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J A C Q U E S LACARRIERE DO DESERTO HOMENS EMBRIAGADOS DE DEUS Eàltóes Loyola

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J A C Q U E S L A C A R R I E R E

DO DESERTO HOMENS EMBRIAGADOS DE DEUS

Eàltóes Loyola

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Título original:

Les hommes ivres de Dieu

© Librairie Arthème Fayard, 1975.

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Postal 42.335 04218-970 São

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ISBN: 85-15-01278-2

2a edição: agosto de 2002

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© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 1996

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PADRES DO DESERTO

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PREFÁCIO ......................................................................................................... 13

INTRODUÇÃO ................................................................................................. LZ

Primeira parte O FIM DE

UM MUNDO

1— O FIM DOS TEMPOS ..................................................................... 23 Crença no fim iminente do mundo no tempo de Jesus e nos três

séculos seguintes: são Paulo, santo Hipólito de Roma, Basílio de Ancira,

Tertuliano, são Cipriano.

Suas conseqúèncias: a ruptura com o mundo. Santo do deserto e

bom selvagem. Relações entre o anacoretismo e a ascese. A partida para

o deserto.

2 — A GRANDE TRANSIÇÃO ............................................................ 33

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Os textos sobre a vida no deserto. A ocupação grega e romana no

Egito. Dois mundos estranhos um para o outro. O exotismo egípcio em

Roma. Primeiros assaltos contra o paganismo. A "morte" do deus egípcio

Serápis.

A cristianização do Egito. Sincretismo dos meios citadinos helenizados.

O meio rural. A aventura copta. Tornar-se cristão permanecendo egípcio.

Panorama da heresia monofisita. As perseguições. O fim de um mundo.

Partida de Antão para o deserto.

Segunda parte OS HOMENS ÉBRIOS DE DEUS

3 — A ESTRELA DO DESERTO ........................................................... 51

Santo Antão existiu? A Vida de Antão e a tradição aretológica. Onde

começa e onde termina a história? O Chamado: Antão se instala junto de um

ancião.

A experiência das trevas. Permanência de Antão num túmulo. Suas

primeiras tentações. O bestiário fantástico do Egito antigo. Crenças

funerárias e Livro do Am-Duat.

A experiência da luz. Antão parte para a montanha de Colzum. Seus

vinte anos de solidão. Seus primeiros ensinamentos e seus primeiros

discípulos.

Últimos anos de Antão. Suas visões edênicas. Sua

morte.

4 — A PRADARIA DOS SANTOS ....................................................... 71

Um santo entre os anjos: Paulo de Tebas. A Vida de Paulo de Tebas por são

Jerônimo. O problema de sua historicidade. Vida de Paulo de Tebas no

deserto. Sua gruta, o pão de Deus, seu encontro com Antão, sua morte

milagrosa.

Um santo entre os homens: Pacômio. As Vidas coptas de Pacômio. Sua

vocação. Sua ascese perto de Khenobóskion com o apa Palamão.

ÍNDICE

Seu encontro com o anjo. Primeiros discípulos e primeiras tentações.

Fundação do primeiro mosteiro em Tabenesi. A regra do anjo e os mosteiros

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pacomianos. Sua organização. Sua disciplina. Técnicas de asceses coletivas.

A língua do anjo. Morte de Pacômio.

5 — OS ATLETAS DO EXÍLIO (I) ........................................................ 93

O Império romano se torna cristão. Reconhecimento do cristianismo

pelo imperador Constantino. Suas conseqüências sobre o destino do

cristianismo. A Igreja dos militantes e a recusa do temporal. Vida econômica

do Egito do século IV. Prestígio dos primeiros eremitas. Uma nova Terra

Santa. Os primeiros peregrinos do Egito cristão: Paládio, Rufino, Cassiano.

Nos desertos do Alto Egito. Mosteiros e anacoretas. A curiosa viagem

de um monge no deserto.

A Tebaida. Port-Royal e a redescoberta do deserto. As traduções de

Arnauld d'Andilly. Mosteiros e eremitas da verdadeira Tebaida. Os

discípulos de Antão: Paulo o Simples e são Sisoés.

Ao encontro de anacoretas estranhos. Precauções indispensáveis da

parte do leitor: não confiar nas aparências. Vida de João do Egito, o recluso.

Santo Apoio e seus milagres. Pafnúcio e seu anjo. A conversão de Tais. Um

mito de antes da Graça.

6 — OS ATLETAS DO EXÍLIO (II) ..................................................... 119

Os desertos do Wadi-an-Natrun. Suas paisagens fantásticas. Os perigos

que ali se corre.

Homens em tocas de hienas. O deserto da Nítria e o deserto das Celas.

Macário o Jovem. Sua vida e suas asceses incríveis. Macário e o mosquito.

Seus discípulos. O pão e a alma.

Os homens mais humildes do mundo. Macário o Antigo e o deserto de

Skete. Suas visões. Macário e o

9

querubim. Macário e o cadáver. O ensinamento e os discípulos de Macário o

Antigo: Moisés e os ladrões, Bessarião, Poimém e a estátua. João o Pequeno e

a vara milagrosa. Arsênio, o preceptor.

7 — O FIM DOS ÍDOLOS ....................................................................... 141

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Proibição oficial de praticar os cultos pagãos. Controvérsia entre

pagãos e cristãos. As violências dos cristãos: pilhagens, incêndios dos

templos, execuções dos sacerdotes. Motins em Alexandria. A última

mensagem do pensamento pagão.

Vida e vocação de Canúcio de Atripé. Seus mosteiros. Suas regras

implacáveis. Sua divisa: forçar os homens a amar a Deus. O porrete e a

salvação da alma. Expedições de Canúcio contra os templos e os sacerdotes

pagãos. Fim do paganismo no Egito.

8 — FICAR MAIS PERTO DO CÉU ..................................................... 159

A Palestina e a Síria cristãs. Autores e viajantes cristãos: Teodoreto de

Ciro, João Mosco.

Na Palestina. Santo Hilarião, primeiro eremita palestino. Sua vida

singular. O Sinai e seus anacoretas errantes. Eremitérios do mar Morto. Santa

Maria Egipcíaca e sua estranha história. Uma prostituta arrependida. Os

contos cristãos do deserto.

A Síria cristã. Breve história do cristianismo siríaco.

Os reclusos. Viver no interior das árvores e das grutas. Santo

Acépsimo, são Talelo e sua jaula, são Marão e sua árvore de espinhos.

Pastadores e estacionários. O testemunho de santo Efrém. Natureza

dessas estranhas asceses. Fechar os olhos para o mundo. As lágrimas de

santa Domnina.

Esítítííis e dendiitas. Natureza e origem possível do estilitismo. As Vidas

de são Simeão o Antigo. Sua vocação. Sua temporada num poço. As

correntes. Sua primeira coluna. Suas asceses e seus milagres. Morte de são

Simeão. Fascínio dos visitantes. Outros cstilitas célebres. Os dendritas. Estar

ébrio de céu e de Deus.

Terceira parte MORRER PARA O

MUNDO

9 — 0 ROSTO DE SATÀ ..................................................................... 195

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As tentações, formas agressivas do mundo demitido. As Tenía^ões na

pintura. A obra de Hieronymus Bosch. As ilusões do deserto.

Anjos carrascos. O inferno copta. Nova conversa de Macário com um

crânio.

Os rostos de Satã. Diferentes aspectos do demônio. Origem do Diabo

e de Satã. Papel do Egito no nascimento do Diabo. O Diabo-monstro e o

Diabo-sedutor.

A voz das eras. Aparência monstruosa do Diabo no deserto. A parte

tenebrosa do homem. A Serpente. O Dragão. As vozes do passado.

O Diabo-sedutor. As tentações de são Pacão e de João do Egito. "Uma

mulher vagando neste deserto..." O Diabo como duplo do asceta.

10 — A CARNE DOS ANJOS ................................................................. 215

O paraíso copta.

Operários das chamas. Natureza, aspectos e funções dos anjos. Seu

papel no pensamento e nas visões cristãs dos primeiros séculos. Os anjos no

deserto.

Os anjos e os milagres. Reflexões sobre os milagres do deserto. O

paraíso perdido e o paraíso recuperado. Fraternidade dos ascetas com os

animais. O leão de são Gerásimo. A hiena de Macário. O crocodilo de santo

Heleno. A condição de Adão no paraíso terrestre. Como fulminar um

dragão.

Ser contemporâneo de Cristo. Ressurreição dos mortos. Cura dos

doentes. Conservação dos corpos.

Outros milagres particulares. Os milagres cinéticos: levitaçâo,

transporte a distância, imobilizaçâo a distância. O homem glorificado. O

deserto como prefiguração do paraíso.

11 — PARA ALÉM DA ASCESE .......................................................... 221

O ensinamento do deserto e suas ambigüidades. Santidade e

masoquismo. O silêncio dos grandes anacoretas. Aprender olhando.

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Papel do contexto cultural na gênese de certos "milagres". Que

significa morrer para o mundo? As etapas da ascese e as vias da

contemplação: apatheia, hcsychia. O ensinamento de João Clímaco,

Evágrio Pôntico, Diádoco de Foticéia. "Estar atento a si mesmo."

- Os paradoxos da ascese. Renunciar à própria santidade. Os santos

simuladores. Os santos loucos. História de Simeão Slos. Uma taberna em

Antioquia.

EPÍLOGO ........................................................................................................... 249

Vestígios contemporâneos dos "homens ébrios de Deus". Os

mosteiros coptas do Egito. O castelo de Simeão na Síria. As igrejas

rupestres na Capadócia. Os últimos anacoretas do monte Atos.

FONTES F. TEXTOS .......................................................................................... 251 ^exa c i o

erão os desertos do Oriente Médio deixado de ser hoje em dia o lugar das

experiências soberanas? E, porque se busca neles antes de tudo o ouro

negro que encerram, tem-se deixado de buscar ali a Deus, o sentido do mundo

ou simplesmente uma imagem mais verdadeira de si mesmo? Durante

séculos, sua nudez pareceu rechaçar a história para os confins de suas areias:

ali aparentemente nada se mexia, nada parecia "progredir". Eles eram o lugar

do imutável, de uma virgindade perpétua onde o homem acaba por se

assemelhar aos anjos. Ei-los hoje tornados fontes de vida e morte porque dali

se extrai a energia combustível. Mas talvez assim só façam continuar essa

vocação de fogo que os lançou por todo o tempo na direção das margens

grávidas da história.

Tenho pouca prática do deserto. Alguns dias somente no Baixo Egito, no

Wadi-an-Natrun, há dezoito anos. Aqueles que conhecem esta região e que a

atravessaram em todo o esplendor do fogo solar me compreenderão se eu

T

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disser que ela me pareceu de imediato, estranhamente, um mar de gelo.

Porque este deserto ocidental do Egito não é de areia, mas de sal. Mar mineral

e branco, cuja crosta endurecida é insensível aos ventos e ressoa em alguns

lugares sob os pés como uma abóbada de cristal. Oceano atapetado de

sedimentos fossilizados, de cascas imemoriais, como se as batalhas das águas

e da terra, a alternância dos elementos tivessem encontrado aí o seu campo de

repouso. Num tal mundo, o homem é quase excrescência inútil,

13

presença absurda. E ele só pode viver ali tornando-se também peso morto do tempo,

hibernando-o num perpétuo inverno. Eis por que durante tantos séculos esse lugar

extremo só abrigou fantasmas hirsutos, sombras andrajosas, engodos de seres

humanos que as testemunhas de então designaram os atletas do exílio e que eu

chamei os homens ébrios de Deus.

Este livro foi escrito e publicado há treze anos. Mas ele nasceu bem mais

cedo em meu espírito, gerado por uma visão noturna. Eu estava então no

monte Atos, no mosteiro da Grande Laura, onde jantava, após o ofício da

noite, no grande refeitório cheio de monges e eremitas para a festa anual de

santo Atanásio o Atônita. As paredes eram cobertas de afrescos antigos, cuja

faixa inferior representava, alinhados lado a lado, os grandes santos do

deserto: Antão, Paulo de Tebas, Pacômio, Macário, Onofre, Poimém. Silhuetas

nuas, longos corpos esquálidos vestidos de barbas e de cabelos caindo até os

pés, com grandes olhos negros cavados na ossatura do rosto. À luz das velas,

suas auréolas realçavam a paüdez de seus traços e todos aqueles santos

retomavam vida, repentinamente, distantes e familiares ao mesmo tempo,

como se, dos continentes seculares de seu afresco, eles surgissem da borda

luminosa daquela refeição noturna. Aquela noite, compreendi que eles não

estavam pintados somente para figurar uma experiência insubstituível, para

se ancorar num tempo passado, mas para surgir também a cada instante no

presente dos homens. E naquela noite senti vir a mim todo um povo da

sombra, cuja existência e história eu havia ignorado até então. Quis

conhecê-los, encontrar um a um os habitantes desse mundo desconhecido do

deserto. Li as Vidas dos santos, os relatos e os testemunhos dos que os

conheceram, inventariei dezenas de textos gregos e coptas que, mais tarde, me

levaram ao Egito. E foi lá, no coração do Wadi-an-Natrun, que decidi escrever

um livro para o qual só tinha, por enquanto, o título: Les hommes ivres de Dieu.

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Hoje, não sei muito bem o que pensar deste livro. Ele foi o testemunho de uma

época e de uma vida que me levaram mais freqüentemente ao Oriente que ao

Ocidente. O que então me fascinava continua a me interessar, mas me diz menos

respeito. Nada tenho de asceta e nunca busquei aprofundar melhor aquilo que,

durante anos, me conduziu à procura daqueles homens. Além do mais, sinto-me

totalmente ateu e escrevi a história desses homens sem jamais compar-

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PREFÁCIO

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tilhar sua opção e sua fé. Empreendimento sempre incerto, já que ele recusa a

identificação sem que o recuo implicado seja por isso revelador. Isto explica

por que, ao lado de um grande número de reações entusiastas e muito

elogiosas, este livro tenha sido criticado, vilipendiado em alguns meios

católicos. De minha parte, não me preocupava muito com isso, pois na história

não existe domínio reservado. Se os crentes fossem os únicos habilitados a

falar de sua fé, se só os monges tivessem de escrever sobre o monaquismo, a

história do pensamento não passaria de uma eterna tautologia. Como não

tenho, aliás, nenhuma pretensão de historiador, encontrei-me mais uma vez

rejeitado diante de mim mesmo. Porque este livro não é um tratado de

história, uma hinologia ou uma critica pretensamente objetiva do fenômeno

que ele estuda. Os homens ébnos de Deus é o diário de um encontro inteira-

mente pessoal com uma época e com homens que até hoje não sei se foram

loucos ou se foram santos. E não sei igualmente se eles foram — e ainda são —

para mim os indígenas de um outro mundo ou os irmãos desconhecidos de

um continente que é o meu. Este estudo é também um livro-testemunha,

quero dizer, o relato de um testemunho pessoal, termos contraditórios para um

ocidental, mas que sempre se confundiram estreitamente em todo o domínio

oriental. Testemunha, em grego, se diz martyr, que também significa mártir.

Como, enfim, meu objetivo em todos os meus livros nunca foi redigir

teses de pretensão universitária nem marcar data para a posteridade, mas

simplesmente, organicamente eu diria, comunicar-me com meus

contemporâneos, relatar o que vivi e pensei, para que outros o vivam e o

pensem por si mesmos, reivindico particularmente as insuficiências — até

mesmo as ignorâncias — deste livro: como as tentativas e os erros das amebas

e dos paramécios, elas são a marca dos titubeios sem os quais nenhuma

verdade faz sentido. É assim que surge finalmente este livro, após tantos anos:

um ensaio para interrogar, pressentir ou delinear os limites do homem. Pois

foi isso, sem dúvida alguma, que me atraiu outrora para a experiência desses

santos do deserto: esse desafio lançado ao nosso destino de hominídeo, essa

recusa visceral da nossa casca antiga e essa busca última de um homem

diferente.

Sacy, setembro de 1974.

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*—t- solar-se do mundo, romper com a sociedade do seu V^/ tempo, pensar, como

fizeram os eremitas, que só fora dela se encontra a resposta ao problema do destino

humano não tem por si só nada de insólito. É uma atitude das mais naturais na

medida em que toda sociedade altamente civilizada engendra inevitavelmente uma

franja anti-social onde figuram como irmãos o eremita e o fora-da-lei. Que ninguém

se espante ao ver aqui estas duas atitudes marginais colocadas no mesmo plano,

pois de fato nada as distingue radicalmente em seu comportamento com relação à

comunidade: refratário dos homens ou refratário de Deus, cada um deles é antes de

tudo um rebelde frente a uma ordem julgada intolerável ou caduca.

Digamos mesmo que, a partir do momento em que esse passo decisivo

for dado, será mais fácil para o anti-social passar de um estado refratário ao

outro do que reintegrar-se a um grupo com o qual ele rompeu definitivamente.

É uma evidência que as tradições populares e a história oficial têm confirmado

desde sempre, como atestam os inúmeros contos do Bandido que virou monge e

os textos das Vidas dos Padres do deserto, nos quais vemos constantemente

ex-bandidos que se tornam eremitas.

Romper com a sociedade de seu tempo é, pois, uma atitude natural, que

não é de forma alguma privilégio da nossa geração, a tal ponto que a história

de cada civilização poderia comportar também a

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história das "anti-sociedades" que ela engendra. Se escolhi ilustrar esse fenômeno

limitando-me a uma época e a um lugar preciso, o Egito cristão do século IV, é

porque ele atingiu ali uma nitidez e uma amplitude excepcionais, raramente

igualadas na história, e porque teve até nossa época conseqüências duradouras, ao

suscitar os primeiros mosteiros conhecidos da história cristã.

Uma palavra basta para definir esse fenômeno: anacorese. O termo grego

anachôresis significa uma retirada, uma fuga para longe do mundo cotidiano.

Trata-sc antes de mais nada de uma opção anti-social que só bem mais tarde ganhará

um significado religioso. Das centenas de camponeses, de escravos, de ladrões que,

no Egito greco-romano, fugiam para o deserto para escapar do fisco, de seus amos ou

da justiça, dizia-se que praticavam a anacorese. Em suma, ganhavam o deserto, como

se diz em francês moderno que um parüsan ganha o maquis*. E o termo anacorese

nunca perderá totalmente — mesmo quando, bem mais tarde, se aplicar unicamente

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aos eremitas e aos santos — este sentido original de refratário, de "maquisard" dos

homens ou de Deus.

Atitude negativa na aparência, já que é antes de tudo uma fuga, uma recusa,

uma ruptura radical com toda a sociedade organizada. Mas sabemos que não basta

fugir para a solidão do deserto (ou, hoje em dia, para a do mato) para romper com os

valores de seu tempo. O anacoreta cristão foge, no deserto, da comunidade temporal

a que pertence, mas para juntar-se ali à comunidade espiritual, invisível, que reúne

todos os cristãos, mortos ou vivos, os santos, os mártires. Ele só se isola de seus

contemporâneos, das delícias ou dos horrores de seu tempo para encontrar a

comunidade ideal e atemporal de seus irmãos dos outros séculos, dos outros lugares.

É assim que este comportamento anti-social culminará paradoxalmente na

constituição, pouco a pouco, nas solidões do Alto e do Baixo Egito, de uma nova

sociedade ♦

INTRODUÇÃO

à margem da antiga, verdadeiras comunidades do deserto que, com o nome de

lauras, skites, coenobia, mosteiros, se tornarão o modelo da cidade futura ou da

cidade celeste. Paradoxo que se encontra na história da palavra "monge", do grego

mónachos, que significava na origem um homem vivendo só e que acabou por

designar todo homem vivendo no seio de uma comunidade religiosa e organizada.

Dos milhares de homens que escolheram, assim, viver fora do mundo e do

tempo, a história guardou sobretudo dois nomes: santo Antão e são Pacômio. Antão

foi, segundo a tradição, o primeiro que teve a idéia de abandonar o mundo para se

consagrar no deserto à meditação e à oração. Pacômio, por seu lado, partiu para os

desertos do Alto Egito não para viver sozinho, mas para fundar ali uma comunidade

monástica. Se imaginarmos que meio século após a morte destes dois precursores

contavam-se às centenas — e, um século depois, aos milhares — os anacoretas e os

monges vivendo nas grutas e lauras do deserto, que em seguida este movimento se

estendeu à Palestina, à Síria, à Pérsia, à Capadócia, à Armênia e, mais tarde ainda, a

* maquis: nas regiões mediterrâneas, o maquis é uma configuração vegetal composta

de moitas, arbustos e touceiras. A expressão francesa prendre le maquis significa

"refugiar-se, após ler cometido um delito, numa zona pouco acessível coberta pelo

maquis". Durante a Segunda Guerra Mundial, chamavam-se maquis os grupos de

resistentes (partisans) que lutavam na clandestinidade contra a ocupação alemã da França;

os membros destes grupos eram chamados maquisards (N. do T.).

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todos os países do Ocidente, a distância parece incomensurãvel entre a aventura —

aleatória, afinal de contas — destes dois homens e suas repercussões na história. Eis

um fato que, por enquanto, me contento em assinalar, sem pretender em momento

algum explicá-lo. Sublinhemos apenas que logo de saída o anacoretismo se apresenta

como um fenômeno ao mesmo tempo individual e coletivo, um impulso sentido por

cada um como a livre escolha de sua consciência, mas que rapidamente se

transformou em algo que hoje chamaríamos um movimento de massa. Ora, a maioria

dos textos que possuímos sobre a vida destes ascetas relata essencialmente o aspecto

individual do fenômeno.

Eles se consagram a seguir, cada um em sua vida eremuica, seus

jejuns, suas orações, seus milagres e suas tentações sem nunca entrever ou mesmo

suspeitar a amplitude futura e o significado histórico da fuga para o deserto. r

E por isso que me parece útil, antes de acompanhar no Baixo e Alto Egito a vida

e a aventura excepcionais desses homens, investigar as raízes desse estranho

fenômeno. Não foi sem razões imperiosas, sem profundas motivações, que milhares

de cristãos romperam com sua época, seus bens, sua vida familiar, com o que todos

os textos chamam "o século" ou "o mundo". Parece que assistimos ali a um

19

esforço — consciente ou inconsciente? — para realizar, à margem do mundo

profano, uma sociedade ideal e santa, as comunidades monás-ticas, e um tipo ideal

de ser humano, o homem novo ou o santo do deserto.

"O mosteiro é um céu terrestre e, assim, nós todos devemos ser como

anjos", escreve João Clímaco, autor ascético do século VII. Foi então para se

tornarem anjos, seres no limite do humano, que Antão, Pacômio e todos os

que os imitaram um dia desertaram as cidades e a história para enfrentar a

provação do deserto?

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Primeira Parte

CD j-im de. um

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PADRES DO DESERTO

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W\IAV\C\O

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1 .

o

m d

os temp

uando os primeiros monges e os primeiros anacoretas se ^ instalaram,

no século IV, nos desertos do Egito, o cristianismo praticamente já se tornara a

religião oficial do Império romano. As perseguições cessam, as conversões se

multiplicam e o famoso edito de Milão, proclamado alguns anos antes pelo

imperador Constantino, permite que os cristãos celebrem livremente seu

culto. O paganismo deixará de ser pelo mesmo ato a religião representativa do

Império, cuja história se confunde doravante com a da Igreja. A quinze séculos

de distância, nada aparentemente mais natural que esta emergência do

cristianismo na história. Na verdade, ela tem razões para surpreender se

pensarmos que, na origem, nada era mais contrário à sua primeira vocação.

Tal como foi pregada por Jesus e propagada pelos Apóstolos, a religião

nova, de fato, não tinha de forma alguma o objetivo de conquistar o mundo

temporal, mas de pregar o advento próximo do Reino dos Céus e a morte da

História. Como todas as grandes religiões, foi primeiro modificando

profundamente as relações do homem e do tempo que o cristianismo se impôs

a seus primeiros fiéis. Para os gentios — em outras palavras, os pagãos —,

vivendo num Tempo cíclico em que as cerimônias religiosas, as festas, os

sacrifícios recomeçavam infatigavelmente os mesmos eventos primordiais, no

seio de um universo que se repete, logo, de um universo eterno, o cristianismo

trazia a brusca, angustiante revelação de um Tempo que progride,

23

O

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evolui, se consuma, de um universo em transformação e, portanto, suscetível

de acabar um dia. Um dos temas que encontramos freqüentemente nos lábios

de Jesus não é a evidência e a iminência do fim do mundo? O universo logo

vai se acabar, pois Jesus, vindo uma primeira vez sobre a terra "para cumprir

as profecias", retornará a ela uma segunda vez — e dentro de pouco tempo —

para pôr um termo à sua história profana1.

É difícil imaginar a repercussão que tais idéias poderiam ter nas

multidões da época, quer se trate dos judeus, cuja sensibilidade tinha sido

amplamente preparada há gerações para este acontecimento pelos profetas e

autores de Apocalipses, quer se trate dos gentios, que nelas descobriam

bruscamente a visão insuspeitada de um universo submetido ao Tempo.

Repercussão tanto maior porque não se trata de uma simples advertência, mas

do anúncio do fim iminente do mundo. A geração dos que escutam Jesus "não

passará sem que tudo isto aconteça", e o evento

será tão repentino que "aquele que estiver no terraço e tiver pertences na casa"

não terá tempo de descer para buscá-los. O Filho do Homem aparecerá "como

o relâmpago que pane do oriente e brilha até o ocidente".

Como viver, então, neste temor perpétuo da aniquilação de todas as

coisas? Como não espreitar, dia e noite, os sinais precursores do Apocalipse e

sobretudo — já que se espera, de um momento para o outro, pelo fim do

mundo — como não abandonar todas as preocupações, os afazeres, os valores

deste mundo? Tanto mais porque esta crença não deixará de ser apregoada,

alimentada, ao longo de todo o século I, pelos pregadores cristãos, inclusive

são Paulo. Àqueles que lhe perguntam quando e como ocorrerá o Juízo Final,

são Paulo responde, na Primeira Epístola aos Tessalonicenses:

[.../ nós os vivos, que houvermos ficado até a vinda do Senhor, não precederemos de modo nenhum os que morreram. Porque o Senhor em pessoa, ao sinal dado. a voz do arcanjo e ao toque da trombeta de Deus, descerá do céu: então os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro; em seguida nós, os vivos que tivermos ficado, seremos arrebatados com eles sobre as nuvens, ao encontro do Senhor, nos ares... (ITs 4,15-17)".

O FIM DOS TEMPOS

1. Para evitar acumular citações conhecidas, dou apenas a referência das passagens

essenciais: Mateus 24,29-31; Marcos 13,24-27; Lucas 21,25-28.

* Todas as citações de trechos bíblicos nesta obra se basearão na edição brasileira

da Tradução Ecumênica da Bíblia, São Paulo, Edições Loyola, 1994. (N. do T.)

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Esta profecia encontrará tal eco nos meios evangelizados pelo Apóstolo,

que alguns cristãos cessarão todo trabalho e viverão ociosos, à espera do dia

iminente.

Esse clima escatológico e exaltado não deixará de se ampliar nos séculos

seguintes e com toda certeza está na origem de muitos comportamentos

irracionais e excessivos, como a vocação para o martírio, a obsessão da

virgindade e da ascese, a fuga para os desertos. Todos esses comportamentos

têm entre si o traço essencial de serem antes de tudo uma recusa radical do

mundo, recusa que se compreende facilmente uma vez que este mundo está

destinado a desaparecer de um dia para o outro. Que numa época a ênfase seja

dada ao mártir e, na outra, ao asceta ou ao anacoreta, tanto faz! Pois todas

essas atitudes se prendem a uma mesma e total desafeição para com o mundo

aqui de baixo, conseqüência das conturbações, dos traumatismos operados

nos espíritos pelo medo, pela angústia, pela exaltação do Fim dos Tempos.

Um exemplo disso? Posto que Jesus disse, a propósito dos sinais

precursores de sua segunda Vinda: "Ai das que estiverem grávidas ou

amamentando nesse dia!", muitas jovens permanecerão virgens e inúmeros

casais praticarão os casamentos virginais ou apotâcticos (consistindo em viver

juntos, mas renunciando às relações sexuais), para não serem surpreendidos

impuros no momento do Juízo Final1. Se for necessária uma prova

suplementar desta ligação, operada em muitos espíritos, entre o zelo da

virgindade e o temor do fim do mundo, eis um texto muito revelador de santo

Hipólito, bispo de Roma, extraído do seu Comeniáúo sobre Daniel, escrito no

início do século III:

Um bispo, homem piedoso e modesto, mas que tinha excessivo confiança em suas visões, tivera três sonhos e se pôs a profetizar: "Sabei, meus irmãos, que o luizo Final ocorrerá em um ano. Sc o que vos digo não acontecer, não creiais mais nas Escrituras e agi como vos aprouver". Ao cabo de um ano, nada aconteceu, ele ficou confuso, os irmãos escandalizados, as virgens se casaram e 05 que tinham vendido todos os seus bens foram reduzidos à mendicância.

1. Apotãctico significa, em sentido próprio: remmciante. Servia também para

designar, durante os primeiros séculos, todos aqueles que praticavam a ascese onde quer

que fosse, inclusive em casa, que renunciavam, em suma, à vida dita mundana.

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O UM DOS TEMPOS Material com direitos autorais

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São Cipriano de Cartago, numa Carta a Dimitriano (mais um texto

notável que valeria a pena comparar com os textos ecológicos

contemporâneos), escreve:

Quem não vê que o mundo caminha para seu declínio, que já não tem as mesmas forças nem o mesmo vigor de antigamente? Não é preciso prová-lo com a autoridade da Santa Escritura. O próprio mundo o diz e testemunha que se aproxima de seu fim pela decadência de todas as coisas. Cai menos chuva no inverno para alimentar as sementes. O sol não é mais tão quente no verão para alimentar os frutos. A primavera não é mais tão agradável nem o outono tão fecundo. As pedreiras, como se estivessem cansadas, fornecem menos pedras, e as minas de ouro e de prata já estão esgotadas. As terras ficam incultas, os mares sem pilotos, os exércitos sem soldados. Há menos inocência no tribunal, menos justiça entre os juizes, menos união entre os amigos, menos indústria nas artes, menos disciplina nos costumes... Vemos crianças que já são totalmente brancas. Seus cabelos caem antes de nascerem e começam pela velhice em vez de terminar por ela. Assim, todas as coisas, desde agora, se precipitam rumo à morte, sofrem do esgotamento geral deste mundo1.

Em outros termos, o fim do mundo já não aparece então como um objeto

de terrores ou de esperanças insensatas, mas, ao contrário, como uma fonte de

meditações, de reflexões racionais sobre os fins últimos do homem.

Compreende-se melhor agora como (e por que) os primeiros cristãos deram

tanta importância ao mártir, ao asceta e depois ao anacoreta. Cada um deles,

por esse comportamento anti-social, essa recusa de um mundo moribundo,

aparecia a um só tempo como um modelo e um profeta, como a única

"resposta" possível à angústia de um mundo que lia em si mesmo os sinais de

sua própria agonia.

1. Ressaltemos esta frase de aparência sibilina: "crianças que já são totalmente

brancas". Devia tratar-se com toda certeza de bebês germanos que são Cipriano deve ter

visto pela primeira vez nesta época, na África, onde vivia. Seus cabelos, inteiramente

brancos ao nascer, só se tornam louros com o tempo. Observemos também que Platão, na

Política, já tinha imaginado esse tema dos homens que nascem anciãos e rejuvenescem

pouco a pouco, para retornar ao ventre materno da terra. Essa inversão do tempo, Platão

explicava-a pela retirada dos deuses de sua criação. O universo, abandonado a si mesmo,

vê suas formas e seus seres regredirem até que cada coisa se dissipe. Ora, idéias análogas

nasciam então nos espíritos cristãos: Deus havia se retirado do mundo, deixando o

universo entregue a si mesmo, isto é, à regressão, à morte.

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O UM DOS TEMPOS Material com direitos autorais

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2.

^ande t^arasiçâo

Virá um tempo em que parecerá que os egípcios adoraram seus deuses em vão. Da terra esses deuses retornarão ao céu, e o Egito será deixado no abandono. Essa terra santa, pátria dos santuários, se cobrirá de sepulcros e de morte. Egito! Egito! Das tuas crenças só subsistirão fábulas que parecerão incríveis às gerações futuras, só restarão palavras sobre as pedras que contam teus atos de piedade!

Asclépio

branca, serena abstração dos desertos. A Palestina, a Síria, a Líbia, o Egito

podiam oferecê-la aos que renunciavam ao mundo. Por que foi o Egito que

venceu e se tornou a terra de predileção da ascese e da anacorese?

Antes de abordar essa questão, ressaltemos um ponto importante: os

textos que relatam a vida no deserto dos "homens ébrios de Deus", e aos quais

apelaremos neste livro, são em sua maioria textos gregos escritos por gregos: a

Vida de Antão, pelo bispo de Alexandria, Ataná-sio; a História lausíaca de

Paládio, a História dos monges do Egito de Rufino de Aquiléia. Os dois outros

textos mais importantes, a Vida de Paulo de Tebas, primeiro eremxía, de são

Jerônimo, e as Conversas com

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A

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os monges do Egito, de Cassiano, foram escritos em latim. Mas escrever em grego

significa também pensar em grego. Todos os textos em questão, redigidos com vistas

a um público cultivado que fala grego e latim, naturalmente transpuseram em sua

própria língua os ensinamentos, as palavras, a mentalidade particular dos homens

dos desertos do Egito. Ora, estes homens não eram nem gregos nem romanos, mas

egípcios: Antão, Pacômio, Macário o Antigo, Poimém, Pior, Serapião, Hor, Pafnúcio,

Onofre, Canúcio, Pisêntios, todos esses grandes nomes do cristianismo copta* eram

de raça egípcia, nascidos no Egito de pais egípcios (e mesmo pagãos, muitas vezes).

Não falavam nem grego nem latim, mas copta, forma demótica da língua egípcia

tradicional. Além disso, eram em sua maioria de origem camponesa, pertenciam

àquela classe dos felás que nunca teve qualquer contato (a não ser pelas revoltas

constantes) com os ocupantes gregos e romanos e que perpetuou por longo tempo as

tradições, os cultos, a mentalidade do Egito faraônico. É essencial estabelecer desde

já esta distinção, pois do contrário sujeitamo-nos a não captar em toda a sua

originalidade o fenômeno singular que foi o nascimento do mona-quismo no Egito.

Na sua gênese e no seu alcance, é um fenômeno puramente egípcio o ressurgimento

com outras formas de um passado e de uma cultura que se acreditavam mortos mas

que, de fato, nunca deixaram de existir nem de crescer, apesar dos séculos de

ocupação estrangeira.

& $r ifc

Quando Antão e Pacômio partiram para o deserto, o Egito tinha deixado de

ser há mais de oito séculos um país independente. O

* Como o autor falará com insistência dos captas, parece-nos interessante traçar aqui

um rápido perfil deste povo. Os coptas são os cristãos do Egito e da Etiópia. São

atualmente os descendentes mais autênticos da população do Egito antigo, e sua

continuidade racial se deve à sua religião, que não admite casamentos mistos. Falam uma

língua da família camito-semltica que é a continuação do egípcio falado na época dos

faraós (os egípcios muçulmanos falam árabe). Esta língua se escreve num alfabeto próprio,

baseado no grego. O hierarca supremo da Igreja copta é o Patriarca, que vive no Cairo.

Celebram a liturgia de são Basílio. Do ponto de vista doutrinai, a Igreja copta está

desligada da igreja católica romana e das Igrejas ortodoxas por ter permanecido na

heresia do monofisismo. O termo copta provém de gyptus, alteração do nome grego do

Egito, Aegypíus. (N. do T.)

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PADRES DO DESERTO

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tamanho descomunal de certos animais, os gregos reagiram com zombaria, escárnio

e esse espírito mordaz que os egípcios não apreciavam muito. Eles lhes retribuíram,

aliás, a gentileza e captamos, nesses jogos da linguagem, todas os abismos que

separam dois povos que estão lado a lado durante séculos sem se compreenderem.

Para os egípcios, os gregos eram gente turbulenta, superficial e pouco séria, um

povo irresponsável e infantil. Recordemos esta frase atribuída por Platão a um

sacerdote egípcio — frase cuja justeza permanece mais que nunca válida a trinta

séculos de distância e que poderia aplicar-se aos gregos de hoje: "Vós outros, gregos,

permanecereis sempre crianças. Quando é que os gregos se tornarão um povo

adulto?"

A presença romana no Egito foi menos sensível ainda que a dos gregos.

Roma tratou o Egito como uma terra à parte, um país cujos costumes, modos

de vida, deuses e o lugar excêntrico que ocupava nos confins do mundo o

diferenciavam das outras províncias do Império. Se os gregos se justapuseram

aos egípcios sem realmente misturar-se a eles, os romanos só fizeram ocupar o

Egito. Senão, vejamos um mapa do Egito romano. Que vemos aí? Cidades

gregas: Alexandria, Náucratis no' Delta, Arsínoe no Faium; depois, à medida

que subimos o Nilo, Afroditópolis, Oxirrinco, Hermópolis, Licópolis,

Ptolomaida, Coptas, Tebas, Siena. Algumas dessas cidades eram evi-

dentemente de origem egípcia, mas elas usaram durante muito tempo e com

mais freqüência seu nome grego. Uma única cidade tem um nome e uma

origem devidos a Roma: Antinoé, fundada por Adriano após a morte de seu

favorito, Antínoo. É que, de fato, a penetração romana não foi muito além do

Médio Egito. Nada de limes, faixa-fronteira como em tantos outros países do

Império, nada de fortifica-ções, de vias, de implantações duradouras. Antes

uma presença esporádica, nos limites do deserto hostil, que obrigou os

romanos a se servirem de dromedários; presença limitada a algumas

guarniçôes de militares, algumas dezenas de funcionários e cidadãos

confinados unicamente no Delta e nos burgos importantes. Roma ocupa

militarmente o Egito, mas não constrói nada ali, não funda nada, não

compreende nada. Contenta-se em reprimir as revoltas que estouram a todo

momento e, como diz com acerto um historiador do Egito romano, "em fazer o

país suar trigo e prata para alimentar os romanos".

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Dirão que estamos fazendo o jogo do mistério e do exotismo, mas isso seria

ignorar o papel singular que o Egito desempenhou para a cultura romana. Pois este

país — tão desconhecido e tão pouco apreciado pelos que o ocuparam — suscitou

uma verdadeira febre entre os romanos da Itália. Visto de Roma ou de Pompéia, o

Egito não é mais uma terra de trigo povoada de indígenas embrutecidos, mas o país

da sabedoria e do conhecimento, o reino das tradições ocultas e dos poderes

mágicos. Ele cristaliza, em torno de seus enigmas, seus símbolos indecifráveis, seus

monumentos misteriosos, toda uma carência de exotismo e de maravilhoso de que

as culturas antigas se ressentiam tanto quanto as nossas. Pode-se ver uma prova

disso na moda que fizeram os cultos egípcios (os de ísis, principalmente) a partir do

século I antes de nossa era. Toda uma aristocracia culta se entusiasma com ísis, seus

mistérios, seus sacerdotes, com esses cultos estranhos e até então desconhecidos, a

ponto de obrigar o imperador Tibério a suprimi-los, a mandar crucificar alguns

sacerdotes como exemplo e a deportar alguns milhares de fiéis de ísis para a

Sardenha. Tudo isso, junto com os relatos mais ou menos fantásticos trazidos pelos

viajantes (pois a moda então é a dos relatos de viagem fabulosos, onde tudo é

pitoresco e fácil, exotismo de bazar, prodígios e milagres, relatos que Luciano de

Samosata parodiará na sua História verdadeira1), acaba formando no espírito do

profano uma imagem convencional do Egito que se encontra nessas pinturas de

paisagens nilóticas que "causam furor" na mesma época nas casas de Roma e de

Pompéia. Templos e cabanas de juncos à beira do Nilo, barcos e barqueiros, íbis e

crocodilos se reproduzem ali ao infinito, tal como naqueles papéis pintados de nossa

infância onde, numa paisagem oriental estereotipada — deserto, camelos, mesquita

—, mulheres com véus apanhavam água à sombra das palmeiras. Os romanos, nos

primeiros séculos de nossa era, terão o seu Egito, tal como o século XVI teve as suas

índias ocidentais e o século XIX a sua Polinésia: terras paradisíacas onde se

cristalizam essa amargura inconsciente e essa nostalgia da inocência que afetam as

civilizações nas épocas de êxito material e de conquista.

1. História chamada "verdadeira" por ser, justamente, fruto de pura imaginação e

por ser o primeiro modelo de uma literatura antiexótica, diríamos hoje

desmistificadora, contra todos os viajantes, autores de relatos fabulosos e fáceis, der-

ramados nas "salas Pleyel" da época.

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entre vós, ou em qualquer outro lugar, tudo o que se produziu de belo, de

grande, de notável sobre a terra, tudo isso está escrito, aqui, de longa data em

nossos templos e salvo do esquecimento. Nossas leis, basta olhar para elas, e

nossa maneira de viver e nossos conhecimentos: verás que elas têm mais de

oito mil anos de idade". Outra prova será encontrada num relato de Heródoto

(anterior, portanto, ao de Platão) que também estabelece em oito mil anos a

antigüidade do Egito. Quando Heródoto visitou o templo de Amon-Rá, em

Carnac, c perguntou aos sacerdotes desde quando os deuses reinavam sobre o

Egito, eles o levaram ao interior do santuário e lhe enumeraram —

nomeando-as uma a uma — trezentas e quarenta e uma estátuas de madeira:

"pois cada sumo sacerdote, em vida, manda erguer sua estátua e, por uma

enumeração metódica, os sacerdotes me mostraram que eles se sucediam

assim, como os reis, de pai para filho, desde as origens". Trezentas e quarenta

e uma gerações: isso dá quase oito mil anos, o número citado por Platão.

Mesmo dividindo por dois os números dados por Heródoto (para ficarmos de

acordo com os dados da arqueologia), eles permanecem bastante eloqüentes.

Diante da idade que supunham para seus deuses, diante da perenidade de

suas crenças e de sua civilização, os sacerdotes egípcios deviam sentir uma

espécie de vertigem — essa vertigem que arrebatava o visitante estrangeiro à

visão das trezentas e quarenta e uma estátuas alinhadas na penumbra do

templo, sendo cada uma delas um elo do tempo. O Egito viveu durante quatro

mil anos nessa vertigem da eternidade, nessa certeza de que o tempo era

imóvel, de que os deuses egípcios reinavam desde sempre sobre a terra.

E então, um dia, essa vertigem acabou, pois os deuses egípcios morreram. "Morreram" é uma maneira de dizer, pois é dificílimo descrever — e mesmo compreender —, na sua complexidade, a morte de um deus. Quando se pode dizer que um deus morreu? Quando deixa de ter um culto oficial? Mas nada prova, só por isso, que seus fléis deixam de crer nele, de crer em sua presença e em seu poder oculto. No século VI de nossa era, ou seja, dois séculos depois da proibição oficial do paganismo pelo imperador Teodósio, ainda havia no mundo romano homens — filósofos místicos — que continuavam a crer na verdade dos deuses egípcios. Um deles escreve: "Sabemos que os deuses viveram e continuam a viver lá".

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Uma questão que toca tão de perto a alma humana não pode ser resolvida com

base nos vestígios externos que os deuses e seus cultos sempre deixaram na terra,

1. Este episódio foi descrito — com algumas variantes — por Sozômeno, História

eclesiástica (VII, 15), e Sócrates, História eclesiástica (XI.29).

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A GRANDE TRANSIÇÃO

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sobretudo no Egito. De tal sorte que o único critério que permite dizer que um deus

acaba de morrer é ainda aquele fornecido por seus próprios fiéis, quando tomam

consciência de que ele morreu neles, de que deixaram de crer nele. Ora, tal fenômeno

se produziu no Egito, em Alexandria, na última década do século IV, no dia em que o

patriarca Teófilo foi autorizado a instalar uma igreja num templo de Dioniso.

Descobre ali estatuetas obscenas (ou melhor, que ele acha obscenas), as destrói e lança

seus pedaços à multidão dos cristãos. Os pagãos, furiosos, se revoltam, atacam os

cristãos e, tomados de pânico, correm a se trancar no Serapeu — o grande templo de

Serápis. Este templo era de uma magnificência excepcional, que já impressionara,

dois séculos antes, um cristão como Clemente de Alexandria. Mas nem a hora nem o

século se prestavam mais à admiração dos templos pagãos. Os cristãos, excitados por

Teófilo, sobem os cem degraus que levam à entrada do santuário, penetram no seu

interior e se detêm de chofre, tomados de assombro, de pavor, medo, diante da

imensa estátua do deus. A tal ponto que ninguém ousa atacá-la. Finalmente, a uma

ordem de Teófilo, um soldado se apodera de um machado, trepa a uma escada e

começa a golpear a cabeça do deus. O ídolo balança, desaba, a multidão lança um

grito de medo enquanto... uma enxurrada de ratos sai do buraco aberto na estátua!

Então, passado todo o medo, os cristãos arremetem contra o ídolo. Os próprios

pagãos estão consternados: não havia um oráculo muito antigo anunciando que o

mundo desmoronaria no dia em que Serápis fosse profanado? Serápis qucbrou-se e o

mundo não desmoronou. Os cristãos então arrastam os escombros à vontade por toda

a cidade e os queimam1. E cada um deve ter lido, então, na visão daquele colosso

arruinado de onde escapavam ratos, daquele deus esquartejado que era arrastado

pelas ruas, a imagem mesma do paganismo dilacerado, moribundo. O cristianismo

tinha conseguido no Egito — pela violência — aquilo que nem os persas, nem os

gregos, nem os romanos tinham podido fazer: suprimir as divindades seculares do

país e dar a ele um novo deus.

0 * tír

Os primeiros documentos seguros que atestam a existência de uma

comunidade cristã organizada, em Alexandria, datam do final do século II. É

também por esta época que um filósofo grego, Panteno, antigo estóico

convertido ao cristianismo e que teria viajado até a índia seguindo as pegadas

do apóstolo Bartolomeu (segundo Eusébio de Cesaréia), funda em Alexandria

a célebre Didascália, escola cristã de exegese que será dirigida depois dele por

Clemente de Alexandria e Orígenes. O sucesso encontrado por esta escola

prova em todo caso que, à data de sua fundação, já havia nesta cidade

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comunidades cristãs suficientemente numerosas e organizadas — decerto

desde os meados do século II. Mas quem são estes primeiros cristãos? Antes de

tudo, gregos, judeus, romanos, egípcios helenizados, membros da sociedade

cosmopolita e culta de Alexandria. É no seio desta iníeíligenísta que o

cristianismo se difunde a princípio — pela simples razão de que só é pregado

em grego e não pode atingir a massa egípcia propriamente dita, que fala copta.

O que não deixa de criar dificuldades: esta sociedade refinada é, por natureza,

pouco fanática, mais tolerante e aberta a todos os cultos e deuses novos. Já

tinha aceitado os deuses gregos, romanos e as divindades orientais — sírias e

zoroástricas — a ponto de "amalgamá-las" às do Egito. É, por excelência, uma

classe que favorece o sincretismo religioso, onde se recrutarão os mais

fervorosos adeptos do gnosticismo, do neoplatonismo, do neopitagorismo, das

doutrinas herméticas e de todas as seitas religiosas e filosóficas que se

multiplicam na Alexandria do século II. Para tomar só um exemplo, aquele

Serápis — cuja "morte" retratamos um pouco mais acima e que foi o grande

deus da época greco-romana —, aquele Serápis era uma "mescla" de

Zeus-Júpiter, Hades, Osíris, Ápis, Dioniso e mesmo de um pouco de Amon-Rá!

Além de seu santuário de Alexandria, ele possuía um outro, célebre, onde

podia ser adorado segundo o rito egípcio ou o rito grego e cujas aléias eram

ornadas com esfinges egípcias, sereias gregas, estátuas de Ptndaro, Protágoras

e Platão! Tal flexibilidade no sincretismo tem qualquer coisa de fascinante. É

difícil hoje em dia, após vinte séculos de cristianismo, imaginar que as

divindades pudessem associar-se desse modo sem se excluir, amalgamar-se em

panteões incessantemente enriquecidos. A facilidade com que então se

"fabrica-

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ramente dizem respeito ao meio que nos interessa aqui, o do camponês copta.

O que é certo é que tornar-se cristão, no século III, para um camponês do Egito

não significava apenas adotar uma religião nova; implicava também renunciar

mais ou menos à religião antiga, a imagens, a símbolos, a ritos ancestrais.

Entre este mais e este menos se situa todo o verdadeiro alcance do cristianismo

naquela época, e a necessidade que ele teve de se acomodar com este passado

prodigioso, de não romper com algumas de suas exigências, em suma, de dar

ao copta a impressão de que ele podia tornar-se cristão permanecendo egípcio1.

Vale dizer que os termos cristianismo e oistão tinham para um camponês

copta um sentido bem diferente do que tem para nós. De um extremo a outro

do orbis romanus, cada um dos países convertidos teve, aliás, com bastante

rapidez a sua própria visão de Cristo, a ponto de a história dos seis primeiros

séculos da Igreja ter sido uma luta constante contra as heresias, um esforço

perpétuo para impor a todos uma visão idêntica de Cristo. O peso do passado

se exerceu profundamente sobre a sensibilidade religiosa do Egito cristão, e e

evidente que haverá sempre, na maneira como um camponês copta era

cristão, algo de estranho à nossa própria experiência. A prova disso é que no

dia em que ele puder, com toda liberdade, escolher o seu cristianismo,

escolherá um cristianismo todo equivocado, herético: o monofisismo, que se

tornará, a partir do final do século V, a religião nacional do Egito2.

1. Permanecer egípcio, para um copta, não significava apenas continuar a pertencer

ao Egito enquanto nação, mas enquanto cultura, perpetuando a crença nos símbolos

religiosos milenares. Assim, na Vida copta de Teodoro, o discípulo de Pacômio, conta-se

que Teodoro, tendo visto no campo um touro que possuía os sinais externos dos touros

sagrados de Ápis, "mandou-o matar para que seus monges não se pusessem a adorá~lo"\

2. O monofisismo foi uma heresia que afirmava que o Pai e o Filho tinham

somente uma natureza — inteiramente divina — e, portanto, que a natureza humana de

Cristo não passava de uma aparência. Essa doutrina já havia sustentado certo número de

seitas dos séculos anteriores, bem como algumas seitas gnôsticas e também os marcionitas

e os docetistas. Na doutrina monofisita, Cristo só tem uma carne aparente e pode mudar à

vontade de forma e de aspecto. Para explicar a Crucifixão (já que seria impossível

crucificar um fantasma), os monofisitas admitiram que Cristo não foi realmente

crucificado, sendo substituído in extremis por Simão, o Cireneu. Essa heresia — devida a

um monge de Constantinopla chamado Êutico — se difundiu em todo o Oriente Médio e

ganhou o Egito, a Síria e a Armênia, onde subsistirá, apesar da condenação do concilio de

Calcedônia, em 4 5 1 .

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Segunda Parte

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PADRES DO DESERTO

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época. Nestas Vidas, os sábios, como mais tarde os santos, de fato comandam os

elementos, afastam os flagelos, domam as bestas selvagens, operam curas

milagrosas, exorcisam os posscssos. O que já permite situar em seu verdadeiro

contexto todos esses milagres, essas diabruras e esse maravilhoso que fervilham na

Vida de Aníão. Eles só têm sentido em função do objetivo visado pelo autor: escrita

para edificar, não para descrever, concebida como um retrato exaltador da vida no

deserto e não uma reportagem minuciosa das façanhas e proezas do santo, a Vida de

Antão não poderia abrir mão das convenções literárias indispensáveis a toda Vida

edificante: milagres surpreendentes, grandes discursos retóricos sobre a virtude e a

sabedoria, recurso ao maravilhoso e ao sobrenatural, assaltos dos demônios. Em

suma, é o "por quê" da Vida de Antão que explica o "como", não o inverso. Todo esse

arsenal de milagres e de tentações, de conversas com os anjos ou de poderes

exaltantes nada tem de cristão. Para o público da época, pagâo

ou cristão, nenhuma Vida de sábio ou de santo podia ter virtude edificante

se não tivesse primeiramente um poder de assombro, se não obedecesse às leis do

romance aretológico, tão rigorosas e imperativas quanto as que presidem hoje em

dia, por exemplo, o romance-folhetim.

Dito isto, uma vez bem admitida esta ganga fabuladora, esta intenção

edificante das Vidas dos santos, não se pode concluir, porém, que elas não

contenham nenhuma parte de história ou de verdade. Ninguém sonha em

negar a existência de Pitágoras ou dos sofistas gregos, ainda que sua vida,

escrita por Jâmblico e Eunápio, contenha mais de maravilhoso e de fantástico

que de real. Tudo leva a crer que Antão de falo existiu. É dito em sua Vida que

ele fez duas viagens a Alexandria, que tomou posição contra a heresia ariana, e

estes fatos puderam ser confirmados por outras fontes. Existiu seguramente,

no século IV, no deserto do Egito, um personagem chamado Antão, copta

iletrado mas dotado de grande sabedoria, que se consagrou a uma ascese

espetacular o bastante para impressionar seus contemporâneos e incitar um

bispo a escrever sua vida. Mas é certo que o personagem histórico tem pouca

relação com o da Vida de Antão. A parte de história que esta Vida contém,

temos de buscá-la contra o próprio texto, contra o autor às vezes, em tudo o

que lhe pôde escapar sobre os fatos, os lugares, as coisas que ele descreve. É

ali, nessa parte obscura, inconsciente da obra, que a história real de Antão (a

quem os sinaxános

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que fugiam dos lugares habitados para escapar das corvéias, dos impostos, de

seus amos ou da justiça. Mas sua temporada no deserto era apenas passageira.

No caso de Antão, esta partida tomava um sentido bem diferente, pois o que o

atrai não é a realidade concreta, e sim a realidade simbólica do deserto.

Como todos os anacoreias que o imitarão a seguir, Antão viveu numa

época e num meio profundamente impregnados de símbolos e de imagens

bíblicas. Toda a realidade material circundante (o deserto, o céu, os sons, as

luzes, as sensações mais quotidianas) possui um valor e um sentido

simbólicos, por ter servido, de uma maneira ou de outra, a este ou aquele

episódio da história divina. O deserto, antes de tudo, é um lugar inóspito,

tórrido, onde ninguém poderia levar uma existência normal. Lá o homem está

nu, apanhado entre a terra e o céu, entre os dias extenuantes c as noites

gélidas, prisioneiro de uma paisagem abstrata, que não é a imagem de

nenhum mundo familiar. O deserto é um lugar inumano. Mas que quer dizer

inumano para um copta? Quer dizer um lugar habitado por outras criaturas

que não homens: por anjos e demônios. No deserto, nenhum homem pode

viver se não for ajudado por Deus ou por seus anjos, ninguém pode morar ali

sem enfrentar mais cedo ou mais tarde os assaltos do Diabo: tem de viver ali

com os milagres e as tentações. Mas, de tanto freqüentar os anjos, acaba-se

parecendo com eles. O que os homens do deserto perdem em humanidade

ganharão em angelismo, e compreende-se que os pintores bizantinos que

representarão estes homens do Egito nos afrescos dos mosteiros da Capadócia

ou da Grécia os tenham pintado sob este duplo aspecto de selvagens c de

anjos: rosto emagrecido, trajes esfarrapados, cabelos que caem até os pés, mas

também olhares perdidos na contemplação de uma outra realidade, carne que

quase não é mais carne. Todas as convenções da arte bizantina terão como

meta fazer dos grandes ascetas não criaturas impassíveis, fantasmas ou

ilusões, mas seres que já pertencem a uma outra espécie de humanidade, a

meio caminho do outro mundo. O deserto é o lugar de uma experiência

suprema, uma provação que conduz fatalmente o homem para além de si

mesmo, rumo ao Anjo ou à Besta, rumo ao Diabo ou a Deus.

Orígenes — que dirigiu por muito tempo a célebre Didascália de

Alexandria e foi um dos espíritos mais eminentes do século III —

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serpentes "com rostos de centelha, fogo na face e fogo no olho", o senhor do

cetro, o que está no país, o falcão macho e o falcão fêmea. De cada lado da margem,

assistindo à passagem do cortejo divino, aparece uma multidão de criaturas:

numa das margens, estão todos aqueles que "criam o Oceano e fazem a

marcha do Nilo"; são, na ordem, três deuses, quatro mulheres, quatro múmias

chifrudas e aladas, quatro nobres, um objeto de aparência estranha

(provavelmente uma haste de papiro), mas que é na realidade um ser vivo, já

que se chama aquele que é cheio de magia, um homem ajoelhado chamado

aquele que traz o despertar, Anúbis, um carneiro chamado o matador de seus

inimigos, um carregador e uma carrcgadora de olhos, o deus-orictéropo* Set e

um cinocéfalo** (na mitologia egípcia, os cinocéfalos abrem e fecham as portas

do Reino dos Mortos). Na outra margem se erguem aqueles que cortam as

almas e apnsionam as sombras. Dtstinguem-se o deus Órion, um deus chamado

o Ocidental, uma deusa que está sobre a chama, cinco criaturas com cabeça de

pássaro carregando facas, mais oito Osíris e o deus-carneíro Khnum. E isso se

repete em cada uma das doze horas do Am-Duat! Além disso, só

mencionamos aqui os deuses e as criaturas mais aparentes, as que estão nas

margens do rio. Ao longe, nas trevas desse mundo estranho, o brilho do

deus-Sol ilumina de passagem, como um projetor varrendo a noite, criaturas

de pesadelo: mortos sepultados na areia, dos quais só a cabeça emerge,

serpentes montadas em patas tão altas quanto pernas-de-pau, o dragão Apófis

enroscado num penhasco que ele envolve com suas espirais, homens

estendidos na terra, decapitados ou manietados (os "inimigos" do Sol), outras,

enfim, que mal adivinhamos, sepultadas sob montículos de areia.

Essa imaginação funerária não era somente visual, mas sonora. Nesta ou

naquela hora do Am-Duat, os textos descrevem os ruídos múltiplos que

acompanham a passagem da barca divina: gritos de alegria dos mortos

enquanto o Sol atravessa sua "hora", gemidos e

* Qrictéropo: gênero de mamíferos tubultdentados, com aparência geral de um

porco, mas dotado de uma boca em forma de tubo, por onde se alimenta de cupins e

formigas; é chamado na África do Sul aardvark ("porco da terra"). (N. do T.)

* * Cinocêfalo: nome grego que significa "cabeça de cão", aplicado a um gênero de

macacos cuja cabeça lembra a de um cão. (N. do T.)

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ele apareceu fora daquele castelo àqueles que vinham até ele, e ficaram cheios de assombro ao vê-lo num vigor maior do que jamais tivera. Não tinha nem engordado pela ausência de exercício nem emagrecido por tantos jejuns e combates sustentados contra os demônios. Tinha o mesmo rosto de antes, a mesma tranqüilidade de espírito e o humor agradável. Não estava nem abatido de tristeza nem numa excessiva alegria. Seu rosto não era nem demasiado jovial nem demasiado severo. Não dava mostra nem de desagrado de se ver rodeado de tamanha multidão nem de satisfação de ser saudado e reverenciado por tanta gente. Era de uma perfeita igualdade de alma, num estado conforme à natureza.

Ele forma então seus primeiros discípulos, que decidem renunciar ao mundo

e se agrupar em torno dele. Desta época — que podemos situar aproximadamente

em 305 — data a fundação da primeira comunidade cristã no Egito. Ainda não é um

mosteiro, mas, no máximo, uma laura, um agrupamento de anacoretas, submetidos

a uma ascese e a um modo de vida relativamente livres. Esta primeira comunidade,

Antão a estabelecerá às margens do Nilo, não longe da fortaleza de Pispir, perto da

atual aldeia de Deir-el-Maimum.

A reputação de Antão, nesta data, já é enorme no Egito. Ela atinge todas

as camadas da população e não mais apenas um punhado de devotos e

admiradores. Uma multidão de pessoas aflui ao "mosteiro" de Pispir, deita-se

ao longo da entrada, na esperança de ver o asceta aparecer para lhes falar,

curá-las ou exorcizá-las. Já corre o boato de que basta se aproximar do

"mosteiro" de Antão para voltar de tá imediatamente curado. Mas Antão não

suporta nem a multidão, nem os milagres, nem a glória e decide partir de

novo para mais longe no deserto, "num lugar onde não fosse conhecido de

ninguém".

^ 0 m

A última parte da vida de Antão, da idade de sessenta anos até sua

morte, apesar de alguns detalhes concretos, mal pertence à história humana.

Após ter deixado seus companheiros de Pispir, Antão se deteve às

margens do Nilo, sem saber muito para onde iria, quando, de repente, ouviu

uma voz celeste lhe dizer que se dirigisse "para o deserto interior". Naquele

exato momento, passavam beduínos; ele os

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assava seu pão duas vezes por ano e fazia-o secar ao sol. Ninguém podia

entrar onde ele morava, mas ficava-se do lado de fora e ouvia -se sua palavra".

E quando Antão morreu, no monte Colzum, aos cento e cinco anos de

idacle, o sinaxário acrescenta:

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"Viveu até a boa velhice sem que sua força diminuísse. Nenhum de seus

dentes caiu".

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Sinai, ainda que estivéssemos a mais de vinte léguas. O mar fica a oriente deste mosteiro. Ás pontas do Sinai ficam a leste do mar. Avistamos algumas montanhas do lado do ocidente com um pouco de mata, mas muito distante de lá, e todo o conjunto do que podíamos vislumbrar era inteiramente árido e causticado.

É ali que Paulo de Tebas viverá durante cem anos. Cem anos de uma existência

quase milagrosa, ainda que são jerônimo, no que lhe diz respeito, ache tudo muito

natural:

A palmeira de que falei lhe fornecia tudo o que era necessário à sua alimentação e à sua vestimenta, o que não deve ser visto como impossível, já que Jesus Cristo e seus anjos são testemunhas de que, nesta parte do deserto que pertence às terras dos sarracenos e se junta à Síria, tenho visto solitários dos quais um, recluso há trinta anos numa caverna, só vivia de pão de cevada e de água lodosa, e um outro, trancado numa velha cisterna, vivia de cinco figos por dia.

Paulo de Tebas viverá decerto com menos que isso. Levará nesta gruta

uma existência angélica que o universo teria ignorado se, pouco antes de sua

morte, Deus não tivesse avisado Antão da existência de Paulo. Antão tinha já

noventa anos, mas decidiu imediatamente pôr-se a caminho, à procura dele.

A partir deste episódio, a Vida de Paulo de Tebas torna-se uma espécie de

sonho acordado em pleno deserto.

Para começar, onde vive Paulo de Tebas? Antão não sabe e parte às

cegas. Mas às cegas, quando alguém se chama Antão e vive no deserto, quer

dizer o olho de Deus. A Providência guarda o caminho do asceta e nele coloca

estranhas balizas:

Ao despontar o dia, santo Antão começou a caminhar sem saber aonde ia e o sol, chegado o meio-dia, já tinha escaldado o ar de tal sorte que parecia todo inflamado quando ele viu uma criatura que tinha em parte o corpo de um cavalo e era como aquelas que os poetas chamam Hípocentauros. Tão logo o vislumbrou, Antão ar-mou sua fronte com o sinal salutar da cruz e lhe gritou: "Olá! Em que lugar da terra mora aqui o servo de Deus?" O monstro, então, murmurando não sei o que de bárbaro e entrecortando suas palavras mais do que proferindo-as distintamente, esforçou-se por fazer sair uma voz doce de seus lábios eriçados de pêlos e, estendendo a mão direita, lhe mostrou o caminho tão desejado. Depois, dissipou-se diante dos olhos daquele a quem tinha enchido de espanto. Quanto

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A Vida de Pacômio chegou até nós num grande número de versões

escritas nos diferentes dialetos coptas: boháirico e menfitico (Delta e Baixo

Egito), akhmínico e sub-akhmínico (no Médio Egito) e sahídico (no Alto

Egito). Estas Vidas apresentam entre si certo número de variantes, mas todas

concordam no essencial: os principais episódios da infância de Pacômio e sua

regra são, em todas elas, os mesmos. Por eles, podemos reconstituir com bases

históricas bastante seguras a espantosa existência do primeiro dos monges.

Pacômio nasceu em 286 na aldeia de Esneh (atualmente Isna), no Alto

Egito, a uns cinqüenta quilômetros de Tebas. Ao contrário de Antão, teve uma

infância paga. Mas, como não se poderia admitir que um futuro santo

pudesse, mesmo inconscientemente, adorar os ídolos, sua Vida toma o

cuidado de assinalar que ele só os adorava na aparência. Vomitava a cada vez

o vinho dos sacrifícios, seu estômago se recusava a ingurgitar alimentos

oferecidos aos ídolos. Antão, aos vinte anos, teve a revelação de uma vida

consagrada a Deus. Em Pacômio, o fenômeno é invertido: ele é consagrado a

Deus sem ao menos saber disso. Inversão que se opera até nos detalhes mais

concretos: Antão ouvia o chamado de Jesus; Pacômio, ao penetrar num

templo pagão, aos oito anos de idade, não ouve voz alguma; ao contrário, são

os ídolos que param de falar ou de profetizar. A vocação de Pacômio é essa

voz paga que se cala em sua presença.

Em nada surpreso com tantos prodígios, Pacômio continua a crescer:

aos vinte anos, é alistado à força no exército romano e parte um belo dia para

a guarnição, em Antinoé. Lá, pela primeira vez, fica sabendo que existem no

mundo seres chamados cristãos, que se devotam voluntariamente aos outros

e se deixam martirizar, em vez de renegar sua fé. Tocado por sua

generosidade e sua gentileza, Pacômio os freqüenta assiduamente e decide,

nesta época, consagrar-se ao Deus dos cristãos.

Assim que foi dispensado, dois ou três anos mais tarde, ele regressou ao

sul e chegou um belo dia a Sheneset (em grego Khenobóskion),

aldeia deserta e causticada pela intensidade do calor. Então, pôs-se a considerar aquele lugar: não tinha muitos habitantes, apenas alguns. Foi até o rio, num pequeno templo chamado pelos antigos Psampisarapis (lugar de Sarápis), pôs-se de pé, orou, e o espírito de

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oração ali... Como se prolongasse na oração, uma voz lhe veio do céu e lhe disse: "Pacômio, instala-te aqui e constrói tua morada. Uma multidão de homens virá a ti, e isso lhes beneficiará a alma".

Nas versões posteriores, o episódio é mais preciso ainda: um anjo aparece a

Pacômio, lhe dá suas instruções e lhe entrega, numa tabuleta de bronze, a Regra de

seus futuros mosteiros.

Este deserto da Revelação — como poderíamos chamá-lo — situava-se perto da

aldeia de Tabenesi, na margem ocidental do Nilo, nas proximidades da antiga cidade

de Denderah. Foi lá que Pacômio se instalou para obedecer às instruções angélicas. É

lá que ele fundará, algum tempo depois, seu primeiro mosteiro.

Esse episódio do anjo ilustra de maneira direta as observações feitas no

início do capítulo precedente. Cada vez que uma descoberta ou uma iniciativa

humana teve grandes conseqüências para os homens, eles tenderam

imediatamente a atribuir-lhe a paternidade a um deus, a um anjo ou a um

herói. Aos casos já mencionados (escrita, fogo. linguagem) acrescentemos

aqui o das leis. A origem das leis foi quase sempre atribuída a deuses, e esta

tendência se encontra nas tradições hebraica e cristã. Nelas, os Dez

Mandamentos e a Regra de Pacômio são de inspiração divina. Moisés, no

cume do Sinai, e Pacômio, no coração do deserto de Tabenesi, recebem das

mãos de Deus ou do anjo as tábuas de pedra ou de bronze contendo a Lei sob

a qual os homens deverão viver. No caso de Pacômio, a influência é tanto

mais nítida quanto o episódio do anjo é justamente tardio. Foi inventado

numa época em que os mosteiros pacomianos se haviam multiplicado ao

longo do Nilo, em que Pacômio, tão venerado quanto os maiores fundadores,

tinha se tornado o Moisés dos copias. Rapidamente, a lenda ratificou — pelo

episódio da Tábua do anjo — esse destino paralelo dos dois homens. De toda

maneira, o fato essencial é que, num dado momento de sua vida, Pacômio

teve a revelação — ou a idéia — de sua vocação: arrastar os homens para fora

do mundo por seu exemplo, agrupá-los em torno de si, instituir no deserto

comunidades que repousariam em regras e princípios absolutamente novos.

Eis o âmago do problema, a prodigiosa originalidade da empresa pacomiana:

fundar uma sociedade de homens "partindo de novo do zero", organizar a

vida deles e suas relações segundo um sistema origi

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de salvação, como uma sorte de ascese aníiartísüca na qual a recusa da beleza

teria o mesmo papel que a recusa do corpo na ascese física?

* m

A partir da fundação do primeiro mosteiro de Tabenesi até sua morte,

ocorrida, em 348, durante uma epidemia de peste, Pacômio se consagrou por

inteiro à organização da vida cenobítica. Empregamos aqui de propósito o

termo cenobítico. O cenobita (do latim coenobium: "comunidade"*) designava

na época todo homem que vivia em comunidade, ao passo que monge ainda

tinha o sentido de homem que vivia só. Com o tempo, o termo monge passou a

designar também todo homem que vivia em comunidade c tornou-se

sinônimo de cenobita. Mas no tempo de Antão e Pacômio a distinção ainda

era muito nítida entre estes dois modos de vida. O termo mosteiro, que os

tradutores das Vidas de Antão e Pacômio empregam quase sempre, não deve

nos iludir: ele designa, no mais das vezes, uma gruta ou uma simples cabana

de gravetos onde vive um solitário. Dito isso, e para a comodidade da

linguagem, nós empregaremos sempre aqui o termo mosteiro em seu sentido

corrente de edifício onde monges vivem em comunidade.

Até sua morte, portanto, Pacômio cumpriu sua obra cenobítica e fundou

nove mosteiros. Todos se situavam entre Tebas, ao sul, e Akhmin, ao norte,

tendo como centro a região de Khenobóskion e Tabenesi, onde Pacômio fizera

suas primeiras experiências. Depois dos de Tabenesi e de Pabau, fundou

sucessivamente os mosteiros de Sheneset (que é o nome copta de

Khenobóskion, já citado), de Tmusus (também chamado Moncoso), próximo

do precedente, na margem esquerda do Nilo, e depois, mais ao norte, os de

Tbeu e de Tesmine, perto de Akhmin, enfim, bem mais ao sul, nas cercanias de

Tebas, o de Fnenum. Também fundou, perto de Pabau e de Tesmine, dois

mosteiros de mulheres. Se situarmos por volta de 318 a construção do

primeiro mosteiro, veremos que durante trinta anos Pacômio viveu uma

existência puramente cenobítica. A experiência da solidão, dos túmulos e dos

anjos estava encerrada. A seus olhos, era possível doravante ser um asceta

vivendo no seio de uma comunidade.

* Na verdade, o termo latino coenobium, apresentado pelo autor, é de origem grega,

formado de hoine ("comum") + bios ("vida"), "vida comum". (N. do T.)

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monges usarem um capuz bastante amplo para que cada um pudesse cobrir com ele

o seu prato e comer ao abrigo dos olhares indiscretos, sem ele mesmo saber o que seu

vizinho fazia. Assim, durante as refeições comuns, todos os capuzes baixados se

tornavam, no sentido próprio como no figurado, um testemunho de humildade!

Aliás, como regra geral, Pacômio não gostava dos jejuns demasiado freqüentes

ou exagerados. Num domínio em que é tão delicado traçar a fronteira entre o

orgulho e a humildade, o próprio fato de recusar um bocado de pão ganhava um

sentido equivocado: era por orgulho ou por ascese? E Pacômio chegou logo a exigir

que cada monge comesse em cada refeição "quatro ou cinco bocados de pão para evitar

a vaidade".

No trabalho, a ascese também era regulamentada. A cada monge cabia

trabalhar e fazer, além dos trabalhos de sua casa, uma esteira de juncos

trançados por dia, que ele depositava diante da porta de sua cela. Um dia, por

vaidade, um monge depositou duas. Diante disso, Pacômio trancou-o cinco

meses em sua cela, obrigando-o a fazer duas esteiras por dia.

Obviamente, essas reprimendas sobre a alimentação, o sono, o trabalho

eram só um meio destinado a facilitar a ascese mental do monge, permitir-lhe

dominar sobretudo o homem interior, "matar o homem mundano", segundo a

expressão de um anacoreta. A essas repreensões físicas correspondiam,

portanto, repreensões de outro gênero destinadas a matar a sensibilidade, as

reações afetivas, a individualidade do monge. Por exemplo, o riso era

formalmente proscrito e o silêncio era de regra durante a refeição, no trabalho

e ao longo de todo o dia. "Aprende a calar" era uma das regras essenciais das

comunidades pacomianas. Mas ninguém estava "ao abrigo da língua", de uma

palavra deslocada, de uma frase infeliz e que traía preocupações profanas. Um

dia, Teodoro, o principal discípulo de Pacômio, avistou um monge que

retornava de viagem. "De onde vens?", perguntou-lhe. Pacômio estava

presente. Disse a Teodoro: "Teodoro, apressa-te em controlar teu coração.

Habitua-te a nunca perguntar a alguém de onde vens? ou aonde vais?, a não ser

para saber aonde vai sua alma".

O temperamento dos monges coptas evidentemente se dobrava bem mal

àquela disciplina de ferro. As querelas, as disputas, as lutas

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Os ATLETAS DO EXÍLIO

No entanto, no mesmo momento em que os antigos "resistentes da era

das perseguições descobrem as delícias da colaboração com o poder, eis que

um movimento inverso leva para os desertos e a vida ascética um grande

número de cristãos de todas as condições: camponeses, primeiro, e

foras-da-lei, escravos, pequenos artesãos, depois cidadãos ricos, "gente do

mundo" e mesmo altos dignitários do Império. Em outros termos, ao passo

que uma parte da Igreja tem acesso à história, uma outra parte recusa-a

violentamente, refugiando-se na vida atemporal do deserto. Não se trata aí de

uma simples coincidência. Entre estas duas ordens de fato, há uma relação de

causa e eleito, ressaltada por todos os historiadores — de Ferdinand Lot a

Louis Bouyer. "A Igreja, imensamente ampliada", escreve Ferdinand Lot em La

Fin du monde anüque, "não pode mais permanecer na sociedade dos puros, dos

santos que esperam o fim dos tempos. Identificada ou quase com o 'mundo1, a

Igreja sofre profundamente a influência degradante da vida. Para escapar

dela, uma única via de recurso: viver fora do mundo, artificialmente,

buscando o deserto ou a solidão, enclausurando-se sozinho ou coletivamente.

Não é por puro acaso que o ascetismo eremítico e depois monacal surge no

Oriente no momento mesmo do triunfo da Igreja." Porque o monaquismo é

justamente, como escreve por sua vez Louis Bouyer, "a reação instintiva do

sentimento cristão contra uma falaciosa reconciliação com o presente que a

conversão imperial podia parecer justificar", reação a qual é preciso, para

compreendê-la, "situar no contexto da Igreja constantiniana fazendo a paz

com o mundo"1. Por quê? Porque, antes da conversão do imperador

Constantino, permanecer cristão significava arriscar-se a perder tudo: a vida,

os bens, o emprego. Após a conversão, será possível permanecer cristão

conservando tudo. A fuga para o deserto é, então, uma resposta àquela

sedução nova, à tentação do mundo, do poder e do temporal.

Na perspectiva deste livro, esse fenômeno ganha também um outro

sentido: o fim das perseguições significa, para a sociedade cristã, o fim do

modelo ideal que era o santo-mártir. A necessidade de um novo "modelo" se

faz sentir; através dele aquela sociedade poderá perseguir seu sonho

anti-social. Pois o fim da clandestinidade e o

1. Louis Bouyer, UAscèse chrètienne et le Monde contemporain (Ed. du Cerf).

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OS ATLETAS DO EXÍLIO

E compreende-se também por que tantos escravos buscarão asilo nos

mosteiros e terminarão, eles também, como monges ou eremitas. A tal ponto

que essa fuga para o deserto provocará graves distúrbios sociais e a Igreja terá

de reagir desde o século IV O concilio de Gangres, por exemplo (que ocorreu

em 342), excomungou o bispo Eustátio e seus discípulos por terem

aconselhado aos escravos que abandonassem seu amo e se tornassem ascetas.

Bem depressa, aliás, como era de se esperar, a Igreja tomará a defesa da ordem

social e dos interesses dos amos e dos poderosos. "Nós não permitiremos

jamais", diz um Cânon dos santos Apóstolos do século IV, "coisa semelhante

que cause mágoa aos amos aos quais pertencem os escravos e que semeia o dis-

túrbio nos lares..." Mais tarde, um edito do imperador Valente chega a ordenar

que "sejam trazidos à força os escravos que se escondem entre os monges".

Estas disposições acabaram por influenciar a própria hagiografia, já que um

santo do século IV, Teodoro, "tinha o poder milagroso de prender os escravos

com laços invisíveis que tornavam toda fuga impossível. Se, apesar dessa

precaução, o amo perdia seu escravo, tinha a possibilidade de vir dormir à

noite no túmulo do santo. Esse mostrava em sonho o lugar onde o escravo se

refugiara. Parece bem claro que são Teodoro preferia os amos aos escravos"1.

Assim, por ter suscitado o modelo do santo-anacoreta, atleta do exílio e

novo mártir do deserto, empreendido e desenvolvido ao longo do Nilo as

prodigiosas "sociedades artificiais" que foram os mosteiros pacomianos, o

Egito se tornará bem depressa, a partir do início do século IV, uma "segunda

Terra Santa" onde "o igualitarismo cristão, apoiado nos textos do Novo

1 . Anne Hadjinicolaou, Recherches sur la vie des esdaves dans le monde byzanún

(Institui Français d'Athènes), 1950.

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Testamento, a idéia da Cidade celeste e

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OS ATLETAS DO EXÍLIO

Vimos também no Egito muitos outros solitários. Que poderíamos dizer desses homens admiráveis e dessa multidão infinita que estão nos arredores de Siena, na Alta Tebaida, cuja virtude pode passar por incrível tanto ela se elevou acima da condição dos homens? Pois ainda hoje eles ressuscitam os mortos e caminham sobre as águas como são Pedro...

O fato de estes mosteiros serem longínquos parece ter contribuído muito

para sua lenda. Os desertos do Alto Egito, praticamente inacessíveis aos

viajantes, passavam por conter anacoretas mais prodigiosos ainda que os das

outras regiões do pais, e os relatos que começarão a circular sobre os ascetas, a

partir do século V, estão entre os mais arrebatadores da literatura copta. O

anacoreta se torna, nesses textos, um personagem quase não-humano, que

vive no mais das vezes em meio aos animais e foge até do "cheiro de homem".

Um desses textos, descoberto e traduzido por Robert Amelineau, intitula-se A

viagem de um monge egípcio no deserto, e podemos considerá-lo o modelo do gênero:

Havia um anacoreta cujo nome era Pafnúcio. Falava com os padres que amavam a Deus e eis o que lhes disse: "Sou Pafnúcio e, um dia, concebi no coração o desejo de ir às profundezas do deserto para ver se havia ali algum monge. Caminhei durante quatro dias e quatro noites sem comer nem beber. No quarto dia, cheguei a uma caverna e, antes de penetrar nela, bati à porta, segundo o costume dos irmãos, para que o irmão saísse e eu o pudesse abraçar. Esperei. Bati à porta até o meio da noite: ninguém respondeu".

(Cena típica da vida no deserto. Era um hábito muito freqüente dos

anacoretas: não abrir aos visitantes nem aos discípulos, mas deixá-los bater o

máximo de tempo possível, para experimentar sua perseverância. Alguns

textos falam de discípulos batendo dois ou três dias seguidos!)

Eu disse em meu coração: "Talvez não haja nenhum irmão neste lugar". Entrei na caverna gritando: "Abençoa-me, meu pai!" Quando entrei, olhei ao meu redor: vi um irmão sentado, guardando silêncio. Estendi a mão imediatamente, peguei seu braço. Ele se esfarelou em minha mão. Apalpei todo o seu corpo e vi que ele permanecera assim desde que morrera. Olhei ao meu redor, vi um manto. Quando o apanhei, ele também se desfez em pó. Eu então

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OS ATLETAS DO EXÍLIO

milagrosamente transportada para o coração das areias, com seus tanques,

seus bosques, seus outeiros e seus lavradores.

Muito diferentes, porém, eram aqueles famosos desertos da Tebaida,

que os jansenistas transformaram num oásis de paz e de meditação. No

sentido estrito do termo, a Tebaida era a região circunvizinha de Tebas no

Alto Egito (a mesma em que se estabeleceram os primeiros mosteiros

pacomianos), mas, de fato, todos os autores do século IV e os viajantes

posteriores chamaram de Tebaida as soledades que beiram o Nilo desde

Mênfis até Siena, isto é, todo o Médio e o Alto Egito. Para não confundir ainda

mais uma geografia já demasiado incerta, é este sentido amplo que

conservaremos.

Que eram, pois, esses desertos do Médio e do Alto Egito nos quais tantos

anacoretas se instalarão a panir do século IV? Extensões de pedra, onde só

brotavam algumas palmeiras e um pouco de grama, onde os pontos de água

eram raros; extensões entrecortadas de outeiros ou de colinas a cujos pés os

ascetas eclificarão cabanas com galhos, cavarão simples buracos para se

abrigarem do sol lá onde não existiam túmulos subterrâneos abandonados. Os

que se estabelecerão perto do Nilo viverão como trogloditas nos grandes

rochedos e escarpas que pendem sobre o rio, em grutas que o viajante pode

ver ainda hoje. Escreve Maillet, um viajante do século XVIII:

A começar do castelo do Cairo e até o Alto Egito, milhares e milhares de celas talhadas na pedra se vêem nos lugares mais inacessíveis. Os santos anacoretas só chegavam a estas grutas por trilhas muito estreitas, freqüentemente interrompidas por precipícios que eles atravessam com pequenas pontes de madeira que, retiradas de seu lado, tornavam inacessível a abordagem de seu refúgio. Ali está o que se chama a Tebaida, outrora famosa pelo número prodigioso de eremitas que ela abrigou. Avistam-se muitas dessas grutas e cavernas a partir dos barcos que navegam pelo Nilo. Havia algumas de onde, com longas cordas, se hauria água do mesmo Nilo, quando ele estava em sua altura, vindo o rio então flutuar ao pé dos rochedos escarpados...

Aliás, estas grutas não são unicamente o que se tem chamado Tebaida. Há também aquelas montanhas desertas e incultas que se estendem rumo ao mar Vermelho com três ou quatro jornadas de marcha e que são, propriamente, os desertos da Tebaida. tão célebres na história eclesiástica dos primeiros séculos. É lá que, entre

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Os ATLETAS DO EXÍLIO

com uma esponja e da lavagem das panelas"1. Episódio bastante freqüente na

vida dos santos a partir do século IV, sobretudo na Síria. Há aí uma espécie de

ascese última no sentido de que, ao castigar seu próprio corpo, visa-se de fato

a castigar seu ser social, a excluir-se da sociedade, permanecendo no seio da

sociedade mesma, o que o anacoreta. evidentemente, não pode fazer. Eis por

que, nos séculos seguintes, quando este tema atingir sua precisão, ele situará

os "santos simuladores", como poderíamos chamá-los, não mais no deserto

nem mesmo nos mosteiros, mas em plena cidade (como Marcos o Louco, em

Alexandria, ou Simeão Slos, em Antioquia) ou mesmo no seio da própria

família (como santo Aleixo).

m %t m

Os anacoretas disseminados nas grutas situadas ao longo do Nilo

permaneceram anônimos por mais tempo. Em razão primeiramente de seu

afastamento — alguns se retiravam em locais inacessíveis ou em túmulos

subterrâneos — e porque, no mais das vezes, esses anacoretas preferiam fugir

dos visitantes a ter de recebê-los. É um fenômeno bastante lógico, e os maiores

anacoretas não são necessariamente os mais conhecidos. E mesmo certo que

em meio àquela multidão de ascetas dos desertos do Egito tenha havido

alguns que atingiram uma perfeição suficiente para, de certa forma, "fechar o

círculo", isto é , renunciar à própria santidade2. Quanto aos outros, ou seja,

aqueles cujo nome e cujas proezas ascéticas chegaram até nós, é óbvio que os

mais famosos não foram necessariamente os mais santos. O clima espiritual

bem particular do Oriente cristão no século IV conduziu certos anacoretas a

uma espécie de exagero ascético, a uma ostentação desconsiderada de

mortificações e de macerações, onde o rigor e a sinceridade nem sempre

estavam no comando. Mas, por outro lado, há que se dizer que é muito difícil

julgar, a vinte séculos de distância, a experiência de homens que viveram

quarenta ou cinqüenta anos na solidão. Assim, que o leitor não se engane. Em

todos os exemplos que

1. Não tentei repetir essa experiência.

2. Faremos uma descrição dessas anacoreses um pouco mais adiante, a propósito da vida de Macário o Antigo.

1 1 1

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OS ATLETAS DO EXÍLIO

nos campos egípcios, já que Ruíino fala, em torno de Hermópolis Magna, de

nove ou dez burgos cheios de pagãos onde os demônios eram adorados com superstições ímpias e uma paixão estranha [trata-se decerto de um culto de Díoniso-Osíris], pois tinham um templo de maravilhosas dimensões, no meio do qual havia um ídolo que os sacerdotes — acompanhados de todo o povo — apanhavam e levavam em torno destes burgos à maneira das bacantes e celebravam cerimônias sacrílegas para obter a chuva do céu.

De fato, o "milagre" realizado por Apoio é só um episódio da luta cada

vez mais violenta que oporá, na segunda metade do século IV, os cristãos aos

pagãos. Uma geração mais tarde — quando o paganismo for oficialmente

proibido em todo o Império —, veremos monges cristãos, comandados por

Canúcio ou Macário de Thu, pilhar os templos pagãos, incendiá-los, quebrar

os ídolos e, às vezes, massacrar na mesma ocasião o pessoal do templo. No

tempo de Apoio, na falta de poder usar de tais violências, os cristãos se

contentam em massacrar os pagãos ou "neutralizá-los" simbolicamente, mas o

"milagre" aqui parece-se demais com o que será, em seguida, a história real,

para não ser pura e simplesmente senão a expressão literária dos desejos in-

conscientes dos cristãos. Sem forçar demais a análise desse "milagre"

aretológico, ressaltemos que se trata nitidamente de um milagre "solar"

(multidões de pagãos imobilizados e queimados pelo sol) que foi talvez

atribuído a santo Apoio em razão de sua homonímia com o antigo deus solar

dos gregos.

Um pouco mais ao norte, perto de Heracleópolis, vivia certo Pafnúcio

cuja vida era tão santa, escreve Rufino, "que olhavam para ele menos como um

homem que como um anjo". Mas... atenção! Aqui de novo as aparências

enganam. Um anjo, Pafnúcio? Pode até ser. Após anos de permanência no

deserto, ele mal havia se elevado na escala das virtudes acima de certo músico

de Heracleópolis (como lhe revela um anjo — este sim, verdadeiro — a quem

ele cometera a imprudência de fazer a pergunta). E Pafnúcio redobra seus

jejuns e suas orações. "Em que ponto estou agora?", pergunta ele ao anjo

alguns anos depois. "Como aquele fulano da aldeia mais próxima", responde o

anjo. E Pafnúcio, de novo, redobra seus jejuns e suas orações. Pergunta uma

terceira vez ao anjo: "Em que ponto estou agora?" "Como aquele

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ditou ver, conforme sua imaginação, restos de gigantes mumificados ou

grandes veleiros petrificados no fundo dos mares.

"Encontram-se ali", escreve Coppin, "pedaços de ossos humanos que

mudaram sua natureza para a das rochas. Eles nada têm de reconhecível além

da forma, mas a quantidade em que se encontram não deixa dúvidas de que

tenham sido ossos verdadeiros."

Um século depois dele, Maillet percorreu por sua vez a região e

escreveu: "É na rota desse canal (o canal do Faium) que se achava o deserto de

são Macário c aquele vale chamado Baharbalaama, termo árabe que significa

mar sem água, porque o mar outrora encheu esse vale. Isso ainda se reconhece

pela quantidade de embarcações que encontramos petrificadas com seus

mastros e que, provavelmente, tinham naufragado ali no tempo em que a

superfície do mar cobria com suas águas o golfo. Conserva outra prova

incontestável dessa origem

nas conchas marinhas de que suas margens pedregosas estão carregadas. É no

meio desse deserto horrível e estéril que se encontra ainda

hoje o mosteiro de são Zacarias e dois ou três outros habitados por alguns

religiosos coptas. É a esse pequeno número que estão reduzidos hoje aqueles

mosteiros famosos que povoaram aquelas soledades no tempo em que o Egito

era cristão"1.

Ossadas humanas, barcos naufragados... Os viajantes dos séculos XVII e

XVIII tinham a imaginação assombrada pelos desastres humanos. Rufino, que

percorreu esses desertos no século IV, na época em que os anacoretas

começavam a se multiplicar ali, interpretou de modo bem diferente a estranha

atmosfera do lugar:

Viemos em seguida para a Nítria, que é afastada de Alexandria cerca de quarenta milhas e que é o lugar mais célebre de todos os lugares monásticos do Egito. Tira seu nome de um burgo que é bem próximo, onde há grande abundância de salitre, e creio que a Providência divina assim o permitiu, pois ali seria preciso um dia lavar os pecados dos homens tal como nos servimos do salitre para lavar as manchas das roupas.

liis-nos de volta à nossa atmosfera familiar, a do século IV, onde a

necessidade de símbolo é tão grande que o próprio salitre se torna

"aretológico" e sinônimo de princípio purificador.

1 . Maillet, Description de VEçypte (1735).

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os pecados dos outros. Eu os ponho à frente para só olhar para eles." E os anacoretas mudaram de assunto.

m * #

Na extremidade oriental do Wadi-an-Natrun, a uns quinze quilômetros

mais ao sul, o salitre desaparece pouco a pouco, o solo se faz menos duro.

Deixa-se cavar mais facilmente, de modo que numerosos ascetas ali cavaram

buracos — cobertos com ramos de palmeiras ou com juncos, para se

protegerem do sol — ou se instalaram debaixo da terra, em cavidades tão

estreitas que mal era possível se mexer lá dentro. Era o famoso deserto das

Celas (em grego: feeiíia), onde Paládio passou três anos como discípulo de

Macário o Jovem. Escreve ele:

Em meio àquelas celas, algumas não tinham qualquer abertura, salvo um buraco para se escorregar dentro, pois se situavam no deserto interior, onde não se admitiam visitantes. Era nessas que Macário morava durante a Quarentena. Eram cavernas escuras situadas sob a terra, como tocas de hienas, e eram tão estreitas que nem mesmo era possível estender os pés.

É nesse reduto que Macário o Jovem (assim chamado para distingui-lo

de seu homônimo Macário o Antigo) vinha mortificar-se todo ano durante

quarenta dias, por ocasião da Quaresma. Em seguida, ele regressava para uma

das outras celas, mais espaçosas, que possuía no deserto e onde recebia os

peregrinos que vinham vê-lo de todos os cantos do mundo romano.

Ao contrário dos outros anacoretas, que pareciam no mais das vezes

feras de formas humanas, esse Macário era

pequeno, muito fraco e muito delicado. Só tinha barba nos lábios e muito pouco no de cima, pois suas extremas austeridades impediam que ela lhe crescesse no queixo.

Extremas austeridades, diz Paládio. Perguntamo-nos se o termo

extremas não é um eufemismo quando se sabe, por exemplo, que, para vencer

o sono, Macário passou vinte dias e vinte noites ao ar livre, em pleno deserto,

queimado de dia pelo sol, transido de frio à noite, a tal ponto que, ao cabo

desses vinte dias,

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inipondo-se privações excessivas, e tornar-se igualmente presa dos demônios.

Algumas regras ascéticas tornaram-se, portanto, necessárias. As regras — e

esse é seu papel — concretizam e tranqüilizam. Elas dizem ao asceta o que é

bom e o que é mau e, se ele as respeita, fica mais seguro, no seio desse

universo ambíguo por onde avança um pouco como um cego, de estar no

caminho certo, que leva aos anjos e ao céu.

Foi evidentemente acerca do alimento e dos jejuns que tais regras

primeiro se estabeleceram. Sabemos por Cassiano que a maioria dos

anacoretas se impunham, por exemplo, só comer sete azeitonas por dia. Pois é

preciso saber muito bem, mesmo e sobretudo a propósito de um número de

azeitonas, onde começa e onde termina o pecado. Assim, o asceta estabelece: se

comer seis azeitonas em vez de sete, é um pecado de orgulho e, se comer oito,

um pecado de gula.

Conceder ao alimento tamanha importância simbólica poderá parecer

exagerado, mas não levar isso em conta seria ignorar o papel essencial que ele

tem desempenhado na maioria das religiões c das sociedades como símbolo

dos estados espirituais, das relações sociais e até das experiências místicas

mais elevadas. Este símbolo é lido claramente nas religiões primitivas ou

antigas, mas o cristianismo está longe de tê-lo ignorado. Quando o etnólogo

inglês Richards escreve, por exemplo, que, nas sociedades arcaicas, "o

alimento é a fonte das emoções mais intensas, ele fornece a base de algumas

das noções mais abstratas e das metáforas do pensamento religioso... Para o

primitivo, o alimento pode tornar-se o símbolo das experiências espirituais

mais elevadas, a expressão de relações sociais essenciais..."1, ele coloca uma

evidência e um princípio válidos também para os ascetas dos desertos do

Egito. O pão, para o asceta, podia passar como o "reflexo" da alma. e

encontramos uma ilustração impressionante disso nesse episódio da vida de

um anacoreta que João do Egito contou a Paládio. Esse anacoreta era de fato

tão perfeito que Deus o havia desobrigado

da preocupação que dizia respeito a seu alimento e lho fornecia por sua Providência. Quando, impelido pela fome, ele entrava em sua caverna, encontrava sempre sobre a mesa um pão de um gosto

1 . Richards, Hunger and Work.

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Um dia em que Macário estava em sua cela, olhou para a direita e viu. Eis que um querubim de seis asas e olhos inumeráveis estava perto dele. E, quando apa Macário começou a olhá-lo assim e a dizer: "Que é isso? Que é isso?", então, pelo esplendor e pela claridade de sua glória, ele caiu sobre o rosto, o santo apa Macário, e ficou como morto.

A sobriedade desse texto copta da Vida de Macário faz dessa passagem um

episódio quase único na literatura cristã do Egito. Nem as visões de Antão, que são

muito literárias e decerto inventadas por Atanásio, nem as de Pacômio, que em

grande parte são acréscimos tardios, têm este caráter conciso, direto, este acento de

surpreendente sinceridade. O homem suporta com dificuldade a visão dos anjos e

dos querubins, entendamos essa manifestação fulgurante de certos estados

interiores devidos aos jejuns e que o asceta não consegue crer que vêm do fundo de

si mesmo. Daí por que o medo, a angústia arrebatam o anacoreta diante da visão,

diante da voz daquela "coisa" que de repente se põe a "estar lá" e a falar.

Na noite seguinte, eis que todo o lugar se tornou luminoso como à hora do meio-dia nos dias de verão, e apa Macário soube que era o querubim que voltava para ele. A princípio, aquela Virtude ficou algum tempo sem lhe falar, para que ele não se amedrontasse...

Depois, quando o asceta foi pouco a pouco se habituando ao brilho e à

presença do querubim, a "Virtude" o transportou em êxtase para o deserto de Skete

e lhe disse que ali se instalasse.

Macário parte para Skete, descobre os lugares como os havia visto com o

querubim, avista uma colina onde cava uma gruta, apanha juncos para fazer

um leito, cava um poço para sua água e se instala. Mas alguma coisa o

atormenta nesse deserto. Os demônios, primeiramente, que, cada vez que ele

se põe a orar, vêm "para cima de sua caverna como uma multidão de

cavaleiros que fingem travar combates uns contra os outros", enquanto outros

"ficam perto da porta e fazem bolas de fogo que lançam dentro da caverna,

onde explodem" (não é uma admirável descrição demoníaca da tempestade no

deserto?). E, depois, seus discípulos o atormentam, seus discípulos que já

afluem até ele, aos quais

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* * *

Quem quer que tivesse, àquela época, seguido Paládio e Rufino em sua viagem

ao deserto de Skete teria encontrado ali, junto com eles, homens singulares. Uma

espécie de teatro inaudito é encenado naqueles ermos, um teatro em que cada um dá

a impressão de interpretar com minúcia, pontualidade, fervor, um papel eterno.

Eis no horizonte um anacoreta todo negro (havia negros, vindos da Núbia e da

Etiópia, que se tornavam anacoretas) e que caminha arrastando, amarrados às suas

costas, quatro indivíduos de aspecto suspeito. Não nos enganamos: é mesmo Moisés

o Etíope, ex-salteador, ex-bandido, ex-ladrão, que um dia se tornou eremita e que

pôs a serviço de Deus a mesma brutalidade que tinha antes aplicado a serviço do

Diabo. Esses indivíduos de aparência duvidosa que ele carrega às costas são quatro

antigos "colegas" de roubo e bandidagem que ele fez prisioneiros e arrasta até a

"igreja" de Skete para convertê-los ali. Sua Vida acrescenta que ele "converteu assim

até setenta e cinco ladrões, que se tornaram seus mais fervorosos discípulos".

Mas aqui está, para variar, um anacoreta que é todo doçura. Doce

demais mesmo: passa seus dias e suas noites atravessando o deserto a chorar.

Por que chora? Por si mesmo, pelo mundo? Não, diz Paládio, ele "chora pelo

pecado original e pelas [altas dos primeiros homens". É Bessarião, o eremita

errante, aquele que "nunca entra em qualquer morada habitada". Dorme cm

pleno deserto, onde realiza milagres que fazem sonhar: detém o curso do sol,

ressuscita os mortos (por engano, aliás, pensando que são simples doentes,

pois, senão, ele não ousaria nunca ressuscitar um morto, por modéstia),

atravessa o Nilo caminhando sobre a água e "sente a água até o tornozelo, mas

logo abaixo ela é sólida". A única vez de sua vida em que entrou numa aldeia,

Bessarião viu tantos pobres que deu seu manto ao primeiro, a metade de sua

túnica ao segundo, a outra metade a um terceiro, e se viu no meio da praça da

aldeia,

onde ficou totalmente nu e teve que correr a sentar-se sob um pórtico, cruzando os joelhos e cobrindo-se com as mãos, sem que lhe restasse outra coisa além do Evangelho debaixo do braço!

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O FIM DOS ÍDOLOS

Já no século III, Clemente de Alexandria escrevia em seu Proíréptico:

Aqueles que alimentam e guardam os macacos têm constatado com espanto que esses animais não se deixam enganar por imagens de cera e de barro, ainda que revestidas de roupas de donzela. Sereis vós então piores que os macacos ao testemunhardes respeito por estátuas de pedra ou de madeira?

E acrescenta:

Como foi possível divinizar assim estátuas, objetos insensíveis? Não consigo compreendê-lo e lastimo a loucura desses infelizes que por aí se extraviaram. Certos animais não têm todos os seus sentidos, como os vermes e as lagartas, outros são cegos ou enfermos, como as toupeiras e os musaranhos. E, no entanto, esses animais diminuídos valem mais que estátuas estúpidas. A ostra não tem nem visão, nem audição, nem voz, mas ela vive, cresce, sofre as influências da lua. As estátuas, essas, são impotentes, inertes, insensíveis.

E um século mais larde santo Atanásio. o autor da Vicia de Antão,

escreverá, por seu turno, em seu tratado Contra os pagãos:

Alguns desceram tão baixo em seus pensamentos e obscureceram de tal modo seu espírito que inventaram seres que absolutamente não existem e que não vemos na criação para fazer deles deuses. Misturam os seres racionais com os seres sem razão. Põem junto naturezas dessemelhantes e as honram como divindades, como aqui esses deuses com cabeça de cão, com cabeça de serpente ou de asno...

É, portanto, como se vê, a irracionalidade aparente dos cultos egípcios,

essa inconcebível união, na divindade, do humano e do animal

que chocava a razão cristã1. Evidentemente, isso é julgar o paganismo

egípcio de maneira superficial, confundir a divindade com sua forma

1 Pela razão muito simples de que Deus criou o homem a partir do barro, não pode haver nenhuma ligação possível entre o domínio humano e o domínio animal aos olhos de um cristão ("eles juntam naturezas dessemelhantes"). Para os pagãos, ao contrário, nada separava fundamentalmente o humano do animal. Concepção natural do homem — como ápice da evolução animal — que se viu verificada no século XIX. Não se pode mais ficar chocado hoje em dia por ver assim expressa a unidade orgânica das espécies vivas. 143

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pagãos não conseguem ver — nos valores do adversário — nada além de seus

aspectos mais externos, mais deformados, mais arbitrários.

"Quereis ver aqueles que rendem um culto aos ídolos?", escrevia Clemente de

Alexandria no seu Pedagogo.

Eles têm os cabelos sujos, as vestes imundas, em farrapos, ignoram completamente o banho, suas unhas compridas se assemelham às garras das feras. Provam com seu exemplo que seus santuários não passam de túmulos e prisões. Gente assim chora os deuses mais do que os adora...

Descrição justíssima, mas na medida em que ela se aplica palavra por

palavra... aos futuros anacoretas do deserto! Que teria dito Clemente de

Alexandria se tivesse avistado Onofre, Pafnúcio, Afu o Búfalo vestidos

somente com seus cabelos, se tivesse encontrado João do Egito, recluso em sua

prisão na montanha, ou Bessarião chorando no deserto pelo pecado original?

E todos aqueles monges, que são vistos "vestidos de hábitos negros e

lúgubres" nas ruas das aldeias do Egito ou mesmo de Alexandria, sobre os

quais pergunta-se com bom motivo o autor pagão Zósimo: "de quem ê o luto

que carregam?"

m m &

A história do fim dos ídolos seria incompleta se não mencionássemos

aquele que, a partir do século V, teve nela a parte mais importante: Canúcio2

de Atripé. Canúcio é uma das figuras mais estranhas e mais cativantes do

cristianismo egípcio, e sua Vida, escrita por seu discípulo Visa, é uma das

obras-primas da literatura copta. Ela permite — melhor ainda que a de Antão

ou a de Pacômio — seguir de perto a incrível aventura que foi o monaquismo

copta: uma aventura cujo ápice e cujos limites são marcados precisamente pela

vida e obra de Canúcio.

Ele nasceu no Alto Egito, na aldeia de Skhenalolei (hoje Geziret Shandanil), ao

norte de Akhmin, cm 333. Seus pais são pobres e,

2Em francês, o nome aparece grafado Chénouti, decerto adaptação da forma original copta, que desconhecemos. Optamos pela forma latinizada Canúcio, única abonada em língua portuguesa, que pudemos encontrar na Grande Enciclopédia Delta-Larousse, vol. 4, verbete "copta". (N. do T.) 147

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O FIM DOS ÍDOLOS Material com direitos autorais

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se revelou — como ele mesmo confessa — um "manipulador" de visões e de milagres

tão hábil quanto um manipulador de porrete. Aliás, não podia fazer diferente:

nenhum monge, mesmo copta e mesmo discípulo de Canúcio, teria aceitado levar

porretadas durante anos sem ter ao menos a esperança de entrar um dia no Reino

dos Céus. O uso da violência e do porrete implicava a confiança no futuro e no além,

e Canúcio se encarregou de fazer com que os monges tivessem confiança. Um dia,

por exemplo, ele manda vir um camponês de uma aldeia distante, veste-o

suntuosamente, manda-o ler os Salmos em plena igreja e quando os monges,

extasiados, lhe perguntam: "Quem era esse desconhecido?", Canúcio responde: "Era

David em pessoa que veio ler seus Salmos!"

De outra feita, eis os monges acordados em plena noite pelo "chamado". Todos

acorrem à igreja: lá encontram três personagens de rosto encoberto que dão a volta

na igreja em silêncio antes de se perderem na noite. E Canúcio lhes explica: "Eram

são João Batista, Elias e Eliseu vindos do céu para ver como vós vivíeis!"

Em outra ocasião ainda, como um monge lhe perguntasse por que ele mandava

ler o Apocalipse todos os sábados à tarde, Canúcio respondeu: "Porque um anjo me

disse recentemente: 4No céu, nós lemos o Apocalipse todos os sábados à tarde!1"

Assim, toda a autoridade espiritual de Canúcio repousava no duplo uso

das visões e do porrete. O que não quer dizer que agisse como puro charlatão.

Evidentemente, ele recorre um pouco amiúde demais ao testemunho do Céu,

de Jesus Cristo e de seus anjos toda vez que se trata de punir ou espancar um

monge, mas é de se perguntar se, às vezes, ele próprio não acredita naquilo.

Quantas vezes, nos textos que relatam sua vida, não encontramos frases ou

parênteses como:

"Um dia em que Canúcio estava sentado numa pedra conversando com Jesus...",

ou então:

"Um dia em que Canúcio passeava pelo deserto em companhia de Jeremias...", ou mesmo: "Como a conversa de Canúcio [com o profeta EliasJ não acabava mais, decidi bater à porta de sua cela..."

Vem o momento em que, de tanto invocar todos os dias o testemunho,

as palavras ou a presença dos anjos e dos profetas, acaba

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8.

ica^ mais perto do céu

Simeão viveu como um anjo num corpo mortal e, violentando a natureza que tende para a terra por seu próprio peso, se elevou entre a terra e o céu, dialogou com Deus e lhe apresentou as súplicas dos homens.

Vida de são Simeão o Estilita

X s motivações que estão na origem do anacoretismo y \ e do

monaquismo foram idênticas em todos os países do Oriente Médio; uma

mesma idéia do destino humano, uma mesma maneira de encarar o contínuo

combate do homem contra o mundo e o Mal levaram os homens a partir para

o deserto. Em todo o Oriente Médio, anacoretismo e monaquismo deveriam,

portanto, assemelhar-se também em suas formas, ao longo dos séculos que os

viram nascer. No entanto, os ascetas, os monges e os santos que vamos

encontrar na Palestina e na Síria diferem sensivelmente de seus modelos

egípcios. É que uma empresa dessa ordem — por mais original que fosse na

aparência — lança suas raízes no passado, em tudo o que o passado lega de

imagens, de símbolos, de modos de sensibilidade particulares.

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FICAR MAIS PERTO L>O CÉU

cie santo Aleixo, o "homem de Deus", que parte de casa para viver no deserto, depois

regressa para a própria família e vive até a morte em sua casa, como um doméstico,

sem que nem a mãe nem a mulher o reconheçam.

Vê-se de imediato o significado desse gênero de relato: são. antes de

tudo, contos de "iniciação", nos quais o herói, após uma série de provações

(longa temporada nos mares ou no deserto), regressa transformado

interiormente. O homem novo substituiu o homem velho, e o conto traduz

simbolicamente essa metamorfose por uma mudança na aparência do herói:

ele se torna tão diferente que ninguém, mesmo sua própria mãe ou sua

mulher, o pode reconhecer. Mas, ao passar do paganismo para o cristianismo,

o conteúdo do conto modificou-se sensivelmente: nas versões pagas, o tema

iniciático alia-se muito freqüentemente ao do retorno do vingador: é para

vingar-se dos pretendentes de Penélope que Ulisses não se faz conhecer, ou

para vingar seu pai Agamêmnon que Orestes, após vinte anos de ausência, se

apresenta diante da mãe Clitemnestra com a aparência de um viajante estran-

geiro: a mudança de aparência (seja ela devida ao tempo ou a um disfarce)

significa antes de tudo que o herói adquire um poder novo, uma força física

nova, que assegura seu triunfo sobre seus inimigos. No contexto cristão, a

lenda ganha evidentemente um alcance moral. Os inimigos que Aleixo e

Atanãsia têm de combater se "interiorizam": não são mais os pretendentes ou

os usurpadores, mas as próprias tentações do mundo, os mil rostos familiares

que esse mundo ergue cm torno deles e neles mesmos: uma mulher, um

marido, seres outro-ra ternamente amados. A força que eles adquirem na

solidão é uma força nova que lhes permite ficar tão "mortos" para o mundo

que Aleixo pode conviver durante anos com sua ex-mulher e Atanãsia com

seu ex-marido como se um e outro fossem estrangeiros a tudo, inclusive ao

seu próprio sexo.

Esse tema eminentemente cristão do estrangeiro no mundo se encontra

com outros elementos lendários e aretológicos na Vida de santa Maria

Egipciaca. Vemos aí o conhecido tema da pecadora que se torna uma santa

(como Tais), o da mulher tão estrangeira ao seu sexo que é tomada por um

homem (como Atanãsia), enfim, o da santa que, a exemplo de Paulo de Tebas,

sobrevive graças aos dons de Deus, encontra pouco antes da morte um

visitante que revela à posteridade sua incrível existência e morre, sendo

enterrada por leões.

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PADRES DO DESERTO

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de duas rodas, tendo cada uma dois côvados de diâmetro que ele ligou, com pregos e dobradiças, a ripas bastante afastadas umas das outras, e que pendurou em três grandes varas. E eu o encontrei sentado nesse espaço, que tem somente dois côvados de altura e um de largura, onde ele já passou dez anos inteiros, embora não consiga erguer a cabeça, que é forçada a tocar seus joelhos.

Passar a vida agachado dentro de uma árvore ou de uma jaula, com a

cabeça baixa e o corpo dobrado ao meio, não pareceu ainda o bastante a alguns

ascetas para garantir sua salvação. A essas reclusões inauditas eles

acrescentaram alguns "requintes"! Deixemos de lado os jejuns, que eram

evidentemente dos mais austeros e beiravam às vezes o masoquismo puro e

simples, como o desse são Sabino que, não contente de ficar imóvel em sua

cabana,

afligia seu corpo com austeridades extraordinárias. Pois não comia nem pão nem outra coisa que se come com pão e vivia somente de farinhas, que punha para molhar em água e deixava assim misturadas durante um mês, para que elas cheirassem mal e tivessem gosto de podre.

Um dos refinamentos mais corriqueiros consistia em carregar correntes de

ferro, às vezes pesadíssimas, que tornavam extremamente penosa a posição ereta.

Santo Acépsimo, por exemplo, estava carregado de tantos ferros "que era obrigado,

quando saía para beber, a andar de quatro"! De tal modo que, numa tarde, um pastor

tomou-o por um lobo e por um triz não lhe atirou uma pedra. E quando, na manhã

seguinte, foi procurar o santo para pedir-lhe perdão,

ele soube que tinha obtido seu perdão não por alguma palavra que o santo lhe disse, mas porque o ouviu remexer as mãos na sombra de sua cabana.

Um outro, santo Eusébio, carregava em geral

vinte libras de correntes de ferro e acrescentou as cinqüenta que levava o divino Ágape e as oitenta que levava o grande Marcião e passou três anos com essas correntes no meio de um lago seco.

Mesmo as mulheres anacoretas (havia-as em maior número na Síria que

no Egito) não hesitavam em carregar correntes. Santa Marana

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FICAR MAIS PERTO DO CÉU

fica exposta aos olhos de todo o mundo, homens e mulheres, sem no entanto olhar no rosto de ninguém nem deixar que ninguém veja o seu, pois seu vestido a cobre totalmente. Sua voz é muito fraca e pouco distinta, nunca fala sem derramar lágrimas, o que sei por experiência própria, pois, muitas vezes, tendo pegado minha mão e levado a seus olhos, ela a molhava de tal sorte que a mão ficava toda gotejante'.

A stasis consiste, em suma, em multiplicar as tentações possíveis para

melhor superá-las, em instalar-se no coração do mundo para melhor recusá-lo

e em fechar os olhos do corpo e da alma diante dos esplendores mais

acessíveis. Assim, santo Elpídio, estacionário célebre na Palestina, instalado

perto de Jerico, na montanha de Luca,

nunca se voltou para o lado do ocidente, embora a entrada de sua caverna ficasse no pico da montanha, bem como nunca olhou para o sol nem para as estrelas que aparecem após o crepúsculo e das quais não viu uma só durante vinte anos.

A menor distração, o menor olhar lançado sobre esse mundo tão

próximo e tão atraente, são impiedosamente punidos: um dia em que santo

Eusébio, o fundador do célebre mosteiro de Teleda, perto de Alepo, estava

sentado com Amião sobre um rochedo, ocupado em ler e comentar o

Evangelho, ele foi distraído, por um curto instante, "por camponeses que

aravam a terra numa planície abaixo deles", de tal modo que não pôde

responder a uma pergunta de Amião. A partir desse dia, e por causa dessa

simples distração,

e!e proibiu que seus olhos jamais contemplassem aquele campo nem gozassem do prazer de considerar a beleza do céu e dos astros, c não lhe permitiu estender o olhar para além de uma pequena trilha de um palmo de largura que usava para dirigir-se a seu oratório. Viveu assim durante mais de quarenta anos.

E, para ficar seguro de nunca olhar para o céu,

e/e cingiu seus rins com um cinturão de ferro, pôs um grosso colar no pescoço e o prendeu àquela corrente com um outro pedaço de ferro, para se obrigar a olhar sempre para a terra e se punir por ter outrora contemplado aqueles lavradores!

1. Esse detalhe mostra, apesar de tudo, o caráter ambíguo da stasis exercida no meio

da multidão: ascese implacável ou exibicionismo?

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PADRES DO DESERTO

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última coluna — sobre a qual morreu, em 459, aos setenta anos de idade —,

em Qala'at Semaan, tinha cerca de 25 metros de altura, "pois o desejo que

tinha de voar para o céu fazia com que se afastasse cada vez mais da terra".

A base dessa coluna existe ainda hoje na Síria, na mesma localização

onde morreu o santo, nas proximidades da imensa basílica que se edificou em

sua memória e da qual importantes vestígios ainda existem. Essa coluna

terminava, em seu topo, numa plataforma de quatro metros quadrados de

superfície, o que mal permitia que o santo se deitasse. De fato, passava todos

os seus dias de pé — imóvel — a orar ou a fazer adorações e dormia sentado,

apoiado na pequena balaustrada que fez construir ao longo da plataforma,

para não cair em caso de vertigem. Acontecia-lhc mesmo — diz uma

passagem de sua Vida escrita por seu discípulo Antônio — de passar os dias

de pé sobre uma perna só. Em tais condições, os membros anquilosados do

asceta se cobriram de chagas e de úlccras que apodreceram rapidamente, já

que Simeão ficava, dia e noite, exposto a todas as intempéries. Assim, num

inverno, a coxa de Simeão apodreceu de tal sorte

que dela saía uma quantidade de vermes que caíam de seu corpo sobre seus pés, de seus pés sobre a coluna, e da coluna no chão, onde um jovem chamado Antônio, que o servia e que viu e escreveu tudo isso, recolhia por ordem dele os vermes caídos na terra e lhos devolvia no alto, onde Simeão os recolocava na chaga dizendo: "Comei o que Deus vos deu".

Quando não passava seu tempo recolocando os vermes nas chagas,

Simeão, durante o inverno,

ficava exposto à vista de todo mundo, como um espetáculo tão novo e tão maravilhoso que enchia todos os espíritos de espanto. Ora ele se abaixava para adorar a Deus, ora permanecia de pé o mais longo tempo possível O número de suas adorações era tamanho que muitos se divertiam em contá-las. Um desses que me acompanhavam contou um dia até 1.244, depois do que se cansou de contar.

E Teodoreto acrescenta que durante suas adorações

Simeão consegue tocar com sua testa os dedos dos pés, pois, visto que sô come uma vez por semana, seu ventre é tão chato que não tem nenhuma dificuldade em se curvar!

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9.

O ros\o de Satã

Quando são levados aos Infernos, os homens começam a gritar: "Ai de mim que não conheci o Deus que me criou", e logo param, pois não podem mais falar, por causa do calor e da grande escuridão do lugar. Não se reconhecem mais um ao outro em razão das trevas e da angústia que os arrebata.

O Inferno, texto copta

m dos paradoxos da vida no deserto — onde o asceta deveria purificar-se

da ilusão, segundo o preceito de Evágrio Põntico — faz com que, na

realidade, ele viva ali num mundo de contínuas ilusões. O deserto é um lugar

abstrato, um lugar de provação, mas ainda é mais do que isso: um pano de

fundo — como que virgem, infinito —, onde os espetáculos e os combates do

céu, entre os anjos e os demônios, prosseguem até na terra. Para purificar-se

da ilusão, o asceta tem de fazer tábua rasa dos valores, dos sistemas, mas

lambem das formas do mundo profano. Assim, todas as aparições do deserto

— essas criaturas antropóides que se misturam aos eremitas, essas visões que

sc fazem e desfazem diante de seus olhos, esses monstros que vêm

assombrá-los — são formas novas, nada ou quase nada devendo às do mundo

diário. É por isso que um tema como o

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U

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O ROSTO DE SATÃ

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objeto recurvado, algo assim como um anzol, e arrancam do corpo a alma infeliz: constata-se que ela é negra e tenebrosa. Depois eles a prendem à cauda de um cavalo-espírito.

Observemos logo essa maneira de extrair a alma do corpo: com o auxílio

de um anzol introduzido na boca, análoga, decerto, no espírito dos coptas,

àquela que utilizavam os antigos embalsamadores para extrair o cérebro do

morto pelas narinas. A alma, para o copta, não sai voluntariamente do corpo: é

preciso arrancá-la. Mas, sobretudo, a idéia que vem à luz numa outra

passagem da Vida copta de Teodoro (da qual foi extraído o texto acima) é que

qualquer um que não sofreu nessa terra é condenado a sofrer no além, que

cada sofrimento suportado nesse mundo purifica a alma do homem. Como

essa contabilidade entre o sofrimento e a purificação nem sempre é muito

nítida e como nem todos os sofrimentos se eqüivalem, o que ocorre com

aqueles que sofreram só um pouco e não têm direito imediato ao paraíso? Ora,

os anjos implacáveis fazem-nos sofrer em seu leito de agonia, antes de sua

morte, para que a "conta" seja regularizada e possam ir direto para o céu, pois

a alma desses homens "é como um prato cozido que ainda precisa de um

pequeno suplemento de cozimento antes de ser comido".

A alusão é clara: é nessa terra que é preciso "cozinhar" se se quiser evitar o

cozimento eterno do inferno.

Mas alguns chegavam ao limiar da morte num tal estado de "frescor"

que seu caso era sem apelo e eles "iam direto para o fundo do inferno, para os

tormentos".

Que tormentos? É fácil imaginá-los: um fogo eterno, um calor tão

insuportável que os condenados, tomados de espanto, perdem o fôlego e a

voz. Obviamente, os castigos variavam conforme as faltas dos culpados, c os

coptas deram prova, na descrição dos diferentes castigos infernais, de uma

imaginação notável, como atesta esse excerto da Vida copta de Pacômio. De

fato, um dia,

aconíeceu que nosso pai Pacômio foi arrebatado por ordem do Senhor para fazê-lo contemplar os castigos e os tormentos pelos quais são torturados os filhos dos homens. Foi arrebatado no corpo? Fora do corpo? Em todo caso. Deus sabe que ele foi arrebatado.

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O ROSTO DE SATÃ

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os personagens até então diferentes de Satã, de Lúcifer, da Serpente e do Dragão. O

Diabo "nasceu" durante os primeiros séculos do cristianismo, é quase

contemporâneo dos primeiros anacoretas do deserto. É o que torna preciosos seus

testemunhos a respeito dele — e o que explica também que sua visão tenha

finalmente prevalecido até os dias de hoje.

Diabo complexo, evidentemente, possuidor de personalidades e de

funções múltiplas, já que é um aglomerado de concepções hebraicas (Satã,

Lúcifer, a Serpente tentadora), elas próprias tributárias da mitologia

babilônica, de concepções gregas (daimon e diabolos) e egípcias (os n'ta\

espíritos maus, fantasmas, aparições que nada mais são que as antigas

divindades pagas do Egito). É bem assim que ele aparece na literatura do

deserto, é bem assim que ele vem tentar o asceta: como um daimon, um

espírito habitante das zonas inferiores do ar, em torno da terra, como um

satan, um Adversário em que se acham reunidas todas as forças de oposição

ao poder de Deus, como um n'ter, enfim, um fantasma aterrorizador e

carrasco. Demônio, adversário e fantasma, essa multiplicidade de naturezas

explica a multiplicidade das funções do Diabo: ser sedutor e tentador,

representando todo o atrativo do mundo e da beleza profanos, mas também

ser monstruoso — que assusta e ataca o monge —, um Diabo espantalho que

repugna e repele. Todas as tentações e as lutas dos Padres do deserto oscilarão

sem cessar entre essas duas representações do poder diabólico, entre o horror

e a beleza.

Nesse último caso, o Sedutor e Tentador se apresenta evidentemente sob

formas humanas e mesmo sobre-humanas: como uma mulher de uma beleza

maravilhosa ou como um anjo de luz. No primeiro, ao contrário, ele aparece

sob formas eminentemente inumanas e mesmo sub-humanas: como um bicho

(serpente, lobo, dragão) ou como uma criatura híbrida e monstruosa. Anjo ou

Bicho, qual o verdadeiro rosto de Satã?

m ^ ^

É muito difícil, nos dias de hoje, imaginar a força e a sinceridade com que os

anacoretas do Egito acreditavam no Diabo e nos demô-

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O ROSTO DE SATÃ

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mas cujo corpo fantástico só se compunha de ar, evaporou-se entre suas mãos lançando urros apavorantes; e, como o infeliz o perseguisse de maneira vergonhosa, ele o deixou cheio de confusão e acrescentou àquilo uma zombaria cruei E uma grande multidão de demônios se reuniu para assistir àquele espetáculo, lançando grandes gritos e explodindo de rir.

Mas ocorre de as tentações serem menos espetaculares. O Sedutor não se

torna sempre visível e freqüentemente não passa de uma voz, uma impressão,

um pensamento mesmo, lancinante, insidioso, que nos atrai para o mundo e

nos faz duvidar de nós mesmos. Assim, durante as longas horas passadas na

solidão, há momentos de brusca lassidão durante os quais a angústia e o

desgosto se apoderam do asceta. Esse torpor surge de preferência perto do

meio-dia, quando o deserto irradia um calor insuportável, quando o próprio

tempo parece interminável e a vida parece de repente privada de sentido. Esse

sentimento, os Padres do deserto o conheciam bem e chamavam-no acedia ou

acídia, do grego akedía: indiferença, desgosto, apatia do coração e da alma. "É

sobretudo perto do meio do dia que ele atormenta o monge", escreve Cassiano

nas suas Instituições dos monges do Egito, "tal como uma febre regular cujos

acessos retornam periodicamente. Por isso muitos anciãos chamaram-no o

demônio do meio-dia." O anacoreta começa a "sentir horror do lugar onde

vive, nojo de sua cela, desprezo de seus irmãos. Sente-se incapaz de voltar

para casa, de trabalhar, de orar". Depois, à medida que as horas passam,

"quando o meio do dia se aproxima, o cansaço e a fome tornam-se mais

pesados. O anacoreta se sente tão esgotado quanto após um longo percurso no

deserto ou um jejum de vários dias. Não pára de olhar para o horizonte, de

espreitar algum visitante. Sai, entra, ergue os olhos a todo momento para o

céu, para o sol cujo trajeto lhe parece interminável!"

A acedia é um mal da solidão, um mal da vida ascética do deserto, um

mal do ser — renunciando ao combate, à busca do homem novo. Mas até onde

pode ir esse mal? Se tem sua origem nas raízes do ser, nas zonas mais

profundas do psiquismo, ele então se confunde com o asceta ou ao menos com

sua parte interna, tenebrosa3. Assim,

3Parte "tenebrosa" que explica que o demônio apareça tào freqüentemente com os traços de um "homenzinho negro", de um "pequeno etíope horroroso" saindo da cabeça ou do corpo do asceta. Os etíopes — porque negros — foram freqüentemente considerados os receptãculos do demônio. 213

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A CARNE DOS ANJOS

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eles vêm diante do defunto, na proporção de seus méritos. Para alguns defuntos, os santos vão à frente deles até a Porta da vida e os abraçam. Para outros, eles vão à sua frente numa distância proporcional a seus méritos. Para outros ainda, eles se deixam aproximar antes de se levantar e de abraçá-los. Outros, enfim, não merecem de modo algum ver os santos se levantarem por eles e abraçá-los.

m m #

Mas o paraíso pode às vezes descer à terra. A vida que levam os anacoretas no

deserto já é uma antecipação da vida celeste, e é natural que essa antecipação se

manifeste por alguns sinais. Nesse mundo, onde as ilusões são constantes, onde o

próprio demônio assume o aspecto de um anjo para melhor enganar os solitários,

compreende-se a importância de sinais precisos e seguros que indicam ao asceta que

ele está no caminho certo. Pois existe uma espécie de "tentação pelos anjos" tal como

existe uma tentação pelos demônios. Inúmeros são os textos que mencionam os

dissabores desse ou daquele anacoreta culpado de ter acreditado cedo demais que

havia atingido a hesychia, de ter se considerado, prematuramente, como um anjo:

Um dia o apa João disse a seu irmão mais velho que gostaria de ser como os anjos, que não trabalham e têm apenas que louvar a Deus; assim, largou seu hábito e foi-se para o deserto. Apôs ter passado ali uma semana, veio encontrar o irmão e bateu à sua porta. "Quem ê?", perguntou o irmão. "É joâo", respondeu. "João tornou-se um anjo", replicou o irmão, "não está mais entre os homens." Com isso, e como o outro continuasse a bater, gritando que era João, ele o deixou passar toda a noite do lado de fora sem lhe abrir. Enfim, quando chegou o dia, abriu a porta e lhe disse: "Se és um anjo, por que precisas que alguém te abra a porta para entrar? E, se és um homem, por que não trabalhas como os outros?"

É que os anjos estão constantemente presentes no deserto, tão presentes,

tão numerosos quanto os demônios. Eles intervém sem cessar na vida do

asceta: para vigiá-lo, fazer a contabilidade de seus progressos e seus fracassos,

protegê-lo dos demônios, comunicar-lhe as mensagens e as instruções do

Senhor. Anjos-guardiòes, anjos-con-tadores, anjos-soldados,

anjos-mensageiros, anjos-parteiros de almas, anjos-escoltadores de almas —

essa multiplicidade e essa especificidade das funções angélicas não devem

surpreender, já que, para os Padres

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A CARNE DOS AN]OS

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laura, perto cio Jordão. Tinha a seu serviço um leão fidelíssimo que, desde que lhe

havia tratado uma ferida, não o abandonara mais. Esse leão tinha como tarefa

principal vigiar e proteger o asno da laura quando ele ia buscar água no Jordão. Mas,

um dia, uns beduínos conseguiram apoderar-se do asno, e o leão,

tendo perdido o asno, retornou à laura muito triste e de cabeça baixa junto ao abade Gerásimo. Esse pensou que o leão tinha comido o asno e lhe disse: "Onde está o asno?" O outro, como um homem, permanecia silencioso e inclinava a cabeça. O monge lhe disse: "Tu o comeste? Por Deus abençoado, o que o asno fazia, tu o farás daqui em diante". E desde então, quando Gerásimo ordenava, o leão carregava a albarda com seus quatro jarros de água.

Cada dia, durante cinco anos, o leão foi ao rio buscar água e, por essa razão,

decidiram chamá-lo Jordão. E depois, ao cabo de cinco anos, o abade Gerásimo

morreu e

partiu para o Senhor. O leão, naquele dia, por uma disposição de Deus, não estava na laura. Retornou algum tempo depois e buscou o monge. Ao vê-lo. o discípulo do monge lhe disse: "Jordão, nosso monge nos deixou órfãos. Partiu para o Senhor. Mas vem aqui e come". Mas o leão não queria comer. Não parava de girar os olhos para todos os lados para ver Gerásimo. soltando grandes gemidos. Vendo-o, os outros Padres lhe acariciavam o dorso e lhe diziam: "Gerásimo partiu para o Senhor c nos deixou". Mas Jordão redobrava seus gritos e seus queixumes e mostrava, com sua voz, seu aspecto, seus olhos, a mágoa que sentia de não mais ver o monge. Finalmente, o discípulo de Gerásimo levou-o ao lugar onde haviam enterrado o monge. Fica a meia milha da igreja. O discípulo se ajoelhou sobre o túmulo e disse ao leão: "Eis onde está nosso monge". Então, Jordão bateu violentamente a cabeça contra a terra e. num grande rugido, morreu imediatamente sobre o túmulo do monge.

De todos os leões do deserto, são manifestamente os do Jordão os que

dão prova dos maiores dons em matéria de gentileza e de polidez. Numa

trilha estreita, ao longo do rio, certo leão se deita por conta própria num

arbusto de espinhos para deixar passagem a um anacoreta. Um outro, indo ao

rio beber, avistou em seu caminho habitual um monge deitado de través

(trata-se de um monge que não encontrara nada melhor para expiar um

pecado senão deixar-se devorar por um leão) e, "erguendo-se sobre as patas

traseiras, saltou por

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A CARNE DOS ANIOS

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Visto que esse conheceu tentações e realizou milagres, ninguém, no deserto, pode

tornar-se um santo se não conhecer também tentações e não cumprir milagres

idênticos. A vida no deserto é uma repetição simbólica da vida de Cristo, até e

sobretudo na sua Crucifixão, como testemunha esse tema do Monge crucificado que

retorna tão freqüentemente na literatura ascética e mística do deserto. Pois a

solidariedade nos milagres implica uma igual solidariedade nos sofrimentos.

Isso posto, os diferentes milagres realizados pelos santos do deserto diferem às

vezes bem profundamente dc seus modelos evangélicos. É que, nesse ínterim, o meio

cultural mudou, os coptas do século IV não são os judeus do século I. É nesse sentido

que todo milagre é um fato "histórico": por mais que o episódio milagroso permaneça

o mesmo, seu sentido e seu alcance variam. Tomemos um exemplo: os milagres de

ressurreição dos mortos. Nos Evangelhos, a ressurreição da filha de Jairo e a de

Lázaro são milagres "em estado puro", no sentido de serem apresentados de saída

como tais, para provar ao povo judeu a maior glória de Deus (o de Lázaro, pelo

menos). Na literatura do deserto, ao contrário, as ressurreições dos mortos nunca são

operadas por si mesmas, mas sempre por razões secundárias e práticas: fazer falar

algum cadáver para que denuncie um criminoso, ou para que forneça uma

informação preciosa suscetível de salvar um vivo. A própria ressurreição torna-se um

epifenômeno, uma espécie de último recurso ao qual o santo é obrigado a lançar mão

para alcançar o objetivo buscado. A tal ponto que, uma vez obtida a informação, ele

deixa, no mais das vezes, o "ressuscitado" mergulhar dc novo na morte e não se

importa muito com isso!

Assim, na Vida de Macário o Antigo, vemos Macário ressuscitar um

cadáver para confundir um herege que nega a ressurreição dos mortos. De

outra feita, ele salva a vida de um inocente, acusado de ter assassinado

alguém, interrogando o morto que lhe responde do fundo de seu sepulcro e

inocenta o réu. E como a multidão, a um só tempo estupefacta e furiosa,

suplica a Macário que pergunte ao morto quem é então o verdadeiro culpado,

o santo responde: "Isso não farei. Basta-me livrar um inocente sem me meter a

fazer conhecer o culpado!" Vemos aqui a que ponto a ressurreição

propriamente dita é um fenômeno secundário: nem sequer ocorre a Macário a

idéia de "aproveitar" a ocasião para deixar o ressuscitado com vida! Evidência

mais nítida

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PADRES DO DESERTO

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João Mosco também cita numerosos casos de imobilização a distância. Santo

Adolas, por exemplo, aquele recluso que vivia na Meso-potâmia, no oco de um

plátano, imobiliza um bárbaro que se preparava para atacá-lo. Também esse relato,

sóbrio e simples, de um sarraceno:

Eu tinha partido para a caça na montanha do apa Antônio. Caminhando, avistei um monge, sentado, na montanha, lendo. Aproximei-me para despojá-lo, talvez para matá-lo. Cheguei perto dele. Então, ele estendeu a mão direita na minha direção dizendo: "Pára!" Fiquei dois dias e duas noites nessa posição, sem poder me mexer. Ao cabo desse tempo, eu lhe disse: "Pelo. teu Deus, livra-me!" Ele me respondeu: "Vai em paz!" E eu parti.

Assinalemos, enfim, toda uma série de milagres menos espetaculares,

mas que não podemos deixar de encontrar no deserto e que pertencem àquilo

que se chama nos dias de hoje os fenômenos parapsicológicos: telepatia,

sonhos premonitórios, profecias sempre realizadas etc. Todos esses

fenômenos são evidentemente moeda corrente na vida no deserto, tão

corrente que mal são considerados milagres, sendo mencionados no mais das

vezes incidentalmente ou por acaso4.

4A respeito desses fenômenos parapsíquicos, de que os textos do deserto citam numerosos exemplos, remeiamo-nos ao melhor conhecedor das religiões e das técnicas religiosas orientais, Mircea Eliade. No capítulo "Percepção extra-sensorial e poderes paragnòmicos", de seu livro Mythes, Rêvc et Mysière (Gallimard, p. 1 1 7 a 128), Mircea Eliade. apôs ter estudado iodos os depoimentos dos pesquisadores e dos etnólogos sobre as capacidades extra-sensoriais dos xamàs e dos magos, conclui, como Ernesto de Manino, que estudou in loco ceno número desses poderes, na realidade de faculdades paranormais de conhecimento entre os xamàs Os casos estudados por Ernesto de Manino (clarividência, leitura do pensamento, clarividência profética) se encontram idênticos nas Vidas dos Padres do deserto. Mircea Eliade escreve então: "Para nosso propósito, o importante é sublinhar a perfeita continuidade da experiência paranormal dos primitivos até nas religiões mais evoluídas. Nem um só milagre xamânico há que não seja atestado tanto nas tradições das religiões orientais quanto na tradição cristã". Isso vale sobretudo para as experiências xamânicas por excelência: "vôo mágico" e o udominio do fogo" (p. 320). Um pouco mais adiante, ao falar do sentido dessas experiências xamânicas e desses poderes aos olhos daqueles que os possuem, Mircea Eliade assume exatamente os pontos de vista dessa obra e das de Aldous Huxley quando escreve: "A Yoga, o budismo, tanto quanto os métodos ascético-místicos que lhes são aparentados, prolongam — ainda que cm outro plano e tentan-

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PARA ALÉM DA ASCESE

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fim em si. E é isso que eles dizem ou tentam dizer, antes de tudo, nas raras palavras

que pronunciaram durante a vida. É esse o ABC do ensinamento do deserto: a

consciência do objetivo verdadeiro, não dos meios espetaculares e acessórios

destinados a atingi-lo. A consciência também da humildade, do recolhimento e do

silêncio necessários ao progresso interior do asceta. Um exemplo preciso, extraído da

Vida de Macário o Antigo, mostra claramente como se praticava, se comunicava o

ensinamento:

Um discípulo veio um dia encontrar-se com Macário o Antigo. "Macário, que devo fazer para salvar minha alma?" "Vai ao cemitério", diz Macário, "e insulta os mortos." O discípulo vai ao cemitério, insulta os mortos e volta a encontrar-se com Macário. "Que disseram os mortos?", pergunta Macário. "Nada", responde o discípulo. "Volta ao cemitério e elogia os mortos." O discípulo volta ao cemitério, elogia os mortos, volta a ver Macário. "Que disseram os mortos?", pergunta Macário. "Nada", responde o discípulo. "Sé como os mortos", disse Macário, "não julgues ninguém e aprende a calar-te."

Esse texto ilustra admiravelmente a maneira como os anciãos, os "velhos

na ascese", os gerontes, como eram chamados, comunicavam seu ensinamento.

Em poucas palavras e por analogias esclarecedoras. Pois os maiores desses

anacoretas não escreviam (sendo todos iletrados) e falavam pouco.

Praticamente nada deixaram atrás de si, e os azares das escavações ou da

história não estão sós na origem desse silêncio. Essa recusa de ensinar o que

quer que seja pela via tradicional dos escritos, esse conselho de ser semelhante

"aos mortos e às pedras" já indicam que aquilo que chegou até nós com os

nomes de Antão ou de Macário é certamente apócrifo. A tarefa do santo é

calar o que descobriu, e ensiná-lo só pelo exemplo de sua vida. A derradeira e

última mensagem dos mestres do deserto é esse silêncio no qual, voluntaria-

mente, eles se fecharam.

Vale dizer que não é muito cômodo estabelecer o "balanço" dessa

experiência. O que experimentaram, aprenderam, conheceram no fundo de si

mesmos os grandes anacoretas? Até que grau eles chegaram na busca do

homem novo? O que resta de verossímil ou de possível nos múltiplos poderes

que lhes atribuem os milagres? Alguma coisa, indiscutivelmente, nasceu no

século IV nos desertos do Egito: uma nova maneira de viver, de pensar, que

pôde arrastar para o deserto milhares de homens, mas da qual, hoje em dia,

nada mais resta.

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PADRES DO DESERTO

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tros ascetas — mais rudes — do deserto. O maravilhoso, o sobrenatural, os anjos e os

demônios não têm mais lugar numa experiência assim. São mesmo considerados

suspeitos. O que conta, para esses místicos, é purificar o coração e o pensamento,

banir deles toda imaginação e não comprazer-se nela, entregando-se às visões e às

efusões equívocas que ela acarreta. Ao contrário da experiência dos outros

anacoretas, eles recusam explicitamente ao Imaterial, ao Invisível toda possibilidade

de encarnação, seja ela diabólica ou angélica:

Se aparecer a algum atleta do deserto uma luz ou uma figura ígnea, que ele evite acolher semelhante visão. Não passa de uma ilusão manifesta enviada pelo Inimigo..., pois, enquanto habitarmos esse corpo perecível, estaremos exilados longe de Deus e não poderemos vê-Lo visivelmente nem a qualquer de Suas maravilhas celestes,

escreve Diãdoco de Foticéia, autor místico do século V, num de seus Cem capítulos

gnósticos. A visão de Cristo e dos anjos tem que ser proscrita de toda experiência

ascética, pois "ela sô pode conduzir ã loucura e ao suicídio".

Em meio a todos os que renunciaram assim à visão de Cristo, há um,

citado por Teodoreto, que soube mostrar a que ponto a hesychia é justamente

"uma despreocupação com toda coisa, razoável ou não" e o quanto o hesicasta

"não se importa mais com seu próprio corpo".

Trata-se de são Salamão, um recluso instalado nas proximidades de um

burgo da Síria e que tinha adquirido tamanha reputação de santidade que,

ainda vivo, os moradores das aldeias mais próximas já disputavam seu corpo!

De fato, um dia,

os moradores do burgo onde ele nascera, tendo cruzado o rio à noite, perfuraram o casebre onde ele vivia e o arrebataram sem que ele se dignasse nem a opor-se nem a consentir naquilo. Levaram-no para seu burgo, construíram-lhe um alojamento idêntico e o trancaram ali, enquanto o santo homem permanecia sempre no silêncio, sem falar a quem quer que fosse.

Alguns dias depois, os moradores do burgo onde ele estava antes cruzaram por sua vez o rio, quebraram o casebre e o trouxeram de volta à sua aldeia. E o santo não lhes opôs a menor resistência, nem fez qualquer esforço para permanecer onde estava, nenhum esforço para partir dali, de tal modo estava verdadeiramente morto para o mundo!

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Mas essa atividade e esse esplendor literário se interromperão a partir do

século XIII, e os mosteiros do Wadi-an-Natrun conhecerão um verdadeiro

desmoronamento. Eram cinqüenta no século Y cem no século X, mas, quando

o historiador árabe Maqrisi os visitou, no século XV não contou mais de sete,

dos quais quatro permanecem hoje habitados por cerca de cento e cinqüenta

monges.

O atual mosteiro de santo Antão situa-se aos pés do monte Colzum, no

lugar onde deve ter se estabelecido a primeira comunidade de discípulos

fundada por Antão. Mas os prédios atuais são evidentemente posteriores a

essa época. Jean Doresse, que estudou detalhadamente a arquitetura e a

história desse mosteiro, observa em todo caso que desde o século XI as

construções apresentavam mais ou menos o aspecto que têm hoje. Os próprios

afrescos que ornam o interior da igreja principal datariam do século XI: eles

representam santos cavaleiros (tema muito difundido na arte copta), retratos

de anacoretas e algumas cenas do Antigo e do Novo Testamento de época

mais tardia, pois denotam uma nítida influência bizantina. Quanto ao

mosteiro de Paulo de Tebas, situado a uma hora de caminhada mais ou menos

do de santo Antão, apresenta, arqueológica e historicamente, menos interesse,

embora os monges mostrem sempre, no pátio principal, a gruta onde Paulo

teria vivido.

Esses mosteiros são atualmente os únicos habitados no Egito. Subindo o

Nilo desde o Cairo, o viajante não encontraria em seu caminho nada além de

ruínas. As de Saqqarah e Bauit, primeiro, que permaneceram por muito tempo

sepultadas sob as areias, o que pôde conservar intacta uma grande pane dc

seus afrescos, o mais antigo testemunho atualmente conhecido sobre a pintura

copta. Muito mais ao sul, perto de Sohag, subsistem ainda as ruínas

importantes dos dois mosteiros fundados por Canúcio e pelo apa Bgul, o

Convento Branco (Deir-al Abiad) e o Convento Vermelho (Deir-al Ahmar),

com seus muros, seus nártex, suas absides. Enfim, perto da antiga

Khenobóskion, nas proximidades da aldeia de Nag Hammadi e das grutas

onde, em 1945, foram descobertas jarras contendo numerosos manuscritos

gnósticos, sobrevivem ainda as ruínas de alguns mosteiros, visitados e

descritos por Jean Doresse.

A Palestina e a Síria oferecem uma história quase análoga, embora os vestígios

cristãos dos primeiros séculos sejam aqui muito mais

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PADRES DO DESERTO

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séculos. Testemunha disso é aquele eremita russo, retirado numa cabana isolada à

beira-mar, a vários quilômetros de todos os mosteiros, numa paisagem calcinada —

que não sabemos se é para ele o inferno ou o paraíso — e que, há muitos anos,

quando o visitei, não pescava mais no mar, pois o mar, disse-me ele, não tinha mais

peixes. E, para me explicar tal mistério, arrastou-me para sua capela. Azeitonas

secavam em pleno solo, como um tapete brilhante, até a iconóstase5, c redes de

pesca, ociosas há muito tempo, pendiam nas paredes. Atmosfera de lugar místico e

arcaico, como se de repente, longe da fornalha exterior e do mar abrasador, eu

tivesse penetrado no antro submarino de uma cidade submersa. Atmosfera de

abandono total, definitivo, já que nada desse mundo, nem seus objetos de culto nem

seus instrumentos de trabalho, deviam servir mais.

O mar perdeu seus peixes,

disse-me ele,

pois logo o mundo vai acabar.

Enquanto esperava, ele vegetava, sobrevivia, pés descalços, em farrapos,

pronto para comer a grama da terra. Em seu rosto febril, iluminado por aquela

fé visceral, eu já lia as imagens do céu que se rasga e se entreabre, que se

enrola como um longo pergaminho, e a nuvem dos anjos armados de

trombetas ofuscantes. E desde esse dia o Apocalipse tem para mim um cheiro

de frutos maduros e de redes apodrecidas.

5Iconóstase: nas igrejas ortodoxas, a iconóstase é uma parede ornamentada de ícones que separa o santuário, onde só os sacerdotes podem entrar, da nave, onde se reúnem os fiéis. No meio dessa parede íicam as portas reais, que se abrem e fecham em momentos precisos da liturgia, e em cada extremidade dela íicam portas menores, que permitem a entrada a saída do clero. (N. do T.)

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PADRES DO DESERTO

Material com direitos autorais 219

razões de autenticidade, o assunto implicava o recurso a versões coptas e

traduções literais, eu o fiz e mencionei ao longo do livro. Senão, conservei essa

tradução, que se encaixa plenamente na tradição do gênero aretológico.

Luciano de Samósata (páginas 37, 60, 185 e 226): Luciano de Samósata é um autor

grego pagão do século II cuja obra, essencialmente constituída de Diálogos

satíricos e filosóficos, foi uma das mais importantes de seu tempo. Viajou por

todo o Império romano, até a Gália, antes de instalar-se e terminar seus dias no

Egito como alto funcionário. Seu espírito escarnecedor e racionalista não pou-

pou, com um humor notável e um estilo literário de primeira ordem, as

esquisitices, os excessos, as insuficiências e as imposturas das escolas filosóficas

e religiosas. O Philopseudes (mencionado e citado nas páginas 60 e 226) pode-se

traduzir por O amigo da mentira ou, mais livremente, por O mitômano. Nascido

na Síria romana, Luciano consagrou alguns de seus escritos a esse país, entre os

quais A deusa sitia (citado na página 185).

IV - ;A praclckricx dos scm+os

São Jerônimo (a partir da página 71): Padre da Igreja latina, nascido na

Dalmácia por volta de 347. Fez estudos clássicos em Roma. depois se fez

batizar e, com seu amigo Rufino, autor da História dos monges do Egito,

dedicou-se ao ascetismo por algum tempo perto de Aquiléia, no Vêneto.

Em seguida, parte para Antioquia, onde viverá três anos como eremita na

solidão do deserto de Caleis, entre 374 e 378. Foi lá que escreveu sua Vicia

de Paulo de Tebas, primeiro eremita e, provavelmente, também a de santo

Hilarião e de são Malco. De fato, só se dirigirá ao Egito muito mais tarde

(após uma longa temporada em Roma, onde fundará uma comunidade

ascética, freqüentada também por damas romanas como Marcela e

Paula), por volta de 385. Irá para o deserto da Nítria e depois se fixará em

Belém até morrer, em 420.

Vidas coptas de Pacômio (a partir da página 77): os excertos apresentados no

subcapítulo intitulado Um santo entre os homens: Pacômio

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PADRES DO DESERTO

Material com direitos autorais 221

cTAndilly). Rufino íoi antes de tudo um tradutor de grego em latim, sobretudo

de Origenes. (Ver também páginas 212, 227-228 e 233.)

Cassiano (páginas 101, 2 1 3 e 214), autor das Entrevistas com os Padres do Egito

(citadas também na tradução de Arnauld d'Andilly), é um autor de origem

gaulesa para quem a temporada no Egito não foi senão uma peregrinação às

fontes da anacorese e do monaquismo. Foi em Marselha que, ao regressar do

Oriente, ele fundou dois mosteiros. Nesta cidade, ainda hoje é venerado como

santo. Cito aqui, a título indicativo, um trecho de uma outra obra de Cassiano,

intitulada Instituição dos monges, escrita também com base em sua experiência

egípcia, e onde figura este curioso simbolismo da vestimenta no deserto: o cinto

representa o combate espiritual; a veste c só necessidade e, se for perdida,

ninguém deve recuperá-la; o capuz representa a inocência das crianças; a pele

de cabra, a modificação das paixões; o cajado é uma arma espiritual; andar

descalço significa avançar na via espiritual.

Sulpício Severo (páginas 109, 162 e 163) é um autor cristão do século V, nascido

na Aquitânia. Consagrou-se à solidão após a morte de sua mulher e

tornou-sc amigo de são Martinho de Tours, cuja Vida escreveu. Anexou a

esta Vida dois textos intitulados Diálogos e Virtudes dos solitários do

Oriente, donde são extraídos os trechos citados.

VI - O s atletas do exílio ( I I )

Vida copta de Macário o Antigo (páginas 130 e s. e 201). As citações são extraídas

desta Vida, escrita em copta por Serapião, discípulo de Macário, e traduzida

por Robert Amelineau. A maioria das traduções do copta de Robert Amelineau

foram publicadas e m duas coletâneas essenciais para o conhecimento do Egito

cristão: Monumentos para servir à história do Egito cristão e Memórias publicadas

pelos membros da missão arqueológica no Egito.

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FONTES E TEXTOS

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VII - O fim dos ídolos

Clemente de Alexandria (páginas 143 e 147). Nascido de pais pagãos, Clemente

de Alexandria se converteu ao cristianismo e desempenhou um papel

importante na Didascália, escola de exegese cristã de Alexandria. Morreu

n a Ásia Menor por volta de 2 1 5 . As citações da página 1 4 1 e da página

1 4 7 são extraídas de suas duas obras principais: o Protréptico ou

Exortação aos gregos, e o Pedagogo, onde exorta os gregos pagãos a se

converterem traçando um quadro assustador — e totalmente falso, por

sinal — das religiões pagas e prescrevendo ao pagão convertido o modo

de vida e de prática que deve seguir. Compôs igualmente uma obra

intitulada Estrômatos (isto é , Tapeçarias), onde trata de múltiplas

questões a respeito do cristianismo e do paganismo.

Libânio (página 146). Libânio é um autor pagão do século IV e um dos

grandes nomes da eloqüência da época. Foi o mestre de são João

Crisóstomo. Nascido na S í r i a (seu nome significa "libanês"), cresceu em

Antioquia, depois estudou retórica em Atenas. Em seguida, instalou-se

em Antioquia até a morte, ocorrida em 393. Sua obra compreende uma

enorme quantidade de Cartas (cerca de 1.600) dirigidas às principais

personagens políticas e religiosas do seu tempo e que constituem

documentos de primeira ordem sobre a vida diária da época. Sua obra Pro

Templis (de onde é tirado o trecho citado) foi composta por volta de 384 e

dirigida ao imperador Teodósio o Grande. Mencionemos que outro autor

pagão desta época — Temístio —, que foi um dos correspondentes de

Libânio, escreveu, acerca das atrocidades cristãs, num de seus Discursos:

"Que cada qual seja livre para tomar o caminho que crê o bom, quando se

trata de religião. Nem o confisco dos bens, nem a fogueira, nem a estaca

podem prevalecer contra a lei de Deus. Pode-se quebrar e matar os corpos

se se quiser. A alma escapa, levando consigo o pensamento livre, mesmo

que se tenha feito violência à linguagem".

Acrescentemos, enfim, que o ponto de vista dos autores pagãos sobre os

monges cristãos de seu tempo tem muito pouco a ver com o

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FONTES E TEXTOS

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Nos desertos do Egito e da Síria, quinze séculos atrás,

vê-se um mundo árduo e nu, hostil ao homem, lugar de

provas inesquecíveis, onde o impossível parece

possível. No século IV d.C, dois homens, Ântão e

Pacômio, deixaram um mundo que julgavam em agonia

para exilar-se por toda a vida no deserto e ali fundar os

primeiros mosteiros da história cristã. Milhares de

outros os seguirão, povoando as solidões com suas

silhuetas emanciadas, queimadas pelo ardor e pelo sol,

enfurnando-se em buracos "como hienas", fechando-se

em grutas ou buracos de grandes árvores, instalando-se

sobre colunas como os estilitas ou só se alimentando de

ervas e raízes. Eram anjos ou animais? Essa história

nunca revelou o seu segredo, mas o fascínio da recusa do

mundo cotidiano atua sobre nós mais que antes, ao

considerarmos essa vida vivida a cada dia na fronteira da

morte, essa experiência sem precedente em busca de um

mundo e de um homem novos.

O autor: nascido em Limoges, cm 1925, Jacques

Lacarrière concluiu seus estudos universitários em 1950, mas logo abandonou os diplomas e o ensino para viajar

pelo Mediterrâneo. De suas viagens surgirão várias

obras sobre a Grécia antiga e moderna, numerosas traduções

de autores gregos contemporâneos e este ensaio sobre os

eremitas dos desertos do Egito.

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9788515012787