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ANPUH – XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Fortaleza, 2009. Padres e Fazendeiros no Piauí Colonial – Século XVIII Ana Stela de Negreiros Oliveira Nívia Paula Dias de Assis •• RESUMO Este trabalho tem como objetivo discutir a atuação dos Jesuítas na Capitania do Piauí durante o século XVIII e ainda avançar tal temática numa proposta interdisciplinar entre História e Arqueologia. Apesar da atuação da Companhia de Jesus no Brasil ser um tema ainda pouco estudado, especialmente quando se trata das práticas econômicas, no Piauí é marcante a atuação de tais religiosos como fazendeiros. Durante mais de 40 anos os padres administraram fazendas de gado, sítios e utilizaram o trabalho de escravos negros e indígenas. Em 1759, o governo português decretou a expulsão da Companhia de Jesus de todo o Império português e as fazendas passaram para a Real administração. Entretanto, sobre o período de ocupação jesuítica em tal Capitania, são evidenciadas múltiplas relações que envolveram a Companhia de Jesus, grupos indígenas, diferentes interesses latifundiários e autoridades coloniais. Palavras- chave: Companhia de Jesus, Piauí Colonial, Sítio Arqueológico Brejo de São João ABSTRACT This paper aims to discuss the works of the Jesuits in the Capitania of Piauí during the eighteenth century and advance the relating topic through an interdisciplinary proposal between History and Archeology. Despite de fact that the actions of the Company of Jesus in Brazil are still a little-studied subject - especially regarding to economic practices - at least in Piauí is striking the performance of those clergymen as ranchers. For over 40 years they managed both cattle farms and small holdings using the work of Indians and black slaves. In 1759 the Portuguese government ordered the expulsion of the Society of Jesus from all its Empire and the aforementioned proprieties were confiscated by the Royal administration. Nevertheless - regarding the period of jesuitic occupation of the Capitania - there were multiple relationships involving the Company of Jesus, indigenous groups, different interests of big landowners and colonial authorities. Keywords: Society of Jesus, Piauí Colonial, Archaeological siege Marsh of Saint John Doutora em História do Brasil IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - Escritório Técnico I – São Raimundo Nonato-PI Mestranda em História e Espaço Universidade Federal do Rio Grande do Norte 1

Padres e Fazendeiros No Piauí Colonial – Século XVIII

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  • ANPUH XXV SIMPSIO NACIONAL DE HISTRIA Fortaleza, 2009.

    Padres e Fazendeiros no Piau Colonial Sculo XVIII

    Ana Stela de Negreiros Oliveira Nvia Paula Dias de Assis

    RESUMO

    Este trabalho tem como objetivo discutir a atuao dos Jesutas na Capitania do Piau durante o sculo XVIII e ainda avanar tal temtica numa proposta interdisciplinar entre Histria e Arqueologia. Apesar da atuao da Companhia de Jesus no Brasil ser um tema ainda pouco estudado, especialmente quando se trata das prticas econmicas, no Piau marcante a atuao de tais religiosos como fazendeiros. Durante mais de 40 anos os padres administraram fazendas de gado, stios e utilizaram o trabalho de escravos negros e indgenas. Em 1759, o governo portugus decretou a expulso da Companhia de Jesus de todo o Imprio portugus e as fazendas passaram para a Real administrao. Entretanto, sobre o perodo de ocupao jesutica em tal Capitania, so evidenciadas mltiplas relaes que envolveram a Companhia de Jesus, grupos indgenas, diferentes interesses latifundirios e autoridades coloniais. Palavras- chave: Companhia de Jesus, Piau Colonial, Stio Arqueolgico Brejo de So Joo

    ABSTRACT

    This paper aims to discuss the works of the Jesuits in the Capitania of Piau during the eighteenth century and advance the relating topic through an interdisciplinary proposal between History and Archeology. Despite de fact that the actions of the Company of Jesus in Brazil are still a little-studied subject - especially regarding to economic practices - at least in Piau is striking the performance of those clergymen as ranchers. For over 40 years they managed both cattle farms and small holdings using the work of Indians and black slaves. In 1759 the Portuguese government ordered the expulsion of the Society of Jesus from all its Empire and the aforementioned proprieties were confiscated by the Royal administration. Nevertheless - regarding the period of jesuitic occupation of the Capitania - there were multiple relationships involving the Company of Jesus, indigenous groups, different interests of big landowners and colonial authorities. Keywords: Society of Jesus, Piau Colonial, Archaeological siege Marsh of Saint John

    Doutora em Histria do Brasil IPHAN Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional - Escritrio Tcnico I So Raimundo

    Nonato-PI Mestranda em Histria e Espao Universidade Federal do Rio Grande do Norte

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    INTRODUO

    A regio do atual Estado do Piau foi, durante muito tempo, considerada pelo

    colonizador como terra de ningum, mesmo sendo imensamente povoada de povos indgenas.

    Antes da instalao da Capitania do Piau, toda a regio situada a oeste do rio So

    Francisco era conhecida por Serto de Dentro ou Serto de Rodelas. Pertenceu a

    diferentes capitanias em perodos diversos: inicialmente a administrao estava a cargo de

    Pernambuco, sendo que deveria ser desmembrada em 1695, mas, de fato, isso no ocorreu;

    somente a partir de 1715 esteve sob a jurisdio da Capitania do Gro-Par e Maranho. A

    jurisdio eclesistica esteve dependente da Bahia. Em 1718, foi criada a Capitania de So

    Jos do Piau, mas instalada somente em 1758 (COSTA, 1974, p. 54).

    Aps a morte de Domingos Afonso Mafrense, um dos maiores sesmeiros do Piau, em

    1711, sem herdeiros, deu-se a conhecer que ele havia institudo em testamento todas as terras,

    cerca de 30 fazendas e gados que possua, para serem administradas pelo reitor do Colgio da

    Bahia.

    Nomeio e instituo por meus testamenteiros, em primeiro lugar, o Rv. Padre Reitor da Companhia de Jesus desta cidade da Bahia, que ao presente for, e adiante lhe for sucedendo, e no aceitando este, nomeio ao licenciado Francisco Ximenes, e em terceiro lugar a Antonio da Silva Livreiro, meu vizinho, e em quarto ao capito Belchior Moreira, aos quais e cada um in solidum dou todo o meu poder, que em direito posso [...] Declaro que sou senhor e possuidor da metade das terras, que pedi no Piau, com o coronel Francisco Dias de vila e seus irmos, as quais terras descobri e povoei com grande risco de minha pessoa, e considervel despesa, com adjutrio dos scios, e sem eles, defendi tambm muitos pleitos, que se moveram sobre as ditas terras, ou parte delas: e havendo dvidas entre mim, e Leonor Pereira Marinho, viva do dito coronel, sobre a diviso das ditas terras, fizemos uma escritura de transao no cartrio de Henrique Valensuella da Silva, na qual declaramos os stios com que cada um havamos de ficar, assim dos que tnhamos ocupado com gados, como arrendados a vrias pessoas, acordando e assentando juntamente a forma com que havamos de ir ocupando as mais terras por ns ou pelos rendeiros que metssemos, como mais largamente se ver da dita escritura. Declaro que nas ditas terras, contedas nas ditas sesmarias, tenho ocupado muitos stios com gados meus, assim vacum como cavalar, e todos fornecidos com escravos e cavalos, e o mais necessrio: o que tudo constar dos meus papeis, fbricas, com a quantidade dos gados pelas entregas de cada uma das fazendas, e assim mais muitos stios dados de arrendamento a vrias pessoas; e outros muitos esto ainda por povoar e desocupados, que tambm se podero ir dando de arrendamento, ou ocupando com gados meus, como melhor parecer a meu sucessor (SERTO, 1867).

    De acordo com Serafim Leite (1945, p. 551), Domingos Afonso Mafrense, cujas

    incurses pelo interior do Brasil lhe renderam a alcunha Serto, foi o descobridor e

    povoador da regio centro-sul do Piau. Perseguiu e dominou vrios povos indgenas, entre

    eles, os Guegu, desde o So Francisco at o Piau, na entrada que participou com Francisco

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    Dias D vila, da Casa da Torre, j tendo como objetivo a conquista do territrio para o

    estabelecimento das fazendas de gado.

    Dentre os que entraram na regio pelo serto baiano, foi Domingos Afonso Mafrense

    quem deixou a obra colonizadora mais durvel.

    Domingos Afonso Mafrense entrou pelas cabeceiras do rio Piau em 1674. A partir de

    1676, ocorreram as concesses das primeiras sesmarias de terras no Piau, que beneficiaram

    Domingos Afonso Mafrense, Julio Afonso Serra, Francisco Dias de vila e Bernardo Pereira

    Gago. Essas terras foram doadas pelo governador de Pernambuco, Dom Pedro de Almeida.

    Eram 10 lguas de terras para cada um, nas margens do Gurguia (NUNES, 1975, p. 72).

    Posteriormente, Mafrense recebeu sesmarias nas margens do rio Parnaba, em Parnagu

    (1681), no Gurguia e Paraim (1684) e, novamente, s margens do Parnaba (1686). Tendo

    incio a expanso das fazendas de gado na regio.

    PADRES FAZENDEIROS

    As fazendas constituam o principal mvel de ocupao do espao piauiense, sendo

    que, desde 1697, vinte anos depois dos primeiros sertanistas terem penetrado no interior do

    Piau, havia sido constatada a existncia de 129 fazendas de gado e 153 stios s margens dos

    rios e lagoas, com uma sociedade, de certa forma, organizada (CARVALHO apud ENNES,

    1938).

    Os jesutas, logo no mesmo ano da morte de Domingos Afonso Mafrense, tomaram

    posse das fazendas sendo o primeiro administrador o padre Manuel da Costa. O reitor do Real

    Colgio da Bahia era o jesuta italiano Joo Antnio Andreoni.1 Quando o jesuta padre

    Manuel da Costa chegou ao Piau, para tomar posse das fazendas, o patrimnio j estava

    sendo distribudo entre os filhos naturais de Domingos Afonso Mafrense, destacando-se

    Agostinho e Vidal Afonso Serto, personagens que foram citados, em 1769, como

    proprietrios de fazendas no Sudeste do Piau.2 Sendo que o processo do inventrio durou

    cinco anos (MELO, 1991).

    1 O jesuta chegou ao Brasil em 1681 e exerceu diversos cargos na instituio, desde diretor de estudos e

    secretrio particular do padre Vieira, quando este ocupou o cargo de visitador geral a reitor do Colgio da Bahia. Mas ficou conhecido por seu trabalho Cultura e opulncia do Brasil, editado em Lisboa em 1711; ANTONIL, Andr Joo. Cultura e opulncia do Brasil. 3. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1982.

    2 Agostinho e Vidal Afonso Serto foram ouvidos como testemunhas na devassa realizada contra Jos Leite. Ver AUTO da devassa que mandou fazer o juiz Ordinrio da Cidade de Oeiras, o tenente de Cavalaria Luiz Pereira Magalhes, sobre o gentio silvestre convezinho da ribeira do Piau que matou e mutilou Faustino Ferreira, e insultou os mais moradores da dita, datada de 20 de julho de 1770. Capitania do Piau, Projeto Resgate, Arquivo Ultramarino. Doc. 643, CD-ROM.

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    No Piau, os religiosos da Companhia de Jesus tiveram como primeira residncia

    permanente a Fazenda Torre e posteriormente ficaram divididos entre as outras trs sedes;

    Brejo de Santo Incio, nas margens do rio Canind; Brejo de So Joo, na regio do rio Piau

    e em Nazar, regio do rio Parnaba, onde construram capelas e casas de morada.

    Na Capitania do Piau, os padres demonstraram habilidades para administrar o

    patrimnio herdado de Mafrense. Compraram outras fazendas e exerceram grande influncia

    naquela rea; aproveitando-se do trabalho de escravos, entre negros e ndios domesticados. As

    fazendas Guaribas e Matos foram compradas em 1754, Salinas e Cachoeira em 1759 e

    fazenda Pobre comprada viva de Domingos Jorge. J as fazendas Itaueira e So Romo,

    foram arrematadas em execuo que os jesutas moveram contra Domingos Jorge. A fazenda

    gua Verde foi uma doao de Marinho Soares (MELO, 1991).

    Em 1739, trabalhavam nessas fazendas aproximadamente 164 pessoas e, em 1743,

    registraram-se 170 trabalhadores, transformando assim o patrimnio que serviu para sustentar

    o Colgio da Bahia e o Noviciado de Jiquitaia, importantes instituies culturais do perodo

    colonial, situadas na Bahia (NUNES, 1991).

    A mais importante das fazendas dos jesutas veio a ser a Vila da Mocha, primeira

    capital do Piau, hoje cidade de Oeiras. De acordo com o testamento de Domingos Afonso

    Mafrense, as fazendas foram doadas na condio de no serem alienadas, devendo se

    construir no local uma capela ou morgado, e sua renda ser aplicada para ajudar donzelas,

    vivas e pobres; com o que sobrasse, seriam adquiridas novas fazendas (SERTO, 1867).

    Sabemos pouco sobre as aes jesuticas no Piau vinculadas catequese e educao,

    sendo que em 1749, os jesutas do Colgio do Maranho fundaram, no Piau, o Seminrio do

    Rio Parnaba, localizado em Oeiras, tendo como regente o padre Francisco Ribeiro. O

    estabelecimento, sob a invocao de Santa rsula, no era um colgio propriamente dito, mas

    Seminrio. poca, a Coroa subsidiava o sustento dos mestres, sendo que os pais dos alunos

    que vinham de diversas regies do serto auxiliavam tambm com uma penso para o

    sustento dos filhos (NUNES, 1975, p. 144). Foi o primeiro estabelecimento de ensino

    secundrio, com ensino de gramtica e humanidades. No entanto, a atuao dos jesutas no

    Piau est mais relacionada administrao das fazendas de gado do que s misses e

    catequese.

    Antes de 1711, as atividades dos padres, estavam relacionadas ao trabalho em misses

    espordicas, ou apenas de passagem pela regio atravessando do Maranho para o Cear. Na

    regio da serra da Ibiapaba, divisa do Piau e Cear, instalaram a Misso de So Francisco

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    Xavier, com os Tabajara, e de acordo com Padre Carvalho, aldearam tambm os Long e os

    Poti, durante os sculos XVII e XVIII (CARVALHO apud ENNES, 1938).

    Sobre a fundao de outras misses pelos padres da Companhia de Jesus no Piau, os

    estudos ainda so escassos, mas podemos apontar a atuao de padres do Colgio do

    Maranho, caso de Gabriel Malagrida, que percorreu diversas fazendas na capitania e em

    1725, aldeou os Aroazes s margens do rio Sambito (MELO, 1991).

    Em 1758, o poder temporal dos jesutas foi suprimido em todo o Brasil, e, em 1759, o

    governo portugus decretou a expulso da Companhia de Jesus de todo o Imprio portugus.

    O perodo pombalino (MAXWELL, 1996)3 foi marcado por mudanas executadas

    pela Coroa portuguesa no intuito de organizar a administrao colonial, garantir as fronteiras

    e aproveitar as riquezas, promovendo a agricultura e o comrcio, com a criao das

    companhias de comrcio. No Piau, essas medidas buscaram garantir a posse das terras e o

    desenvolvimento da capitania.

    Em 1760, os jesutas do Piau foram presos e remetidos para a Bahia; dentre eles,

    padres Joo de Sampaio, Manuel Cardoso e Jos Figueiredo; o leigo Jacinto Fernandes e

    Donato Antnio Ferreira, que residiam na capela instituda por Domingos Afonso Mafrense.

    Encontravam-se mais dois em Parnagu, os quais foram presos e remetidos para a cidade de

    So Lus (NUNES, 1991). Na relao dos bens que foram seqestrados dos jesutas, assinada

    pelo governador Joo Pereira Caldas, constavam 31 fazendas de gado vacum e cavalar, trs

    residncias com suas roas e 49 stios arrendados a particulares.

    V-se que o Piau era uma rea de interesse para a poltica pombalina, na luta contra

    os jesutas; por conseguinte, era importante a integrao da regio ao processo colonial.

    Aps a expulso dos jesutas, as fazendas passaram para a Real administrao, sendo

    denominadas Fazendas do Fisco ou Fazendas Reais e aps a proclamao da Independncia,

    tornaram-se patrimnio do governo imperial. Quando incorporadas ao patrimnio da Coroa

    Portuguesa, em 1759, foram redivididas em trs inspees: Canind, Nazar e Piau. Tendo

    cada uma sua sede, chamada residncia, onde morava o administrador responsvel por aquela

    inspeo, o qual era enviado de Portugal e pago pelo errio real. Para cada fazenda, foi

    nomeado tambm um criador (LIMA, 2005).

    A inspeo de Canind situava-se ao longo do rio Canind, sendo composta pelas

    seguintes fazendas: Ilha, Pobre, Baixa dos Veados, Stio, Tranqueira, Poes, Saco, Saquinho,

    Castelo, Buriti, Campo Largo e Campo Grande. 3 Sebastio Jos de Carvalho e Melo, o marqus de Pombal, foi ministro de Dom Jos I entre 1750 e 1777.

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    A inspeo de Nazar estava situada ao longo do rio Parnaba e era composta pelas

    seguintes fazendas: Tranqueira de Baixo, Gameleira, Guaribas, Matos, Lagoa de So Joo,

    Olho dgua, Mocambo, Serrinha, Jenipapo, Algodes e Catarens. Por sua vez, a inspeo

    Piau estava localizada s margens do rio Piau; era constituda pelas fazendas Salinas,

    Brejinho, Grande, Boqueiro, Gameleira, Cach, Serra, Cachoeira, Espinhos e Julio (LIMA,

    2005, p. 24-25).

    Aps a expulso dos religiosos e com a sada das fazendas da administrao da

    Companhia de Jesus a situao tornou-se muito complicada, o que se constata em inmeros

    documentos do Arquivo Pblico do Piau, que relatam situaes de desordens, disputas de

    terras, administrao ruim e queixas dos moradores.

    Ficou evidente a desorganizao da administrao do patrimnio. Ocorreram

    denncias de que nas fazendas situadas na regio do rio Piau, a mata estava sendo destruda e

    o gado diminuindo. Vrios documentos relacionam tambm denncias de violncia nas

    fazendas durante este perodo. So relatos de assassinatos, disputas de terras, raptos de

    mulheres. Muitas dessas denncias envolviam o feitor Luiz Antonio Ribeiro, administrador de

    fazendas do Fisco - Residncia do Piau entre 1773 a 1776. Ele era acusado de maltratar os

    escravos, violentar mulheres, como tambm de criar problemas em relao administrao

    das mencionadas fazendas, como, por exemplo, a no diviso do gado com outros

    administradores.4 Estas ocorrncias culminaram com fugas de alguns escravos, em 1773,

    sendo que quatro deles foram ao governador Gonalo Loureno Botelho reclamar dos maus-

    tratos recebidos nas fazendas do Fisco administradas por Luiz Antonio Ribeiro.5

    Por outro lado, observa-se, nesse contexto, o cotidiano em mudana, isto , o total

    estilhaamento e desorganizao da capitania do Piau, com a expulso dos jesutas,

    passando-se a utilizar mais a fora. Destaque-se que os prprios administradores dos

    aldeamentos reclamavam tambm da falta de sacerdotes nas misses e de que os ndios se

    encontravam em runa espiritual, assim como era excessivo o nmero dos que fugiam das

    aldeias e vagavam pela capitania.6

    Para Odilon Nunes, a administrao das fazendas de Domingos Afonso Mafrense

    pelos jesutas constituiu-se fundamental para a coeso do territrio, transformando-o em um

    4 CARTA de Antonio Jos de Morais Duro, Joo do Rego Castelo Branco e Jos Esteves Falco ao juiz

    ordinrio da cidade de Oeiras Antonio Teixeira de Novais, datada de 8 de abril de 1776. CAB: Arquivo Pblico do Piau-Casa Ansio Brito, p. 138v-141, cdice 150.

    5 OFCIO de Gonalo Loureno Botelho de Castro ao juiz ordinrio de Jerumenha, datado de 26 de agosto de 1773. CAB, p. 50v-51, cdice 150.

    6 CARTA de Antonio Jos de Morais Duro, Joo do Rego Castelo Branco e Jos Esteves Falco ao Vigrio Geral desta cidade, datada de 21 de maro de 1776. CAB, p. 136v, cdice 150.

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    todo homogneo; o que impediu a disperso por pequenos donos, tendo em vista que isso

    poderia facilitar a atrao de aventureiros de regies ou Estados vizinhos. Esse fato tornou-se

    importante para o processo de criao da capitania, da provncia e depois do estado do Piau

    (NUNES, 1975.).

    Pudemos concluir que a partir da segunda metade do sculo XVIII, aps a expulso

    dos jesutas, ocorreu tambm a expanso da rea ocupada pelas fazendas de gado, tendo incio

    os conflitos com os ltimos povos indgenas em guerra com o colonizador na Capitania do

    Piau, caso da etnia Pimenteira. Durante essa fase, ocorreu o abandono de diversas fazendas

    pelos moradores locais e, depois, o despovoamento da regio, com a disperso dos povos

    indgenas para que ocorresse um repovoamento colonial e a construo geogrfico-social

    daquela rea. Esta fase se prolonga at o incio do sculo XIX, com o controle da regio pelos

    colonizadores e a total disperso dos povos indgenas. A permanncia de grupos indgenas no

    Piau at o sculo XIX parece estar ligada presena dos jesutas na regio.

    No Piau, os padres da Companhia de Jesus se relacionavam com a estrutura

    econmica do perodo colonial. Vendiam e compravam gado, arrendavam stios e vendiam e

    compravam outras fazendas.

    Mltiplas relaes envolveram Companhia de Jesus, grupos indgenas, diferentes

    interesses latifundirios e autoridades coloniais. Portanto, os padres, atuaram dentro do

    modelo econmico implantado no Brasil colonial, s que com privilgios, sendo que na

    maioria das vezes com iseno de taxas e impostos (ASSUNO, 2004, p. 25).

    STIO ARQUEOLGICO BREJO DE SO JOO

    Acreditamos que a Arqueologia pode ajudar na compreenso da atuao da

    Companhia de Jesus no Piau. Atravs dos vestgios arqueolgicos, facultou trabalhar-se a

    possvel relao entre a Histria e a Arqueologia, principalmente quando as fontes histricas

    no do conta do processo.

    O silncio existente provocado pela dificuldade de acesso documentao que se

    encontra espalhada por diversos arquivos no Brasil e na Europa.

    Em recente pesquisa realizada pelo IPHAN, foi possvel identificar runas das antigas

    sedes de Canind e Piau. As runas da sede da inspeo das fazendas das margens do rio

    Piau esto localizadas no assentamento Brejo de So Joo em Paje do Piau e as de Canind

    na cidade de Santo Incio-PI. Ainda no foi possvel identificar a localizao da fazenda sede

    de Nazar.

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    Na misso organizada pelo IPHAN em dezembro de 2007, foram realizados trabalhos

    de prospeco, coleta de superfcie e levantamento fotogrfico das runas de Brejo de So

    Joo.

    A datao mais antiga para este stio ficou por conta de uma pedra (lajota) com a

    gravao escrita do ano de 1738. Se considerado o perodo histrico em que os jesutas

    possuram fazendas no Piau, bem como os relatos sobre o momento em que os mestres de

    obra da Companhia de Jesus estiveram erguendo as residncias e capelas das trs principais

    edificaes da ordem na ento Capitania (1735 a 1745), os dados apresentam-se coincidentes.

    Quanto s tcnicas construtivas utilizadas pelos mesmos, como o uso predominante da

    pedra na construo de paredes e cercas para delimitar territrio, ou ainda a preferncia por

    plantas quadrangulares; elas tambm esto presentes no stio.

    Deste modo, h indcios de que se trata de uma construo realizada por jesutas, a

    datao, os materiais construtivos e o tipo de ambiente ocupado pelos missionrios na

    Capitania do Piau contribuem para tais afirmaes.

    Quanto questo da funcionalidade que teria tido tal runa, ainda no foi possvel um

    detalhamento no que diz respeito utilizao exclusiva para fins religiosos ou se a habitao

    dos padres estava acoplada, visto que os dados histricos as descreve como construes

    integradas na Capitania do Piau.

    De modo geral, a ausncia de registros sobre monastrios no Piau, residncias

    especficas para padres, durante este perodo; bem como a descrio da residncia e capela

    acopladas, em Brejo de Santo Incio, leva a crer que tambm em Brejo de So Joo tais

    conjugaes fossem possveis.

    Sobre a posse de certos utenslios, ainda que de forma limitada, algumas fazendas laicas

    piauienses, tidas como prsperas, usufruram de certos objetos, tais como a Serra Negra,

    Abelheiras ou So Domingos, que tiveram relatadas suas bacias esmaltadas, canecas de prata

    e at mesmo mveis como camas de mola e ferro, e cadeiras estrangeiras.

    Considerando-se tambm a prosperidade econmica das fazendas jesuticas, bem como

    o significativo grau de instruo e refinamento que provavelmente possuam tais missionrios,

    oriundos de uma das mais importantes instituies educacionais do Brasil (Colgio de

    Salvador), possvel que grande variedade de vestgios referentes aos mesmos ainda sejam

    identificados aps a escavao do stio estudado.

    Na prospeco arqueolgica realizada foi encontrada grande quantidade de material

    arqueolgico, tais como vestgios cermicos, material ltico, ferro, blocos decorados e

    fragmentos de loua.

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    Logo, acrescentadas aos dados historiogrficos, as informaes arqueolgicas sobre as

    runas do stio Brejo de So Joo ajudam a caracterizar o espao da Capitania do Piau, no

    perodo correspondente a ocupao dos padres jesutas.

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