realize Valeacutery prefere naturalmente ater-se natildeo agrave pessoa de Leonardo agrave qual as biografias tentam dar conta de modo sempre incompleto laquoO que eacute mais verdadeiro a cerca de um indiviacuteduo e mais Ele Mesmoraquo sentencia laquoeacute seu possiacutevel mdash que sua histoacuteria resgata apenas de maneira incerta O que lhe acontece pode natildeo inferir daiacute o que ele ignora de si mesmo Um sino que nunca foi tocado natildeo libera o som fundamental que seria o seu Por isso eacute que minha tentativa foi antes conceber agrave minha maneira o Possiacutevel de um Leonardo que o Leonardo da Histoacuteriaraquo laquoAmava nas minhas trevas a lei iacutentima desse grande Leonardo Natildeo queria sua histoacuteria nem apenas produccedilotildees de seu pensamento Dessa fronte carregada de coroas sonhava somente com a amecircndoaraquo

Avesso ao registro das filigranas da vida cotidiana Valeacutery nunca pretendeu atuar como historiador praacutetica agrave qual concebia ser mais uma construccedilatildeo subjetiva do que objetiva nunca pretendeu portanto referir-se agrave concepccedilatildeo de um homem tiacutepico do Renascimento Tal concepccedilatildeo eacute apesar de ainda hoje vulgarmente difundida e aceita ao menos fora das academias algo que tende a falsear em muito a imagem de um determinado periacuteodo histoacuterico de um determinado recorte convencional de um passado em grande medida tambeacutem convencional Leonardo natildeo era o homem tiacutepico da Renascenccedila assim como Platatildeo natildeo era o homem tiacutepico da Antiguidade Claacutessica assim como Valeacutery mdashque sempre desconfiou das riacutegidas periodizaccedilotildees e do culto de personalidades histoacutericas apesar de ter se servido desses procedimentos meramente como ficccedilotildees uacuteteismdash natildeo era o homem tiacutepico da Modernidade Pois esses homens todos natildeo representam uma maioria antes a exceccedilatildeo do que a regra eles satildeo mdashe eacute justamente esta interpretaccedilatildeo a qual o poeta trabalhamdash determinadas possibilidades de ser numa determinada eacutepoca com todos as facilidades e dificuldades que esta lhes impotildee

O excecircntrico propoacutesito de Valeacutery nunca deixou de ser afinal uma variaccedilatildeo da sua proacutepria idiossincrasia Almejava contemplar inventar em Leonardo no espiacuterito universal a laquoatitude centralraquo um meacutetodo E meacutetodo mdashtermo cartesiano e que entatildeo ficaraacute ligado agrave imagem do poetamdash representa natildeo os procedimentos das ciecircncias ou das artes particulares mas algo mais abrangente e vital um caminho como filologicamente foi estabelecido um modo de se relacionar de comungar com o mundo real atraveacutes de um pensamento extremamente praacutetico que se exterioriza em projetos que possam transformar o mundo e ao projetar transformar a si mesmo A incessante busca em tornar-se senhor de seus proacuteprios processos intelectuais de si mesmo enfim o programa de autoconsciecircncia valeacuteryano desenvolve-se com o advento de um Leonardo imaginaacuterio atraveacutes da accedilatildeo do fazer

2111 O fazer

Sonho algum encobre-lhe as proacuteprias coisas subentendido algum traz-lhe certezas e natildeo lecirc seu destino em alguma imagem favorita como o abismo de Pascal [Leonardo] Natildeo lutou contra os monstros descobriu seus mecanismos desarmou-os pela atenccedilatildeo e os reduziu agrave condiccedilatildeo de coisas conhecidas () faz o que quer passa agrave vontade do conhecimento agrave vida com uma elegacircncia superior Nada fez onde natildeo soubesse o que fazia e a operaccedilatildeo da arte como o ato de respirar ou de viver natildeo ultrapassa seu conhecimento Encontrou a ldquoatitude centralrdquo a partir da qual eacute igualmente possiacutevel conhecer agir e criar porque a accedilatildeo e a vida tornada exerciacutecios natildeo satildeo contraacuterias ao desinteresse do entendimento Eacute um ldquopoder intelectualrdquo o ldquohomem do espiacuteritordquo

Maurice Marleau-Ponty A duacutevida de Ceacutezanne

O enigmaacutetico inventor que escrevia ao inverso encarnou o projeto de Valeacutery em construir um espiacuterito universal com espantosa providecircncia Haacute como que uma filiaccedilatildeo entre o habitual modo de proceder do artista e o do poeta o primeiro tanto por sua misteriosa recusa em ater-se agrave religiatildeo e agrave metafiacutesica como por seu interesse pela natureza e pelos sentidos que a captam prefigura a Modernidade mas natildeo a cumpre o uacuteltimo a cumpre mas a critica no que ele tem de mais brutal o aprisionamento do indiviacuteduo constrangido a resultar em algo fixo e determinado Ambos satildeo incapazes da completude do acabamento e soacute podem se expressar atraveacutes de rupturas e de digressotildees de saltos e de desvios de fragmentos ambos sofriam de uma abundante criatividade maior que o tempo de vida que tinham para concretizaacute-la Acidentes e convenccedilotildees os prazos eram apenas as datas do provisoacuterio abandono de suas obras estavam como que condenados a tudo pensar e nada concluir Talvez sustentassem exigecircncias que superavam a capacidade humana de cumpri-las Daiacute os manuscritos de ambos apresentarem semelhanccedilas expliacutecitas e o poeta ser o ldquoplagiadorrdquo consciente do artista Os escritos e os esboccedilos mais do que as escassas pinturas e esculturas ainda fragilmente preservadas de Leonardo fantasias que pareciam se mostrar em suas gecircneses e intenccedilotildees fascinam Valeacutery porque este estava confessadamente mais interessado no formalismo dos meacutetodos do que no conteuacutedo das metas no contiacutenuo dos processos laquoDesses milhares de notas e de desenhosraquo explicita num trecho que pode ser compreendido como uma descriccedilatildeo de seus proacuteprios Cahiers laquoeu guardava impressotildees extraordinaacuterias de um conjunto alucinante de fagulhas arrancadas pelos golpes mais diversos de alguma fantaacutestica fabricaccedilatildeo Maacuteximas receitas conselhos a si mesmo tentativas de um raciociacutenio que se retoma agraves vezes uma descriccedilatildeo acabada outras vezes fala a si mesmo e se tuteiaraquo Contudo esse Leonardo natildeo se caracteriza apenas por esse aspecto formal tampouco apenas pela celebrada versatilidade e facilidade na praacutetica de muitas aacutereas da ciecircncia e da teacutecnica pela polivalecircncia muito menos pela vasta erudiccedilatildeo agrave qual do abuso do excesso Valeacutery cuja obra evita citaccedilotildees e referecircncias era notoacuterio criacutetico laquoTento dar uma visatildeo sobre o detalhe de uma vida intelectualraquo escreve laquouma sugestatildeo dos meacutetodos que qualquer criaccedilatildeo implica uma escolhida entre a multidatildeo de coisas imaginaacuterias modelo que adivinhamos grosseiro mas de qualquer forma preferiacutevel agraves sequumlecircncias de anedotas duvidosas aos comentaacuterios dos cataacutelogos de coleccedilotildees agraves datas Tal erudiccedilatildeo soacute iria falsear a intenccedilatildeo totalmente hipoteacutetica deste ensaio [ Introduction agrave la meacutethode de Leonard de Vinci]raquo

O que assim se torna mais relevante eacute principalmente o meacutetodo como o artista exerce todas as inuacutemeras atividades agraves quais se propotildee natildeo desvinculando natildeo separando de todo de modo absoluto mdashtal qual estados ou momentos completamente autocircnomos ou intercambiaacuteveismdash o pensamento simboacutelico e o pensamento conceitual a imaginaccedilatildeo e a razatildeo como frequumlentemente ocorre nas filosofias ou metafiacutesicas racionalistas em muito justamente fundamentadas por essas inuacutemeras separaccedilotildees Porque o pensamento simboacutelico e o pensamento conceitual a imaginaccedilatildeo e a razatildeo talvez sejam apenas plenamente distinguiacuteveis plenamente separaacuteveis no acircmbito do discurso e natildeo no acircmbito da realidade Quiccedilaacute para o espiacuterito para a consciecircncia empiacuterica mdashna qual o proacuteprio pensamento ocorre de modo constante fluido passando rapidamente de um signo a outro atraveacutes de uma fusatildeo de contiguumlidades e analogiasmdash todas as faculdades mentais sejam necessaacuterias umas agraves outras imanentes umas agraves outras cada uma delas isoladamente natildeo existiria A distinccedilatildeo entre o simbolizar e o conceituar entre o imaginar e o raciocinar soacute pode ocorrer portanto mediante um determinado didatismo ou artificialismo mediante uma convenccedilatildeo Convenccedilatildeo que se tornou ao menos ateacute determinadas filosofias romacircnticas como as de um Schelling e um Novalis dogmaticamente excessiva e acompanhada de uma quase inevitaacutevel valoraccedilatildeo hieraacuterquica do conceito sobre a imagem da razatildeo sobre a imaginaccedilatildeo ou indo mais longe do loacutegos ( λόγος) sobre o mito ( μύθος) Desde a criacutetica de Xenoacutefanes e Platatildeo aos antropomoacuterficos e destemperados deuses gregos essas distinccedilotildees todas se acentuam com maior ou menor intensidade sobretudo com o advento do Iluminismo quando entatildeo se almeja a construccedilatildeo de um pensar plenamente racional infaliacutevel universalmente correto ou verdadeiro

Mas o Leonardo valeacuteryano em suas accedilotildees ou no resultado de suas accedilotildees parece simplesmente desconsiderar ou desconhecer o problemaacutetico dualismo dessas distinccedilotildees laquoUsando indiferentemente do desenho do caacutelculo da definiccedilatildeo ou da descriccedilatildeo pela linguagem a mais exata ele parece ignorar as distinccedilotildees didaacuteticas que noacutes colocamos entre as ciecircncias e as artes entre a teoria e a praacutetica a anaacutelise e a siacutentese a loacutegica e a analogia distinccedilotildees essas todas exteriores que natildeo existem na atividade iacutentima do espiacuterito quando ele ardentemente se liberta para a produccedilatildeo do conhecimento que ele deseja [] [] Criar construir eram para ele indivisiacuteveis do conhecer e do compreenderraquo Comportando-se como cientista ou engenheiro multiplicando seus estudos de oacutetica e anatomia simplesmente para pintar um uacutenico quadro uma uacutenica folha ou flor o artista assim natildeo separa a dimensatildeo da arte da dimensatildeo do saber E se a convencional e riacutegida divisatildeo entre ambas as praacuteticas fez-se outrora como hoje necessaacuteria ao desenvolvimento da proacutepria Ciecircncia Moderna isso natildeo implica que natildeo possam ser derivadas de uma mesma fonte e compreendidas como formas de linguagem sistemas de signos com fundamentos comuns mas com funccedilotildees sociais relativamente especiacuteficas Ao posicionar-se sempre nessa compreensatildeo eminentemente semioacutetica do mundo o Leonardo valeacuteryano jamais se submete agravequilo que posteriormente iraacute ser com justa insistecircncia denominado e criticado de logocentrismo Seja porque atua num periacuteodo histoacuterico no qual magia e ciecircncia alquimia e quiacutemica astrologia e astronomia ainda se confundiam seja porque sinta a natureza de uma outra forma de modo mais holiacutestico ele demonstra ter a singular consciecircncia de que nem todo o conhecimento eacute ou precisa ser exclusiva e necessariamente logoteoacuterico fundamentado na suposta supremacia do pensamento racional consciecircncia de que a linguagem verbal a liacutengua natildeo eacute a uacutenica e exclusiva expressatildeo das interpretaccedilotildees e das crenccedilas das cosmovisotildees que as pessoas fazem da realidade consciecircncia que todo o artificialmente produzido do alfinete agrave cidade do poema agrave teoria pode ser compreendido como exteriorizaccedilatildeo de um pensamento que se faz representar na particularizaccedilatildeo de atividades as mais variadas Pois a poesia a danccedila a muacutesica a cenografia a ornamentaccedilatildeo o desenho a pintura a escultura a arquitetura a urbaniacutestica a engenharia a ciecircncia todas essas e tantas outras atividades tambeacutem satildeo usadas para transmitir interpretaccedilotildees e crenccedilas cosmovisotildees sejam estas coletivas ou individuais e cujos efeitos na mentalidade alheia satildeo efetivos muitas vezes tatildeo ou mais efetivos quanto o comunicar atraveacutes da linguagem verbal da liacutengua

Uma das principais ldquovantagensrdquo mdasha expressatildeo natildeo eacute a mais adequada mas de algum modo exprime a intenccedilatildeo aqui preteridamdash de Leonardo sobre os Filoacutesofos mdashe Valeacutery compraz-se em comparaacute-los e assim criticar a proacutepria filosofiamdash eacute simplesmente esta natildeo se limitar natildeo limitar o pensamento natildeo condicionaacute-lo apenas agrave expressatildeo pela proacutepria linguagem verbal pela liacutengua falada ou escrita Enquanto os uacuteltimos costumam proceder desse modo seja pela crenccedila na sacralidade ou no caraacuteter civilizador da palavra seja pela precisatildeo e abrangecircncia que esta supostamente concede o primeiro quiccedilaacute nunca satisfeito com o que pode expressar com o que pode realizar pensa e almeja a transmissatildeo do pensamento atraveacutes de inuacutemeras outras formas como se devesse explodir estilhaccedilar-se por todos os lados

Eis portanto o espiacuterito do Leonardo valeacuteryano essa vontade de manifestar-se atraveacutes de todas as linguagens disponiacuteveis em sua eacutepoca e em seu meio sendo capaz de conjeturar e inventar outras se assim for necessaacuterio essa vontade de manifestar-se atraveacutes de todas as inuacutemeras possibilidades de representaccedilatildeo do pensamento Porque somente assim ao dispor-se a experimentar a colocar esse seu pensamento em uma determinada accedilatildeo em um determinado fazer seraacute possiacutevel afirmaacute-lo ou negaacute-lo verificaacute-lo ou falseaacute-lo justificaacute-lo ou simplesmente continuar a desenvolvecirc-lo Para o artista o horizonte de suas praacuteticas natildeo finda apenas na anaacutelise mas continua na transformaccedilatildeo que pode executar a partir dessa anaacutelise Cumpre a praacutetica dar continuidade agrave interpretaccedilatildeo cumpre a praacutetica tambeacutem ser interpretaccedilatildeo Potencialidade que sempre se atualiza que sempre se exterioriza em realizaccedilotildees Leonardo revela-se nesse sentido uma inteligecircncia isto eacute uma maacutequina de ponderaccedilotildees de escolhas e de decisotildees que diante do real natildeo se acanha ou se intimida e estaacute sempre a calcular as concretas possibilidades de accedilatildeo de feitura Retirar das circunstacircncias nas quais sempre se encontra sejam estas favoraacuteveis ou desfavoraacuteveis o maacuteximo possiacutevel vencecirc-las e natildeo ser por elas vencido fazer da fraqueza uma forccedila da queda uma ascensatildeo do erro um acerto do presente um futuro nunca esperar e sempre fazer esse eacute o ldquosegredordquo de sua existecircncia devotada agrave expressatildeo agrave realizaccedilatildeo mdashmesmo que os resultados sejam apenas uma soma de incontaacuteveis fragmentosmdash laquoNada de revelaccedilotildees para Leonardo Nada de abismo aberto agrave sua direita Um abismoraquo insiste Valeacutery mais de uma vez laquofaacute-lo-ia pensar numa ponte Um abismo poderia servir para experiecircncias com algum grande paacutessaro mecacircnicoraquo laquoseu pensamento se desenvolve cada vez mais sobre o controle perpeacutetuo das resistecircncias exteriores Nada de real lhe parece indigno de ocupar sua poderosa atenccedilatildeoraquo Diante dos fenocircmenos ele se concentra simplesmente nos projetos e construccedilotildees que esses fenocircmenos legitimam e evocam no espiacuterito na consciecircncia O real natildeo eacute para ser posto como um altar a ser simplesmente contemplado com espanto o real eacute para ser usado

Eacute atraveacutes dessa perspectiva que o artista passa a representar portanto para o poeta uma espeacutecie de siacutembolo da proacutepria accedilatildeo do proacuteprio fazer Fazer que eacute tanto o resultado quanto o aperfeiccediloamento de um saber seja este compreendido como arte ou ciecircncia laquoMeu primeiro movimento de espiacuterito foi sonhar com o Fazerraquo confessa Valeacutery em um trecho memoraacutevel o quanto esse conceito geneacuterico lhe eacute tatildeo caro laquoA ideacuteia de Fazer eacute a primeira e a mais humana ldquoExplicarrdquo nunca eacute mais que descrever uma maneira e fazer eacute apenas refazer atraveacutes do pensamento O Porquecirc e o Como que satildeo apenas expressotildees do que eacute exigido por essa ideacuteia inserem-se a todo instante ordenando que os satisfaccedilamos a qualquer preccedilo A metafiacutesica e a ciecircncia somente desenvolvem sem limites essa exigecircncia Ela pode ateacute levar-nos a supor que ignoramos o que sabemos quando o que sabemos natildeo se reduz claramente a alguma habilidade Eacute isso recuperar os sentidos na sua fonteraquo Entretanto soacute se deve agir soacute se deve fazer com rigor com laquo obstinado rigorraquo (laquo hostinato rigoreraquo) Esta eacute uma das maacuteximas divisas de Leonardo agrave qual Valeacutery constata e adere buscando cumpri-la em todos os aspectos de sua obra e de sua vida Para se passar do pensamento agrave accedilatildeo para se passar do pensamento ao fazer para que o espiacuterito se insira atraveacutes da praacutetica por ele escolhida no devir do mundo o seu cultivo cotidiano obstinado e obsessivo o seu culto faz-se necessaacuterio A sua exigecircncia natildeo eacute mero preciosismo Compreendido como tenacidade e exatidatildeo e natildeo como falta de flexibilidade o rigor proposto eacute o modo mesmo pelo qual se busca obter entendimento clareza luminosidade na obra e no processo de elaboraccedilatildeo da proacutepria obra pelo qual o espiacuterito a consciecircncia busca laquonatildeo sei que total possessatildeo de sua maacutequina de agir a elegacircncia ideal da accedilatildeo criadoraraquo Natildeo por acaso Walter Benjamim descrever o Leonardo valeacuteryano e consequumlentemente o proacuteprio Valeacutery justamente como laquoo artista que em nenhum momento de sua obra desiste de alcanccedilar uma noccedilatildeo maximamente exata de seu trabalho e de sua maneira de executaacute-loraquo

Dessarte ao almejar assim proceder o Leonardo valeacuteryano deve comeccedilar recusando o modo como as pessoas em geral contemplam o mundo atraveacutes de um pensamento que abstrai e julga precipitadamente Pois elas estatildeo muito carregadas inflacionadas de conceitos a cultura pesa sobre elas como uma segunda natureza natildeo como uma convenccedilatildeo da qual elas possam facilmente se livrar ou trocar Supotildee-se que ao longo de incontaacuteveis processos histoacutericos e biograacuteficos na sedimentaccedilatildeo e na cristalizaccedilatildeo de interpretaccedilotildees e afirmaccedilotildees elas se esqueceram de conviver com a realidade que os sentidos lhes oferecem jaacute natildeo podem mais percebecirc-la sem a espessa lente dos valores e das crenccedilas das palavras Suas especulaccedilotildees as lanccedilam para outros mundos que natildeo este quiccedilaacute ilusoriamente mais controlaacuteveis e consoladores quiccedilaacute mais suportaacuteveis laquoA maioria das pessoas vecirc atraveacutes do intelecto com uma frequumlecircncia bem maior do que atraveacutes dos olhosraquo diagnostica Valeacutery laquoAo inveacutes de espaccedilos coloridos tomam conhecimento de conceitos Uma forma cuacutebica esbranquiccedilada em relevo e trespassada por reflexos de vidros imediatamente eacute uma casa para eles Lar Ideacuteia complexa acordo de qualidades abstratas Se se deslocam o movimento das filas de janelas a translaccedilatildeo das superfiacutecies que desfigura continuamente suas sensaccedilotildees escapam mdash pois o conceito natildeo muda Percebem mais de acordo com o leacutexico do que segundo a retina aproximam tatildeo mal os objetos conhecem tatildeo vagamente os prazeres e os sofrimentos de ver que inventaram os belos locais Ignoram o resto Mas quando isso acontece regalam-se com um conceito que formiga de palavrasraquo E tudo isso porque o laquodemocircnio da generalizaccedilatildeoraquo raramente dorme laquoFaacutecil cosa egrave farsi universale Eacute faacutecil universalizar-seraquo Difiacutecil eacute fazer com que o pensamento natildeo adentre universalizaccedilotildees extremas demasiado extremas difiacutecil eacute portanto natildeo ousar filosofar e filosofar somente atraveacutes do pensamento racional atraveacutes da linguagem verbal da liacutengua de palavras Pois o espiacuterito a consciecircncia mdashdiferentemente do olho que em certo sentido sempre vecirc mais diferentemente de qualquer outro sentido fiacutesico que sempre percebe ou recebe maismdash tende a agrupar a conjugar a aglutinar como que natural e imediatamente num mesmo conceito sob uma mesma designaccedilatildeo uma infinidade de fenocircmenos sempre diferentes e sempre fluidos como se esquecesse das diferenccedilas para compreender para gerar conhecimento faz-se necessaacuterio falsificar ficcionar

Todavia o Leonardo valeacuteryano assim aprende laquopor esse estudo constante rigoroso e amoroso das coisas da natureza que natildeo haacute detalhes na realidade [grifo do autor] e que se [o nosso] espiacuterito nos obriga a abstrair e a simplificar a confundir os seres inominaacuteveis sob quaisquer pobres nomes e a substituir a sua variedade infinita os ldquoconceitosrdquo as classes e as entidades isso natildeo passa de uma necessidade de nosso entendimento [] Noacutes percebemos bem mais do que podemos conceberraquo Eis portanto como o Leonardo valeacuteryano em contraste com esse impulso ou ambiccedilatildeo relativamente natural de abstrair conceitualmente principia qualquer accedilatildeo qualquer fazer suspendendo provisoriamente a ideacuteia a especulaccedilatildeo sobre o suposto valor ontoloacutegico dos fenocircmenos a funccedilatildeo e a hierarquia que estes possam ter no cosmo para pensar o maior tempo possiacutevel as impressotildees primeiras os fenocircmenos simplesmente Disciplinando o pensamento e purificando a percepccedilatildeo o espiacuterito universal deve assim comeccedilar mdashironicamentemdash pelas particularidades Ele escreve Valeacutery laquotambeacutem comeccedila simplesmente contemplando e volta sempre a impregnar-se de espetaacuteculos Retorna aos ecircxtases do instinto particular e agrave emoccedilatildeo dada pela menor coisa realraquo Sente laquoa embriaguez dessas coisas particulares das quais natildeo existe ciecircncia [] [Sente] como uma delicadeza especial a voluacutepia da individualidade dos objetos [] Nada eacute mais poderoso na vida imaginativa O objeto escolhido torna-se como que o centro de associaccedilotildees cada vez mais numerosas conforme esse objeto seja mais ou menos complexo No fundo essa faculdade natildeo pode ser outra coisa senatildeo um meio de excitar a vitalidade imaginativa de transformar uma energia potencial em atualraquo Que se vaacute primeiro aos fenocircmenos particulares e que depois se adentre no perigoso e sedutor labirinto da abstraccedilatildeo conceitual pois assim se aventurar eacute da ldquonaturezardquo mesma do pensamento que opera por distanciamentos por excessos e economias mas tambeacutem que se traga o precioso fio que reconduz a dele sair que os peacutes se mantenham na terra e a cabeccedila no ceacuteu Esse eacute aqui o estranho princiacutepio para a construccedilatildeo de um saber relativamente mais purgado de especulaccedilotildees de preconceitos de ilusotildees metafiacutesicas Eacute por isso que as ldquoaparecircnciasrdquo as imagens as artes plaacutesticas que tradicionalmente copiam os fenocircmenos particulares que tradicionalmente os representam por semelhanccedilas como o desenho e a pintura satildeo tatildeo caras tatildeo necessaacuterias ao Leonardo valeacuteryano para este como afirma o poeta a pintura substitui a filosofia Porque olhar um objeto eacute uma coisa olhaacute-lo desenhando-o e pintando-o fazendo-o na representaccedilatildeo artiacutestica eacute outra Fazendo-o na representaccedilatildeo artiacutestica eacute descobrir algo no mundo que o espiacuterito a consciecircncia dispersa em suas especulaccedilotildees natildeo descobriria A representaccedilatildeo artiacutestica que aiacute se faz da realidade eacute icocircnica portanto composta de uma fidelidade direta com o abstraiacutedo atenta agrave proacutepria realidade percebida a um aspecto dela

E isso faz com que Valeacutery mdashatraveacutes desse seu Leonardo em quem o pensamento simboacutelico e o pensamento conceitual a imaginaccedilatildeo e a razatildeo se fundemmdash sonhe com um projeto de estudo futuro o qual o poeta denomina de laquo loacutegica imaginativaraquo (laquo logique imaginativeraquo) ou de laquo analoacutegicaraquo (laquo analogiqueraquo) Tambeacutem derivado das experiecircncias poeacuteticas do Simbolismo esse projeto seria uma verdadeira investigaccedilatildeo da poderosa capacidade espiritual de fazer analogias de abstrair graficamente elementos semelhantes de fenocircmenos postos em comparaccedilatildeo como um modo eficaz de representar e compreender a realidade e de ater-se a ela Isso porque a analogia jaacute seria um dado imprescindiacutevel na vida e nas proacuteprias praacuteticas humanas algumas dessas seriam impossiacuteveis se a analogia natildeo fosse sistematizada e convencionada como certa arquitetura feita a partir de projetos que a representam no espaccedilo e certa muacutesica feita a partir de partituras que a representam no tempo jaacute que como diz o poeta de modo preciso laquoO graacutefico eacute capaz do contiacutenuo de que a palavra eacute incapazraquo

A arte revela-se portanto na concepccedilatildeo do Leonardo valeacuteryano como essa praacutetica de ir aos fenocircmenos particulares cujo desenvolvimento daacute-se sobretudo pela analogia pela metaacutefora a arte revela-se portanto como um saber em estado nascente A sua muacuteltipla e irredutiacutevel ldquofunccedilatildeordquo (se o termo funccedilatildeo lhe eacute aplicaacutevel) mesmo quando inserida em uma forte heteroniacutemia religiosa mesmo que em contradiccedilatildeo com o impulso ao transcendente natildeo deixa de ter um caraacuteter eminentemente a-metafiacutesico posto ser frequumlentemente uma relaccedilatildeo muito proacutepria e iacutentima com a realidade sensiacutevel material Se a filosofia e a ciecircncia tenderiam mdashmenos por si mesmas e mais pela ideoloacutegica imagem que delas se fazemmdash a afastar as pessoas das coisas a arte as aproximaria delas se a tarefa do filoacutesofo e a do cientista torna-se em grande parte a construccedilatildeo de mundos cujas abstraccedilotildees satildeo gerais a tarefa do artista eacute a construccedilatildeo de mundos cujas abstraccedilotildees satildeo particulares laquoUtilidade dos artistasraquo assim define Valeacutery em breves e capitais aforismos laquoConservaccedilatildeo da sutileza e da instabilidade sensoriais Um artista moderno deve perder dois terccedilos de seu tempo tentando ver o que eacute visiacutevel e principalmente natildeo ver o que eacute invisiacutevel Com muita frequumlecircncia os filoacutesofos expiam a culpa de terem agido ao contraacuterioraquo laquoUma obra de arteraquo dizia laquodeveria ensinar-nos sempre que natildeo haviacuteamos visto o que vemosraquo laquoA educaccedilatildeo profunda consiste em desfazer a educaccedilatildeo primitivaraquo Mediaccedilatildeo a desconstruir mediaccedilotildees a arte seria justamente uma meditaccedilatildeo produtiva sobre os fenocircmenos particulares A sua praacutetica enquanto criacutetica pode ser usada assim como um poderoso meio para purificar as especulaccedilotildees para purificar os valores e as crenccedilas as palavras que obliteram a proacutepria percepccedilatildeo do real para quebrar haacutebitos mentais A consequumlecircncia mais relevante desse estranho ideaacuterio o qual Valeacutery doravante reelaboraria e ampliaria de um modo ainda mais poeacutetico principalmente em seus diaacutelogos socraacuteticos eacute por conseguinte uma reconciliaccedilatildeo com o mundo sensiacutevel material A exigecircncia do pensamento de Leonardo sentencia o poeta laquoo reconduz ao mundo sensiacutevel e sua meditaccedilatildeo tem por saiacuteda o apelo agraves forccedilas que constrangem a mateacuteria O ato do artista superior eacute o de restituir atraveacutes das operaccedilotildees conscientes o valor da sensualidade e o poder emotivo das coisasraquo

O meacutetodo do Leonardo valeacuteryano pode ser compreendido sintetizado enfim como a conjunccedilatildeo perfeitamente harmocircnica entre dois siacutembolos maacuteximos e indissociaacuteveis do proacuteprio poeta a Matildeo (que age que faz) e o Olho (que contempla a realidade passiacutevel de sofrer accedilotildees feituras) Naturalmente esse meacutetodo mdashque natildeo passa na esfera do espiacuterito da consciecircncia de uma idiossincrasia de uma fidelidade a si mesmo aos seus processosmdash possui no pensamento de Valeacutery ainda uma outra e capital funccedilatildeo aumentar pela proacutepria atenccedilatildeo e esforccedilo que exige do espiacuterito da consciecircncia que pratica alguma arte ou ciecircncia a proacutepria autoconsciecircncia seu mais raacutepido e pleno desenvolvimento e purificaccedilatildeo jaacute que esta se adquire na perspectiva do Leonardo valeacuteryano natildeo na especulaccedilatildeo circular e esteacuteril mas essencialmente na proacutepria accedilatildeo no proacuteprio fazer Algo que seraacute fortemente explicitado por um outro personagem conceitual o Soacutecrates valeacuteryano no fim do diaacutelogo Eupalinos E eacute por isso por buscar manter-se com rigor nesse meacutetodo nesse caminho que o Leonardo valeacuteryano foi facilmente qualificado natildeo apenas de gecircnio (o termo eacute demasiado idealista e romacircntico para o poeta) mas tambeacutem de monstro Um monstro que compreende a si mesmo como uma unidade de intelecto e corpo destinada agrave praacutetica sem fim O proacuteprio poeta assim escreve laquoEm relaccedilatildeo aos nossos haacutebitos Leonardo parece como que um monstro um centauro ou uma quimera por causa da espeacutecie ambiacutegua que ele representa para espiacuteritos empenhados demais em dividir a nossa natureza [grifo do autor] e em considerar filoacutesofos sem matildeos e sem olhos artistas com cabeccedilas tatildeo reduzidas que natildeo possuem nelas nada mais que instintosraquo

Todavia feliz ou infelizmente esse monstro talvez jaacute natildeo possa mais ser Aquilo que outrora constituiacutea muito de seu poder hoje provavelmente constituiria muito de sua fraqueza a polivalecircncia natildeo raro seria denominada de dispersatildeo o rigor de intransigecircncia O espiacuterito universal talvez esteja fadado a morrer em longa e pateacutetica agonia Nada ou muito pouco concretizaria num mundo no qual a especializaccedilatildeo a divisatildeo do trabalho e do saber se alastraram por grande parte das esferas sociais no qual as relaccedilotildees demandam um fim determinado e por vezes uacutenico Nunca a ciecircncia dependeu de tantos esforccedilos conjuntos nunca se soube tanto com relaccedilatildeo agrave quantidade de conhecimento do passado e tatildeo pouco com relaccedilatildeo agrave quantidade de conhecimento do presente nunca a memoacuteria humana esse acumular de lembranccedilas e de contiacutenuas deformaccedilotildees subjetivas apresentou-se tatildeo fraacutegil e tatildeo incapaz de abarcar todo o diversificado conhecimento que a humanidade constantemente reformula e incrementa Dir-se-ia que o espiacuterito universal se restringiu cada vez mais a ser universal em algumas em poucas atividades e assim sucessivamente ateacute o limite no qual soacute pode vir a ser o especialista daquilo que mais ningueacutem eacute por princiacutepio capaz de ser de si mesmo Situado nos antiacutepodas de Leonardo este outro monstro valeacuteryano Edmond Teste vem a ser tal especialista Ele talvez seja na Modernidade o uacutenico espiacuterito universal possiacutevel aquele que renunciou a accedilatildeo aquele que renunciou ao proacuteprio fazer para somente dedicar-se a se fazer

212 Edmond Teste

A solitaacuteria e por vezes sofrida relaccedilatildeo do ser humano com aquilo que o habita com sua proacutepria interioridade natildeo foi na perspectiva laica amiuacutede representada pelos gecircneros narrativos da literatura ateacute o desenvolvimento da sociedade burguesa com sua heterogecircnea cultura cientiacutefica e teacutecnica na qual o prestigioso conceito de indiviacuteduo se cristaliza e se manifesta se impotildee com mais veemecircncia e constacircncia conceito que tem em filoacutesofos como o transigente Montaigne os racionalistas Descartes e notadamente Leibniz seus principais arautos e em Soacutecrates e Santo Agostinho nobres precursores de uma antiguidade em muito voltada para uma ldquointerioridaderdquo regida pelo divino voltada natildeo para os homens em suas singularidades mas para o homem em sua generalidade A descriccedilatildeo de tipos ideais frequumlente em registros orais e na passagem destes para os escritos faz-se a partir de entatildeo menos constante e necessaacuteria Personagens singulares especiacuteficos por vezes anocircnimos distantes do restrito ciacuterculo das decisotildees poliacuteticas e econocircmicas marginais por opccedilatildeo ou por destino mergulhados numa sombria monotonia de iacutentimas cogitaccedilotildees agora tambeacutem podem ser eleitos protagonistas A transformaccedilatildeo de um indiviacuteduo suas epifanias e ecircxtases seus desesperos e crises ou mesmo as suas paralisias essas intensas metamorfoses agraves quais como que inevitavelmente todos passam natildeo precisam necessariamente ocorrer ou serem descritas em cenaacuterios monumentais em qualquer lugar em qualquer periacuteodo e em qualquer circunstacircncia elas podem surgir Anaacuterquicos na escolha de suas temaacuteticas muitos dos autores modernos mdashque tambeacutem se posicionam como indiviacuteduos principalmente quando se posicionam como autoresmdash descobrem aquilo que sempre souberam que toda trajetoacuteria pode ser contada que uma existecircncia exterior e ordinaacuteria pode ocultar uma existecircncia interior e extraordinaacuteria que a literatura assim como qualquer arte assim como a proacutepria filosofia pode se utilizar e se apropriar de qualquer elemento de uma visatildeo ou lampejo de um miacutenimo fragmento de realidade outrora supostamente fraacutegil e insignificante Natildeo haacute detalhes natildeo precisa haver tudo importa porque tudo agora vem a ser motivo e momento para a proacutepria criaccedilatildeo tudo agora vem a ser propiacutecio A vida do espiacuterito revela uma aventura igualmente excelsa quanto agrave vida do corpo Um drama pode ser estaacutetico uma vida imoacutevel Do sonhador cavaleiro andante de Cervantes aos desesperados personagens de Dostoieacutevski passando pelos pateacuteticos burgueses de um Balzac e chegando agraves aniquiladas quase-personagens de um Kafka e um Beckett tal parece ter sido uma das mais constantes orientaccedilotildees da Literatura Moderna

Ao herdaacute-las Valeacutery tambeacutem as radicaliza a um plano de abstraccedilatildeo extrema isso naturalmente faz parte desse recorrente jogo em jamais aceitar o que lhe eacute dado sem conscientemente crivaacute-lo transformaacute-lo ou mesmo distorcecirc-lo Grande parte de sua obra natildeo deixa de ser simplesmente o registro verbal de uma ou de parte de uma intensa interioridade de uma interioridade a fazer-se ou a querer fazer-se sempre e cada vez mais luacutecida e objetiva Nela tudo se passa como se jaacute natildeo fosse mais necessaacuterio explicitar elementos que a todos fossem comuns Por que registrar o exato momento em que a matildeo foi cortada quando eacute a dor que interessa e o que essa dor suscita Dando importacircncia relativa agraves localidades e datas o poeta prefere dizer como o espiacuterito eacute afetado pela comida ou pela bebida do que dizer o que comeu e bebeu prefere registrar a reflexatildeo sobre o fato do que o fato pois este apesar de necessaacuterio eacute de ordem contingente e aquele pode servir de elemento para a formulaccedilatildeo de uma lei interna Preferecircncia essa que natildeo implica na abertura para uma generalizaccedilatildeo excessiva ou para uma universalizaccedilatildeo dada a partir da crenccedila em uma natureza humana comum facilmente propagada pela filosofia mas que implica sobretudo em avaliar a si mesmo como um fenocircmeno um fenocircmeno qualquer nem mais nem menos importante nem superior nem inferior a qualquer outro fenocircmeno exterior Como reescreve num tipo de siacutentese que lhe eacute muito proacutepria Jorge Luis Borges acerca da lucidez daquele que talvez tenha sido um de seus secretos mestres laquoOs fatos para ele soacute valem como estimulantes do pensamento pensamento para ele soacute vale enquanto o podemos observar a observaccedilatildeo tambeacutem lhe interessaraquo E assim sucessivamente num processo circular que o contista argentino muito bem poderia simbolizar na forma de um labirinto sem fim

Composta ao longo de grande parte da vida de Valeacutery La soireacutee avec Monsieur Teste ou simplesmente Monsieur Teste (a primeira ediccedilatildeo data de 1925 doravante outros trechos foram continuamente acrescentados e publicados postumamente afora as referecircncias diretas ou indiretas presentes nos Cahiers e nas Histoires briseacutees) natildeo deixa de ser entre os seus outros escritos um caso limite de todo esse modo de proceder Numa primeira aproximaccedilatildeo o leitor poderia julgar estar diante de um romance de algum modo indiretamente aparentado com os romances filosoacuteficos praticados por Voltaire ou Diderot Entretanto essa obra estranhiacutessima inclusive para contexto experimental da literatura do seacuteculo XX dificilmente seraacute assim classificada Fragmentada ao extremo eacute provaacutevel que tenha sido deliberadamente estruturada como antiacutepoda a uma forma que apesar de extremamente resistente e plaacutestica constituiacuteda por um subjetivo prosaiacutesmo mais propiacutecio a destrinccedilar os conflitos psicoloacutegicos do que a objetividade poeacutetica da epopeacuteia veio a se tornar inadequada para conter os extremos graus de enleio abstraccedilatildeo e rigor almejado por um escritor que jamais se propocircs a romancear mas registrar os movimentos de um espiacuterito singular Note-se que Valeacutery natildeo valora o proacuteprio romance como grande parte da criacutetica literaacuteria de sua eacutepoca tampouco como os romancistas Proust ou Gide Considerava-o um gecircnero demasiado impuro voltado agraves inuacutemeras filigranas cotidianas aos prazeres e desprazeres da vida e por conseguinte segundo a sua proacutepria concepccedilatildeo de literatura como um exerciacutecio ideal de precisatildeo e de siacutentese irredutiacutevel agrave expressatildeo de elementos aleatoacuterios e gratuitos Elementos em muito oriundos de um automatismo a ser superado pelo escritor que almeja uma literatura pura logo poeacutetica laquoPara fazer romancesraquo diz ele de um modo talvez excessivamente criacutetico laquoeacute necessaacuterio considerar os homens como unidades ou elementos bem definidosraquo Ou ainda laquoO romance responde a uma necessidade bem mais ingecircnua que o poema mdash Pois ele demanda crenccedila credulidade abstenccedilatildeo de si mdash e o poema exige colaboraccedilatildeo ativaraquo

Assim se haacute um gecircnero em que essa obra esse anti-romance de um hibridismo avassalador possa ser compreendido de um modo lato talvez seja o do retrato Os incisivos moralistas do seacuteculo XVII e XVIII que enquanto estilistas tanto apreciavam essa forma hoje relativamente esquecida possuem certa filiaccedilatildeo com o tipo da criacutetica que Valeacutery em Monsieur Teste costuma lanccedilar sobre a moral vigente todavia este diferentemente daqueles natildeo busca pintar a maacutescara que uma ldquocelebridaderdquo adquire perante os seus num determinado ciacuterculo social nem a sua suposta decadecircncia e queda suas pateacuteticas excentricidades mas principalmente um homem extremo envolvido em praacuteticas intelectuais extremas A obra debruccedila-se assim no perfil e na exposiccedilatildeo do pensamento deste personagem o Senhor Edmond Teste um discreto e pacato burguecircs a viver de modestas aplicaccedilotildees na bolsa de valores no iniacutecio do seacuteculo XX numa Paris somente esboccedilada mas sempre presente em suas raacutepidas e convulsivas transformaccedilotildees urbanas e sociais A obra se constitui de requintada e hermeacutetica prosa (ou poesia posto que a diferenccedila entre uma e outra nela se dilui) de estilo filiado ao do Simbolismo sem entretanto estar aprisionada por essa corrente tampouco pelo procedimento do monoacutelogo interior do fluxo da consciecircncia ( stream of consciousness) de um James Joyce ou de uma Virginia Woolf ao qual um autor que se proponha na Modernidade narrar a vida de uma uacutenica personagem poderia facilmente adotar A obra Monsieur Teste natildeo pode ser enquadrada numa corrente estiliacutestica especiacutefica responde mais a princiacutepios esteacuteticos pessoais do que coletivos a uma iacutentima exigecircncia a siacutentese de um princiacutepio a partir do qual a reflexatildeo e a criaccedilatildeo se desenvolvem e se identificam laquoMeu ldquoCogitordquoraquo revela Valeacutery a grande importacircncia que lhe deu laquomdash ele estaacute inscrito na Soireacute avec M Testeraquo laquoSr Teste eacute meu espantalho quando eu natildeo sou saacutebio eu penso neleraquo Entre os trechos que o compotildee (dez capiacutetulos miacutenimos todos aparentemente incompletos e que podem ser lidos aleatoriamente) natildeo haacute um plano definido uma sequumlecircncia cronoloacutegica previamente estabelecida A estrutura causal dos eventos que se sucedem como aneacuteis de uma corrente mdashtatildeo caracteriacutestico no desdobramento de uma histoacuteria dita linearmdash natildeo eacute intencionada a trama o plot em sentido estrito natildeo existe ou eacute reduzida a um miacutenimo necessaacuterio A reflexatildeo a quase tudo preenche e uma certa monotonia se faz presente

O que essencialmente a caracteriza entretanto natildeo eacute mais a iluminaccedilatildeo dos processos da consciecircncia atraveacutes de uma accedilatildeo um fazer e que parte de uma contemplaccedilatildeo ou meditaccedilatildeo exterior como ocorre nos escritos sobre Leonardo mas atraveacutes de uma recusa em agir em fazer e que parte de uma contemplaccedilatildeo ou meditaccedilatildeo interior portanto uma devoccedilatildeo para com a vida da consciecircncia em sua interioridade aquietada e para com as natildeo convencionais e desconcertantes maacuteximas de conduta daquele que a vive uma laquomitologia do espiacuteritoraquo diraacute ironicamente Valeacutery compreendo que se trata de uma empresa que natildeo se furta agrave estilizaccedilatildeo e ao exagero Enquanto obra simultaneamente herdeira e criacutetica de uma sequumlecircncia histoacuterica literaacuteria Monsieur Teste eacute um verdadeiro eacutepico ao avesso como que substitui a civilizaccedilatildeo pela pessoa e pela pessoa em seu mais deliberado distanciamento e introspecccedilatildeo apartada laquoDe que sofri maisraquo pergunta-se essa personagem laquoTalvez do haacutebito de desenvolver todo o meu pensamento mdash de ir ateacute o final de mimraquo E isso com tal intensidade que para ele jaacute natildeo basta mais alcanccedilar os abismos de sua proacutepria interioridade cumpre superaacute-los cumpre negaacute-los A existecircncia como soacutei ser concebida deixa de ser assim referida e valorada com os habituais criteacuterios morais e passa a ser concebida por Teste apenas como pura possibilidade

2121 O possiacutevel

[Teste] representa o mais alto poder de agir ligado a mais completa maestria de si mesmo ele pode tanto o que ele quer e seu poder natildeo eacute uma capacidade vaga mais uma virtualidade de poderes definidos determinados e mesuraacuteveis anaacutelogos agravequeles de uma maacutequina na qual o rendimento faz o objeto de caacutelculos exatos Dizemos de um tal homem que se ele se virou contra o mundo o poder regular de seu espiacuterito laquonada lhe resistiriaraquo Mas a sua superioridade natildeo eacute somente da sua maestria ela estaacute na indiferenccedila em relaccedilatildeo a essa superioridade no anonimato que ela guarda Senhor Teste deve permanecer desconhecido senatildeo ele se perde ele se rebaixa a ser Ceacutesar ou Deus (laquoA divindade eacute faacutecilraquo diz ele com um suntuoso desprezo) Do mesmo modo ele natildeo faz nada

Maurice Blanchot Valeacutery e Fausto

Valeacutery natildeo se propocircs por conseguinte a descrever um teatro mas um ator que se recusa a atuar a participar desta trageacutedia sentimental que eacute a vida da sociedade para se manter na comeacutedia intelectual que eacute a vida do espiacuterito A contemplaccedilatildeo ou a meditaccedilatildeo tem primazia Na esfera social isso se reflete naturalmente em um certo quietismo em uma certa recusa em agir em fazer uma recusa em se engajar ativamente no mundo Dessarte Teste se desliga progressivamente do desejo de concretizar de pocircr agrave prova seus proacuteprios talentos e capacidades os quais supostamente satildeo muitos e extraordinaacuterios do desejo em produzir obras de qualquer espeacutecie artiacutesticas filosoacuteficas ou cientiacuteficas em deixar um legado em ser reconhecido contemporacircnea ou postumamente Diz que chegou a escrever diletantemente algumas paacuteginas natildeo se sabe que prosas e poemas em algum tempo de sua vida Todavia agora declina-se mdashalgo que o proacuteprio Valeacutery parece ter tambeacutem buscado a sua proacutepria aniquilaccedilatildeo como literato como escritormdash a ser artista filoacutesofo ou cientista a se dedicar a esta ou aquela atividade ou especialidade a ser um fazedor como o eacute tatildeo intensamente Leonardo Ademais tambeacutem procura reduzir ao miacutenimo os conflitos com o outro As tumultuadas relaccedilotildees regidas por afetos e por desafetos frequumlentes na vida cotidiana e familiar parecem-lhes desgastantes em demasia desagradaacuteveis em demasia totalmente desnecessaacuterias Como um bom ceacutetico Teste compreende que grande parte dos problemas existenciais eacute apesar de intensamente operante oriunda de uma espeacutecie de esquecimento das convenccedilotildees que fundamentam a sociedade Convenccedilotildees que ao se cristalizarem em crenccedilas e desejos satildeo aceitas amiuacutede como se inerentes agrave proacutepria natureza natildeo como arbitrariedades natildeo como artificialidades inventadas com o passar das geraccedilotildees e passiacuteveis de serem modificadas ou destruiacutedas

Contudo isso natildeo faz dele um misantropo ou um eremita tampouco um preguiccediloso do contraacuterio teria filiaccedilatildeo com estas estranhas personagens da literatura russa os homens superficiais como um Eugene Onegin de Pushkin ou um Oblomov de Goncharov A sua recusa eacute mais espiritual do que corporal eacute uma adequaccedilatildeo uma adaptaccedilatildeo da conduta Pois ele natildeo deixa de frequumlentar as festas os salotildees e as oacuteperas as instituiccedilotildees e as convenccedilotildees mas tudo de um modo bastante distanciado controlado e neutro Faz-se presente sem participar Parece que tem certo apreccedilo em observar como um ciacutenico antropoacutelogo de seu proacuteprio meio social todas as encenaccedilotildees de futilidade da vida burguesa o que natildeo implica na falta de discernimento para com as atividades que visam alimentar uma vaidade sempre vatilde Na carta de um amigo seu lecirc-se como esse meio social a Europa intelectual e literaacuteria da deacutecada de 1920 eacute compreendido prenhe de interesses e egoiacutesmos no qual cada um se preocupa menos com o que faz e mais com o que iraacute ser dito daquilo que faz laquoParis enclausura e combina consome e consuma a maior parte dos infortunados com o brilho que o destino chamou agraves profissotildees delirantes Chamo assim agraves profissotildees que tecircm o principal instrumento na opiniatildeo que fazemos de noacutes proacuteprios e cuja mateacuteria-prima eacute a opiniatildeo dos outros sobre noacutes Votadas a uma candidatura eterna as pessoas que as exercem satildeo necessaacuteria e permanentemente afligidas por um determinado deliacuterio de grandezas que um determinado deliacuterio da perseguiccedilatildeo trespassa e atormenta sem treacuteguas Neste povo de uacutenicos impera a lei de fazer aquilo que nunca ningueacutem fez nem faraacute Eacute pelo menos assim a lei dos melhores quer dizer dos que estatildeo empenhados em querer com muita clareza qualquer coisa de absurdo Soacute vivem para conseguir e fazer duraacutevel a ilusatildeo de estar a soacutes mdash pois a superioridade natildeo passa de solidatildeo levada aos atuais limites de uma espeacutecie Cada qual alicerccedila a existecircncia sobre a inexistecircncia dos outros a quem temos no entanto de arrancar um consentimento para natildeo existiremraquo

Todavia natildeo eacute porque compreenda as contradiccedilotildees e as hipocrisias humanas que Teste se propotildee a ser o profeta de uma outra e redentora moralidade Ele natildeo estaacute em luta contra ningueacutem natildeo se desespera diante dos comportamentos alheios da condiccedilatildeo social da pobreza e da miseacuteria da injusticcedila natildeo imagina desnorteado diagnoacutesticos a serem relatados ou utopias a serem realizadas natildeo eacute um Hamlet imerso em dramas e remorsos nem um Quixote em ideais e sonhos Diferente desses outros seres imaginaacuterios que povoam os sonhos da Literatura Universal ele talvez saiba que as accedilotildees cometidas com drama ou com comeacutedia com desesperanccedila ou com esperanccedila com qualquer sentimento extremo pouco ou nada resultam Definitivamente natildeo eacute um revolucionaacuterio Quanto a isso as enigmaacuteticas palavras de Benjamim parecem certeiras laquoPois quem eacute Monsieur Teste se natildeo o sujeito que jaacute estaacute a ponto de transpor o umbral da histoacuteria para aleacutem do qual o indiviacuteduo harmonicamente constituiacutedo e auto-suficiente se prepara a fim de se transformar em teacutecnico e em especialista pronto para em seu devido posto e lugar inserir-se num grande planejamento Transpor essa ideacuteia de planejamento do campo da obra de arte para o da comunidade humana eacute algo que Valeacutery natildeo foi capaz de fazer O umbral natildeo foi transposto aiacute o intelecto continua sendo privado e este eacute o melancoacutelico segredo de Monsieur Teste Dois ou trecircs dececircnios antes Lautreacuteamont dissera ldquoA poesia deve ser feita por todos Natildeo por um soacuterdquo Essas palavras natildeo chegaram a Monsieur Testeraquo

Essas palavras tambeacutem natildeo chegaram e talvez nunca chegariam ao poeta para quem a poesia no sentido moderno cumpre ser realmente feita por um soacute natildeo porque lhe faltava ouvido para ouvi-las mas porque nunca se propocircs na sua desconfianccedila para com toda forma de proselitismo transpor o umbral da histoacuteria passar na perspectiva poliacutetica da contemplaccedilatildeo para a accedilatildeo para o fazer O ensimesmado Teste natildeo deixa de ser a mais bem acabada encarnaccedilatildeo dessa posiccedilatildeo A sua proacutepria existecircncia revela em contraste com aqueles que os cercam como vultos quase imperceptiacuteveis os perigos em se voltar apenas para o engajamento sem estar munido da negatividade da criacutetica Ele eacute aquele que natildeo faz de seu pensamento servil a um pragmatismo inconsequumlente mesmo que para isso tenha que escolher um modo de vida para muitos um tanto extremado e anacrocircnico pois difiacutecil eacute natildeo participar quando todos participam pois difiacutecil eacute dizer natildeo quando todos dizem sim A sua recusa eacute uma renuacutencia Natildeo deixa de ser tambeacutem uma forma de resistecircncia estranhamente paciacutefica agraves exigecircncias morais de uma sociedade que parece estar cada vez mais arraigada numa programaacutetica instrumentaccedilatildeo do indiviacuteduo Ao se negar a viver a vida que lhe eacute imposta ele vive ao se negar a ser ele eacute Porque agraves vezes eacute necessaacuterio abjurar o mundo para melhor compreendecirc-lo assim como a si mesmo Preferindo ser somente aquele que observa aquele que presencia e contempla laquoO Sr Teste eacute o testemunhoraquo O sacrifiacutecio da accedilatildeo do fazer em prol do espiacuterito Intrigante saber as supostas etimologias do seu estranho nome no francecircs antigo teste designa cabeccedila e no latim testis espectador testemunha Valeacutery natildeo deixa de descrever assim a estaacutetica aventura desse seu personagem conceitual pelo sentido da existecircncia sentido que natildeo deve ser encontrado na religiatildeo ou na filosofia tampouco na histoacuteria mas que deve ser sobretudo construiacutedo inventado nele e talvez em todos por um disciplinado difiacutecil e natildeo raro doloroso programa de autoconsciecircncia

Teste tambeacutem o pratica o cumpre objetivando uma evoluccedilatildeo E nisso eacute o duplo de seu criador que a ele ou a si mesmo assim se refere laquoA imensa diferenccedila entre os Stendhal os Amiel e eu ou o S Teste mdash eacute que eles se interessam por seus estados e por si mesmos em funccedilatildeo do conteuacutedo dos seus estados enquanto que eu me interesso ao contraacuterio por aquilo que nesses estados natildeo eacute ainda pessoal pois os conteuacutedos a pessoa me parecem subordinadas a duas condiccedilotildees 1o a consciecircncia impessoal 2o a mecacircnica e a estatiacutesticaraquo Pergunta-se laquomdash Mas natildeo eacute esta afinal a procura do Sr Teste retirar-se do eu mdash do eu vulgar tentando constantemente diminuir combater compensar a desigualdade a anisotropia da consciecircnciaraquo Teste luta portanto para manter seu pensamento o mais reto possiacutevel e para manter-se ausente a qualquer ldquoemoccedilatildeordquo ou ldquosentimentordquo sereno imperturbaacutevel ante as seduccedilotildees e os desvios do mundo Sua meta tambeacutem eacute fazer-se um eu puro Trata-se portanto mais uma vez de um processo de despersonalizaccedilatildeo de desumanizaccedilatildeo Algo que foi indiciado desde a epiacutegrafe do primeiro capiacutetulo La soireacutee avec Monsieur Teste como uma vida cartesiana laquo Vita Cartesii est simplicissimaraquo Naturalmente ao evocar o nome de Descartes Valeacutery natildeo almeja discutir sobre questotildees gnosioloacutegicas como a idealidade do conhecimento se o mundo exterior existe realmente ou se eacute uma representaccedilatildeo da consciecircncia mas sobre o singular egotismo mdashracionalista ou melhor analiacutetico e por vezes no limiar do solipsismomdash praticado por seu personagem conceitual laquoConfesso que fiz um iacutedolo do meu espiacuteritoraquo este assim confessa numa ceacutelebre passagem laquosendo tambeacutem verdade que natildeo encontrei outro Tratei-o com oferendas com injuacuterias Natildeo como coisa que me pertencesseraquo O programa de autoconsciecircncia de Teste revela assim um radicalismo muito mais intenso do que aquele praticado por seu proacuteprio criador pois ocorre paradoxalmente por um constante exerciacutecio intelectual de negaccedilatildeo de natildeo identificaccedilatildeo

O modo como Valeacutery expressa essa negatividade essa natildeo identificaccedilatildeo eacute bastante inventivo Assemelha-se ao modo como amiuacutede eacute descrito a vida e o pensamento dos semi-miacuteticos ldquofundadoresrdquo das grandes religiotildees atraveacutes de breves e simboacutelicas biografias de compilaccedilotildees de uma perspectiva sempre singular pessoal e incompleta Naturalmente um suposto evangelho de Teste nada exigiria de ningueacutem Seus discursos seus ditos sempre circunstanciais frases esparsas e miacutenimas que aqui e ali aparecem seus pensamentos a solta satildeo demasiado esoteacutericos e costumam assumir a aporia e a contradiccedilatildeo como imanentes agrave loacutegica que os rege outros tambeacutem deixam seus testemunhos reflexos de uma tentativa infausta de compreendecirc-lo Dir-se-ia que quase tudo o que dele se pode saber repousa nos dizeres e nos escritos alheios em lembranccedilas e interpretaccedilotildees alheias nos disciacutepulos que o representam e natildeo o seguem isto eacute em mediaccedilotildees Satildeo os outros que se referem a ele mais do que ele mesmo a si mesmo um desconhecido que discursa sobre um primeiro encontro na oacutepera e uma luacutecida noite de conversa a carta de sua esposa Eacutemilie Teste na qual esta confessa entre tantas revelaccedilotildees o estranho amor que a une ao esposo a carta de um amigo um diaacutelogo fragmentos

Todavia essas descriccedilotildees todas satildeo por demais evasivas hermeacuteticas revelam a impossibilidade de se manter durante muito tempo uma imagem fixa e segura sobre essa personagem conceitual Fica-se apenas com flutuaccedilotildees com dominacircncias e movimentos com padrotildees laquoNatildeo existe imagem certa do Sr Teste Os seus retratos satildeo todos diferentesraquo laquoNa verdade natildeo se pode dizer nada dele que natildeo seja inexato no mesmo instanteraquo Teste revela-se para usar a feliz e ambiacutegua expressatildeo titular de Robert Musil sobre Ulrich o protagonista de seu mais vasto romance Der Mann ohne Eigenschaften um homem sem qualidades sem atributos um homem indefinido indefinido justamente porque laquoO homem ldquointeligenterdquo repugna se sentir uma pessoa um senhor bem definidoraquo Natildeo por acaso Benjamim dizer que ele laquoeacute uma personificaccedilatildeo do intelecto que lembra muito o Deus de que trata a teologia negativa de Nicolau de Cusa Tudo o que noacutes podemos saber de Teste desemboca na negaccedilatildeoraquo Em uacuteltima instacircncia o inteacuterprete valeacuteryano se encontra encurralado pois natildeo pode dizer categoricamente o que ele realmente eacute mas tatildeo-somente o que ele natildeo eacute Defini-lo portanto eacute uma aproximaccedilatildeo sempre imperfeita ou incompleta Natildeo apenas porque a totalidade de uma pessoa sempre escapa agraves representaccedilotildees de seus contemporacircneos mesmo dos mais proacuteximos e iacutentimos mesmo de si mesmo mas principalmente porque Teste mdashnatildeo dando relevacircncia alguma ao que os outros julgam sobre simdash aceita a self-variance e se propotildee a negar a natildeo se identificar com nada nem com o mundo nem com o si mesmo nem com os fenocircmenos exteriores que estatildeo sempre a mudar nem com os fenocircmenos interiores que tambeacutem estatildeo sempre a mudar Tatildeo logo pense ser algo ele busca contemplar em que sentido o pensamento de ser algo ldquoopostordquo ou ldquoextremordquo tambeacutem eacute vaacutelido tatildeo logo pense ser algueacutem ele busca contemplar em que sentido o pensamento de ser um outro tambeacutem eacute vaacutelido laquoNatildeo sou toloraquo diz resumindo duramente esse seu procedimento capital laquoporque todas as vezes que me encontro tolo nego-me mdash mato-meraquo

Teste conjura portanto ldquo contrardquo si mesmo executando uma espeacutecie de reduccedilatildeo fenomenoloacutegica de si mesmo uma espeacutecie de epocheacute de si mesmo Supor-se-ia que desse modo almeje realizar um estado uacuteltimo e absoluto no qual seu espiacuterito seria incapaz de negar aquilo que entatildeo contemplaria realmente ser uma espeacutecie de evidente irrefutaacutevel e inefaacutevel verdade Mas isso se constitui apenas como um procedimento heuriacutestico Pois seu intuito natildeo eacute realizar um ego transcendental apartado do mundo com o qual Descartes e Husserl sonham seu intuito eacute simplesmente permanecer em devir em devir negativo e portanto controlado laquoSr T[este] que eu concebiraquo diz Valeacutery laquomdash inuacutemeras vezes mdash seraacute o tipo de poliacutetica do pensamento mdash em frente a elemdash e inclusive contra ele O fim dessa poliacutetica eacute a manutenccedilatildeo e a extensatildeo e a ideacuteia que noacutes temos de noacutes mesmos Preparar incessantemente o momento do acaso afastar toda a definiccedilatildeo prematura de si mesmo [] mdash adquirir o poder de desdenhar nada menos do que cada fase de si mesmo mdash servir-se das ideacuteias e natildeo servi-las mdash eis o quadroraquo Daiacute tambeacutem ter sido denominado por seu proacuteprio criador em raras ocasiotildees de Teste Apocaliacuteptico ( Apocalypte Teste) laquomdashBem (diz S Teste) O essencial eacute contra a vidaraquo Natildeo ter apego a nenhum estado de espiacuterito de consciecircncia natildeo ter apego a nenhuma representaccedilatildeo mental a nenhum pensamento eis portanto o simples procedimento adotado no seu itineraacuterio ao eu puro agrave despersonalizaccedilatildeo agrave desumanizaccedilatildeo

Consequumlentemente para Teste qualquer pensamento por mais sedutor poderoso e verdadeiro que possa aparentar natildeo deve ser tatildeo-somente um fim mas tambeacutem um meio um caminho no qual o pensante ininterruptamente caminha doravante quando eacute chegado o propiacutecio momento deve se ter coragem de abandonaacute-lo se assim necessaacuterio for sem remorso nas longiacutenquas margens da memoacuteria Ele sabe que o seu valor reside sobretudo no seu poder de alterar no que pode contribuir para a evoluccedilatildeo do espiacuterito natildeo se deve portanto querer cristalizaacute-lo paraacute-lo laquoAs ldquoIdeacuteiasrdquo [] satildeo meios de transformaccedilatildeoraquo afirma laquomdashe por consequumlecircncia partes ou momentos de alguma mudanccedilaraquo as ideacuteias satildeo pontes que levam a outras pontes Cumpre ao pensamento fazer daquele que pensa mais autaacuterquico Daiacute tambeacutem a sua justificada busca por tudo o que demanda esforccedilo por tudo o que eacute difiacutecil pois o difiacutecil exige da consciecircncia ser consciente o faacutecil em contrapartida eacute tudo aquilo que eacute executado inconscientemente automaticamente laquoSeja qual for a coisaraquo dizia laquosoacute aprecio a facilidade ou a dificuldade em conhececirc-la em consumaacute-la [] Que me importa aquilo que estou farto de saberraquo Para Teste os pensamentos satildeo etapas de uma transformaccedilatildeo mas tambeacutem catalizadores de maior ou menor eficaacutecia dessa transformaccedilatildeo

E eacute justamente por isso que a precisa personagem do Abade (ou do Padre Mosson) suposto confessor de sua esposa se escandaliza com a sua maneira de ser assustadoramente neutra amoral jamais submetida a um padratildeo de comportamento baseado e constrangido em direitos e deveres em recompensas e castigos laquoAbstrai-se pavorosamente do bemraquo diz o Abade (o Padre) laquomas felizmente abstrai-se do mal Haacute nele natildeo sei que assustadora pureza que distanciamento que incontaacuteveis forccedilas e luz Nunca vi uma falta de perturbaccedilotildees e duacutevidas como esta numa inteligecircncia trabalhada tatildeo a fundo Ele eacute terrivelmente calmo Natildeo se lhe pode atribuir nenhuma doenccedila de alma nenhumas sombras interiores mdash e nada aliaacutes que derive dos instintos do medo e da cobiccedila Mas nada se orienta para a Caridaderaquo Para Teste o movimento do mundo e de si mesmo um dos grandes problemas da filosofia grega claacutessica tampouco a justificaccedilatildeo moral e teleoloacutegica da existecircncia de todas as coisas criadas que natildeo raro resulta em doutrinas soterioloacutegicas um dos grandes problemas da filosofia cristatilde constituem realmente questotildees a serem postas e resolvidas Seu interesse seu foco eacute justamente outro eliminar qualquer busca por uma suposta essecircncia das coisas e por uma suposta moralidade universalmente vaacutelida e inscrita nas coisas pois muitas vezes tais intentos o modo mesmo de assim pensar oblitera a percepccedilatildeo da realidade na medida em que a idealiza ou a falseia em termos absolutos seja por uma constacircncia ontoloacutegica seja pelas problemaacuteticas categorias de bem e de mal A esse tipo de preocupaccedilatildeo de crenccedila a esse tipo de metafiacutesica dualista Teste eacute refrataacuterio prefere antes questionar-se natildeo sobre o que deve ou natildeo deve fazer natildeo sobre o que lhe eacute ou natildeo socialmente permitido fazer mas sobre o que pode ou natildeo pode fazer e isso mesmo que depois nada faccedila prefere questionar-se sobre a relaccedilatildeo entre as circunstacircncias nas quais se encontra e as escolhas que a partir delas eacute capaz de tomar sem que haja nenhuma intermediaccedilatildeo nenhuma crenccedila a limitar ou a restringir essa mesma relaccedilatildeo Atualizando uma de suas principais questotildees Valeacutery assim se pergunta imperiosamente laquoQue pode um homemraquo Eis a suprema questatildeo inuacutemeras vezes repetida e reformulada a uacutenica quiccedilaacute que pode ser verdadeiramente respondida Teste eacute assim inventado desde o iniacutecio como laquoo democircnio mesmo da possibilidade [] Ele soacute conhece dois valores duas categorias da consciecircncia reduzida aos seus atos o possiacutevel e o impossiacutevelraquo Qualquer outra forma de pensar que natildeo se estabeleccedila dentro desse criteacuterio por essas duas simples ldquocategoriasrdquo lhe parece um contra-senso esteacuteril As perguntas mdashldquoO que seirdquo e ldquoO que devo fazerrdquomdash satildeo como que substituiacutedas por uma mais pragmaacutetica mais dura mas tambeacutem mais humilde ldquoO que posso fazerrdquo Teste poderia muito bem dizer ldquoEu natildeo sou o que sou eu sou o meu futurordquo laquoQuem eacute vocecircraquo pergunta-se retoricamente laquo Eu sou o que eu posso eu me digoraquo

Entretanto Valeacutery natildeo pocircde desprezar o fato de que o ser humano eacute condicionado e finito que esquecimento e morte fazem parte de seu horizonte Assim apesar da intenccedilatildeo em descrever uma personagem conceitual no mais alto grau de interioridade de despersonalizaccedilatildeo de desumanizaccedilatildeo imperturbaacutevel ante a miseacuteria ele natildeo pode descrevecirc-la furtando-se totalmente agraves leis naturais agraves necessidades e limites do corpo veiacuteculo de prazer e dor Em algum momento cedo ou tarde o sofrimento deve em Teste fazer-se presente como fenocircmeno e tema a ser enfrentado Do contraacuterio comprometer-se-ia a concepccedilatildeo que dele faz natildeo um ser acabado mas um ser em processo laquo Oacute Meuraquo exclama num poema que revela justamente esse processo laquo mdash que ainda natildeo eacutes inteiramente Euraquo laquoEacute muito curiosoraquo ainda confessa laquode repente fico-me visiacutevel distingo o fundo das minhas camadas de carne sinto zonas de dor aneacuteis poacutelos coroas de dor Estaacute a ver estas figuras vivas a geometria do meu sofrimento [] Luto contra tudo mdash salvo o sofrimento do meu corpo para laacute de uma determinada grandeza Portanto por aiacute eacute que eu devia comeccedilar Porque sofrer eacute prestar uma atenccedilatildeo suprema a qualquer coisa e de certa forma sou um homem da atenccedilatildeoraquo Teste refere-se aiacute ao sofrimento fiacutesico ante o qual ele natildeo se furta em aceitar e analisar Quanto ao sofrimento espiritual este eacute ao fim consequumlecircncia dos proacuteprios pensamentos ou mais precisamente da maneira como em geral o espiacuterito a consciecircncia com eles se relacionam como uma coisa a ser possuiacuteda e natildeo plasmada Daiacute todo o seu esforccedilo para negaacute-los para natildeo se identificar com eles e consequumlentemente para natildeo se entregar agrave esperanccedila Porque a esperanccedila faz parte da predisposiccedilatildeo geral da personalidade da humanidade em crer e julgar subjetivamente os acontecimentos o tempo e em dar uma importacircncia demasiada agrave proacutepria identidade uma predisposiccedilatildeo da qual o medo o sofrimento tambeacutem participariam Isso natildeo implica todavia que Teste tatildeo desumanizado expresse-se desumanamente Eacute novamente a sua proacutepria esposa que assim paradoxalmente sintetiza laquoNa linguagem que usa tem natildeo sei que forccedila capaz de fazer ver e ouvir o que haacute de mais oculto E no entanto que frases humanas as suas e soacute humanas interioriacutessimas formas de feacute e mais nada reconstituiacutedas por artifiacutecio e articuladas maravilhosamente por um incomparaacutevel espiacuterito em audaacutecia e profundidade Explorou a frio dir-se-aacute a alma fervente Mas recompondo assim o meu coraccedilatildeo em chamas e a sua feacute falta-lhe pavorosamente a essecircncia que eacute esperanccedila Natildeo haacute um gratildeo de esperanccedila em toda a substacircncia do Sr Teste e eacute por isso que eu sinto um certo mal-estar com o exerciacutecio de seu poderraquo

Como natildeo necessita de explicaccedilotildees religiosas filosoacuteficas ou metafiacutesicas que o guiem e que o consolem ele que almejava contemplar o mundo e a si mesmo sem deformaccedilotildees Teste foi encarado pelo Abade (ou Padre) numa expressatildeo extremamente sinteacutetica e paradoxal como um laquo miacutestico sem Deusraquo (laquo mystique sans Dieuraquo) Um miacutestico sem Deus porque pratica seu programa de autoconsciecircncia sem esperanccedila alguma de realizaacute-lo plenamente porque para ele a palavra Deus natildeo designa um ser transcendente mas o si mesmo laquoDeus natildeo estaacute longeraquo afirma laquoEacute o que haacute de mais pertoraquo O laquoSr Testeraquo confirma Valeacutery em seus Cahiers laquoeacute um miacutestico e um fiacutesico da auto-consciecircncia mdash pura e aplicadaraquo

3 Saber e poder

31 Sob o signo da ciecircncia

Os escritos que versam sobre Leonardo e Teste natildeo se desenvolveram de modo totalmente arbitraacuterios ou isolados devem-se ao proacuteprio programa de autoconsciecircncia desencadeada em grande medida pelo periacuteodo de crise e pela Noite de Gecircnova e consequumlentemente ao crescente e genuiacuteno interesse de um jovem Valeacutery pela Matemaacutetica e pela Ciecircncia Moderna Interesse jaacute iniciado com o primeiro contato com Eureka de Poe e com as aulas e discussotildees que nos anos de estudo na Faculteacute de Droit de Montpellier tinha com seu grande amigo Pierre Feacuteline e que uma vez desenvolvido jamais o abandonou Data dessa eacutepoca uacuteltima deacutecada do seacuteculo XIX as suas primeiras leituras e estudos dos trabalhos de cientistas como Michael Faraday James Clerk Maxwell Lord Kelvin Bernard Riemann Henri Poincareacute Albert Einstein e natildeo menos significativo do excecircntrico matemaacutetico polonecircs Hoeumlneacute Wroński Este com seu messianismo com sua busca por um saber supremo parece ter influenciado em muito o pensamento de Valeacutery (que o considerava um louco mas um louco genial) notadamente com a La philosophie de lrsquoinfini e Messianisme ou reforme absolu du savoire humain Aquele que pode ser considerado o primeiro de todos os Cahiers um ldquoproto-cahierrdquo iniciado talvez natildeo por acaso no mesmo periacuteodo da composiccedilatildeo dos escritos sobre Leonardo e Teste o pequeniacutessimo Carnet de Londres de 1890 quando de uma viajem a Inglaterra revela natildeo apenas o registro da leitura dessa obra mas tambeacutem a crescente fascinaccedilatildeo pela Matemaacutetica e pela Ciecircncia Moderna e em breves lampejos a intrincada gecircnese desses dois personagens capitais

A compreensatildeo do pensamento de Leonardo como natildeo fundamentado no verbalismo e como precursor do espiacuterito empirista contemporacircneo os ditos espirituosos e polecircmicos de Teste sobre a importacircncia da ignoracircncia da duacutevida e do pensamento negativo na formulaccedilatildeo e no avanccedilo do saber todas essas colocaccedilotildees somadas agraves inuacutemeras e incompletas reflexotildees sobre epistemologia e teoria do conhecimento em seus Cahiers contribuiacuteram doravante para a ldquoexageradardquo imagem de Valeacutery como um grande ldquoentendedorrdquo da Matemaacutetica e da Ciecircncia Moderna da complexidade e do esoterismo destas como algueacutem capaz de discutir de explicar com desenvoltura a Termodinacircmica e a Teoria da Relatividade ou mesmo problemas de uma posterior Neurociecircncia

Todavia haacute que se dizer aqui que o interesse e os estudos do poeta seratildeo e continuaratildeo sendo mdashapesar de todos os seus inuacutemeros insights sobre o funcionamento do fazer cientiacuteficomdash extremamente diletantes para natildeo dizer amadores Supotildee-se que seus conhecimentos sobre a Matemaacutetica e a Ciecircncia Moderna aacutereas cada vez mais desdobraacuteveis e especiacuteficas nunca foram realmente tatildeo aprofundados como parte da criacutetica de divulgaccedilatildeo por vezes induz a crer E disso o poeta tinha plena consciecircncia que o saber ou melhor a diversidade dos saberes das ciecircncias especiacuteficas na Modernidade jaacute natildeo eacute passiacutevel de ser dominada por uma uacutenica pessoa e por conseguinte a formulaccedilatildeo de uma siacutentese relativa a esses saberes torna-se muito mais complicada Haacute que se dizer aqui mais uma vez que Valeacutery jamais pretendeu ser um especialista fazer ciecircncia ou filosofia da ciecircncia O que pretendeu foi antes algo mais proacuteprio a um literato que escreve numa sociedade jaacute transformada e traumatizada pelo advento do espiacuterito positivo deixar-se contaminar pelo rigor e pela impessoalidade patente da Matemaacutetica e da Ciecircncia Moderna e transpor essas ldquoqualidadesrdquo essas ldquovirtudesrdquo para a sua praacutetica de escrituraccedilatildeo para o seu proacuteprio programa de autoconsciecircncia jaacute que num movimento que poderia muito bem ser denominado de cartesiano a literatura de sua eacutepoca adquiriu para ele para as suas exigecircncias um caraacuteter de vagueza e de gratuidade que em parte o impedia de praticaacute-la da maneira como ateacute entatildeo era praticada Daiacute todo o vasto imaginaacuterio cientiacutefico em sua obra seja em prosa ou poesia e esta escrituraccedilatildeo hiacutebrida um tanto inclassificaacutevel estranha mescla de ldquocaacutelculordquo e ldquoversordquo A ciecircncia lhe interessa sim mas talvez muito mais como uma especulaccedilatildeo Uma especulaccedilatildeo que diferentemente das especulaccedilotildees filosoacuteficas ou metafiacutesicas resulta em algo que funciona mas que tambeacutem eacute capaz de lhe fornecer sobretudo imagens Imagens poeacuteticas sobre o mundo ou sobre partes do mundo mateacuteria-prima para a reflexatildeo Porque toda forma de pensamento para Valeacutery acaba se tornando em uacuteltima instacircncia uma deacutelice E eacute enquanto deliacutecia mdashnatildeo enquanto verdademdash que pode ser um auxiliar no programa de autoconsciecircncia na ascese do espiacuterito Daiacute o irocircnico adaacutegio bem ao gosto do poeta segundo o qual a ciecircncia eacute uma ficccedilatildeo mas uma ficccedilatildeo que funciona laquoQuanto a mimraquo escreve ele laquoadmito facilmente ignorar o que ignoro [] Se a hipoacutetese eacute sedutora ou se a teoria eacute bela deleito-me sem pensar na verdaderaquo

Eacute nessa perspectiva relativamente irocircnica que a concepccedilatildeo valeacuteryana de saber se constroacutei Para ele todo saber mdashtodo saber que eacute ciecircnciamdash corresponde necessariamente a uma controlada e rigorosa praxis a um laquoconjunto de receitas e procedimentos que sempre datildeo certo a uma foacutermula de atosraquo E o termo receita mdashrecorrente no pensamento do poetamdash eacute como uma representaccedilatildeo de atos possiacuteveis de sequumlecircncias de atos possiacuteveis que se posta em praacutetica se seguida leva a um determinado resultado previsto logo natildeo haacute na compreensatildeo do poeta nenhuma noccedilatildeo como do conceito de saber como ldquoconhecimento do objetordquo mas simplesmente como ldquoconhecimento de relaccedilotildees de funccedilotildees possiacuteveisrdquo conhecer algo eacute saber o que se pode fazer com esse algo e isso implica conhecer as relaccedilotildees possiacuteveis ao redor imediato desse algo Dessarte o poeta inuacutemeras vezes escreveu e reescreveu atualizou e insistiu que a uacutenica garantia do saber real eacute o poder poder de prever e de fazer mdashe que todo o resto natildeo passa de literaturamdash Dir-se-ia um tanto exageradamente que para Valeacutery saber eacute saber agir saber eacute saber fazer E isso implica consequumlentemente na anaacutelise dos fenocircmenos do mundo implica na fusatildeo ou na conciliaccedilatildeo entre racionalismo e empirismo essa dialeacutetica esse jogo entre ir a experiecircncia e ir ao intelecto que a analisa assim propondo modelos e leis a partir da interpretaccedilatildeo da regularidade dos fenocircmenos naturais Note-se que em sentido geral a concepccedilatildeo valeacuteryana de saber natildeo eacute de modo algum nova Foi consagrada e difundida a partir do seacuteculo XVII particularmente a partir da programaacutetica filosofia de Francis Bacon segundo o qual o objetivo do saber transformado em teacutecnica era libertar a humanidade cada vez mais das necessidades materiais a partir da filosofia de Descartes que rompe com a tradiccedilatildeo Escolaacutestica e a Magia da Renascenccedila laicizando o pensamento Haacute que se dizer assim que juntamente com o espiacuterito cartesiano o espiacuterito baconiano estaacute mesmo que sub-reptiacuteciamente bastante presente no pensamento de Valeacutery acerca da ciecircncia o poeta rariacutessimas vezes cita o autor da inacabada Instauratio Magna ao contraacuterio do autor do Discours de la Meacutethode inuacutemeras vezes referido

Soma-se a isso um certo positivismo Um positivismo que entretanto diferentemente da versatildeo de Auguste Comte laiciza-se adquire uma maior flexibilidade uma maior plasticidade excluindo o impulso pelas categorizaccedilotildees demasiado fixas em prol da plasticidade do discurso fragmentado Pois para Valeacutery se o saber eacute verdadeiramente saber isto eacute cientiacutefico entatildeo deve sempre se referir de algum modo a uma realidade mesmo que essa realidade natildeo seja percebida pelos sentidos mesmo que natildeo esteja na dimensatildeo ou na escala dos sentidos mesmo que seja uma seacuterie de acumuladas e fabulosas inferecircncias Mas tambeacutem deve ser ldquoem mimrdquo e ldquonum outrordquo uma representaccedilatildeo que possa ser transmitida compreendida aceita e compartilhada e sobretudo de um mesmo modo E eacute isso que confere na perspectiva social o seu caraacuteter de ldquoobjetividaderdquo Logo eacute com relaccedilatildeo a uma comunidade uma comunidade cientiacutefica que o saber tambeacutem se instaura e natildeo somente aos seus pressupostos internos Nesse sentido jaacute se disse que para Valeacutery aquilo que eacute verbal logoteoria natildeo eacute ou natildeo pode ser cientiacutefico porque o que eacute verbal logoteoacuterico implicaria na possibilidade de muitas e distintas interpretaccedilotildees implicaria em muitas ambiguumlidades isto eacute na imprecisatildeo na falta de um acordo com relaccedilatildeo agraves definiccedilotildees e agraves significaccedilotildees do que estaacute em jogo na medida em que uma proposiccedilatildeo verbal estaacute muito mais sujeita a ser apropriada a ser interpretada por diversas e contraditoacuterias maneiras do que uma equaccedilatildeo matemaacutetica ou fiacutesica agrave qual parece natildeo ter senatildeo funcionalidade Isso talvez seja um belo exagero jaacute que no pensamento do poeta eacute possiacutevel encontrar natildeo apenas a ideacuteia da possibilidade de um saber cientifico mas tambeacutem da possibilidade de um saber humaniacutestico

Por outro lado todo esse modo de compreender o saber pode induzir facilmente a interpretar que Valeacutery postula ou busca postular uma linha ou um limite um criteacuterio preciso de demarcaccedilatildeo de cesura epistemoloacutegica entre o que eacute ciecircncia de um lado e o que natildeo eacute ciecircncia de outro e que o poder (e nada mais) eacute justamente esse criteacuterio que o saber soacute eacute saber porque se desdobra em poder real ou potencial ou ainda que todo poder corresponderia a um saber etc Em certo sentido essa eacute uma interpretaccedilatildeo possiacutevel e bastante compreensiacutevel jaacute que muitas passagens dos escritos valeacuteryanos tomadas mais isoladamente realmente a legitimam Ademais o poeta tambeacutem se refere constantemente agrave ideacuteia de que na Ciecircncia Moderna deve haver mesmo que natildeo de todo sistematizada algum tipo de verificaccedilatildeo ou de controle pensamento este relativamente compartilhado com o Positivismo loacutegico do Wiener Kreis

Todavia a intenccedilatildeo em postular ou buscar postular um criteacuterio preciso de demarcaccedilatildeo de cesura epistemoloacutegica parece entrar em ldquocontradiccedilatildeordquo com a proacutepria concepccedilatildeo sustentada por Valeacutery segundo a qual arte e ciecircncia (e mesmo todas as atividades espirituais) satildeo variaccedilotildees exteriores por vezes apenas nominais de um mesmo interior Essa ldquocontradiccedilatildeordquo em certa dimensatildeo interpretativa permanece em seus escritos como uma oscilaccedilatildeo de maior ou menor intensidade agraves vezes ele a afirma agraves vezes a matiza agraves vezes simplesmente a ignora Pode ser compreendida como consequumlecircncia dos ambiacuteguos impulsos ou momentos mais positivistas de Valeacutery de seu apreccedilo ldquocartesianordquo ou ldquoracionalistardquo pela Matemaacutetica e pela Ciecircncia Moderna por formas cristalinas de representar os fenocircmenos do mundo Entretanto o que talvez esteja em jogo nessa contradiccedilatildeo nessa oscilaccedilatildeo pode ser assim posto e resolvido se por um lado eacute possiacutevel distinguir entre a ciecircncia e a natildeo ciecircncia por outro natildeo eacute possiacutevel precisar a fronteira de demarcaccedilatildeo entre a ciecircncia e a natildeo ciecircncia se existe se eacute necessaacuterio existir para este ou aquele sistema de pensamento essa fronteira sofre de imprecisatildeo Ela natildeo pode ser nitidamente distinguiacutevel E isso se deve tanto pela dinacircmica das proacuteprias ciecircncias especiacuteficas que estatildeo sempre se reinventando de acordo com as novas descobertas e teorias assim como pela variada idiossincrasia daqueles que epistemologicamente as dimensionam e precisam

Cumpre dizer tambeacutem e principalmente que contemplando os escritos do poeta na sua totalidade e verificando o quanto de subentendidos de ironia e retoacuterica estes encerram de experimentalismos compreende-se que muitas vezes o que ele pretende eacute simplesmente constatar mdashveementemente constatar e quase nada maismdash uma espeacutecie de impulso de predisposiccedilatildeo espiritual dele e de grande parte da mentalidade operante na Modernidade em comumente compreender e aceitar o saber como poder E isso devido principalmente aos inuacutemeros efeitos praacuteticos suas consequumlecircncias e seus impactos da Ciecircncia Moderna quando esta se revela uma espeacutecie de ldquoadivinhaccedilatildeordquo baseada em experiecircncias e inferecircncias rigorosas quanto esta se identifica se transmuta e se desdobra em teacutecnica e consequumlentemente acaba operando de um modo quiccedilaacute irrefutaacutevel na vida cotidiana E nesse sentido o alvo de Valeacutery mdashrelativamente anaacutelogo ao proacuteprio espiacuterito baconiano que em parte natildeo deixa de aspirar a uma espeacutecie de sociologia do sabermdash natildeo eacute tanto a ciecircncia em sentido interno com relaccedilatildeo aos seus proacuteprios pressupostos mas muito mais a ciecircncia em sentido externo com relaccedilatildeo agrave sociedade na qual eacute feita e da qual transforma e eacute transformada dir-se-ia assim que satildeo os resultados dela que ldquoinduzemrdquo que ldquoconvidamrdquo a pensaacute-la mais como poder e menos como conhecimento Pois numa sociedade que se estabelece em grande medida num ldquopragmatismordquo num ldquoimediatismordquo numa intensa racionalidade e burocratizaccedilatildeo dos meios o que estaacute em jogo eacute sobretudo a funcionalidade ou melhor a eficaacutecia das construccedilotildees intelectuais humanas e muito pouco a possibilidade de serem representaccedilotildees ldquocorretasrdquo da realidade ou dos fenocircmenos da realidade a possibilidade de serem ldquoverdadesrdquo

Valeacutery simplesmente atenta portanto para aquilo que a ciecircncia sempre foi e ainda eacute para o ser humano que dela se utiliza que dela se apropria um tipo de saber que fornece um controle ou domiacutenio mesmo que relativamente limitado sobre o mundo sensiacutevel material Mundo que natildeo pode refutar e que portanto anseia por dominaacute-lo O que se torna patente justamente em seus ensaios e fragmentos sobre Descartes nos quais avalia propositadamente menos a filosofia deste e mais o impacto do Cartesianismo dessa acircnsia desmesurada natildeo raro ldquofalsificadorardquo em estender a matemaacutetica como modelo uacutenico para todos os campos do saber Num desses ensaios lecirc-se estas certeiras palavras laquoEste mundo estaacute penetrado das aplicaccedilotildees da medida Nossa vida se encontra cada vez mais ordenada segundo determinaccedilotildees numeacutericas e tudo aquilo que escapa agrave representaccedilatildeo atraveacutes dos nuacutemeros todo conhecimento natildeo mesuraacutevel eacute castigado com uma sentenccedila de depreciaccedilatildeo Nega-se cada vez mais o nome de ldquoCiecircnciardquo a todo saber intraduziacutevel em cifras Eis a singular observaccedilatildeo sobre a que se remataraacute esta concepccedilatildeo o caraacuteter eminente desta modificaccedilatildeo da vida que consiste em organizaacute-la segundo o nuacutemero e o tamanho tatildeo pura quanto seja possiacutevel de tal modo que o verdadeiro dos modernos relacionado exatamente ao seu poder de accedilatildeo sobre a natureza parece opor-se mais e mais agravequilo que nossa imaginaccedilatildeo e nossos sentimentos quisessem que fossem verdadeiroraquo

As esparsas consideraccedilotildees que Valeacutery tece sobre o saber referem-se portanto natildeo apenas ao impacto teacutecnico mas tambeacutem ao impacto espiritual sobre o modo de pensar e de se comportar da sociedade em geral mdashmesmo que isso ocorra (e ocorre) de um modo relativamente fantasioso e leve a uma problemaacutetica mitificaccedilatildeo do proacuteprio saber a um cientificismo cujo caraacuteter natildeo deixe de ser por vezes ilusoacuteriomdash O desenvolvimento da Matemaacutetica e da Ciecircncia Moderna e as inuacutemeras imagens ou idealizaccedilotildees os inuacutemeros sonhos que delas se fizeram projetar acabaram contribuindo em muito para o processo de laicizaccedilatildeo e racionalizaccedilatildeo da Modernidade acabaram minando ou transformando seja no todo ou em determinadas partes vaacuterias concepccedilotildees de mundo vaacuterias crenccedilas e descrenccedilas vaacuterias religiotildees e metafiacutesicas Estas foram obrigadas a natildeo raro se adaptar ou abandonar muitas de suas concepccedilotildees outrora por vezes consideradas certas e perenes Desenvolve-se adquire dominacircncia todo um modo de refletir sobre a realidade menos ldquoespeculativordquo menos ldquofantasiosordquo porque em certo sentido mais ldquolimitadordquo mais ldquohumilhadordquo pelo que legitima as dimensotildees da experiecircncia e da razatildeo ambas rigorosamente conduzidas focadas mais cioso no que se propotildee a pesquisar e a teorizar Um modo de refletir que natildeo busque o ldquoporquecircrdquo mas somente o ldquocomordquo das coisas que natildeo alimente pretensotildees de fornecer representaccedilatildeo de sentidos ou de essecircncias O que consequumlentemente favoreceu em grande medida o desenvolvimento de uma poderosa consciecircncia criacutetica e analiacutetica aplicaacutevel a todas as aacutereas do saber humano e da qual Valeacutery se posiciona neste caso como um singular herdeiro particularizando-a no seu programa de autoconsciecircncia no seu exerciacutecio cotidiano que busca iluminar os seus proacuteprios processos e representaccedilatildeo Poder-se-ia dizer seguindo o caraacuteter do seu pensamento avesso agrave rigidez das crenccedilas cristalizadas e mesmo a toda a crenccedila que conforme o ser humano amplia seus poderes de atuaccedilatildeo no mundo e sobre o mundo conforme inventa a sua ciecircncia e as suas teacutecnicas as suas crenccedilas do que seja o proacuteprio mundo a isso tendem a se adaptar a se transformar haacute portanto uma espeacutecie de dialeacutetica entre o que se eacute capaz de agir de fazer e o que se crecirc Daiacute a primazia que o poeta daacute a accedilatildeo a feitura A accedilatildeo a feitura condicionantes crivos do pensamento

Assim em particular sobre a filosofia mdashisto eacute sobre a metafiacutesicamdash duas consequumlecircncias se apresentam e se imbricam

Primeira conforme as ciecircncias especiacuteficas se desenvolviam a princiacutepio as naturais como a fiacutesica e a biologia para depois as humanas como a sociologia e psicologia haacute como que uma amarga constataccedilatildeo de que a proacutepria filosofia da qual essas mesmas ciecircncias especiacuteficas em grande medida se depreenderam vai gradualmente como que perdendo seus objetos de reflexatildeo vai gradualmente se esvaziando Isso porque quando constroem abordagens particulares sobre seu objeto particular uma epistemologia suficientemente riacutegida e positiva as ciecircncias especiacuteficas adquirem relativa autonomia e dinacircmica E nesse mesmo processo proacuteprio da racionalizaccedilatildeo na Modernidade a filosofia esvaziada acaba muitas vezes se tornando um modo particular de abordar e analisar seus objetos sejam estes cientiacuteficos ou artiacutesticos torna-se tambeacutem natildeo raro uma disciplina particular e especiacutefica entre tantas outras disciplinas particulares e especiacuteficas O que naturalmente pode trazer natildeo apenas malefiacutecios mas benefiacutecios agrave proacutepria filosofia forccedilada a buscar novas formas de abordagem e novos objetos a concentrar-se e inventar-se no que lhe eacute mais proacutepria

Segunda consequumlecircncia a filosofia deixa de ser novamente identificada em parte ou no todo com a ciecircncia ou melhor com o saber como era no periacuteodo em que seu eacutetimo foi fixado identificaccedilatildeo essa ainda relativamente patente no conturbado seacuteculo XVII quando todo o processo de particularizaccedilatildeo do proacuteprio saber teve iniacutecio de modo sistemaacutetico e crescente Isso porque na perspectiva valeacuteryana a filosofia natildeo fornece natildeo pode fornecer justamente nenhuma ou quase nenhuma teacutecnica de verificaccedilatildeo de controle nenhuma teacutecnica de previsibilidade e de accedilatildeo de feitura sobre a natureza exterior materialmente moldaacutevel a filosofia natildeo fornece nenhum poder mdashao menos natildeo de modo estritamente positivomdash Com ela nada ou muito pouco se pode fazer com ela as coisas permanecem como estatildeo serve talvez mdasho que jaacute eacute muitomdash agraves elucidaccedilotildees dos labirintos mentais do proacuteprio filoacutesofo que a filosofa Pergunta-se O que fazer com as Ideacuteias de Platatildeo ou as Categorias de Aristoacuteteles o que fazer com o Uno de Plotino ou a Trindade de Santo Agostinho o que fazer com o Deus de Espinosa ou as Mocircnadas de Leibniz o que fazer com o Espiacuterito de Hegel Como objetivar tais ldquoinvenccedilotildeesrdquo Como compartilhaacute-las verdadeiramente Situada paradoxalmente aqueacutem ou aleacutem do universo que as experiecircncias legitimariam aqueacutem ou aleacutem das possibilidades da experiecircncia portanto fora do alcance de ser objetivamente comprovada ou refutada a filosofia enquanto metafiacutesica foi doravante natildeo raro compreendida como uma construccedilatildeo ilusoacuteria quimera incapaz de revelar qualquer elemento a ser objetivamente transmitido Em grande medida Valeacutery compartilha desse modo de compreendecirc-la E toda a sua criacutetica agrave filosofia ou melhor a sua desconfianccedila a sua refraccedilatildeo agrave filosofia estaacute dessarte sob o imperioso impacto sob o signo da Matemaacutetica e da Ciecircncia Moderna Hoje como ele mesmo diz laquotoda a metafiacutesica e mesmo uma teoria do conhecimento quaisquer que sejam elas encontram-se brutalmente separadas e distintas daquilo que todos mais ou menos conscientemente consideram o uacutenico saber real mdash exigiacutevel em outroraquo [Grifo do autor]

Diante de todo esse estado de coisas diante do impacto da Ciecircncia Moderna e da Matemaacutetica tatildeo duramente diagnosticado pelo poeta e por outros chegou-se inclusive a anunciar a morte da filosofia Numa passagem dos seus Cahiers Valeacutery tendo em mente o espiacuterito funcionalista de seu Sistema jamais cumprido vai por exemplo ainda mais longe talvez demasiado longe numa espeacutecie de profecia criacutetica extrema acerca do destino da filosofia laquoEm suma todas as noccedilotildees que natildeo permitem combinar exatamente mdash e que natildeo se referem a observaccedilotildees permanentes satildeo maacutes noccedilotildees Haveraacute um tempo (isto eacute um homem) mdash no qual as palavras de nossa filosofia pareceratildeo antiguidades e soacute seratildeo conhecidas por eruditos Noacutes natildeo falaremos mais de pensamento Hoje a palavra Beleza natildeo tem ou quase natildeo tem mais uso filosoacutefico Os proacuteprios nomes de filosofia de psicologia seratildeo como o da alquimiaraquo

Naturalmente qualquer diagnoacutestico desse tipo mdashseja pelo vieacutes marxista a proclamar a necessidade do pensamento vir a ser praacutexis criacutetica e transformadora da sociedade ou pelo vieacutes da anaacutelise linguumliacutestica a desconfiar da veracidade dos problemas metafiacutesicos etcmdash ateacute hoje revelou-se historicamente falso Falso natildeo na medida em que tais posiccedilotildees natildeo possam ser adotadas porque elas satildeo mas na medida em que na perspectiva social sob o termo ldquofilosofiardquo se agrupam ontem e hoje praacuteticas plurais natildeo raro divergentes contraditoacuterias entre si um sem-nuacutemero de propostas que por vezes se assemelham numa mesmice excessiva e por vezes se distanciam umas das outras a ponto de natildeo serem reconhecidas como praacuteticas designadas pelo mesmo termo Ademais e principalmente os seres humanos mdashcomo que supostamente insatisfeitos com o estado presente do saber e da ordem do mundo condicionados pelo nascer e pelo morrer pela dor e pelo sofrimento por uma existecircncia que natildeo revela seu sentido nem ao menos se possui ou natildeo sentidomdash continuam simplesmente a duvidar e a desejar crer a se questionar a se colocar as mesmas velhas questotildees e outras novas a se colocar as mesmas velhas respostas e outras novas num processo de atualizaccedilotildees e descobertas que perpetuam os seus itineraacuterios espirituais O termo ldquofilosofiardquo pode ateacute deixar de ser usado isso pouco ou nada importa Mas a praacutetica que ela ainda hoje representa continua sob uma miriacuteade de outros nomes ou misturada a outras tantas praacuteticas de uma forma ou de outra A filosofia permanece porque permanece o humano

Apesar das suas irocircnicas reflexotildees quanto ao futuro da proacutepria filosofia o poeta tambeacutem tem consciecircncia dessa permanecircncia No diaacutelogo Lrsquoideacutee fixe ou deux hommes agrave la mer ele escreve atraveacutes da voz ou personagem do idiossincraacutetico meacutedico sobre a diferenccedila entre o homem e o animal O animal como que preso agrave dimensatildeo das necessidades imediatas natildeo pode fazer absolutamente nada que natildeo for uacutetil mas o homem ao ser capaz de se distanciar da dimensatildeo das necessidades imediatas inventou religiotildees artes filosofias e ciecircncias concepccedilotildees de mundo e outros mundos Inventou portanto o inuacutetil Mas esse inuacutetil eacute todo um vasto e complexo tesouro de riquezas simboacutelicas laquo sob pressatildeo exterior ou orgacircnica imediata a vaca vecirc as estrelas e natildeo extrai uma astronomia como a caldeacuteia nem uma moral como a de Kant nem uma metafiacutesica como a de todo mundo [] Se um objeto novo a espanta ela o deixa e nunca sentiraacute a tentaccedilatildeo de voltar a ele com precauccedilatildeo e concupiscecircncia intelectual para identificaacute-lo e classificaacute-lo em seu sistema de mundoraquo

311 Criacutetica agrave histoacuteria

Todavia natildeo apenas a filosofia sofre com o desenvolvimento da Matemaacutetica e da Ciecircncia Moderna com o desenvolvimento da concepccedilatildeo do saber como poder mas tambeacutem as proacuteprias Ciecircncias Humanas as Ciecircncias do Espiacuterito e em particular a histoacuteria Dando sempre mais importacircncia ao indiviacuteduo do que ao coletivo professando na dimensatildeo poliacutetica uma espeacutecie de paradoxal anarquismo aristocraacutetico Valeacutery continua sempre um racionalista e como tal relativamente desconfiado de um pensamento histoacuterico ou que se apegue a tradiccedilotildees demasiada riacutegidas Possui por conseguinte particular predileccedilatildeo em criticar as ilusotildees na qual a histoacuteria mdashenquanto disciplina atividademdash opera e resulta sobretudo em Discours de lrsquohistoire e outras passagens de seus Essais quasi politiques Trata-se entretanto de uma criacutetica cujo repertoacuterio eacute uma praacutetica herdeira de historiadores-pensadores como Hyppolyte Taine e Alexis de Tocqueville e principalmente Jules Michelet (a cuja obra o poeta eacute bastante avesso) Uma praacutetica herdeira dos seacuteculos XVIII e XIX ainda muito atrelada a perspectivas idealistas romacircnticas e positivistas natildeo raro operando atraveacutes da crenccedila de uma filosofia da histoacuteria em bases metafiacutesicas da crenccedila que haacute um destino natildeo apenas individual mas coletivo a reger tudo o que pode ser designado por grandiosas e geneacutericas palavras como raccedila sociedade civilizaccedilatildeo humanidade Logo natildeo se pode compreender o pouco que Valeacutery mdashnesse aspecto bastante nominalistamdash escreve sobre a histoacuteria pela perspectiva do que foi produzido posteriormente a ele as propostas teoacutericas da Eacutecole des Annales de um Marc Bloch e um Lucien Febvre de um Georges Duby e um Jacques Le Goff escapam em grande medida agrave criacutetica valeacuteryana jaacute que em parte coadunam-se com esta

O pressuposto do qual o poeta parte eacute relativamente simples e tem como criteacuterio naturalmente a sua proacutepria concepccedilatildeo de saber como poder Nunca ensinando nada ou muito pouco a histoacuteria eacute para o poeta laquoa ciecircncia das coisas que natildeo se repetemraquo dos acontecimentos que ao acontecer acontecem uma uacutenica vez singularmente Portanto dos acontecimentos que num sentido positivo natildeo satildeo passiacuteveis de serem representados de serem sintetizados de um modo preciso e seguro sob o signo de uma mesma lei geral induzida ou abstraiacuteda pelo espiacuterito que analisa os documentos ou os rastros que supostamente os representam Consequumlentemente soacute com muito cuidado podem ser usados como modelos para a anaacutelise da sua ocorrecircncia no presente ou da previsatildeo da sua ocorrecircncia no futuro como frequumlentemente ocorre nas ciecircncias naturais Eacute certo que haacute acontecimentos que satildeo denominados por exemplo pela esfera semacircntica de uma mesma palavra como a palavra guerra mas nenhuma guerra eacute igual agrave outra guerra e natildeo o eacute a tal ponto que natildeo se pode construir uma lei geral de todas as guerras como se todas devessem seguir um plano preacute-determinado e fora do tempo um mesmo padratildeo de desenvolvimento de surgimento e desaparecimento Dir-se-ia assim que os acontecimentos histoacutericos natildeo satildeo passiacuteveis de serem compreendidos como tendo a mesma intensidade de semelhanccedila que os acontecimentos naturais os primeiros nos quais o elemento humano eacute central satildeo como que plaacutesticos em demasia os uacuteltimos nos quais o elemento humano parece ausentar-se satildeo como que riacutegidos o suficiente Algumas palavras que Valeacutery escreve sobre o desenvolvimento da Ciecircncia Moderna e sobre a poliacutetica exemplificam essa concepccedilatildeo laquoEnquanto que nas ciecircncias da natureza as pesquisas multiplicadas depois de trecircs seacuteculos nos refizeram uma maneira de ver e substituiu a visatildeo e a classificaccedilatildeo ingecircnua de seus objetos por sistemas de noccedilatildeo especialmente elaborados noacutes permaneciacuteamos na ordem histoacuterica-poliacutetica no estado de consideraccedilatildeo passiva e de observaccedilatildeo desordenada O mesmo indiviacuteduo que pode pensar [a] fiacutesica ou [a] biologia com instrumentos de pensamento comparaacuteveis a instrumentos de precisatildeo pensa a poliacutetica [e a histoacuteria] atraveacutes de meios impuros de noccedilotildees variaacuteveis de metaacuteforas ilusoacuteriasraquo

Desse modo para um poeta que almeja uma independecircncia com relaccedilatildeo agraves crenccedilas passadas uma autarquia intelectual que compreende o saber como poder como poder utilizaacutevel torna-se compreensiacutevel toda a sua desconfianccedila com relaccedilatildeo ao que a histoacuteria possa realmente vir a lhe oferecer laquoQue me importa [] o que acontece apenas uma vez A histoacuteria eacute para mimraquo confessa laquoum excitante e natildeo um alimento O que ela informa natildeo se muda em tipos de atos em funccedilotildees e operaccedilotildees de nosso espiacuterito Quando o espiacuterito estaacute bem desperto tem necessidade apenas do presente e de si mesmoraquo Todavia Valeacutery tambeacutem reconhece que a histoacuteria pode sim ser utilizaacutevel Natildeo agrave coletividade mas somente ao indiviacuteduo mediante a inserccedilatildeo no passado particular desse indiviacuteduo laquoO melhor meacutetodo para se ter uma ideacuteia do valor e do uso da histoacuteria mdash a melhor maneira de aprender a lecirc-la e a servir-se dela mdashraquo escreve laquoconsiste em tomar como modelo de acontecimento acontecimentos realizados sua experiecircncia proacutepria e em acolher no presente o modelo de nossa curiosidade pelo passado O que vimos com nossos proacuteprios olhos aquilo por que passamos em pessoa o que fomos o que fizemos mdash eis o que deve nos fornecer o questionaacuterio deduzido de nossa proacutepria vida que proporemos em seguida agrave histoacuteria para que preencha e ao qual ela deveraacute se esforccedilar em responder quando a interrogamos sobre eacutepocas em que natildeo vivemos Como era possiacutevel viver naquela eacutepoca Esta eacute no fundo toda a questatildeo Todas as abstraccedilotildees e noccedilotildees encontradas nos livros satildeo inuacuteteis se natildeo lhes fornecerem o meio de reencontraacute-las a partir do indiviacuteduoraquo Ou ainda de modo mais direto a laquoHistoacuteria deveria ser a tentativa de responder atraveacutes de documentos a uma taacutebua de questotildees formadas a partir da anaacutelise do presenteraquo

A partir dessa perspectiva avessa a todo historicismo a toda proposta de compreender o passado posicionando-se no passado a subsequumlente criacutetica de Valeacutery agrave histoacuteria pode ser compreendida ou sintetizada em dois momentos que se imbricam e se complementam

O primeiro momento mais abrangente refere-se ao modo como em geral a histoacuteria eacute expressa pelos historiadores e natildeo deixa de ser algo distante da criacutetica valeacuteryana agrave literatura de caraacuteter narrativo e realista como o romance Enquanto disciplina enquanto atividade a histoacuteria natildeo se refere agrave ldquomemoacuteria coletivardquo isto eacute aos signos compartilhados por uma coletividade a histoacuteria refere-se sobretudo a uma intenccedilatildeo almeja a construccedilatildeo a representaccedilatildeo de um determinado passado de um determinado periacuteodo do passado Representaccedilatildeo geralmente composta de palavras de discursos verbais composta portanto a partir de uma escritura que se transforma num texto cuja forma dominante eacute a narrativa o reacutecit A histoacuteria nessa perspectiva apresenta-se como uma ordem cronoloacutegica natildeo raro linear de uma seacuterie de representaccedilotildees dos acontecimentos de uma seacuterie de causas e efeitos entre as representaccedilotildees dos acontecimentos Assim procedendo aqueles que a escrevem os historiadores intentariam sobretudo a realizaccedilatildeo de um maior realismo dar um caraacuteter de verdade ou melhor de verossimilhanccedila aos seus proacuteprios escritos de plausibilidade E eacute por isso que Valeacutery afirma que laquoA histoacuteria eacute feita de 2 ingredientes essenciais do papel escrito e da faculdade de crer no que haacute sobre esse papelraquo Todavia tudo isso eacute artificial demasiado artificial ateacute mesmo falso Porque a narrativa o reacutecit porque as causas e os efeitos todos esses procedimentos ou subterfuacutegios natildeo passam de postulaccedilotildees de ligaccedilotildees e concatenaccedilotildees de interpretaccedilotildees feitas mdash posteriormentemdash pelos historiadores mediante a anaacutelise de documentos mais ou menos liacutecitos Consequumlentemente haveria pouca diferenccedila entre a literatura propriamente dita e a histoacuteria a qual o poeta natildeo tardaria em qualificar como laquoa forma mais ingecircnua de literaturaraquo Pois laquoningueacutem jamais poderia definir a diferenccedila que haacute no estado de espiacuterito de um leitor de Balzac e de um leitor de Michelet A meu ver tudo estaacute aiacute Eacute o mesmo ilusionismo Resultado [do fato] de que nada distingue quanto ao efeito produzido um documento verdadeiro de um documento falso que acreditamos ser verdadeiro Etcraquo

Por conseguinte o ideaacuterio positivista em representar em resgatar o passado integralmente tal qual foi como se fosse possiacutevel ressuscitar os mortos acaba se tornando uma esperanccedilosa ilusatildeo um contra-senso Pois na praacutetica da histoacuteria tudo eacute representaccedilatildeo e uma representaccedilatildeo natildeo do acontecimento que jaacute natildeo eacute mais mas de uma representaccedilatildeo que dele ou de um aspecto dele permaneceu logo uma reduccedilatildeo e uma interpretaccedilatildeo Uma laquohistoacuteria puraraquo uma histoacuteria factual seria portanto laquocompletamente insignificante pois os fatos por si natildeo tecircm significado Algumas vezes dizem Isso eacute um fato Inclinem-se diante do fato Eacute a mesma coisa dizer Creiam Creiam pois aqui o homem natildeo interveio e satildeo as proacuteprias coisas que falam Eacute um fato Sim Mas o que fazer com um fato Nada se parece tanto com um fato quanto os oraacuteculos de Piacutetia ou entatildeo quanto os sonhos reais que os Joseacutes e os Danieacuteis na Biacuteblia explicam aos monarcas espantados Na histoacuteria [] o que eacute positivo fica ambiacuteguo O que eacute real presta-se a uma infinidade de interpretaccedilotildeesraquo Baseada portanto no poder da imaginaccedilatildeo e da linguagem em representar algo que natildeo existe mais portanto algo que simplesmente natildeo existe a histoacuteria para Valeacutery natildeo estaacute longe de operar dentro de uma espeacutecie de paradoxo pois laquosupotildee um observador impossiacutevel cujos resultados de observaccedilatildeo satildeo inverificaacuteveisraquo

O segundo momento da criacutetica de Valeacutery agrave histoacuteria que se insere no primeiro refere-se agrave questatildeo do valor E o ato de laquo valorarraquo de ldquo avaliarrdquo qualquer coisa que seja eacute segundo Valeacutery laquoo grande negoacutecio do sistema que pensaraquo relativamente ausente na praacutetica da Matemaacutetica e das Ciecircncias Naturais mas extremamente presente na praacutetica da histoacuteria Esta pressupotildee uma seacuterie de escolhas tanto do recorte temaacutetico e temporal a ser estudado quanto dos acontecimentos ou melhor das representaccedilotildees de acontecimentos a serem expostos hierarquizados e interpretados a serem estruturados em uma narrativa um reacutecit E todo esse processo eacute ele mesmo uma vasta tentativa de fixar valores como se com isso o passado viesse a ser elucidado em expressar quais acontecimentos satildeo mais ou menos importantes mais ou menos relevantes quais acontecimentos devem ser expostos agrave luz e quais devem ser condenados agrave sombra O que implica necessariamente um sujeito um sujeito humano que assim valore Para o poeta natildeo eacute possiacutevel portanto separar laquoo observador do objeto observado e a histoacuteria do historiadorraquo Daiacute tambeacutem as inuacutemeras abordagens de um mesmo tema e temporalidade e uma historiografia sempre crescente e contraditoacuteria Levados por este ou aquele sistema de crenccedilas ideologias preferecircncias ou interesses uns iratildeo dar mais peso a um dado acontecimento e outros menos uns iratildeo valorar positivamente um dado acontecimento e outros negativamente O acuacutemulo de um sem-nuacutemero de versotildees de explicaccedilotildees de um mesmo tema e temporalidade torna-se inevitaacutevel O que incitaria o leitor de um livro de histoacuteria a fazer estas questotildees quem historia de onde se historia e para quem se historia O que o levaria a intuir que aquele que escreve sobre o passado tambeacutem escreve por vias indiretas sobre o presente e sobre si mesmo Toda essa falta de impessoalidade de neutralidade na praacutetica da histoacuteria eacute o que em muito caracteriza a sua natildeo cientificidade dela e de muitas das Ciecircncias Humanas Mas tambeacutem natildeo deixa de expressar mesmo que implicitamente o desejo tatildeo humano em dar um sentido aos acontecimentos e agrave vida ou ainda se o pressuposto eacute a crenccedila em um destino que a tudo concatena e justifica em encontrar nos acontecimentos e na vida um sentido

Eis como se expressa Valeacutery laquoTodo mundo concorda que Luiacutes XIV morreu em 1715 Mas em 1715 passou-se uma infinidade de outras coisas observaacuteveis que tornaria necessaacuteria uma infinidade de palavras de livros e mesmo de bibliotecas para conservaacute-las por escrito Eacute preciso portanto escolher ou seja convencionar natildeo apenas a existecircncia como tambeacutem a importacircncia do fato e essa convenccedilatildeo eacute vital A convenccedilatildeo de existecircncia significa que os homens soacute podem crer no que lhes parece menos afetado pelo humano e que consideram esse acordo como muito provaacutevel para eliminar suas personalidades seus instintos seus interesses sua visatildeo singular fontes de erro e forccedila de falsificaccedilatildeo Mas jaacute que natildeo podemos guardar tudo e que precisamos retirar do infinito alguns fatos pelo julgamento de sua utilidade posterior relativa essa decisatildeo sobre a importacircncia introduz de novo e inevitavelmente na obra histoacuterica exatamente aquilo que acabamos de tentar eliminar [] a importacircncia eacute completamente subjetiva A importacircncia estaacute para o nosso discernimento assim como o valor dos testemunhos Racionalmente pode-se pensar que a descoberta das propriedades do quinina eacute mais importante que um tal tratado concluiacutedo aproximadamente na mesma eacutepoca e na realidade em 1932 as consequumlecircncias desse instrumento diplomaacutetico podem estar totalmente perdidas e como que difusas no caos dos acontecimentos enquanto a febre eacute sempre reconheciacutevel as regiotildees pantanosas do globo satildeo cada vez mais visitadas ou exploradas e o quinina foi talvez indispensaacutevel para a prospecccedilatildeo e para a ocupaccedilatildeo da Terra toda que eacute a meu ver o fato dominante do nosso seacuteculo Vejam que eu tambeacutem estou fazendo minhas convenccedilotildees de importacircnciaraquo

Toda a criacutetica de Valeacutery agrave histoacuteria pode portanto ser sintetizada pela constataccedilatildeo de que a histoacuteria enquanto praacutetica eacute sobretudo uma forma especiacutefica de literatura e de linguagem e de que os historiadores escondem frequumlentemente as convenccedilotildees das quais se servem ao escrevecirc-la Contudo o poeta sabe que laquotodas essas convenccedilotildees satildeo inevitaacuteveisraquo do contraacuterio talvez a proacutepria histoacuteria natildeo seria possiacutevel enquanto praacutetica laquoMinha uacutenica criacutetica eacute a negligecircncia que natildeo as torna expliacutecitas conscientes sensiacuteveis ao espiacuterito Lamento que natildeo se tenha feito com a histoacuteria o que as ciecircncias exatas fizeram consigo mesmas quando revisaram seus fundamentos pesquisaram com maior cuidado seus axiomas enumeraram seus postulados Talvez seja porque a histoacuteria eacute principalmente Musa e porque preferimos que a seja [] Eu reverencio as Musas Isso acontece tambeacutem porque o Passado eacute algo totalmente mental Ele eacute apenas imagens e crenccedilasraquo A histoacuteria portanto natildeo iraacute apontar necessariamente os caminhos do Futuro Ela nada legitima Tudo pode ser incerto Todavia o ser humano natildeo tem outro material com o qual conjeturar e projetar a natildeo ser essas laquoimagensraquo e laquocrenccedilasraquo como sumariza Valeacutery sempre muito cuidadoso no exerciacutecio de profetizar laquo entramos no futuro de marcha agrave reacuteraquo

4 CRiacutetica Agrave filosofia

Soacutecrates Quando algueacutem diz ldquoferrordquo ou ldquopratardquo natildeo eacute verdade que todos entendemos o mesmo

Fedro Certamente

Soacutecrates E quando algueacutem diz ldquojustordquo e ldquobomrdquo Natildeo vai cada um por um lado e discordamos uns com os outros e tambeacutem com noacutes mesmos

Fedro Certamente

Soacutecrates Entatildeo em algumas questotildees estamos de acordo e em outras natildeo

Fedro Certamente

Soacutecrates E em quais dessas duas questotildees somos mais suscetiacuteveis de ser enganados e em quais a retoacuterica tem mais forccedila

Fedro Evidentemente naquelas que haacute vaguidade

Soacutecrates Entatildeo aquele que se propotildee adquirir a arte da retoacuterica deve primeiramente adquirir clareza e fazer uma divisatildeo metoacutedica dessas duas classes de questotildees aquela na qual as pessoas tecircm necessariamente ideacuteias vagas e aquela na qual natildeo

Fedro Oacute Soacutecrates aquele que isso soubesse racionaria a partir de um excelente princiacutepio

Soacutecrates Depois penso ante um caso particular natildeo ignoraraacute mas perceberaacute com clareza a qual dessas duas classes pertence agrave questatildeo de que se vai falar

Platatildeo Fedro

41 O primado da linguagem

Em contraste com o pensamento antigo dir-se-ia que o pensamento moderno estaacute sob o signo da linguagem A linguagem se tornou natildeo raro um importante baluarte ao redor do qual gravitam antigas reflexotildees e problemas agora atraveacutes de novas abordagens A essa mudanccedila de interesse de foco alguns pensadores ousaram mdashreferindo-se primeiramente agrave filosofia analiacuteticamdash historiaacute-la como uma contundente reviravolta ou giro linguumliacutestico ( linguistic turn) A concepccedilatildeo de que eacute impossiacutevel filosofar sem passar quase que necessariamente por uma reflexatildeo sobre a linguagem tornou-se em alguns pensadores hoje canocircnicos de uma recorrecircncia proliacutefera e polecircmica Precursores capitais como Mauthner e Wittgenstein propunham-se cada um a seu modo a fazer da filosofia das suas filosofias uma criacutetica da linguagem ( Sprachkritik) ateacute mesmo aqueles com fortes inclinaccedilotildees metafiacutesicas devedores da tradiccedilatildeo teoloacutegica e miacutestica como Heidegger natildeo escaparam a essa atitude e dela fizeram um dos seus principais motes Posteriormente o pensamento sobre o sentido e a escrituraccedilatildeo natildeo regidos por uma loacutegica exclusivamente fundamentada na razatildeo tradicional de um Deleuze e um Derrida a ela tambeacutem se coaduna Essa geneacuterica tendecircncia natildeo se restringe entretanto a uma uacutenica disciplina Tornou-se um espiacuterito do tempo ( Zeitgeist) sintoma de toda uma eacutepoca Tambeacutem as ciecircncias humanas particulares que em maior ou menor grau lutam por um ldquotardiordquo reconhecimento epistemoloacutegico em comparaccedilatildeo com as naturais compreendem a linguagem como de importacircncia capital natildeo raro posicionando-a como o proacuteprio objeto de estudo ou como um importante vieacutes pelo qual os demais fenocircmenos sociais podem ser estudados A consagrada frase do hermeneuta Gadamer mdashlaquo O ser que pode ser compreendido eacute a linguagemraquomdash pode ser assim considerada tanto como uma proposta quanto uma constataccedilatildeo

Tambeacutem a arte da linguagem verbal a literatura na Modernidade trilha caminhos relativamente anaacutelogos Seus produtores os literatos parecem amiuacutede ter encontrado na proacutepria liacutengua (ou liacutenguas) da qual se utilizam muito da mateacuteria-prima para as obras agraves quais se propotildeem a executar transformando-as em sedutores desafios para a leitura e para a exegeacutetica Do hermetismo poeacutetico de Mallarmeacute aos malabarismos verbais de Joyce passando pelos devaneios dos surrealistas as sempre e naturalmente excessivas praacuteticas da poesia e da ficccedilatildeo buscam romper insistente e propositadamente com os procedimentos tradicionais do discurso e da narrativa buscam inusitadas formas de expressatildeo A liacutengua essa gigantesca e maleaacutevel forma de arte cujo anocircnimo autor eacute a soma das geraccedilotildees pode ser compreendida por vezes como uma espeacutecie de personagem central ldquoonipresenterdquo no universo imaginaacuterio da ficccedilatildeo senhora e escrava daqueles que a manipulam Em grande medida passou-se portanto do registro ontoloacutegico para o registro linguumliacutestico O que natildeo implica que o primeiro tenha sido abolido pelo uacuteltimo tampouco desqualifica a plural totalidade do pensamento antigo no que concerne a uma suposta falta de preocupaccedilatildeo de consciecircncia da linguagem Conjetura-se simplesmente que outrora natildeo havia necessidade em manifestar explicitamente essa consciecircncia Generalizando o pensamento antigo parece natildeo ter muitas duacutevidas sobre o que discursa e sobre o que narra em contrapartida o pensamento moderno mdashque pode ser compreendido como um ldquoromantismo desencantadordquomdash natildeo procede do mesmo modo e deseja explicitar natildeo apenas o objeto com o qual se ocupa mas tambeacutem a forma como o analisa e o compreende a tal ponto de chegar a duvidar no transcurso de sua anaacutelise se o proacuteprio objeto existe A Antiguumlidade quando reflete sobre a linguagem mdashrepare-se no Craacutetilo de Platatildeo e para ir mais aleacutem na questatildeo dos universais da Escolaacutesticamdash dificilmente reprime suas esperanccedilas ontoloacutegicas dificilmente deixa de aderir ou formular uma metafiacutesica de mesclar-se imiscuir-se confundir-se com abrangentes concepccedilotildees de mundo com a frequumlente ideacuteia de que a existecircncia eacute separada em duas dimensotildees uma espiritual e outra material sejam quais forem as variaccedilotildees que se decircem a essa divisatildeo Esse princiacutepio de fundamentaccedilatildeo religiosa a restrita Modernidade laica e fragmentada em saberes particulares frequumlentemente o abandona na busca de uma maior autonomia de suas disciplinas e meacutetodos e isso se reflete por conseguinte nos modos como a proacutepria linguagem eacute nela compreendida

A obra de Valeacutery no campo da literatura talvez seja um dos exemplos mais caracteriacutesticos desse ldquonovordquo registro Sobre a linguagem suas reflexotildees se dispersam em seus escritos Todavia o poeta as desenvolveu de modo relativamente autocircnomo paralelo agraves denominadas modernas filosofias da linguagem e epistemologias Diferentemente do positivismo loacutegico (desenvolvido a partir do Wiener Kreis) e da filosofia analiacutetica (desenvolvida a partir do Cambridge- Oxford philosophy) diferentemente do estruturalismo ao qual por vezes eacute hoje facilmente associado principalmente numa ldquosupostardquo radical concepccedilatildeo de mundo anti-metafiacutesica anti-histoacuterica e anti-pessoal a uma busca pela enunciaccedilatildeo objetiva que a todos em maior menor grau relativamente caracterizariam o poeta apesar do paralelismo possiacutevel entre o seu pensamento com o dessas correntes natildeo adquire o que aqui se cunhou de consciecircncia da linguagem mdashisto eacute dos seus mecanismos e da relaccedilatildeo que esta tem com o pensamento do modo como ambos se confundem e se condicionam mutuamentemdash tatildeo somente a partir de reflexotildees consideradas eminentemente epistemoloacutegicas derivadas em grande medida do fasciacutenio pelo rigor e precisatildeo da Matemaacutetica e das Ciecircncias Naturais modernas das obras de um Ernst Mach um Henri Poincareacute ou de obras como a La Science du langage de Max Muumlller Tambeacutem a poesia contribui e com enorme peso nessa aquisiccedilatildeo notadamente o Simbolismo francecircs as poesias e as poeacuteticas simultaneamente ldquoracionaisrdquo e ldquoespirituaisrdquo ldquoanaliacuteticasrdquo e ldquosinteacuteticasrdquo de um Poe um Baudelaire um Mallarmeacute Dir-se-ia portanto que uma e outra dessas atividades do espiacuterito que ldquorigorrdquo e ldquoretoacutericardquo ldquociecircnciardquo e ldquopoesiardquo intensamente influenciam ou direcionam o pensamento de Valeacutery a sua tensatildeo o seu desenvolvimento em direccedilatildeo a essa consciecircncia da linguagem mdasha qual natildeo difere da consciecircncia de si mesmomdash

Contudo ele eacute muito cuidadoso (por vezes refrataacuterio) com relaccedilatildeo agraves influecircncias que recebe Assim quanto a esse comeccedilar pela linguagem o seu percurso eacute sobretudo como sempre quis e esforccedilou-se para ser pessoal e privado o mais autocircnomo ou o mais livre possiacutevel das crenccedilas alheias tal qual um Robinson do intelecto cumpre percorrer Deriva tambeacutem de uma necessidade iacutentima e natildeo apenas de uma resposta a influecircncias confessas ou inconfessas a pressotildees ou exigecircncias alheias a um deixar-se levar pela tendecircncia ou modismos do tempo presente Logo essa consciecircncia da linguagem em grande medida nele nasce e se desenvolve (assim pode ser rastreada) de modo geral de seu proacuteprio programa de autoconsciecircncia e de modo especiacutefico de sua atividade como poeta e como escritor que natildeo deixa de ser a partir do periacuteodo de crise e da Noite de Gecircnova uma derivaccedilatildeo ou continuidade daquele agora com claras intenccedilotildees de praticar um ascetismo intelectual Eacute a escrituraccedilatildeo que revela as questotildees da escrituraccedilatildeo a questatildeo da linguagem escrever exige mdashexige-lhe ele faz exigirmdash um cuidado diferenciado com as palavras e as frases com os inuacutemeros jogos que com essas palavras e frases se pode jogar Eacute portanto muito mais uma accedilatildeo um fazer o fazer poesia (o poema) e o refletir sobre o fazer poesia (a poeacutetica) muito mais o exerciacutecio de uma constante e incompleta escrituraccedilatildeo sobre assuntos os mais diversos e sobre si mesmo exemplificada principalmente na fragmentaccedilatildeo de seus Cahiers que o conduz a pensar a analisar a destrinccedilar toda e qualquer ideacuteia sua ou alheia sempre pelo modo como esta eacute enunciada mediada representada pelo vieacutes pelo prisma ldquoonipresenterdquo da linguagem Eacute o que Valeacutery denominou principalmente num dos seus mais ceacutelebres e fundantes ensaios de poeacutetica Poeacutesie et penseacutee abstraite conferecircncia proferida na Universidade de Oxford em 1939 com a feliz expressatildeo laquo limpeza da situaccedilatildeo verbalraquo (laquo nettoyage de la situation verbaleraquo) expressatildeo que representa um pressuposto de qualquer meacutetodo de abordagem laquoQuanto a mimraquo escreve laquotenho a estranha e perigosa mania de querer em qualquer mateacuteria comeccedilar pelo comeccedilo (ou seja por meu comeccedilo individual) o que vem a dar em recomeccedilar em refazer uma estrada completa como se tantos outros jaacute natildeo houvessem traccedilado e percorrido Essa estrada eacute a que nos eacute oferecida ou imposta pela linguagem Em qualquer questatildeo e antes de qualquer exame sobre o conteuacutedo olho para a linguagem tenho o costume de agir como os meacutedicos que purificam primeiro suas matildeos e preparam seu campo operatoacuterio Eacute o que chamo de limpeza da situaccedilatildeo verbalraquo

Propor compreender cada palavra cada proposiccedilatildeo ou frase como condicionada a um contexto para soacute depois observar se haacute ou natildeo um real problema a ser enfrentado uma tal abordagem tem grandes consequumlecircncias ou relaccedilotildees diretas para como o poeta frequumlentemente encara e critica a filosofia mdashcriacutetica desenvolvida principalmente nos seus Cahiers nos seus ensaios sobre poeacutetica e nesta siacutentese de seu pensamento filosoacutefico que eacute o uacuteltimo ensaio da trilogia sobre Leonardo Leacuteonard et les philosophesmdash assim como todas as demais atividades do espiacuterito e a si mesmo Essa criacutetica natildeo deixa de ser resultado de um impulso ceacutetico eem muito de e contouficienteta ou aquela terminologia pode ser compreendida como uma variaccedilatildeo ou derivaccedilatildeo deste constante interesse e atenccedilatildeo que Valeacutery nutre pelo aspecto formal de todas as atividades humanas e de toda a realidade

411 Insuficiecircncia convenccedilatildeo transitoriedade

Apesar de ser um obsessivo formulador de definiccedilotildees Valeacutery natildeo se prende muito a elas termina sempre por reformulaacute-las e assim sucessivamente sem esperanccedila alguma que esse trabalho tenha virtualmente algum fim Dessarte ele tambeacutem natildeo costuma fazer uma distinccedilatildeo muito precisa mdashhoje um tanto mais frequumlente pelo desenvolvimento mesmo da linguumliacutestica moderna e da semioacuteticamdash entre linguagem e liacutengua (palavras que muitas vezes satildeo sinocircnimas) Em seus escritos por vezes esses dois conceitos satildeo identificados e compreendidos como idioma como linguagem verbal por vezes somente o uacuteltimo eacute assim compreendido e o primeiro como um conceito mais abrangente como uma aptidatildeo humana geral para desenvolver sistemas de representaccedilotildees ou comunicaccedilotildees os mais variados e distintos sejam quais forem as formas empiacutericas adotadas verbais ou natildeo Diante dessa falta de discriminaccedilatildeo haacute que se dizer que definiccedilotildees tambeacutem satildeo questotildees semacircnticas natildeo raro prenhes de arbitrariedade e de ideologia que muitas vezes dilatando-se ou contraindo o significado de um conceito restringindo-o ou ampliando-o pode-se dizer que ldquoA eacute Brdquo num determinado caso e que ldquoA eacute natildeo Brdquo em outro sem que com isso o representado ou o conhecimento que dele se tenha venha a mudar significativamente Por isso diante da pergunta mdashlaquoSe eacute possiacutevel pensar sem linguagemraquomdash Valeacutery pondera laquoMas a linguagem eacute tal liacutengua mdash aprendida Tudo depende das definiccedilotildees escolhidas p[ara] pensar e p[ara] linguagemraquo O pensamento pode ser definido como linguagem verbal ou como linguagem verbal e natildeo verbal assim como a linguagem pode ser definida como linguagem verbal ou como linguagem verbal e natildeo verbal E isso de acordo com as abordagens adotadas que podem manifestar diferenccedilas reais de concepccedilatildeo ou meras diferenccedilas semacircnticas Logo a resposta agrave pergunta mdashldquoeacute possiacutevel pensar sem linguagemrdquomdash estaacute condicionada aos pressupostos dos quais a reflexatildeo parte

De qualquer modo poder-se-ia dizer que para Valeacutery o pensamento jaacute eacute linguagem uma forma de linguagem dada pela natureza Porque amiuacutede compreende todas as coisas natildeo apenas como coisas mas tambeacutem para o espiacuterito para a consciecircncia que as percebe como signos ou possibilidade de signos e por conseguinte todas as atividades humanas por mais diferenciadas que possam parecer ser de uma linguagem verbal convencional como formas variadas de linguagem Daiacute a proacutepria linguagem nesse sentido tambeacutem ser compreendida como laquoobjeto de eterna meditaccedilatildeoraquo laquopois eacute o universo do pensamentoraquo E o pensamento como uma abstraccedilatildeo um resumo da realidade percebida laquoTodas as coisas se substituemraquo escreve laquomdash natildeo seria isso a definiccedilatildeo das coisasraquo Para corroborar ainda mais essa perspectiva gnosioloacutegica haacute uma outra frase laminar do poeta que demonstra a forte compreensatildeo do caraacuteter eminentemente representacional do proacuteprio pensamento e que remete agraves inuacutemeras definiccedilotildees de signo formuladas por Peirce laquoTodo pensamento exige que se tome uma coisa por uma outra um segundo por um anoraquo A sua concepccedilatildeo de mundo poderia ser portanto muito bem denominada hoje de semioacutetica

Valeacutery atenta natildeo apenas para os limites ou possibilidades do pensamento mas tambeacutem para os limites ou possibilidades da representaccedilatildeo exterior do proacuteprio pensamento de um modo dir-se-ia cientiacutefico Daiacute expressar certo ldquodesconfortordquo certa ldquoinsatisfaccedilatildeordquo para com a suposta insuficiecircncia a suposta carecircncia da linguagem mdashno caso da liacutengua jaacute que ele principalmente escreve utiliza-se de palavrasmdash para tal Ele natildeo se furta em dizer mdashe por vezes eacute nisso bastante enfaacutetico e radicalmdash o quanto ela eacute imperfeita impura para aquele que como ele almeja um expressar ou comunicar mais rigoroso e preciso possiacutevel laquoeu vejo que me falta um sistema de representaccedilatildeoraquo insistentemente confessa laquoA linguagem ordinaacuteria natildeo me permite especular sobre os elementos pois ela natildeo institui nenhuma relaccedilatildeo (de construccedilatildeo) entre esses elementos Cada palavra eacute construiacuteda agrave parte e as relaccedilotildees entre palavras natildeo permitem transformaccedilotildees de uma em outrasraquo laquoA linguagem comum natildeo coincide com aquela de nossos meios reais de pensamento Ela natildeo a divisa nem a compotildee exatamenteraquo Reflexotildees como essas obscuras e opacas satildeo patentes nos Cahiers

E eacute por isso que Valeacutery tambeacutem costuma evocar mdashmas de um modo bastante vago e inconstantemdash o antigo intento em ldquodescobrirrdquo ou em inventar uma linguagem perfeita uma linguagem pura Diz ele que tinha a princiacutepio a ideacuteia de laquoconceber uma linguagem artificial fundada sobre o real do pensamento linguagem pura sistema de signos mdash explicitando todos os modos de representaccedilatildeo mdash que satildeo para a linguagem natural aquilo que a geom[etria] cartes[iana] eacute para a g[eometria] dos Gregos excluindo a crenccedila nos significados dos termos em si estipulando a composiccedilatildeo dos termos complexos definindo e enumerando todos os modos de composiccedilatildeoraquo E isso partindo sempre de si mesmo das suas proacuteprias questotildees da concepccedilatildeo de que a laquo Linguagem verdadeira eacute esta na qual noacutes reconhecemos todos os termos como nossos isto eacute como se n[oacute]s os tiveacutessemos criados por nossas necessidades e por eles Eles satildeo da nossa vozraquo

Feliz ou infelizmente o poeta natildeo fornece muitos dados do que realmente seria essa linguagem perfeita essa linguagem pura Tudo permanece extremamente nebuloso Todavia determinadas revelaccedilotildees dos Cahiers o haacutebito em criar notaccedilotildees pessoais em traduzir simbolicamente uma estrutura linguumliacutestica numa estrutura matemaacutetica e ou loacutegica essas idiossincrasias permitem especular a intenccedilatildeo geneacuterica de axiomatizar ou formalizar o discurso verbal de construir uma espeacutecie de linguagem formal como as que foram esboccediladas por Ramon Llull e sua Ars magna generalis e principalmente por Leibniz e sua Elementa characteristicae universalis mas mais plenamente desenvolvida no universo circunscrito da loacutegica-matemaacutetica por Frege e Russel Mas Valeacutery parece ter buscado algo ainda mais abrangente valorizou antes e sobretudo a construccedilatildeo de uma linguagem perfeita de uma linguagem pura que representasse de modo rigoroso preciso e exato as percepccedilotildees do mundo exterior e do mundo interior por conseguinte todos os processos da vida do espiacuterito da consciecircncia e de um espiacuterito de uma consciecircncia particular purgada dos estados psicoloacutegicos emotivos e sentimentais Esse seu intento natildeo deixa de ser portanto uma derivaccedilatildeo da proacutepria e inconclusa ideacuteia de Sistema que reduz tudo a funccedilotildees assim como da proacutepria e inconclusa ideacuteia de eu puro uma linguagem perfeita uma linguagem pura seria supostamente a linguagem desse eu puro uma linguagem privada

Todavia o poeta natildeo cumpre doravante com esse intento Implicitamente duas satildeo as possiacuteveis razotildees para tal Primeira Valeacutery jamais abdica jamais pode abdicar da questatildeo dos significados significados sempre presentes no pensamento e na vontade que o executa e quanto a isso uma linguagem formal mesmo tendo certas regras semacircnticas miacutenimas mesmo natildeo sendo um sistema logiacutestico puro algo que seria apenas sintaxe eacute sempre bastante restrita Segunda toda linguagem sempre pressupotildee o outro uma linguagem perfeita uma linguagem pura como linguagem privada seria a linguagem de um soacute e isso natildeo seria simplesmente linguagem nenhuma Em suma ao pretender referir-se ao mundo exterior e ao mundo interior aos processos da consciecircncia do espiacuterito a linguagem deve funcionar deve comunicar deve ser um sistema passiacutevel de ser por outros compreendido usado e transformado e portanto deve carregar um sem-nuacutemero de subentendidos e estar sujeita ateacute certo grau agraves interpretaccedilotildees agraves variaccedilotildees agraves indeterminaccedilotildees semacircnticas desses outros a linguagem se linguagem deve ser portanto imperfeita impura Assim Valeacutery acaba compreendendo que para os seus estranhos propoacutesitos uma linguagem perfeita uma linguagem pura no padratildeo das linguagens naturais natildeo eacute realmente possiacutevel mdashassim como tambeacutem natildeo o eacute em termos puramente empiacutericos o eu puro e a poesia puramdash Eacute apenas uma ilusatildeo ou um sonho continuamente acalentado um absurdo um contra-senso talvez laquoMeu projeto primitivo mdash de me fazer uma linguagem proacutepria mdashraquo ele assim confessa laquoeu natildeo pude desenvolvecirc-lo Dele soacute me restou apenas a abstenccedilatildeo de certas palavras (quanto eu penso para mim) e o haacutebito de compreender as palavras somente como expedientes individuais Eu coloco o significado somente nos indiviacuteduos determinados raquo Como todo escritor que se impotildee secretas regras de uso linguumliacutestico Valeacutery acaba assim se contentando apenas em ter uma escrita altamente idiossincraacutetica permeada de pausas e lacunas e em como diz abster-se do uso de certas expressotildees e palavras as quais considera demasiada imprecisas e recorrentes no uso metafiacutesico demasiada desgastadas ele acaba optando por uma espeacutecie de navalha de Ockham uma censura aplicada aos vocaacutebulos a um index verborum prohibitorum que apesar de nem sempre ser operante na sua escritura revela-se sobretudo como uma regra de construccedilatildeo estiliacutestica como um procedimento de escritura

Em contrapartida em Valeacutery sempre permaneceraacute a ldquoinsatisfaccedilatildeordquo com relaccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo agrave impureza da linguagem O que natildeo deixa de ser algo proacuteprio dos literatos e dos poetas em geral a expressarem consciecircncia dos limites e possibilidades da proacutepria linguagem a expressarem suas dificuldades suas anguacutestias e seus tormentos em escolher palavras ou em desenvolver frases suas experiecircncias interiores a luta para representar aquilo que inicialmente segundo Tiacutetiro personagem ou voz do Dialoge de lrsquoarbre se supotildee como a laquofonte do pranto o inefaacutevel Pois nosso pranto a meu ver eacute a expressatildeo de nossa incapacidade de exprimir ou seja de nos livrar pela palavra da opressatildeo daquilo que somosraquo Por isso que Valeacutery tanto o prosador quanto o poeta apresenta em seus escritos estas duas caracteriacutesticas tatildeo presentes na tradiccedilatildeo miacutestica o pensamento negativo e a manifestaccedilatildeo da impossibilidade da linguagem em representar experiecircncias que natildeo satildeo comuns a todos mdashposto que todo signo que cumpre com sua funccedilatildeo comunicativa como a palavra pressupotildee hipoteticamente uma experiecircncia compartilhada entre dois ou mais espiacuteritos um ponto de contato que possibilite a comunicaccedilatildeomdash O que natildeo raro acaba por desembocar na praacutetica de uma escritura sempre fragmentada e incompleta que se utiliza frequumlentemente de figuras de linguagem contraditoacuterias e paradoxais como uma tentativa de transmitir o que o outro natildeo vivencia

Desse modo o sonho de uma linguagem perfeita de uma linguagem pura eacute no pensamento do poeta passiacutevel de ser interpretada natildeo como uma utopia positiva mas como uma utopia negativa natildeo como uma meta que se espera ser realmente realizada mas como uma meta cuja funccedilatildeo eacute sobretudo heuriacutestica um ideal que sendo a sua concretizaccedilatildeo impossiacutevel ou absurda serve ao menos como um artifiacutecio ou um subterfuacutegio um alvo inexistente ao qual o presente trabalho de escrituraccedilatildeo seja prosaico ou poeacutetico deve se balizar e ao menos tentar ser um como se Afinal o que eacute escrever mdash radicalmentemdash senatildeo a tentativa de escrever e de escrever o que natildeo eacute passiacutevel de o ser Haacute assim algo de paradoxal em tudo isso Pois partindo da ldquoinsatisfaccedilatildeordquo com relaccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo agrave impureza da linguagem e conjeturando construir uma linguagem perfeita linguagem pura Valeacutery acaba portanto por ldquoconceberrdquo que a proacutepria imperfeiccedilatildeo a proacutepria impureza da linguagem revela-se natildeo apenas como um dos fatores que a possibilitam mas tambeacutem como um dos fatores da sua constante renovaccedilatildeo pois favorece o impulso criador o desenvolvimento da poesia e da filosofia e num sentido mais extremo do proacuteprio pensamento laquoSe a linguagem fosse perfeitaraquo escreve de modo excessivo laquoo homem cessaria de pensar A aacutelgebra dispensa o raciociacutenio aritmeacuteticoraquo Porque a linguagem mdashnatildeo sendo formal e privadamdash eacute sobretudo coisa puacuteblica ou passiacutevel de ser coisa puacuteblica uma construccedilatildeo social e contiacutenua porque a linguagem eacute portanto uma convenccedilatildeo

Natildeo haacute como representar a realidade sem usar-se de convenccedilatildeo natildeo haacute como viver em sociedade sem servir-se dela Daiacute tambeacutem a enorme dificuldade em se precisar em se separar o que eacute no variado comportamento do ser humano realmente o natural e o artificial o que eacute dado e o que eacute inventado Sempre flanando com o ceticismo e o relativismo Valeacutery jamais hipostasia as pretensotildees agrave universalidade absoluta e compreende a civilizaccedilatildeo como fundada sobretudo sobre um tenso circuito de convenccedilotildees convenccedilotildees natildeo raro invisiacuteveis e sedimentadas mas que cumprem serem reveladas Dentre elas a linguagem pode ser compreendida como uma das mais complexas e perturbadoras um sistema que se baseia num acordo taacutecito num pacto ou contrato inaudito mas fortemente interiorizado naturalizado entre seus praticantes Afinal todo dizer eacute sempre uma ldquoapostardquo mdashuma aposta que quase natildeo se sente mas que haacutemdash que o outro compreenda de algum modo relativamente anaacutelogo agrave intenccedilatildeo daquele que diz o dito Como bom racionalista e iluminista o poeta natildeo credita por conseguinte na hipoacutetese de uma protolinguagem de uma linguagem adacircmica original aniquilada ou esquecida apoacutes a suposta confusio linguarum babeacutelica apoacutes o distanciamento da unidade divina na qual todos harmonicamente se entenderiam e comungariam questotildees de ldquoorigemrdquo que comumente fazem evocar qualquer forma de platonismo ou realismo a partir da qual as coisas se originam ou degeneram satildeo por ele simplesmente compreendidas como faacutebulas ou ficccedilotildees

Seu convencionalismo possui entretanto relaccedilotildees com o estranho pensamento de Mallarmeacute em parte natildeo deixa de ser uma continuidade uma ecircnfase uma acentuaccedilatildeo de reflexotildees poeacuteticas jaacute contidas em estudos como a Petite philologie agrave lrsquousage des classes et du monde les mots anglais e Notes sur le langage nos quais o autor de Un coup de deacutes descreve seu iacutentimo envolvimento com o idioma que lecionava o inglecircs especialmente o goacutetico e o anglo-saxatildeo e com a linguagem em geral principalmente com a sonoridade das palavras relevante para a poesia Simbolista Forte eacute a ligaccedilatildeo do pensamento dos dois poetas menos com a tradiccedilatildeo do verbum na Teologia Cristatilde e mais como Gerard Gennette exemplarmente iluminou com a poderosa tradiccedilatildeo propagada a partir do Craacutetlio - ou da justeza (exatidatildeo) das palavras de Platatildeo o diaacutelogo seminal sobre filosofia da linguagem na Antiguumlidade Claacutessica Duas teorias ambas referindo-se sobre como deve se dar sobre qual criteacuterio deve se dar agrave justeza (exatidatildeo) das palavras a relaccedilatildeo entre estas e o que elas representam satildeo confrontadas nesse diaacutelogo a defendida por Craacutetilo a naturalista segundo a qual cada objeto do mundo recebe um nome justo de acordo com uma conveniecircncia natural e a defendida por Hermoacutegenes a convencionalista segundo a qual cada objeto do mundo recebe um nome de acordo com uma convenccedilatildeo uma conveniecircncia artificial Portanto uma defende a adequaccedilatildeo entre linguagem e mundo a outra natildeo uma defende a mimese mdasha imitaccedilatildeo ou a representaccedilatildeo icocircnicamdash entre linguagem e mundo a outra natildeo O trunfo da argumentaccedilatildeo de Craacutetilo satildeo as palavras compostas por outras palavras ldquoderivadasrdquo o que daacute a impressatildeo de que estas se auto-explicam o de Hermoacutegenes a existecircncia de palavras que natildeo se decompotildeem em outras ldquoprimitivasrdquo o que daacute a impressatildeo que estas satildeo meramente arbitraacuterias Todavia usando-se da dialeacutetica e ao fim interessado mais na formulaccedilatildeo de uma teoria do conhecimento do que no inquirir etimologias Soacutecrates acaba tambeacutem esboccedilando uma terceira teoria mescla ou negaccedilatildeo das outras duas segundo a qual haveria sim uma conveniecircncia natural entre palavras e coisas todavia natildeo de modo onomatopaico como insiste Craacutetilo mas de modo essencial Nesse sentido se a ceacutelebre Teoria das Ideacuteias estiver em pauta as palavras mdashsupostamentemdash representariam ou deveriam representar (porque de fato natildeo o fazem de modo perfeito) mais as Ideacuteias do que as proacuteprias coisas sensiacuteveis a adequaccedilatildeo a justeza das palavras deve ter portanto como criteacuterio o conhecimento que no ideaacuterio platocircnico natildeo raro se identifica com a dimensatildeo ontoloacutegica e natildeo fenomecircnica Tambeacutem reconhecendo a insuficiecircncia da linguagem para tanto Soacutecrates conjetura que o conhecimento deve ser antes adquirido pelo pensamento e independentemente das palavras guias falhos e perigosos Haacute que se partir da realidade e natildeo daquilo que a imita ou a representa As suas instigantes reflexotildees entretanto permanecem bastante obscuras ao fim ele abandona o diaacutelogo com seus interlocutores e como de costume nada conclui

O espiacuterito desse diaacutelogo reverberou doravante na Escolaacutestica especialmente na questatildeo dos universais A ldquodisputardquo talvez menos loacutegico-linguumliacutestica e mais ontoloacutegica entre realistas (creditando numa universalia ante rem) e nominalistas (creditando numa universalia sunt realia) com todas as minuciosas variaccedilotildees que entre um e outro se formularam tambeacutem ressoam nas reflexotildees de Mallarmeacute e principalmente como Michel Jarrety elucida em Valeacuteryalogo eranette n Interessado no modo como uma liacutengua se comporta ou se desdobra filologicamente evolui e eacute contaminada por outras liacutenguas e por si mesma o primeiro acaba atentando para o possiacutevel limite do caraacuteter convencional das liacutenguas foneacuteticas estas tambeacutem produzem palavras por analogia por semelhanccedila foneacutetica por iconicidade e natildeo apenas por mera convenccedilatildeo laquocriando as analogias das coisas pelas analogias dos sonsraquo (laquoen creacuteant les analogies des choses par les analogies des sonsraquo) assim escreve Ele enfatiza um processo para manter o termo grego mimeacutetico todavia relativamente restrito e preciso a mimese do signo verbal com relaccedilatildeo a outro signo verbal natildeo com relaccedilatildeo direta ao que representam a mimese no interior de uma linguagem ou entre linguagens natildeo portanto com relaccedilatildeo direta agrave realidade que representam Eacute o caso da semelhanccedila por vezes simultaneamente semacircntica e foneacutetica entre palavras de idiomas de mesmo tronco ou num mesmo idioma Esse evidente fenocircmeno linguumliacutestico faz com que Mallarmeacute vaacute mais aleacutem e busque (idiossincraticamente) revelar certa constacircncia certa lei entre a semacircntica e a foneacutetica das palavras da liacutengua inglesa ao atribuir ou encontrar valores semacircnticos semelhantes a um conjunto de palavras de foneacutetica semelhantes quiccedilaacute tambeacutem tendo como intenccedilatildeo que a aliteraccedilatildeo um dos grandes recursos da poesia natildeo se decirc apenas como uma seacuterie de sons semelhantes mas tambeacutem como de significados semelhantes

Doravante desconfiando de qualquer explicaccedilatildeo que aponte a essencialidades natildeo compartilhando das teorias de Craacutetilo (ldquoingecircnuardquo demais) ou de Soacutecrates (ldquoplatocircnicardquo demais) Valeacutery por sua vez eacute em certo sentido muito mais nominalista do que seu mestre que natildeo deixa de acenar para um platonismo de caraacuteter miacutestico como se depreende por esta bela e enigmaacutetica frase laquoO Verbo atraveacutes da Ideacuteia e do Tempo que satildeo ldquoa negaccedilatildeo idecircntica da essecircnciardquo do Devir torna-se a Linguagemraquo (laquoLe Verbe agrave travers lrsquoIdeacutee et le Temps qui sont ldquo la negation identique agrave lrsquoessence rdquo du Devenir devient le Langageraquo) O disciacutepulo natildeo nega obviamente que as palavras se formem tambeacutem por analogia a outras desconfia tatildeo-somente que tal fenocircmeno legitime a formulaccedilatildeo de uma lei substancial ademais foi ele que tambeacutem cogitou a formulaccedilatildeo de uma espeacutecie de laquo loacutegica imaginativaraquo ou laquo analoacutegicaraquo jamais inferiorizando o pensamento por analogia por semelhanccedila por iconicidade em comparaccedilatildeo com o pensamento por contiguumlidade como se depreende em seus escritos sobre Leonardo Dir-se-ia assim simplesmente que para Valeacutery natildeo faz mais sentido buscar ou formular um criteacuterio de adequaccedilatildeo de justeza para as palavras (e nisso ele natildeo se coaduna com Hermoacutegenes) Constata-se apenas que elas satildeo engendradas por um processo imperfeito impuro por mimese (relaccedilatildeo entre signo e signo) e por convenccedilatildeo (relaccedilatildeo entre signo e objeto) dependendo do aspecto que se contemple mas natildeo por uma seacuterie de regras e relaccedilotildees absolutamente riacutegidas e substanciais Com efeito para Valeacutery a parte convencional eacute justamente a relaccedilatildeo entre a foneacutetica e a semacircntica (e nisso ele se coaduna com Hermoacutegenes) a palavra se configura sobretudo como laquouma montagem instantacircnea de um som e um sentido sem qualquer relaccedilatildeo entre elasraquo Natildeo haacute ao menos nas liacutenguas foneacuteticas como o francecircs e o portuguecircs (a referecircncia eacute obviamente sempre agraves do tronco hindo-europeu e natildeo agraves que se utilizam tambeacutem de ideogramas ou hieroacuteglifos) uma necessaacuteria ligaccedilatildeo mimeacutetica de representaccedilatildeo icocircnica entre o representante e o representado Com relaccedilatildeo ao objeto que represente ou agrave funccedilatildeo que tenha o signo linguumliacutestico eacute realmente arbitraacuterio essa eacute sua marca mais patente como insiste Valeacutery consoante nesse aspecto com a linguumliacutestica de Saussure

E poder-se-ia natildeo sem um pouco de exagero ir ainda mais aleacutem em todo esse insone raciociacutenio Pelo que se interpreta mais pela totalidade de seus escritos do que por frases soltas a linguagem para o poeta natildeo se caracterizaria como sendo consequumlecircncia de um princiacutepio ontoloacutegico de uma relaccedilatildeo isomoacuterfica com a realidade Por detraacutes dela natildeo haacute um substrato ou uma loacutegica essencial simetricamente perfeita com relaccedilatildeo a um suposto substrato ou loacutegica essencial do mundo O que em grande medida tambeacutem descartaria a possibilidade de construccedilatildeo de uma gramaacutetica geral ou universal matriz gerativa a partir da qual todas as demais seriam variaccedilotildees empiacutericas e natildeo apenas a possibilidade de uma linguagem perfeita uma linguagem pura Natildeo haacute portanto a Linguagem haacute tatildeo-somente linguagens ou para usar o conceito central do segundo Wittgenstein haacute inuacutemeros jogos de linguagens semelhantes entre si mas natildeo construiacutedos sob ou a partir de um uacutenico princiacutepio ontoloacutegico que se desenvolve e se multiplica como uma aacutervore Tudo eacute uma vasta trama que cresce e se contorce em vaacuterias direccedilotildees uma trama sem raiz

Isso talvez explique o porquecirc Valeacutery de um lado constate a imperfeiccedilatildeo a impureza da linguagem e conjeture a formulaccedilatildeo de uma linguagem perfeita pura e por outro interprete como Mallarmeacute os diversos usos e apropriaccedilotildees falas e escritas das linguagens particulares das liacutenguas naturais como uma espeacutecie de intensa reforma ou reinvenccedilatildeo como um contiacutenuo aperfeiccediloamento Aperfeiccediloamento engendrado pelos propoacutesitos usuaacuterios que ao receber tais liacutenguas da tradiccedilatildeo as adaptam agraves suas idiossincrasias e modos de ser Processo que ocorre naturalmente de um modo bastante informal e natildeo finalista Desse modo o proacuteprio qualificativo de imperfeiccedilatildeo atrelado agrave linguagem adquire por conseguinte aqui menos o significado hodierno de algo defeituoso do que de incompleto de inacabado e portanto de uma forccedila evolutiva A metaacutefora mdashessa poderosa figura de linguagem que natildeo deixa de ser um dos mais conhecidos resultados da capacidade de analogia da consciecircncia uma forma de comparar representaccedilotildees para com isso conotar outrasmdash eacute uma dos exemplos mais patentes dessa reinvenccedilatildeo da linguagem no interior da proacutepria linguagem da qual a poesia vem a ser um dos grandes paradigmas Revela-se muitas vezes como um modo de precisar o dizer ou ateacute mesmo o uacutenico modo de dizer aquilo que de modo literal direto natildeo seria possiacutevel Pois a precisatildeo natildeo se refere apenas ao literal agraves vezes o metafoacuterico o que eacute dito pelo desvio vem a ser o mais preciso Toda a reflexatildeo linguumliacutestica de Valeacutery acaba mostrando portanto o lado positivo do convencionalismo a capacidade de inventar signos convencionais siacutembolos de multiplicaacute-los e de relacionaacute-los eacute a capacidade mesma de representar abstraccedilotildees Com os siacutembolos tornou-se possiacutevel representar de um modo abstrato natildeo apenas o mundo exterior mas tambeacutem o mundo interior o espiacuterito a consciecircncia e o que nesse espiacuterito nessa consciecircncia se conjetura e deseja tornou-se possiacutevel representar inclusive aquilo que natildeo existe ou ao menos aquilo que eacute tatildeo somente especulado ou experimentado por um soacute laquoO maior progresso foi feito no dia em que os signos convencionais apareceramraquo assim exclama o poeta

Conjetura-se que a invenccedilatildeo de signos convencionais a invenccedilatildeo da linguagem adveio sobretudo pela necessidade ou pelo desejo humano de interaccedilatildeo com os outros e com o mundo de construir um instrumento de comunicaccedilatildeo isto eacute um instrumento comum Entretanto esse instrumento tambeacutem pode ser usado mdashcomo que num segundo momento heuristicamente conjeturadomdash para expressar perplexidades filosoacuteficas Poder-se-ia dizer assim que a filosofia seria uma espeacutecie de desvio de desvirtuamento de abuso da funccedilatildeo agrave qual a linguagem estaria a princiacutepio destinada O que se constata tambeacutem na complexa formaccedilatildeo do vocabulaacuterio filosoacutefico frequumlentemente de grande abstraccedilatildeo este se inicia em grande medida a partir do vocabulaacuterio utilizado cotidianamente pragmaacutetico construiacutedo imediatamente atraveacutes de uma direta relaccedilatildeo com o mundo sensiacutevel concreto que entatildeo eacute manipulado ou reformulado resignificado quando inserido nas mais diversas especulaccedilotildees Supotildee-se que assim os seres humanos comeccedilam a representar os objetos da realidade que percebem com determinadas palavras cunhadas para tal para entatildeo depois passarem a representar objetos de realidades que conjeturam atraveacutes dessas mesmas palavras agora transformadas distorcidas em metaacuteforas ocultas laquoTodas as nossas abstraccedilotildees tecircm essas experiecircncias pessoais e singulares como origemraquo discursa informalmente Valeacutery laquotodas as palavras do pensamento mais abstrato satildeo palavras retiradas do uso mais simples mais comum que corrompemos para filosofar com elas Vocecircs sabiam que a palavra latina da qual tiramos a palavra mundo significa simplesmente ldquoornamentordquo mas certamente vocecircs sabem que as palavras hipoacutetese ou substacircncia alma ou espiacuterito ou ideacuteia as palavras pensar ou entender satildeo nomes de atos elementares como colocar pocircr pegar respirar ou ver que aos poucos foram se carregando de sentidos e ressonacircncias extraordinaacuterias ou ao contraacuterio foram se despojando progressivamente ateacute perderem tudo o que teria impedido de combinaacute-las com uma liberdade praticamente ilimitada A noccedilatildeo de pesar natildeo estaacute presente na noccedilatildeo de pensar e a respiraccedilatildeo natildeo eacute mais sugerida pelos termos do espiacuterito e da almaraquo

Contudo haveria um entrave em todo esse processo linguumliacutestico Se no plano da linguagem ordinaacuteria todos os interlocutores em geral se entenderiam de modo mais faacutecil no plano da linguagem filosoacutefica haveria os maiores desentendimentos os maiores desacordos e disputas Quanto a isso as reflexotildees de Valeacutery satildeo incisivas e assumem um caraacuteter jaacute claacutessico remetem tanto a Santo Agostinho quanto a Wittgenstein laquoVocecircs jaacute notaram [] de que tal palavra perfeitamente clara quando a ouvem ou empregam na linguagem normalraquo assim pergunta o poeta laquonatildeo oferecendo a menor dificuldade quando comprometida no andamento raacutepido de uma frase comum torna-se magicamente problemaacutetica introduz uma resistecircncia estranha frustra todos os esforccedilos de definiccedilatildeo assim que vocecircs a retiram de circulaccedilatildeo para examinaacute-la agrave parte procurando um sentido apoacutes tecirc-la subtraiacutedo agrave sua funccedilatildeo momentacircnea Eacute quase cocircmico perguntar-se o que significa ao certo um termo que se utiliza a todo instante e obter satisfaccedilatildeo total Por exemplo escolhi [] a palavra Tempo Essa palavra era totalmente liacutempida precisa honesta e fiel ao seu serviccedilo enquanto desempenhava a sua parte em um propoacutesito e era pronunciada por algueacutem que queria dizer alguma coisa Mas ei-la sozinha presa pelas asas Ela se vinga Faz-nos acreditar que tem mais sentidos que funccedilotildees Era apenas um meio e ei-la transformada em fim transformada no objeto de um terriacutevel desejo filosoacutefico Permuta-se em enigma em abismo em tormento para o pensamento Acontece o mesmo com a palavra Vida e com todas as outras Esse fenocircmeno facilmente observaacutevel adquiriu um grande valor criacutetico para mim Fiz dele aliaacutes uma imagem que me representa bastante bem essa estranha condiccedilatildeo de nosso material verbal [] cada uma das palavras que nos permite atravessar tatildeo rapidamente o espaccedilo de um pensamento e acompanhar o impulso da ideacuteia que constroacutei por si mesma sua expressatildeo parece-me uma dessas pranchas leves que jogamos sobre uma vala ou sobre uma fenda na montanha e que suportam a passagem de um homem em movimento raacutepido Mas que ele passe sem pesar que passe sem se deter mdash e principalmente que natildeo se divirta danccedilando sobre a prancha fina para testar a resistecircncia A ponte fraacutegil imediatamente oscila ou rompe-se e tudo se vai nas profundezas Consultem sua experiecircncia e constataratildeo que soacute compreendemos os outros e que soacute compreendemos a noacutes mesmos graccedilas agrave velocidade de nossa passagem pelas palavras Natildeo se deve de forma alguma oprimi-las sob o risco de se ver o discurso mais claro decompor-se em enigmas em ilusotildees mais ou menos eruditasraquo

Esse discurso revela em siacutentese como o poeta compreende enfim a linguagem como um vasto sistema em devir como algo eminentemente provisoacuterio como algo eminentemente transitoacuterio Uma transitoriedade naturalmente feita de padrotildees de regras de normas E a palavra mdashe laquo Natildeo haacute palavra isolaacutevelraquomdash eacute apenas um elemento dessa transitoriedade um anel pertencente a uma corrente que se rompida pode acabar por obscurecer toda a compreensatildeo do que se intentou comunicar ela natildeo deve ser uma estaccedilatildeo-final mas uma estaccedilatildeo na qual se paacutera se permanece por pouco tempo depois se parte e assim sucessivamente num processo que virtualmente natildeo tem fim A palavra eacute assim como uma moeda possui valor de troca valor dependente somente da confianccedila nela depositada valor fiduciaacuterio Seu significado natildeo eacute dado por ela mas pelo que eacute possiacutevel ou natildeo se fazer com ela pelo seu uso ou numa outra perspectiva pelo seu contexto pelo contexto proposicional ou pela forma de vida para usar a expressatildeo do segundo Wittgenstein pelo tempo e pelo espaccedilo na qual se insere laquoEacute a frase que esclarece a palavraraquo A teoria semacircntica que o poeta sustenta eacute portanto um contextualismo semacircntico Nesse contextualismo o modo como uma palavra eacute frequumlentemente apropriada usada ou significada mdashcom padrotildees que se repetem analogamentemdash daacute a ela uma suficiente estabilidade semacircntica para manter o poder de comunicaccedilatildeo da linguagem na medida em que impediria uma alteraccedilatildeo caoacutetica e arbitraacuteria dos seus proacuteprios usos ou significados Um usuaacuterio (um falante ou um escritor) se almeja ser compreendido natildeo pode querer fazer o que bem quiser com ela Natildeo pode querer usaacute-la ou significaacute-la sempre do mesmo modo o que se configuraria como um dogmatismo semacircntico absoluto assim como natildeo se pode querer usaacute-la ou significaacute-la sempre de modo diferente o que configuraria um ceticismo semacircntico absoluto Em ambos os casos a comunicaccedilatildeo no plano cotidiano ou ordinaacuterio estaria no miacutenimo prejudicada Toda palavra assim como todo signo tem portanto algum grau de determinaccedilatildeo semacircntica ou algum grau de indeterminaccedilatildeo semacircntica natildeo possui fixidez nem fluidez absolutas mdashe isso a faz funcionarmdash Uma laquolinguagem supotildee uma criaccedilatildeo estatiacutestica constante [Grifo do autor]raquo sintetiza Valeacutery laquocada qual potildee nela algo de si mesmo a desfigura a enriquece a capta e a comunica a sua maneira [] A necessidade de muacutetua compreensatildeo eacute a uacutenica normativa que atenua e retarda sua alteraccedilatildeo e esta eacute tatildeo soacute possiacutevel em virtude da natureza arbitraacuteria das correspondecircncias de signos e de sentido que a constituemraquo

E eacute por isso que Valeacutery tambeacutem chega a se referir relativamente anaacutelogo agraves reflexotildees de um Rousseau e de um Condillac agrave linguagem como sendo mdashao menos ldquooriginalmenterdquomdash derivada do corpo do gesto e do grito o que significa que se almeja cumprir plenamente com seu objetivo pragmaacutetico deve morrer e morrer no outro no entendimento do outro o outro que a faraacute renascer laquoA linguagem articulada verbal parte do gesto mdash e o exige uma vez por todasraquo assim escreve laquoEnsaiar se exprimir por gestos Isto eacute tocar o cerne da linguagem ordinaacuteria)raquo Em uacuteltima instacircncia Valeacutery como ele mesmo confessa a compreende mdashum modo que poderia ser denominado de ldquopositivordquo ou ldquocientiacuteficordquomdash primordialmente como instrumento como laquofunccedilatildeoraquo natildeo como ldquocoisardquo ou ldquoessecircnciardquo O que talvez seria mais condizente a um poeta de poesias metafiacutesicas mas natildeo o eacute porque Valeacutery tambeacutem compreende a poesia natildeo raro como um retorno a esse gesto e a esse grito agora respectivamente transformados purificados em danccedila e em canccedilatildeo laquoO poeta que multiplica as figurasraquo escreve laquonada mais faz do que reencontrar em si mesmo a linguagem em estado nascenteraquo Nesse sentido ateacute mesmo o seu ldquo nominalismordquo se relativiza pois em seu pensamento jaacute natildeo estaacute mais em jogo nenhuma preocupaccedilatildeo ontoloacutegica Todo substancialismo eacute substituiacutedo por um funcionalismo um funcionalismo contextualista porque a linguagem deve ser o que sempre foi uma accedilatildeo um fazer

4111 automatismo verbal

mdash Vocecirc estaacute seguro de que esta eacute a traduccedilatildeo correta em palavras de seus pensamentos sem palavras

Ludwing Wittgenstein Investigaccedilotildees filosoacuteficas

As palavras que possuem caraacuteter denotativo que se referem a algo as palavras ldquocategoremaacuteticasrdquo quiccedilaacute com exceccedilatildeo dos nomes e dos nuacutemeros podem ser compreendidas como generalia como signos gerais Representam um conjunto uma infinidade de objetos concretos ou abstratos subjetivos ou objetivos reais ou irreais que na perspectiva supostamente constante e natural da percepccedilatildeo e ou da intelecccedilatildeo humana se assemelham num tal extremo que satildeo postas como iguais e eacute justamente por essa ldquoigualdaderdquo por uma convencional desconsideraccedilatildeo das diferenccedilas do vasto grau de matizes da realidade que inuacutemeros objetos podem ser denominados por uma mesma palavra e assim tambeacutem para com todos os demais Natildeo haacute nada de igual passiacutevel de ser pelos sentidos percebido na realidade exterior ou intuiacutedo na realidade interior ao menos ateacute hoje natildeo se constatou que houvesse Nenhuma pedra eacute igual agrave outra pedra no entanto todas satildeo denominadas pedras nenhuma tristeza eacute igual agrave outra tristeza no entanto todas satildeo denominadas tristezas De algum modo e quiccedilaacute por se estar envolto com preocupaccedilotildees metafiacutesicas e religiosas por se almejar essecircncias um ir aleacutem do que se percebe tal relaccedilatildeo entre linguagem e realidade pode ldquofacilmenterdquo induzir ou incitar mdashe isso eacute meramente uma hipoacutetesemdash a crer que haveria natildeo apenas um objeto primordial e perfeito a partir do qual todos os outros seriam versotildees incompletas imperfeitas mas tambeacutem que haveria um significado correto absoluto verdadeiro referente como o jaacute acenado por Soacutecrates no Craacutetilo natildeo aos diversos objetos percebidos ou intuiacutedos que satildeo denominados por uma mesma palavra mas antes ao objeto primordial e perfeito A antiga concepccedilatildeo mdash platocircnica ou realistamdash segundo a qual a palavra manifestaria a verdadeira essecircncia da coisa que representa explicita em muito essa crenccedila mdashe quanto a isso natildeo deixa de ser instigante saber que no Grego Claacutessico uma das palavras para palavra ( ὄνομα) tambeacutem designa o conceito de nomemdash Entretanto hoje quando tal crenccedila natildeo se faz tatildeo presente quando o espiacuterito nominalista (e ldquomaisrdquo cientiacutefico) parece ter relativamente se imposto ao espiacuterito realista (e ldquomaisrdquo metafiacutesico) o que ainda ocorre mais explicita e precisamente eacute como que um apego um apego a um determinado significado ou gama de significados a um determinado discurso O que muitas vezes prejudica ou inviabilizaria o diaacutelogo com outros a formularem outros significados ou gama de significados o diaacutelogo com outros discursos

Todo esse modo categorial de compreender as palavras e por conseguinte a linguagem modo que Valeacutery natildeo tardaria em julgar supostamente como ldquoantigordquo como ldquoanacrocircnicordquo posto desenvolvido numa eacutepoca preacute-cientiacutefica miacutetica seria um dos erros mais incisivos e recorrentes mais pateacuteticos da filosofia Esta opera constroacutei-se natildeo raro subestimando mdashesquecendo ou ignorandomdash esse constante e imperioso caraacuteter polissecircmico plaacutestico volaacutetil das palavras compreendido como muito mais vasto e complexo do que as preciosas definiccedilotildees enumeraccedilotildees que os dicionaacuterios proporcionam e que compreensivelmente natildeo abarcam todas as possibilidades ou dito com mais precisatildeo subestimando os variados usos ou significados que as pessoas tanto na linguagem cotidiana como na linguagem filosoacutefica tanto na prosa como na poesia concedem com maior ou menor rigor agraves proacuteprias palavras o grau de indeterminaccedilatildeo semacircntica que elas podem sofrer A filosofia tende a compreender que se existe muitos usos ou significados de uma mesma palavra somente um ou uma gama muito limitada ou restrita deles deve ser o correto o absoluto o verdadeiro Mas como para o poeta a linguagem caracteriza-se sobretudo como insuficiente convencional e transitoacuteria como uma laquo criaccedilatildeo estatiacutestica constanteraquo como as palavras natildeo mascaram ou encobrem essecircncias laquonatildeo encobrem misteacuterios mdash mas embaraccedilos incoerecircncias acasosraquo natildeo haacute natildeo faz sentido haver por conseguinte o significado correto absoluto verdadeiro mas tatildeo somente inuacutemeros usos ou significaccedilotildees possiacuteveis E isso porque definiccedilotildees isto eacute tentativas de dar contornos ou limites semacircnticos fixidez agraves palavras natildeo satildeo representaccedilotildees de uma realidade ontoloacutegica para aleacutem dos espiacuteritos das consciecircncias

A filosofia ldquopecardquo portanto por um dogmatismo semacircntico ou pelo que aqui pode ser denominado de platonismo semacircntico ou realismo semacircntico a ilusoacuteria crenccedila no significado em si a ilusoacuteria crenccedila na palavra em si a ilusoacuteria crenccedila que haacute um em si representado pelo signo verbal No discurso que promove no discurso que eacute ela a filosofia cristaliza fixa as significaccedilotildees que adquire ou formula para ou estaca nas palavras em geral as mais abstratas (consequumlentemente as mais propiacutecias e relevantes ao pensamento metafiacutesico) quando estas devem ser ou soacute podem ser compreendidas como pontes como partes de frases de textos e de contextos e assim sucessivamente a filosofia faria portanto justamente aquilo que Valeacutery considera ser extremamente ldquoperigosordquo e ldquoesteacuterilrdquo isola as palavras e isoladas elas se tornam laquo incompletasraquo laquo ionizadasraquo isoladas elas se tornam portas para o enigma inesgotaacuteveis fontes de especulaccedilotildees filosoacuteficas de antinomias A palavra torna-se aquilo que o fazedor de poemas intuitivamente sabe que pode ocorrer um laquoabismo sem fimraquo laquoQuando noacutes nos interrogamos sobre o significado de uma palavra mdash o que eacute a atitude do fazedor de dicionaacuterios ou do ldquofiloacutesofordquo ou do criacutetico etc mdash noacutes somos conduzidos inconscientemente a inventar um significado ldquoidealrdquo e falso Pois 1o noacutes consideramos a palavra isoladamente 2o noacutes recusamos o significado dessa palavra quando a observamos no uso imediato e que parece incompleta ou absurda ou peticcedilotildees de princiacutepio Noacutes supomos que cada palavra possui um significado mdash determinado que natildeo seja o seu e que corresponde a qualquer coisa mdash correspondecircncia uniforme mdash e que o sistema perfeito de palavras eacute em alguma parte mdash a disposiccedilatildeo de um espiacuterito bastante poderoso e sutil para o esperarraquo laquo O filoacutesoforaquo portanto escreve o poeta laquo crecirc na palavra em si mdash e seus problemas satildeo problemas de palavras em si de palavras que se obscurecem pelo imobilismo e isolamento mdash e que ele esclarece de seu melhor criando-as de seu melhor e artificialmente por uma voz refletida e imaginativa aquilo que precisamente suas paradas e suas duacutevidas o levaram mdash seu caraacuteter de transiccedilatildeo mdash via de comunicaccedilatildeoraquo Segundo Valeacutery os filoacutesofos viveriam muito mais a disputar tatildeo-somente definiccedilotildees significaccedilotildees de palavras semacircnticas do que proposiccedilotildees construccedilotildees que se atenham a ldquofenocircmenos reaisrdquo eacute justamente nesse sentido que ele chega a dizer ironicamente que toda a filosofia inclina-se a ser tatildeo-somente uma laquoDivinizaccedilatildeo do verbo serraquo (Esse comportamento filosoacutefico eacute de algum modo bastante compreensiacutevel supondo a tendecircncia tatildeo caracteriacutestica do pensamento da Antiguumlidade Claacutessica a fundamentar e influenciar grande parte da Tradiccedilatildeo Filosoacutefica Ocidental em buscar algum princiacutepio algum ldquo serrdquo ontologicamente inscrito sob a desesperadora transitoriedade do mundo Transitoriedade que de modo algum natildeo perturba o poeta)

Dessarte da criacutetica ao modo como os filoacutesofos frequumlentemente utilizam-se das palavras fixando-se nelas da falta de consciecircncias da linguagem destes o poeta amiuacutede considera consequumlentemente que tambeacutem a grande parte ou a totalidade dos problemas que a filosofia ou a metafiacutesica inventa e lega agrave tradiccedilatildeo tanto filosoacutefica ou metafiacutesica quanto o que talvez seja mais problemaacutetico e polecircmico para aleacutem dela constitui-se natildeo de erros mas simplesmente de falsos problemas de contra- sensos de ilusotildees de quimeras ou de abusos a partir dos quais na acircnsia de resolvecirc-los de realizaacute-los muitas vezes satildeo arquitetados e construiacutedos verdadeiros mundos de fantasia laquoToda a filosofia nasceu de ilusotildees sobre o saber que satildeo ilusotildees sobre a linguagemraquo laquoNatildeo existe um uacutenico problema em filosofiaraquo escreve de modo irocircnico e taxativo laquoque natildeo se tenha podido enunciar de maneira tal que natildeo subsista qualquer duacutevida sobre a sua existecircnciaraquo Entretanto natildeo se trata assim pode ser interpretado de um ceticismo positivo ou dogmaacutetico natildeo eacute mais uma questatildeo tanto de crer ou de descrer nesses problemas na legitimidade ou ilegitimidade de acreditar na veracidade ou na falsidade deles na concordacircncia com a realidade que dispotildeem representar Porque eles satildeo justamente apenas falsos problemas contra-sensos isto eacute eles simplesmente natildeo tecircm sentido eles simplesmente natildeo existem para fora do universo linguumliacutestico no qual se inserem Constituem-se antes em ilusotildees gramaticais Afinal natildeo se pode duvidar de algo mal enunciado impreciso natildeo se pode duvidar de algo que se intui natildeo ser compreendido nem mesmo por aqueles que o enunciam mdashargumento esse naturalmente deveras subjetivomdash laquoA maior parte dos problemas da filosofia satildeo contra-sensosraquo escreve Valeacutery tambeacutem se referindo ao devir do saber cientiacutefico laquoeu quero dizer que eacute geralmente impossiacutevel de os ldquocolocarrdquo de uma maneira precisa sem os destruir Assim esses problemas geralmente natildeo resultam de um estudo direto mas satildeo engendrados por teorias ou modos de expressatildeo mais antigos que ao se tornarem insuficiente e em desacordo com os fatos ou com uma anaacutelise mais fina fizeram nascer paradoxos Eacute assim que o argumento sobre a divisibilidade do tempo e do espaccedilo repousa sobre a imprecisatildeo desta operaccedilatildeo Haacute somente que voltar ao que se passa quando se o divide seja fisicamente seja (de uma maneira bastante diferente) intelectualmente para anular o argumentoraquo

Extrapolando toda essa criacutetica da esfera filosoacutefica e estendendo-a toda ateacute a esfera social chegar-se-ia ao ponto extremo em que se poderia afirmar ser qualquer crenccedila natildeo apenas as tecnicamente filosoacuteficas ou metafiacutesicas uma maacute formulaccedilatildeo linguumliacutestica que natildeo raro assume um valor capital na vida daquele que crecirc O lema mdashlaquoFaire sans croireraquomdash tambeacutem natildeo deixe de estar relacionado a isso pois talvez para Valeacutery toda crenccedila tenha no fundo um caraacuteter filosoacutefico-metafiacutesico e seja portanto ilusoacuteria Tal concepccedilatildeo pode parecer de uma brutalidade de um niilismo epistemoloacutegico visceral principalmente quando se contempla o quanto a grande parte das pessoas facilmente adere ou se submete natildeo raro miseravelmente a qualquer sistema de valores relativamente fechado que o vasto mercado das ideacuteias oferece e vende especialmente os que se encontram nas religiotildees institucionalizadas em busca de consolo psicoloacutegico e de esperanccedilas Isso natildeo implica obviamente que natildeo se possa compreender a importacircncia e a funccedilatildeo das crenccedilas para uma determinada sociedade para a vida e continuidade de uma determinada sociedade para aqueles que as aceitam e as seguem como sempre observava Kant a considerar a razatildeo praacutetica como mais importante para a vida do que a razatildeo pura Disso o poeta apresenta plena consciecircncia Considerava impossiacutevel ou ao menos muito improvaacutevel a construccedilatildeo de uma civilizaccedilatildeo que prescinda de crenccedilas de princiacutepios natildeo verificaacuteveis de representaccedilotildees vagas imprecisas e ldquomal formuladasrdquo de aspiraccedilotildees de sonhos e ilusotildees Pois em uacuteltima instacircncia laquoA metafiacutesica eacute a base das sociedadesraquo

Numa passagem mais generosa e condescendente Valeacutery matiza assim essa sua proacutepria criacutetica quanto aos problemas filosoacutefico-metafiacutesicos serem contra- sensos referindo-se ao teor pessoal dessa criacutetica As palavras diz ele laquopassaram por tantas bocas por tantas frases por tantos usos e abusos que as precauccedilotildees mais delicadas se impotildeem para evitar uma enorme confusatildeo em nossos espiacuteritos entre o que pensamos e tentamos pensar e o que o dicionaacuterio os autores e de resto todo o gecircnero humano desde a origem da linguagem querem que pensemos [] Confesso ter o costume de distinguir nos problemas do espiacuterito aqueles que eu teria inventado e que exprimem uma necessidade real sentida por meu pensamento e os outros que satildeo problemas alheios Entre esses uacuteltimos haacute muitos [] que me parecem natildeo existir ser apenas aparecircncia de problemas eu natildeo os sinto E quanto ao resto haacute muitos que me parecem mal enunciados Natildeo estou dizendo que eu tenho razatildeo Estou dizendo que vejo em mim o que se passa quando tento substituir as formas verbais por valores e significados natildeo verbais que sejam independentes da linguagem adotada [Grifo do autor] Encontro aiacute impulsos e imagens ingecircnuas produtos brutos de minhas necessidades e de minhas experiecircncias pessoais Eacute a minha vida que se espanta Eacute ela que deve me fornecer se puder minhas respostas pois eacute somente nas reaccedilotildees de nossa vida que pode residir toda a forccedila e a necessidade de nossa verdade O pensamento que emana dessa vida nunca se serve com ela mesma de certas palavras que lhe pareccedilam boas para o uso externo nem de outras nas quais natildeo veja o conteuacutedo e que soacute pode enganaacute-lo sobre sua forccedila e valores reaisraquo

Mediante essas palavras facilmente se constroacutei aqui uma estrateacutegia de argumentaccedilatildeo Supotildee-se que se os problemas filosoacutefico-metafiacutesicos fossem enunciados com proposiccedilotildees mais exatas ou precisas simplesmente natildeo existiriam se estivessem em outro registro ordenadas a partir de outros princiacutepios postos em uma outra loacutegica simplesmente natildeo viriam a ser simplesmente natildeo seriam pensados e ou creditados pois a existecircncia desses problemas mdashenquanto enunciados objetivos de validade universalmdash estaacute intimamente condicionada agrave proacutepria linguagem agraves convenccedilotildees estatiacutesticas (e por conseguinte agrave proacutepria cultura) com as quais natildeo simplesmente se vestem mas satildeo por vezes inteiramente constitutivos Como o pensamento tende a condicionar a sua forma de expressatildeo exterior assim como a forma de expressatildeo exterior tende a condicionar o pensamento um problema filosoacutefico-metafiacutesico genuiacuteno (se isso ainda for possiacutevel no pensamento do poeta se isso natildeo for demasiado idealista) deveria existir deveria poder se sustentar independentemente dos veiacuteculos ou dos meios no qual se corporifica e se lanccedila como mensagem exterior agraves interpretaccedilotildees alheias E a partir disso eacute liacutecito formular uma espeacutecie de ldquoregrardquo simples e laminar indispensaacutevel a uma laquo nettoyage de la situation verbaleraquo que se faz realmente rigorosa Um problema filosoacutefico enunciado de uma outra forma transposto em um outro sistema de signos sem a mediaccedilatildeo ou sem a vestimenta por exemplo das palavras da linguagem verbal permaneceria como problema e como problema filosoacutefico Um problema filosoacutefico o que dele sobra retirada a sua forma exterior Essa muacuteltipla questatildeo acena aqui para um crivo o crivo daquilo que se pode denominar aqui de traduccedilatildeo semioacutetica (natildeo meramente entre linguagens verbais mas sobretudo entre linguagens entre formas distintas de representaccedilatildeo) acena para o que pode ser cuidadosamente designado aqui de pensamento puro de semiose pura isto eacute de uma representaccedilatildeo mental natural ou natildeo convencional como o substrato mais adequado para a reflexatildeo verdadeiramente autocircnoma pensamento livre mdasheis o que enfim se buscamdash das convenccedilotildees das amarras da linguagem verbal do idioma livre justamente porque consciente delas no ato mesmo de expressaacute-las Livre de todo o laquo automatismo verbalraquo (laquo automatisme verbalraquo)

Plenamente formulada em Leacuteonard et les philosophes essa expressatildeo mesmo que natildeo abundantemente repetida eacute um dos mais significativos conceitos-chave do pensamento de Valeacutery siacutentese do que ele realmente critica na filosofia ou metafiacutesica Pois compreendendo o itineraacuterio de seus escritos como um todo eacute justamente contra o automatismo contra o automatismo de qualquer espeacutecie seja em qualquer esfera na vida privada ou puacuteblica seja consigo mesmo ou com os outros seja com relaccedilatildeo agraves crenccedilas que a sociedade natildeo raro exige seja com relaccedilatildeo a um mero problema teoacuterico que ele sempre se empenhou em se precaver e contra o qual lutar mesmo reconhecendo que isso em termos absolutos seja talvez impossiacutevel Eis a passagem na qual a expressatildeo laquo automatismo verbalraquo eacute mais eloquumlentemente formulada laquoO filoacutesofo descreve aquilo que pensou Um sistema de filosofia se resume numa classificaccedilatildeo de palavras ou num quadro de definiccedilotildees A loacutegica eacute apenas a permanecircncia das propriedades desse quadro e a maneira de usaacute-lo Eis a que estamos acostumados e porque temos que dar agrave linguagem articulada um lugar todo especial e todo central no regime de nossos espiacuteritos Eacute bem verdade que esse lugar eacute devido e que essa linguagem [] eacute quase noacutes mesmos Quase natildeo podemos pensar sem ela e natildeo podemos sem ela dirigir conservar retornar nosso pensamento e sobretudo prevecirc-lo de alguma maneira Mas olhemos um pouco mais de perto examinemos em noacutes mesmos Mal nosso pensamento tende a se aprofundar isto eacute a se aproximar de seu objeto tentando operar sobre as proacuteprias coisas (por mais que seu ato produza coisas) e natildeo mais sobre signos quaisquer que excitam as ideacuteias superficiais das coisas mal vivemos esse pensamento sentimo-lo separar-se de toda a linguagem convencional Por mais intimamente que seja tramada em nossa presenccedila e por mais densa que seja a distribuiccedilatildeo de suas chances por mais sensiacutevel que seja essa organizaccedilatildeo adquirida e por mais pronta que ela esteja a intervir podemos por esforccedilo por uma espeacutecie de aumento e por uma maneira de pressatildeo de duraccedilatildeo separaacute-la de nossa vida mental pertinaz Sentimos que nos faltam as palavras e percebemos que natildeo existe razatildeo para encontrar algumas que nos correspondem isto eacute que nos substituam porque o poder das palavras (de onde elas tiram a sua utilidade) eacute nos fazer voltar a passar pela proximidade de estados jaacute experimentados regularizar ou instituir a repeticcedilatildeo e eis que natildeo se repete nunca Talvez isso mesmo eacute que seja pensar profundamente o que natildeo quer dizer pensar mais utilmente mais exatamente mais completamente que de costume eacute apenas pensar longe pensar o mais longe possiacutevel do automatismo verbal [ penser le plus loin possible de lrsquoautomatisme verbal] Sentimos entatildeo que o vocabulaacuterio e a gramaacutetica satildeo dons estranhos res inter alios actas Percebemos diretamente que a linguagem por mais orgacircnica e indispensaacutevel que seja natildeo pode acabar nada no mundo do pensamento onde nada fixa sua natureza transitiva Nossa atenccedilatildeo distingue-a de noacutes Nosso rigor como nosso fervor nos opotildeem a elaraquo

O pensar profundamente eis a meta Na medida em que o pensamento se ldquoapegardquo agrave linguagem verbal mdashlinguagem que o artificializa ao operar com as palavras incapazes de representar a sua transitoriedademdash naturalizando-a como as roupas ao corpo ao grau de natildeo raro ser incapaz de pensar atraveacutes de outras formas e por si soacute faz-se necessaacuterio uma espeacutecie de ldquo des-automatizaccedilatildeo do verbordquo uma purificaccedilatildeo Purificaccedilatildeo que ocorre no proacuteprio programa de autoconsciecircncia valeacuteryano na lucidez na atenccedilatildeo e no esforccedilo que este demanda e do qual a praacutetica dos Cahiers e como se veraacute da poesia pura satildeo exemplos praacuteticos Purificaccedilatildeo que eacute portanto a aquisiccedilatildeo de uma consciecircncia radical do funcionamento do pensamento sobretudo durante o processo mesmo de agir de fazer algo Conhecer as relaccedilotildees entre o pensamento e a linguagem deveria ser assim se postula uma prerrogativa primeira a qualquer filosofia ou a qualquer filoacutesofo e por extensatildeo a qualquer formulaccedilatildeo teoacuterica Isso garantiria que natildeo se fosse levado a crer que determinadas palavras devem necessariamente representar objetos reais porque a existecircncia de um signo natildeo eacute a prova ou a contra-prova da existecircncia daquilo que esse signo representa O espiacuterito a consciecircncia que almeja um poder de transformaccedilatildeo real sobre o mundo e sobre si mesmo deve ater-se agraves ligaccedilotildees entre o real e as representaccedilotildees do real deve garantir-se vigilante e constantemente laquo contra o perigo de parecer perseguir um objeto puramente verbalraquo Esse espiacuterito essa consciecircncia encarna-se naturalmente nos principais personagens conceituais de Valeacutery Leonardo e Teste seriam justamente aqueles que diferentemente dos filoacutesofos possuiriam atraveacutes do meacutetodo de um ou da negatividade do outro uma maior consciecircncia da linguagem buscando natildeo se deixar enredar pelo automatismo verbal ou por qualquer outra forma de automatismo

Consequumlentemente libertados do dogmatismo semacircntico do platonismo ou realismo semacircnticos libertados desse automatismo verbal plenamente inseridos num registro cientiacutefico e teacutecnico plenamente inseridos na Modernidade dir-se-ia que agora jaacute natildeo eacute mais a tarefa a de Valeacutery a do pensador (seria este agora denominado de filoacutesofo) saber o que eacute o Tempo o Deus o Ser o Signo ou o Amor etc mas muito mais a de verificar os diversos usos ou significados que as palavras tradicionalmente propiacutecias agrave especulaccedilatildeo metafiacutesica como Tempo Deus Ser Signo ou Amor etc podem adquirir num determinado discurso numa determinada forma num determinado tempo e espaccedilo Por vezes a tarefa tambeacutem eacute a de natildeo usar ou significar essas palavras ou a de propor outros usos ou significados a elas Porque natildeo haacute mais valores constantes mas valores funcionais porque natildeo haacute mais sentido responder portanto uma das questotildees outrora fundamentais para o Pensamento Ocidental ldquoo que uma coisa eacuterdquo faz muito mais sentido responder ldquoo que uma coisa pode serrdquo O que implicaria em avaliar as possibilidades passadas e a partir delas conjeturar possibilidades futuras em resultados efetivos e reais Com efeito que as palavras e as frases sejam mudadas que se conceda e se aceite tambeacutem os usos ou os significados que o outro faz das palavras e das frases e determinados desacordos se revelariam ilusoacuterios porque entatildeo se perceberia que por vezes as pessoas dizem a mesma coisa por meios distintos Se o almejado eacute uma possiacutevel conciliaccedilatildeo entre as reflexotildees de um e outro cumpre aceitar os subentendidos as referecircncias e os ocultamentos as generalizaccedilotildees e as exceccedilotildees os excessos e as retoacutericas que nos discursos habitam cumpre aceitar ainda que nem todos se utilizam dos mesmos meios das mesmas formas das mesmas palavras mdashou mesmo de palavrasmdash para seus discursos

Compreende-se enfim sob que pressuposto a criacutetica agrave filosofia de Valeacutery se erige na concepccedilatildeo de que natildeo haacute uma hierarquia entre os diversos sistemas de signos de que a linguagem verbal natildeo eacute superior nem inferior agraves outras formas de linguagem na tarefa de representar o pensamento e principalmente que o saber natildeo se reduz agrave palavra Por conseguinte denuncia-se mais uma vez como nos escritos sobre Teste e principalmente sobre Leonardo o logocentrismo o idealismo restritivo da ideologia que tradicionalmente encara o logos mdasho discurso conceitualmdash como o uacutenico caminho seguro para a verdade natildeo raro em detrimento de todas as outras formas de representaccedilatildeo Apesar dos quase incontestaacuteveis poderes de comunicaccedilatildeo que possui apesar de ser instrumento indispensaacutevel para a comunicaccedilatildeo cotidiana e para a ciecircncia a linguagem verbal possui sim precisatildeo mas relativa e natildeo absoluta estaacute circunscrita a sua aacuterea aquilo a que foi proposta Ela natildeo poderaacute dizer o que outras formas de comunicaccedilatildeo dizem assim como as outras formas de comunicaccedilatildeo natildeo poderatildeo dizer o que ela diz Natildeo haacute equivalecircncias natildeo haacute traduccedilotildees absolutas porque toda representaccedilatildeo natildeo deixa de ser uma abstraccedilatildeo ou reduccedilatildeo do representado do contraacuterio seria o proacuteprio representado Na concepccedilatildeo de Valeacutery a filosofia mdashquando definida apenas por sua forma verbalmdash seria enfim um fenocircmeno cultural uma modalidade uma forma de pensamento entre tantas outras possiacuteveis e irredutiacuteveis entre si

412 Filosofia como forma

Filoacutesofo Valeacutery jamais se considerou ou quis se considerar dizia natildeo ter a honra de o ser como dizia em determinadas ocasiotildees tambeacutem natildeo ser literato e ateacute mesmo poeta mdashtal atitude naturalmente faz parte da sua negatividademdash Doravante muitas de suas reflexotildees mesmo fragmentadas satildeo hoje cada vez mais comumente denominadas de filosoacuteficas (justamente porque a proacutepria filosofia transformou-se tornou-se mais analiacutetica) e a sua imagem ultimamente tende a ser pela heterogecircnea evoluccedilatildeo de sua crescente fortuna criacutetica mais a do pensador do que a do poeta O que constitui um surpreendente paradoxo historiograacutefico posto que natildeo raro para o poeta poesia e pensamento abstrato natildeo satildeo necessariamente excludentes e o proacuteprio pensamento quando operando na mais intensa autoconsciecircncia possiacutevel pode ser compreendido como um processo artiacutestico Eacute por tal discrepacircncia que a criacutetica que ele lanccedila a filosofia atraveacutes da sua laquo nettoyage de la situation verbaleraquo tambeacutem deve ser aqui restringida e relativizada

Essa criacutetica tem como alvo as obras que se estendem grosso modo ateacute este periacuteodo da Histoacuteria do Pensamento no qual o Idealismo Alematildeo em geral e o monumental sistema de Hegel em particular erigem-se simultaneamente como aacutepice e fim no qual a proacutepria filosofia mdashagrave parte o sempre presente incocircmodo dos ceacuteticos e empiristas agrave qual o poeta por vezes facilmente se aproximamdash eacute amiuacutede identificada com uma metafiacutesica idealista com uma construccedilatildeo que almeja compreender o mundo em uma totalidade de sentido fechada e orgacircnica e cumpre dizer natildeo com epistemologia anaacutelise linguumliacutestica ou criacutetica social caminhos estes mais prementes e fecundos no desiludido seacuteculo XX Valeacutery teve relativo contato com correntes a ele contemporacircneas portanto com hodiernas formas de pensamento que natildeo se estabelecem que natildeo se constroem apesar das compreensiacuteveis divergecircncias entre si a partir de um princiacutepio ontoloacutegico mas principiam por uma determinada perspectiva e recorte da realidade empiacuterica uma concretude social e linguumliacutestica As escassas tradiccedilotildees filosoacuteficas que amiuacutede fazem-se explicitamente presentes em seus escritos raramente ultrapassam esse periacuteodo Referecircncias diretas a Alain (um de seus primeiros inteacuterpretes) a filoacutesofos evolucionistas e espiritualistas como Henri Bergson e Teilhard de Chardin podem ser consideradas exceccedilotildees quiccedilaacute devido agrave amizade ou correspondecircncia que com estes o poeta cultivava

Os filoacutesofos aos quais se refere nos mais polecircmicos e divertidos comentaacuterios principalmente em seus Cahiers (nos quais sempre se daacute maior liberdade em dizer disparates em ser mais aacutecido do que em sua obra puacuteblica) pertencem a esse registro anterior que ele natildeo demora em qualificar de ldquoantigordquo os Preacute-socraacuteticos satildeo caricaturados como grifos cujos laquofragmentos [] nos fazem sonhar com vestiacutegios de touros alados cabeccedilas de leatildeo extraordinaacuterias coacutepulas de profundidade e de absurdoraquo Platatildeo apesar da expliacutecita influecircncia formal ou literaacuteria natildeo recebe muito creacutedito como um dos Pais do Ocidente sobretudo pelas consequumlecircncias da Teoria das Ideacuteias Aristoacuteteles poucas satildeo as foacutermulas que do filoacutesofo de Estagira se pode reter Plotino e Espinosa dois dos grandes monistas sofrem de uma tremenda ldquoingenuidaderdquo metafiacutesica e Kant eacute um laquoatordoadoraquo (laquoeacutetourdiraquo) que apesar da intrincada cesura epistemoloacutegica que instaura natildeo foi radical o suficiente em suas criacuteticas Pascal eacute certamente um dos mais atacados natildeo simplesmente porque desgosta da pintura mas principalmente porque diferentemente de Leonardo divide o espiacuterito a consciecircncia em meacutetodos distintos Quanto a Hegel Valeacutery diz com ldquocerto orgulhordquo que jamais o leu Em contrapartida pensadores (tambeacutem sistecircmicos) como Santo Tomaacutes de Aquino (por natildeo separar de todo o corpo e a alma e por natildeo rebaixar a razatildeo) como Llull e Leibniz (de ambos pela forccedila analiacutetica e pela conjetura de uma linguagem perfeita pura) possuem outro e relativo estatuto na sua contraditoacuteria hierarquia de valores e gostos Tambeacutem os que se estabelecem num registro de desconstruccedilatildeo da Metafiacutesica Ocidental como Marx Schopenhauer e Nietzsche parecem receber entretanto alguma e contida admiraccedilatildeo Das Kapital e Die Welt als Wille und Vorstellung lhe pareceram performances esplecircndidas e a aforiacutestica e contraditoacuteria obra do criador do Zaratustra moderno se natildeo lhe era um alimento era-lhe um verdadeiro excitante Todavia sobre os filoacutesofos as consideraccedilotildees de Valeacutery revelam toda a sua ambiguumlidade quando ele se refere a Descartes a ceacutelebre foacutermula ldquo cogito ergo sumrdquo certeza primeira e momento de superaccedilatildeo do ldquoceticismo metoacutedicordquo natildeo possui para o poeta ldquosentidordquo algum pois demonstra o quanto um homem pode ser laquoldquomedusadordquo pelo verbo Serraquo jaacute que o verbo ldquoserrdquo quando nada conecta tambeacutem carece de sentido todavia possui um grande ldquovalorrdquo natildeo eacute um ldquosilogismordquo ou um ldquopostuladordquo eacute um ldquoGolpe de estadordquo intelectual a afirmaccedilatildeo daquilo que ele denominou de egotismo cartesiano a afirmaccedilatildeo da consciecircncia do Eu que confia na sua proacutepria capacidade em formular um conhecimento seguro sobre si e sobre o mundo Egotismo do qual Valeacutery eacute herdeiro Enumerando-se assim o que ele escreveu sobre filoacutesofos especiacuteficos suas avaliaccedilotildees soam profundamente injustas quase crueacuteis Entretanto parece haver uma espeacutecie de burla de ironia e cinismo quanto a essas qualificaccedilotildees quando o leitor depara-se com frases como esta laquoEacute necessaacuterio ser profundamente injusto Senatildeo natildeo se misture nisso mdash Seja justoraquo

A importacircncia dessas irocircnicas consideraccedilotildees sobre filoacutesofos especiacuteficos reside em grande medida no conceito que Valeacutery formula sobre a ldquonaturezardquo ou ldquopraacuteticardquo da filosofia e natildeo apenas nas suas severas criacuteticas a ela Para o poeta laquo toda Filosofia eacute uma questatildeo de formaraquo mdashesse eacute um dos seus mais caracteriacutesticos leitmotivmdash laquoa forma mais compreensiacutevel que um determinado indiviacuteduo pode dar ao conjunto de suas experiecircncias internas ou externas e isso independente dos conhecimentos que possa possuir esse homemraquo isto eacute a organizaccedilatildeo que um determinado indiviacuteduo pode dar pelo discurso pela representaccedilatildeo verbal natildeo raro sistecircmica e doutrinaacuteria de tudo o que percebe conjetura e sonha de todas as suas lembranccedilas e esquecimentos de tudo o que pode condensar resumir A filosofia eacute nesse sentido uma tentativa de se passar no plano da representaccedilatildeo do caos agrave ordem ou melhor de dar ordem a certo caos uma tentativa de se hierarquizar em escalas de valores a realidade enquanto totalidade e unidade de sentido laquoA vasta empreitada da filosofia considerada no proacuteprio coraccedilatildeo do filoacutesofo consiste [] numa tentativa de transmutar tudo o que sabemos no que gostariacuteamos de saber e essa operaccedilatildeo exige ser efetuada ou ao menos apresentaacutevel numa certa ordemraquo Em qualquer lugar ou periacuteodo que ocorra a filosofia adveacutem das leituras e das interpretaccedilotildees das escutas e das conversas dessa divisatildeo e anaacutelise dessa soma e siacutenteses de sensaccedilotildees e reflexotildees sobre as experiecircncias dos sofrimentos daqueles e somente daqueles que a empreenderam eacute portanto consequumlecircncia de uma relaccedilatildeo relaccedilatildeo entre uma pessoa temperamento ou idiossincrasia frente agraves circunstacircncias particulares nas quais essa mesma pessoa inevitavelmente se insere a cada momento Daiacute a ecircnfase no seu caraacuteter eminentemente pessoal Contudo isso eacute justamente aquilo que a filosofia natildeo deseja ser Seu laquo viacutecio fundamentalraquo eacute a sua pretensatildeo agrave pura impessoalidade objetividade e universalidade a ser vaacutelida para todos e em qualquer periacuteodo ou lugar laquoEla eacute uma coisa pessoal e natildeo quer secirc-lo Ela quer formar como a ciecircncia um capital transmissiacutevel sempre crescente Daiacute os sistemas que pretendem ser de ningueacutemraquo

E essa pretensatildeo se explicita principalmente nas sempre fracassadas tentativas do filoacutesofo por vezes movido por boa-feacute ou por outros escamoteados interesses em fazer da sua filosofia uma Eacutetica e uma Esteacutetica e destas natildeo apenas disciplinas teoacutericas e hermenecircuticas mas doutrinas natildeo apenas descriccedilotildees e reflexotildees mas normas e regras Ele almeja laquoconstruir para si uma ciecircncia dos valores da accedilatildeo e uma ciecircncia dos valores da expressatildeo ou da criaccedilatildeo das emoccedilotildees mdash uma EacuteTICA e uma ESTEacuteTICA mdash como se o Palaacutecio do seu Pensamento tivesse de parecer-lhe imperfeito sem essas duas alas simeacutetricas nas quais seu Eu todo-poderoso e abstrato poderia manter cativa a paixatildeo a accedilatildeo a emoccedilatildeo e a invenccedilatildeo Todo o filoacutesofo depois que terminou com Deus com Si-Mesmo com Tempo o Espaccedilo a Mateacuteria as Categorias e as Essecircncias volta-se para os homens e suas obras Por conseguinte assim como havia inventado o Verdadeiro o Filoacutesofo inventou o Bem e o Belo e assim como havia inventado as regras de consonacircncia do pensamento isolado consigo mesmo do mesmo modo ocupou-se em prescrever regras de conformidade da accedilatildeo e da expressatildeo a preceitos ou a modelos subtraiacutedos aos caprichos e agraves duacutevidas de cada um pela consideraccedilatildeo de um Princiacutepio uacutenico e universal que ele precisa portanto antes de qualquer coisa e independente de toda a experiecircncia particular definir ou designar [] da mesma forma que ainda estamos bastante presos agrave ideacuteia de uma ciecircncia pura desenvolvida com todo rigor a partir de evidecircncias locais cujas propriedades poderiam estender-se indefinitivamente de identidade em identidade estamos ainda meio convencidos da existecircncia de uma Moral e de uma Beleza independentes dos tempos dos lugares das raccedilas e das pessoasraquo Em outras palavras apoacutes ter formulado a sua ordem isto eacute a sua filosofia o filoacutesofo volta-se mdashcomo tatildeo bem intuiu Nietzschemdash para o querer normatizar e regrar para o querer disciplinar controlar e comandar natildeo apenas a si mesmo mas tambeacutem e principalmente o outro o modo como o outro deve agir (Eacutetica) e o modo como o outro deve se expressar (Esteacutetica)

Todavia para Valeacutery todo esse movimento parte de um falso pressuposto Pois juiacutezos de valor como os representados pelas categorias de bem e mal de belo e feio soacute existem em relaccedilatildeo a um determinado tipo de sujeito que estabelecendo criteacuterio de distinccedilotildees o enuncia e que supostamente aceita para si para seu mundo a operacionalidade de tais juiacutezos Apesar de poderem ser culturalmente compartilhados juiacutezos de valor eacuteticos ou esteacuteticos ou melhor o significado e o valor de um modo de agir e de um modo de exprimir pertencem agrave esfera da subjetividade Aquele que manteacutem a pretensatildeo de fornecer ou de impor uma filosofia aplicaacutevel a todos os outros ignora ou finge ignorar que os outros natildeo precisam aderir necessariamente agraves mesmas crenccedilas Eacutetica e Esteacutetica soacute podem ser disciplinas teoacutericas e hermenecircuticas descriccedilotildees e reflexotildees do contraacuterio configuram-se como laquoproblemas de legislaccedilatildeo de estatiacutestica de histoacuteria ou de fisiologia em ilusotildees perdidasraquo Para o poeta toda filosofia natildeo deixa de ser assim consciente ou inconscientemente uma autobiografia cuidadosamente velada do proacuteprio filoacutesofo que a faz e todos os problemas filosoacuteficos antropomorfismos natildeo raro falseados em verdades

Eacute vatildeo toda a pretensatildeo em desejar tornar pura impessoal objetiva e universal a forma a ordem pessoal que constitui qualquer filosofia Porque afinal o mundo eacute prenhe de cores e contrastes de diferenccedilas E em cada momento o outro a existecircncia do outro a existecircncia de modos de pensar e de viver diferentes daquele que se crecirc como o correto e o verdadeiro denuncia a extrema fragilidade das filosofias enquanto doutrinas universais e incita naturalmente a adesatildeo a um maior ldquorelativismordquo laquoNa verdade a existecircncia dos outros eacute sempre inquietante para o esplecircndido egoiacutesmo de um pensador Pode acontecer no entanto que ele natildeo se choque com o grande enigma que o arbitraacuterio de outrem lhe propotildee O sentimento o pensamento o ato de outrem quase sempre nos parecem arbitraacuterios Toda preferecircncia que damos aos nossos noacutes a fortificamos mediante uma necessidade da qual acreditamos ser o agente Mas afinal o outro existe e o enigma nos oprimeraquo Daiacute Valeacutery reconhecer que natildeo eacute possiacutevel ou ao menos extremamente difiacutecil o consenso absoluto a compatibilidade exata entre os variados sistemas ou doutrinas filosoacuteficas entre as variadas eacuteticas e esteacuteticas daiacute tambeacutem dizer natildeo sem ironia considerar um laquoproblema capital da filosofiaraquo a seguinte pergunta astuta e relativamente proacutexima do tropo ceacutetico da diaphocircnia das opiniotildees laquo Como isto pode acontecer que exista mais de uma filosofiaraquo [Grifo do autor] Que esta entatildeo seja aquilo que natildeo pode deixar de ser forma ou ordem pessoal

Assim sendo o poeta natildeo pode deixar de considerar a filosofia tambeacutem como um modo de vida Sabe entretanto que na Modernidade este tende a se dissociar daquela algo pouco frequumlente no pensamento da Antiguumlidade Claacutessica e do Oriente Um estoacuteico um ceacutetico e um ciacutenico um Soacutecrates e um Dioacutegenes um platocircnico todos ou quase todos aqueles que se integravam agraves escolas filosoacuteficas natildeo compreendiam as doutrinas como separadas como isoladas da vida Para esses homens tatildeo distantes da fragmentada vida moderna treinados a pensar o mundo como racionalmente ordenado a filosofia seu centro localizava-se muito mais numa determinada e correta atitude ante o mundo ante o outro e ante si mesmo natildeo apenas em sua interpretaccedilatildeo e compreensatildeo em sua teorizaccedilatildeo Era realmente um modo de vida associado ou relativo a uma forma ou ordem pessoal de compreender o mundo e natildeo apenas uma forma ou ordem pessoal de compreender o mundo Com isso revela-se algo fundamental na condiccedilatildeo de grande parte do pensamento da Modernidade o filoacutesofo (agora mero autor ou escritor) pode ser algo totalmente dissociado e dissonante de sua proacutepria filosofia (agora mera obra ou escritura) Mas Valeacutery mdashao menos no que se depreende de seu proacuteprio programa de autoconsciecircnciamdash natildeo credita que essa dissociaccedilatildeo seja necessariamente adequada ou salutar para o sujeito o pensamento cumpre ser sim um instrumento para a vida mdashpois ele jaacute eacute uma resposta para a vidamdash

Por isso e por tantas foacutermulas paradoxais sobre a impermanecircncia do espiacuterito da consciecircncia e do mundo alguns criacuteticos o aproximaram natildeo apenas do Pensamento Antigo mas tambeacutem do pensamento do Oriente em particular do Budismo segundo o qual a ldquofilosofiardquo natildeo passa de um veiacuteculo tal qual um barco usado para atravessar um rio mas que deve ser abandonado na outra margem jaacute que de nada serviria carregaacute-lo em terra Para o poeta toda laquoFilosofia eacute vatilde quando natildeo tende a modificar os filoacutesofos em profundidade - ou mais filoacutesofo (no meu sentido) eacute aquele que tende a se modificar em profundidade atraveacutes de exerciacutecios [] de atos propriamente emanados do espiacuteritoraquo O valor do pensamento ou de uma teoria reside menos na verdade que esse pensamento e essa teoria possam conter e como Leonardo e sobretudo Teste demonstram mais nos efeitos que possam causar no espiacuterito na consciecircncia na capacidade em modificar ou eliminar crenccedilas haacutebitos mentais laquoO verdadeiro valor das lsquoteoriasrsquorsquo natildeo eacute o valor teoacuterico Mas antes os efeitos reaisraquo A mera reflexatildeo sobre o mundo possui relativa importacircncia se natildeo tem como fim fazer daquele que reflete cada vez mais senhor de si mesmo consciente de seus poderes de suas possibilidades de sua accedilatildeo de seu fazer

413 Filosofia como literatura

O modo como Valeacutery encara a filosofia eacute portanto extremamente ambiacuteguo Se por um lado ele a repudia a condena sem poupar duras criacuteticas como uma praacutetica esteacuteril natildeo cientiacutefica e verbal natildeo raro desprovida da consciecircncia dessas caracteriacutesticas e por isso fadada a um labirinto de falsos problemas por outro como nas passagens finais de Leacuteonard et les philosophes a resgata a salva mdashe o que eacute surpreendente natildeo raro justamente pelo mesmo motivo justamente pelos mesmos argumentos por ser natildeo cientiacutefica e verbalmdash natildeo apenas como um modo de vida o que na Modernidade eacute para ele bastante difiacutecil mas tambeacutem e explicitamente como um laquo gecircnero literaacuterio particularraquo na medida em que ela natildeo deixa de ser como a poesia da qual natildeo deseja se identificar um uso particular das palavras distante do pragmaacutetico uso cotidiano ordinaacuterio A filosofia laquodefinida por sua obra que eacute obra escritaraquo assim sintetiza Valeacutery laquoeacute objetivamente um gecircnero literaacuterio particular caracterizado por certos assuntos e pela frequumlecircncia de certos termos e de certas formas Esse gecircnero tatildeo particular de trabalho mental e de produccedilatildeo verbal tem pretensotildees no entanto a uma situaccedilatildeo suprema pela generalidade de seus propoacutesitos e de suas foacutermulas mas como ele eacute destituiacutedo de toda e qualquer comprovaccedilatildeo exterior como natildeo culmina na instituiccedilatildeo de nenhum poder como essa generalidade mesma que evoca natildeo pode e nem deve ser considerada transitoacuteria como meio nem como expressatildeo de resultados comprovaacuteveis devemos colocaacute-lo natildeo muito afastado da poesiaraquo

Essas palavras revelam a polecircmica perspectiva a siacutentese na qual desemboca o mdashporque natildeo dizer contraditoacuteriomdash pensamento do poeta acerca da filosofia o qual tambeacutem pode ser assim enunciado ao criticar a filosofia Valeacutery a estetiza a compreende como arte ao criticar o filoacutesofo Valeacutery o compreende como artista um artista que em geral se ignora que natildeo possui consciecircncia do caraacuteter ficcional ou ao menos dos elementos ficcionais do seu proacuteprio pensamento Nessa valoraccedilatildeo talvez resida uma outra e uacuteltima estrateacutegia da sua proacutepria criacutetica mais humorada mas tambeacutem muito mais desconcertante do que simplesmente apontar as supostas ilusotildees nas quais adentra a filosofia seus possiacuteveis contra-sensos Pois diante de qualquer argumento pode-se muito bem contra-argumentar diante de uma proposiccedilatildeo pode-se muito bem apresentar a proposiccedilatildeo contraacuteria mas diante de um ldquo juiacutezo esteacuteticordquo diante de uma confissatildeo de uma assertiva de caraacuteter pessoal que reza simplesmente desconfiar da verdade de uma doutrina e em contrapartida tambeacutem reza sentir a harmonia e a beleza dessa mesma doutrina o jogo torna-se outro Dir-se-ia que natildeo se pode refutar o que um outro sente ou diz sentir natildeo se pode refutar o que um outro aprecia ou diz apreciar natildeo se pode simplesmente porque mdashse for dado creacutedito a esse outromdash natildeo faz sentido refutar a interioridade alheia Interioridade somente acessiacutevel agravequele eu que a vive

Contudo a justificativa para tal valoraccedilatildeo se baseia em grande medida numa certa ldquo consciecircncia histoacutericardquo na compreensatildeo das possibilidades e impossibilidades do tempo presente no tipo de escrita que eacute hoje passiacutevel de ser escrita e no tipo de crenccedila que eacute hoje passiacutevel de ser creditada Porque talvez somente laquouma interpretaccedilatildeo esteacuteticaraquo poderia realmente resgatar salvar a filosofia do processo de laicizaccedilatildeo da Modernidade do desenvolvimento da Matemaacutetica e da Ciecircncia Moderna e do desenvolvimento do espiacuterito que analisa minuciosamente tudo pelo prisma da linguagem somente assim poder-se-ia laquosubtrair agrave ruiacutena de seus postulados mais ou menos ocultos aos efeitos destrutivos da anaacutelise da linguagem e do espiacuterito os veneraacuteveis monumentos da metafiacutesicaraquo Afinal o que restaria dessa atividade tatildeo intensamente praticada idolatrada e vituperada mas laquoassediada obsedada por descobertas cuja imprevisibilidade deu origem agraves maiores duacutevidas sobre sua virtude e sobre os valores das ideacuteias e das deduccedilotildees do espiacuterito reduzido Em que se transforma quando pressionada oprimida atravessada surpreendida a cada instante pela furiosa atividade das ciecircncias fiacutesicas [] hostilizada e ameaccedilada em seus haacutebitos os mais antigos os mais tenazes (e talvez os mais lamentaacuteveis) pelo trabalho lento e minucioso dos filoacutelogos e dos linguumlistas Em que se transforma Eu penso e em que se transforma Eu existo O que se torna ou o que volta a ser esse verbo Ser que fez uma carreira tatildeo grande no vazioraquo A perspectiva de Valeacutery como notou Jean Sebeski aproxima-se assim da perspectiva de Carnap segundo o qual o metafiacutesico eacute um laquomuacutesico sem talento musicalraquo Mas haacute uma diferenccedila capital Enquanto o filoacutesofo parte para o desdenho no intento positivista de purgar o pensamento racional de toda a preocupaccedilatildeo e de todo elemento ontoloacutegico o poeta encara a proacutepria metafiacutesica como uma forma de arte realmente genuiacutena O poeta ousa inclusive comparaacute-la agraves grandes estaacutetuas de distantes eacutepocas cuja funccedilatildeo maacutegico-ritual foi pouco a pouco abolida e substituiacuteda por uma funccedilatildeo esteacutetica quando entatildeo o que eacute deveras caracteriacutestico da Modernidade laica a estaacutetua do deus tornou-se obra de arte laquo o iacutedolo se fez beloraquo laquoPoderia eu sem chocarraquo pergunta-se Valeacutery laquosem irritar cruelmente o sentimento filosoacutefico comparar essas verdades tatildeo adoradas esses princiacutepios essas Ideacuteias esse Ser essas Essecircncias essas Categorias esses Nuacutemenos esses Universo toda essa infinidade de noccedilotildees que parecem sucessivamente necessaacuterias aos iacutedolos de que eu estava falando Indaguem-se agora que filosofia seria para a filosofia tradicional o que eacute uma estaacutetua do seacuteculo V para as divindades sem rosto dos seacuteculos muito remotosraquo Em outras palavras se a filosofia se dessacraliza se a crenccedila no conteuacutedo nos conceitos de uma filosofia desaparece ou se transforma radicalmente entatildeo que ao menos permaneccedila a sua forma que ao menos permaneccedila reabilitada como forma laquoSeraacute possiacutevel que o filoacutesofo pense que uma Eacutetica ou uma Monadologia sejam coisas mais seacuterias que uma suite em reacute menorraquo o poeta novamente se pergunta laquoSe refutarmos um Platatildeo um Espinosa natildeo restaraacute pois nada de suas espantosas construccedilotildees Natildeo resta absolutamente nada se natildeo restarem obras de arteraquo Exposta assim de modo intenso dramaacutetico essa concepccedilatildeo remete mais ao estetismo de um Oscar Wilde do que de um Novalis e sobretudo de um Mallarmeacute para quem mdashlaquoo mundo foi feito para terminar num belo livroraquo (laquole monde est fait pour aboutir agrave un beau livreraquo)mdash

A proposta em estetizar a filosofia natildeo deixa de ser fruto de uma concepccedilatildeo de mundo que preza ou priorize o lado formal da existecircncia (em contraposiccedilatildeo aos ldquoidealismosrdquo e ldquoessencialismosrdquo) o lado loacutegico ou semioacutetico Proposta essa que reverberou numa determinada genealogia da literatura posterior Basta pensar nas obsessotildees metafiacutesicas de um Jorge Luis Borges e nos jogos metalinguumliacutesticos de um Iacutetalo Calvino autores confessadamente influenciados por Valeacutery basta pensar nesse tipo de ficccedilatildeo e poesia por vezes denominada Poacutes-moderna na qual haacute uma permanecircncia tanto de referecircncias a diversas tradiccedilotildees de pensamento quanto de questionamentos acerca da estrutura ontoloacutegica da realidade Estetizar a filosofia aponta assim para um ideaacuterio literaacuterio possiacutevel cujo objetivo eacute sobretudo transformar ou encarar a proacutepria filosofia seus sistemas ou doutrinas seus filosofemas suas perguntas e respostas suas problemaacuteticas assim como as problemaacuteticas gnosioloacutegicas e epistemoloacutegicas em literatura ou melhor em literatura fantaacutestica Os poemas os personagens conceituais e os diaacutelogos socraacuteticos de Valeacutery assim como suas Histoires briseacutees e em seus projetos de contos contidos em seus Cahier natildeo deixam de ser exemplos praacuteticos dessa proposta laquoDecirc-me uma pluma um papelraquo provocava o poeta laquomdash que eu vos escreverei um livro de histoacuteria um texto sagrado como o Alcoratildeo ou os Vedas Eu inventarei um rei da Franccedila uma cosmogonia uma moral e uma gnose O que preveniria um ignorante e uma crianccedila que eu os engane Em que eacute diferente a imaginaccedilatildeo excitada por textos falsos da imaginaccedilatildeo excitada por textos autecircnticosraquo

O estetismo de Valeacutery estaacute portanto intimamente relacionado com essa sua desconfianccedila ante as pretensotildees da filosofia agrave pura impessoalidade objetividade e universalidade ante as pretensotildees dos filoacutesofos a modificar a vida Escrever literatura fazer arte tambeacutem acaba se tornando para o poeta um natildeo pretender dogmatizar reflexotildees metafiacutesicas um natildeo passar a valorar conjeturas como verdades Ele compreende e faz compreender enfim que o pensamento deve ser livre do opressivo dever de buscar pela proacutepria verdade (o que natildeo impede de se ir buscaacute-la) que laquoo ensinamento da filosofia quando natildeo eacute acompanhado do ensinamento da liberdade de cada espiacuterito natildeo soacute com relaccedilatildeo agraves doutrinas mas tambeacutem com relaccedilatildeo aos proacuteprios problemas eacute a meu ver antifilosoacutefico Trata-se de criar a necessidade de uma voluacutepia de filosofarraquo Se a filosofia natildeo cumpre ser feita por prazer cumpre ser feita com prazer

5 Poeacutetica

Agrave anulaccedilatildeo da razatildeo como caminho para aquele autecircntico humano preferiu o excesso de razatildeo de trabalho intelectual na luta pelo autecircntico

Joatildeo Cabral de Melo Neto Joan Miroacute

51 Poesia criacutetica

A Poeacutetica Claacutessica de Platatildeo a Horaacutecio e outros passando por Aristoacuteteles possui em geral um caraacuteter descritivo e ou um caraacuteter prescritivo em outras palavras almeja respectivamente descrever a poesia feita ateacute entatildeo teorizaacute-la em termos de passado ou prescrever regras do que seria a boa poesia teorizaacute-la em termos de futuro Naturalmente essa distinccedilatildeo mais didaacutetica do que efetiva ocorre por vezes de um modo natildeo muito preciso Uma mesma obra poeacutetica pode ser ambiguamente tanto normativa quanto prescritiva dependendo das passagens que se escolha e interprete

Doravante esse duplo caraacuteter permanece na Poeacutetica Moderna apesar desta ser natildeo raro mais refrataacuteria agrave formulaccedilatildeo de regras fixas para o proacuteprio fazer poeacutetico consciente do problemaacutetico dogmatismo que frequumlentemente surge quando o filoacutesofo ou o teoacuterico se propotildee a guiar o poeta ou qualquer forma de arte Entretanto com o desenvolvimento na histoacuteria da poesia da necessidade em se expressar uma consciecircncia criacutetica de um eu ou uma voz cada vez mais expliacutecito e de um impulso por vezes confessional e autobiograacutefico por parte dos poetas desenvolve-se e acentua-se um terceiro caraacuteter que natildeo raro mescla-se e se confunde aos outros dois de um modo por vezes indissociaacutevel agora com uma insistente frequumlecircncia natildeo satildeo apenas os filoacutesofos ou os teoacutericos que teorizam sobre o fazer poeacutetico mas tambeacutem os proacuteprios poetas os proacuteprios fazedores de poemas E estes diferentemente daqueles amiuacutede fazem uma poeacutetica na qual natildeo somente descrevem padrotildees poeacuteticos passados e ou futuros natildeo somente descrevem e ou prescrevem mas tambeacutem chegam a refletir mdashe ousam revelarmdash as suas opccedilotildees esteacuteticas os seus itineraacuterios os seus processos as suas consideraccedilotildees pessoais acerca da poesia e por vezes o que eacute mais significativo os seus proacuteprios modos de fazer o poema as suas proacuteprias operaccedilotildees durante o fazer o poema Os avanccedilos e os retrocessos os acertos e os erros os acreacutescimos e os cortes as inuacutemeras decisotildees os acasos os arrependimentos as noites de vigiacutelia toda uma seacuterie de eventos outrora relativamente ocultados ou esquecidos tambeacutem agora podem ser expostos agrave luz sem que isso venha necessariamente enfraquecer a poesia do poeta que expotildee tais eventos seja atraveacutes de obras teoacutericas em prosa ou mesmo em poemas Os poetas tornam-se ou melhor revelaram ser mdashem palavras em escritosmdash o que sempre foram comentadores e inteacuterpretes criacuteticos de si mesmos de suas proacuteprias criaccedilotildees pois laquotodos os poetas verdadeiros satildeo necessariamente criacuteticos de primeira ordemraquo A poesia se revela extremamente criacutetica

Poe pode ser considerado como um dos principais arautos dessa concepccedilatildeo do que seja a poeacutetica a Poeacutetica Moderna seus ensaios The poetic principle e Philosophy of composition tornaram-se canocircnicos quanto a isso mesmo que soem para alguns leitores contemporacircneos relativamente artificiosos O paradigma que nesses ensaios se encerra influenciou em muito uma plural linhagem de poetas modernos altamente conscientes das possibilidades e dos limites da liacutengua que vai de Baudelaire a Mallarmeacute e chega a Valeacutery o qual acentua e modifica essas caracteriacutesticas a um grau extremo A laquoera de autoridade nas artes haacute muito tempo estaacute terminadaraquo lecirc-se na sua Premiegravere leccedilon du cours de poeacutetique laquoe a palavra ldquoPoeacuteticardquo soacute desperta agora a ideacuteia de prescriccedilotildees incocircmodas e antiquadas Acreditei entatildeo poder resgataacute-la em um sentido que contempla a etimologia sem ousar contudo pronunciaacute-la Poiumleacutetique [palavra] da qual a fisiologia se serve quando fala de funccedilotildees hematopoeacuteticas ou galactopoeacuteticas Mas eacute enfim a noccedilatildeo bem simples de fazer que eu queria exprimir O fazer o poiumlein do qual desejo me ocupar eacute aquele que termina em alguma obra e que eu acabarei restringindo em breve a esse gecircnero de obras que se convencionou chamar de obras do espiacuterito Satildeo aquelas que os espiacuteritos fazem para seu proacuteprio uso empregando para esse fim todos os meios fiacutesicos que possam lhe servirraquo

Questions de poeacutesie Poeacutesie et penseacutee abstraite Propos sur la poeacutesie Neacutecessiteacute de la poeacutesie Celepin drsquoun poegravete Fragments des meacutemoires drsquoun poegraveme Le prince et la Jeune Parque Au sujet du lsquoCimetiegravere Marinrsquo Commentaire de lsquoCharmesrsquo etc assim como certas paacuteginas dos Cahiers satildeo outros tantos escritos nos quais esse caraacuteter eminentemente pessoal eacute assumido A reflexatildeo sobre a poesia e sobre o fazer poeacutetico mdashisto eacute a poeacutetica como aqui entatildeo se compreendemdash transforma-se ou se expande nesses escritos como que inevitavelmente em um discurso sobre a linguagem (natildeo por acaso que muito da criacutetica agrave filosofia tecida pelo poeta tambeacutem neles se encontram e com ela se confundem) revelando assim toda a concepccedilatildeo ldquoesteacuteticardquo valeacuteryana esta que mdashparticularizaccedilatildeo de sua concepccedilatildeo geral das atividades humanasmdash preza mais laquo a accedilatildeo que faz do que a coisa feitaraquo o fazer do que o resultado do fazer a feitura do poema do que o poema Concepccedilatildeo que tambeacutem pode ser sintetizada pela seguinte maacutexima inuacutemeras vezes atualizada laquoEacute a execuccedilatildeo de um poema que eacute um poemaraquo (laquoCrsquoest lrsquoeacutexecution du poegraveme qui est le poegravemeraquo) Porque eacute na execuccedilatildeo das coisas que para o poeta o valor das coisas adquire legitimidade

511 Poesia pura

O poeta diz e ao dizer faz Este fazer eacute sobretudo um fazer-se a si mesmo a poesia natildeo eacute soacute autoconhecimento mas tambeacutem autocriaccedilatildeo

Octaacutevio Paz Os filhos do limbo

A Antiguumlidade Claacutessica frequumlentemente compreende a poesia como o resultado de uma tendecircncia natural agrave imitaccedilatildeo mas apresenta divergecircncias significativas quanto ao estatuto desta seu lugar na hierarquia de valores das atividades humanas No capiacutetulo X da Repuacuteblica Platatildeo contemplando a capacidade da poesia em excitar as emoccedilotildees notadamente do verso dramaacutetico condena-a e expulsa-a da cidade ideal por perturbar a alma que natildeo deve ser escrava mas senhora das paixotildees Na Poeacutetica Aristoacuteteles contemplando a capacidade da poesia em representar o universal notadamente da trageacutedia valora-a como verdade todavia uma verdade que estaacute agrave meia distacircncia entre a historiografia inferior a ela e a filosofia superior a ela De qualquer modo seja em qual gecircnero ou forma encarne seja a que propoacutesito sirva a poesia seu estatuto hieraacuterquico dado pelo pensamento filosoacutefico raramente foi de igual ou superior valor ao proacuteprio pensamento filosoacutefico este quase sempre se considerou um aacutepice entre todas as inuacutemeras modalidades do pensar dir-se-ia natildeo sem muito exagero que aquele que trabalha atraveacutes da ldquorazatildeordquo daacute-se o direito de ter razatildeo Concomitantemente a faculdade da imaginaccedilatildeo amiuacutede associada ao trabalho poeacutetico apesar de ser um ldquoveiacuteculordquo poderoso na manutenccedilatildeo da memoacuteria e da identidade tambeacutem natildeo deixou de ser valorada de um modo relativamente anaacutelogo Quiccedilaacute somente com o pensamento de Vico confessadamente avesso ao racionalismo cartesiano e sensiacutevel agrave forccedila poeacutetica do mito na formaccedilatildeo e no destino das civilizaccedilotildees e em certas vertentes do Romantismo como no caso do pensamento de Schiller que chega a identificar o estado poeacutetico com o absoluto eacute que essa perspectiva no cenaacuterio do Pensamento Ocidental comeccedila a se transformar As emoccedilotildees natildeo satildeo mais compreendidas apenas por uma perspectiva estoacuteica como estados necessariamente negativos e a poesia passa a ser julgada natildeo mais como uma verdade parcial incompleta imperfeita mas como um mundo de sentido pleno

Todavia mesmo natildeo sendo mais considerada como inferior ao pensamento filosoacutefico haacute toda uma mentalidade uma corrente relativamente dominante que a compreende e julga como contraacuteria ao proacuteprio pensamento filosoacutefico como algo pouco racional ou puramente irracional como sendo o resultado direto de emoccedilotildees sem a mediaccedilatildeo do intelecto e como tal visando despertar no outro no ouvinte ou leitor de poesia emoccedilotildees relativamente anaacutelogas a poesia como um objeto verbal feito pela faculdade da imaginaccedilatildeo e para a faculdade da imaginaccedilatildeo e nada mais a poesia como um furor verbal e nada mais Consequumlentemente o poeta tambeacutem acaba sendo estereotipado e muito como uma idiossincrasia contraacuteria agrave do filoacutesofo como relativamente incapaz de um pensamento rigoroso e analiacutetico conceitual em se ater demoradamente no caminho da razatildeo posto cegamente entregue ao intenso mundo dos sentimentos e das emoccedilotildees das imagens

eacute justamente contra essa mentalidade contra essa corrente que a poeacutetica de Valeacutery se insurge laquoEu aspiro uma arte toda fundada sobre a inteligecircnciaraquo escreve ele laquomdash isto eacute natildeo excluindo os inconscientes (o que natildeo faria sentido) mas os evocando [] segundo a ocasiatildeo e sobretudo os provocando assinalando-lhes os problemasraquo Sem jamais adentrar na perspectiva de Vico atrelada a preocupaccedilotildees teoloacutegicas e a do Romantismo que na sua perspectiva natildeo raro exagera e eleva a poesia e o poeta a patamares miacuteticos e divinos ele compreende de um outro modo a arte que praticou com tanta precisatildeo e preciosismo como uma ativaccedilatildeo das potencialidades do intelecto como uma laquofesta do Intelectoraquo Dir-se-ia que ele concilia mdashou reconcilia posto ser legiacutetimo pensar que ldquooriginalmenterdquo havia uma unidade das esferas de sentidos e atividadesmdash a poesia e o pensamento ou nas suas proacuteprias palavras a poesia ( poeacutesie) e o pensamento abstrato ( penseacutee abstraite) conceitual a praacutetica do poeta e a praacutetica do pensador a razatildeo e a imaginaccedilatildeo a razatildeo de Teste e a imaginaccedilatildeo de Leonardo Essa conciliaccedilatildeo mdashnatildeo distante ou mesmo complementar a da empreendida entre corpo e alma executada nos seus diaacutelogos socraacuteticosmdash estaacute sob o signo do conceito ou do ideaacuterio esteacutetico daquilo que comumente se designa com a polecircmica expressatildeo poesia pura ( poeacutesie pure) E esta pode ser interpretada aqui atraveacutes de dois ideais que no fundo satildeo indissociaacuteveis o que postula aquilo que o poema deve se tornar e o que postula aquilo que o fazer o poema deve se tornar

Com relaccedilatildeo ao primeiro ideal a poeacutetica de Valeacutery natildeo deixa de ser herdeira e criacutetica de uma variada corrente de poetas e artistas aquela que iraacute determinar em muito o destino da Modernidade literaacuteria do seacuteculo XX o Simbolismo As intensas leituras de poetas como Poe e Baudelaire Verlaine e Rimbaud e posteriormente quando jaacute morando Paris o haacutebito de frequumlentar mdashtal como W B Yeats Rainer Maria Rilke Stefan George Oscar Wilde e Andreacute Gidemdash na Rue Rome agraves terccedilas-feiras as soireacutees no salatildeo de seu mais querido e enigmaacutetico mestre Mallarmeacute que promovia discussotildees interminaacuteveis acerca do trabalho e do destino do mundo artiacutestico e filosoacutefico eis o que talvez tenha alimentado num jovem poeta da proviacutencia uma certa imagem da poesia e o ldquo encorajourdquo mdashnote-semdash natildeo agrave escritura de poemas mas a empreender reflexotildees a escrever sobre o fazer poeacutetico (Haacute que se dizer que o primeiro encontro de Valeacutery com Mallarmeacute ocorreu justamente logo apoacutes o periacuteodo de crise e a Noite de Gecircnova portanto logo apoacutes a decisatildeo natildeo cumprida em abandonar a poesia mas tambeacutem logo apoacutes a decisatildeo em escrever sobre o espiacuterito)

Entretanto segundo o proacuteprio poeta soacute muito dificilmente o Simbolismo pode ser compreendido como uma escola Falta-lhe coerecircncia Os seus protagonistas pareciam estar trilhando caminhos proacuteprios e irredutiacuteveis exercitavam-se em invenccedilotildees e experimentaccedilotildees as mais diversas e natildeo raro divergentes entre si Contudo se os simbolistas natildeo possuiacuteam uma esteacutetica comum possuiacuteam uma eacutetica comum e eacute somente a partir dessa eacutetica que padrotildees e procedimentos estiliacutesticos podem ser hoje relativamente depreendidos e estudados O que os une eacute antes uma devoccedilatildeo religiosa e asceacutetica para com a poesia como exerciacutecio verbal extremo Uma devoccedilatildeo num tal grau que ldquodesconsiderardquo o puacuteblico leitor a comunicaccedilatildeo clara popular frequumlentemente almejada por correntes relativamente antagocircnicas como o Realismo e o Naturalismo das quais Valeacutery sempre se distanciou Dir-se-ia que por essa eacutetica cumpre ao poeta escrever um poema sobre um objeto qualquer mas jamais revelar qual objeto eacute esse cumpre ao poeta escondecirc-lo atraveacutes do poema este se torna portanto como que o ocultamento daquilo a que se refere o siacutembolo de algo jamais dito jamais profanado jamais maculado e que ao fim pode representar para os muacuteltiplos leitores muito mais objetos do que originalmente intuiu o poeta ao compocirc-lo se realmente ele o intuiu ou se apenas o escreveu e nada mais O poeta pinta natildeo a coisa mas a sua ausecircncia o efeito que ela produz ou pode produzir e a poesia torna-se por conseguinte um artefato verbal extremamente hermeacutetico difiacutecil diante do qual o leitor eacute como que convidado a agir como uma espeacutecie de decifrador de adivinho a adivinhar o que estaacute sempre a lhe fugir Nessa perspectiva o Simbolismo acaba se tornando como que uma incessante busca atraveacutes de diversos caminhos em representar verbalmente o que natildeo eacute passiacutevel de ser representado verbalmente algo indiziacutevel inefaacutevel Natildeo agrave toa compreender de modo geneacuterico a metaacutefora em contrapartida com a rigidez semacircntica da alegoria como o centro ou a partiacutecula uacuteltima da poesia que preze pela musicalidade pelo espiritualismo e pelo misticismo

Eacute nesse contexto que o conceito de poesia pura nasce e se desenvolve Jaacute presente nas poeacuteticas de Poe Baudelaire e Mallarmeacute como sendo justamente essa poesia musical espiritual e miacutestica refrataacuteria agrave interpretaccedilatildeo que parte de uma loacutegica tradicional adquire em Valeacutery mdashprincipalmente a partir de seu ceacutelebre Avant-propos agrave la Connaissance de la deacuteesse livro de Lucien Fabremdash forccedila teoacuterica e novos contornos Refere-se na perspectiva do que um poema deve se tornar a um afastamento a um distanciamento da prosa mais especificamente da prosa narrativa em outras palavras a poesia pura seria a realizaccedilatildeo do poema purgado das formas prosaicas e narrativas purgado do reacutecit poema que assim ficaria reduzido simplificado a um estado puramente poeacutetico a poesia pura seria o estado de pura poesia Essa concepccedilatildeo claramente moderna acaba considerando consequumlentemente gecircneros poeacuteticos claacutessicos como o mito a faacutebula a eacutepica e a trageacutedia poemas impuros (o que naturalmente natildeo quer dizer que tenham um valor hierarquicamente inferior) jaacute que estes satildeo tambeacutem narrativos passiveis natildeo raro de serem recontados e recontados de um outro modo Mas tambeacutem pressupotildee por conseguinte a distinccedilatildeo ideal relativamente riacutegida no pensamento valeacuteryano entre prosa e poesia Em termos riacutegidos a prosa seria o discurso verbal que tende a adquirir uma significaccedilatildeo a mais uniacutevoca possiacutevel que preza mais pelo significado do que pelo som no qual elementos gratuitos entrariam em jogo e consequumlentemente quando parafraseada manteria o propoacutesito de sua mensagem a poesia ao contraacuterio seria um discurso verbal que tende a uma significaccedilatildeo a mais plural possiacutevel que preza tanto pelo significado como pelo som (e por vezes mais pelo som) no qual nenhum elemento gratuito entraria em jogo e consequumlentemente quando parafraseado deixaria de ser Para usar de recorrentes metaacuteforas a prosa eacute como uma linha ou um caminhar a poesia como um ciacuterculo ou uma danccedilar

Daiacute Valeacutery constantemente refletir que laquo Natildeo se pode resumir um poema como se resume um ldquouniversordquo Resumir uma tese eacute reter-lhe o essencial Resumir (ou substituir por um esquema) uma obra de arte eacute perder-lhe o essencial Vecirc-se o quanto essa circunstacircncia (se se compreender o seu alcance) torna ilusoacuteria a anaacutelise do estetaraquo A ceacutelebre e por vezes didaacutetica divisatildeo entre forma e conteuacutedo tenderia assim a desaparecer no poema (ou na obra de arte) quando este aspira a ser poesia pura (ou na obra de arte pura) laquoNo universo liacutericoraquo continua Valeacutery laquocada instante deve consumir uma alianccedila indefiniacutevel entre o sentido e o significado Resulta daiacute que a composiccedilatildeo eacute de alguma forma contiacutenua e natildeo pode se isolar em um outro tempo que natildeo aquele da execuccedilatildeo Natildeo haacute tempo para o ldquoconteuacutedordquo e um tempo para a ldquoformardquo e a composiccedilatildeo nesse gecircnero se opotildee natildeo somente agrave desordem ou agrave desproporccedilatildeo mas tambeacutem agrave decomposiccedilatildeo Se o sentido e o som (ou se o conteuacutedo e a forma) podem ser facilmente dissociados o poema se decompotildee Consequumlecircncia fundamental as ldquoideacuteiasrdquo que aparecem em uma obra poeacutetica natildeo desempenham o mesmo papel natildeo satildeo absolutamente valores da mesma espeacutecie que as ldquoideacuteiasrdquo da prosaraquo Diferentemente desta o poema mdashque no fundo soacute ocorre no ato presente da leitura na relaccedilatildeo entre autor e leitor mediado pelo textomdash torna-se ou revela-se assim no sucessivo de suas interpretaccedilotildees uma espeacutecie de fecircnix verbal renasce em cada declamaccedilatildeo em cada leitura sempre o mesmo e sempre o outro laquonatildeo morre por ter vivido ele eacute feito expressamente para renascer de suas cinzas e vir a ser indefinidamente o que acabou de ser A poesia reconhece-se por esta propriedade ela tende a se fazer reproduzir em sua forma ela nos excita a reconstituiacute-la identicamenteraquo Natildeo haveria portanto um objeto uacutenico ao qual o poema estaria representando Este eacute simplesmente um resultado fruto de uma accedilatildeo de um fazer E laquose me interrogarem se se inquietarem (como acontece e agraves vezes intensamente) sobre o que eu ldquoquis dizerrdquo em tal poemaraquo diz Valeacutery numa ceacutelebre e polecircmica passagem laquorespondo que natildeo quis dizer e sim quis fazer e que foi a intenccedilatildeo de fazer que quis o que eu disseraquo Dessarte o poema deveria ser tal como uma maacutequina Uma maacutequina a causar os mais diversos divergentes e imprevistos efeitos poeacuteticos nos leitores as mais diversas interpretaccedilotildees usos e significaccedilotildees e como maacutequina todos os seus elementos mdashisto eacute todas as suas palavras os seus sintagmas os seus versos os seus silecircncios etcmdash devem ter uma funccedilatildeo especiacutefica dentro do sistema formal e tatildeo-somente formal que se constroacutei dentro do poema neste natildeo pode haver nada de supeacuterfluo nada de gratuito nenhum elemento poderia ser retirado ou colocado sem que com isso se prejudicasse a sua proacutepria forccedila tudo nele eacute importante Natildeo haacute detalhes na construccedilatildeo poeacutetica A poesia como sonha Mallarmeacute aspira a eliminar o acaso Tudo nela aspira a ser necessaacuterio

Naturalmente assim como os conceitos de eu puro e de linguagem pura o conceito de poesia pura mdashe as distinccedilotildees que este implica entre prosa e poesia entre poema e poesiamdash constitui-se nesse sentido mais como um ideal mais como ldquo poesiardquo distinta do poema real Ideal que de algum modo guia o trabalho poeacutetico conduz o que deve ou natildeo ser feito na escrituraccedilatildeo particular do poeta Pois na realidade natildeo haacute poema que seja ou que realize plenamente a poesia pura a ldquo poesiardquo que natildeo contenha elementos prosaicos e narrativos que natildeo seja passiacutevel de ser interpretado mesmo que artificialmente em uma espeacutecie de conteuacutedo e uma espeacutecie de forma Em outras palavras um poema jamais alcanccedilaria o estado de pureza absoluta Ele seria sempre uma tentativa uma tendecircncia a esse estado Porque eacute da sua natureza ou melhor da natureza de todo espiacuterito ser capaz de analisar e decompor de recontar qualquer coisa tudo eacute passiacutevel de compreensatildeo laquoA poesia sem duacutevida natildeo eacute tatildeo livre quanto a muacutesica com relaccedilatildeo a seus meiosraquo assim escreve o poeta laquoSoacute com grande esforccedilo ela pode a seu grado ordenar as palavras as formas os objetos da prosa Se ela a isso alcanccedilar seraacute poesia pura Mas eis um nome que foi fortemente criticado Aqueles que me censuraram esqueceram que eu havia escrito que a poesia pura nada mais eacute do que um limite situado no infinito um ideal do poder de beleza da linguagem Mas eacute a direccedilatildeo que importa a tendecircncia em direccedilatildeo a obra pura Eacute importante saber que toda a poesia se orienta em direccedilatildeo a alguma poesia absolutaraquo E isso talvez seja um outro fator do porquecirc Valeacutery considerar seus proacuteprios poemas obras inacabadas e perpetuamente inacabadas a um tal ideaacuterio de poesia um poema jamais seria realmente terminado Ademais como salientou Joatildeo Alexandre Barbosa haacute um descompasso significativo entre os poemas e as ldquoprescriccedilotildeesrdquo de Valeacutery dir-se-ia que ele natildeo eacute muito fiel ao que teoriza ou ao que propotildee como ideal poeacutetico Diferentemente dos radicais experimentos de Mallarmeacute (que dito de modo anacrocircnico parece ter realmente buscado praticar a poeacutetica de Valeacutery) e da revoluccedilatildeo e aceitaccedilatildeo plena do verso livre sua poesia quase sempre se revela sob as riacutegidas formas da tradiccedilatildeo claacutessica natildeo se afasta tanto assim do reacutecit e apesar de um patente hermetismo constitui em geral numa espeacutecie de concentrado discurso filosoacutefico e criacutetico coadunando-se harmonizando-se assim com a sua ideacuteia de compreender a proacutepria filosofia como literatura Todavia esse descompasso natildeo parece ter muita relevacircncia jaacute que o foco de Valeacutery eacute principalmente apoacutes o seu retorno agrave poesia menos o poema e mais o processo poeacutetico ou em outros termos uma transformaccedilatildeo no espiacuterito mediante o proacuteprio processo poeacutetico

Assim com relaccedilatildeo ao segundo ideal o que postula aquilo que o fazer o poema deve se tornar a poeacutetica de Valeacutery sintoniza-se com o longo poema De arte poetica de Horaacutecio e com todo o espiacuterito Claacutessico (especificamente Parnasiano) mas tambeacutem e principalmente natildeo deixa de revelar-se como o resultado do seu proacuteprio programa de autoconsciecircncia O que a torna em grande medida relativamente contraacuteria a correntes literaacuterias que creditam em uma espeacutecie de origem ou fonte poeacutetica da qual brotariam como que por encanto as obras poeacuteticas tal como certas vertentes do Romantismo com sua metafiacutesica do sublime e seu ldquoemocionalismordquo tal como o Surrealismo com sua escrita automaacutetica e seus experimentos de livre associaccedilatildeo E isso se revela principalmente na criacutetica valeacuteryana agrave inspiraccedilatildeo

Categoria extremamente problemaacutetica para qualquer abordagem criacutetica mas sempre tentadora a inspiraccedilatildeo pode ser amiuacutede compreendida como um impulso uma forccedila um sopro criador proveniente de deuses e ou dos espiacuteritos como muito da Antiguumlidade costuma creditar ou do Inconsciente como a Modernidade costuma postular O poeta nesse sentido acaba se tornando no todo ou em parte um veiacuteculo uma espeacutecie de meacutedium portanto deixa de ser em grande medida o uacutenico autor da poesia que faz ou o autor consciente da poesia que faz Algueacutem que ouve ou lecirc um poema e o considera admiraacutevel e belo pode logo afirmar que o poeta a quem em geral natildeo conhece o compocircs com inspiraccedilatildeo mas isso eacute apenas uma conjetura e a palavra inspiraccedilatildeo torna-se tatildeo-somente um elogio Um elogio ambiacuteguo mesmo que natildeo se queira pois soa tambeacutem como se dissesse ldquoningueacutem seria capaz de criar um tal poema sem algum auxiacutelio exterior ningueacutem mereceria ser capazrdquo a inspiraccedilatildeo torna-se assim uma laquoatribuiccedilatildeo gratuita feita pelo leitor ao seu poeta o leitor nos oferece os meacuteritos transcendentes das forccedilas e das graccedilas que se desenvolvem nele Ele procura e encontra em noacutes a causa admiraacutevel de sua admiraccedilatildeoraquo Mas haacute algo mais problemaacutetico esse tipo de compreensatildeo e valoraccedilatildeo da obra poeacutetica tende a desconsiderar ou ateacute mesmo a escamotear o trabalho e o esforccedilo elementos que natildeo raro possuem grande e secreto valor para o poeta para aquele que trabalhou e se esforccedilou Contudo haacute que se fazer justiccedila agrave poeacutetica agrave criacutetica valeacuteryana Esta se instaura menos contra a existecircncia ou natildeo do fenocircmeno da inspiraccedilatildeo e mais contra a crenccedila de que somente com esse fenocircmeno o poema se concretizaria Qualquer um pode realmente sentir-se ou crer-se inspirado qualquer um pode pelo acaso ou pelo destino ser tomado possuiacutedo por um estado criativo mas esse estado pouco ou nada resulta se natildeo houvesse trabalho e esforccedilo se natildeo houvesse previamente um saber adquirido em longas etapas um domiacutenio efetivo da linguagem verbal isto eacute dos meios materiais e convencionais disponiacuteveis para passar da intenccedilatildeo ao ato Um poeta puramente sentimental puramente romacircntico nesse sentido natildeo escreveria natildeo seria capaz de escrever nenhum poema mesmo que tivesse sido tomado pela mais intensa das inspiraccedilotildees O controle faz-se necessaacuterio o controle sobre o poder criador

Haacute um minucioso relato de Valeacutery que desmente a sua recorrente imagem como poeta que rechaccedila necessariamente a existecircncia da inspiraccedilatildeo e explicita sobremaneira essa concepccedilatildeo laquoTinha saiacutedo de casa para descansar de algum trabalho enfadonho atraveacutes da caminhada e dos olhares variados que ela atrai Enquanto ia pela rua em que moro fui tomado de repente por um ritmo que se impunha e que logo me deu a impressatildeo de um funcionamento estranho Como se algueacutem estivesse usando a minha maacutequina de viver Um outro ritmo veio entatildeo reforccedilar o primeiro combinando-se com ele e estabeleceram-se natildeo sei que leis transversais entre essas duas leis (estou explicando da maneira que posso) Isso estava combinando o movimento de minhas pernas andando e natildeo sei que canto eu murmurava ou melhor que se murmurava atraveacutes de mim Essa composiccedilatildeo se tornou cada vez mais complicada e logo ultrapassou em complexidade tudo o que eu podia produzir racionalmente de acordo com minhas faculdade riacutetmicas comuns e utilizaacuteveis Nesse momento a sensaccedilatildeo de estranheza da qual falei tornou-se quase penosa quase inquietante Natildeo sou muacutesico ignoro totalmente a teacutecnica musical e eis que estava preso por um desenvolvimento de diversas partes de uma complicaccedilatildeo com a qual nenhum poeta sonhou algum dia Dizia-me entatildeo que havia erro de pessoa que essa graccedila enganava-se de cabeccedila jaacute que eu nada podia fazer com esse dom mdash que em um muacutesico teria sem duacutevida tomado valor forma e duraccedilatildeo enquanto essas partes que se misturavam e desligavam-se ofereciam-me inutilmente uma produccedilatildeo cuja continuaccedilatildeo culta e organizada maravilhava e desesperava minha ignoracircnciaraquo A esse relato segue-se um outro mais ceacutelebre e irocircnico mas de mesmo teor laquoO grande pintor Degas muitas vezes me contou essa frase de Mallarmeacute tatildeo justa e tatildeo simples Degas agraves vezes fazia versos e deixou alguns deliciosos Mas constantemente encontrava grandes dificuldades nesse trabalho acessoacuterio de sua pintura (Aliaacutes era homem de introduzir em qualquer arte a dificuldade possiacutevel) Um dia disse a Mallarmeacute ldquoSua profissatildeo eacute infernal Natildeo consigo fazer o que quero e no entanto estou cheio de ideacuteiasrdquo E Mallarmeacute lhe respondeu ldquoAbsolutamente natildeo eacute com ideacuteias meu caro Degas que se fazem versos Eacute com palavrasraquo O poeta para Valeacutery soacute pode ser soacute pode acontecer como um faber poeta natildeo como um vate poeta

Como um verdadeiro artista claacutessico ele concebe assim uma poeacutetica na qual o fazer poeacutetico natildeo atua atraveacutes do improviso e do descontrole mas atraveacutes do rigor e da disciplina o sonho e o devaneio podem ateacute fornecer e certamente fornecem elementos para o poema mas esses elementos devem ser trabalhados e trabalhados na vigiacutelia e na lucidez pois o sonho e o devaneio nada resultam se natildeo forem racionalizados Ou como diz o poeta laquoNem o sonho nem o devaneio satildeo necessariamente poeacuteticos eles podem secirc-los mas figuras formadas ao acaso somente por acaso satildeo figuras harmoniosasraquo Porque laquoeacute necessaacuterio estar ldquodespertordquo para expressar raquo porque para se passar da intenccedilatildeo agrave accedilatildeo da intenccedilatildeo ao construiacutedo eacute necessaacuterio projetar arquitetar Para o poeta portanto fazer poemas eacute sobretudo o ato de estar constantemente consciente de sua feitura e por conseguinte um exerciacutecio especiacutefico de autoconsciecircncia no caso o exerciacutecio de natildeo se deixar manobrar pelas palavras fazer poemas eacute portanto uma ldquodesautomatismordquo verbal uma ldquodesautomatizaccedilatildeordquo da proacutepria linguagem usada laquoEacute me fazendo estas questotildees ldquoO que eu quero rdquo e ldquoO que eu posso quererrdquoraquo confessa o poeta de modo lacunar laquomdash (essas questotildees comparadas constituem o fundamento da MINHA Sabedoria) que eu orientei apoacutes [19]92 minha vida espiritual [ Noite de Gecircnova] E eu entendi natildeo me deixar manobrar pela linguagem [Grifo do autor] Isso eu devo em parte ao trabalho com a poesia em suas condiccedilotildees formais agraves quais induz a tomar as palavras e as ideacuteias por suas maleabilidades materiaisraquo O surpreendente eacute que para Valeacutery o trabalho a experiecircncia com a poesia tambeacutem o tenha conduzido em parte agravequilo que foi por ele compreendido como o pressuposto de qualquer meacutetodo de abordagem agrave laquo limpeza da situaccedilatildeo verbalraquo (laquo nettoyage de la situation verbaleraquo) E eacute justamente nesse ponto que sua poeacutetica se entrelaccedila de modo mais veemente com sua criacutetica agrave filosofia Daiacute tambeacutem ele recomendar aos filoacutesofos mdashe de um modo que soa menos irocircnico do que sinceromdash se aventurarem ao trabalho poeacutetico ao fazer poesia o que de algum modo excecircntrico incitaria colaboraria para a aquisiccedilatildeo de uma maior consciecircncia da linguagem laquoEu gostaria de falar de filoacutesofos mdash e aos filoacutesofosraquo escreve um tanto solenemente laquoEu gostaria de lhes mostrar que seria infinitamente mais proveitoso praticar esta laboriosa poesia que conduz insensivelmente a estudar as combinaccedilotildees das palavras natildeo tanto pela conformidade de significaccedilotildees desses grupamentos com uma ideacuteia ou pensamento que noacutes tomamos para exprimir mas ao contraacuterio por seus efeitos uma vez formados entre aqueles que noacutes escolhemos Em geral noacutes tentamos ldquoexprimir seu pensamentordquo isto eacute passar de uma forma impura e misturada de todos os meios do espiacuterito a uma forma pura isto eacute somente verbal e organizada que se reduz a um sistema de atos ou de contrastes arranjados Mas a arte poeacutetica conduz singularmente a visar agraves formas puras nelas mesmasraquo laquoAcrescento (mas somente para alguns)raquo depois ainda sintetiza laquoque aquela vontade de natildeo se deixar manobrar por palavras natildeo estaacute totalmente dissociada daquilo que denominei ou acreditei denominar poesia puraraquo Isso natildeo quer dizer naturalmente que os poetas todos estejam isentos de adentrar em ilusotildees gramaticais mas tatildeo somente que a praacutetica poeacutetica pode ser segundo Valeacutery auxiliar agrave ldquodesautomatizaccedilatildeordquo verbal auxiliar agrave proacutepria autoconsciecircncia

Em Valeacutery o conceito de poesia pura adquire assim natildeo mais no ideal que postula o que o poema deve se tornar mas no ideal que postula o que o fazer o poema deve se tornar um outro uso Representa essa poesia mdashessa praacuteticamdash na qual o espiacuterito natildeo se deixaria enredar pela linguagem na qual o espiacuterito mdasho espiacuterito do poeta o espiacuterito daquele que se faz momentaneamente poetamdash seria um pensador da linguagem e como tal senhor e natildeo escravo da linguagem O espiacuterito compreenderia numa accedilatildeo num fazer o quanto as palavras esses ldquoobjetosrdquo com os quais tanto tempo convive no poema que estaacute sendo composto satildeo passiacuteveis de serem transformadas passiacuteveis de serem re-usadas ou re-significadas manipuladas distorcidas servis a este ou aquele discurso a este ou aquele contexto a balizar suas potencialidades semacircnticas o espiacuterito compreenderia portanto o quanto os problemas filosoacuteficos podem ser meros verbalismos Misteacuterios sem misteacuterios os poemas se tornam os discursos os contextos nos quais as palavras poderiam adquirir e adquirem a maior e mais inusitada variaccedilatildeo semacircntica possiacutevel os poemas se tornam os contextos nos quais em teoria tudo o que for possiacutevel fazer com as palavras seraacute feito Os poemas se tornam assim o devir da proacutepria linguagem a sua potecircncia em ato Nesse sentido a idiossincraacutetica poeacutetica valeacuteryana revela-se toda ela natildeo como legataacuteria da lrsquoart pour lrsquoart da arte desengajada a subordinar a eacutetica agrave esteacutetica tampouco da arte engajada a subordinar a esteacutetica agrave eacutetica pois compreende simultaneamente a autonomia do poema como um objeto formal sujeito a muacuteltiplas e divergentes interpretaccedilotildees interpretaccedilotildees para aleacutem das intenccedilotildees do poeta mas tambeacutem postula uma certa funccedilatildeo ao fazer poeacutetico o esclarecimento daquele que o pratica Escrever poemas eacute um treino a si mesmo Todavia haacute que se dizer enfim algo oacutebvio Uma tal poeacutetica sua importacircncia seu valor eacute sempre de caraacuteter eminentemente pessoal O que natildeo poderia ser diferente jaacute que se trata meramente de uma ldquoteoria esteacuteticardquo laquoImagino sobre a essecircncia da Poesiaraquo escreve o poeta consciente disso laquoque ela tenha de acordo com as diversas naturezas dos espiacuteritos valor nulo ou importacircncia infinita o que a assemelha ao proacuteprio Deusraquo

6 Diaacutelogos socraacuteticos

Escoacutelios

Saibam pois o que eacute a arte o meio para alguns os solitaacuterios de se auto-realizarem

Rainer Maria Rilke O diaacuterio de Florenccedila

61 A reinvenccedilatildeo de um gecircnero

O diaacutelogo ( διάλογος) possui estatuto privilegiado na Antiguumlidade Eacute constantemente considerado como uma das formas mais adequadas para a manifestaccedilatildeo do pensamento filosoacutefico Inserido numa tradiccedilatildeo que preza pelos esforccedilos de memorizaccedilatildeo na manutenccedilatildeo dos valores da comunidade filoacutesofos como Platatildeo abrem concessatildeo agrave sua versatildeo escrita a que Sophron de Siracusa supostamente iniciou quiccedilaacute somente pela sua maior verossimilhanccedila agrave proacutepria fala agrave proacutepria oralidade Por natildeo representar o homem no jogo intelectual consigo mesmo um forte caraacuteter poliacutetico tambeacutem foi associado a esse gecircnero Atraveacutes de sua proacutepria disposiccedilatildeo formal o diaacutelogo possibilita expor diferentes opiniotildees e doutrinas num mesmo espaccedilo textual diferentes posiccedilotildees que podem muito bem se contradizer Devido a essa polifocircnica organizaccedilatildeo haacute quem diga que ele representaria consequumlentemente uma genuiacutena forma de toleracircncia Talvez haja nisso um romacircntico exagero Compreensiacutevel na medida em que se deseje identificar uma relaccedilatildeo humana que se abstenha da violecircncia e prefira ser amigaacutevel troca entre razotildees com um gecircnero literaacuterio no qual representaccedilotildees de personagens ou vozes distintas se manifestem em torno de um tema ou uma seacuterie de temas independente de serem ou natildeo partidaacuterias dos mesmos valores Pois nada impede que esse uacuteltimo represente um pensamento cristalizado intransigente pronto a cometer proselitismos

O proacuteprio Platatildeo seu pensamento natildeo deixa de ser exemplar quanto a isso Entre o respeito pela tradiccedilatildeo e o anseio pela reforma ele revela em certas passagens um caraacuteter a que muitos hoje considerariam autoritaacuterio mas que todavia cumpre ser matizado quando inserido na totalidade de sua obra Afinal o conspiacutecuo disciacutepulo de Soacutecrates nunca deixou de ser aquilo que hodiernamente denomina-se de dialeacutetico Se por um lado no Craacutetilo a discussatildeo sobre a natureza das palavras permanece inconclusa por outro na Repuacuteblica apesar das inuacutemeras digressotildees de seus participantes grande parte das reflexotildees ao fim convergem para uma espeacutecie de utopia avant-la-lettre uma forma de governo que submete os seres humanos a uma sociedade ideal de riacutegidas hierarquias Tomados como uma totalidade os diaacutelogos platocircnicos equilibram-se assim ambiguamente entre a sugestatildeo e a imposiccedilatildeo entre o dogma e a aporia E eacute a lendaacuteria e carismaacutetica personagem ou voz de Soacutecrates uma das causas desse processo pois amiuacutede conduz mediante desconcertantes refutaccedilotildees e perguntas seus interlocutores a um circular labirinto de volaacuteteis definiccedilotildees deixando deliberadamente muitas das respostas e conclusotildees para um futuro que parece nunca poder se concretizar O elenkos ( ἒλεγχος) socraacutetico pode ser considerado como uma estrateacutegia de argumentaccedilatildeo negativa que parece conter a intenccedilatildeo de fazer o diaacutelogo mdasho dialogarmdash um processo virtualmente infinito Pois toda resposta pode ser negada e a ela posta um sem-nuacutemero de outras respostas referentes a uma mesma pergunta

O desenvolvimento do diaacutelogo enquanto gecircnero filosoacutefico no Ocidente eacute a partir de entatildeo influenciado pelo pensamento socraacutetico-platocircnico O Cristianismo tambeacutem dele se apropria um tanto circunstancialmente doravante jaacute como religiatildeo oficial prefere formas tradicionalmente mais vinculadas agrave interpretaccedilatildeo da doutrina como os tratados as sumas e os comentaacuterios Ceacutelebres ldquoexceccedilotildeesrdquo a essa preferecircncia podem ser encontradas nas obras de Santo Agostinho e Pedro abelardo Todavia principalmente com o desenvolvimento do Humanismo o diaacutelogo enquanto gecircnero filosoacutefico renova forccedilas devido a enorme idealizaccedilatildeo e valorizaccedilatildeo do passado claacutessico surgem inuacutemeros imitadores de Platatildeo na Renascenccedila Quando ainda natildeo se diferenciava de todo do pensamento filosoacutefico a Ciecircncia Moderna emergente tambeacutem dele se utilizou Giordano Bruno e Galileu Galilei o praticam este acabou no caacutercere privado aquele na fogueira Diante desse quadro histoacuterico e a partir da relaccedilatildeo entre a intenccedilatildeo de um escrito e a sua recepccedilatildeo hodierna poder-se-ia conjeturar que o diaacutelogo filosoacutefico justamente por estar associado agrave pluralidade de opiniotildees e a aceitaccedilatildeo dessa pluralidade tenderia a florescer em eacutepocas de maior liberdade de expressatildeo Assim sempre sob o quase onipresente peso do estilo platocircnico Descartes Leibniz Berkeley Hume Shaftsebury e Diderot tambeacutem o praticaram mas cuidadosamente entre a antiga tradiccedilatildeo metafiacutesica e o impacto da Ciecircncia Moderna Contudo frente aos pressupostos de objetividade que esta exige o diaacutelogo enquanto gecircnero filosoacutefico vem a ser considerado por vezes um modelo quase anacrocircnico relativamente inadequado ao saber positivo Tendo em vista tambeacutem a sua diferenciaccedilatildeo das peccedilas de teatro ou daqueles que naturalmente se inserem em outros gecircneros literaacuterios ele mais raramente se sustenta na Modernidade de modo autocircnomo Poucos possuem o mesmo tipo de recepccedilatildeo que por exemplo um romance um reacutecit

Prezando pela entonaccedilatildeo pela presenccedila da voz na literatura escrita Paul Valeacutery foi nas deacutecadas de 20 e 30 do seacuteculo XX um dos autores que como Alain e Claudel atualizaram e reinventaram o diaacutelogo filosoacutefico notadamente do tipo socraacutetico e de ldquoinspiraccedilatildeordquo humaniacutestica mesmo que na moderna praacutetica das formas breves Interessa-o sobretudo a lucidez e a plasticidade a possibilidade de contraccedilatildeo e de dilataccedilatildeo desta que considera a laquomais flexiacutevel da formas de expressatildeoraquo (laquola plus souple des formes drsquoexpressionraquo) interessa-o a sedutora e difiacutecil ideacuteia de suspender a presenccedila do sujeito da pessoa atraveacutes do mascaramento em personagens ou vozes diversas algo condizente com a concepccedilatildeo de literatura impessoal ou natildeo-autoral por ele almejada Alguns desconexos e truncados fragmentos sobre Mon Faust em seus Cahiers demonstram o desejo em se apropriar desse gecircnero em sua autonomia esteacutetica laquoAssim no teatro o diaacutelogo eacute condiccedilatildeo imediata mdash e eu escrevo sem abandonar o diaacutelogo Mas mdash depois de certo uso mdash eu comeccedilo a sentir esta forma independentemente de toda a aplicaccedilatildeo e a mim se impotildee agrave necessidade de isolar claramente de conservar formalmente sua funccedilatildeo seu lugar numa resoluccedilatildeo de certa resistecircncia ou circunstacircncia e suas caracteriacutesticas funcionais completas Eu tenho entatildeo necessidade de uma ldquoideacuteiardquo ou foacutermula que me faccedila do diaacutelogo algo como uma operaccedilatildeo = O diaacutelogo eacute a operaccedilatildeo que transforma os dados por via de trocas (PR) (pergunta-resposta) entre sistemas [] nos quais a desigualdade eacute suposta O nuacutemero de variaacuteveis (desses sistemas) que entram em jogo eacute variaacutevel e define o gecircnero [] [do] diaacutelogo filosoacutefico ateacute ao mais ordinaacuterio Onde o tom etc Na base o diaacutelogo interior mdash Monoacutelogo natildeo existe mdash [] A anaacutelise do tipo diaacutelogo seraacute fecunda Como o ldquopensamentordquo tende a este tipo e natildeo eacute que aparecircncia de monoacutelogo ele seraacute elucidado por aqueleraquo Ou ainda laquoTodo monoacutelogo eacute um diaacutelogoraquo

Dessarte o diaacutelogo seria como que a forma mais ldquonaturalrdquo a mais fiel ao mecanismo do proacuteprio pensamento deste tende a tornar-se um iacutecone Representa aquela divisatildeo interna e o jogo de diferenccedilas entre as partes dessa divisatildeo interna a que Valeacutery frequumlentemente alude quando se refere agrave laquoself-varianceraquo do espiacuterito Sem um outro real ou sem um outro conceitual tanto o diaacutelogo quanto o pensamento natildeo existiriam porque supostamente natildeo haveria o que dizer Seria o puro silecircncio Isso parece se materializar na forma com que o proacuteprio poeta concebe as suas personagens ou vozes Estas estatildeo separadas mas num outro plano tambeacutem natildeo deixam de ser uma soacute Todos os seus diaacutelogos podem ser considerados como diz o emblemaacutetico tiacutetulo de um deles um Coloacutequio dentro de um ser ( Colloque dans un ecirctre) Eles natildeo se abrem diretamente para o coletivo Natildeo eacute como se o Valeacutery escritor se identificasse com apenas uma de suas personagens ou vozes a que considere a portadora da verdade e fizesse das demais portadoras do equiacutevoco natildeo eacute como se defendesse por contraste com outras ideacuteias uma ideacuteia uacutenica Eacute como se ele fosse realmente todas as suas personagens ou vozes e as possiacuteveis contradiccedilotildees e polecircmicas entre elas Contradiccedilotildees e polecircmicas que ocorrem internamente em uma uacutenica consciecircncia que se multiplica em vaacuterias para melhor ser Como diz Maurice Blanchot acerca de Valeacutery laquoSeu pensamento aspira a dialogarraquo eacute uma laquodiversidade de falas nascidas do eco de uma mesma vozraquo

Ademais haacute uma relaccedilatildeo extremamente ambiacutegua com a tradiccedilatildeo Apesar de sua chistosa confissatildeo de pouco conhecer a Antiguumlidade a cultura grega e latina de natildeo ter sido um leitor assiacuteduo de Platatildeo considerando a influecircncia deste como laquomdash Puramente imaginaacuteriaraquo Valeacutery demonstra mdashsupotildee-se que em grande parte justamente por essa confessa displicecircnciamdash uma quase maliciosa engenhosidade ao escrever seus diaacutelogos socraacuteticos As referecircncias aos elementos filosoacuteficos da Antiguumlidade satildeo taacutecitas natildeo raro indiretas como que propositadamente escondidas todavia presentes para um leitor atento Ele se preocupa muito mais com uma siacutentese abstrata do objeto ou dos objetos que escolhe e analisa do que com referecircncias Nos seus escritos talvez o mais importante natildeo seja o expliacutecito mas o impliacutecito os subentendidos Seus diaacutelogos socraacuteticos satildeo paradigmas desse recorrente procedimento Natildeo deixam de ser fieacuteis portanto agrave desconfianccedila de Valeacutery a essa tentativa de legitimar uma ideacuteia atraveacutes da evocaccedilatildeo de autoridades e de documentos passados de provas Como seus escritos sobre Leonardo eles dispensam um determinado tipo de rigor histoacuterico de matriz positivista e instauram-se paralelamente distante de um realismo literaacuterio direto num tempo e num espaccedilo indeterminados laquoO pouco que noacutes sabemos agraves vezes eacute mais ativo e fecundo que o muitoraquo diz provocativamente laquoPois ele excita ou obriga a inventar a falta e esse produto vivo nascente eacute mais ativo mdash por vezes mais ldquoverdadeirordquo que o verdadeiro-morto Certo efeito reproduzido sem causa por inteira conservaccedilatildeo eacute menos poderoso que o efeito semelhante produzido atualmente por qualquer causa anaacuteloga O excessivamente pouco que eu sabia de Platatildeo e que obtive em dez ou quinze linhas me produziu Eupalinos mdash cf Leonardo tambeacutem e Goetheraquo

Apesar dessas palavras confissatildeo de um escritor cioso de sua capacidade de transformar o pouco em muito Valeacutery era apreciador das formas e do proacuteprio modo de filosofar dos antigos Habituado ao uso de elementos claacutessicos em sua poesia ele contudo natildeo se esquiva de todo do canocircnico paradigma platocircnico-socraacutetico todavia o transporta mais profundamente aos padrotildees esteacuteticos da Literatura Moderna e natildeo o encara como um helenista ou um historiador preso por princiacutepio ao rigor filoloacutegico mas como um literato livre para adentrar o devaneio e a fantasia Atraveacutes do diaacutelogo socraacutetico o poeta posiciona seu pensamento como que nas antiacutepodas de seus antigos e ilustres precursores Diferentemente de grande parte da tradiccedilatildeo desenvolvida a partir de Soacutecrates e Platatildeo natildeo busca pela verdade ou por uma verdade como se esta existisse em algum lugar objetivo porque todo conceito eacute ao mesmo tempo uma limitaccedilatildeo e uma possibilidade porque todo conceito pode ter inuacutemeras definiccedilotildees variando com a perspectiva que se adote com quem o define e para quem eacute definido Assim a aporia se impotildee sobre o dogma o negativo sobre o positivo E isso se personifica no comportamento de seus personagens ou vozes aquela tentativa de convencer inculcar ou mesmo humilhar seu interlocutor em direccedilatildeo a uma determinada concepccedilatildeo sistema ou doutrina se dilui em dimensotildees ambiacuteguas haacute apenas a reflexatildeo conjunta de duas ou mais personagens ou vozes na busca de algo por vezes ainda natildeo verbalizado de iniacutecio ainda inefaacutevel no estaacutegio em que falam A velha ironia ( εἰρωνεία) por vezes cruel instrumento pedagoacutegico eacute matizada Nesses diaacutelogos socraacuteticos a distinccedilatildeo entre quem eacute o mestre e quem eacute o disciacutepulo tende a desaparecer ou a se inverter Esvaecem-se as estruturas de poder Todos os seus personagens ou vozes aprendem todos ensaiam porque tudo eacute verdadeiramente ensaio Nenhum deles se impotildee em demasia aos demais o que naturalmente natildeo os impede de defenderem argumentos linhas de pensamento Natildeo sendo propostas doutrinaacuterias mas livres intuiccedilotildees de um pensador que natildeo se propotildee inventar teorias em sentido pleno e acabado os diaacutelogos socraacuteticos de Valeacutery tornam-se um instigante exerciacutecio de sugestotildees e de alusotildees Muitas vezes jogam com proposiccedilotildees abstratas proacuteprias do discurso do filoacutesofo ao inveacutes de imagens concretas como seriam relativamente mais presentes nos devaneios de um poeta A beleza eacute a estranha e enigmaacutetica dimensatildeo que natildeo raro verdadeiramente parece ter primazia Valeacutery mdashque jamais deixou de ser um estetamdash parece se deleitar com a frase bem construiacuteda com os achados literaacuterios no fundo ele natildeo deixa de perseguir este procedimento de composiccedilatildeo no qual o conteuacutedo natildeo eacute uma dimensatildeo anterior agrave forma no qual esta natildeo raro evoca e ordena aquele O que no seu caso natildeo o impede de manter o rigor de sempre estar a respeitar a relaccedilatildeo de coerecircncia entre a representaccedilatildeo e o representado seja este real ou imaginaacuterio O estilo natildeo deve matar a precisatildeo assim como a precisatildeo natildeo deve matar o estilo um natildeo pode pesar mais que o outro Eis um lema o qual o poeta Valeacutery poderia muito bem adotar jaacute que na praacutetica o cumpria

Tudo se passa como se apoacutes um longo e aacuterduo aprendizado um desencanto o deus da razatildeo e da luz Apolo sem deixar de lado o refinamento e a coerente loacutegica de sua linguagem aprendesse a arte da prestidigitaccedilatildeo e da fantasia com o deus da embriaguez e da alegria Dioniacutesio um e outro se fundem num jogo sem fim um e outro se cumprimentam um e outro se conciliam Pelo intenso lirismo pelo aacuterduo trabalho entre som e sentido que apresentam os diaacutelogos socraacuteticos de Valeacutery podem ser facilmente considerados como ldquopoemas em prosardquo Quem os comenta quem os analisa ou os destrinccedila natildeo pode deixar de contemplar a recorrente e jaacute referida postura valeacuteryana em estetizar a filosofia Estetizaccedilatildeo que agora natildeo se apresenta apenas de modo teoacuterico mas opera na praacutetica de obras literaacuterias com tudo o que estas possam ter de excentricidades

O diaacutelogo eacute portanto um gecircnero literaacuterio privilegiado na obra de Valeacutery Encontra-se em La Soireacute avec Monsieur Teste encontra-se enquanto fragmentos em Tel quel em Mauvaises penseacutees e naturalmente em seus Cahiers encontra-se na forma de versos na hermeacutetica peccedila ldquoMon Faustrdquo - Eacutebauches e no ldquoteatro lituacutergicordquo de ambiacuteguas referecircncias claacutessicas e catoacutelicas Amphion - Meacutelodrame Seacutemiramis Cantate du Narcisse e Colloque pour deux flucirctes encontra-se no ensaio epistemoloacutegico Lrsquoideacutee fixe encontra-se em Meacutelange em Colloque dans un ecirctre em nos breviacutessimos Coloacutequios Orgueil pour orgueil e Socrate et son meacutedicin Nestes dois uacuteltimos jaacute se configura uma problemaacutetica estritamente filosoacutefica Contudo o que soacutei ser aqui de interesse prioritaacuterio satildeo os seus diaacutelogos mais plenamente desenvolvidos agravequeles que correspondem seja por assentimento contraste ou inversatildeo agrave dominacircncia do registro metafiacutesico no pensamento da Antiguumlidade Nesse sentido Valeacutery compotildee mdashtodavia como de haacutebito circunstancialmente e sem teacuterminomdash um conjunto de diaacutelogos socraacuteticos que podem ser para fins interpretativos estrategicamente ordenados na seguinte trajetoacuteria Lrsquoacircme et la danse pertencente ao subgecircnero do simpoacutesio refere-se a um Soacutecrates vivo todavia jaacute na dolorosa desconfianccedila de que o mundo eacute tatildeo-somente puro movimento e instabilidade Eupalinos - Ou lrsquoarchitecte pertencente ao subgecircnero do dialogo de mortos quiccedilaacute seu mais ceacutelebre e citado diaacutelogo refere-se em contrapartida a um Soacutecrates morto jaacute na plena perturbaccedilatildeo de suas crenccedilas Περὶ τῶν τοῦ θεοῦ - Ou des choses divines em puro estado de fragmento talvez o mais ambicioso e hoje o mais desconhecido de seus diaacutelogos eacute aquele que se refere aos conhecidos e aos disciacutepulos de Soacutecrates que logo apoacutes a morte do mestre permanecem em discussatildeo

Todos esses diaacutelogos representam em maior ou menor grau a reinvenccedilatildeo deste personagem Soacutecrates pela sua presenccedila ou ausecircncia em diferentes momentos e que juntamente com Leonardo e Teste pode ser compreendido como um dos emblemas maacuteximos da obra de Valeacutery mas diferentemente destes eacute mais um instrumento criacutetico e menos a personificaccedilatildeo de um ideal a ser seguido Dir-se-ia que o Soacutecrates valeacuteryano eacute humanizado tanto em comparaccedilatildeo a outras personagens suas como em comparaccedilatildeo agrave personagem histoacuterica Numa perspectiva progressista ele natildeo representaria o espiacuterito universal intelectualmente autaacuterquico ao qual o poeta almeja se tornar representaria antes um processo um caminho a esse ideal o estaacutegio anterior ao de um Teste ou de um Leonardo Estaacutegio no qual o Soacutecrates valeacuteryano adquire consciecircncia criacutetica de sua pateacutetica condiccedilatildeo e do que deve realmente realizar ou deixar de realizar E com isso Valeacutery tambeacutem acaba por distinguir uma diferenccedila capital entre o espiacuterito da Antiguumlidade e o da Modernidade entre a completude e a incompletude

611 A danccedila de Athiktecirc

Os diaacutelogos platocircnicos apesar dos seus ldquosubtiacutetulosrdquo serem diretos quanto ao tema a ser abordado satildeo em muito devido agrave aporia que os conforma um amaacutelgama de outros ora somente postos ora exaustivamente discutidos A falta de linearidade os desvios as digressotildees configuram uma estranha verossimilhanccedila com o proacuteprio pensamento que natildeo tendo que resultar em texto ou em conclusatildeo segura flana mais livremente entre os objetos que o seduzem natildeo raro de modo desordenado e confuso A inquietaccedilatildeo proacutepria da proacutepria filosofia assim se faz presente O tema central de um diaacutelogo platocircnico por mais que se tente precisar por mais que se tente aprisionaacute-lo em uma uacutenica palavra (seja esta beleza bondade justiccedila alma) natildeo eacute portanto uacutenico e preciso

De lucidez mortal ao mesmo tempo delicado e delirante Lrsquoacircme et la danse (escrito em 1921 e publicado pela primeira vez em 1923) assume esse caraacuteter digressivo ao extremo Descreve as reflexotildees ou as sensaccedilotildees de Soacutecrates e de seus companheiros o meacutedico Erixiacutemaco e o jovem Fedro apoacutes um farto banquete Nisso jaacute se evidencia um primeiro paralelo possiacutevel com o Simpoacutesio de Platatildeo no qual durante um farto banquete (natildeo agrave toa tambeacutem ser assim intitulado) o amor e a relaccedilatildeo deste com a beleza o bem e o imemorial desejo de vencer a morte satildeo postos e discutidos De um hermetismo muito mais intenso do que o habitual mesmo para os padrotildees de Valeacutery Lrsquoacircme et la danse toca levemente essas temaacuteticas Todavia como herdeiro do evasivo estilo simbolista natildeo possui um tema central claramente definido do qual parece gravitar sem jamais revelar Configura-se sobretudo como um intrincado labirinto de frases cuja loacutegica explora a contradiccedilatildeo e o paradoxo entre tantos e tatildeo raacutepidos assuntos evocados e dissipados Suas personagens ou vozes na estaacutetica modorra em que se encontram devido agrave digestatildeo de seus estocircmagos refletem sobre uma das mais corriqueiras e necessaacuterias atividades da vida sobre aquilo que acabaram de fazer o ato mesmo de se alimentar tema sub-repticiamente presente em todo o diaacutelogo Soacutecrates mdashapoacutes ser ironizado por Erixiacutemaco que dele diz ser um tanto incapaz de ficar sem meditar por conseguinte de ficar sem filosofar e expressar suas ideacuteiasmdash questiona-o se laquoo homem que come eacute o mais justo dos homensraquo A duacutevida natildeo eacute vatilde Porque na necessidade assim como na dor e no sofrimento (por vezes atrelados agrave proacutepria necessidade) porque nos incessantes chamados do corpo no clamor da fome do frio e do calor os seres humanos independentemente de suas crenccedilas podem ser fisicamente igualados Aproveitando a oportunidade desse tema tatildeo calcado na concretude da vida Erixiacutemaco como meacutedico discursa sobre os inuacutemeros remeacutedios para o corpo contudo Soacutecrates mdashcuja tendecircncia intelectual principalmente nos diaacutelogos platocircnicos eacute como percebeu Valeacutery refletir a partir de inevitaacuteveis situaccedilotildees cotidianasmdash extrapola e polemiza dizendo que para a alma haacute somente dois

laquoA verdade e a mentira [] Natildeo se comportam entre elas como a vigiacutelia e o sono Natildeo procuras tu o despertar e a nitidez da luz quando um mau sonho te atormenta Natildeo nos ressuscita o sol em pessoa e natildeo nos fortifica a presenccedila de corpos soacutelidos mdash Mas em contrapartida natildeo eacute ao sono e aos sonhos que pedimos que dissolvam as afliccedilotildees e que suspendam as dores que nos aguilhoam no mundo do dia E assim fugimos de um para o outro invocando o dia no meio da noite implorando ao contraacuterio as trevas enquanto temos a luz ansiosos de saber felizes demais por ignorar procuramos no que eacute um remeacutedio ao que natildeo eacute e no que natildeo eacute um aliacutevio para o que eacute Ora o real ora a ilusatildeo nos recolhe e a alma em definitivo natildeo tem outros meios exceto o verdadeiro que eacute sua arma mdash e a mentira sua armadura

Erixiacutemaco [] natildeo tens medo caro Soacutecrates de uma certa consequumlecircncia desse pensamento que te ocorreu [] Esta a verdade e a mentira tendem para o mesmo fim Eacute uma mesma coisa que tomando-se diversamente nos faz mentirosos ou veriacutedicos e como ora quente ora frio ora nos atacam ora nos defendem assim o verdadeiro e o falso e as vontades opostas a que se ligam

Soacutecrates Nada mais certo Nada posso fazer Eacute a proacutepria vida que assim o quer [] Tudo ajuda a vida Erixiacutemaco para que a vida nada conclua Isto eacute concluir apenas a si mesma Natildeo eacute ela esse movimento misterioso que pelo desvio de tudo o que acontece transformou-me incessantemente em mim mesmo e que me devolve bastante raacutepido a este Soacutecrates XE Soacutecrates para que eu o reencontre e que imaginando necessariamente reconhececirc-lo eu exista mdash Ela eacute uma mulher que danccedila e que deixaria de ser uma mulher divinamente se pudesse saltar ateacute as nuvens Mas como natildeo podemos ir ao infinito nem no sono nem na vigiacutelia ela de modo semelhante reconverte-se sempre a si mesma deixa de ser floco paacutessaro ideacuteia mdash de ser enfim tudo que a flauta quis que dela fosse feito pois a mesma Terra que a mandou convoca e entrega-a toda palpitante agrave sua natureza de mulher e a seu amigoraquo

Nesse momento extremamente fecundo no qual verdade e mentira satildeo estabelecidas como conceitos entrelaccedilados dependentes um do outro e a vida eacute comparada a uma mulher que danccedila surge como que de um ato providencial e emblemaacutetico Athiktecirc com seus prodigiosos e provocativos movimentos Ela eacute imediatamente reconhecida como danccedilarina ceacutelebre considerada como a melhor entre todas ali presentes mas como qualquer outra aparentemente serve para entreter as figuras masculinas dedicadas a uma tarefa tradicionalmente masculina a especulaccedilatildeo filosoacutefica ou metafiacutesica Todavia ante a sua feminina presenccedila o diaacutelogo que rumava para dimensotildees puramente conceituais e abstratas parece entatildeo abruptamente redirecionar-se A escolha da danccedila no diaacutelogo natildeo parece ser gratuita Para Valeacutery essa atividade do corpo enquanto arte difere como a poesia da prosa de outras formas de movimento de accedilatildeo principalmente por ter seu fim em seu proacuteprio meio sua meta em seu proacuteprio meacutetodo por natildeo almejar um resultado que seja exterior a si mesma mas ao seu proacuteprio desenvolvimento As personagens ou vozes do poeta parecem assim na extrema ambiguumlidade que as rege natildeo poder suportar a encantadora danccedila de Athiktecirc Danccedila que natildeo segue natildeo se submete agraves limitadas regras de um raciociacutenio pragmaacutetico a visar consequumlecircncias pragmaacuteticas que natildeo tenha um objetivo plenamente justificado e preciso Nela os filoacutesofos observam oportunamente um verdadeiro incocircmodo um verdadeiro desafio agrave razatildeo Daiacute o Soacutecrates valeacuteryano desse diaacutelogo (como talvez fizesse a sua versatildeo platocircnica) ousar questionar a inteligecircncia da beldade querendo talvez com isso aproximaacute-la da loucura relativamente contraacuteria agrave lucidez filosoacutefica laquomdash Essa moccedila seraacute talvez uma tolaraquo perguntar-se-aacute ateacute o fim laquomdash E quem sabe que supersticcedilotildees e bagatelas formam sua alma cotidianaraquo O natildeo sentido dessas perguntas acaba contudo revelando-se A danccedila de Athiktecirc aqueles que a contemplam e pouco a compreendem constatam como a razatildeo o grande guia intelectual do gecircnero humano natildeo raro voltado a instrumentalizar as generalizaccedilotildees e abstraccedilotildees que executa com o objetivo de conquistar a natureza eacute particularmente deacutebil frente aos sutis e secretos desiacutegnio do corpo Seus limites satildeo configurados pelo tempo e pelo espaccedilo pela experiecircncia sensiacutevel pela materialidade pela corporeidade agrave qual se condiciona intimamente pois surge e se desenvolve a partir de uma incessante relaccedilatildeo com a proacutepria corporeidade para entatildeo buscar natildeo raro e insistentemente desta se depreender Os movimentos da razatildeo e os movimentos do corpo se condicionam mutuamente apesar do constante desejo de autonomia do primeiro com relaccedilatildeo ao segundo Fiel a esse desejo o Soacutecrates valeacuteryano discursa sobre os sonhos da proacutepria razatildeo sobre a possibilidade de compreender o que todos ali contemplam sobre a inteligibilidade das coisas e Erixiacutemaco intui que todos estejam ante algo que remete ao divino

laquoSoacutecrates Alma voluptuosa vecircs aqui o contraacuterio de um sonho e o acaso ausente Mas o contraacuterio de um sonho que eacute Fedro senatildeo outro sonho Um sonho de vigilacircncia e de tensatildeo que a proacutepria Razatildeo faria E que sonharia uma Razatildeo mdash Pois se uma Razatildeo sonhasse [] o sonho que ela faria natildeo haveria de ser isso que agora vemos mdash esse mundo de forccedilas exatas e de estudadas ilusotildees mdash Sonho [] inteiro penetrado de simetrias soacute ordem soacute ato e sequumlecircncia Quem sabe quais as Leis augustas sonham aqui ter tomado claras faces e concordado no desiacutegnio de manifestar aos mortais de que modo o real o irreal e o inteligiacutevel se podem fundir e combinar-se conforme o poder das Musas

Erixiacutemaco Eacute bem verdade Soacutecrates que o tesouro dessas imagens eacute inestimaacutevel Natildeo eacutes de opiniatildeo que o pensamento dos Imortais seja precisamente o que estamos vendo e que a infinidade dessas nobres semelhanccedilas as conversotildees as inversotildees as diversotildees inesgotaacuteveis que se respondem e deduzem diante de noacutes nos transportam aos conhecimentos divinosraquo

Natildeo se trata portanto de permanecer e discursar apenas sobre uma atividade artiacutestica especiacutefica que entatildeo se apresenta Transgredindo as significaccedilotildees da linguagem cotidiana as vozes ou personagens da Lrsquoacircme et la danse fazem da palavra danccedila mais do que um signo da danccedila transformam-na em um siacutembolo um siacutembolo divino cujo objeto se existe natildeo se revela laquoMallarmeacuteraquo o simbolista Valeacutery enigmaticamente registra laquodisse que a bailarina natildeo eacute uma mulher que danccedila pois ela natildeo eacute uma mulher e natildeo danccedilaraquo Fedro e Erixiacutemaco possuem assim extremas dificuldades em apreender e interpretar o suposto significado da danccedila de Athiktecirc A princiacutepio cada um de acordo com o seu temperamento procura debilmente compreendecirc-la dir-se-ia que apenas atraveacutes da mediaccedilatildeo do conceito Buscando uma ideacuteia segura e constante ldquoclara e distintardquo pretendem encerraacute-la numa definiccedilatildeo precisa como se isso fosse estritamente necessaacuterio Apesar de jaacute desconfiarem da existecircncia de outros planos de consciecircncia ainda operam portanto com a pretensa razatildeo supostamente onipotente e pura que natildeo se tranquumliliza se natildeo puder compreender se natildeo for capaz de categorizar e hierarquizar os fenocircmenos dentro de um sistema de mundo total no qual cada coisa possui seu lugar e funccedilatildeo Sempre mais idealista e impulsivo Fedro quer que ela a danccedila de Athiktecirc represente aquilo com que sonha o amor sempre mais nominalista e contido Erixiacutemaco quer que ela represente aquilo que percebe apenas um exerciacutecio do corpo

Talvez porque busque uma postura intermediaacuteria entre esses ldquoextremosrdquo possiacuteveis ou intua que tudo pode ser uma maviosa miragem a burla de algum deus oculto e brincalhatildeo Soacutecrates todavia e apesar de sua quase natural tendecircncia em inquirir sobre as profundezas do ser ou da realidade final insiste em permanecer como aquele que ainda estaacute em busca de sabedoria natildeo como aquele que jaacute a possui como um filoacutesofo natildeo como um saacutebio algueacutem que sabe apenas que nada sabe e portanto nada mais pode afirmar com absoluta certeza que faz da sua ignoracircncia uma profissatildeo de feacute e uma via Nesse momento ele eacute retratado como o tipo ideal ao qual o Ceticismo Antigo costuma elaborar e insistir tipo que adota como poliacutetica do espiacuterito a luacutecida recusa em afirmar ou em negar o que seja a verdade para assentar-se no aacuterido universo do possiacutevel Como outrora em natildeo raros diaacutelogos de Platatildeo Soacutecrates natildeo se decide por esta ou aquela definiccedilatildeo por esta ou aquela teoria e abandona seus interlocutores com suas opiniotildees e duacutevidas Prefere suspender o juiacutezo permanecer na deleitaacutevel contemplaccedilatildeo sem julgamento sem assentimento da danccedila de Athiktecirc prefere aceitar as incessantes mudanccedilas que constituem essa danccedila e aceitar que essas incessantes mudanccedilas talvez natildeo possam ser cristalizadas por um conceito uacutenico e preciso mas tambeacutem talvez natildeo precisem ser cristalizadas por um conceito uacutenico e preciso prefere aceitar que uma coisa possa receber muitos significados e significados contraditoacuterios entre si e que isso natildeo necessariamente precise ser valorado como algo negativo Mesmo considerando a danccedila de Athiktecirc um incocircmodo um desafio agrave razatildeo Soacutecrates ensaia pensar assim como depois seus amigos ensaiaratildeo que o sentido das coisas surge natildeo pela vontade exclusiva do homem no qual habita mas de uma relaccedilatildeo de uma relaccedilatildeo mdashincessantemdash entre o proacuteprio homem e as proacuteprias coisas Pois a compreensatildeo do mundo pode ocorrer natildeo apenas pelo distanciamento racional mas tambeacutem pela consciente entrega ao fluxo do proacuteprio mundo do qual a arte eacute um dos modelos mais representativos

laquoSoacutecrates Oacute meus amigos o que eacute verdadeiramente a danccedila

Erixiacutemaco [] mdash Que queres de mais claro sobre a danccedila aleacutem da danccedila nela mesma []

Soacutecrates [] Um olhar frio tomaria com facilidade por demente essa mulher bizarramente desenraizada que se arranca sem cessar da proacutepria forma [] Afinal por que tudo isso mdash Basta que a alma se fixe e faccedila uma recusa para soacute conceber a estranheza e o repulsivo dessa agitaccedilatildeo ridiacutecula Se quiseres alma tudo isso eacute absurdo []

Fedro Queres dizer amado Soacutecrates que tua razatildeo considera a danccedila como uma estrangeira cuja linguagem ela despreza cujos costumes lhe parecem inexplicaacuteveis senatildeo chocantes ou ateacute mesmo totalmente obscenos

Erixiacutemaco A razatildeo por vezes me parece ser a faculdade que nossa alma tem de nada entender de nosso corpo [Grifo do autor]

Fedro [] Athiktecirc me parecia representar o amor []

Erixiacutemaco fedro quer a todo custo que ela represente alguma coisa

Fedro Que pensas Soacutecrates [] Crecircs que ela representa alguma coisa

Soacutecrates Coisa nenhuma caro Fedro Mas qualquer coisa Erixiacutemaco [] Natildeo sentis que ela eacute o ato puro das metamorfoses

Fedro [] natildeo posso ouvir-te sem acreditar em ti nem acreditar sem ter prazer em mim mesmo ao acreditar em ti Mas que a danccedila de Athiktecirc nada represente e natildeo seja acima de tudo uma imagem dos transportes e das graccedilas do amor eis o que considero quase insuportaacutevel de ouvir

Soacutecrates Eu nada disse de tatildeo cruel ainda mdash Oacute amigos nada faccedilo aleacutem de perguntar-vos o que eacute a danccedila um e outro de voacutes parece respectivamente sabecirc-lo mas sabecirc-lo totalmente em separado Um me diz que ela eacute o que eacute e que se reduz agravequilo que nossos olhos estatildeo vendo e o outro insiste em que ela represente alguma coisa e que natildeo existe entatildeo inteiramente nela mesma mas principalmente em noacutes [Grifo do autor] Quanto a mim meus amigos minha incerteza fica intacta Meus pensamentos satildeo numerosos mdash o que nunca eacute bom sinalraquo

Eacute certo que o proacuteprio Soacutecrates pergunta laquoo que eacute verdadeiramente a danccedilaraquo a tiacutepica pergunta filosoacutefica cuja resposta revelaria atraveacutes de um processo dialeacutetico a essecircncia mesma das coisas Doravante tambeacutem se recusa solenemente a respondecirc-la eacute relativamente reticente quanto agrave sua adesatildeo a esta ou aquela interpretaccedilatildeo Talvez abrace a esperanccedila de poder encontrar um meio-termo uma conciliaccedilatildeo possiacutevel entre a o ldquoromantismordquo de Fedro e o ldquopragmatismordquo de Erixiacutemaco entre o objetivismo de um e o subjetivismo do outro Contudo observando a pura metamorfose da danccedila de Athiktecirc Soacutecrates muda aparentemente de assunto e retorna agrave temaacutetica inicial do diaacutelogo Com maliacutecia ele pergunta mdashapesar de jaacute conhecer a resposta a sua respostamdash a Erixiacutemaco se haacute um remeacutedio natildeo para o corpo mas para a alma para a alma racional para o que agora surpreendentemente denomina de laquoteacutedio de viverraquo para o taedium vitae Um teacutedio que natildeo tem origem em nenhum infortuacutenio particular mas que surge da extrema lucidez ante a vida Aparentemente essa pergunta surge como um surpreendente despropoacutesito um absurdo tanto para o curso do diaacutelogo como para a visatildeo das preocupaccedilotildees tipicamente socraacuteticas laquoPara curar um mal tatildeo racional [o teacutedio de viver] [] nada de mais moacuterbido em si mesmo nada de tatildeo inimigo da natureza do que ver as coisas como elas satildeoraquo diz Erixiacutemaco

laquoUma fria e perfeita clareza eacute veneno impossiacutevel de se combater O real em estado puro paralisa o coraccedilatildeo Basta uma gota dessa linfa glacial para distender numa alma os mecanismos e as palpitaccedilotildees do desejo exterminar todas as esperanccedilas arruinar todos os deuses que estavam em nosso sangue [] A alma surge diante de si mesma como uma forma vazia e mensuraacutevel mdash Eis que as coisas tais quais satildeo se juntam se limitam e se encadeiam de modo mais rigoroso e mais fatal [] o universo natildeo pode suportar um soacute instante ser apenas o que eacute Eacute estranho pensar que aquilo que eacute o Todo natildeo possa ser suficiente a si mesmo Seu pavor de ser o que eacute fez com que criasse e pintasse mil maacutescaras para si natildeo haacute outra razatildeo para as existecircncias dos mortais Por que existem os mortais mdash Ocupam-se de conhecer [] E o que eacute conhecer mdash Eacute assumir natildeo ser o que se eacute mdash Eis entatildeo os humanos delirando e pensando introduzindo na natureza o princiacutepio dos erros sem limite e essa miriacuteade de maravilhas [] Tudo ameaccedila logo perecer e Soacutecrates em pessoa vem me pedir um medicamento para essa caso desesperado de clarividecircncia e teacutedio

Soacutecrates [] uma vez que natildeo existe medicamento podes dizer-me ao menos que estado eacute o mais contraacuterio a esse horriacutevel estado de desengano puro lucidez assassina e nitidez inexoraacutevel

Erixiacutemaco Vejo inicialmente os deliacuterios natildeo-melancoacutelicos [] A embriaguez e a categoria das ilusotildees devidas aos vapores capitosos

Soacutecrates Bem Mas natildeo haacute formas de embriaguez que natildeo se devem ao vinho

Erixiacutemaco Sem duacutevida O amor o oacutedio a avidez embriagam O sentimento de poder

Soacutecrates Tudo isso daacute cor e gosto agrave vida Mas a chance de odiar ou de amar ou de adquirir grandes quantidades de bens estaacute ligada a todos os acasos do real Natildeo vecircs entatildeo Erixiacutemaco que dentre todas as formas de embriaguez a mais nobre e a mais oposta ao grande teacutedio eacute a embriaguez causada pelos atos Nossos atos e singularmente os atos que potildeem nosso corpo em agitaccedilatildeo podem nos introduzir a um estado estranho e admiraacutevel Eacute o estado mais distante desse triste estado em que haviacuteamos deixado o observador luacutecido e imoacutevel que imaginamos a poucoraquo

Os atos os atos do corpo eis enfim o remeacutedio para o teacutedio esse laquomal tatildeo racionalraquo esse laquotriste estadoraquo A danccedila de Athiktecirc Soacutecrates a compreende como a embriaguez capaz de purificar a proacutepria razatildeo ao momentaneamente afastaacute-la do desejo por uma realidade verdadeira uniacutevoca e imoacutevel agrave qual Erixiacutemaco conjetura ser paralisante e ao aproximaacute-la da realidade sensiacutevel plural e movente

Ao fim numa espeacutecie de febre de deliacuterio miacutestico e altamente hermeacutetico pouco frequumlente em um homem racional Soacutecrates tambeacutem acaba cedendo ao exerciacutecio hermenecircutico de seus companheiros e interpreta aquilo que contempla Entretanto sua interpretaccedilatildeo daacute-se pela negativa natildeo eacute atraveacutes da definiccedilatildeo de uma palavra natildeo eacute a afirmaccedilatildeo categoacuterica de que as coisas sejam deste ou daquele modo mas simplesmente a afirmaccedilatildeo daquilo que um fenocircmeno pode suscitar pode evocar no espiacuterito em seu caso a evocaccedilatildeo poeacutetica de um vasto siacutembolo o siacutembolo da chama Ao comparar esse fenocircmeno natural ao fenocircmeno cultural da danccedila do movimento ele simplesmente considera que se tudo o que ocorre ocorre singularmente de modo uacutenico inimitaacutevel irrecuperaacutevel que ocorra entatildeo como a mais perfeita forma possiacutevel laquoCoisa divina e vivaraquo declama ferozmente Soacutecrates laquoMas o que eacute uma chama oacute amigos senatildeo o proacuteprio momento [] E uma chama natildeo eacute tambeacutem a forma intangiacutevel e orgulhosa da mais nobre destruiccedilatildeo mdash O que nunca mais aconteceraacute acontece magnificamente diante de nossos olhos mdash O que nunca mais aconteceraacute deve acontecer o mais magnificamente possiacutevel [] Mas como [o corpo] luta contra o espiacuterito Natildeo percebeis que quer vencer em velocidade e variedade a sua alma mdash Tem estranho ciuacuteme dessa liberdade e dessa ubiquumlidade que ele crecirc que o espiacuterito possui Sem duacutevida o objeto uacutenico e perpeacutetuo da alma eacute bem aquilo que natildeo existe o que foi e natildeo eacute mais o que seraacute e natildeo eacute ainda o que eacute possiacutevel o que eacute impossiacutevel mdash satildeo bem esses os assuntos da alma mas nunca nunca aquilo que eacute E o corpo que eacute o que eacute eis que natildeo pode mais se conter na extensatildeo mdash Onde ficar mdash Que mudar mdash Essa unidade aspira ao papel do Todo Quer representar a universalidade da alma Quer remediar sua identidade pelo nuacutemero de seus atos Sendo coisa explode em acontecimentos mdash Exalta-se [] Essa mulher que ali estava foi devorada por figuras inumeraacuteveis Esse corpo em seus rompantes me propotildee um pensamento extremo assim como abandonamos nossa alma a muitas coisas para as quais ela natildeo eacute feita e lhes exigimos que nos esclareccedila que profetize que adivinhe o futuro encarregando-a ateacute de descobrir o Deus mdash assim o corpo que ali estaacute quer atingir uma posse completa de si mesmo e um grau sobrenatural de gloacuteria Mas acontece-lhe o mesmo do que com a alma para qual o Deus e a sabedoria e a profundeza que lhes satildeo exigidas natildeo satildeo e natildeo podem ser senatildeo momentos vislumbres fragmentos de um tempo estrangeiro saltos desesperados para aleacutem de sua formaraquo Todavia natildeo eacute de Soacutecrates mas de Athiktecirc providencialmente calada durante toda a danccedila a derradeira palavra laquoAsilo asilo oacute meu asilo Turbilhatildeoraquo ela grita laquomdash Eu estava em ti oacute movimento e fora de todas as coisasraquo Natildeo eacute sem motivo que etimologicamente a palavra athiktecirc (ldquo ἄθικτήrdquo) variaccedilatildeo proveniente do grego antigo ἄθικτος refira-se natildeo apenas agrave casta e agrave virgem mas tambeacutem ldquoagrave intocadardquo ldquoao que natildeo se deve ou natildeo se eacute capaz de tocar por ser sagradordquo Seraacute ela tambeacutem uma sacerdotisa

O diaacutelogo Lrsquoacircme et la danse revela-se assim uma espeacutecie de polifocircnico discurso a versar natildeo apenas sobre a fixidez das formas mas principalmente sobre as variaccedilotildees das formas que incessantemente o espiacuterito a consciecircncia vecirc nascer e morrer num processo que parece natildeo ter fim No digressivo labirinto de seu texto haacute uma relaccedilatildeo relativamente simeacutetrica entre a alma atenta ao tempo passado e futuro como siacutembolo da busca pelo que haacute de uno constante permanente eterno e racional da busca por algum Ser ( τὸ ὄν) e a danccedila atenta ao tempo presente como siacutembolo da entrega ao que haacute de muacuteltiplo inconstante impermanente temporal e irracional da entrega ao Devir ( γίγνεσθαι) Sobre a intensa relaccedilatildeo de todos esses poderosos pares de conceitos assim polarizados conta-se que Platatildeo mdashque fora disciacutepulo de Craacutetilo que por sua vez fora disciacutepulo de Heraacuteclitomdash professou a princiacutepio a doutrina heraclitiana do movimento substancial e somente depois apoacutes encontrar Soacutecrates acabou tambeacutem por aceitar a ideacuteia da existecircncia de um substrato eterno e imutaacutevel fundindo em sua filosofia tambeacutem o pensamento ldquoimobilistardquo de Parmecircnides Dir-se-ia ainda um tanto excessiva e esquematicamente que parte da Histoacuteria da Filosofia Ocidental a partir de entatildeo pode ser tambeacutem compreendida como um embate uma luta constante e sem teacutermino aparente entre todos esses pares de conceitos polarizados e a todos as outras polaridades que eles evocam atraem e repelem XE Montaigne XE Niezstche O diaacutelogo Lrsquoacircme et la danse natildeo deixa de ser herdeiro desse embate dessa luta Demonstra atraveacutes desse Soacutecrates valeacuteryano que a alma e a danccedila (ou o corpo que danccedila) talvez aspirem a realizar uma mesma meta imanente a ambos e em ambos designada por expressotildees distintas respectivamente laquodescobrir o Deusraquo ou laquouma posse completa de si mesmoraquo Todavia isso eacute apenas um desejo um ideal pois a alma parece ser incapaz de alcanccedilar algo aleacutem dos fenocircmenos e a danccedila parece ser incapaz de alcanccedilar a sua proacutepria perfeiccedilatildeo Ser torna-se apenas a aspiraccedilatildeo de ser Portanto haacute que se aceitar o Devir o movimento entregar-se a ele ao fluxo incessante do mundo agraves passagens O que conduz agrave seguinte questatildeo por que deveria haver portanto um antagonismo necessaacuterio entre o compreender e o criar entre o filoacutesofo que se distancia das coisas e do corpo e o artista que se entrega agraves coisas e ao corpo Essa questatildeo em grande parte presente no pensamento de Valeacutery eacute esboccedilada nesse diaacutelogo de vivos Lrsquoacircme et la danse mas plenamente desenvolvida no Eupalinos no qual a ldquoverdaderdquo eacute revelada agravequeles que dialogam no qual o teacutedio referido por Soacutecrates se evidencia de modo inevitaacutevel e atroz no qual o foco recai justamente sobre a alma e o corpo na medida em que se trata de um diaacutelogo de mortos

612 No mundo dos mortos

A morte eacute tradicionalmente um dos fenocircmenos naturais que mais instigam agrave reflexatildeo e agrave imaginaccedilatildeo humanas Com frequumlecircncia o medo eacute a ela associado Muitos tendem a encaraacute-la natildeo como um processo contiacutenuo e imanente agrave proacutepria vida mas como oposta a ela como um momento uacutenico a findar a existecircncia ou como uma cesura a separar duas modalidades da existecircncia a do corpo pereciacutevel limitado no tempo e no espaccedilo e a da alma que perdura em alguma outra dimensatildeo A partir dessa crenccedila mais ou menos generalizada mais ou menos dominante jaacute foi dito que se natildeo a totalidade ao menos a grande parte das metafiacutesicas (ou grande parte delas das que se mesclam com um pensamento mais estritamente religioso) seriam oriundas consciente ou inconscientemente de uma reflexatildeo sobre a morte ou sobre o apoacutes a morte o que pressuporia em natildeo raros casos uma reflexatildeo paralela sobre a assim considerada brevidade da vida e sobre o destino da alma sobre a finitude humana mesmo que tais metafiacutesicas a isso natildeo se referissem direta ou explicitamente Basta lembrar dos espirituosos ditos de um Ciacutecero e de um Michel de Montaigne amiuacutede voltados a refletir sobre a melhor forma de se viver Dir-se-ia natildeo sem ironia que por serem mortais os homens filosofam deuses imortais por definiccedilatildeo natildeo necessitariam de filosofia

Num dos seus mais ceacutelebres mitos imagem cujo padratildeo eacute surpreendentemente mais ou menos recorrente em outras culturas e temporalidades Platatildeo tambeacutem reflete sobre a existecircncia do e no ldquomundo dos mortosrdquo Em seu diaacutelogo Fedro ele imagina um lugar supra-celeste ( τόπος ὑπερουράνιος) que laquonenhum poeta cantou nem jamais cantaraacute dignamenteraquo e onde a alma tanto dos homens quanto dos deuses eacute comparada a um carro alado composto por um cocheiro representante da razatildeo e por dois cavalos ambos doacuteceis no caso da alma dos deuses um doacutecil e o outro indoacutecil no caso da alma dos homens Numa eterna cavalgada a alma dos homens ao contraacuterio da alma dos deuses eacute aquela que naturalmente natildeo conseguiria manter por muito tempo o equiliacutebrio Daiacute a queda daiacute as sucessivas reencarnaccedilotildees no ldquomundo dos vivosrdquo e tudo o que adveacutem ao se ter um corpo pereciacutevel que nasce cresce e envelhece Em seu estado original ou natural a alma dos homens tambeacutem seria capaz de contemplar de acordo com o seu maior ou menor grau de pureza uma maior ou menor quantidade destes ldquo entes eternosrdquo natildeo sujeitos ao devir do mundo sensiacutevel material as Ideacuteias ( εἶδος) formas modelos ou arqueacutetipos regras ou leis ldquo sobretudordquo dos objetos matemaacuteticos e dos objetos de valores (como o belo o bom o justo etc) Quando entretanto envolta por um corpo a alma perceberia apenas as coisas sensiacuteveis materiais com exceccedilatildeo daquela que se dedicasse agrave filosofia capaz ao menos de ter um certo vislumbre das Ideacuteias O que insinuaria certa relaccedilatildeo certo ponto de contato certa participaccedilatildeo entre o ldquomundo dos mortosrdquo e o ldquomundo dos vivosrdquo Supotildee-se que depois da morte o homem voltando a ser somente alma voltando a ser aquilo que sempre foi poderaacute novamente contemplar aquilo que em vida natildeo era tatildeo capaz

Toda essa cosmovisatildeo poderia facilmente sugerir a escrituraccedilatildeo de um diaacutelogo de mortos Influenciado por Menippus de Gadara (seacuteculo III aC) o aventureiro semita Luciano de Samoacutesata (seacuteculo II dC) escreve entre tantas obras o seu ceacutelebre Diaacutelogo dos Mortos e lega uma influecircncia natildeo menos proveitosa para o seacuteculo XVI francecircs com seus inuacutemeros personagens homens heroacuteis e deuses a satirizar a fama a gloacuteria e a vaidade dos homens No seacuteculo XVII o cartesiano Bernard le Bouvier de Fontenelle e o ceacutelebre arcebispo de Combrai Franccedilois de Salignac de la Mothe-Feacutenelon tambeacutem publicam as suas versotildees

Contudo talvez tenha sido Valeacutery o autor que realmente explorou de modo expliacutecito essa rica possibilidade formal descrevendo a imaginaacuteria aventura intelectual e memorialista de um Soacutecrates e de um Fedro ambos desencarnados ante um estranho mundo natildeo-sensiacutevel natildeo-material No seu ceacutelebre Dialogues des morts o Eupalinos (1921) ele natildeo se questiona estrategicamente sobre o porquecirc do fenocircmeno da morte pois a morte laquoessa aventura extraordinaacuteria essa modificaccedilatildeo maacutegica essa coisa incriacutevel que acontece a todos os outros enquanto eles satildeo outrosraquo laquonatildeo julga a vida Natildeo eacute objeto da vidaraquo Tampouco em momento algum refere-se a uma feacuterrica loacutegica de recompensas e de puniccedilotildees a qualquer tipo de salvaccedilatildeo ou perdiccedilatildeo que supostamente a alma estaria sujeita como frequumlentemente ocorre nos grandes sistemas religiosos do Ocidente Natildeo haacute a faacutecil evocaccedilatildeo de uma doutrina que julgue o ser humano pondo minuciosamente numa balanccedila os viacutecios e as virtudes as intenccedilotildees e as accedilotildees que possa ter cometido ou deixado de cometer em vida para entatildeo marcar a sua pertenccedila na eternidade O poeta purga seu diaacutelogo desse tipo de polecircmica religiosa e de qualquer tentativa de promulgar uma soteriologia uma moral Escrito como diz a sua calorosa epiacutegrafe simplesmente laquo Para agradarraquo (laquo Πρός χάρινraquo) e natildeo para doutrinar o Eupalinos natildeo deixa de ser uma poderosa representaccedilatildeo de um pensamento sobre a vida e para a vida esta eacute o que verdadeiramente importa esta eacute o que parece ser sub-repticiamente a meta capital de todo esse diaacutelogo

A princiacutepio o fiel disciacutepulo busca o seu querido mestre que como habitualmente fazia em vida havia se isolado agora natildeo dos outros vivos mas dos outros mortos nas laquofronteiras deste impeacuterio transparenteraquo para perder-se em si mesmo Questionado por Fedro sobre o que estaacute pensando Soacutecrates daacute o insoacutelito tom de todo o diaacutelogo laquoEspera Natildeo posso responder Bem sabes que nos mortos a reflexatildeo eacute indivisiacutevel Estamos agora muito simplificados para que uma ideacuteia natildeo nos absorva ateacute o final de seu curso Os viventes tecircm um corpo que lhes permite sair do conhecimento e neles reentrar Satildeo feitos de uma casa e de uma abelharaquo Doravante como bons gregos que se comprazem em tudo discutir eles procuram friamente avaliar a nova e estranha condiccedilatildeo na qual se encontram O mundo percebido pelos sentidos o mundo dos vivos por mais caoacutetico que possa agraves vezes parecer ou ser assim considerado natildeo deixa de ter uma ordenada heterogeneidade de ldquocoresrdquo e ldquoformasrdquo haacute uma loacutegica talvez natildeo nele mas que dele pode ser depreendido Essa propriedade e a contiacutenua apariccedilatildeo e desapariccedilatildeo de fenocircmenos que a razatildeo avalia como semelhantes ou diferentes permitem o prodigioso desenvolvimento mesmo da linguagem e da ciecircncia jaacute que estas se assentam em regularidades Dir-se-ia que esse mundo natildeo eacute um caos uma desordem mas um cosmos uma ordem O ser humano qualquer um pode nele mdashe ao fazer parte delemdash distinguir um objeto do outro pode nomeaacute-lo e passar esse nome agraves geraccedilotildees futuras na relativa esperanccedila que os objetos continuem mais ou menos como satildeo pode observar onde esta paacutegina comeccedila e termina e assim reconhececirc-la e chamaacute-la de paacutegina assim como tambeacutem pode distinguir o tamanho ou a extensatildeo de seu corpo mediante a diferenciaccedilatildeo de outros corpos que isto eacute sua matildeo e isto a pena que sua matildeo segura e com a qual escreve

Em seu comportamento o mundo dos mortos descrito e induzido por Valeacutery contrasta enormemente com um assim posto mundo dos vivos a princiacutepio natildeo se distancia em muito do que segundo o proacuteprio Soacutecrates de Platatildeo deve ser laquoa realidade que eacute verdadeiramente sem cor sem forma impalpaacutevel e que soacute pode ser contemplada pela razatildeo piloto da almaraquo Contudo diferentemente do que essa razatildeo possa habitualmente conjeturar eacute um lugar esteacuteril sem referecircncias fluido em demasia Os mortos satildeo assim incapazes de precisar os contrastes e os limites de distinguir onde ou quando uma coisa termina e outra comeccedila consequumlentemente descrevecirc-las nomeaacute-las torna-se quase impossiacutevel Capturados por essa celerada realidade Soacutecrates e Fedro estatildeo como que impedidos de retirar do que percebem representaccedilotildees fixas e portanto generalizaccedilotildees das quais se possa novamente especular Inventar uma nova linguagem e uma nova ciecircncia uma nova filosofia fazer teorias a partir desse mundo tais tarefas seriam como que impossiacuteveis e ingratas jaacute que a linguagem e a ciecircncia e mesmo a filosofia satildeo ao menos em seus movimentos iniciais derivadas da incessante relaccedilatildeo com os fenocircmenos sensiacuteveis materiais derivadas da experiecircncia Porque nesse imortal mundo onde as almas aportam tudo eacute pura passagem tempo sem mateacuteria tempo mdashparadoxalmentemdash sem espaccedilo

laquoFedro Comeccedilo a enxergar algo Mas nada distingo Meus olhos por instantes seguem tudo o que passa e o que deriva mas perdem-se antes de ter discernido Se eu natildeo estivesse morto ficaria nauseado com esse movimento tatildeo triste e irresistiacutevel Ou entatildeo sentir-me-ia constrangido a imitaacute-lo agrave maneira dos corpos humanos adormeceria para tambeacutem fluir []

Fedro Creio a cada momento que vou discernir alguma forma mas o que acreditei ver natildeo desperta em meu espiacuterito a menor similitude

Soacutecrates Eacute que assistes [] ao verdadeiro fluir dos seres Desta margem tatildeo pura vemos todas as coisas humanas e as formas naturais movidas segundo a velocidade proacutepria de sua essecircncia Somos como o sonhador em cujo seio figuras e pensamentos bizarramente alterados pela proacutepria fuga os seres se compotildeem com suas mudanccedilas Aqui tudo eacute indiferente e no entanto tudo importa Os crimes engendram imensos benefiacutecios e as maiores virtudes desencadeiam consequumlecircncias funestas o julgamento natildeo se fixa em parte alguma a ideacuteia faz-se sensaccedilatildeo sob o olhar e cada homem arrasta consigo uma sucessatildeo de monstros inextrincavelmente surgidos de seus atos e das formas sucessivas de seu corpo Penso na presenccedila e nos haacutebitos dos mortais nesse curso tatildeo fluido e que estive entre eles tratando de ver todas as coisas como as vejo precisamente agora Eu colocava a Sabedoria na postura eterna em que estamos Mas daqui tudo eacute irreconheciacutevel A verdade estaacute diante de noacutes e natildeo compreendemos mais nadaraquo

A verdade (ἀληθής) natildeo a pragmaacutetica natildeo a postulada pela correta relaccedilatildeo entre proposiccedilatildeo e representado como adaequatio intellectus et rei mas a ontoloacutegica enquanto descobrimento ou desvelamento daquilo que estaacute oculto enquanto passagem do sensiacutevel para o inteligiacutevel enquanto abertura para o real o homem que eacute capaz de reconhececirc-la torna-se incapaz de compreendecirc-la a verdade miseravelmente pouco ou de nada lhes serve Eis assim que se configura a elegante e capital ironia de Valeacutery e a partir da qual o seu diaacutelogo de mortos se desenvolve as almas errantes de Fedro e de Soacutecrates natildeo encontram mdashpara grande espanto de ambos os filoacutesofosmdash algo que poderiam dizer com convicccedilatildeo serem as Ideacuteias nenhum arqueacutetipo nenhuma hierarquia celeste nenhuma entidade eterna e nenhum Demiurgo os aguardavam a eles que buscaram em vida caminhar na retidatildeo da justiccedila e da virtude tampouco ocorre nenhum julgamento das almas como jaacute no Fedro se anuncia Nada daquilo que foi ldquoutopicamenterdquo prometido por uma doutrina que eles mesmos (ou Platatildeo) desenvolveram (ou reinventaram a partir da experiecircncia com a tradiccedilatildeo religiosa grega) no exerciacutecio especulativo de seus diaacutelogos terrenos ali se encontra Naturalmente tampouco a mateacuteria as coisas ou os fenocircmenos mdashos simulacros imperfeitos das Ideacuteiasmdash Nesse estranho e conjetural mundo dos mortos a essecircncia eacute movente e natildeo estaacutetica excessivamente movente a ponto de a tudo liquidar ou transformar o que em vida se considerava bom em morte pode ser considerado mal os opostos se misturam ou se invertem

Aqui evidencia-se que o diaacutelogo Eupalinos propositadamente ou natildeo dialoga com os diaacutelogos platocircnicos mais precisamente com o proacuteprio Fedro Neste agraves margens do rio Ilisso em meio a uma caminhada procurando responder a quem se deve agradar discutindo sobre a beleza e o amor Soacutecrates conta a um jovem Fedro justamente o mito da alma como carro alado e uma das versotildees da sua Teoria das Ideacuteias naquele no mundo dos mortos eacute Fedro que agora conta a Soacutecrates suas justificadas desconfianccedilas para com as reais vantagens que uma alma totalmente liberta do corpo venha a ter e consequumlentemente seus sentimentos para com a proacutepria noccedilatildeo daquilo que venha a ser realmente o polivalente conceito de Ideacuteia particularmente o da Ideacuteia do Belo (κάλος) mdashagrave qual o Soacutecrates valeacuteryano e Eupalinos perseguemmdash Como um ousado aprendiz que honra seu mestre ao contradizecirc-lo ao refutaacute-lo ele a questiona e a transforma passa a natildeo (mais) acreditar Nela como realidade em si Onde o Belo se encontra se natildeo haacute objetos sensiacuteveis dos quais se possa dizer que satildeo ou natildeo verdadeiramente belos A beleza XE arte eacute sempre inexoravelmente transitoacuteria a beleza eacute portanto para manter-se no registro do espiacuterito antigo uma condiccedilatildeo possiacutevel daquilo que natildeo eacute Ela soacute poderia ocorrer na vida natildeo na morte na mateacuteria natildeo no espiacuterito no que passa natildeo no que fica em tudo o que eacute ldquoirrealrdquo A Beleza deriva das belas coisas O seu conceito como qualquer outro que natildeo tenha como ser mesurado ou quantificado como qualquer outro qualificativo e abstraccedilatildeo natildeo eacute objetivo condiciona-se agraves subjetividades e agraves culturas aos interesses (conscientes ou inconscientes) daqueles que o professam ao modo como determinados padrotildees formais satildeo valorados Porque todo conceito deriva de uma experiecircncia sensiacutevel de um choque entre um eu e um natildeo-eu E a beleza mdashque tantas discussotildees suscitamdash a isso natildeo foge

laquoFedro [] O que haacute de mais belo natildeo figura no eterno [] Nada de belo eacute separaacutevel da vida e vida eacute o que morre

Soacutecrates Eacute possiacutevel dizecirc-lo desse modo Mas a maior parte dos homens tem da beleza uma noccedilatildeo imortal

Fedro Eu te direi Soacutecrates que a beleza segundo o Fedro que eu fui

Soacutecrates Platatildeo natildeo estaacute nessas paragens

Fedro Falo contra ele

Soacutecrates Pois bem fala

Fedro natildeo reside em certos raros objetos nem mesmo nesses modelos situados fora da natureza e contemplados pelas almas mais nobres como exemplares de seus desenhos e os tipos secretos de seus trabalhos coisas sagradas e das quais conviria falar com as proacuteprias palavras do poeta

Gloacuteria do longo desejo Ideacuteias [ Gloire du long deacutesir Ideacutees]

Soacutecrates Qual poeta

Fedro O admirabiliacutessimo Stephanos que apareceu tantos seacuteculos depois de noacutes Mas em meu sentimento a ideacuteia dessas Ideacuteias das quais nosso maravilhoso Platatildeo eacute o pai eacute excessivamente simples e tambeacutem pura demais para explicar a diversidade das Belezas a mudanccedila das preferecircncias dos homens o esquecimento de tantas obras que haviam sido elevadas agraves nuvens as criaccedilotildees novas e as ressurreiccedilotildees impossiacuteveis de prever Haacute muitas outras objeccedilotildeesraquo

A partir dessa proposta de discurso apoacutes o espanto Soacutecrates e Fedro refletem e divagam sobre algo mais especiacutefico em que o conceito mesmo de beleza costuma ser atrelado sobre a arte e os procedimentos artiacutesticos sobre a accedilatildeo o fazer a arte de um distanciado amigo de Fedro o enigmaacutetico arquiteto Eupalinos de Meacutegara a quem Soacutecrates desconhecia e para quem ao fim acaba rendendo homenagens Na eternidade na qual se encontram restam a eles apenas a rememoraccedilatildeo e a conversa resta a eles talvez esta atividade que reduzida agrave sua maacutexima simplicidade soacute necessita de consciecircncia e de memoacuteria das experiecircncias que natildeo podem mais se repetir a filosofia que agora adquire um caraacuteter de consolaccedilatildeo Visionaacuterios de um passado a ser revistado continuamente eles acabam trocando pensamentos quase melancoacutelicos como anjos que se debruccedilam sobre a preocupada cabeccedila dos imortais suas vozes natildeo versam mais sobre o Ceacuteu e o incondicionado mas sobre a Terra e o condicionado No mundo dos mortos os mortos se voltam para o mundo dos vivos

Assim da colocaccedilatildeo do Fedro valeacuteryano mdashmais malicioso do que o singelo que se apresenta na versatildeo platocircnicamdash de querer falar contra Platatildeo inicia-se uma engenhosa criacutetica agrave antiga metafiacutesica idealista Essa criacutetica pode ser enunciada em siacutentese pelo seguinte paralelo se os diaacutelogos platocircnico-socraacuteticos tecircm na pluralidade dos seus interesses e contradiccedilotildees como uma das metas centrais a descriccedilatildeo o elogio e a promulgaccedilatildeo do Mundo das Ideacuteias daquilo que eacute impereciacutevel imutaacutevel os breves diaacutelogos socraacuteticos de Valeacutery mdashdo qual o Eupalinos pode ser compreendido como a sua versatildeo mais acabada e completa aquele que cumpre essa concepccedilatildeo com mais vigormdash referem-se quase vinte quatro seacuteculos depois apoacutes a secularizaccedilatildeo de grande parte da civilizaccedilatildeo e o advento da Ciecircncia Moderna ao Mundo dos Fenocircmenos daquilo que eacute pereciacutevel mutaacutevel se uns se atecircm agrave realidade espiritual os outros se atecircm agrave realidade material Dir-se-ia talvez um tanto excessivamente que os uacuteltimos situam-se apesar de suas despretensiosas brevidades nas antiacutepodas dos primeiros todavia nada impede que eles tambeacutem natildeo possam ser considerados como estranhas continuaccedilotildees dos primeiros Afinal tudo o que se estabelece como criacutetica tambeacutem se estabelece dialeticamente como herdeiro Uma inversatildeo do platonismo sim talvez seja justamente isso o que no Eupalinos se realiza ou se busca realizar A fidelidade a Terra e ao Corpo como promulga Nietzsche eacute nesse diaacutelogo de mortos irocircnica e humildemente representada natildeo como uma dogmaacutetica e intransigente defesa da dimensatildeo sensiacutevel material mas como suave e estranha ficccedilatildeo que apenas afirma a realidade e a importacircncia dessa dimensatildeo sensiacutevel material sem desprezar as abstraccedilotildees e a razatildeo do espiacuterito E afirma justamente para a proacutepria vida do espiacuterito para o proacuteprio programa de autoconsciecircncia valeacuteryano

6121 A oraccedilatildeo de Eupalinos

Nessas condiccedilotildees compreende-se sem duacutevida qual eacute para mim a funccedilatildeo da poesia Eacute alimentar o espiacuterito do homem fazendo-o desembocar no cosmo Basta rebaixar nossa pretensatildeo de dominar a natureza e elevar nossa pretensatildeo de fazer fisicamente parte dela para que a reconciliaccedilatildeo tenha lugar

Francis Ponge Meacutetodos

Durante muito tempo foi insistentemente engendrada e propagada a antropocecircntrica crenccedila de que este mundo mdashpor se degenerar por se estar em constante movimento por ser uma derivaccedilatildeo do pecado original ou por qualquer outro motivo que a isso se relacionemdash eacute essencialmente mal corrompido e tudo que nele se insira todas as criaturas todas as invenccedilotildees e artes humanas tambeacutem compartilham em maior ou menor grau dessa deacutebil natureza A filosofia de Platatildeo e sua posterior apropriaccedilatildeo pelo Judaiacutesmo e pelo Cristianismo promoveram em muito essa cosmovisatildeo a tal ponto que se tornou em maior ou menor grau uma relativa constante na mentalidade do Ocidente E se hoje apoacutes o advento da Ciecircncia Moderna da industrializaccedilatildeo e do processo de laicizaccedilatildeo jaacute natildeo eacute tatildeo operante e jaacute tenha sido intensamente criticada inclusive pelo proacuteprio Cristianismo as caracteriacutesticas morais a ela atreladas seus duros elementos psicoloacutegicos transcendidas de seu contexto original como pecado culpa e remorso ainda o satildeo persistem Atrelado a isso quiccedilaacute o que mais sofreu com isso foi o corpo Este foi definido por Platatildeo e principalmente por Aristoacuteteles como um instrumento da alma mas tambeacutem como uma prisatildeo a obliterar e a degenerar a proacutepria alma a impedi-la de ser o que plenamente eacute

Como criacutetica a essa uacuteltima concepccedilatildeo e ao que ela costuma acarretar levanta-se parte do pensamento moderno jaacute um tanto incapaz de suportar tal aversatildeo aos desejos e aos afetos frequumlentemente condicionados pela dimensatildeo fiacutesica do mundo assim como Valeacutery que nunca deixou de escrever paradoxalmente entre a voluacutepia das sensaccedilotildees e o ascetismo do intelecto laquopelo olhar do espiritualraquo sentencia o poeta em seu diaacutelogo Περὶ τῶν τοῦ θεοῦ - Ou des choses divines laquoo mundo mdash humano eacute maldito mdashraquo Nesse sentido o Eupalinos eacute mesmo que sub-repticiamente mesmo que na multiplicidade de suas tatildeo diversas reflexotildees um dos seus mais incisivos escritos natildeo se limita apenas ao questionamento da doutrina das Ideacuteias platocircnicas atraveacutes da ausecircncia destas no mundo dos mortos mas tambeacutem vai ao questionamento da tradicional desvalorizaccedilatildeo sofrida pelo corpo desvalorizaccedilatildeo que em parte surge de uma apropriaccedilatildeo ou interpretaccedilatildeo da proacutepria Teoria das Ideacuteias platocircnicas assim como de tantas outras metafiacutesicas idealistas Inverter o platonismo natildeo eacute portanto mera criacutetica a Platatildeo pois muitas vezes a tradiccedilatildeo que leva seu nome dele se distancia inverter o platonismo eacute sobretudo desconfiar da crenccedila segundo a qual o importante para a vida transcende necessariamente a proacutepria vida segundo a qual a dimensatildeo do fenocircmeno o mundo transitoacuterio que aos sentidos assim se apresenta eacute numa suposta hierarquia eacutetica do cosmos inferior agrave dimensatildeo da nuacutemeno agraves construccedilotildees mentais que representam supostas estruturas eternas e imutaacuteveis inverter o platonismo eacute portanto conferir um outro valor ao corpo e agraves coisas do corpo Inserido numa sociedade que tende a aceitar com mais toleracircncia essa inversatildeo na medida em que ela jaacute vem se operando em maior ou menor grau como que naturalmente desde a quase inevitaacutevel cesura entre metafiacutesica tradicional e Ciecircncia Moderna o Eupalinos de Valeacutery torna-se assim um verdadeiro discurso agrave aceitaccedilatildeo da materialidade do mundo e a vaacutelida tentativa de atraveacutes de atividades como ciecircncia teacutecnica e arte transformar mesmo que passageiramente mesmo que de modo natildeo duraacutevel essa materialidade sem a necessidade de uma crenccedila qualquer em um outro transcendente que a sustente e a justifique que conforte e console Por que compreender alma e corpo como duas substacircncias distintas opostas ou contraacuterias por que ao se almejar a felicidade eterna acabe-se por adquirir uma natildeo rara aversatildeo ao corpo e ao mundo sensiacutevel material como se assim se pudesse afastar do sofrimento que adveacutem do apego ao proacuteprio corpo e ao proacuteprio mundo sensiacutevel material Natildeo seria isso ignorar ou querer ignorar que natildeo eacute necessaacuterio sofrer se ao admirar a beleza que sente ante a ocorrecircncia de um determinado fenocircmeno aceitar que este iraacute nascer crescer envelhecer morrer e se transformar em algo outro que este natildeo dura para sempre

Valeacutery defende assim pela poesia em prosa de seu diaacutelogo de mortos a possibilidade dessa perspectiva a importacircncia do corpo sobretudo para a consciecircncia que soacute entatildeo plenamente se desenvolveraacute atraveacutes dele laquoO pensamento natildeo eacute seacuterio senatildeo pelo corporaquo afirma laquoEacute a apariccedilatildeo do corpo que daacute o seu peso sua forccedila suas consequumlecircncias e seus efeitos definitivosraquo laquoTodo Sistema filosoacutefico no qual o Corpo do homem natildeo tem um papel fundamental eacute inepto inaptoraquo laquoO filoacutesofo natildeo tem o inteacuterprete do corporaquo E tais reflexotildees esparsas natildeo deixam de estar relativamente proacuteximas da filosofia de Nietzsche segundo a qual laquoaquele que estaacute desperto aquele que eacute saacutebio diz sou o corpo todo e nenhuma outra coisa e a alma eacute somente uma palavra para designar algo no corpo O corpo eacute uma grande razatildeo uma pluralidade dotada de um uacutenico sentido uma guerra e uma paz um rebanho e um pastorraquo

Em favor dessa revalorizaccedilatildeo redentora do mundo sensiacutevel material e por conseguinte do corpo Fedro evoca estrategicamente caras lembranccedilas seus diaacutelogos com Eupalinos o arquiteto que lhe mostrou como executar uma arte que diferentemente do que se possa esteticamente idealizar eacute sobretudo um embate constante e iacutentimo com as possibilidades e os limites da natureza da mateacuteria Para surpresa de Soacutecrates os fins do arquiteto natildeo lhe parecem ser tatildeo diferentes dos promulgados pelos filoacutesofos pois natildeo se reduzem apenas a questotildees de ordem pragmaacutetica como a busca da funcionalidade de um edifiacutecio e da beleza que este cumpre suscitar mas tambeacutem a si mesmo ao autoconhecimento socraacutetico ou agrave autoconsciecircncia valeacuteryana laquoQuanto mais medito sobre minha arteraquo diz o arquiteto a Fedro laquomais a exerccedilo quanto mais penso e faccedilo mais sofro e me regozijo como arquiteto mdash e mais me sinto eu mesmo com voluacutepia e clareza sempre mais precisas [] avanccedilo em minha proacutepria edificaccedilatildeo aproximo-me de tatildeo exata correspondecircncia entre meus desejos e minhas forccedilas que tenho a impressatildeo de haver feito da existecircncia que me foi dada uma espeacutecie de obra humana De tanto construir disse-me sorrindo creio ter-me construiacutedo a mim mesmoraquo laquoConstruir-se conhecer-se a si mesmo satildeo dois atos ou natildeoraquo pergunta-se Soacutecrates A resposta a essa capital pergunta para Valeacutery eacute naturalmente afirmativa conhecer-se tambeacutem eacute construir-se Conhecer-se eacute agir-se fazer-se Contudo para um Soacutecrates valeacuteryano que como o platocircnico radicalmente diz laquojamais tive outra prisatildeo aleacutem do meu corporaquo resta a Fedro referir-se ao ideal de Eupalinos laquoImagina pois com nitidez um mortal bastante puro razoaacutevel sutil e tenaz poderosamente armado por Minerva para meditar ateacute o fundo do seu ser logo ateacute o extremo da realidaderaquo assim propotildee o arquiteto laquoessa estranha alianccedila de formas visiacuteveis com efecircmeras combinaccedilotildees de sons sucessivos pensa de que origem iacutentima e universal se aproximaria a que precioso ponto se alccedilaria que deus encontraria em sua proacutepria carne E possuindo-se enfim nesse estado de divina ambiguumlidade propusesse a si proacuteprio construir natildeo sei quais monumentos [] Imagina que edifiacutecios [] Certa vez estive infinitamente perto de experimentaacute-lo mas somente da maneira como possuiacutemos durante um sonho o objeto amado Posso apenas falar-te das aproximaccedilotildees a algo tatildeo grandioso Ao anunciar-se caro Fedro difiro logo de mim mesmo [] Sou completamente outro eu [] As forccedilas acorrem [] Ei-las carregadas de clareza e de erro o verdadeiro e o falso brilham igualmente em seus olhos [] Esmagam-me com seus dons assediam-me com suas asas Fedro eis aqui o perigo Nada haacute mais difiacutecil no mundo Oacute momento supremo e dilaceramento capital Essas graccedilas superabundantes e misteriosas longe de acolhecirc-las tais e quais deduzidas unicamente do grande desejo inocentemente formadas pela extrema espera da alma eacute necessaacuterio que eu as suspenda oacute Fedro e que elas aguardem o meu sinal E tendo-as obtido por uma espeacutecie de interrupccedilatildeo de minha vida (adoraacutevel suspensatildeo do tempo comum) quero ainda dividir o indivisiacutevel moderar e interromper o nascimento das Ideacuteias [Grifo do autor] mdash Oacute infeliz disse-lhe eu que queres fazer no aacutetimo de um relacircmpago mdash Ser livre [] haacute tudo nesse instante e tudo com que se ocupam os filoacutesofos passa-se entre o olhar que cai sobre um objeto e o conhecimento que daiacute resulta para concluiacuterem sempre prematuramente mdash Natildeo te compreendo Esforccedilas-te pois em retardar as Ideacuteias mdash Eacute necessaacuterio Impeccedilo-as de me satisfazer difiro a pura felicidade []Importa-me acima de tudo obter do que iraacute ser que satisfaccedila com todo o vigor de sua novidade as exigecircncias razoaacuteveis daquilo que foiraquo

Partindo de um artista ideal de um homem universal o Eupalinos valeacuteryano propotildee com outras palavras e num outro contexto o mesmo meacutetodo do Leonardo valeacuteryano Ambos satildeo personificaccedilotildees de uma compreensatildeo formalista da criaccedilatildeo artiacutestica ambos natildeo creditam um significado uacutenico e fixo agraves obras que executam e se aproximam naturalmente no modo como contemplam e como trabalham as coisas que lhe satildeo dadas procuram natildeo concluir prematuramente procuram suspender ao menos provisoriamente a tendecircncia que a consciecircncia tem em generalizar e em universalizar em abstrair para poder com isso ater-se agrave realidade sensiacutevel e compreender melhor sem conceitos como sua arte deveraacute ser concebida e construiacuteda Humilde o arquiteto natildeo se refere a si mesmo como algueacutem que alcanccedilou a plenitude dessa singular suspensatildeo ele caminha em direccedilatildeo a ela e seu caminho eacute uma ascese Pratica atraveacutes de sua arte o autoconhecimento socraacutetico ou a autoconsciecircncia valeacuteryana Contudo diferentemente dos filoacutesofos convencionais sua meta natildeo eacute apenas um ir a si mesmo fora do mundo mas um ir a si mesmo no mundo natildeo eacute um distanciar-se mas um aproximar-se eacute sobretudo uma imprescindiacutevel conciliaccedilatildeo ou para usar uma palavra mais condizente com uma visatildeo relativamente idealista do passado uma re-conciliaccedilatildeo ou ainda na sugestiva e misteriosa palavra do poeta uma laquoalianccedilaraquo (laquoallianceraquo) Uma alianccedila natildeo como aquela que Deus impotildee ao homem mas entre o corpo e a alma entre a mateacuteria e o espiacuterito entre o profano e o sagrado mas tambeacutem consequumlentemente entre a ciecircncia teacutecnica e arte Conciliaccedilatildeo plenamente realizaacutevel atraveacutes da accedilatildeo ou do fazer do fazer a arte e da qual nasce a tatildeo ansiada e procurada beleza Assim em sua pragmaacutetica Eupalinos acaba professando uma sincera e delirante ldquooraccedilatildeo sobre o corpordquo a partir da qual posteriormente Fedro e Soacutecrates iratildeo especular e ultimar por si mesmos os desiacutegnios de um pensamento que seja ao mesmo tempo praacutetico e teoacuterico que resulte em obras de arte laquoNatildeo sei como esclarecer-te muito bem a respeito do que para mim mesmo natildeo estaacute claroraquo comeccedila Eupalinos

laquoao compor uma morada (quer para os deuses quer para os homens) ao buscar sua forma com amor aplicando-me em criar um objeto que delicie os olhos que se entretenha com o espiacuterito que esteja de acordo com a razatildeo e as numerosas conveniecircncias eu te direi esta coisa estranha que me parece entranhar-se na obra toda o meu corpo [] O corpo eacute um instrumento admiraacutevel pelo qual me asseguro de que os viventes tendo-o cada qual a seu serviccedilo dele natildeo dispotildeem em plenitude extraem apenas prazer dor e os atos indispensaacuteveis para viver Ora confundem-se com ele ora distraem-se por algum tempo de sua existecircncia ora animais ora puros espiacuteritos ignoram os viacutenculos universais que possuem Graccedilas no entanto agrave prodigiosa substacircncia de que satildeo feitos participam do que vecircem e do que apalpam satildeo pedras aacutervores trocam contatos e intimidade com a mateacuteria que os engloba tocam satildeo tocados pensam e sustentam pesos movem e transportam suas virtudes e seus viacutecios e quando entram em devaneio ou em sono indefinido reproduzem a natureza das aacuteguas fazem-se areias e nuvens Em outras ocasiotildees acumulam e projetam o raio Mas sua alma natildeo sabe se servir exatamente dessa natureza que lhe estaacute tatildeo proacutexima e que ela penetra Adianta-se atrasa-se parece fugir do proacuteprio instante Abalada ou impelida retira-se para dentro dela mesma onde se perde em seu vazio gerando fumaccedila Mas eu inteiramente ao contraacuterio instruiacutedo pelos meus erros digo em plena luz repito a cada aurora ldquoOacute corpo meu que me lembrais a todo momento o temperamento de minha iacutendole o equiliacutebrio de vossos oacutergatildeos as justas proporccedilotildees de vossas partes que voz fazem existir e vos restabelecem no seio das coisas moventes vigiai minha obra ensinai-me silenciosamente as exigecircncias da natureza comunicai-me essa grande arte da qual sois feito da qual sois dotado de sobreviver agraves estaccedilotildees e de vos refazer dos acasos Que eu encontre em vossa alianccedila [alliance] o sentimento das coisas verdadeiras moderai fortalecei assegurai meus pensamentos Pereciacutevel que sois voacutes os sois bem menos que meus sonhos perdurais mais que uma fantasia pagais pelos meus atos expiais pelos meus erros Instrumento vivo da vida sois para cada um de noacutes o uacutenico objeto que se compara ao universo A esfera inteira vos tem por centro oacute coisa reciacuteproca da atenccedilatildeo de todo o ceacuteu estrelado Sois verdadeiramente a medida do mundo do qual minha alma apresenta-me apenas o exterior Ela o concebe sem profundidade e tatildeo futilmente que por vezes se engana contando-o entre seus sonhos ela duvida do sol Enfatuada de suas efecircmeras fabricaccedilotildees crecirc-se capaz de uma infinidade de realidades diferentes imagina existirem outros mundos mas voacutes a chamais de novo a voacutes mesmos como a acircncora a si o navio Minha inteligecircncia mais bem inspirada natildeo cessaraacute caro corpo de chamar-vos a si doravante nem voacutes eu o espero de prodigar-lhe vossas presenccedilas vossas instacircncias vossos afetos pontuais pois encontramos finalmente voacutes e eu o meio de nos unirmos o noacutes indissoluacutevel de nossas diferenccedilas uma obra que seja nossa filha Atuaacutevamos cada qual de seu lado Voacutes viviacuteeis eu sonhava Minhas vastas fantasias limitavam-se a ilimitada impotecircncia Mas possa a obra que agora quero fazer e que natildeo se faz por si mesma obrigar-nos a nos responder e surgir unicamente de nosso entendimento Este corpo e este espiacuterito esta presenccedila invencivelmente atual e esta ausecircncia criadora que disputam o ser e que eacute preciso enfim compor mas este finito e este infinito que trazemos em noacutes mesmos cada qual segundo sua natureza cumpre agora que se unam em uma construccedilatildeo bem ordenada E queiram os deuses se trabalhem de acordo trocando conveniecircncias e graccedila beleza e solidez movimentos contra linhas e nuacutemeros contra pensamentos teratildeo enfim descoberto sua verdadeira relaccedilatildeo seu ato Que se combinem que se compreendam atraveacutes da mateacuteria de minha arte Pedras e forccedilas perfis e massas luzes e sombras agrupamentos artificiais ilusotildees de perspectiva e realidades da gravidade estes satildeo os objetos de seu comeacutercio e seu lucro a incorruptiacutevel riqueza que chamo Perfeiccedilatildeordquo

Soacutecrates Que oraccedilatildeo sem igual [] Todas essas palavras soam estranhas neste lugar Despojados agora de nossos corpos devemos seguramente nos lastimar e com o mesmo olho invejoso com que outrora contemplaacutevamos o jardim das sombras felizes consideremos a vida que deixamos Obras e desejos aqui natildeo nos acompanham mas haacute lugar para os arrependimentosraquo

Livre de seu invoacutelucro fiacutesico e de seus condicionamentos livre das possibilidades da doenccedila e da velhice livre tanto da dor quanto do prazer livre da morte e do corpo que morre livre de tudo aquilo que a limita uma alma natildeo teria numa perspectiva puramente pragmaacutetica porque transformar o que eacute natural em artificial Teacutecnicas para melhor viver para melhor trabalhar e habitar para progredir tais invenccedilotildees seriam totalmente estranhas No mundo dos mortos de Valeacutery nem a arquitetura nem a medicina seriam necessaacuterias Qual a utilidade de duas atividades que respondem agraves necessidades fiacutesicas para a alma que natildeo adoece envelhece e morre que natildeo necessita de alimentos e de higiene que natildeo necessita se proteger das intempeacuteries da natureza portanto de tudo aquilo que um corpo precisa para viver no mundo de vivos Ela poderia muito facilmente existir em eterna quietude e imobilidade sem ter nenhum outro contato com outras almas natildeo haveria mais a bruta necessidade que une ou desune os seres humanos natildeo haveria mais a dependecircncia fiacutesica que direta ou indiretamente condena a todos aqui ao conviacutevio e a poliacutetica a relaccedilatildeo com o outro e os desejos e necessidades do outro a uma incessante busca de equiliacutebrio entre as aspiraccedilotildees individuais e as limitaccedilotildees coletivas entre os desejos e poderes de um e os desejos e poderes do outro

Essa visatildeo a princiacutepio poderia ser considerada como amiuacutede foi uma boa ventura Contudo no Eupalinos assim como em grande parte da obra de Valeacutery consequumlecircncias natildeo tatildeo favoraacuteveis ou positivas satildeo expostas Num tal mundo dos mortos separados alma e corpo natildeo agem natildeo fazem natildeo fazem nada de concreto um torna-se potecircncia inconsciente o outro impotecircncia consciente Somente quando unidos e inseridos num mundo material eacute que ambos satildeo capazes de realmente agir de fazer Por conseguinte tambeacutem a arte natildeo existiria natildeo poderia existir pois mesmo natildeo sendo uma manifestaccedilatildeo direta das necessidades fiacutesicas ela eacute uma particular transformaccedilatildeo das formas da materialidade logo eacute feita pelo corpo e tendo em vista a realidade especiacutefica que este pelos sentidos recebe e ou constroacutei laquoA cada homem que nasce como haacute um corpo haacute um mundo e um tempo etcraquo E se qualquer accedilatildeo qualquer fazer concreto fica assim interdito a uma alma sem corpo fica tambeacutem interdito o principal veiacuteculo para o autoconhecimento ou a autoconsciecircncia posto que realizar agir e fazer natildeo tecircm apenas como fim a transformaccedilatildeo da realidade exterior mas tambeacutem a realidade interior o si mesmo O corpo possibilita eacute um dos princiacutepios da proacutepria possibilidade revela-se portanto natildeo como uma mera limitaccedilatildeo natildeo apenas como a mera prisatildeo-instrumento que a alma possui para acessar a moldaacutevel materialidade da qual a arte se constitui mas tambeacutem como o modo mesmo da proacutepria alma acessar a si mesmo e nesse acessar transformar-se O mais pleno autoconhecimento ou autoconsciecircncia se daacute atraveacutes da mateacuteria A alianccedila entre essas duas categorias tatildeo recorrentemente postas em dramaacutetica oposiccedilatildeo e conflitos por grande parte da tradiccedilatildeo Ocidental entre o corpo e a alma tem aiacute a sua justificativa natildeo simplesmente ldquoeacuteticardquo mas sobretudo ldquoesteacuteticardquo E a arte vem a ser tanto em sua accedilatildeo em seu fazer como em seus resultados um dos principais meios materiais dessa alianccedila a arte torna-se o meacutetodo capital de autoconhecimento ou autoconsciecircncia mdasha ascese que natildeo nega o mundo sensiacutevelmdash Eis o sentido do aprendizado do incorpoacutereo e querido Soacutecrates valeacuteryano

6122 Anti-Soacutecrates

Como tantas outras figuras que se instauram entre a lenda e a histoacuteria Soacutecrates recebeu inuacutemeras maacutescaras ele que eacute natildeo raro considerado em maior ou menor consenso como um dos mais presentes avatares daquilo que tatildeo genericamente se denomina Ocidente Aristoacutefanes o ridicularizou como um ingecircnuo e pateacutetico sofista Xenofonte o desenhou como um modelo de serenidade e simplicidade o oraacuteculo de Delfos o proclamou como o homem mais saacutebio de seu tempo Platatildeo o considerava como o homem mais justo que conhecera Sob o nebuloso pretexto de corromper os jovens e de instaurar novos deuses o grande questionador foi condenado agrave morte destino que aceitou de um modo extremamente resoluto paciacutefico como se natildeo houvesse muita diferenccedila entre este e o outro mundo Posteriormente outros talvez imbuiacutedos de um forte sentimento profeacutetico nele viram a exemplificaccedilatildeo avant-la-lettre da humildade asceacutetica frequumlentemente recomendada ou exigida pelo Cristianismo Medieval Tal interpretaccedilatildeo possui fortes justificativas Com a ironia de um ldquosaber que ignorardquo Soacutecrates natildeo apenas tinha por haacutebito desobrigar-se de professar a verdade doravante parecia por vezes conhececirc-la em segredo mas pondo no centro da vida a questatildeo eacutetica encarava a proacutepria filosofia como um modo de vida como um exerciacutecio um veiacuteculo a algo mais essencial quiccedilaacute inefaacutevel agraves palavras ao discurso Esse comportamento representa hoje uma cesura canocircnica com relaccedilatildeo aos ditos ldquopreacute-socraacuteticosrdquo aos fisioacutelogos que aparentemente preocupavam-se mais com questotildees cosmoloacutegicas e em especular sobre a natureza da realidade Daiacute tambeacutem as caracteriacutesticas da riacutegida conduta de Soacutecrates que tanto influenciaram as posteriores escolas filosoacuteficas que na Heacutelade se instauraram sua simplicidade e pobreza seu despojamento e desapego uma fidelidade inquebrantaacutevel a si mesmo a seu proacuteprio aprendizado Assim dentre todas as imagens que se pode fazer desse filoacutesofo paradigmaacutetico desse filoacutesofo-conceito natildeo raro contraditoacuterias entre si uma das mais constantes na tradiccedilatildeo eacute aquela que justifica e amplia essas caracteriacutesticas a de um homem extremamente voltado para o espiacuterito que se entreteacutem com o conceito e a abstraccedilatildeo com a universalidade

Eacute justamente dessa intensa e constante imagem que Valeacutery principia manteacutem a concepccedilatildeo de um Soacutecrates aprendiz mdashconcepccedilatildeo quiccedilaacute aquela que mais carisma emanamdash e a transforma para que atenda a suas proacuteprias intenccedilotildees Se Leonardo da Vince eacute aquele que nada espera e tudo faz se Edmond Teste eacute aquele que nada espera nada faz e para quem tudo eacute permitido se essas duas estranhas figuras representam tipos-ideais de consciecircncias extremas que vivem de um modo quase inumano a primeira numa sociedade preacute-cientiacutefica e a segunda numa sociedade jaacute totalmente industrializada entatildeo Soacutecrates agora transformado em uma outra personagem conceitual mesmo em morte mesmo para aleacutem de qualquer sociedade possiacutevel aparece como a representaccedilatildeo de um humano que descobre a sua proacutepria humanidade Ele natildeo eacute no Eupalinos retratado mdashcomo natildeo o foi por seus contemporacircneosmdash como um saacutebio ldquooniscienterdquo dono de todas as respostas como uma pessoa acabada definitiva mas como um homem provisoacuterio nobre justamente por natildeo temer o por vezes angustioso movimento da duacutevida do desconfiar do reconsiderar do desconstruir do retornar jamais se esquecendo da rara e difiacutecil arte de desistir sabe intui saber que suas crenccedilas natildeo satildeo blocos monoliacuteticos a desafiar as intempeacuteries sociais mas estatildeo como que em constante transformaccedilatildeo moldando-se conforme os adventos e as circunstacircncias Assim a princiacutepio quando receacutem adentrou o estranho mundo dos mortos o Soacutecrates valeacuteryano natildeo poderia deixar de ser relativamente fiel agrave sua imagem canocircnica e portanto de ter os mesmos princiacutepios que o imortalizaram frente agraves inuacutemeras geraccedilotildees vindouras Como seu antigo mestre Parmecircnides coerente com o registro da Antiguidade Claacutessica que frequumlentemente postulava a ciecircncia do Ser como a ciecircncia suprema hierarquicamente superior a todas as demais acredita que o conceito de verdade deva referir-se exclusivamente a uma universalidade e natildeo a uma particularidade que cumpre ao espiacuterito retirar-se da massa de fenocircmenos sensiacuteveis e repousar no inteligiacutevel Doravante no digressivo transcurso do diaacutelogo suas concepccedilotildees vatildeo pouco a pouco se modificando lapidando-se evoluindo como todo pensamento cumpre ser auxilia-o naturalmente sua condiccedilatildeo de desencarnado e a abstrata realidade na qual se encontra Conforme Fedro lhe incita e lhe aponta como outrora ele mesmo o fazia em vida outros caminhos para a realizaccedilatildeo daquilo que sempre e tatildeo-somente buscou realizar o que haacute de mais excelso no homem a divindade interna e sempre presente Soacutecrates pondera reconsidera e vai se descobrindo outro As seguintes palavras gentis e sinceras corroboram e reiteram mais uma vez um dos pontos mais incisivos e constantes da criacutetica que Valeacutery tece agrave filosofia e ao filoacutesofo

laquoFedro Uma soacute coisa Soacutecrates uma soacute te faltou Homem divino talvez natildeo sentias necessidade alguma das belezas materiais do mundo pois mal as apreciavas Sei que natildeo desdenhas a doccedilura dos campos o esplendor da cidade os mananciais de aacutegua cristalina a sombra delicada do plaacutetano mas tudo isso natildeo era para ti senatildeo distantes ornamentos de tuas meditaccedilotildees fronteiras prazerosas de tuas daacutedivas terreno favoraacutevel aos teus passos interiores O que havia de mais belo para bem longe de si te conduzindo vias sempre outra coisa

Soacutecrates O homem e o espiacuterito do homem

Fedro Mas entatildeo natildeo encontraste entre os homens alguns cuja singular paixatildeo pelas formas e pelas aparecircncias te surpreendesse [] E dos quais inteligecircncia e virtude nada deixavam a desejar

Soacutecrates Por certo

Fedro Tu os situavas acima ou abaixo dos filoacutesofos

Soacutecrates Depende

Fedro O alvo dessas criaturas te parecia mais digno ou menos digno de procura e de amor que o teu proacuteprio

Soacutecrates Natildeo se trata de seu alvo Natildeo posso pensar que existam vaacuterios Bem-Supremos Mas eacute-me obscuro difiacutecil entender que homens tatildeo puros quanto agrave inteligecircncia tenham tido necessidades de formas sensiacuteveis e de graccedilas corpoacutereas para atingir seu estado mais elevadoraquo

A partir de entatildeo todo o diaacutelogo natildeo deixa de ser um contiacutenuo e natildeo raro sofrido aprendizado de Soacutecrates Este ao fim compreende o significado da alianccedila entre corpo e alma que natildeo eacute necessaacuterio sacrificar o material em favor do imaterial o sensiacutevel em favor do intelectual que essas duas esferas podem coexistir em harmonia pois de fato talvez sejam uma soacute compreende que pode haver prazer sem aversatildeo ou conflito ante os elementos naturais ou artificiais forjados ou natildeo pela industriosa matildeo humana compreende XE Platatildeo que a arquitetura a escultura a pintura a danccedila a muacutesica a poesia todas estas e outras tantas formas de se contemplar as laquobelezas materiais do mundoraquo atraveacutes do ato de concebecirc-las e fazecirc-las satildeo praacuteticas que natildeo distintas do pensamento filosoacutefico do puro trabalhar com conceitos tambeacutem transformam o espiacuterito tambeacutem elevam tambeacutem purificam pois tambeacutem exigem o imperioso e difiacutecil exerciacutecio das principais faculdades prezadas por Valeacutery a razatildeo a atenccedilatildeo e o esforccedilo Mas essa compreensatildeo natildeo deixa de ser acompanhada por uma profunda melancolia Estando morto resta-lhe pouca coisa resta-lhe apenas o voltar-se para a pura especulaccedilatildeo para o que fez e deixou de fazer para o que poderia ter feito em vida Soacutecrates entatildeo reconsidera Conjetura aquilo que o poeta insistentemente expressa ser necessaacuterio a qualquer praacutetica que deveria ter sido em vida tanto um filoacutesofo como um artista Ele que sempre procurou a si mesmo acaba ao fim por descobrir mediante a concepccedilatildeo de arte de Eupalinos que um dos mais efetivos caminhos para se encontrar ou para se realizar Deus XE Deus mdashum Deus que parece ser imanente ao mundo puro movimento e pura continuidademdash eacute como jaacute anuncia a desconcertante danccedila de Athiktecirc o da accedilatildeo do fazer XE criaccedilatildeo

laquoFedro Que queres pintar sobre o nada

Soacutecrates O Anti-Soacutecrates

Fedro Imagino-o mais de um Haacute muitos que satildeo contraacuterios a Soacutecrates

Soacutecrates Pois este seraacute o construtor

Fedro [] O Anti-Fedro o escuta

Soacutecrates [] Natildeo foi proveitoso temo-o buscar durante toda a minha vida esse Deus que tentei descobrir perseguindo-o unicamente atraveacutes de pensamentos procurando-o com o variado sentimento do justo e do injusto instando-o a render-se agrave solicitaccedilatildeo da dialeacutetica mais refinada Esse Deus assim encontrado eacute apenas palavra nascida de palavra e retorna agrave palavra Pois a resposta que forjamos para noacutes mesmos seguramente natildeo deixa nunca de ser a proacutepria questatildeo e toda questatildeo do espiacuterito ao proacuteprio espiacuterito natildeo eacute e natildeo pode ser senatildeo ingenuidade Mas ao contraacuterio nos atos e na combinaccedilatildeo dos atos eacute que devemos encontrar o sentimento mais imediato da presenccedila do divino e o melhor emprego dessa parte de nossas forccedilas inuacutetil agrave vida e que parece reservada agrave busca de um objeto indefiniacutevel que nos ultrapassa infinitamente Pois se o universo eacute o efeito de algum ato esse ato de um Ser e de uma necessidade de um pensamento de uma ciecircncia e de um poder pertencentes a esse Ser somente com atos poderaacutes integrar-se no grande designo e propor a ti mesmo a imitaccedilatildeo do que fez todas as coisas Esta eacute a maneira mais natural de te introduzir no lugar do proacuteprio Deusraquo

E eis que no Eupalinos o Soacutecrates valeacuteryano parece arrepender-se parece entatildeo sentir um quase doloroso sentimento de nostalgia algo que poderia ser denominado de saudade saudade do tempo em que vivia e caminhava nas praccedilas e nos mercados em companhia das multidotildees e das contradiccedilotildees dos homens Do mesmo modo que um exilado pode vir a conhecer e avaliar melhor a sua proacutepria terra natal quando se encontra em uma terra estrangeira entre idiomas e costumes distintos ele conhece e avalia mais adequadamente os seus proacuteprios pensamentos quando deles se distancia quando os contempla atraveacutes de uma perspectiva que natildeo aquela na qual foram originalmente engendrados Na laboriosa pena de Valeacutery o ceacutelebre filho do talhador de pedras Sofronisco tatildeo-somente pode refletir e discursar sobre a importacircncia do mundo sensiacutevel no mundo inteligiacutevel onde qualquer praacutetica teacutecnica e artiacutestica eacute justamente desnecessaacuteria e impossiacutevel onde os atos de conceber de projetar e de construir natildeo passam de lembranccedilas pois natildeo haacute a mateacuteria e as leis que a regem e a condicionam Dir-se-ia que eacute pela falta atraveacutes do duro e fabuloso exerciacutecio espiritual da rememoraccedilatildeo mdashuma espeacutecie de anamnese praticada no mundo dos mortosmdash que o ceacutelebre ldquopai da ironiardquo pode compreender a importacircncia daquilo a que outrora era amiuacutede refrataacuterio Eacute a ausecircncia determinando o valor daquilo que estaacute ausente Se na vida Soacutecrates volta-se para a morte na morte Soacutecrates volta-se para a vida Quiccedilaacute tambeacutem ele natildeo queira retornar Retornar para poder enfim encontrar-se com Deus Natildeo atraveacutes da especulaccedilatildeo dos labirintos da linguagem verbal na qual eacute mera palavra passiacutevel de ser usada pelos mais variados discursos e desconectada da realidade mas atraveacutes da accedilatildeo do fazer no qual insere-se na realidade e revela-se para o indiviacuteduo como uma praacutetica Eis portanto o que conclui o Soacutecrates valeacuteryano Deus eacute o nome dado a uma praacutetica Deus revela-se numa praacutetica

613 No mundo dos vivos

Conclusatildeo

Obras autocircnomas geralmente escritas em funccedilatildeo de comissotildees determinadas os diaacutelogos socraacuteticos de Valeacutery possuem independecircncia um em relaccedilatildeo ao outro assim tambeacutem em relaccedilatildeo a outros diaacutelogos seus mas eacute bastante proveitoso observar como certas argumentaccedilotildees e concepccedilotildees repetem-se em todos eles haacute toda uma intertextualidade relativamente oculta entre eles assim como entre muito dos escritos do poeta No intento de mostrar que laquoo pensamento puro e a busca da verdade em si natildeo podem jamais aspirar agrave descoberta ou a construccedilatildeo de alguma formaraquo tanto em Lrsquoacircme et la danse como em Eupalinos a riacutegida e hieraacuterquica divisatildeo entre alma e corpo mateacuteria e espiacuterito eacute alvo de severa criacutetica para tal ambos os diaacutelogos evocam ao fim surpreendentemente e como em Monsieur Teste o conceito de Deus Providencial que doravante este seja justamente um dos principais temas para um terceiro diaacutelogo socraacutetico agora novamente entre vivos estranha e simultaneamente intitulado em grego e francecircs de Περὶ τῶν τοῦ θεοῦ - Ou des choses divines (1944) Fragmentado e inacabado verdadeiro desafio para a criacutetica essa estilhaccedilada obra da qual alguns trechos tambeacutem pertencem aos Cahiers eacute juntamente com Alphabet Lrsquoange e principalmente a esoteacuterica peccedila Mon Faust uma daquelas que exemplarmente retratam as reflexotildees da uacuteltima fase da vida de Valeacutery ateacute hoje muito pouco estudada e natildeo raro bastante incocircmoda para os inteacuterpretes que crecircem num retrato relativamente fixo de um poeta supostamente avesso agrave religiatildeo e agrave miacutestica Dando continuidade a sua estrateacutegia literaacuteria ele agora imagina supotildee-se um diaacutelogo entre os disciacutepulos e conhecidos de Soacutecrates apoacutes a morte deste e inclusive entre personalidades histoacutericas Natildeo chega contudo a escolhecirc-los em definitivo Sabe-se que podem ser as jaacute conhecidas personagens ou vozes de Fedro Erixiacutemaco e Athiktecirc mas tambeacutem as figuras de Zenatildeo de Eleacuteia e Timeu Zithon Filebo Proteu Teoacutefilo e principalmente do proacuteprio Daimon de Soacutecrates curiosamente chamado de Hypnos o Sem Corpo (laquoSans Corpsraquo) um espiacuterito a conversar a falar em versos brancos com os vivos por vezes tambeacutem evoca aquilo que denomina de dramatis personnae como as de Santo Anselmo Santo Tomaacutes de Aquino Dante Pascal e Descartes Haacute portanto muitas opccedilotildees de vozes ou personagens todas recorrentes em outros tantos escritos de Valeacutery Mas natildeo houve tempo de fazer as escolhas pois a morte logo veio a ter com o poeta

Um das principais propostas desse diaacutelogo embrionaacuterio eacute sobretudo investigar o que faz o homem usar tatildeo frequumlentemente o conceito de Deus para explicar o mundo laquoo que faz o homem recorrer agrave noccedilatildeo mdash ou notaccedilatildeo de Deusraquo para entatildeo ao que grande parte dele indica laquoarruinar o que estaacute arruinado mdash o Divino tradicional [] que natildeo estaacute mais em equiliacutebrio como a manobra mental possiacutevel e as [] descobertasraquo que natildeo estaacute mais portanto em consonacircncia ou em harmonia com o advento da Ciecircncia Moderna e de modos de pensar mais analiacuteticos Quanto agraves causas evocadas do surgimento e do uso conceito de Deus e mesmo de outras tantos outros do discurso religioso duas se destacam

Uma refere-se mdashnatildeo se distanciando em muito de uma visatildeo jaacute claacutessica da origem das crenccedilas religiosasmdash ao espanto ao medo diante de tudo o que existe laquoO medo e as ilusotildees dos selvagens e dos primeiros humanosraquo lecirc-se por exemplo numa quase intransigente passagem dura como a dos primeiros etnoacutelogos de orientaccedilatildeo positivista laquocriaram os espiacuteritos e os deuses como reaccedilotildees ingecircnuas mdash e produtos brutos de brutos mdash e essas obras grosseiras [foram] enobrecidas e refinadas pelas eras seguintesraquo e isso a tal ponto que o Deus dos filoacutesofos e dos teoacutelogos por exemplo frequumlentemente se transforma num laquofetiche abstrato um iacutedolo no fim do raciociacutenio mdashraquo Com isso a criacutetica de Valeacutery parece natildeo almejar simplesmente a fraqueza humana a engendrar personificaccedilotildees antropomorfismos formas psicoloacutegicas usadas de modo egoiacutestico para suportar o peso da realidade a doenccedila a velhice e a morte o sofrimento mas principalmente mdashe o que eacute aqui centralmdash as terriacuteveis consequumlecircncias de se criar e de se usar qualquer conceito por mais adequado que possa parecer no momento nascente sob o impeacuterio do medo numa frase memoraacutevel lecirc-se laquoAquilo que eacute engendrado pelo medo [] engendra o medoraquo Aquilo que eacute engendrado pelo medo perturba o espiacuterito ou melhor demonstra o quanto o proacuteprio espiacuterito jaacute se encontra em perturbaccedilatildeo e portanto que soacute muito dificilmente seraacute capaz de engendrar conceitos adequados agrave realidade Dir-se-ia que para o poeta em seu programa de autoconsciecircncia assim como para seus principais personagens conceituais Leonardo e sobretudo Teste um pensamento puro eacute um pensamento sem medo

Coadunando-se harmonizando-se com essa concepccedilatildeo a segunda causa do surgimento e do uso do conceito de Deus evocada mdashidecircntica agrave argumentaccedilatildeo que Valeacutery utiliza contra a filosofiamdash refere-se justamente ao automatismo verbal tambeacutem recorrente e enormemente recorrente no pensamento religioso a engendrar contra-sensos falsos problemas e falsas soluccedilotildees Uma das palavras mais propensa a variaccedilotildees semacircnticas uma das palavras mais servil aos discursos metafiacutesicos Deus natildeo deixa de ser tambeacutem o signo o resultado do esquecimento ou da ignoracircncia do funcionamento da linguagem Ele eacute laquoum viacutecio de construccedilatildeoraquo E devido justamente ao advento da Ciecircncia Moderna e de modos de pensar mais analiacuteticos Valeacutery natildeo tarda em afirmar que laquoQuanto mais vocecirc compreender menos deus haveraacuteraquo laquoNum mundo preciso natildeo haacute lugar para o deus mdashraquo Ou ainda laquoToda disputa acerca da feacute seria imediatamente abolida se somente fosse possiacutevel agarrar representar exatamente o estado do crente tal qual aparece e ele mesmoraquo Dessarte o que eacute tradicionalmente atrelado aos desiacutegnios de Deus os dogmas Cristatildeos eacute veementemente questionado (como tambeacutem ocorre em Au sujet drsquolsquoEurecirckarsquo e Dialogue de lrsquoarbre) sobretudo a Escatologia corpo doutrinaacuterio segundo o qual o homem e o mundo rumam ao fim dos tempos e em contrapartida o Criacionismo corpo doutrinaacuterio segundo o qual Deus criou o mundo e o criou a partir do nada Ambas as concepccedilotildees (que contribuiacuteram para a formaccedilatildeo de uma concepccedilatildeo linear do tempo e da histoacuteria) satildeo para Valeacutery (refrataacuterio agraves filosofias histoacutericas idealistas) natildeo apenas tristes propagadoras da esperanccedila e do medo mas principalmente contra-sensos Pois ao espiacuterito agrave consciecircncia (agrave razatildeo) simplesmente natildeo faz sentido pensar o nada um comeccedilo e um fim o nada um comeccedilo e um fim soacute satildeo passiacuteveis de serem pensados enquanto conceitos-limite enquanto representaccedilotildees natildeo enquanto tais natildeo enquanto representados pois eles natildeo remetem a nada de real laquodizer que um deus criou o mundoraquo escreve o poeta laquoeacute nada dizer ideacuteia nula posto inimaginaacutevelraquo laquoeacute perfeitamente vatilde dizer um deus fez o mundo se noacutes natildeo podemos dar nenhuma ideacuteia dessa operaccedilatildeoraquo

Contudo haacute que se matizar a insipiente e lacunar criacutetica de Valeacutery ao conceito de Deus ou melhor aos usos do conceito de Deus pois haacute outros tantos fragmentos que parecem deliberadamente contradizer o que anteriormente foi dito que parecem atacar o problema atraveacutes de outra perspectiva (Afinal trata-se de um escrito extremamente incompleto e natildeo haacute como distinguir precisamente quem realmente se expressa o autor ou as suas vozes ou personagens e nestas quem estaacute a expressar isto ou aquilo) Agraves vezes o diaacutelogo acorda por exemplo em fazer a distinccedilatildeo entre Deus ou deuses de um lado e as coisas divinas de outro quanto a isso alguns fragmentos assim rezam laquoAs coisas divinas satildeo mais raras que os deuses mdash Mais divinas tambeacutemraquo laquoEu natildeo vejo uma razatildeo para deus mas eu natildeo digo que o divino seja inexistenteraquo laquomdash o divino mdash uma pura possibilidaderaquo Mas essa distinccedilatildeo eacute muito pouco clara quiccedilaacute as coisas divinas ou o divino refiram-se ao que haacute de mais valoroso a um espiacuterito particular sem que este tenha qualquer intenccedilatildeo de universalizar de propagar sua proacutepria hierarquia de valores e Deus a um valor que um ou vaacuterios espiacuteritos particulares intentam universalizar propagar a todos os demais independentemente destes assim tambeacutem considerarem ou natildeo Entretanto haacute uma outra passagem que incita a matizar ainda mais a criacutetica de Valeacutery ao conceito de Deus laquoTodos os insultos que noacutes fazemos a deusraquo escreve ele laquotodas as mais graves injuacuterias [] tecircm por raiz o nosso censuraacute-lo natildeo sermos um deus de natildeo [nos] convir agrave ideacuteia que temos de um deus Mas essa ideacuteia mesma eacute deduzida da ideacuteia que noacutes temos do homem e de noacutes mesmosraquo laquoEle [Deus] assume tudo o que eacute [] impossiacutevel tudo o que falta [] ele [Deus] eacute a ligaccedilatildeo do espiacuterito impotenteraquo Deus compreendido portanto como o signo o resultado da consciecircncia que o ser humano tem dos seus proacuteprios limites e impotecircncias Eacute justamente atraveacutes desse tipo de reflexatildeo que Valeacutery ao fim desse derradeiro diaacutelogo socraacutetico adentra novamente agrave miacutestica O que entretanto ele acrescenta agrave sua jaacute referida proposta de uniatildeo entre o espiacuterito e Deus ou melhor entre o espiacuterito e si mesmo proposta de possessatildeo de si mesmo eacute a concepccedilatildeo segundo a qual tal uniatildeo tal possessatildeo soacute se daraacute plenamente como intui o Soacutecrates valeacuteryano no Eupalinos atraveacutes do corpo Pois este eacute segundo o que se lecirc nesse diaacutelogo o veiacuteculo mesmo a Deus laquoO miacutestico eacute a possessatildeo corporal do deus a busca mdash do deus pelo corpo O corpo instrumento da busca e da presenccedila do deusraquo

No diaacutelogo Περὶ τῶν τοῦ θεοῦ - Ou des choses divines Deus tambeacutem acaba se revelando enfim como a meta pessoal que o espiacuterito atraveacutes do corpo no qual ocorre se propotildee alcanccedilar o sentido o fim uacuteltimo que o espiacuterito daacute ou pode dar agrave totalidade de suas proacuteprias accedilotildees a totalidades de seus proacuteprios fazeres ao todo de seu destino Sentido fim uacuteltimo que no caso de Valeacutery pode ser nomeado como o conceito de eu puro Daiacute o poeta intensamente se questionar mdashe isso natildeo deixa de ser uma verdadeira siacutentese do modo como procede seu pensamentomdash sobre a adequaccedilatildeo a validade de um Deus que foi concebido em outras eacutepocas e com outros pressupostos por outro ou por outros e natildeo por si mesmo o Deus mesmo da tradiccedilatildeo mdashde qualquer tradiccedilatildeomdash agrave qual as pessoas com menor ou maior consciecircncia aderem ou recusam-se a aderir como aceitar um Deus que foi criado por problemaacuteticas alheias laquocomo ligar-se a um Deus de outroraquo ele assim se pergunta laquoa um deus que noacutes natildeo inventamos []raquo laquoQuem sabe se toda tua paixatildeo seus erros suas blasfecircmias suas sujeiras atos e crimes natildeo satildeo um caminho que leva a Deus e o uacutenico que vocecirc poderaacute seguirraquo Ou ainda laquoO valor de teu deus eacute o do teu pensamentoraquo Com isso toda a criacutetica de Valeacutery ao proselitismo intelectual transfere-se agora ao proselitismo religioso agraves doutrinas religiosas que afirmam ter superado as aporias surgidas no pensamento sobre Deus e alcanccedilado o conhecimento da verdade acerca Dele verdade que deve ser aceita por todos Mas o poeta mdashpara quem a liberdade eacute a liberdade do pensamentomdash sabe que uma verdade deixa de ser verdade quando eacute forccedilada quando eacute imposta que uma verdade deixa de ser verdade quando haacute o desejo de universalizaacute-la laquoO poderoso gosto de ldquoter razatildeordquo de convencer de seduzir ou de reduzir os espiacuteritos de excitaacute-los em favor ou contra a qualquer um ou a qualquer coisaraquo revela laquome eacute essencialmente estranho para natildeo dizer odioso [] Nada me choca mais que o proselitismo e seus meios sempre impuros [] Aconselho Esconda teu Deus pois ele eacute o seu faliacutevel a partir do momento em que os outros o conheccedilamraquo A miacutestica de Valeacutery eacute negativa apofaacutetica e num grau extremo natildeo somente porque quase sempre nega a referir-se a Deus atraveacutes de proposiccedilotildees afirmativas mas tambeacutem porque nega radicalmente revelar a face do Deus que cria para si Assim como todo o seu pensamento com o qual se confunde essa miacutestica acaba no silecircncio No silecircncio do eu puro no silecircncio que sempre almejou realizar

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Ponge Francis Meacutetodos trad Leda Tenoacuterio da Motta Imago Rio de Janeiro 1997

Popkin Richard The History of Scepticism - From Savonarola to Bayle Oxford University Press New York 2003

Pound Ezdra Personaelig - Collected shorter poems of Ezra Pound Faber and Faber Londres mcmlii

Rorty Richard M (org) The linguistic turn - Essays in philosophical method - With two retrospective essays The University of Chicago Press Chicago amp Londres 1992

Rousseau Essais sur lrsquoorigine des langues org Jean Starobinski Folio - Essais Gallimard Paris 1993

Saussure Ferdinand Cours de linguistique geacuteneacuterale ed Charles Bally Albert Sechehaye amp Albert Riedlinger (colab) Eacutedition critique preacutepareacute par Tullio de Mauro Payothegraveque Payot Paris 1982

Soulez Antonia (org) Manifeste du Cercle de Vienne et autres eacutecrists PUF Paris 1985

Weil Simone A gravidade e a graccedila trad Paulo Neves Martins Fontes Satildeo Paulo 1993

Wittgenstein Ludwing Investigaccedilotildees filosoacuteficas trad Joseacute Carlos Bruni Os Pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1979

mdash Tratactus Logico-Philosophicus trad Luiz Henrique Lopes dos Santos Edusp Satildeo Paulo 1994

Yeats W B Autobiographies Macmillian amp Co Ltda London Toronto 1961 amp A vision Papermac Pan Macmillian Publishers London Basingstone Hong Kong 1992

Zambrano Maria Filosofiacutea y poesiacutea Fondo de Cultura Econoacutemica Cidade do Meacutexico 1996

13

13

Cf JArrety Michel Valeacutery Paul (1871-1945) in Dictionnaire de la litteacuterature franccedilaise XXe siegravecle in Enciclopaeligdia Universalis amp Albin Michel Paris 200013

Cf Boisdeffre Pierre de Paul Valeacutery ou lrsquoimperialisme de lrsquoesprit in Meacutetamorphose de la litteacuterature - De Proust agrave Sartre - Proust Valeacutery Cocteau Anouilh Sartre Camus - Essais de psychologie litteacuteraire suivis de deux eacutetudes sur lsquoLa geacuteneacuteration du demi-siegraveclersquo et lsquoLa condition de la litteacuteraturersquo II Editions Alsatia Paris s d13

Cf todos os ensaios de Meacutemoires du poegravete in œ1 pp 1447-151213

œ1 p 149713

Os Cahiers tambeacutem foram por vezes denominados por inteacuterpretes iniciais de Carnets (Jean Preacutevost) ou de Notes (Maurice Beacutemol) termos hoje um tanto em desuso (Cf Preacutevost Jean amp ValEacutery Paul Marginalia - Rhumbs - Et autres org Michel Jarrety Eacuteditions Leacuteo Scheer 2006 cf BEacuteMOL Maurice Paul Valeacutery G de Bussac Clermont-Ferrand 1949)13

Sobre a funccedilatildeo e o estatuto dos esboccedilos desenhos e aquarelas no pensamento de Valeacutery cf Pickering Robert V Inscriptions alternatives in Paul Valeacutery - La page lrsquoeacutecriture Centre de Recherches sur Les Litteacuteratures Modernes et Contemporaines Association des Publications de la Faculteacute de Lettres et Sciences Humaines de Clermont-Ferrand Universiteacute Blaise-Pascal 1996 pp 227-28013

œ1 p 120113

Cf Barbosa Joatildeo Alexandre A comeacutedia intelectual de Paul Valeacutery Iluminuras Satildeo Paulo 2007 especialmente o capiacutetulo Paul Valeacutery e a lsquocomeacutedia intelectualrsquo13

C1rsquo p 513

C1rsquo p 513

C1rsquo p 513

Cf Amiel Henri-Freacutedeacuteric Journal Intime - Janvier-juin 1854 Texte inteacutegral publieacute par la premiegravere fois avec une postface des notes et un index par Philippe M Monnier Bibliothegraveque Romande Lausanne 197313

Cf Gide Andreacute Journal - 1939-1949 - Souvenirs Bibliothegraveque de la Pleacuteiade Gallimard Paris 198813

C1rsquo p 1313

œ2 pp 1508-151013

œ1 p 120313

Para uma comparaccedilatildeo entre as concepccedilotildees artiacutesticas de Valeacutery e Proust cf Adorno Theodor W Museu Valeacutery Proust in Prismas - Criacutetica cultural e sociedade trad Augustin Wernet amp Jorge Mattos Brito de Almeida Aacutetica Satildeo Paulo 1998 pp 173-18513

œ2 pp 150913

Cf C1rsquo pp 773-86513

C1rsquo p 81213

C1rsquo p 81513

Cf C1rsquo p 81213

Cf C1rsquo pp 1119-114913

Cf C1rsquo p 80713

Cf C1rsquo p 80713

C1rsquo p 81313

Cf C1rsquo p 812 13

C1rsquo p 813

C1rsquo p 1413

C1rsquo p 813

œ1 p 866 Aquilo que o seminal contista norte-americano se propocircs nesse escrito que flana audaciosamente entre o ensaio filosoacutefico e o conto fantaacutestico eacute sobretudo a construccedilatildeo da imagem de um universo ldquopanteiacutestardquo relativamente distinto do apresentado pelos mitos de origem da tradiccedilatildeo judaico-cristatilde um universo maravilhosamente regido por leis naturais que se interconectam e que axiomatizadas se reduziriam agrave atraccedilatildeo e agrave repulsatildeo um universo vasto mas espacialmente finito cujo comportamento se assemelha a um coraccedilatildeo pulsante e divino expandindo-se e contraindo-se fragmentando-se e unificando-se e assim sucessivamente Note-se que jaacute pelo subtiacutetulo (A prose poem) e pelas paacuteginas iniciais Eureka natildeo foi estabelecida por Poe simplesmente como um escrito cientiacutefico mas como uma obra artiacutestica baseada na ideacuteia de que a ldquoverdaderdquo cientiacutefica identifica-se com a ldquobelezardquo (Cf Poe Edgar Allan Eureka - A prose poem Prometheus Books Nova York 1997) Esse inventivo modo de interpretar e atualizar um antiquumliacutessimo gecircnero literaacuterio ou miacutetico numa eacutepoca cientiacutefica e com alusatildeo a teorias cientiacuteficas marcou profundamente o pensamento de Valeacutery principalmente na compreensatildeo da unidade entre ciecircncia e arte e no caraacuteter esteacutetico das construccedilotildees metafiacutesicas (Cf dois ensaio de Jean Starobinski um que versa sobre Eureka Edgar Poe ldquoEurekardquo outro que versa sobre os conceitos de atraccedilatildeo e repulsatildeo e sobre a influecircncia de Eureka no pensamento de Valeacutery laquoSoy reaccioacuten a lo que soyraquo (Paul Valeacutery) ambos in Starobinski Jean Accioacuten y reaccioacuten - Vida y aventuras de una pareja t Eliane Casenave Tapieacute Isoard Fondo de cultura econoacutemica Meacutexico 2001)13

C1rsquo pp 11-1213

Cf Boisdeffre Pierre de Paul Valeacutery ou lrsquoimperialisme de lrsquoesprit in Meacutetamorphose de la litteacuterature - De Proust agrave Sartre - Proust Valeacutery Cocteau Anouilh Sartre Camus - Essais de psychologie litteacuteraire suivis de deux eacutetudes sur lsquoLa geacuteneacuteration du demi-siegraveclersquo et lsquoLa condition de la litteacuteraturersquo II Editions Alsatia Paris s d13

C1rsquo p 613

C5 p 16713

Cf C1rsquo p 9 cf C1rsquo p 11 13

œ1 p 37713

Cf C1rsquo p 20613

Montaigne Michel de Cap II - Do arrependimento in Os Ensaios III trad Rosemary Costhek Abiacutelio Martins Fontes Satildeo Paulo 2001 p 2713

Bertholet Denis Chapitre 5 - Crise (1891-1892) amp Chapitre 6 - Coup drsquoeacutetat (1892-1894) in Paul Valeacutery - 1871-1945 Biographies Plon Paris 1995 Jarrety Michel Chapitre VIII - Salita di san Francesco in Paul Valeacutery Fayard 200813

O modo como um autor define ou usa um determinado conceito em seus primeiros escritos natildeo eacute necessariamente o mesmo que em seus uacuteltimos ele pode moldaacute-lo refazecirc-lo de acordo com os contextos e as frases que engendra de acordo com seus objetivos imediatos e contingentes de acordo com a sua proacutepria trajetoacuteria de vida Pressupotildee-se portanto que haja nisso uma evoluccedilatildeo talvez ateacute mesmo uma espeacutecie de progresso rumo a algo inicialmente desconhecido Daiacute natildeo raro uma obra poder ser encarada como o registro de um movimento limitado no tempo e no espaccedilo da vida que a executa A historicidade opera assim tanto entre as geraccedilotildees e as tradiccedilotildees quanto internamente no pensamento vivido e no pensamento escrito de uma soacute pessoa Valeacutery todavia natildeo foge a essa regra Contudo haacute uma particularidade jaacute foi dito por natildeo mais de um criacutetico que ele parece ter ldquonascido prontordquo tal o grau de maturidade de seus primeiros escritos Suas variadas obsessotildees e mesmo o seu estilo continuam basicamente os mesmos ao longo de toda sua vida Em grande medida sua obra eacute portanto composta por revisotildees e atualizaccedilotildees sobre temas em grande parte determinados em sua juventude Esses temas permanecem o que muda ou pode vir a mudar eacute o modo como o poeta os compreende (Cf Cioran Emile Valeacutery faces agrave ses idoles in œuvres Quarto Eacuteditions Gallimard 1995 especialmente p 1566)13

Cf œ2 p 143513

Cf Jarrety Michel Chapitre VIII - Salita di san Francesco in Paul Valeacutery in Paul Valeacutery Fayard 2008 especialmente pp 111-11213

Cf C1rsquo pp 86 113 145 190 e 1447 C2rsquo pp 460 e 87513

Cf C2rsquo p 46013

Bertholet Denis Paul Valeacutery - 1871-1945 Biographies Plon Paris 1995 p 91 Jarrety Michel Chapitre VIII - Salita di san Francesco in Paul Valeacutery Fayard 2008 pp 116-11713

œ2 pp 1435-143613

œ1 pp 854-85513

Cf CVG p 107 CVF p 28 e 125 Bertholet Denis Paul Valeacutery - 1871-1945 Biographies Plon Paris 1995 pp 77-78 e 85-88 Jarrety Michel Chapitre VII - Madame de R in Paul Valeacutery Fayard 200813

Sobre a questatildeo fisioloacutegica ou ldquomuscularrdquo em Valeacutery cf C1rsquo pp 130-13113

Apesar de ter estudado na Faculteacute de Droit de Montpellier Valeacutery diferentemente de seu irmatildeo Jules nunca exerceu ou pretendeu exercer a advocacia De 1897 a 1900 serviu como funcionaacuterio puacuteblico no Ministegravere de la Guerre depois trabalhou como secretaacuterio particular de um dos principais administradores da Agence Havas M Eacuteduard Lebey para quem entre outras atividades lia e comentava jornais e revistas profissatildeo que muito provavelmente lhe auxiliou a formar o repertoacuterio necessaacuterio para as suas constantes reflexotildees sobre a Modernidade presente em todos esses escritos Depois contando com sua celebridade palestrou e ministrou conferecircncias pela Europa e jaacute em idade avanccedilada lecionou poeacutetica no Collegravege de France (Cf œ1 pp 24-25 e 27 respectivamente Bertholet Denis Paul Valeacutery - 1871-1945 Biographies Plon Paris 1995 Jarrety Michel Paul Valeacutery Fayard 2008)13

Bertholet Denis Paul Valeacutery - 1871-1945 Biographies Plon Paris 1995 pp 36-102 Jarrety Michel Chapitre VII - Madame de R amp Chapitre VIII - Salita di san Francesco in Paul Valeacutery Fayard 2008 13

C2rsquo p 41813

C1rsquo p 9913

Blanchot MauriceValeacutery et Faust in La part du Feu Nrf Gallimard 1949 p 28213

œ1 p 122113

Esse periacuteodo seraacute compreendido pela criacutetica com o Grande Silecircncio (Cf BEacuteMOL Maurice Paul Valeacutery G de Bussac Clermont-Ferrand 1949 p 27 e pp 30-60)13

A expressatildeo mdashprograma de autoconsciecircnciamdash natildeo eacute gratuita o termo ldquoprogramardquo evoca a ideacuteia de que haacute uma disciplina a ser cumprida agrave qual toda uma obra futura deveraacute estar condicionada algo portanto consoante ao espiacuterito valeacuteryano avesso ao improviso e amante do treino jaacute o termo ldquoautoconsciecircnciardquo evoca a ideacuteia de lucidez e controle sobre si mesmo e estaacute presente nos proacuteprios escritos de Valeacutery que o escreve em inglecircs ldquoself-consciousnessrdquo remetendo-se tambeacutem assim agraves exigecircncias de racionalidade no fazer literaacuterio preconizadas por Edgar Allan Poe (Cf C1rsquo p 317 cf C2rsquo p 318)13

Cf C1rsquo p 41 126 157 158 196 e 440 cf C2 p 49 473 649 cf œ2 pp 411-420 13

œ1 p 96113

œ1 p 36013

Cf C1rsquo p 28413

C1rsquo p 6513

C1rsquo pp 78-7913

C1rsquo p 10613

C1rsquo pp 132-13313

c25 p 18213

C1rsquo p 713

C1rsquo p 713

C1rsquo p 713

C2rsquo p 99113

Cf Bourjea Serge Paul Valeacutery - Le sujet de lrsquoeacutecriture LrsquoHarmattan Codeacute-sur-Noireau 1997 cf Pikcering Robert Genegravese du concept valeacuterryen laquo pouvoir raquo et laquo conquecircte meacutethodique raquo de lrsquoeacutecriture laquo Archives Paul Valeacutery raquo 8 Archives des Lettres Modeacuternes 234 Lettres Modernes Paris 1990 amp Paul Valeacutery - La page lrsquoeacutecriture Litteacuteratures Centre de Recherches sur Les Litteacuteratures Modernes et Contemporaines 199613

Cf Montaigne Michel Os ensaios I-III trad Rosemary Costhek Abiacutelio Martins Fontes Satildeo Paulo 200013

Cf Descartes Reneacute As paixotildees da alma trad J Guinsburg e Bento Prado Juacutenior Os Pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 197913

C2rsquo p 23813

C2rsquo p 990 13

C1rsquo p 91113

C2rsquo p 21413

Nesse sentido Valeacutery se posiciona sim contraacuterio agrave Psicanaacutelise suas criacuteticas a Freud satildeo diretas laquoSe as teorias de Freud tecircm um valor terapecircutico mdash eacute uma grande probabilidade que elas natildeo tenham nenhum valor ldquocientiacuteficordquoraquo (C1rsquo p 995) Quanto ao sonho Valeacutery chega inclusive a duvidar da possibilidade de se representaacute-lo atraveacutes de palavras atraveacutes da narrativa do reacutecit o que a Psicanaacutelise faria nesse sentido seria tatildeo somente a anaacutelise da narrativa do sonho natildeo do sonho logo de uma mediaccedilatildeo que pode muito bem falsear o proacuteprio sonho laquoO que me prova que as teorias do sonho agrave la Freud satildeo vatildes eacute que a anaacutelise ai se comporta sobre as coisas descritiacuteveis em termos ordinaacuterios mdash entretanto o sonho deveria ser indescritiacutevel mdash ou descritiacutevel por contradiccedilotildees ou particcedilotildees (como mdash havia um cavalo mas eu sabia que natildeo era um cavalo mdash mdash)raquo (C2rsquo p 177) Sobre a Psicanaacutelise cf ainda C2rsquo pp 527-52813

C1rsquo p 56213

C2rsquo p 38813

Cf C1rsquo pp 837 969-970 1051-1052 e 1351 cf C2rsquo p 913

Cf Lrsquoideacutee fixe ou deux hommes agrave la mer in œ2 pp 195-275 Essa obra eacute um estranho e fictiacutecio diaacutelogo beira-mar dir-se-ia solar e terapecircutico entre Valeacutery e um convicto meacutedico XE autor que tece reflexotildees sobre a filosofia o pensamento e a representaccedilatildeo a intelecccedilatildeo e a intuiccedilatildeo a transitoriedade do mundo e principalmente sobre o conceito de saber como poder de previsatildeo fenomenoloacutegica e de accedilatildeo sobre o mundo O interlocutor imaginaacuterio do poeta eacute como parte de seus personagens um homem que permanece na tensatildeo entre a accedilatildeo e a contemplaccedilatildeo De feacuterias longe de seus pacientes que tanto o instigam ele procura fazer algo que jamais conseguiu nada fazer Dizia possuir o mal da atividade constata que isso eacute entretanto impossiacutevel pois ateacute mesmo o pensamento eacute uma forma de accedilatildeo de accedilatildeo interior13

C6rsquorsquo p 22613

Bergson Henri Chapitre II - De la multipliciteacute des eacutetats de conscience lrsquoideacutee de dureacutee in Essai sur les donneacutees immeacutediates de la conscience Presses Universitaires de France Paris 2005 13

œ1 pp 1219-122013

œ1 pp 1219-122013

C1rsquo p 46113

C1rsquo p 90113

œ2 p 3713

Cf œ2 p 3713

œ1 pp 1232-123313

œ2 p 1913

œ1 p 113713

Cf Celeyrette-Pietri Nicole Valeacutery et le moi - Des Cahiers agrave lrsquoœuvre Klincksieck Paris 197913

œ1 p 79713

Cf C2rsquo p 29513

Cf C2rsquo p 330 cf C2rsquo p 312 13

C2rsquo p 31213

C2rsquo p 31513

Heetfeld Ulrike La conception matheacutematique du laquo Moi pur raquo das les lsquoCahiersrsquo in Giford Paul amp STIMPSON Brian (orgs) Paul Valeacutery - Musique Mystique Matheacutematique Presses Universitaires de Lille Lille 1993 especialmente pp195-19613

C23 p 31113

C2rsquo p 28413

laquoToda emoccedilatildeo todo sentimento eacute uma marca de defeito de adaptaccedilatildeoraquo (C2rsquo p 354) laquoToda a vida afetiva natildeo passa de besteira e circulo viciosoraquo (C2rsquo p 382)13

Essa despersonalizaccedilatildeo essa desumanizaccedilatildeo parece jaacute estar esboccedilada quando Valeacutery escreve com mais tranquumlilidade sobre a fatiacutedica Noite de Gecircnova sobre aquilo em que seu meacutetodo vem a se constituir laquoFoi um periacuteodo muito duro e muito fecundo mdash Uma luta com os diabos Noite de Gecircnova em out[ubro] de [18]92 Paris em novembro E tudo isso me conduziu ao meu ldquomeacutetodordquo mdash o qual era pureza mdash separaccedilatildeo dos domiacutenios φ [filosofia] e ψ [psicologia]raquo (C1rsquo p 190)13

C2rsquo p 31513

C2rsquo p 299 cf C2rsquo p 312 13

C2rsquo p 31213

Blanchot Maurice Valeacutery et Faust La part du Feu Nrf Gallimard 1949 p 28113

C2rsquo p 29313

Natildeo se pode superestimar a influecircncia do Catolicismo sobre Valeacutery Eacute fato que numa carta a Pierre Louis ele escreve duras e polecircmicas consideraccedilotildees sobre suas ambiacuteguas inclinaccedilotildees religiosas Consideraccedilotildees que alguns criacuteticos natildeo tardariam supostamente em interpretar como anti-semitas qualificativo este que por vezes realmente pairou sobre a imagem do poeta laquoCom relaccedilatildeo agrave Biacutebliaraquo escreve ele laquoeu creio que vocecirc despreza o objeto de minhas preferecircncias miacutesticas Eu sou sobretudo catoacutelico quase idoacutelatra e detesto todo calvinismo e jansenismo isto eacute todas as seitas inartiacutesticas () Eu natildeo gosto dos Judeus pois eles natildeo tecircm arte Das raccedilas vizinhas eles pilharam tudo em mateacuteria de arquitetura etcraquo (LQ p 13) Contudo jaacute nesse trecho citado haacute obviamente muito de ironia pois o valor das religiotildees eacute dado pelo aspecto esteacutetico e natildeo pelo eacutetico pela forma e natildeo pelo conteuacutedo mdashprocedimento que seraacute recorrente no poetamdash Ademais essa carta foi escrita em 1890 portanto dois anos antes do periacuteodo de crise e da Noite de Gecircnova a partir das quais ante qualquer religiatildeo Valeacutery adota um agnosticismo lato particular posiccedilatildeo epistemoloacutegica que natildeo deixa de ser derivada ou anaacuteloga ao seu ceticismo geral13

Π Folio 10913

C6 p 73813

As reflexotildees de Valeacutery sobre a Crise de Tournon de Mallarmeacute in œ1 p 676-679 especialmente 677 A crise de Mallarmeacute eacute mais de ordem poeacutetica laquoInfelizmente escavando os versos a este ponto eu encontrei dois abismos que me desesperamraquo diz ele laquoUm eacute o Nada ao qual cheguei sem conhecer o budismo e eu estou ainda bastante desolado para poder inclusive acreditar em minha poesia e me lanccedilar ao trabalho que esse pensamento esmagador me fez abandonarraquo (MallarmEacute Steacutephane œuvres completes I org Bertrand Marchal Bibliothegraveque de la Pleacuteiade Gallimard Paris 1998 p XLIX)13

Cf JArrety Michel Paul Valeacutery Fayard 2008 p 11913

Cf Descartes Reneacute Discurso do meacutetodo trad J Guisnburg e Bento Prado Juacutenior Os Pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1979 pp 25-113 Em seu ensaio Une vue de Descartes Valeacutery escreve sem pudor sobre o filoacutesofo do cogito como se escrevesse sobre si mesmo sobre o seu periacuteodo de crise e a sua Noite de Gecircnova sobre o seu programa de autoconsciecircncia laquoO conjunto desse dia 10 de novembro e a noite que se seguiu constituem um drama intelectual extraordinaacuterio Suponho que Descartes natildeo nos enganou e que o relato que nos faz eacute tatildeo certo quanto uma lembranccedila carregada de sonhos natildeo haacute razatildeo para duvidar de sua sinceridade Conheccedilo muitos outros exemplos de tais iluminaccedilotildees do espiacuterito posteriores a longas lutas interiores a tormentos anaacutelogos a dores do parto De golpe a verdade de algueacutem se faz e brilha nele A comparaccedilatildeo luminosa se impotildee pois nada daacute uma imagem mais justa desse fenocircmeno iacutentimo que a intervenccedilatildeo da luz num meio escuro no qual soacute eacute possiacutevel mover-se a apalpadelas Com a luz aparece a caminhada em linha reta e a relaccedilatildeo imediata das coordenaccedilotildees do caminhar com o desejo e o fim O movimento se converte numa funccedilatildeo de seu objeto [] no caso de Descartes eacute toda uma vida que se ilumina na qual todos os atos seratildeo a partir de agora ordenados para a obra que seraacute seu fim A linha reta estaacute balizada Uma inteligecircncia descobriu ou projetou aquilo para o qual foi criada formou de uma vez por todas o modelo de todo o seu exerciacutecio futuro [Grifo do autor] Natildeo se deve confundir creio esses golpes de Estado intelectuais com as conversotildees na ordem da feacute que tanto se assemelham aos tormentos preliminares e pela suacutebita declaraccedilatildeo do ldquohomem novordquo Encontro efetivamente uma notaacutevel diferenccedila entre esses modos de transformaccedilatildeo transcendente Enquanto na ordem miacutestica a modificaccedilatildeo pode se produzir em qualquer idade na ordem intelectual ela parece ter lugar geralmente entre dezenove e vinte quatro anos ao menos assim foi com as poucas ldquoespeacuteciesrdquo conhecidas por mimraquo (œ1 pp 814-815)13

Cf Charney Hanna K Le scepticisme de Valeacutery Dider Paris 196913

Bertholet Denis Paul Valeacutery - 1871-1945 Biographies Plon Paris 1995 pp 39 e 9213

œ2 p 61913

Plato Theaetetus no 123 trad Harold North Fowler org Jeffrey Henderson Loeb Classical Library 152 A p 40-4113

C2rsquo p 61013

Π Folio 13413

Π Folio 7513

Π Texte 7 (VIII 428)13

Cf C1rsquo p 131 13

C1rsquo 1973 p 620 13

C1rsquo p 13113

C2rsquo p 32013

œ1 p 20613

C1rsquo p 40713

LQ p 2213

Cf Yeats W B Autobiographies Macmillian amp Co Ltda London Toronto 1961 amp A vision Papermac Pan Macmillian Publishers London Basingstone Hong Kong 199213

Cf Pound Ezdra Personaelig - Collected shorter poems of Ezra Pound Faber and Faber Londres mcmlii 13

Cf Pessoa Fernando Os outros eus in Obras em prosa Em um volume Nova Aguilar Rio de Janeiro 198513

C1rsquo p 49413

C1rsquo p 2613

C1rsquo p 102213

œ1 p 132013

C2rsquo p 28513

Uma postulaccedilatildeo mais dramaacutetica dessa expressatildeo encontra-se em Gilles Deleuze autor do conceito segundo o qual os personagens conceituais (personnages conceptuels) laquosatildeo os ldquoheterocircnimosrdquo do filoacutesofo e o nome do filoacutesofo o simples pseudocircnimo de seus personagens Eu natildeo sou mais eu mas aptidatildeo do pensamento para se ver e se desenvolver atraveacutes de um plano que me atravessa em vaacuterios lugares O personagem conceitual nada tem a ver com uma personificaccedilatildeo abstrata um siacutembolo ou uma alegoria pois ele vive ele insiste O filoacutesofo eacute a idiossincrasia de seus personagens conceituais E o destino do filoacutesofo eacute de transformar-se em seu ou seus personagens conceituais ao mesmo tempo em que esses personagens se tornam eles mesmos coisa diferente do que satildeo historicamente mitologicamente comumente [] O personagem conceitual eacute o devir e o sujeito de uma filosofia [] Os atos de fala na vida comum remetem a tipos psicossociais que testemunham de fato uma terceira pessoa subjacente eu decreto a mobilizaccedilatildeo enquanto presidente da repuacuteblica eu te falo enquanto pai Igualmente o decircictico [decircitico] filosoacutefico eacute um ato de fala em terceira pessoa em que eacute sempre um personagem conceitual que diz Eu [] Na enunciaccedilatildeo filosoacutefica natildeo se faz algo dizendo-o mas faz-se o movimento pensando-o por intermeacutedio de um personagem conceitual Assim os personagens conceituais satildeo verdadeiros agente de enunciaccedilatildeo Quem eacute eu eacute sempre uma terceira pessoaraquo (Deleuze Gilles amp Guattari Feacutelix O que eacute a filosofia trad Bento Prado Jr amp Alberto Alonzo Muntildeos Editora 34 Rio de Janeiro 2000 pp 86-87)13

Starobisnki Jean laquoSoy reaccioacuten a lo que soyraquo (Paul Valeacutery) in Accioacuten y reaccioacuten - Vida y aventuras de una pareja trad Eliane Casenave Tapieacute Isoard Fondo de Cultura Econoacutemica Meacutexico 200113

Cf Lussy Florence de Introduction in CL p 2113

C2rsquo p 119413

œ2 p 58113

œ1 pp 1230-123113

œ1 p 123013

œ1 p 115313

Essa praacutetica interpretativa na qual ldquotudo ou quase tudo eacute vaacutelidordquo na criacutetica literaacuteria e de artes foi denominada de laquoniilismo hermenecircuticoraquo em claro tom de ressalva por Gadamer (Gadamer Hans-Georg Verdade e meacutetodo - Traccedilos fundamentais de uma hermenecircutica filosoacutefica trad Flaacutevio Paulo Meurer nova revisatildeo da trad Enio Paulo Giachini Vozes amp Editora Universitaacuteria Satildeo Francisco Petroacutepolis amp Braganccedila Paulista 2004 p 146) Em seu ensaio sobre poeacutetica Au sujet du lsquoCeacutemitiegravere Marinrsquo no qual discute uma aula e as explicaccedilotildees dadas sobre o seu poema em questatildeo Valeacutery formula a ceacutelebre justificaccedilatildeo dessa praacutetica para ele sempre pessoal mas haacute que se dizer ele a formula referindo-se muito mais agrave interpretaccedilatildeo de poesia (na perspectiva da poesia pura) do que a de prosa laquoQuanto agrave interpretaccedilatildeo da letra []raquo escreve laquonatildeo haacute sentido verdadeiro de um texto [il nrsquoy a pas de vrai sens drsquoum texte] Natildeo haacute autoridade do autor Seja o que for que tenha pretendido dizer escreveu o que escreveu Uma vez publicado um texto eacute como uma maacutequina que qualquer um pode usar agrave sua vontade e de acordo com seus meios natildeo eacute evidente que o construtor a use melhor que os outros Do resto se ele conhece bem o que quis fazer esse conhecimento sempre perturba nele a perfeiccedilatildeo daquilo que fezraquo (œ1 p 1507) Cite-se tambeacutem o debate sobre os limites da interpretaccedilatildeo no qual Umberto Eco evoca uma clara distinccedilatildeo que permeia o senso comum entre interpretaccedilatildeo (o que uma obra legitimaria que dela seja dito) e uso (o que uma obra natildeo legitimaria que dela seja dita) (Cf Eco Umberto Lector in fabula - A cooperaccedilatildeo interpretativa nos textos narrativos trad Attiacutelio Cancian Estudos Perspectiva Satildeo Paulo 2004 pp 43-44) Usando a terminologia do semioacutetico italiano eacute certamente mais um uso do que uma interpretaccedilatildeo aquilo que Valeacutery faz de Leonardo da obra deste assim como tambeacutem em muitos outros escritos de criacutetica mas eacute justamente isso que o poeta conscientemente se propotildee fazer para ele o registro da leitura de uma obra deve ser tambeacutem uma outra obra13

Baudelaire Charles Salatildeo de 1846 in Poesia e prosa vol uacutenico org Ivo Barroso trad Cleone Augusto Rodrigues Joana Angeacutelica DrsquoAacutevila Melo Marcella Mortara Pliacutenio Augusto Coelho amp Suely Cassal Nova Aguilar Rio de Janeiro 2002 p 67313

Numa carta a Gustave Fourmet Valeacutery escreve laquoOntem eu fui bem sucedido ao me introduzir na Biblioteca [Nacional] sem carteira Eu folheei os manuscritos de da Vice Albert Duumlrer e Mallarmeacuteraquo (Cf CVF p 122) Cf Bertholet Denis Paul Valeacutery - 1871-1945 Plon Biographies Paris 1995 p 8113

œ1 p 123213

Cf V pp 217-22713

Cf œ1 p 101113

œ1 p 115513

œ1 p 115513

œ1 p 120113

œ1 pp 1203-120413

œ1 p 120413

Cf MacKay Agnes Ethel The universal self - A study of Paul Valeacutery University of Toronto Press Toronto 1961 especialmente pp 76-8213

œ1 p 120213

V p 21913

œ1 p 115613

V pp 218-21913

Cf C1rsquo p 35813

Cf Derrida Jaques Qual quelle - Les sources de Valeacutery in Marges de la philosophie Minuit Paris 197213

œ1 p 121013

V p 21913

Maurice Blanchot em seu ensaio sobre a peccedila Mon Faust de Valeacutery compara estes trecircs personagens Fausto Teste e Leonardo e ousa ir ainda mais longe na interpretaccedilatildeo do uacuteltimo encarando-o natildeo apenas como um paradigma para o indiviacuteduo mas como um paradigma para toda a humanidade laquoO homem real segundo da Vinci aplica sua vida agrave conquista e ao exerciacutecio de todos os meios de fazer o real eacute tudo aquilo que ele pode Leonardo eacute um siacutembolo porque ele figura no limite um homem para o qual toda a realidade eacute consagrada ao possiacutevel que transforma tudo o que ele eacute em operaccedilotildees realizaacuteveis e verificaacuteveis e tem assim a sua disposiccedilatildeo sob a forma de uma capacidade infinita de atos toda a sua histoacuteria e esta da humanidaderaquo (Blanchot Maurice Valeacutery et Faust in La part du feu Nrf Gallimard 1949 p 275)13

œ1 pp 891-89213

œ1 p 1155 Como Leonardo Valeacutery tambeacutem escreve a palavra italiana ostinato (obstinado) com ldquohrdquo quando o registro corrente eacute sem segundo uma interpretaccedilatildeo relativamente frequumlente o italiano (como parte dos humanistas de seu tempo) buscava ser fiel agrave linguagem popular e assim distanciar-se da linguagem erudita13

Referindo-se retoricamente a esse seu Leonardo que almeja tudo iluminar Valeacutery se pergunta laquoO que haacute de mais sedutor do que um deus que repele o misteacuterio [] que natildeo direciona seus prestiacutegios para o mais obscuro para o mais terno para o mais sinistro de noacutes mesmos que nos forccedila a concordar e natildeo a se submeter e cujo milagre eacute esclarecer-se cuja profundidade uma perspectiva bem deduzida Existe melhor marca de um poder autecircntico e legiacutetimo do que natildeo se exercer debaixo de um veacuteuraquo (œ1 p 1201)13

V p 21913

Benjamim Walter Sobre a atual posiccedilatildeo do escritor francecircs in Walter Benjamin trad Flaacutevio R Kothe Sociologia Aacutetica Satildeo Paulo 1985 p 17913

œ1 p 116513

œ1 p 150313

œ1 p 116013

V pp 219-12013

œ1 pp 1164-116513

Essa ideacuteia natildeo estaacute muito distante do que posteriormente Roland Barthes sugestivamente denominou de laquoMathesis singularisraquo referindo-se agrave fotografia como uma ciecircncia das coisas particulares portanto como uma ciecircncia impossiacutevel (Cf Barthes Roland La Chambre Claire in œuvres Completes III 1974-1980 org Eacuteric Marty Eacuteditions du Seuil 1995 sect 3 p 1114)13

œ1 pp 1170-117113

Note-se que o proacuteprio Leonardo histoacuterico daacute grande valor agrave pintura o que eacute naturalmente bastante caracteriacutestica da cultura humaniacutestica do Renascimento a valorar relativamente fiel ao pensamento da Antiguumlidade Claacutessica que atualiza e reinventa uma determinada arte pela maior ou menor capacidade de imitaccedilatildeo que esta tem do mundo sensiacutevel material Tal criteacuterio obviamente jaacute natildeo mais poderaacute ser sustentado na Modernidade na qual a fotografia e o cinema por exemplo passam a existir e em massa mas ele teve a sua razatildeo de ser na medida em que era mais ou menos servil a uma doutrina neo-platocircnica supostamente conhecida por Leonardo que dir-se-ia muito ambiacutegua e frouxamente a ela adere mais agrave parte que teoriza a arte como mimese e menos agrave parte que teoriza o mundo sensiacutevel material como corruptiacutevel O que corrobora as ousadas intuiccedilotildees e usos de Valeacutery laquoA pinturaraquo escreve o artista laquoserve a um mais digno sentido que a poesia pois representa com maior verdade as obras da natureza que o poeta E satildeo muito mais dignas as obras da natureza que as palavras as quais satildeo obra do homem pois tal desproporccedilatildeo existe entre as obras do homem e as obras da natureza com aquela que existe entre Deus e o homem Daiacute ser mais digno imitar as obras da natureza verdadeiras semelhanccedilas em ato que imitar com palavras os fatos e os ditos dos homensraquo (Leonardo da Vince Os escritos de Leonardo da Vince sobre a arte da pintura trad Eduardo Carreira Imprensa Oficial amp Editora Universidade de Brasiacutelia Satildeo Paulo 2000 p 59)13

Cf œ1 p 1261 13

œ1 p 119413

œ1 p 126713

œ1 p 1266 laquoEacute necessaacuterio prover-se de instrumentos reais como o desenho e o poder do desenhoraquo enigmaticamente afirma Valeacutery laquoPor quecirc mdash Sobretudo contra a metafiacutesicaraquo (C1rsquo p 331)13

œ1 p 116513

œ1 p 116513

œ1 pp 1165-116613

Um outro exemplo de como Valeacutery infligia seus proacuteprios pensamentos em seus escritos de criacutetica literaacuteria e artiacutestica de como eram recorrentes suas obsessotildees de seu laquoniilismo hermenecircuticoraquo faz-se oportuno o que ele diz sobre o seu Goethe tambeacutem eacute igual e surpreendentemente vaacutelido para o seu Leonardo laquoGoethe eacute o grande apologista da Aparecircncia Presta ao que acontece na superfiacutecie das coisas um interesse e um valor nos quais encontro uma fraqueza e uma determinaccedilatildeo das mais importantes Compreendeu que se percebemos uma infinidade de sensaccedilotildees inuacuteteis em si eacute delas entretanto por mais indiferentes que sejam que retiramos atraveacutes de uma curiosidade inteiramente gratuita e uma atenccedilatildeo de puro luxo todas as nossas ciecircncias e artes Penso algumas vezes que existe para alguns como para ele uma vida exterior de intensidade e de profundidade no miacutenimo iguais as que emprestamos agraves trevas iacutentimas e aos segredos descobertos dos ascetas e dos sufis Que revelaccedilatildeo deve ser para um cego nato as primeiras as dolorosas e maravilhosas tonalidades do dia na retina E que progressos firmes e definitivos sente estar fazendo aos poucos em direccedilatildeo ao conhecimento limite mdash a nitidez das formas e dos corpos E ao contraacuterio o mundo interior estaacute sempre ameaccedilado por uma confusatildeo de sensaccedilotildees obscuras de lembranccedilas de tensotildees de palavras virtuais onde o que queremos observar e apreender altera corrompe de alguma forma a proacutepria observaccedilatildeo Quase natildeo podemos conceber e esboccedilar o que significa pensar o pensamento e a partir desse segundo grau desde que tentemos elevar nossa consciecircncia a essa segunda potecircncia imediatamente tudo se perturba Goethe observa contempla e ora nas obras de arte plaacutestica ora na Natureza persegue a forma tenta ler a intenccedilatildeo de quem traccedilou ou modelou a obra ou o objeto que examina O mesmo homem capaz de tanta paixatildeo de tanta liberdade dos caprichos do sentimento e das criaccedilotildees imprevistas do espiacuterito poeacutetico transforma-se deliciosamente em um observador com uma paciecircncia inesgotaacutevel [] Mas o amor pela forma natildeo se limita para Goethe ao deleite contemplativo Qualquer forma viva eacute um elemento de uma transformaccedilatildeo e qualquer parte de alguma forma eacute talvez uma modificaccedilatildeo de alguma outraesde que tentemos elevar nossa conscignifica pensar o pensamento e a aprtir desse segundo grau a a praquo (œ1 pp 542-543)13

V p 22013

Para o Leonardo histoacuterico o olho era realmente um oacutergatildeo essencial para o desenvolvimento das artes e das ciecircncias para que a matildeo possa executar laquoO olho abarca a beleza do mundo todo Ele eacute senhor da astrologia ele cria a cosmografia ele endireita todas as artes humanas ele eacute priacutencipe das matemaacuteticas e suas ciecircncias satildeo acertadiacutessimas mede a distacircncia [] descobre os elementos e as suas posiccedilotildees [] engendra a arquitetura a perspectiva e a divina pintura [] Janela do corpo humano que atraveacutes de si reflete a beleza do mundo e nela goza por ele a alma se alegra em sua prisatildeo humana sem a qual a vida seria tormento Por ele a humana induacutestria descobriu o fogo graccedilas ao qual o olho recupera o que entatildeo lhe eacute arrebatado pelas trevas Ele ornou a natureza com a agricultura e com os jardins deliciososraquo (Leonardo da Vince Os escritos de Leonardo da Vince sobre a arte da pintura trad Eduardo Carreira Imprensa Oficial amp Editora Universidade de Brasiacutelia Satildeo Paulo 2000 pp 69-70)13

Segundo Emile Cioran frequumlentemente exagerado em suas afirmaccedilotildees laquoum monstro que possui todos os poderes os que natildeo temos e os que gostariacuteamos de ter Responde a essa necessidade de nos vermos acabados realizados em algueacutem que imaginamos e que representa o resumo ideal de todas as ilusotildees que criamos a nosso respeito heroacutei que venceu suas proacuteprias impossibilidadesraquo (Cioran Emile Valeacutery face agrave ses Idoles in œuvres Quarto Eacuteditions Gallimard 1995 p 1566) e segundo Marleau-Ponty sempre mais contido em suas afirmaccedilotildees laquoum monstro de liberdade pura sem amantes credor anedota aventurasraquo (Cf Merelau-Ponty Maurice A duacutevida de Ceacutezanne trad Marilena de Souza Chauiacute Nelson Alfredo Aguilar amp Pedro de Souza Moraes Os Pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1980 p 123) Note-se ainda que parte do programa filosoacutefico de Marleau-Ponty mdasha compreensatildeo da esteacutetica como o resgate desta dimensatildeo relativamente negligenciada pela filosofia tradicional o mundo dos fenocircmenos sensiacuteveis materiais isto eacute o mundo do corpo do corpo natildeo mais submetido agrave suposta superioridade da almamdash eacute relativamente muito proacuteximo ao de Valeacutery Natildeo agrave toa o filoacutesofo francecircs utilizar-se do poeta francecircs e o seu Ceacutezanne ter muitas semelhanccedilas com o Leonardo do outro os personagens de ambos viam na arte natildeo apenas um modo de expressatildeo mas tambeacutem um modo de conhecimento e objetivaccedilatildeo do mundo (Cf Merelau-Ponty Maurice A duacutevida de Ceacutezanne trad Marilena de Souza Chauiacute Nelson Alfredo Aguilar amp Pedro de Souza Moraes Os Pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1980)13

œ1 p 126113

Borges Jorge Luis Paul Valeacutery in Textos Cautivos in Obras Completas 4 1923-1949 Emenceacute Editores Buenos Aires 2005 p 26313

C2rsquo p 120613

C2rsquo p 1206 Ainda quanto a essa criacutetica haacute uma curiosa ldquoanedotardquo Dizem que Andreacute Breton sabia de cor Monsieur Teste e no Premier manifeste du Surreacutealisme revela que Valeacutery mdasha quem chegou a considerar seu mestre vindo posteriormente a dele se desvincularmdash lhe disse que jamais escreveria a seguinte frase laquoA marquesa saiu agraves cinco horasraquo (Charpier Jacques amp Seghers Pierre (orgs) Lrsquoart poeacutetique Editions Seghers Paris 1956 p 580) Se isso eacute verdade ou natildeo natildeo eacute possiacutevel confirmar De qualquer modo uma tal ldquoanedotardquo acaba demonstrando em certa medida como Valeacutery realmente compreendia a arte literaacuteria como uma praacutetica que natildeo deve conter arbitrariedades Por que a marquesa saiu agraves cinco horas e natildeo agraves quatro ou agraves seis13

C1rsquo p 19613

C1rsquo p 2113

C1rsquo p 202 13

œ2 p 4513

Cf MacKay Agnes Ethel Monsieur Teste in The universal self - A study of Paul Valeacutery University of Toronto Press Toronto 196113

œ2 p 4913

VaacutelEacutery Franccedilois Paul Valeacutery et la politique in PA pp 185-21113

Cf Benjamim Walter Sobre a atual posiccedilatildeo do escritor francecircs in Walter Benjamin trad Flaacutevio R Kothe Sociologia Aacutetica Satildeo Paulo 1985 p 17813

laquoNesse pontoraquo escreve Adorno laquoValeacutery natildeo aceitou ingenuamente a posiccedilatildeo do artista isolado e alienado nem fez abstraccedilatildeo da histoacuteria tampouco criou ilusotildees sobre o processo social que levou agrave alienaccedilatildeo Contra os arrendataacuterios da interioridade privada contra a astuacutecia que frequumlentemente preenche sua funccedilatildeo no mercado simulando a pureza daqueles que natildeo sabem o que se passa Valeacutery cita uma beliacutessima frase de Degas ldquoMais um desses ermitotildees que sabem o horaacuterio dos trensrdquo (p 1217) Com toda a dureza possiacutevel sem nenhum ingrediente ideoloacutegico mais radicalmente que qualquer teoacuterico da sociedade poderia fazer Valeacutery exprime a contradiccedilatildeo do trabalho artiacutestico nas condiccedilotildees sociais da produccedilatildeo material que reinam hoje na sociedaderaquo (Adorno Theodor W La fonction vicariante du funambule in Notes sur la littteacuterature trad Sibylle Muller Flammarion Paris 1984 p 77)13

Teste chega ao limite de dizer laquoO espiacuterito natildeo deve se ocupar das pessoas De personis non curandumraquo (œ2 p 70)13

œ2 p 6413

C1rsquo p 11913

œ2 p 6613

œ2 p 1513

œ2 p 3713

œ2 p 2913

Cf Musil Robert O homem sem qualidades trad Lya Luft amp Carlos Abbenseth Nova Fronteira Rio de Janeiro 198913

C2rsquo p 33113

Benjamin Walter Paul Valeacutery - Pour son soixantiegraveme anniversaire in œuvres II trad Maurice de Gandillac Rainier Rochlitz amp Pierre Rusch Folio Essais Gallimard 2000 p 32513

laquoSenhor Teste tinha adquirido o estranho haacutebito de se considerar como uma peccedila de seu jogo ou bem como uma peccedila de certo jogo Ele se via Ele se colocava sobre a mesa Por vezes ele se desinteressava da partida O emprego sistemaacutetico de um Eu (Moi) como um Ele (Lui)raquo (C1rsquo p 94 e 95)13

œ2 p 4513

Eis uma estranha oraccedilatildeo de Teste que corrobora essa interpretaccedilatildeo laquoSenhor eu estava no nada infinitamente calmo Fui perturbado desse estado para ser lanccedilado a um estranho carnaval e a cuidados vossos ser dotado do necessaacuterio para sofrer fruir compreender e enganar-me atributos desiguais poreacutem Considero-vos senhor deste negro que vou olhando enquanto penso e sobre o qual haacute-de inscrever-se o derradeiro pensamento Concedei oacute Negro mdash concedei o supremo pensamento Mas o pensamento qualquer pensamento pode ser todo ele laquosupremo pensamentoraquo De outro modo a ser supremo em si e por si poderiacuteamos tecirc-lo por reflexatildeo ou acaso e uma vez tido deviacuteamos morrer Seria isto poder morrer de um pensamento determinado e apenas por natildeo haver outro que o prolongasseraquo (œ2 p 37)13

C1rsquo p 23613

Cf C1rsquo p 1206 cf C2rsquo p 386 704 e 135613

C2rsquo p 142413

œ2 p 7113

œ2 p 1913

œ2 p 3113

œ2 pp 33-3413

C1rsquo p 19613

œ2 p 1413

Eacute por isso que em algumas passagens dos Cahiers Valeacutery chega a compreender seu personagem conceitual como o siacutembolo da reforma de maneiras de pensar da passagem de um operar com essecircncias para um operar com funccedilotildees Teste anota o poeta de modo um tanto obscuro laquobusca reformar maneiras de pensar mdash maneiras de sentir que tem milhotildees de anos de possessatildeo de estado que satildeo impostas pela linguagem pelo decoro porque haacute mais poder sobre um homem [] Pois por maneira de pensar eu natildeo entendo as ideacuteias sozinhas Ele natildeo muda opiniotildees Ele busca uma educaccedilatildeo outramente profunda despedaccedilamentos reais mdash manobras de uma delicadeza incomum como de guardar os poderes devidos a uma ilusatildeo mesmaraquo (C1rsquo pp 331-332) Ou ainda laquoSr Teste mdash demonstra ao Abade [ao Padre] que seu sistema eacute mais puro que toda a religiatildeoraquo (C2rsquo p 1332)13

laquoldquoQue pode um homemrdquoraquo lecirc-se numa passagem dos Cahiers laquo(Teste) eacute decididamente a mais grande questatildeo Mas poder tem 2 sentidos mdash um passivo e outro ativo Eu POSSO entender sentir suportar ser modificado sofrer etc mdash eacute o sentido ldquopropriedaderdquo mdash e o aspecto sensibilidade Eu POSSO fazer agir modificar mdash eacute o sentido faculdade mdash e o aspecto accedilatildeoEntre os dois duas possiacuteveis misturas Eu posso me lembrar mdash e eacute necessaacuterio acrescentar a isso todas as accedilotildees que satildeo ora reflexas ora voluntaacuteriasraquo (C1rsquo p 371)13

œ2 p 151313

Starobisnki Monsieur Teste face agrave la douleur in Jarrety Michel (org) Valeacutery por quoi Les Impressions Nouvelles Paris 198713

œ2 p 4313

œ2 p 2513

œ2 p 3513

œ2 p 3413

œ2 p 6513

C1rsquo p 26313

Cf FEacuteline Pierre Souvenirs sur Paul Valeacutery Mercure de France 321 1954 cf Bertholet Denis Paul Valeacutery - 1871-1945 Biographies Plon Paris 1995 pp 38-39 cf Celeyrette-Pietri Valeacutery Valeacutery et Wronski in Gifford Paul amp StimPson Brian (orgs) Paul Valeacutery - Musique Mystique Matheacutematique Presses Universitaires de Lille Lille 1993 pp 147-162 13

Cf Bertholet Denis Paul Valeacutery - 1871-1945 Biographies Plon Paris 1995 p 8513

Cf Robinson-ValEacutery Judith (org) Fonctions de lrsquoesprit - treize savants redeacutecouvrent Paul Valeacutery Hermann Paris 198313

Cf Robinson-Valeacutery Judith Chapter 4 - The fascination of science in Gifford Paul amp Stimpson Brian (orgs) Reading Paul Valeacutery - Universe in Mind Cambridge University Press Cambridge 1998 pp 70-84 especialmente p 7013

Cf Virtanen Reino Lrsquoimagerie scientifique de Paul Valeacutery Librarie philosophique J Vrin Paris 197513

œ1 p 89913

œ1 p 125313

Cf œ1 p 125313

Cf Bacon Francis The new organon org Lisa Jardine amp Michael Silverthorne Cambridge University Press Cambridge 200013

Cf Descartes Reneacute Discurso do Meacutetodo Meditaccedilotildees Objeccedilotildees e respostas amp As paixotildees da alma Cartas trad J Guinsburg e Bento Prado Juacutenior Os Pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 197913

Em Lrsquoideacutee fixe - ou deux hommes agrave la mer Valeacutery atraveacutes da voz ou personagem do meacutedico refere-se por exemplo agrave necessidade que a Ciecircncia Moderna tem de criar novos meios de representaccedilatildeo para fenocircmenos que natildeo satildeo diretamente captados pelos sentidos (como o demasiado grande e o demasiado pequeno) mas somente inferidos mediante novos instrumentos de captaccedilatildeo e novas teorias de anaacutelise laquoas investigaccedilotildees nos conduziram com bastante prontidatildeo fora do domiacutenio primitivo de nossas percepccedilotildees Encontramos novos meios de ver e de atuar Mas tais meios satildeo indiretos [] Haacute que se interpretar ou ilustrar suas indicaccedilotildees mediante imagens ou ideacuteias necessariamente tomadas de nosso depoacutesito fundamental e invariaacutevel [] Como imaginar um mundo no qual eacute impensaacutevel o ver o tocar em que natildeo existam a figura nem as categorias no qual ateacute as noccedilotildees de posiccedilatildeo e movimento satildeo de certo modo incompatiacuteveis Os fiacutesicos tratam de sair adiante mediante incriacuteveis sutilezasraquo (œ2 p 269)13

Cf Pietra Reacutegine Valeacutery et la reflexion eacutepisteacutemologique dans les dix derniers anneacutees du XIXe siegravecle ndash Valeacutery et Poincareacute in Celeyrette-Pietri Nicole amp Soulez Antonia (orgs) Valeacutery la logique et le langage Sud - Revue litteraire bimestrielle Val de Marne le 29 novembre 1986 Universiteacute Paris XII Paris 1988 p 54 13

Note-se que essa ldquocontradiccedilatildeordquo ocorre agraves vezes num mesmo escrito sobretudo nos escritos sobre Leonardo nos quais Valeacutery afirma que o artista italiano eacute aquele cujo meacutetodo natildeo separa a ciecircncia da arte o compreender do criar mas tambeacutem aquele que sempre estaacute pensando no poder no poder de agir de fazer13

œ1 pp 843-84413

œ1 p 125613

œ1 p 124013

C1rsquo p 574 Natildeo deixa de ser intrigante ler num dos fragmentos dos Cahiers a seguinte passagem confissatildeo da vontade de imaginar um homem para aleacutem inclusive de Leonardo e Teste que viveria e pensaria apenas com categorias meramente funcionais isto eacute um homem puramente ldquopositivordquo ldquocientiacuteficordquo laquoEu imagino com bastante frequumlecircncia um homem que seria em possessatildeo de tudo o que noacutes sabemos feito de operaccedilotildees precisas e de receitas mas inteiramente ignorante de todas as noccedilotildees e de todas as palavras que natildeo nos datildeo imagens claras nem natildeo despertam atos uniformes e [que] podem ser repetidos Ele jamais entendeu [o que eacute] falar de espiacuterito de alma de pensamento de substacircncia de liberdade de vontade de tempo de espaccedilo de forccedilas de vida de instintos de memoacuteria de causa de deuses nem de moral nem de origens e em suma ele sabe tudo o que noacutes sabemos e ignora tudo o que noacutes ignoramos Mas ele disso ignora inclusive os nomes [] eu o coloco em movimento e eu o solto no meio das circunstacircnciasraquo (C1rsquo p 573-574)13

œ2 p 23013

Cf PA13

Numa carta a Anatole de Monzie o poeta chega a fazer a distinccedilatildeo entre Histoacuteria com H maiuacutescula e histoacuteria com h minuacutesculo a primeira designa um mito o mito que nasce ao se personificar um termo abstrato em tornaacute-lo uma espeacutecie de deus mito que eacute exemplificado em expressotildees como a laquoHistoacuteria nos ensinaraquo a laquoHistoacuteria julgaraacuteraquo a segunda a histoacuteria enquanto praacutetica do historiador enquanto disciplina atividade E eacute nesse segundo aspecto que sua reflexatildeo realmente mais se desdobra (Cf œ2 p 1549)13

œ2 p 154913

œ1 p 113513

œ2 p 92013

œ1 pp 1202-120313

œ1 pp 1133-113413

C13 p 51913

Cf Jarrety Michel 8 - Ecritures de lrsquoHistoire in Valeacutery devant la litteacuterature - Mesure de la limite PUF Paris 1991 pp 351-38913

C23 p 50713

C22 p 6613

C14 p 82913

œ2 p 1549 13

œ1 p 1133 13

C23 p 77313

œ2 p 22213

œ1 p 113013

œ1 pp 1130-113113

Cf Jarrety Michel 8 - Ecritures de lrsquoHistoire in Valeacutery devant la litteacuterature - Mesure de la limite PUF Paris 1991 pp 351-38913

œ1 p 113213

œ1 p 113213

œ1 p 113513

Cf Rorty Richard M (org) The linguistic turn - Essays in philosophical method - With two retrospective essays The University of Chicago Press Chicago amp Londres 199213

Cf Wittgenstein Ludwing Tratactus logico-philosophicus ed biliacutenguumle trad apresentaccedilatildeo e ensaio introdutoacuterio Luis Henrique Lopes dos Santos intr Bertrand Russell Edusp Satildeo Paulo 1994 sobretudo sect 40031 pp 164-165 cf Mauthner Fritz Contribuciones a uma criacutetica del lenguage trad Joseacute Moreno Villa Herder Barcelona 2001 13

Gadamer Hans-Georg Verdade e meacutetodo - Traccedilos fundamentais de uma hermenecircutica filosoacutefica I trad Flaacutevio Paulo Meurer nova revisatildeo da trad Enio Paulo Giachini Vozes amp Editora Universitaacuteria Satildeo Francisco Petroacutepolis amp Braganccedila Paulista 2004 p 61213

Nos escritos de Valeacutery natildeo haacute referecircncias diretas a essas correntes apesar de realmente haver vaacuterios pontos em comum Sabe-se hoje pelo inventaacuterio de sua biblioteca e pelas notas deixadas em alguns de seus livros prenhes de apontamentos trabalho feito por Judith Robinson-Valeacutery que ele chegou ao menos a ter contato com a produccedilatildeo do Wiener Kreis Tambeacutem segundo relato de seu filho Franccedilois Valeacutery o proacuteprio poeta teria afirmado a existecircncia de determinadas afinidades entre o seu pensamento e o dos radicais epistemoacutelogos vienenses Entretanto isso parece ter ocorrido somente apoacutes a deacutecada de 1930 portanto num periacuteodo tardio jaacute mais proacuteximo da Segunda Guerra Mundial da tomada de Paris e da velhice do poeta (Cf Robinson-Valeacutery Judith Valeacutery et le Cercle de Vienne - Lectures affiniteacutes et diffeacuterences in Celeyrette-Pietri Nicole amp Soulez Antonia (orgs) Valeacutery la logique et le langage Sud - Revue litteraire bimestrielle Val de Marne le 29 novembre 1986 Universiteacute Paris XII Paris 1988 pp 31-46 especialmente pp 41-42)13

Cf Virtanen Reino Lrsquoimagerie scientifique de Paul Valeacutery Essais drsquoArt et de Philosophie Librarie Philosophique J Vrin Paris 197513

Sobre a influencia de Poincareacute no pensamento de Valeacutery cf Pietra Regina Valeacutery et la reacuteflexion eacutepisteacutemologique das les dix derniegraveres anneacutees di XIXe siegravecle - Valeacutery et Poincareacute in Celeyrette-Pietri Nicole amp Soulez Antonia (orgs) Valeacutery la logique et le langage Sud - Revue litteraire bimestrielle Val de Marne le 29 novembre 1986 Universiteacute Paris XII Paris 1988 pp 47-68 sobre a influecircncia de Max Muumlller notadamente a concepccedilatildeo da linguagem como um um sistema loacutegico imperfeito cf Schmidt-Radefeldt Juumlrger Paul Valeacutery lecteur de Max Muumlller in Celeyrette-Pietri Nicole amp Soulez Antonia (orgs) Valeacutery la logique et le langage Sud - Revue litteraire bimestrielle Val de Marne le 29 novembre 1986 Universiteacute Paris XII Paris 1988 pp 69-8213

Eliot T S De Poe a Valeacutery in Ensaios escolhidos org e trad Maria Adelaide Ramos Cotovia Lisboa 199213

Koumlhler Hartmut Paul Valeacutery poeacutesie et connaissance lrsquoœuvre lyrique agrave la lumiegravere des lsquoCahiersrsquo trad Colette Kowalski Klincksieck Paris 198513

Cf Bourjea Serge Paul Valeacutery - Le sujet de lrsquoeacutecriture LrsquoHarmattan Codeacute-sur-Noireau 199713

œ1 p 131613

C1rsquo p 44813

C1rsquo p 41613

œ1 p 122513

Cf Peirce Charles S Logic as semiotic the theory of signs in Philosophical writings of Peirce org Jusus Buchler Dover Publications New York 13

œ1 p 126413

C1rsquo p 38213

C1rsquo p 42713

Para uma abordagem geral do desenvolvimento histoacuterico desse ideaacuterio cf Eco Umberto A busca da liacutengua perfeita na cultura europeacuteia trad Antonio Angonese Edusc Bauru 2002 para uma abordagem da problemaacutetica filosoacutefica desse ideaacuterio cf Marleau-Ponty Maurice O fantasma de uma liacutengua pura in A prosa do mundo trad Paulo Neves Cosac amp Naify Satildeo Paulo 200213

C1rsquo p 42513

C1rsquo p 45513

As referecircncias ao teoacutelogo da Catalunha e ao filoacutesofo de Leipzig satildeo relativamente constantes nos Cahiers naturalmente diferente desses dois pensadores o poeta natildeo buscou a formulaccedilatildeo de uma linguagem perfeita de uma linguagem pura com o intuito de provar as supostas verdades da religiatildeo cristatilde e com isso colaborar numa mais eficaz conversatildeo de infieacuteis (Cf C1rsquo p 384) De qualquer modo frases como esta mdashlaquoEu soube que minha ambiccedilatildeo literaacuteria era (tecnicamente) organizar minha linguagem de modo a fazer dela um instrumento de exposiccedilatildeo e de deduccedilatildeo de descobertas e de observaccedilotildees rigorosasraquo (C1rsquo p 386)mdash remetem em muito agraves especulaccedilotildees do filoacutesofo das mocircnadas Valeacutery tambeacutem chega a mencionar Descartes quanto agrave formulaccedilatildeo de uma linguagem perfeita de uma linguagem pura Possivelmente ele se refira agrave correspondecircncia do filoacutesofo com o Padre Mersenne especialmente a de 20-11-1629 (Descartes Reneacute œuvres de Descartes - Correspondences - avril 1622-feacutevrier 1638 I org Charles Adam amp Paul Tannery Librairie Philosophique J Vrin Paris 1996 pp 76-82) na qual se encontra a reflexatildeo sobre uma linguagem da razatildeo que pudesse representar toda a filosofia13

C1rsquo p 42813

Quanto a isso Valeacutery chegou a se questionar inclusive da possibilidade ou natildeo de acrescentar outras formas de notaccedilatildeo na proacutepria liacutengua o que supostamente faria com que esta adquirisse um maior ou mais exato poder de representaccedilatildeo laquoPor que natildeo signos como os que haacute na muacutesica (na qual faltam alguns tambeacutem)raquo questiona-se laquoSignos de vitalidade fortemente articulados mdash de paradas de diferentes duraccedilotildees De ldquovivacerdquo ldquosolennerdquo staccato scherazandoraquo (C1rsquo p 574)13

œ2 p 18313

C1rsquo p 40013

Charney Hanna K Le Scepticisme de Valeacutery Dider Paris 1969 cf œ1 p 113213

œ2 pp 177-19413

Cf Derrida Jaques Qual quelle - Les sources de Valeacutery in Marges de la philosophie Minuit Paris 1972 pp 327-36313

Cf Genette Geacuterard Au deacutefaut des langues in Mimologiques - Voyage en Cratylie Eacuteditions du Seuil Paris 1976 cf Motta Leda Tenoacuterio da O abismo da palavra in Catedral em Obras - Ensaios de Literatura Iluminuras Satildeo Paulo 199513

Note-se que o Platonismo seraacute enquanto paradigma filosoacutefico constantemente criticado nos escritos de Valeacutery principalmente em seus diaacutelogos socraacuteticos13

Cumpre dizer que a Teoria das Ideacuteias no Craacutetilo eacute somente esboccedilada inicialmente pelo proacuteprio Craacutetilo e ao fim por Soacutecrates ainda natildeo se apresenta de modo plenamente desenvolvida como no Feacutedon diaacutelogo posterior agravequele no qual a separaccedilatildeo entre mundo das Ideacuteias de um lado e mundo sensiacutevel concreto de outro se acentua assim como todos os problemas que essa separaccedilatildeo acarreta (Cf Plato Cratylus IV no 167 trad Harold North Fowler org G P Goold Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 1992 cf PlatO Phaedo I no 36 trad Harold North Fowler org Jefrey Henderson Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 2005)13

Cf Plato Cratylus IV no 167 trad Harold North Fowler org G P Goold Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 199213

Sobre o nominalismo de Valeacutery cf JArrety Michel 1 Nominalisme et imaginaire in Valeacutery devat la litteacuterature - Mesure de la limite PUF Paris 199113

MallarmEacute Steacutephane œuvres completes I org Bertrand Marchal Gallimard Bibliothegraveque de la Peacuteiade Paris 1998 p 50613

MallarmEacute Steacutephane œuvres completes I org Bertrand Marchal Gallimard Bibliothegraveque de la Peacuteiade Paris 1998 p 50613

œ1 p 132813

Cf Saussure Ferdinand Cours de linguistique geacuteneacuterale orgs Charles Bally Albert Sechehaye amp Albert Riedlinger (colab) Eacutedition critique preacutepareacute par Tullio de Mauro Payothegraveque Payot Paris 198213

Roland Barthes em 1977 na ceacutelebre aula inaugural para o curso de semiologia literaacuteria no Collegravege de France na mesma sala onde Valeacutery havia professado sua Premiegravere leccedilon du cours de poeacutetique (1937) (œ1 p 1828) refere-se a um ideaacuterio similar presente natildeo apenas na linguagem mas tambeacutem na proacutepria literatura laquoDesde os tempos mais antigos ateacute as tentativas de vanguarda a literatura se afaina na representaccedilatildeo de alguma coisaraquo diz o semioacutelogo laquoO quecirc Direi brutalmente o real O real natildeo eacute representaacutevel e eacute porque os homens querem constantemente representaacute-lo por palavras que haacute uma histoacuteria da literatura Que o real natildeo seja representaacutevel mdash mas somente demonstraacutevel mdash pode ser dito de vaacuterios modos quer o definamos com Lacan como o impossiacutevel o que natildeo pode ser atingido e escapa ao discurso quer se verifique em termos topoloacutegicos que natildeo se pode fazer coincidir uma ordem pluridimensional (o real) e uma ordem unidimensional (a linguagem) Ora eacute precisamente a essa impossibilidade topoloacutegica que a literatura natildeo quer nunca quer render-se Que natildeo haja paralelismo entre o real e a linguagem com isso os homens natildeo se conformam e eacute essa recusa talvez tatildeo velha quanto a proacutepria linguagem que produz numa faina incessante a literatura Poderiacuteamos imaginar uma histoacuteria da literatura ou melhor das produccedilotildees de linguagens que seria a histoacuteria dos expedientes verbais muitas vezes louquiacutessimos que os homens usaram para reduzir aprisionar negar ou pelo contraacuterio assumir o que eacute sempre um deliacuterio isto eacute a inadequaccedilatildeo fundamental da linguagem ao real Eu dizia haacute pouco a respeito do saber que a literatura eacute categoricamente realista na medida em que ela sempre tem o real por objeto de desejo e direi agora sem me contradizer porque emprego a palavra em sua acepccedilatildeo familiar que ela eacute tambeacutem obstinadamente irrealista ela acredita sensato o desejo do impossiacutevel Essa funccedilatildeo talvez perversa portanto feliz tem um nome eacute a funccedilatildeo utoacutepica Reencontramos aqui a Histoacuteria Pois foi na segunda metade do seacuteculo XIX num dos periacuteodos mais desolados da infelicidade capitalista que a literatura encontrou pelo menos para noacutes franceses Mallarmeacute sua figura exata a modernidade mdash que entatildeo comeccedila mdash pode ser definida por este fato novo nela se concebem utopias de linguagem Nenhuma ldquohistoacuteria da literaturardquo (se ainda se escrever alguma) poderia ser justa se se contentasse como no passado com encadear escolas sem marcar o corte que potildee a nu um novo profetismo o da escrituraraquo (Barthes Roland Leccedilon in œuvres Completes III 1974-1980 org Eacuteric Marty Eacuteditions du Seuil 1995 pp 806-807) laquoO uacutenico real na arte eacute a arteraquo (œ1 p 613) assim tambeacutem jaacute escrevia Valeacutery em La Tentation de (Saint) Flaubert no qual critica o ideaacuterio do Realismo que natildeo raro baseando-se em erudiccedilatildeo documental descreve os objetos e os acontecimentos com grande profusatildeo de detalhes pretendendo com isso dar uma suposta objetividade agrave representaccedilatildeo literaacuteria 13

Wittgenstein Investigaccedilotildees filosoacuteficas trad Joseacute Carlos Bruni Os pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 197913

C1rsquo p 418 cf C1rsquo p 45713

Semelhante reflexatildeo foi desenvolvida por Nietzsche em sua criacutetica ao conceito de verdade este assim se pergunta laquoO que eacute a verdade Um batalhatildeo moacutevel de metaacuteforas metoniacutemias antropomorfismos enfim a soma de relaccedilotildees humanas que foram enfatizadas poeacutetica e retoricamente transpostas enfeitadas e que apoacutes longo uso parecem a um povo soacutelidas canocircnicas e obrigatoacuterias as verdades satildeo as ilusotildees das quais se esqueceu que o satildeo metaacuteforas que se tornaram gastas e sem forccedila sensiacutevel moedas que perderam a sua efiacutegie e agora soacute entram em consideraccedilatildeo como metal natildeo mais como moedaraquo (Nietzsche Friedrich Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral trad Rubens Rodrigues Torres Filho Os pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1974 p 84)13

œ1 pp 1093-109413

A ceacutelebre reflexatildeo de Santo Agostinho mdashlaquoO que eacute portanto o tempo se ningueacutem me pergunta eu sei se quiser explicar a quem me fizer a pergunta natildeo seiraquo (laquoQuid est ergo tempus Si nemo ex me quaerat scio si quaerenti explicare velim nescioraquo (SantrsquoAgostino Le confessioni in Opere di SantrsquoAgostino I Edizione latino-italiana Nuova Biblioteca Agostiniana Cittagrave Nuoava Editrice Roma 1993 Liber XI sect 14 pp 380-381))mdash denuncia que a consciecircncia desse fenocircmeno eacute bastante antiga (cf a epiacutegrafe deste capiacutetulo) Wittgenstein que a cita logo em seguida pondera laquoAquilo que se sabe quando ningueacutem nos interroga mas que natildeo se sabe mais quando devemos explicar eacute algo sobre o que se deve refletir (E evidentemente algo sobre o que por alguma razatildeo dificilmente se reflete)raquo (Wittgenstein Ludwing Investigaccedilotildees filosoacuteficas trad Joseacute Carlos Bruni Os pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1979 p 49)13

œ1 pp 1317-131813

C1rsquo p 45413

Cf Wittgenstein Ludwing Investigaccedilotildees filosoacuteficas trad Joseacute Carlos Bruni Os Pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 197913

C1rsquo p 43313

œ2 pp 480-48113

Cf Rousseau Essais sur lrsquoorigine des langues org Jean Starobinski Folio - Essais Gallimard Paris 199313

Cf Condillac Eacutetienne Bonnot de Essai sur lrsquoorigine des connaissances humaines ndash Ouvrage ougrave lrsquoon reacuteduit agrave un seul principe tout ce qui concerne lrsquoentendement org Raymond Lenoir Librairie Armand Colin 192413

Sobre a linguagem como gesto cf Soulez Antonia La phrase-geste - Valeacutery et Wittgenstein in Celeyrette-Pietri Nicole amp Soulez Antonia (orgs) Valeacutery la logique et le langage Val de Marne le 29 novembre 1986 Universiteacute Paris XII Paris 1988 pp 135-15513

C1rsquo p 45713

C1rsquo p 41013

C1rsquo p 45813

œ1 p 144013

Cf Nietzsche Friedrich Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral trad Rubens Rodrigues Torres Filho Os Pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1974 p 8413

C1rsquo p 39113

C1rsquo p 39013

Cf C1rsquo p 460-46113

C1rsquo p 43813

œ1 p 68613

C1rsquo pp 438-43913

C1rsquo p 43013

C1rsquo p 62013

O modo como Valeacutery escreve em geral sobre a filosofia eacute realmente bastante sedutor Assim quando Emile Cioran o critica como um escritor que tambeacutem se deixou levar pela doenccedila da linguagem imagina-se que ao contraacuterio o elogia irocircnico nega-o para afirmaacute-lo confessando por quem se deixou influenciar laquoO horror que tinha do jargatildeo filosoacutefico eacute tatildeo convincente tatildeo contagiante que dele partilhamos para sempre soacute podemos ler um filoacutesofo seacuterio com desconfianccedila ou repugnacircncia e nos recusarmos daiacute em diante a todo termo falsamente misterioso ou eruditoraquo (Cioran Emile Valeacutery face agrave ses idoles œuvres Quarto Eacuteditions Gallimard 1995 p 1567)13

C1rsquo p 41313

œ1 pp 1264-126513

C1rsquo pp 532-533 Essa concepccedilatildeo se coaduna com a concepccedilatildeo do que vem a ser a filosofia para Wittgenstein uma atividade cujo fim natildeo eacute a resoluccedilatildeo mas a eliminaccedilatildeo dos problemas filosoacuteficos a diferenccedila mais marcante entre os dois pensadores eacute mais de caraacuteter semacircntico este se colocava dentro da filosofia como filoacutesofo e Valeacutery fora dela como natildeo filoacutesofo Jaacute na sua primeira obra o loacutegico austriacuteaco escreve laquoA maioria das questotildees e proposiccedilotildees dos filoacutesofos proveacutem de natildeo entendermos a loacutegica de nossa linguagem (Satildeo da mesma espeacutecie que a questatildeo de saber se o bem eacute mais ou menos idecircntico ao belo) E natildeo eacute de admirar que os problemas mais profundos natildeo sejam propriamente problemasraquo (Cf Wittgenstein Ludwing Tratactus logico-philosophicus trad Luiz Henrique Lopes dos Santos EDUSP Satildeo Paulo 1994 sect 4003 pp 164-165) Essas aacuteridas palavras poderiam muito bem ser de Valeacutery compare-se tambeacutem tanto na forma fragmentada como no conteuacutedo os Cahiers de um e as Philosophische Untersuchungen do outro 13

Π folio 94 recto13

œ1 pp 1318-131913

A expressatildeo laquoautomatismo verbalraquo tambeacutem natildeo estaacute longe do que o segundo Wittgenstein denominou de enfeiticcedilamento da linguagem escreve ele que laquoA filosofia eacute uma luta contra o enfeiticcedilamento do nosso entendimento pelos meios da nossa linguagemraquo (Wittgenstein Ludwing Investigaccedilotildees filosoacuteficas trad Joseacute Carlos Bruni Os pensadores Abril Cultural Satildeo Paulo 1975 p 54)13

œ1 pp 1263-126413

œ1 p 126813

Eacute nesse sentido que Derrida em seu ensaio sobre Valeacutery Qual quelle - Les sources de Valeacutery refere-se a este como um pensador eminentemente escritural diferentemente da tradiccedilatildeo que vai de Descartes a Husserl laquoValeacutery faz lembrar ao filoacutesofo que a filosofia se escreve E que o filoacutesofo eacute filoacutesofo pelo tanto que esqueceraquo (Derrida Jaques Qual quelle - Les sources de Valeacutery in Marges de la philosophie Minuit Paris 1972 p 346)13

Cf como um criacutetico como Edmund Wilson considera entre as deacutecadas de 1930 e 1950 a prosa de Valeacutery algo inferior agrave sua poesia (Wilson Edmund Paul Valeacutery in O castelo de Axel - Estudo dobre a literatura imaginativa de 1870 a 1930 trad Joseacute Paulo Paes Companhia das Letras Satildeo Paulo pp 85-108) Muito em funccedilatildeo da publicaccedilatildeo e divulgaccedilatildeo dos Cahiers hoje a tendecircncia eacute justamente contraacuteria Por um lado a criacutetica atual o posiciona cada vez mais como aquele pensador refinado que se interessa em observar seus proacuteprios procedimentos e em avaliar o impacto da Modernidade cientiacutefica e teacutecnica na arte e na vida por outro relega a sua posiccedilatildeo de poeta a um plano por vezes secundaacuterio posto que sua poesia mescla de elementos do Classicismo e Simbolismo eacute considerada de um rigor e hermetismo um tanto anacrocircnico difiacutecil para o ouvido moderno jaacute habituado ao sedutor verso livre (Cf Kluback William Paul Valeacutery a philosopher for philosophers - The sage Peter Lang New York 2000)13

Haacute que se lembrar dessas tradiccedilotildees das quais Valeacutery eacute em certa medida herdeiro o Ceticismo e o Empirismo portanto de um tipo de pensamento que apesar de tambeacutem bastante variado apresenta a possibilidade em se abster da formulaccedilatildeo de uma metafiacutesica Isso porque de algum modo a historiografia filosoacutefica tende a reduzir a filosofia agrave metafiacutesica ou ao menos a dar importacircncia central a ela Daiacute que por exemplo o poeta tenha considerado que o pensamento de um Montaigne com quem tem muitas e ambiacuteguas afinidades dificilmente seria considerado filosoacutefico laquoNela [na filosofia] natildeo figura mais Montaigne Um homem que respondesse Natildeo sei a todas as questotildees de um formulaacuterio filosoacutefico natildeo seria considerado filoacutesofo E no entantoraquo (œ1 p 1251)13

C1rsquo p 503 cf Peitra Regina An art of rethinking Valeacutery lsquonegative philosophyrsquo in Gifford Paul amp Stimpson Brian (orgs) Reading Paul Valeacutery - Universe in mind Cambridge Studies in French Cambridge University Press Cambridge 1998 p 9013

Cf œ2 p 77-147 cf Peitra Regina An art of rethinking Valeacutery lsquonegative philosophyrsquo in Gifford Paul amp Stimpson Brian (orgs) Reading Paul Valeacutery - Universe in mind Cambridge Studies in French Cambridge University Press Cambridge 1998 pp 90-9113

Cf Peitra Regina An art of rethinking Valeacutery lsquonegative philosophyrsquo in Gifford Paul amp Stimpson Brian (orgs) Reading Paul Valeacutery - Universe in mind Cambridge Studies in French Cambridge University Press Cambridge 1998 pp 90-9113

œ1 pp 458-47313

Cf Peitra Regina An art of rethinking Valeacutery lsquonegative philosophyrsquo in Gifford Paul amp Stimpson Brian (orgs) Reading Paul Valeacutery - Universe in mind Cambridge Studies in French Cambridge University Press Cambridge 1998 pp 90-92 cf Gaegravede Edouard Valeacutery et Nietzsche Gallimard Paris 196213

C1rsquo p 61913

Cf œ1 pp 785-853 cf CR13

Cf MacKay Agnes Ethel 3 - Valeacutery and the philosophers in The universal self - A study of Paul Valeacutery University of Toronto Press Toronto 1961 cf Kahn Gilbert Valeacutery et les philosophes in Paul Valeacutery 8 Un noveau regard sur Valeacutery orgs Nicole Celeyrette-Pietri amp Brian Stimpson La revue des lettres modernes Lettres Modernes Paris 199513

C4 p 368 cf Peitra Regina An art of rethinking Valeacutery lsquonegative philosophyrsquo in Gifford Paul amp Stimpson Brian (orgs) Reading Paul Valeacutery - Universe in mind Cambridge Studies in French Cambridge University Press Cambridge 1998 p 9113

œ1 pp 1238-123913

Cf Rey Jean Michel Paul Valeacutery - Lrsquoaventure drsquoune œuvre La Librairie du XXe siegravecle Eacuteditions du Seuil 199113

œ1 p 123713

œ1 p 116413

œ1 pp 1238-123913

œ1 p 124013

œ1 pp 1237-123813

Semelhante reflexatildeo pode tambeacutem ser evocada da leitura do poema em prosa Le visionaire laquoo anjo me deu um livro e me disse laquoEste livro conteacutem tudo o que tu podes desejar saberraquo E ele partiu E eu abri este livro que era medianamente grosso Estava escrito numa escritura desconhecida Os saacutebios o traduziram mas cada um deu-lhe uma versatildeo totalmente diferente das outras E eles diferiam de opiniatildeo quanto ao proacuteprio significado da leitura Natildeo concordando nem sobre o alto nem sobre o baixo nem sobre o comeccedilo nem sobre o fim Perto do fim desta visatildeo pareceu-me que este livro se fundia com o mundo que nos cercavaraquo (œ1 p 333)13

CR p 5913

Sobre os paralelos entre o pensamento de Valeacutery e o Budismo cf Tsunekawa Kunio Paul Valeacutery est-il bouddhiste in Gifford Paul Pickering Robert amp Schmidt-Radefeldt (orgs) Juumlrgen Paul Valeacutery agrave tous points de vue - Hommage agrave Judith Robinson-Valeacutery LrsquoHarmattan Paris 2003 cf Gifford Paul amp Stimpson Brian (orgs) Paul Valeacutery - Musique Mystique Matheacutematique Presses Universitaire de Lille Lille 199313

Π 1938-1939 Texte 57 (XXII 635) [fin de page]13

PA p 13213

œ1 p 125613

œ1 p 124713

œ1 p 125513

Sebeski Jean Confluenes valeryennes in Celeyrette-Pietri Nicole amp Soulez Antonia (orgs) Valeacutery la logique et le langage - Revue Litteraire Bimestrielle Val de Marne le 29 novembre 1986 Universiteacute Paris XII Paris 1988 pp 24-2413

Carnap Rudolph Le deacutepassement de la meacutetaphysique par lrsquoanalyse logique du langage in Soulez Antonia (org) Manifeste du Cercle de Vienne et autres eacutecrists PUF Paris 1985 p 17713

œ1 p 124813

œ1 p 124813

œ1 p 123613

œ1 p 125013

Frase dita a Huret Jules in Enquecircte sur lrsquoeacutevolution litteacuteraire in lthttpwwwuni-duisburg-essendelyriquetheorietexte1891_hurethtmlgt 2008 13

Leiam-se as palavras do escritor italiano laquoEntre os valores que gostaria que fossem transferidos para o proacuteximo milecircnio estaacute principalmente este o de uma literatura que tome para si o gosto da ordem intelectual e da exatidatildeo a inteligecircncia da poesia juntamente com a da ciecircncia e da filosofia como a do Valeacutery ensaiacutesta e prosador [] Se tivesse de apontar quem na literatura realizou perfeitamente o ideal esteacutetico de Valeacutery da exatidatildeo de imaginaccedilatildeo e de linguagem construindo obras que correspondem agrave rigorosa geometria do cristal e agrave abstraccedilatildeo de um raciociacutenio dedutivo diria sem hesitar Jorge Luis Borgesraquo (Calvino Iacutetalo Seis propostas para o proacuteximo milecircnio trad Ivo Barroso Companhia das Letras Satildeo Paulo 1998 p 133)13

Natildeo agrave toa uma Simone Weil considerar Paul Valeacutery natildeo um ceacutetico mas um metafiacutesico naturalmente ela se referia mais ao poeta do que ao prosador (Cf Lussy Florence de Paul Valeacutery et Simone Weil deux natures mystiques deus penseacutees antitheacutetiques in Gifford Paul amp Stimpson Brian (orgs) Paul Valeacutery musique mystique matheacutematique Presses Universitaires de Lille Lille 1993)13

œ2 p 90313

œ1 pp 1249-125013

œ1 p 133513

Cf Poe Edgard Allan O princiacutepio poeacutetico amp Filosofia da composiccedilatildeo in Poemas e ensaios trad Oscar Mendes e Milton Amado revisatildeo e notas Carmen Vera Cirne Lima Globo Satildeo Paulo 199913

œ1 p 134213

œ1 p 134313

œ1 p 135013

Plato Book X in Republic - Books 6-10 trad Paul Shorey Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 200613

ARISTOTLE Poetics trad Stephen Halliwell Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 200513

Cf Koumlhler Hartmut Chapitre III - La connaissance corroboreacutee par elle-meme une poeacutetique anticipeacutee in Paul Valeacutery poeacutesie et connaissance lrsquoœuvre lyrique agrave la lumiegravere des lsquoCahiersrsquo trad Colette Kowalski Klincksieck Paris 198513

C1rsquo p 33613

œ2 p 54613

Cf œ1 pp 1314-133913

Sobre o primeiro encontro de Valeacutery com Mallarmeacute cf Bertholet Denis Paul Valeacutery - 1871-1945 Biographies Plon Paris p 8113

Cf Lalou Reneacute Lrsquoideacutee de poeacutesie pure em France in Deacutefense de lrsquohomme (intelligence et sensualiteacute) Sagitaire Simon Kra Paris 192613

Cf œ1 pp 686-70613

Cf Zambrano Mariacutea Filosofia y poesiacutea Fondo de cultura econoacutemica Meacutexico D F 1996 pp 120-12113

Cf œ1 pp 1269-128013

Henry Bremond em seu conhecido escrito La poeacutesie pure tambeacutem se refere ao conceito de poesia pura mas a este acrescenta ressonacircncias religiosas Apesar da confessa influecircncia simbolista Bremond apresenta portanto uma poeacutetica relativamente distinta da proposta por Valeacutery que se ateacutem sobretudo aos procedimentos formais e ao que esses procedimentos podem suscitar no espiacuterito do poeta (Cf Breacutemond Henry La poeacutesie pure in Charpier Jacques amp Seghers Pierre (orgs) Lrsquoart poeacutetique Editions Seghers Paris 1956)13

œ1 p 124413

œ1 p 150513

Cf Jarrety Michel Chapter 6 - The poetics of practice and theory in Gifford Paul amp Stimpson Brian (orgs) Reading Paul Valeacutery - Universe in mind Cambridge Studies in French Cambridge University Press Cambridge 1998 pp 105-13713

œ1 p 133113

œ1 p 1503 Valeacutery se repete laquoO filoacutesofo natildeo concebe facilmente que o artista passa quase indiferentemente da forma ao conteuacutedo e do conteuacutedo agrave forma que lhe ocorra um tipo de frase e que em seguida procure completaacute-la e justificaacute-la por um sentido que a ideacuteia de uma forma seja o mesmo para ele que a ideacuteia que requer uma forma Etcraquo (œ1 p 1244) Ou ainda laquoO filoacutesofo natildeo concebe facilmente que o artista passe de maneira quase indiferente da forma ao conteuacutedo e do conteuacutedo agrave forma que lhe ocorra uma forma antes do sentido que daraacute a ela nem que a ideacuteia de uma forma seja igual para ele agrave ideacuteia que requer uma formaraquo (œ1 p 1245)13

œ1 pp 676-67713

Quanto ao natildeo acabamento agrave imperfeiccedilatildeo de todo poema eis uma bela passagem de Valeacutery que poderia muito bem se referir agrave escritura dos seus proacuteprios Cahiers laquoUm poema natildeo estaacute nunca acabadoraquo sempre afirma e reafirma o poeta laquoEacute sempre um acidente o que o termina isto eacute o que o daacute ao puacuteblico Satildeo a lassitude a solicitude do editor o surgir de um outro poema Mas nunca o estado mesmo da obra (se o autor natildeo eacute um imbecil) revela que esta natildeo poderia ser trabalhada modificada considerada como primeira aproximaccedilatildeo ou origem de uma nova busca Eu concebo quanto a mim que o mesmo tema e quase as mesmas palavras poderiam ser indefinidamente revisadas e ocupar toda uma vida ldquoPerfeiccedilatildeordquo eacute trabalhoraquo (œ2 p 553)13

Cf Barbosa Joatildeo Alexandre Mallarmeacute segundo Valeacutery in A comeacutedia intelectual de Paul Valeacutery Iluminuras Satildeo Paulo 2007 pp 27-5113

Cf gifford Paul Pickering Robert amp Schmidt-Radefeldt Juumlger (org) Paul Valeacutery agrave tous points de vue - Hommage agrave Judith Robinson-Valeacutery LrsquoHarmattan Paris Budapeste Turim 2003 13

Cf Horace Ars poeacutetica trad H R Fairclough org Jeffrey Henderson Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 200513

œ1 p 132113

laquoComo os vestiacutegios do esforccedilo as repeticcedilotildees as correccedilotildees a quantidade de tempo os dias ruins e os desgostos desapareceram apagados pela suprema volta do espiacuterito para a sua obra algumas pessoas vendo apenas a perfeiccedilatildeo do resultado a consideraratildeo o resultado de uma espeacutecie de prodiacutegio denominado INSPIRACcedilAtildeO Fazem portanto do poeta uma espeacutecie de meacutedium momentacircneo Se focircssemos nos deleitar desenvolvendo rigorosamente a doutrina da inspiraccedilatildeo pura as consequumlecircncias seriam bem estranhas Achariacuteamos por exemplo que esse poeta que se limita a transmitir o que recebe ao comunicar a desconhecidos o que sabe do desconhecido natildeo precisa entatildeo compreender o que escreve o que lhe eacute ditado por uma voz misteriosa Ele poderia escrever poemas em uma liacutengua que ignorasseraquo (œ1 p 1335)13

œ1 p 132213

œ1 p 1324 Na sequumlecircncia Valeacutery ainda comenta laquoMallarmeacute tinha razatildeo Mas quando Degas falava de ideacuteias pensava em discursos internos ou em imagens que afinal pudessem ser exprimidas em palavras Mas essas palavras mas essas frases iacutentimas que ele chamava de suas ideacuteias todas essas intenccedilotildees e percepccedilotildees do espiacuterito mdash nada disso faz versos Haacute portanto algo mais uma modificaccedilatildeo ou natildeo que se interpotildee necessariamente entre esse pensamento produtor de ideacuteias essa atividade e essa multiplicidade de questotildees e de resoluccedilotildees internas e depois esses discursos tatildeo diferentes do discurso comum os versos extravagantemente ordenados que natildeo atendem a qualquer necessidade a natildeo ser agraves necessidades que devem ser criadas por eles mesmos que sempre falam apenas de coisas ausentes ou de coisas profunda e secretamente sentidas estranhos discursos que aprecem feitos por outro personagem que natildeo aquele que os diz e dirigir-se a outro que natildeo aquele que os escuta Em suma eacute uma linguagem dentro de uma linguagemraquo (œ1 p 1324)13

œ1 p 132113

œ1 p 88113

C1rsquo pp 181-18213

Cf Derrida Jaques Qual quelle - Les sources de Paul Valeacutery in Marges de la philosophie Minuit Paris 197213

œ1 p 145113

œ1 p 145113

œ1 p 124613

Cf Adorno Theodor W La fonction vicariante du funambule in Notes sur la littteacuterature trad Sibylle Muller Flammarion Paris 198413

œ1 p 128313

Cf PlatO Cratylus IV no 167 trad Harold North Fowler org G P Goold Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 199213

Cf Plato Republic - Books 6-10 trad Paul Shorey Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 200613

Cf Cossutta Freacutedeacuteric (org) Le dialogue introduction agrave un genre philosophique Press Universitaires du Septentrion Paris 200413

Cf Marx William The Dialogues and lsquoMon Faustrsquo the inner politics of thought in Gifford Paul amp Stimpson Brian (orgs) Reading Paul Valeacutery - Universe in mind Cambridge University Press Cambridge 1998 pp 164-16513

œ1 p 44813

C1rsquo pp 299-30013

C2rsquo p 51913

Cf Marx William The Dialogues and lsquoMon Faustrsquo the inner politics of thought in Gifford Paul amp Stimpson Brian (orgs) Reading Paul Valeacutery - Universe in mind Cambridge University Press Cambridge 1998 pp 156-15913

Cf œ1 pp 360-36613

Blanchot Maurice Valeacutery et Faust in La part du Feu Nrf Gallimard 1949 p 27313

laquoEu penso que nesse assuntoraquo acrescenta Valeacutery evocando mais uma vez a sua habitual reticecircncia com relaccedilatildeo agrave Histoacuteria laquoa grandeza dos erros que noacutes cometemos sem informaccedilatildeo eacute sensivelmente a mesma do que aqueles que cometem com informaccedilatildeo Reconstituir uma certa Greacutecia com um miacutenimo de dados e convenccedilotildees homogecircneas natildeo eacute mais criticaacutevel do que reconstituir atraveacutes de uma quantidade de documentos que quanto mais numerosos mais contraditoacuteriosraquo (Cf œ2 p 1399) Cf o programa de leituras de Valeacutery que inclui uma seacuterie de heterogecircneos autores entre eles Platatildeo in Bertholet Denis Paul Valeacutery - 1871-1945 Biographies Plon Paris pp 82-8313

C1rsquo p 28313

Plato Symposium trad W R M Lamb org Jeffrey Henderson amp G P Goold Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 200113

Essa proposta eacute expressa numa carta de agradecimento de Valeacutery a Lous Seacutechan em agosto de 1930 o trecho que se segue a sintetiza laquoO pensamento constante do Diaacutelogo [Lrsquoacircme et la danse] eacute fisioloacutegico mdash depois dos problemas digestivos do comeccedilo do preluacutedio ateacute a sincope final O homem eacute escravo do simpaacutetico e do [] gaacutestrico Sensaccedilotildees suntuaacuterias movimentos de luxo e pensamentos especulativos existem apenas em favor do valor da tirania da nossa vida vegetativa A danccedila eacute o tipo de escape Quanto agrave forma do conjunto eu tentei fazer do proacuteprio Diaacutelogo uma espeacutecie de baleacute no qual a Imagem e a Ideacuteia satildeo alternativamente os Corifeus O abstrato e o sensiacutevel se conduzem alternativamente e se unem enfim na vertigem Em suma eu natildeo persegui nenhum grau de rigor histoacuterico ou teacutecnico [] Eu fiz intervir livremente o que me precisou para entreter o meu Baleacute e em variar as suas figurasraquo (œ2 p 1408 ou LQ p 190)13

œ2 p 14913

œ2 pp 150-15113

laquoA maior parte de nossos movimentos voluntaacuteriosraquo escreve Valeacutery em seu ceacutelebre ensaio Degas Dance Dessin laquotem uma accedilatildeo exterior como fim alcanccedilar um lugar ou um objeto ou modificar alguma percepccedilatildeo ou sensaccedilatildeo em um ponto determinado Satildeo Tomaacutes dizia muito bem laquoPrimum in causando ultimum est in causatoraquo Atingido o objetivo terminada a atividade nosso movimento que estava inscrito na relaccedilatildeo de nosso corpo com o objeto e com nossa intenccedilatildeo cessa Sua determinaccedilatildeo continha sua exterminaccedilatildeo natildeo se podia nem concebecirc-lo nem executaacute-lo sem a presenccedila e o concurso da ideacuteia de um acontecimento que fosse seu termo [] Se penso em me dirigir da Eacutetoile ao Museu natildeo pensaria nunca que posso tambeacutem realizar meu desiacutegnio passando pelo Pantheacuteon Mas haacute outros movimentos cuja evoluccedilatildeo natildeo eacute excitada nem determinada nem possiacutevel de ser causada e concluiacuteda por nenhum objeto localizado Nenhuma coisa que alcanccedilada traga a resoluccedilatildeo desses atos Cessam apenas mediante alguma intervenccedilatildeo alheia a sua causa sua figura sua espeacutecie e em vez de estarem submetidos a condiccedilotildees de economia parecem ao contraacuterio ter a proacutepria dissipaccedilatildeo por objeto Os saltos por exemplo e as cambalhotas de uma crianccedila ou de um catildeo a caminhada pela caminhada o nado pelo nado satildeo atividades que tecircm como fim apenas modificar nosso sentimento de energia criar certo estado desse sentimento Os atos dessa classe podem e devem multiplicar-se ateacute que uma circunstacircncia completamente diversa de uma modificaccedilatildeo exterior que eles tiverem produzidos intervenha Essa circunstacircncia seraacute uma qualquer em relaccedilatildeo a eles cansaccedilo por exemplo ou convenccedilatildeoraquo Em outra passagem prossegue laquono Universo da danccedila o repouso natildeo tem lugar a imobilidade eacute coisa imposta e forccedilada estado de passagem e quase violecircncia enquanto os saltos os passos contados as pontas os entrechat ou as rotaccedilotildees vertiginosas satildeo maneiras completamente naturais de ser e fazer Mas no Universo ordinaacuterio e comum os atos satildeo apenas transiccedilotildees e toda a energia que por vezes nele aplicamos soacute eacute empregada para esgotar alguma tarefa sem repeticcedilatildeo e sem regeneraccedilatildeo de si mesma pelo impulso de um corpo sobre-excitado Assim o que eacute provaacutevel em um desses Universos eacute no outro um acaso dos mais rarosraquo (œ2 p 1172)13

œ2 p 17113

œ2 pp 154-155 13

œ2 p 117313

œ2 pp 161-16513

œ2 pp 167-16913

œ2 pp 171-17213

œ2 p 17613

Plato Phaedrus I no 36 trad Harold North Fowler org Jefrey Henderson Harvard University Press Loeb Classical Library Cambridge amp London 2005 247 C-D sect 27 p 47513

Note-se que o conceito de Ideacuteia em Platatildeo natildeo eacute tatildeo determinado No diaacutelogo Parmecircnides por exemplo lecirc-se que os objetos dos quais haacute certamente participaccedilatildeo nas Ideacuteias satildeo os objetos matemaacuteticos e os objetos de valor (o belo o bom o justo etc) quanto aos objetos sensiacuteveis materiais como o homem o fogo a aacutegua etc existe duacutevida se possuem participaccedilatildeo nas Ideacuteias quanto a outros objetos sensiacuteveis materiais desprovidos de valor como o cabelo a lama a sujeira etc estes certamente natildeo possuem participaccedilatildeo nas Ideacuteias (Cf Plato Parmenides trad Harold North Fowler org Jefrey Henderson Harvard University Press Loeb Classical Library Cambridge amp London 2002 130 A-E pp 208-213)13

Cf Plato Phaedrus I no 36 trad Harold North Fowler org Jefrey Henderson Harvard University Press Loeb Classical Library Cambridge amp London 200513

Cf Plato Phaedo I no 36 trad Harold North Fowler org Jefrey Henderson Harvard University Press Loeb Classical Library Cambridge amp London 200513

Cf Lucian Dialog of the dead VII no 431 trad M D Macleod org G P Goold Harvard University Press Loeb Classical Library Cambridge amp London 1992 pp 1-17513

O proacuteprio Valeacutery numa carta a Paul Souday historia como veio a escrever esse diaacutelogo de circunstacircncia laquoEu recebi a comissatildeo de escrever um texto para o aacutelbum Architectures que eacute uma coleccedilatildeo de gravuras e de plantas Esse texto que deveria ser magnificamente impresso in-folio e exatamente ajustado agrave decoraccedilatildeo e agrave paginaccedilatildeo da obra pediram-me para lhe dar um tamanho exato de 115800 palavras 115800 caracteres Eacute verdade que eram caracteres suntuosos Eu aceitei Meu diaacutelogo entatildeo foi muito longo Eu o diminuiacute e depois um pouco mais curto mdash eu o aumentei Acabai por considerar essas exigecircncias muito interessantes Mas eacute possiacutevel que o texto mesmo tenha sofrido um poucoraquo (œ1 p 1401 ou LQ p 147)13

Π 1925-1925 Texte 28 (X 657)13

Π 1921-1922 Texte 11 (VIII 471)13

œ2 p 7913

œ2 p 7913

œ2 p 7913

Plato Phaedrus I no 36 trad Harold North Fowler org Jefrey Henderson Loeb Classical Library Harvard University Press Cambridge amp London 2005 247C-D sect27 pp 474-47513

œ2 pp 80-8113

Sobre a Teoria das Ideacuteias em Paul Valeacutery cf C1rsquo pp 545 622 e 624 cf C2rsquo pp 954 e 136113

Valeacutery refere-se a Steacutephane Mallarmeacute deste o verso citado pertence ao poema Prose (pour des Esseintes) publicado pela primeira vez na La Revue indeacutependante em 1885 (Cf MallarmEacute Steacutephane œuvres complegravetes I Gallimard Bibliothegraveque de la Peacuteiade Paris 1998 pp 28-30)13

œ2 pp 87-8813

laquoO nome de Eupalinos eu o adquiriraquo revela Valeacutery laquoquando procurava o nome de um arquiteto na Encyclopeacutedie Berthelot no artigo ldquoArquiteturardquo Aprendi depois por um trabalho do saacutebio helenista Bidez (de Grand) que Eupalinos mais engenheiro do que arquiteto cavou canais e construiu poucos templos eu o emprestei minhas ideacuteias como o fiz com Soacutecrates e Fedro Ademais eu nunca estive na Greacutecia e quanto ao grego eu sou infelizmente limitado um escolar dos mais mediacuteocres que se apega ao original de Platatildeo e o encontra nas traduccedilotildees terrivelmente longo e por vezes aborrecidoraquo (œ2 p 1402 ou LQ p 215)13

Cf Deleuze Gilles Platatildeo e o Simulacro in Loacutegica dos Sentidos trad Luiz Roberto Salinas Fortes Perspectiva Satildeo Paulo 200013

Π Folio 10813

C1rsquo p 1120 13

C1rsquo p 1120 13

C1rsquo p 112413

Π Folio 10713

Cf Gaegravede Edouard Valeacutery et Nietzsche Gallimard Paris 196213

Nietzsche Friedrich Asiacute habloacute Zaratustra trad Andreacute Sanches Pascual Alianza Editorial Madrid 1996 p 60 13

œ2 pp 91-9213

œ2 pp 91-9213

œ2 p 9413

œ2 pp 96-9713

œ2 p 9913

A filoacutesofa e miacutestica de orientaccedilatildeo marxista Simone Weil que chegou a trocar correspondecircncias com Valeacutery e a assistir alguns de seus cursos (cf Weil Simone Quelques reacutefleacutexions autour de la notion de valeur in œuvres org Florence de Lussy Quarto Gallimard Paris 1999) supostamente muito com o intuito de escrever poesias lega essas memoraacuteveis frases de inspiraccedilatildeo valeacuteryana em uma passagem sobre a miacutestica do trabalho laquoA grandeza do homem eacute sempre recriar sua vida Recriar o que lhe eacute dado Forjar aquilo mesmo que sofre Pelo trabalho ele produz sua proacutepria existecircncia natural Pela ciecircncia recria o universo por meio de siacutembolos Pela arte recria a alianccedila entre seu corpo e sua alma (cf o discurso de Eupalinos) Notar que cada uma dessas trecircs coisas eacute pobre vazia fuacutetil tomada em si mesma e sem relaccedilatildeo com as outras duasraquo (Weil Simone A gravidade e a graccedila trad Paulo Neves Martins Fontes Satildeo Paulo 1993 p 201)13

Um dos aacutepices poeacuteticos do Eupalinos essa oraccedilatildeo que eleva o corpo que o concilia agrave alma relaciona-se mdashdifiacutecil saber se Valeacutery assim a projetou ou se foi obra do acasomdash com uma outra que em grande medida o rebaixa Esta se encontra no Feacutedon de Platatildeo que mais de vinte seacuteculos antes relata os derradeiros momentos da vida de Soacutecrates entre amigos e disciacutepulos antes de beber a cicuta como o momento sugere o diaacutelogo eacute uma reflexatildeo sobre o prazer e a dor sobre as necessidades da existecircncia material sobre como somente os mortos podem contemplar a verdade como somente a alma livre do proacuteprio corpo eacute capaz de contemplaacute-la A passagem aqui referida eacute uma eloquumlente fala do Soacutecrates platocircnico a sintetizar o que ateacute entatildeo foi discutido na sua magniacutefica ambiguumlidade eacutetica na sua argumentaccedilatildeo possui um teor relativamente proacuteximo do discurso deste grande e polecircmico propagandista do Cristianismo o convertido Paulo de Tarso Nela haacute algo de profeacutetico reflete como entatildeo pela filosofia e pela religiatildeo o corpo iraacute ser insistentemente ldquodesvalorizadordquo laquoldquoTalvez haja uma espeacutecie de caminho que nos leve e aos nossos raciociacutenios ao fimraquo discursa Soacutecrates em tom de ldquoconclusatildeo provisoacuteriardquo laquoporque enquanto tivermos um corpo e a esse mal nossa alma esteja mesclada jamais alcanccedilaremos de maneira suficiente o que desejamos E dissemos que o que desejamos eacute a verdade Com efeito satildeo um sem fim de preocupaccedilotildees que nos procura o corpo pela culpa de sua necessaacuteria alimentaccedilatildeo e ademais se nos ataca alguma doenccedila nos impede a caccedila da verdade Enche-nos de amores de desejos de temores de imagens de todas as classes de um montatildeo de nadas e loucuras de tal maneira que como se diz por culpa sua natildeo nos eacute possiacutevel ter um uacutenico pensamento sensato Guerras revoluccedilotildees e lutas ningueacutem as causa senatildeo o corpo e seus desejos pois eacute pela aquisiccedilatildeo de riquezas que nos vemos obrigado pelo corpo porque somos escravos de seus cuidados e daiacute que por todas essas causas natildeo tenhamos tempo para dedicar agrave filosofia E o pior de tudo eacute que se noacutes temos algum tempo livre de seus cuidados e nos dedicamos a refletir sobre algo o corpo inesperadamente se apresenta em todas as partes de nossas investigaccedilotildees e nos alborota nos perturba e nos deixa perplexos de maneira que por sua culpa natildeo podemos contemplar a verdade Ao contraacuterio nos fica verdadeiramente demonstrado que se alguma vez soubermos algo de puro ou absoluto temos de nos desvencilhar dele e contemplar somente com a alma as coisas em si mesmas Entatildeo segundo parece teriacuteamos aquilo que desejamos e que declaramos amantes a sabedoria tatildeo soacute entatildeo uma vez mortos segundo indica o raciociacutenio e natildeo em vida Com efeito se natildeo eacute possiacutevel conhecer nada de uma maneira pura com o corpo uma de dois ou eacute impossiacutevel adquirir o saber ou soacute eacute possiacutevel enquanto estejamos mortos pois eacute entatildeo quando a alma fica soacute consigo mesma separada do corpo e natildeo antes E enquanto estamos em vida mais perto estamos de conhecer segundo parece se em todo o possiacutevel natildeo tenhamos nenhum trato com o corpo salvo aquilo que seja de toda necessidade nem nos contaminarmos de sua natureza mantendo-nos puro de seu contato ateacute que a divindade nos livre dele Dessa maneira purificados e desembaraccedilados da loucura do corpo estaremos como eacute natural entre gente semelhante a noacutes e conheceremos por noacutes mesmos tudo o que eacute puro e isto talvez seja o verdadeiro Pois ao que natildeo eacute puro eacute de temer que esteja vedado o alcanccedilar o purordquoraquo (PlatO Phaedo I no 36 trad Harold North Fowler org Jefrey Henderson Harvard University Press Loeb Classical Library Cambridge amp London 2005 66B-67A sect11 pp 229-231)13

œ2 pp 98-10013

Natildeo agrave toa Valeacutery leitor de Santo Tomaacutes de Aquino jaacute ter conjeturado de modo um tanto irocircnico e esdruacutexulo a morte como um verdadeiro desastre para o pensamento na mediada em que amiuacutede o fim uacuteltimo deste eacute na pragmaacutetica postura do poeta a proacutepria accedilatildeo o proacuteprio fazer e eacute Leonardo que se torna novamente o paradigma de um singular amante do corpo laquoa morte interpretada como um desastre para a almaraquo exclama um espirituoso Valeacutery laquoA morte do corpo diminuiccedilatildeo dessa coisa divina A morte atingindo a alma ateacute agraves laacutegrimas e em sua obra mais cara pela destruiccedilatildeo de uma tal arquitetura que ele havia feito para nela habitar [] A Igreja mdash na medida em que a Igreja eacute tomista mdash natildeo confere agrave alma separada uma existecircncia muito invejaacutevel Nada mais pobre do que a alma que perdeu seu corpo Quase natildeo tem outra coisa que o ser mesmo eacute um miacutenimo loacutegico uma espeacutecie de vida latente na qual ela eacute inconcebiacutevel para noacutes e certamente para si mesma Ela se despojou de tudo poder querer saber talvez Nem mesmo sei se pode lembrar-se de ter sido no tempo ou em alguma parte a forma e o ato de seu corpo Resta-lhe a honra de sua autonomia Uma condiccedilatildeo tatildeo vatilde e tatildeo insiacutepida felizmente eacute passageira mdash se eacute que esta palavra fora do tempo tem algum sentido a razatildeo pede e o dogma impotildee a restituiccedilatildeo da carne [] De qualquer modo a alma desencarnada deve segundo a teologia reencontrar num determinado corpo uma determinada vida funcional e mediante esse corpo novo uma espeacutecie de mateacuteria que permita suas operaccedilotildees e encha de maravilhas incorruptiacuteveis as suas vazias categorias intelectuaisraquo (Cf œ1 pp 1213-1215)13

Π 1921-1922 Texte 2 (VII 312-314)13

Essa construtiva criacutetica insinua-se no iniacutecio do Feacutedon de Platatildeo Questionado sobre o porquecirc ter versificado as faacutebulas de Esopo e um hino a Apolo Soacutecrates responde que em recorrentes sonhos disseram-no que ele deveria praticar muacutesica isto eacute poesia ele aceita o encargo e conclui que o que ateacute entatildeo havia praticado a filosofia natildeo deixa de ser a muacutesica mais excelsa Essa decisatildeo entretanto veio muito proacutexima a sua condenaccedilatildeo por ter corrompido os jovens de Atenas o que supotildee-se pouco importava para algueacutem que mdashna versatildeo platocircnicamdash possivelmente acreditava na imortalidade da alma e na doutrina da palingenesia Assim num momento em que tudo convidava agrave fuga e ao desespero a natildeo mais empreender qualquer projeto o filoacutesofo ainda conversa e parece querer deixar a vida do mesmo modo que viveu envolto num estado de imperturbabilidade racional Essa atitude descreve natildeo apenas um espiacuterito que aceita sua proacutepria condiccedilatildeo de condenado mas continua a querer a aprender (Cf Plato Phaedo I no 36 trad Harold North Fowler org Jefrey Henderson Harvard University Press Loeb Classical Library Cambridge amp London 2005 60D-61B sect4 pp 210-213)13

œ2 p 9113

œ2 pp 142-14313

œ1 p 1401 ou LQ p 14613

Cf Giford Paul Paul Valeacutery - Le dialogue des choses divines Corti Paris 1989 cf Giford Paul amp STIMPSON Brian (orgs) Paul Valeacutery - Musique Mystique Matheacutematique Presses Universitaires de Lille Lille 199313

Π folio 8013

Π folio 313

Π folio 13213

Π 1938-1939 Texte 57 (XXII 635)13

Π folio 49 recto13

Π 1921-1922 Texte 2 (VII 312-314) passage p 31313

Π 1921-1922 Texte 14 (VIII 569)13

Π 1921-1922 Texte 5 (VIII 390)13

Π folio 5213

Π folio 5413

Π folio 8413

Π 1921-1922 Texte 2 (VII 312-314) passage p 31313

Π folio 8113

Π 1921-1922 Texte 17 (VIII 701)13

Π folio 143 ou Π 1935-1936 Texte 47 (XVIII 850)13

Π 1921-1922 Texte 2 (VII 312-314)13

Π 1921-1922 Texte 3 (VIII 355)13

Π folio 4713

Π folio 5213

Π folio 7613

Π folio 8813

Π folio 13413

Π 1940-1941 Texte 67 (XXIV 859)13

œ1 p 147113

13

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