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DITOS DOS PADRES DO DESERTO Aqueles a quem os Padres do Deserto servem de modelo, encontrarão ajuda no aprofundamento de sua experiência de Deus. Há muitas milhas solitárias que separam o início da corrida até a linha de chegada. Mas é na chegada que os anjos aguardam para nos animar. Também lá, os monges do deserto nos esperam. Nos escritos que deixaram para trás, encontramos a sabedoria que nos auxilia na estrada, aqui e agora. Esta sabedoria sobreviveu através dos séculos, esperando como um oásis no deserto para refrescar a todos aqueles que buscarão a espiritualidade, que tem seu preço. (Dan Nicholas, traduziu: Jandira) Perguntaram ao Pai Ammonas: "Qual é o caminho estreito e apertado?" (Mt. 7,14). Ele respondeu: O caminho estreito e apertado é este, controlar seus pensamentos e despojar-se de sua própria vontade por amor de Deus. Também isto é o significado da sentença: "Senhor, eis que deixamos tudo e te seguimos." (Mt 19, 27) Diziam dele que havia como que uma depressão escavada em seu peito, pelas lágrimas que cairam de seus olhos durante toda sua vida, enquanto ele fazia seu trabalho manual. Quando Pai Poemen viu que ele estava morto, disse chorando: "verdadeiramente você é abençoado, Pai Arsenius, pois você chorou por si mesmo nesse mundo! Quem não chora por si mesmo aqui embaixo, chorará eternamente então; por isso é impossível não chorar, voluntariamente ou quando obrigado pelo sofrimento." (i.e. o sofrimento derradeiro no inferno). Também era dito dele (Pai Arsenius) que nas noites de sábado, preparando-se para a glória do domingo, ele virava-se de costas para o sol e elevava suas mãos em oração em direção ao céu, até que o sol novamente brilhasse em sua face. Então ele se sentava. Dizia-se do Pai Ammoes que quando ele ia à igreja, não permitia que seu discípulo caminhasse ao seu lado mas a uma certa distância; e se esse último viesse lhe perguntar sobre seus pensamentos, ele se afastava dele logo após responder-lhe, "é por receio que, após tão edificantes palavras, sobrevenham conversas irrelevantes, que eu não permito que caminhes comigo." Foi dito de Pai Ammoes, que ele possuía cinqüenta medidas de trigo para seu uso e as colocara para fora, ao sol. Antes que elas estivessem devidamente secas, ele viu algo naquele lugar que lhe

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DITOS DOS PADRES DO DESERTO

Aqueles a quem os Padres do Deserto servem de modelo, encontrarão ajuda no aprofundamento de sua experiência de Deus. Há muitas milhas solitárias que separam o início da corrida até a linha de chegada. Mas é na chegada que os anjos aguardam para nos animar. Também lá, os monges do deserto nos esperam. Nos escritos que deixaram para trás, encontramos a sabedoria que nos auxilia na estrada, aqui e agora. Esta sabedoria sobreviveu através dos séculos, esperando como um oásis no deserto para refrescar a todos aqueles que buscarão a espiritualidade, que tem seu preço. (Dan Nicholas, traduziu: Jandira)

 Perguntaram ao Pai Ammonas: "Qual é o caminho estreito e apertado?" (Mt. 7,14). Ele respondeu: O caminho estreito e apertado é este, controlar seus pensamentos e despojar-se de sua própria vontade por amor de Deus. Também isto é o significado da sentença: "Senhor, eis que deixamos tudo e te seguimos." (Mt 19, 27)

Diziam dele que havia como que uma depressão escavada em seu peito, pelas lágrimas que cairam de seus olhos durante toda sua vida, enquanto ele fazia seu trabalho manual. Quando Pai Poemen viu que ele estava morto, disse chorando: "verdadeiramente você é abençoado, Pai Arsenius, pois você chorou por si mesmo nesse mundo! Quem não chora por si mesmo aqui embaixo, chorará eternamente então; por isso é impossível não chorar, voluntariamente ou quando obrigado pelo sofrimento." (i.e. o sofrimento derradeiro no inferno).

Também era dito dele (Pai Arsenius) que nas noites de sábado, preparando-se para a glória do domingo, ele virava-se de costas para o sol e elevava suas mãos em oração em direção ao céu, até que o sol novamente brilhasse em sua face. Então ele se sentava.

Dizia-se do Pai Ammoes que quando ele ia à igreja, não permitia que seu discípulo caminhasse ao seu lado mas a uma certa distância; e se esse último viesse lhe perguntar sobre seus pensamentos, ele se afastava dele logo após responder-lhe, "é por receio que, após tão edificantes palavras, sobrevenham conversas irrelevantes, que eu não permito que caminhes comigo."

Foi dito de Pai Ammoes, que ele possuía cinqüenta medidas de trigo para seu uso e as colocara para fora, ao sol. Antes que elas estivessem devidamente secas, ele viu algo naquele lugar que lhe pareceu perigoso, então disse aos seus empregados, "vamo-nos embora desse lugar". Porém, eles pareceram aflitos com isso. Vendo seu desalento ele lhes disse, " é por causa dos pães que vocês estão tão tristes? Na verdade, tenho visto monges fugindo, deixando suas celas lavadas e também seus pergaminhos e eles nem fecharam as janelas, mas deixaram-nas abertas.

Pai Abraão disse de um homem de Scete que era um escriba e não comia pão. Um irmão veio a ele para copiar um livro. O velho homem cujo espírito estava absorto em contemplação, escreveu, porém omitindo algumas frases e sem pontuação. O irmão, tomando o livro e desejando pontuá-lo, notou que faltavam palavras. Então disse ao ancião, "Pai, faltam algumas palavras." O ancião disse a ele, "Vá e pratique primeiro o que está escrito, depois volte e eu escreverei o restante."

Havia nas celas um velho homem chamado Apollo. Se aparecia alguém chamando-o para ajudar em alguma tarefa, ele ia alegremente, dizendo, "Vou trabalhar com Cristo hoje, pela salvação de minha alma, pois esta é a recompensa que Ele dá."

Pai Doulas, discípulo de Pai Bessarion disse, "Um dia, quando estávamos caminhando ao longo da praia, eu estava sedento e disse ao Pai Bessarion, "Pai, estou com sede." Ele rezou e disse-me, "Beba um pouco da água do mar." A água estava doce e eu bebi. Cheguei a pegar um pouco numa garrafa de couro, pois tive medo de ficar sedento mais tarde. Vendo isto, o velho homem perguntou-

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me porque eu estava levando água. Eu disse a ele, "perdoe-me, é por medo de ficar com sede mais tarde." E o ancião disse: "Deus está aqui, Deus está em todo lugar."

Um irmão perguntou ao Pai Poemen desta maneira: "meus pensamentos me atormentam, fazendo com que eu deixe de lado meus pecados e me preocupe com as faltas de meus irmãos." O ancião contou-lhe a seguinte estória sobre Pai Dioscurus (o monge): "na sua cela ele chorava por si mesmo, enquanto seu discípulo se sentava eu outra cela. Quando este último veio ver o ancião perguntou-lhe, "pai, por que choras?" "Estou chorando pelos meus pecados, respondeu-lhe o velho homem. Ao que o discípulo disse, "você não tem nenhum pecado, Pai." O ancião replicou, "É verdade, meu filho, se eu pudesse ver meus pecados, três ou quatro homens não seriam suficientes para chorar por eles."

Isto é o que disse Pai Daniel, o Faranita: "Nosso Pai Arsenius nos contou sobre um habitante de Scetis, de vida digna e fé simples; pela sua ingenuidade, ele foi enganado e disse, "O pão que recebemos não é verdadeiramente o Corpo de Cristo, mas um símbolo. Dois anciãos souberam que ele dissera aquilo, conhecendo seu modo de vida correto acreditaram que ele não falara por malícia, mas por simplicidade. Então, vieram a ele e disseram: "Pai, ouvimos da parte de alguém uma proposição contrária à fé, que disse que o pão que recebemos não é verdadeiramente o corpo de Cristo, mas um símbolo. O ancião disse, "fui eu quem disse isso." Então os outros dois o exortaram dizendo, "não mantenha essa crença, Pai, mas aquela em conformidade com o que a igreja Católica nos deu. Acreditamos, de nossa parte, que o pão por si mesmo é o Corpo de Cristo, como no início, Deus formou o homem à sua imagem, tomando do pó da terra, sem que ninguém possa dizer que ele não é a imagem de Deus, mesmo que não pareça. Do mesmo modo, com o pão do qual ele disse, "este é meu corpo", assim nós cremos que é verdadeiramente o Corpo de Cristo. O ancião disse-lhes, "Enquanto eu não for convencido pela coisa em si, não estarei completamente convicto." Então eles disseram, "Vamos rezar a Deus sobre este mistério por toda a semana e acreditamos que Deus vai nos revelar isto." O ancião ouviu isso com alegria e rezou nessas palavras, "Senhor, vós sabeis que não é por malícia que eu não creio, e, de maneira que eu não erre por ignorância, revele isto a mim, Senhor Jesus Cristo." Os dois homens voltaram a suas celas e rezaram também a Deus, dizendo, "Senhor Jesus Cristo, revele esse mistério a esse homem de modo que ele creia e não perca sua recompensa." Deus ouviu suas preces. Ao final da semana eles vieram à igreja no domingo e se sentaram todos os três no mesmo tapete, o ancião no meio. Em seguida seus olhos se abriram e quando o pão foi colocado na mesa sagrada, aparecia-lhes uma criança pequena, sozinha. E quando o sacerdote estendeu a mão para partir o pão, viram um anjo descer do céu com uma espada e servir o sangue da criança no cálice. Quando o padre partiu o pão em pedacinhos, o anjo também cortou a criança em pedaços. Quando se aproximaram para receber os sagrados elementos o ancião sozinho recebeu um pedaço da carne sangrenta. Vendo isto, ficou com medo e gritou, "Senhor, eu creio que isto é vosso corpo e este cálice vosso sangue." Imediatamente a carne que ele segurava em suas mãos se tornou pão, de acordo com o mistério e ele o tomou dando graças a Deus. Em seguida os dois homens lhe disseram, "Deus conhece a natureza humana e sabe que o homem não pode comer carne crua e é por isso que ele mudou seu corpo em pão e seu sangue em vinho, para aqueles que o recebem na fé. "Em seguida, deram graças a Deus pelo ancião, porque Ele não permitiu que o mesmo perdesse a recompensa pelo seu trabalho. Então, todos três retornaram com alegria para suas celas."

Dizia-se que Pai Helladius passou vinte anos em sua cela, sem sequer elevar os olhos para ver o telhado da Igreja.

Pai Epifânio acrescentou: "Um homem que recebe algo de outro por causa de sua pobreza ou sua necessidade tem aí sua recompensa e porque ele se envergonha, quando ele paga, ele o faz em segredo. Mas o oposto faz Deus; Ele recebe em segredo, mas paga na presença dos anjos, dos arcanjos e dos justos."

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Era dito do Pai Agathon que alguns monges vieram procurá-lo, tendo ouvido falar de seu grande discernimento. Desejando ver se ele perdia a paciência disseram-lhe, "você não é aquele do qual dizem ser um grande fornicador e um homem orgulhoso?" "Sim, é verdade", ele respondeu. Eles continuaram, "você não é aquele Agathon que está sempre dizendo bobagens?", "Sou eu". Novamente, ele disseram, "Você não é Agathon, o herético?" Ao que ele replicou, "Eu não sou um herético." Então eles perguntaram-lhe, "diga-nos, porque você aceitou tudo que atiramos sobre você, mas repudiou este último insulto." Ele replicou. "As primeiras acusações tomei para mim, pois é bom para minha alma. Mas heresia é separação de Deus. Vejam, eu nada tenho para ser separado de Deus." A este dito, eles ficaram surpresos pelo seu discernimento e retornaram, edificados.

Pai Evágrio disse, "Retirem-se as tentações e ninguém será salvo."

Um irmão egípcio veio ao Pai Zeno, na Síria, e se acusou diante do ancião sobre suas tentações. Cheio de admiração Zeno disse, "Os egípcios escondem as virtudes que possuem e acusam-se sem cessar de faltas que eles não tem, enquanto que os sírios e gregos fingem ter virtudes que não possuem e escondem as faltas das quais são culpados."

Numa vila, dizia-se que havia um homem que jejuava tanto que era chamado de "o jejuador". Pai Zeno ouviu falar dele e mandou chamá-lo. Ele veio alegremente. Rezaram e se sentaram. O ancião começou a trabalhar em silêncio. Não conseguindo falar com Pai Zeno, o jejuador começou a se aborrecer. Então ele disse a Pai Zeno, "reze por mim, Pai, porque desejo ir." O ancião perguntou, "por que?" O outro retrucou, "porque meu coração está como se estivesse em fogo e eu não sei o que pode ser isso. Pois em verdade, quando eu estava na vila e jejuava até a noite, nada disso me acontecia." O velho homem lhe disse, "na vila você alimentava-se através de seus ouvidos. Mas vá embora e de agora em diante coma pela nona hora e o que quer que faças, faça-o em segredo." Tão logo ele começou a seguir o conselho, o jejuador achou difícil esperar até a nona hora. E aqueles que o conheceram diziam, "o jejuador está possuído pelo diabo." Então ele foi contar isso ao ancião que disse a ele, "este caminho está de acordo com Deus".

Um dia Pai Moses disse ao irmão Zacharias, "diga-me o que devo fazer?" A estas palavras o último jogou-se no chão aos pés do ancião e disse: "você está me perguntando, Pai?" O velho homem disse a ele "Creia-me, Zacharias, meu filho, eu vi o Espírito Santo descer sobre você e desde então sinto-me inclinado a lhe perguntar." Então Zacharias arrancou o gorro de sua cabeça, jogou-o ao chão e pisoteou-o, dizendo, "O homem que não se deixa tratar assim não pode se tornar um monge."

Pai Zeno disse, "se um homem deseja ser ouvido por Deus rapidamente, antes de rezar por qualquer coisa, mesmo por sua própria alma, quando se elevar e estender suas mãos em direção a Deus, deve rezar de todo coração por seus inimigos. Através dessa ação Deus atenderá qualquer coisa que ele pedir."

Pai Gerontius de Petra disse que muitos, tentados pelos prazeres do corpo, cometiam fornicação, não em seus corpos mas em seus espíritos e enquanto preservavam a virgindade do corpo, cometiam a prostituição em suas almas. "então, é bom, meus bem-amados, fazer o que está escrito e cada um guardar seu próprio coração com todo cuidado possível." (Prov. 4,23)

Um dia Pai Arsenius consultou um velho monge egípcio sobre seus próprios pensamentos. Alguém notou e disse a ele, "Abba Arsenius, como é que o senhor com uma educação tão aprimorada em Grego e Latin, pergunta a um camponês sobre seus pensamentos?" Ele replicou, "Realmente aprendi Grego e Latin, mas não sei nem ao menos o alfabeto desse camponês."

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Pai Elias, o ministro, disse, "O que pode o pecado onde há penitência? E de que adianta o amor onde há orgulho?"

Pai Isaias disse a aqueles que começavam bem, colocando-se sob a direção dos santos Padres, "como a coloração roxa, a primeira tintura nunca se perde." E "do mesmo modo que galhos jovens são facilmente envergados para trás e curvados, também é com os iniciantes que vivem em submissão."

Pai Isaias também contou que houve uma ceia e os irmãos estavam comendo na igreja e falando uns com os outros, o padre de Pelusia os repreendeu com estas palavras, "Irmãos, aquietem-se. Pois vi um irmão comendo com vocês e bebendo tanto quanto vocês e sua oração subia até a presença de Deus como fogo."

Pai Isaias também disse, "quando Deus deseja apiedar-se de uma alma e ela se rebela, não suportando nada e fazendo sua própria vontade, Ele então permite que ela sofra o que não quer, de modo que volte a procurá-Lo novamente."

Pai Theodore disse: "se você é amigo de alguém que cai na tentação da fornicação, ofereça-lhe sua mão, se puder e tire-o disso. Mas se ele cair na heresia e você não puder persuadi-lo de sair dela, saia de sua companhia rapidamente, para evitar que no caso de você demorar, você também seja jogado nesse poço.

Um irmão veio procurar Pai Theodore e começou a conversar com ele sobre coisas que nunca tinha posto em prática. Então o ancião lhe disse, "você ainda não encontrou um navio nem colocou sua carga a bordo e antes mesmo de ter navegado, já regressou à cidade. Faça seu trabalho primeiro, depois atinja a velocidade que você está fazendo agora."

Pai Theodore de Pherme disse: "o homem que permanece de pé quando se arrepende, não guardou o mandamento."

 Um irmão disse a Pai Theodore, "desejo cumprir os mandamentos." O velho homem contou-lhe o que Pai Theonas lhe tinha dito: "eu quero encher meu espírito de Deus." Pegando farinha da padaria fez pães que deu aos pobres que lhe pediram; outros lhe pediram mais e ele lhes deu as cestas, em seguida o manto que usava e então, retornou à sua cela com seu dorso cingido por uma capa. Depois ele voltou ao trabalho dizendo a si mesmo, que ainda não tinha cumprido o mandamento de Deus."

O verdadeiro Pai Theophilo, o arcebispo, veio um dia a Scete. Os irmãos que estavam reunidos disseram a Pai Pambo, "fale algo ao arcebispo, de modo que ele fique edificado." O ancião disse a eles, "se ele não estiver edificado pelo meu silêncio, não ficará edificado pela minha fala."

Foi dito de Pai Thedore, que ele foi feito diácono de Scete e recusou exercer o cargo, tendo fugido para muitos lugares por isso. A cada vez, os anciãos o traziam de volta, dizendo, "não deixe seu diaconato." Pai Theodore disse-lhes, "deixem-me rezar a Deus de modo que Ele me diga, com certeza, se eu devo tomar parte na liturgia." Então rezou a Deus desse modo, "se é Tua vontade que eu aceite essa posição, dá-me a certeza disso." Então lhe apareceu uma coluna de fogo, que ia da terra ao céu e uma voz lhe disse, "se você puder se tornar como essa coluna, então seja um diácono." Ao ouvir isso ele decidiu nunca aceitar o encargo. Quando voltou à igreja os irmãos se inclinaram diante dele, dizendo, "se você não quer ser um diácono, pelo menos segure o cálice." Mas ele recusou, dizendo, "se vocês não me deixarem sozinho, deixarei este lugar." Então o deixaram em paz.

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Pai Theodore de Scetis disse, "um pensamento me perturba não me deixa livre; embora não seja capaz de levar-me a agir, ele simplesmente me impede de progredir na virtude; mas um homem vigilante o lançaria fora e se levantaria para rezar."

Pai Theodore dizia, "a privação de alimento mortifica o corpo do monge." Pai Anotherold disse, "as vigílias mortificam ainda mais."

Mãe Teodora disse, "vamos nos esforçar para entrar pela porta estreita. Como as árvores que não enfrentaram as tempestades de inverno e não produzem fruto, assim é conosco; esta vida presente é uma tempestade e é através de muitas tribulações e tentações, que podemos obter a herança no reino dos céus."

A mesma Mãe disse que um mestre deveria ser um estranho ao desejo dominação, vanglória e orgulho; ninguém deveria se capaz de enganá-lo pela adulação, nem cegá-lo com presentes, nem conquistá-lo pelo estômago, nem dominá-lo pelo ódio; mas ele deveria ser paciente, gentil e humilde tanto quanto possível; ele deveria ser testado e sem partidarismo, imbuído de responsabilidade e amor pelas almas.

Ela também disse que nenhuma forma de ascetismo, nem vigílias, nem qualquer tipo de sofrimento são capazes de salvar, mas apenas a verdadeira humildade o pode fazer. Havia um anacoreta que tinha o poder de expulsar demônios; e ele lhes perguntou, "o que os faz irem embora?" "é o jejum?" Eles replicaram, "não comemos nem bebemos." "São as vigílias?" Eles responderam, "nunca dormimos." "É a separação do mundo?" "Vivemos nos desertos." "Qual poder os expulsa então?" Eles disseram, "Nada nos pode vencer, além da humildade." "Vocês vêem como a humildade é vitoriosa sobre os demônios?"

Foi dito de Pai John, o Anão que ele se retirou para viver no deserto de Scete com um ancião de Tebas. Seu Pai, pegando um pedaço seco de madeira plantou-o e disse a ele, "molhe-o todos os dias com uma garrafa de água, até que dê fruto." A água ficava muito distante e ele tinha que sair à noite e retornar pela manhã seguinte. Ao final de três anos a madeira reviveu e deu fruto. Então o ancião pegou alguns frutos e levou-os à igreja, dizendo aos irmãos, "peguem e comam o fruto da obediência."

Dizia-se de Pai John, o Anão, que um dia ele disse ao seu irmão mais velho, "gostaria de ser livre de todos os cuidados, como os anjos, que não trabalham, mas prestam culto a Deus incessantemente." Então, ele retirou seu manto e foi para o deserto. Depois de uma semana ele voltou ao seu irmão. Quando bateu à porta ouviu seu irmão dizer, antes de abrir, "quem é você?" Ele disse, "sou John, seu irmão." Ao que o outro retrucou, "John se tornou um anjo e dessa maneira não mais se encontra entre os homens." O outro pediu para entrar, dizendo, "Sou eu." Contudo, seu irmão não o deixou entrar, mas o deixou lá fora, aflito, até de manhã. Então, abrindo a porta, disse-lhe, "você é um homem e deve novamente trabalhar para poder comer." Então John se prostrou diante dele, dizendo, "perdoe-me."

Um dia, quando ele estava sentado em frente à igreja, os irmãos foram consultá-lo sobre seus pensamentos. Um dos anciãos viu e tornando-se presa do ciúme disse a ele, "John, seu vaso está cheio de veneno." Pai John respondeu-lhe, "Isto é bem verdade, Pai; e você disse isso vendo apenas o lado de fora, mas se fosse capaz de ver o interior também, o que diria, então?"

Alguns irmãos vieram um dia para testá-lo, para ver se ele deixaria seus pensamentos se dissiparem e falasse das coisas desse mundo. Disseram-lhe então, "damos graças a Deus, pois este ano tem chovido muito e as palmeiras puderam beber e suas folhas cresceram e os irmãos encontraram

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trabalho manual." Pai John disse-lhes, "Então, é quando o Espírito Santo desce aos corações dos homens, eles se renovam e produzem folhas por temor a Deus."

Era dito de Pai John, o Anão, que um dia ele estava tecendo corda para duas cestas, mas sem perceber, ele fez apenas uma, até que chegasse ao teto, pois seu espírito estava absorto em contemplação.

Pai John disse, "sou como um homem sentado debaixo de uma grande árvore, que vê bestas selvagens e serpentes, vindo contra ele em grande número. Quando não pode mais, ele corre e sobe na árvore e se salva. É a mesma coisa comigo; sento-me em minha cela e estou consciente de pensamentos maus vindo contra mim e quando não tenho mais forças contra eles, busco refúgio em Deus pela oração e sou salvo do inimigo."

Pai Poemen disse de Pai John, o Anão, que ele tinha rezado a Deus para que retirasse para longe dele as paixões, de modo que ele ficasse livre de preocupações. Então ele foi contar ao ancião isto; "encontro-me em paz, sem nenhum inimigo". O ancião lhe disse, "vá, implore a Deus que lhe envie as lutas de modo que você recupere a aflição e humildade que você possuía, pois é pela luta que as almas progridem." Então, ele implorou a Deus e quando as batalhas vieram ele não mais rezou que elas fossem afastadas, mas disse, "Senhor, dai-me força para a luta."

Pai John disse, "pusemos a carga leve de um lado, que é a auto-acusação, e nos carregamos com um grande peso que é a auto-justificação."

Ele também disse, "humildade e temor de Deus estão acima de todas as virtudes."

Pai John deu este conselho, "vigiar significa sentar-se na cela e estar sempre presente a Deus. Isto é o que significa o dizer, "eu vigiava e Deus veio até mim."

Um dos Padres disse dele, "quem é esse John, que pela sua humildade tem toda cidade de Scete pendurada no seu dedo mínimo?"

Pai John, o Anão, disse, "havia um homem muito espiritual que vivia uma vida reclusa. Ele era muito considerado na cidade e gozava de grande reputação. Disseram-lhe que um ancião, à beira da morte o chamava para abraçá-lo antes de adormecer. Ele pensou consigo, se eu for com a luz do dia, homens acorrerão atrás de mim, dando-me grande honra e não ficarei em paz com tudo isso. Então, irei à noite, na escuridão e passarei despercebido. Mas vejam só, dois anjos foram enviados por Deus com luzeiros para dar-lhe luz. Então a cidade inteira veio para fora para ver sua glória. Quanto mais ele desejava correr da glória, mais glorificado ele era. Nisso se cumpriu o que está escrito: "aquele que se humilha será exaltado." (Lc 14,11)

Pai John, o Anão, disse, "uma casa não é construída do topo para baixo. Deve-se começar com a fundação para alcançar o topo. Eles lhe disseram, "o que isso significa?" Ele respondeu, "a fundação é nosso próximo, a quem devemos ganhar, e este é o lugar para começar. Pois todos os mandamentos de Cristo dependem desse um."

Pai Poemen disse que Pai John teria dito que os santos são como um grupo de árvores, cada uma produzindo um fruto diferente, mas irrigadas com a mesma fonte. As práticas de um santo diferem das do outro, mas é o mesmo Espírito que trabalha em todos eles.

Pai John disse ao seu irmão, "mesmo que sejamos completamente desprezados aos olhos dos homens, alegremo-nos, pois somos honrados aos olhos de Deus."

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O ancião, (Pai John, o Anão), disse, "vocês sabem que o primeiro sopro do demônio sobre Jó, foi através de suas possessões; e aquele viu que não o pôde afligir nem o separar de Deus. Com o segundo sopro, ele tocou sua carne, mas também nisso, o bravo atleta não pecou por palavra alguma que viesse de sua boca. De fato, ele tinha dentro do seu coração aquilo que é de Deus e recorria àquela fonte incessantemente."

Um ancião veio à cela de Pai John e encontrou-o adormecido com um anjo por detrás dele, abanando-o. Vendo isto ele se retirou. Quando Pai John se levantou, ele disse ao seu discípulo, "veio alguém enquanto eu estava dormindo?" Ele retrucou, "sim, um ancião." Então, Pai John soube que esse ancião era seu igual e que ele tinha visto o anjo.

Pai Isidore disse, "quando eu era mais jovem e permanecia em minha cela eu não punha limites à oração; a noite era para mim tempo de oração tanto quanto o dia."

Pai Isidore foi um dia ver Pai Theophilus, arcebispo de Alexandria e quando retornou a Scetis, os irmãos perguntaram a ele, "o que há de novo na cidade?" Mas ele lhes disse, "verdadeiramente irmãos, não vi a face de ninguém, exceto a do arcebispo." Ouvindo isso ficaram muito ansiosos e disseram, "houve algum desastre lá então, Pai?" Ele disse, "Não, de modo algum, mas o pensamento de olhar para quem quer que fosse não me atraiu." A essas palavras eles se encheram de admiração e se fortaleceram em sua intenção de guardarem seus olhos de toda distração."

Pai Isidore de Pelusia disse, "prezem as virtudes e não sejam escravos da glória; pois as primeiras são imortais enquanto que as últimas logo se desvanecem."

Ele também disse, "as alturas da humildade são grandes e também as profundezas da vanglória; aconselho-os a atenderem à primeira e não caírem na segunda."

Pai Lot foi ver Pai Joseph e lhe disse, "Pai, tanto quanto posso, rezo um pouco meu Ofício, jejuo um pouco, rezo, medito, vivo em paz e tanto quanto posso, purifico meus pensamentos. Que mais posso fazer?'" O ancião levantou-se, estendeu suas mãos em direção ao céu. Seus dedos eram como dez lâmpadas de fogo e então disse-lhe, "por que não tornar-se o próprio fogo, então?

Pai James disse, "tal como uma lâmpada ilumina um quarto escuro, o temor de Deus quando penetra o coração de um homem, o ilumina, ensinando-lhe todas as virtudes e mandamentos de Deus."

E acrescentou: "não precisamos apenas de palavras, pois no momento presente existem muitas palavras entre os homens, mas precisamos de atos, pois isto é o necessário e não apenas palavras que não produzem fruto."

Pai John das Celas nos contou esta estória: "havia no Egito uma bela cortesã, muito rica , a quem muitos nobres e poderosos acorriam. Um dia, estando ela perto de uma igreja desejou entrar. O subdiácono, que estava às portas não o permitiu, dizendo, "você não é digna de entrar na casa de Deus, pois está impura." O bispo, ouvindo o barulho de sua discussão veio para fora. Então a cortesã lhe disse, "ele não me deixa entrar na igreja." E o bispo também disse a ela, "você não pode entrar pois você não está pura." Ela ficou tomada de arrependimento e disse a ele, "então, não mais cometerei fornicação." O bispo respondeu-lhe, "se você trouxer suas riquezas aqui, acreditarei que você não mais cometerá fornicação." Ela trouxe toda sua fortuna e o bispo ateando fogo, queimou-a completamente. Então ela entrou na igreja, chorando e dizendo, "se isto aconteceu comigo aqui embaixo, o que sofreria depois, lá em cima?" Então se converteu e se tornou um vaso de eleição.

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Pai Isidore, o sacerdote, disse "se você jejua regularmente, não se encha de orgulho, mas se você se vangloria por causa disso, então é melhor que coma carne. É melhor para um homem comer carne do que se inflar com orgulho e gloriar-se de si mesmo.

Conta-se de Pai John, o persa, que quando alguns malfeitores vieram a ele, ele pegou uma bacia e desejou lavar-lhes os pés. Mas eles se encheram de confusão e começaram a fazer penitência.

Da Palestina, Pai Hilarion foi à montanha onde estava Pai Anthony. Pai Antony disse-lhe, "você é bem-vindo, tocha que acorda o dia." Pai Hilarion retrucou, "paz a você, pilar da luz, dando luz ao mundo."

Os santos Padres estavam fazendo previsões sobre as últimas gerações. Eles disseram. "O que fizemos?" Um deles, o grande Pai Ischyrion, replicou, "nós cumprimos os mandamentos de Deus." Os outros replicaram, "e aqueles que vierem depois de nós, o que farão?" Ele disse, "eles lutarão para conseguir a metade do que conseguimos." Então disseram, "e aqueles que virão após estes, o que lhes sucederá?" Ele disse, "OS HOMENS DESSA GERAÇÃO NÃO REALIZARÃO NENHUMA OBRA E A TENTAÇÃO CAIRÁ SOBRE ELES; E AQUELES QUE FOREM ACHADOS DIGNOS, NAQUELE DIA, SERÃO MAIORES ATÉ MESMO DO QUE NÓS E NOSSOS PAIS."

Pai Copres disse, "abençoado aquele que sofre aflições com ação de graças."

Um dia, os habitantes de Scete reuniram-se para discutir Melquisedeck e se esqueceram de convidar Pai Copres. Mais tarde o chamaram e perguntaram-lhe sobre aquele assunto. Batendo em sua boca trêz vezes, ele disse, "infelizmente, para você, Copres! Pois aquilo que Deus manda, você faz, você foi posto de lado e você deseja aprender algo que não lhe foi requerido saber." Quando ouviram estas palavras, os irmãos fugiram para suas celas.

Perguntaram a Pai Cyrus da Alexandria, sobre a tentação da fornicação e ele replicou, "se vocês não pensarem sobre isso, vocês não têm esperança, pois se vocês não estiverem pensando nisso, estão fazendo isso. Quer dizer, aquele que não luta contra o pecado e resiste a ele em seu espírito vai pecar fisicamente. É bem verdade que aquele que está fornicando não está preocupado pensando nisso.

Alguns dos monges que são chamados Euchites, foram a Enaton para ver Pai Lucius. O ancião perguntou-lhes, "qual é o seu trabalho manual?" Replicaram, "não fazemos trabalho manual, pois como o Apóstolo diz, "rezamos incessantemente". O ancião perguntou-lhes se eles comiam e eles responderam que sim. Então ele lhes disse, "quando vocês estão comendo, quem reza então no seu lugar?" Então perguntou-lhes se eles não dormiam e responderam-lhe que sim. E ele lhes falou, "quando vocês dormem quem reza no seu lugar?" Eles não conseguiram encontrar nenhuma resposta para dar-lhe. Ele lhes disse, "perdoem-me mas vocês não agem como falam. Vou lhes mostrar como, enquanto faço meu trabalho manual rezo sem interrupção. Sento-me com Deus, pondo meu junco de molho e trançando minhas cordas e digo, "Deus, tenha compaixão de mim, de acordo com vossa grande bondade e de acordo com vossa infinita misericórdia, livra-me de meus pecados." Então lhes perguntou se isto não era oração e disseram que sim. Então lhes falou, "Então, quando devo passar o dia todo trabalhando e rezando, ganhando treze moedas de dinheiro, mais ou menos, coloco duas moedas fora da porta e pago minha comida com o resto do dinheiro. Aquele que pega as duas moedas reza para mim quando estou comendo e quando estou dormindo; então, pela graça de Deus, eu cumpro o preceito de orar sem cessar."

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Contaram que Pai Macarius, o grande, como está escrito, tornou-se um deus sobre a face da terra, pois, assim como Deus protege o mundo, assim também Pai Macarius cobria as faltas que ele via, como se não as visse; e aquelas que ouvia, como se não as ouvisse.

O anjo quando deu as regras do monasticismo a São Pacômio, disse-lhe: "... Ele declarou que no curso do dia, eles devem fazer doze orações , e ao acender as lâmpadas, doze, e nas vigílias noturnas, doze, e pela nona hora, três. Quando forem comer, ele decretou que um salmo seja cantado antes de cada prece." E Pacômio objetou ao anjo que as orações eram muito poucas...

O mesmo Pai Macarius, quando no Egito, descobriu um homem que possuía uma besta de carga ocupada em saquear as provisões de Macarius. Então ele foi ao ladrão como se fosse um estrangeiro e o ajudou a carregar o animal. Despediu-o com grande paz na alma, dizendo, "não trouxemos nada para este mundo, e não podemos levar nada para fora dele." (1Tim, 6,7). "O Senhor deu e o Senhor tirou; louvado seja o nome do Senhor." (Job, 1,21)

Perguntaram a Pai Macarius, "como devemos rezar?" O ancião disse "não é necessário fazer grandes discursos; é suficiente erguer as mãos e dizer, "Senhor, como desejas e como conheces, tenha piedade." E se o conflito crescer, digam, "Senhor, ajuda!" Ele sabe muito bem o que precisamos e Ele nos mostra sua misericórdia."

Um irmão foi ao Pai Matoes e lhe disse, "como se explica que os monges de Scete fazem mais do que as Escrituras pedem, amando seus inimigos mais do que a si mesmos?" Pai Matoes respondeu-lhes, "Eu por mim, ainda não consegui amar aqueles que me amam, como eu me amo a mim mesmo."

Dizia-se de Pai Silvanus que em Scetis ele tinha um discípulo chamado Mark, cuja obediência era grande. Ele era um escriba. O ancião o amava por causa de sua obediência. Ele tinha outros onze discípulos que ficaram magoados porque ele o amava mais que a eles. Quando ficaram sabendo disso, os mais velhos ficaram sentidos e um dia vieram reprovar-lhe sobre isso. Tomando-os consigo, ele foi bater em cada cela, dizendo, "irmão fulano, venha aqui; preciso de você", mas nenhum deles veio imediatamente. Chegando à cela de Mark, ele bateu e disse, "Mark." Ouvindo a voz do ancião, ele pulou imediatamente e o ancião o mandou ir servir e então disse, "Pai, onde estão os outros irmãos?" Então eles foram à cela de Mark e pegaram seu livro e notaram que ele tinha começado a escrever a letra "omega" ("w") mas quando ele ouviu o ancião, ele não terminou de escrever. Então os anciãos disseram, "verdadeiramente, Pai, aquele que você ama, nós amamos também e Deus também o ama."

Pai Poemen disse de Pai Nesterius que ele era como a serpente de bronze que Moisés fez para curar o povo; ele possuía toda virtude e sem falar, curava a todos.

Pai Xanthias disse, "o ladrão estava na cruz e ele foi justificado por uma simples palavra; e Judas que era contado no número dos apóstolos perdeu todo seu labor em apenas uma noite e desceu do céu para o inferno. Então, que ninguém se gabe por seus atos bons, pois todos aqueles que confiam em si mesmos, caem."

Pai Poemen disse, "o início do mal é não ouvir."

Syncletica, Mãe do Deserto, disse: "No começo, há luta e muito trabalho para os que se aproximam de Deus. Mas, depois disso, há uma indescritível alegria. É como acender uma fogueira: no início há muita fumaça e seus olhos lacrimejam, mas depois você consegue o resultado desejado. Assim devemos acender o fogo divino em nós mesmos, com lágrimas e esforço."

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Da mesma Mãe: "Há muitos que vivem nas montanhas e se comportam como se estivessem na cidade; e eles estão perdendo seu tempo. É possível ser solitário em sua própria mente, mesmo no meio de uma multidão e é possível para um solitário viver na multidão de seus próprios pensamentos."

APOFTEGMAS DO ABADE SANTO ANTÃO

1. O santo Abade Antão, certa vez sentado no deserto, foi acometido de acedia e grande turbilhão de pensamentos; disse então a Deus: «Senhor, quero ser salvo, e não me deixam os pensamentos; que farei na minha tribulação? Como serei salvo ?» Pouco depois, levantando-se para sair, Antão viu alguém, semelhante a ele mesmo, sentado e trabalhando, a seguir levantando-se do trabalho e rezando, para de novo sentar-se e tecer a corda, e mais uma vez levantar-se para a oração; era um anjo do Senhor mandado para reerguer e robustecer Antão. Ora, este ouviu o anjo dizer: «Faze assim, e serás salvo». Ao ouvir isto, Antão muito se alegrou e animou, e, assim fazendo, era salvo.

2. O mesmo Abade Antão, considerando atentamente o abismo dos juízos de Deus, perguntou:

«Senhor, por que é que alguns homens morrem após breve vida, enquanto outros se tornam extremamente velhos? E por que é que alguns são pobres e outros ricos? E por que é que os injustos se enriquecem, enquanto os justos sofrem necessidade?» Veio-lhe, então, uma voz, dizendo: «Antão, cuida de ti mesmo, pois isto são juízos de Deus, e não te convém penetrá-los».

3. Alguém interrogou o Abade Antão: «Que devo observar para agradar a Deus?» O ancião respondeu: «Observa o que te mando- em qualquer lugar para onde vás, tem sempre Deus ante os olhos; qualquer coisa que faças, procura ter o testemunho das Sagradas Escrituras: e, de qualquer lugar em que residas, não te movas facilmente. Observa estas três coisas, e serás salvo».

4. O Abade Antão disse ao Abade Poimem: «Esta é a grande labuta do homem: assumir sobre si mesmo a culpa própria diante de Deus, e esperar a tentação até o último suspiro».

5. O mesmo disse: «Ninguém sem tentação poderá entrar no reino dos céus». «Suprime», disse, «as tentações, e ninguém será salvo».

6. O Abade Pambo interrogou o Abade Antão: «Que farei?» Disse-lhe o ancião: «Não confies em tua justiça, nem te arrependas do que já passou (isto é, de faltas já lamentadas e perdoadas), e sê continente de língua e de ventre».

7. Disse o Abade Antão: «Vi todas as armadilhas do inimigo estendidas sobre a terra, e, gemendo, perguntei: 'Quem escapará a elas?'. Ouvi então uma voz que me dizia: 'A humildade'».

8. Disse de novo: «Há alguns que consomem o corpo em ascese, e, por não terem discrição, se afastam de Deus».

9. Disse de novo: «Do próximo dependem a vida e a morte; pois, se lucramos o nosso irmão, lucramos a Deus. Se, porém, escandalizamos o irmão, pecamos contra Cristo».

10. Disse ainda: «Como os peixes que se demoram na terra seca, morrem, assim também os monges, permanecendo fora da cela, ou vivendo com seculares, se relaxam da tensão da vida recolhida, é preciso, pois, que, como o peixe para o mar, assim também nos apressemos para a cela, para que não aconteça que, demorando-nos fora, esqueçamos a guarda interior».

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11. Disse de novo: «Quem permanece no deserto e lá vive tranqüilamente, liberta-se de três combates, que são o dos ouvidos, o da conversa e o dos olhos; só lhe resta um: o da fornicação».

12. Alguns irmãos foram ter com o Abade Antão para contar-lhe visões que tinham tido, e dele saber se eram genuínas ou demoníacas. Ora eles tinham um asno, que morreu pelo caminho. Quando, pois, chegaram à cela do ancião, este, antecipando-os, perguntou-lhes: «Como morreu o vosso burrinho pela estrada ?» Interrogaram-no: «Donde o sabes, Abade?» Este lhes respondeu: «Os demônios mostraram-mo». Disseram-lhe então: «Por isto viemos perguntar-te, a fim de que não nos enganemos: temos visões, as quais muitas vezes correspondem à realidade». Ora o ancião convenceu-os, pelo exemplo do asno, de que eram visões diabólicas.

13. Estava alguém no deserto a caçar animais selvagens, quando viu o Abade Antão em conversa alegre com os irmãos. O ancião, querendo então persuadi-lo de que é preciso de vez em quando condescender com os irmãos, disse-lhe: «Põe uma seta no teu arco, e deixa-o teso». Aquele assim fez. Disse-lhe de novo: «Entesa-o mais». Ele o fez. E novamente: «Distende-o mais». Replicou-lhe o caçador: «Se o estender além da medida, romper-se-á o arco». Ao que o ancião respondeu: «Assim também é para a obra de Deus: se além da medida entesarmos os irmãos, em breve romper-se-ão. É necessário, pois, de quando em quando condescender com eles». Ouvido isto, o caçador foi tocado de compunção, e, levando muito proveito, que lhe comunicara o ancião, retirou-se, enquanto os irmãos, confirmados, voltavam para sua morada.

14. O Abade Antão ouviu que certo jovem monge fizera um milagre pela estrada: tendo ele visto alguns anciãos em viagem fatigados pelo caminho, mandou a asnos selvagens que se aproximassem e carregassem os anciãos até chegarem à cela de Antão. Ora os velhos referiram isto a Antão. Este disse-lhes: «Para mim este monge se parece com uma nave cheia de mercadorias; não sei se chegará ao porto». E, após certo tempo, o Abade Antão de repente pôs-se a chorar e puxar-se os cabelos e lamentar-se. Perguntaram-lhe então os discípulos: «Por que choras, Abade ?» Respondeu: «Grande coluna da Igreja acaba de cair» (falava do jovem monge) «mas ide até ele», disse, «e vede o que aconteceu». Foram-se, pois, os discípulos e encontraram o monge sentado sobre o seu colchão e chorando o pecado que cometera. Ao ver os discípulos do Abade, disse: «Pedi ao ancião que rogue a Deus a fim de que me conceda dez dias apenas, no fim dos quais espero ter satisfeito». Dentro de cinco dias, porém, o jovem morreu.

15. Certo monge foi louvado pelos irmãos junto ao Abade Antão. Ora este, recebendo-o em visita, quis experimentar se sabia suportar uma injúria ; e, tendo verificado que não, disse-lhe: «Assemelhas-te a uma aldeia bem ornada na sua parte anterior, mas por trás despojada pelos ladrões».

16. Um irmão pediu ao Abade Antão: «Reza por mim». Disse-lhe o ancião: «Nem eu terei compaixão de ti, nem Deus, se tu mesmo não te encheres de zelo e rogares a Deus».

17. Alguns anciãos aproximaram-se certa vez do Abade Antão, estando o Abade José com eles.

O ancião, querendo prová-los, propôs uma palavra da Escritura, e, a partir do menos velho, começou a interrogá-los sobre o sentido da mesma. Cada qual respondia conforme a sua capacidade. A todos, porém, Antão dizia: «Ainda não acertaste». Por último perguntou ao Abade José: «Tu como interpretas tal palavra?» Este respondeu-lhe: «Não sei». Replicou o Abade Antão: «O Abade José encontrou plenamente a via, pois disse: 'Não sei'».

18. Alguns irmãos iam da Cétia (NT: Famosa região do Egito habitada pelos monges) em visita ao Abade Antão. Ao subirem no barco para viajar, encontraram um velho que lá também queria

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chegar. Os irmãos não o conheciam. Ora, tendo-se sentado no barco, estes proferiam ditos dos Padres, da Escritura e falavam também do seu trabalho manual, enquanto o ancião, do seu lado, permanecia calado. Quando chegaram ao ancoradouro, evidenciou-se que igualmente o velho ia ter com o Abade Antão. Ao se aproximarem deste, disse Antão aos irmãos: «Encontrastes boa companhia de viagem, que é este velho»; e ao velho: «Encontraste bons irmãos contigo, Abade». Disse o velho: «São bons, sim, mas o quintal deles não tem porta; quem quer, entra no estábulo e solta o burro». Disse isto, porque proferiam tudo que lhes vinha à boca.

19. Alguns irmãos chegaram-se ao Abade Antão e pediram-lhe: «Dize-nos uma palavra pela qual sejamos salvos». Respondeu-lhes o ancião: «Escutastes a Escritura? Está bem para vós». Eles, porém, replicaram: «Também de ti queremos escutar alguma coisa, Pai». Retrucou-lhes: «O Evangelho diz: 'Se alguém te esbofeteia na face direita, oferece-lhe também a outra'» (Lc 5, 39). Disseram-lhe: «Não podemos fazer isto». Respondeu-lhes o ancião: «Se não podeis oferecer também a outra, suportai ao menos numa face. Replicaram-lhe: «Nem isto o podemos». O ancião então disse: «Se nem isto podeis, não retribuais o golpe que recebestes». E responderam: «Também isto, não o podemos». Então o ancião mandou ao seu discípulo: «Prepara-lhes um pouco de mingau, pois estão doentes. Se não podeis isto, e não quereis aquilo, que vos farei? Precisais de orações».

20. Um irmão que renunciara ao mundo e distribuíra os seus bens aos pobres, retendo, porém, alguma pouca coisa para si, apresentou-se ao Abade Antão. Este, ao saber disto, disse-lhe: «Se te queres tornar monge, vai àquela aldeia, compra carnes, aplica-as ao teu corpo nu, e, em tais condições, volta para cá». O irmão tendo feito assim, os cães e pássaros dilaceravam-lhe o corpo. Ora, ao encontrar-se com o ancião, este perguntou-lhe se fizera como havia aconselhado. O irmão mostrou-lhe então o corpo todo dilacerado; ao que disse santo Antão: «Aqueles que renunciaram ao mundo e ainda querem ter bens, são dessa forma despedaçados pelos demônios na luta».

21. A certo irmão sobreveio uma vez uma tentação no cenóbio do Abade Elias. De lá expulso, foi ter com o Abade Antão no monte. Quando o irmão já estava certo tempo com ele, Antão mandou-o regressar para o mosteiro donde viera. Ao vê-lo, porém, os monges de novo o expulsaram, e o irmão voltou ao Abade Antão dizendo: «Não me quiseram receber, Pai». O ancião enviou-o de novo, mandando dizer: «Um barco naufragou no mar, perdeu a carga, e esta com dificuldade foi salva e levada para a terra; vós, porém, quereis atirar ao mar o que foi salvo». Ora, os monges, tendo ouvido que o Abade Antão o enviara, receberam-no logo.

22. O Abade Antão disse: «Julgo que o corpo tem um movimento natural, que lhe é bem conforme, mas não age quando a alma não quer; esta só lhe indica movimentos desapaixonados. Há, além desta, outra espécie de movimentos, que provém do fato de que se alimenta e aquece o corpo com comida e bebida: o calor que o sangue recebe destas, excita o corpo a agir; por isto o Apóstolo dizia: 'Não vos inebrieis com vinho, no qual há luxúria' (Ef 5, 18). Também o Senhor no Evangelho mandou aos discípulos: 'Cuidai para que não se tornem pesados os vossos corações em crápula e embriaguez' (Lc 21, 34). Há ainda uma outra espécie de movimentos, que é própria dos que lutam, e sobrevém por maquinação e inveja dos demônios. Assim é preciso saber que três são as espécies de movimentos do corpo: uma natural, outra província do consumo dos diversos alimentos, e a terceira causada pelos demônios».

23. Disse também que Deus não permite desçam os combates sobre esta geração como sobre as antigas, pois sabe que é fraca e não sustenta.

24. Ao Abade Antão no deserto foi revelado: «Na cidade há alguém semelhante a ti, médico de profissão, o qual distribui aos indigentes o que tem de supérfluo, e o dia inteiro canta o Trisagion ("Santo, Santo, Santo...") com os anjos».

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25. Disse o Abade Antão: «Tempo virá em que os homens enlouquecerão, e, ao verem alguém que não esteja louco, se erguerão contra ele, dizendo: 'Tu és louco', porque não será semelhante a eles».

26. Alguns irmãos chegaram-se ao Abade Antão e disseram-lhe uma palavra do Levítico. Então o ancião saiu para o deserto, seguindo-o às ocultas o Abade Amonas, que conhecia o seu costume. Tendo-se afastado muito, o ancião de pé em oração gritava em alta voz: 'Ó Deus, mandai Moisés e ensinai--me esta palavra». E desceu a ele uma voz que lhe falou. Depois o Abade Amonas disse: «A voz que falava com ele, ouvi-a, sim; a força, porém, da palavra, não a percebi».

27. Três dos Padres costumavam ir ter todos os anos com o bem-aventurado Antão; dois deles interrogavam-no sobre pensamentos e salvação da alma, enquanto o terceiro se calava de todo e nada perguntava. Depois de muito, disse-lhe o Abade Antão: «Eis tanto tempo há que aqui vens e nada me perguntas». Ao que respondeu: «Basta-me ver-te, ó Pai».

28. Diziam que um dos anciãos pedira a Deus a graça de ver os Padres. De fato, viu-os sem o Abade Antão; perguntou, então, a quem lhos mostrava: «Onde está o Abade Antão ?» Aquele respondeu-lhe: «No lugar em que Deus está, aí está ele».

29. Certo irmão no mosteiro foi falsamente acusado de fornicação. Levantou-se então, e foi ter com o Abade Antão. A seguir, chegaram os irmãos do cenóbio para curá-lo e levá-lo; e puseram-se a arguí-lo: «Assim fizeste». Ele, porém, defendia-se: «Nada disso fiz». Achava-se lá oportunamente o Abade Pafnúcio Cefalas, o qual contou esta parábola: «Vi à margem do rio um homem metido na lama até os joelhos; sobrevieram alguns outros para dar--lhe a mão, os quais o mergulharam até o pescoço». Então o Abade Antão disse-lhes a respeito do Abade Pafnúcio: «Eis um homem verdadeiro, capaz de curar e salvar as almas». Compungidos pela palavra dos anciãos, os monges inclinaram-se pedindo perdão ao irmão, e, exortados pelos Padres, levaram-no para o cenóbio.

30. A propósito do Abade Antão, diziam alguns que se tornara pneumatóforo (Portador do Espírito), mas não queria falar por causa dos homens; pois revelava o que acontecia no mundo e o que estava para acontecer.

31. Certa vez o Abade Antão recebeu uma carta do Imperador Constando, que o chamava a Constantinopla. Deliberava sobre o que faria, quando perguntou ao Abade Paulo, seu discípulo: «Devo ir?» Este respondeu-lhe: «Se vais, mereces o nome Antão; se não vais, Abade Antão.

32. O Abade Antão disse: «Já não temo a Deus, mas amo-o. Pois 'a caridade expele o temor'» (1Jo 4, 18).

33. O mesmo disse: «Tem sempre ante os olhos o temor de Deus. Recorda-te daquele que 'leva à morte e traz à vida' (1Sm 2, 6). Odiai o mundo e tudo que nele há. Odiai todo repouso da carne. Renunciai a esta vida, a fim de viverdes para Deus. Recordai-vos do que prometestes a Deus, pois Ele o pedirá de vós no dia do juízo. Sofrei fome, sede, suportai a nudez, vigiai, arrependei-vos, chorai, gemei no vosso coração; provai-vos, a saber se sois dignos de Deus; desprezai a carne, para salvar as vossas almas».

34. Certa vez o Abade Antão foi ter com o Abade Amum na montanha da Nítria. Quando se viram juntos, disse-lhe o Abade Amum: «Já que pelas tuas orações se multiplicaram os irmãos, e alguns deles querem construir moradas longínquas para ter tranqüilidade, a que distância daqui mandas sejam construídas as novas moradas?» Ele respondeu: «Comamos à hora nona; depois saiamos, percorramos o deserto e examinemos o lugar». Tendo eles caminhado pelo deserto até o pôr-do-sol, disse o Abade Antão: «Façamos oração e finquemos aqui uma cruz; aqui construam os que o

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querem, a fim de que os monges de lá, quando visitarem os daqui depois de ter comido o seu magro bocado à hora nona, venham assim (NT: isto é, assim como nós viemos: sem ter que violar a praxe do jejum até a hora nona (três horas da tarde), e, não obstante, chegando em boa hora, ao pôr do sol, ao termo da viagem), e a fim de que os daqui, quando saírem, façam o mesmo, o nem uns nem outros sofram perturbarão pelas visitas mútuas» (NT: o que quer dizer: Não sejam os exercícios de ascese prejudicados pela louvável prática de se visitarem uns aos outros). Ora a distância era do doze milhas.

35. Disse o Abade Antão: «Quem bate a massa de ferro, delibera primeiro o que fará: foice, espada ou machado. Assim também nós devemos deliberar qual virtude procuraremos adquirir, para que não trabalhemos em vão».

36. Disse ainda que a obediência, unida à abstinência, submete as feras.

37. Disse de novo: «Conheço monges que, após muitas fadigas, caíram, e perderam o controle da mente, porque nutriram esperança nas suas próprias obras e negligenciaram o preceito daquele que disse: 'Interroga teu pai, e ele te anunciará' (Dt 32, 7).

38. Disse também: «Se possível, o monge deve confiante dizer aos anciãos quantos passos dá ou quantas gotas bebe na cela, para se certificar de que não ofende nessas práticas».

APOFTEGMAS DO ABADE CASSIANO

1. O Abade Cassiano narrou o seguinte: «Chegamos, eu e o santo Germano, à cela de certo ancião no Egito. Acolhidos com hospitalidade amiga, perguntamos-lhe: «Por que é que, quando recebeis os irmãos peregrinos, não guardais a regra do nosso jejum, como a recebemos na Palestina?» Respondeu o ancião: «O jejum está sempre comigo; a vós, porém, não posso guardar sempre comigo. O jejum é, sim, coisa útil e necessária; depende, porém, da nossa própria vontade; o exercício da caridade, ao contrário, a Lei de Deus no-lo impõe com necessidade. Portanto, ao receber em vós o Cristo, devo tratar-vos com toda a solicitude. Quando vos despedirdes de mim, poderei reassumir a norma do jejum. Pois os filhos da câmara nupcial não podem jejuar enquanto o esposo está com eles; quando lhes é tirado o esposo, então jejuam licitamente».

2. O mesmo referiu o seguinte: «Havia um ancião, a quem uma santa virgem servia. Os homens, porém, diziam: 'Eles não são puros'. Este rumor chegou aos ouvidos do ancião. Quando, pois estava para morrer, disse aos Padres: Após a minha morte, plantai o meu bastão sobre a sepultura; se germinar e der fruto, sabei que sou puro com esta virgem; se, porém, não germinar, concluí que caí com ela». Ora o bastão foi plantado; e no terceiro dia germinou e deu fruto. Todos, então, glorificaram a Deus».

3. Contou ainda: «Chegamos à cela de outro ancião, o qual nos fez comer. Quando já estávamos satisfeitos, convidou-nos a tomar mais alguma coisa. Como eu lhe dissesse que não podia mais, respondeu-me: 'Por seis vezes que chegaram irmãos, pus a mesa, e, convidando-os vez por vez, comi com eles; e ainda tenho fome. Tu, porém, tendo comido uma vez, de tal modo te saciaste que não podes mais comer'».

4. O mesmo narrou de novo: «O Abade João, preposto de um cenóbio, foi ter com o Abade Paésio, que já por quarenta anos vivia no mais retirado recanto do deserto. Já que o Abade João possuía grande caridade para com o Abade Paésio e, em conseqüência, tinha certa liberdade de lhe falar, perguntou-lhe: 'Que fizeste de bom, vivendo por tanto tempo a sós, sem que os homens te pudessem perturbar facilmente?' Respondeu: 'Desde que vivo solitário, o sol nunca me viu comer'. Disse por sua vez o Abade João: 'Nem a mim viu irado'».

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5. O mesmo Abade João, perto de morrer, estava animado e alegre por partir para junto de Deus.

Cercaram-no então os irmãos, pedindo-lhe que lhes deixasse como herança uma palavra breve e salvífica, pela qual pudessem chegar à perfeição em Cristo. O ancião gemeu e disse: «Nunca fiz a própria vontade, nem ensinei a alguém o que antes não tivesse praticado».

6. A respeito de outro ancião, que residia no deserto, o Abade Cassiano contou que rogou a Deus, lhe desse a graça de nunca adormecer durante algum colóquio espiritual; caso, porém, alguém proferisse palavras maldizentes ou ociosas, caísse logo no sono, para que seus ouvidos não recebessem ta] veneno. Dizia que o demônio é zeloso das palavras ociosas, e adversário de todo ensinamento espiritual; o que ele ilustrava com este caso: «Certa vez, quando eu falava a alguns irmãos de coisas de proveito espiritual, foram tomados de tão pesado sono que nem podiam mover as pálpebras. Eu, então, querendo mostrar a ação do demônio, introduzi um dito ocioso; eles, em conseqüência, despertaram-se e alegraram-se profundamente. Gemendo, pois, disse: 'Enquanto falávamos de coisas celestiais, os olhos de todos vós estavam dominados pelo sono; quando, porém, escapou uma palavra ociosa, todos com ânimo vos acordastes. Por isto, irmãos, exorto-vos: reconhecei aação do mau demônio, e vigiai, guardando-vos do torpor, quando fizerdes ou ouvirdes algo de espiritual'».

7. Referiu mais o seguinte: «Um Senador que renunciara ao mundo e distribuíra os seus bens aos pobres, guardou algumas das suas posses para seu próprio uso, não querendo assumir a humildade que decorre da renúncia total nem a genuína submissão da regra cenobítica. A esse São Basílio dirigiu a seguinte palavra: 'Deixaste de ser Senador, e não te fizeste monge'».

8. Disse ainda: «Havia um monge que residia numa gruta no deserto, ao qual os familiares conforme a carne comunicaram o seguinte: 'Teu pai está gravemente enfermo e prestes a morrer; vem para receber a herança'. O monge respondeu-lhes: 'Antes dele, eu morri para o mundo; um morto não recebe herança de um vivo'».

APOFTEGMAS DO ABADE AGATÃO

1. Disse o Abade Pedro, o discípulo do Abade Lote: «Estávamos certa vez na cela do Abade Agatão, quando foi ter com ele um irmão que dizia : «Quero morar com os irmãos; dize-me como hei de viver com eles». Respondeu-lhe o ancião : «Como no primeiro dia em que te chegares a eles, assim todos os dias da tua vida conserva a tua qualidade de estranho, de modo a não teres familiaridade com eles». Perguntou então o Abade Macário: «E que importa a familiaridade?» Respondeu-lhe o ancião : «A familiaridade se parece com um calor muito ardente, o qual, sempre que se produz, afugenta a todos e destrói os frutos das árvores». Interrogou o Abade Macário: «Tão daninha assim será a familiaridade?» Respondeu o Abade Agatão: «Não há outro afeto pior do que a familiaridade; com efeito, é a matriz de todas as paixões. É preciso que o operário 1 não experimente familiaridade, mesmo que viva a sós na cela. Sei que um irmão, tendo morado muito tempo em sua cela, onde havia um leitozinho, disse : 'Teria mudado de cela sem ter percebido nem mesmo o leitozinho, se outro não me tivesse chamado a atenção'. Um tal é realmente operário e guerreiro».

2. Disse o Abade Agatão: «É preciso que o monge não deixe que a consciência o acuse em coisa nenhuma».

3. Disse também: «Sem a observância dos preceitos divinos, o homem não progride em uma só virtude que seja».

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4. Disse ainda: «Nunca adormeci tendo alguma coisa contra alguém; nem, enquanto o podia, deixei que alguém fosse dormir tendo algo contra mim».

5. A respeito do Abade Agatão diziam que o foram procurar alguns homens, os quais tinham

ouvido dizer que possuía grande discernimento. E, querendo experimentar se se enfurecia, disseram-lhe: «Tu és Agatão?» Ouvimos a teu respeito que és fornicador e soberbo». Respondeu: «De fato, assim é». Acrescentaram: «Tu és Agatão, o tagarela e difamador?» Respondeu: «Sou». Disseram mais : «Tu és Agatão, o herege?» Respondeu: «Não sou herege». Solicitaram-no, então, nestes termos: «Dize-nos por que é que aceitaste tão graves coisas que te dissemos; esta última, porém, não a suportaste». Respondeu-lhes: «Aquelas, eu as ponho em minha conta, pois são de proveito à minha alma; ser herege, porém, significa separar-se de Deus, e não me quero separar de Deus». Tendo ouvido isto, admiraram o seu discernimento, e foram-se edificados.

6 . Narraram do Abade Agatão que passou muito tempo a construir a cela com os seus discípulos; tendo-a terminado, retiraram-se nela para a habitar. Na primeira semana, porém, viu algo que não o edificava, e disse aos discípulos: «Levantai-vos, vamo-nos daqui». Ora estes perturbaram-se muito dizendo: «Se de qualquer modo já pensavas em te mudar, por que é que sofremos tão grande fadiga para construir a cela? De novo os homens, escandalizados por nós, hão de dizer : «Eis que os instáveis mais uma vez se mudaram». Vendo-os, então, pusilânimes, respondeu-lhes: «Se se escandalizarem alguns outros se edificarão, dizendo: «Bem-aventurados estes, pois, por causa de Deus, se mudaram e tudo desprezaram'. Quem, pois, quer vir, venha; eu agora me vou». Atiraram-se, então, por terra, rogando-lhe que lhes concedesse partir com ele, até que obtiveram licença.

7. Disseram também a respeito dele que, muitas vezes, mudava de pouso tendo apenas a sua foicezinha no cesto.

8. Perguntaram uma vez ao Abade Agatão o que é maior: o trabalho do corpo ou a disciplina interior (da alma). Respondeu o ancião: «O homem se parece com uma árvore: o trabalho do corpo é como que a folhagem, enquanto a disciplina da alma é como que o fruto. Pois que, conforme está escrito, 'toda árvore que não produz fruto bom, será cortada e atirada ao fogo' (Mt 3, 10), é evidente que todo o nosso esforço deve visar ao fruto, isto é, à disciplina da alma. Contudo também são necessários o envoltório e o ornamento da folhagem, que são o trabalho do corpo».

9. Perguntaram-lhe ainda os irmãos: «Qual a virtude, ó Pai, que entre as demais exige maior labor?» Respondeu-lhes: «Desculpai-me, julgo que não há labor igual ao daoração a Deus. Pois, todas as vezes que o homem quer orar, tentam os inimigos arredá-lo; bem sabem que não são suplantados por outro meio do que pela oração a Deus. Na prática de qualquer virtude que o homem assuma á si, se persevera, consegue tranquilidade; a oração, porém, até o último hálito requer luta».

10. O Abade Agatão era sábio de mente, diligente de corpo; em geral bastava a si mesmo, tanto no trabalho manual como na alimentação e no vestuário.

11. O mesmo caminhava com os seus discípulos, quando um destes encontrou na estrada um grãozinho verde de ervilha e perguntou ao ancião: «Pai, mandas que eu o recolha?» O ancião olhou-o com admiração e interrogou: «Fostes tu que aí o puseste?» Respondeu o irmão: «Não». E o ancião retrucou: «Como então queres recolher o que não puseste ?»

12. Um irmão foi ter com o Abade Agatão, dizendo : «Permite-me que habite contigo». Ora, quando caminhava pela estrada, encontrara pequena pedra de nitro, e a tomara consigo. Disse-lhe, pois, o

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ancião: «Onde encontraste esse seixo?» Respondeu o irmão: «Encontrei-o na estrada ao caminhar, e recolhi-o». Acrescentou o ancião: «Se vinhas habitar comigo, como ousaste recolher o que não havias semeado?» E mandou-lhe colocar de novo o seixo no lugar donde o tirara.

13. Um irmão dirigiu-se ao ancião, dizendo: «Um co preceito me foi dado, e, por causa dele, há luta em mim; queria sair para cumpri-lo, mas temo a luta». Disse-lhe o ancião: «Se estivesse Agatão em tuas condições, cumpriria o preceito e venceria a luta».

14. Reuniu-se na Cétia, para tratar de determinada questão, um conselho, o qual lavrou a respectiva sentença. Depois do mesmo, chegou-se o Abade Agatão aos monges, dizendo: «Não resolvestes o caso devidamente». Perguntaram-lhe: «Tu quem és para dizer uma palavra sequer?» Respondeu: «Sou filho de homem. Pois está escrito : 'Se, de fato, proferis a justiça, sentenciai o que é reto, ó filhos dos homens'» (Sl 57, 2).

15. Diziam do Abade Agatão que passou três anos com uma pedra na boca até que adquiriu o hábito do silêncio.

16. Referiam também dele e do Abade Amum que, quando vendiam algum objeto, diziam uma vez o preço, e, o que se lhes dava, recebiam-no em silêncio e tranqüilidade. Igualmente, quando queriam comprar alguma coisa, davam com silêncio o que se lhes dizia e tomavam o objeto, sem proferir nada absolutamente.

17. O mesmo Abade Agatão disse: «Nunca dei um ágape2; mas o dar e o receber eram para mim ágape (refeição): julgava que o lucro de meu irmão é obra de frutificação» 3.

18. O mesmo quando queria julgar alguma coisa que via, dizia dentro de si: «Agatão, não faças o mesmo». Com isto se apaziguava a sua mente.

19. O mesmo disse: «O homem irascível, ainda que ressuscite um morto, não é agradável a Deus».

20. Em certa época, o Abade Agatão teve dois discípulos que, separadamente, levavam vida eremítica. Um dia perguntou a um : «Como vives em tua cela?» Respondeu-lhe: «Jejuo até o pôr do sol, e então como dois pãezinhos». Disse: «Eis um regime digno, que não acarreta muita fadiga». E ao outro interrogou: «Como vives tu?» Respondeu : «Jejuo dois dias, no fim dos quais como dois pãezinhos». Disse-lhe então o ancião: «Lutas intensivamente sustentando duas pugnas, pois, se alguém come todos os dias e não se sacia, luta. Outros há que querem jejuar dois dias e saciar-se; tu, porém, duplicas o jejum e não te sacias».

21. Um irmão interrogou o Abade Agatão a respeito da fornicação. Respondeu-lhe este: «Vai, atira diante de Deus a tua fraqueza, e encontrarás sossego».

22. Certa vez adoeceram o Abade Agatão e outro dos anciãos. Ora, estando eles deitados na cela, um irmão lia o livro do Gênesis e chegou ao capítulo em que Jacó diz: «José não está, Simeão não está, e a Benjamim haveis de levar; assim fareis chegar em tristeza a minha velhice ao túmulo» (Gên 42, 36). Falou então o ancião: «Não te bastam os outros dez, ó Pai Jacó?» Disse o Abade Agatão: «Cala-te, ancião; se Deus tem alguém por justo, quem é que há de condenar?»

23. Disse o Abade Agatão: «Se alguém me fosse extremamente caro, e eu soubesse que ele me leva ao pecado, eu o afastaria de mim».

24. Disse também: «É preciso que, a toda hora, o homem se recorde do juízo de Deus».

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25. Estando os irmãos a falar sobre a caridade, perguntou o Abade José: «Sabemos nós o que é caridade?» E contou, a respeito do Abade Agatão, que este tinha um canivete; foi ter com ele um irmão, o qual se pôs a louvar o objeto; o Abade, então, não o deixou partir sem que tivesse aceito o canivete».

26. Dizia o Abade Agatão: «Se me fosse possível encontrar um leproso e dar-lhe o meu corpo em troca do corpo dele, fá-lo-ia com prazer. Pois esta é a caridade perfeita».

27. Também dizia dele que, certa vez tendo ido à cidade para vender seus artefatos, encontrou na praça pública um homem atirado por terra, doente, o qual não tinha quem dele tratasse. Ora o ancião permaneceu com ele, tomando uma morada de aluguel, com o trabalho de suas mãos pagava o aluguel e as demais coisas de que necessitava o doente. Assim se deixou ficar quatro meses, até que estivesse curado o enfermo. Depois do que, o ancião voltou para a sua cela em paz.

28. Contava o Abade Daniel: «Antes que o Abade Arsênio viesse ter com meus Pais, também estes permaneciam com o Abade Agatão. Ora o Abade Agatão gostava do Abade Alexandre porque este era lutador4 e diligente.

Aconteceu que todos os discípulos de Agatão lavavam os seus fios de tear no rio; também o Abade Alexandre lavava diligentemente. Os outros irmãos, porém, disseram ao ancião: «O irmão Alexandre nada faz». O mesmo, querendo curá-los, disse-lhe: «Irmão Alexandre, lava bem, pois são fios de linho». Alexandre, tendo ouvido isto, entristeceu-se. Depois, porém, o ancião consolou-o, dizendo: «Então não sabia eu que trabalhas zelosamente? Todavia, disse-te aquilo, em presença deles, a fim de curar a sua mente pela tua obediência, irmão».

29 . A respeito do Abade Agatão narraram que se esforçava por cumprir todas as ordens. Quando navegavam em barco, era ele o primeiro a agarrar o cabo do remo; quando irmãos iam ter com ele, logo depois da oração, punha a mesa com as próprias mãos; com efeito, era cheio do amor de Deus. Quando estava próximo da morte, ficou três dias de olhos abertos e fixos. Os irmãos, então tocaram-no, dizendo: «Abade Agatão, onde estás?» Respondeu-lhes: «Estou colocado diante do tribunal de Deus». Perguntaram-lhe: «Também tu temes, ó Pai?»Respondeu-lhes: «Até agora fiz o que pude para observar os mandamentos de Deus; sou homem, porém; como hei de saber se meu esforço agradou a Deus?» Disseram-lhe os irmãos: «Não tens confiança em teu labor, executado conforme Deus?» Retrucou: «Não terei confiança, antes de me encontrar com Deus; pois um é o modo de julgar de Deus, outro o dos homens». Como o quisessem interrogar de novo, disse-lhes: «Praticai a caridade, não faleis mais comigo, pois estou atarefado». E morreu com alegria. Com efeito viam que ele partia como alguém que saúda os amigos e bem-amados. Tinha grande vigilância em tudo, e dizia: «Sem grande vigilância o homem não progride numa virtude sequer».

30. Certa vez o Abade Agatão dirigiu-se à cidade a fim de vender pequenos objetos, e encontrou um leproso à margem da estrada. Perguntou-lhe o leproso: «Aonde vais?» Respondeu o Abade Agatão: «Para a cidade a fim de vender objetos». Disse-lhe: «Sê caridoso, e leva-me para lá». Agatão, tomando-o nos braços, levou-o para a cidade. Rogou-lhe então o outro: «Onde venderes os objetos, lá coloca-me». Ele assim fez. Quando acabou de vender um objeto, perguntou-lhe o leproso: «Por quanto o vendeste?» Respondeu: «Por tanto». Disse-lhe o leproso: «Compra-me um pão». E aquele o comprou. E de novo vendeu outro objeto. Interrogou então o leproso: «E este, por quanto o vendeste ?» Respondeu : «Por tanto». E o mesmo retrucou : «Compra-me isto». Aquele comprou. Ora, quando terminou de vender todos os seus objetos e se queria ir, disse-lhe o leproso: «Vais embora?» Respondeu: «Sim». E aquele: «Sê de novo caridoso, e reconduze-me aonde me encontraste». E Agatão, tomando-o nos braços, carregou-o para seu antigo lugar. Este então lhe disse: «Bendito és, Agatão, pelo Senhor no céu e na terra». E o Abade, levantando os olhos, a ninguém viu. Com efeito, fora um anjo do Senhor que descera a fim de o experimentar.

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APOFTEGMAS DO ABADE AMONAS

1. Um irmão pediu ao Abade Amonas : «Dize-me uma palavra». Respondeu o ancião: «Vai, e nutre em teu espírito os pensamentos que os malfeitores no cárcere revolvem. Perguntam sempre aos homens onde está o Diretor do Presídio, quando há de vir, e choram por causa da espera. Assim também o monge em todo tempo deve estar preocupado, e arguir a sua alma, dizendo: Ai de mim ! Como posso apresentar-me ao tribunal de Cristo? E como me poderei defender em presença dele ?' Se com tais pensamentos estiver sempre ocupado o teu espírito, poderás ser salvo».

2. Diziam do Abade Amonas que chegara a matar um basilisco1. De fato, tendo ido ao deserto a fim de haurir água do lago, viu o basilisco e caiu sobre a face, dizendo: «Senhor, morra ou eu ou este !» E logo o basilisco, pelo poder de Cristo, se fez em pedaços.

3. Disse o Abade Amonas : «Passei na Cétia quatorze anos, pedindo a Deus, dia e noite, que me concedesse vencer a ira».

4. Um dos Padres contou que nas Célias2 havia um ancião esforçado, o qual costumava carregar uma esteira. Foi ter uma vez com o Abade Amonas. Este, quando o viu carregando a esteira, disse-lhe: «Isto de nada te serve». Falou-lhe então o ancião: «Três sugestões me atormentam: vagar pelo deserto, retirar-me para uma terra estrangeira onde ninguém me conheça, encerrar-me numa cela sem avistar ninguém, comendo de dois em dois dias». Respondeu-lhe o Abade Amonas: «Nenhuma destas três coisas te é oportuna; antes, senta-te em tua cela, come um pouco diariamente, e conserva a palavra do publicano em teu coração3. Assim poderás ser salvo».

5. Aos irmãos sobreveio uma tribulação no lugar em que moravam. Querendo abandoná-lo, foram ter com o Abade Amonas. Ora este descia o rio em barco; vendo-os caminhar à margem do rio, disse aos barqueiros: «Deixai-me descer à terra». E, tendo chamado os irmãos, disse-lhes: «Eu sou Amonas, que vós procurais». A seguir, consolou-lhes o coração e os fez voltar ao lugar donde haviam saído. Pois o que se dera não importava nenhum dano para a alma, mas era tribulação meramente humana.

6. Certa vez o Abade Amonas saiu para atravessar o rio; encontrou a embarcação preparada e sentou-se nela. Sobreveio outro barco ao dito lugar e tomou os passageiros que lá se achavam, para os fazer atravessar. Disseram-lhe: «Vem também tu, ó Abade; atravessa conosco». Este respondeu: «Não entro senão no barco público». Tinha consigo um feixe de palmas, e, sentado, pôs-se a tecer uma corda e desfazê-la, sucessivamente, durante todo o tempo que passou no barco. Assim finalmente atravessou. A seguir, os irmãos, prostrados, perguntaram-lhe: «Por que fizeste isto?» Respondeu-lhes o ancião: «Para que não esteja eu sempre a vaguear na medida em que se precipitam os meus pensamentos. Isto também é uma lição para que com estabilidade caminhemos na via do Senhor».

7. Certa vez o Abade Amonas saiu para ir ter com o Abade Antão. Errou, porém, o caminho, e, tendo-se sentado, dormiu um pouco. Ao se levantar do sono, orou a Deus, dizendo: «Rogo-te, Senhor meu Deus, não deixes perecer a tua criatura». Então apareceu-lhe como que a mão de um homem suspensa do céu a lhe mostrar o caminho, e acompanhou-o até colocá-lo diante da gruta do Abade Antão.

8. A este Abade Amonas profetizou o Abade Antão, dizendo: «Hás de fazer progresso no temor de Deus». E, levando-o para fora da cela, mostrou-lhe uma pedra, e mandou-lhe: «Dize injúrias a esta pedra e bate-a». Ele assim fez. Perguntou-lhe o Abade Antão: «Por acaso a pedra falou? Respondeu: «Não». Acrescentou o Abade Antão : «Assim também tu hás de chegar a esta medida».

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De fato isto aconteceu: o Abade Amonas fez tantos progressos que, de tanta bondade, não mais conhecia a maldade.

Uma vez feito bispo, levaram-lhe uma virgem que havia concebido, e disseram-lhe: «Um tal sujeito foi causa disto; dá-lhes a devida punição». Amonas, então, traçando o sinal da cruz sobre o seio da virgem, mandou que se lhe dessem seis pares de lençóis, dizendo: «Não aconteça que, quando der à luz, morra ela ou a criança e não Se encontre com que sepultar». Replicaram-lhe os que a acusavam: «Porque assim procedeste? Dá-lhes uma punição». O mesmo respondeu: «Considerai, irmãos, que ela está perto da morte; que devo eu fazer?» E despediu-a, sem ousar condenar alguém.

9. Diziam a respeito dele que alguns o tinham ido procurar para serem julgados por ele. Ora o ancião fazia-se de louco. Eis então que uma mulher, chegando-se perto dele, disse: «Este ancião é louco». Ouviu-a o ancião, e interpelou-a nestes termos: «Quanto esforço fiz no deserto para possuir esta loucura; e eis q*ue por causa de ti estou para a perder hoje !»

10 . Uma vez o Abade Amonas foi, a fim de comer, a certo lugar onde morava alguém que tinha má fama. Ao saber disto, os habitantes do lugar se perturbaram e reuniram-se a fim de expulsar a este da cela. E, informados de que o bispo Amonas se achava na região, foram pedir-lhe que os acompanhasse. Quando o irmão teve conhecimento destas coisas, tomou a mulher e escondeu-a num grande tonel. Chegando a multidão à cela, o Abade Amonas teve a intuição do que acontecera, e, por causa de Deus, quis encobri-lo. Entrou; sentou-se sobre o tonel, e mandou revistar a cela. Tendo eles, por conseguinte, procurado a mulher sem a encontrar, disse o Abade Amonas: «Que significa isto? Deus vos há de perdoar». Então fez oração, e mandou que todos se fossem. A seguir, tomou a mão do irmão, e falou-lhe: «Cuidado contigo, irmão». Dito isto, retirou-se também ele.

11. Perguntaram ao Abade Amonas qual seria a «via estreita e atribulada» (Cf Mt 7,14). Ao que respondeu: «A via estreita e atribulada é esta: Fazer violência aos seus pensamentos, e, por causa de Deus, cortar a vontade própria. É assim que se realiza o dito: «Eis que deixamos tudo, e seguimos a ti» (Mt 19, 27).

APOFTEGMAS DO ABADE ARSÊNIO

  

1. Quando ainda morava no palácio, o Abade Arsênio orca a Deus dizendo: «Senhor, dirige-me de modo que seja salvo». E desceu a ele uma voz que dizia: «Arsênio, foge dos homens, e serás salvo».

2. O mesmo, tendo-se retirado para a vida solitária, orou de novo, proferindo a mesma prece. E ouviu uma voz que lhe dizia: «Arsênio, foge, cala-te, está tranquilo, pois estas são as raízes da impecância».

3. Certa vez apresentaram-se os demônios ao Abade Arsênio na cela, atormentando-o. Ora os que lhe serviam, tendo-se aproximado e ficando fora da cela, ouviram-no clamar a Deus e dizer: «õ Deus, não me abandones; nada fiz de bom em tua presença; mas, conforme a tua bondade, concede-me lançar o princípio».

4. Diziam a respeito dele que, assim como no palácio ninguém trajava veste melhor do que ele, assim também na igreja ninguém se apresentava com veste mais vil do que ele.

5. Disse alguém ao bem-aventurado Arsênio : «Como é que nós nada temos (de bom) em conseqüência de tanta erudição e sabedoria, ao passo que estes, os camponeses e egípcios, possuem tão grandes virtudes?» Respondeu o Abade Arsênio : «Nós pela erudição do mundo nada temos, enquanto estes, os camponeses e egípcios, pelo próprio labor é que adquiriram as virtudes».

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6. Certa vez o Abade Arsênio interrogava um ancião egípcio a respeito de seus pensamentos ; outro, vendo-o, perguntou: «Abade Arsênio, como é que tu, que possuis tanta erudição romana e grega, interrogas este campônio a respeito dos teus pensamentos?» Disse-lhe Arsênio: «Possuo, sim, a erudição romana e grega; o alfabeto, porém, deste campônio, ainda não o aprendi».

7. Certa vez o bem-aventurado arcebispo Teófilo, acompanhado de um magistrado, foi ter com o Abade Arsênio. Pedia ao ancião que lhes desse a ouvir uma palavra. Após breve intervalo de silêncio, o ancião respondeu-lhe: «E, se eu vos disser a palavra, guardá-la-eis?» Prometeram guardá-la. Disse-lhes então o ancião: «Onde quer que ouvirdes estar Arsênio, não vos aproximeis de tal lugar» 1.

8. Outra vez, querendo de novo o arcebispo ir ter com ele, mandou primeiro saber se o ancião abriria. Este respondeu-lhe: «Se vieres, abrirei para ti; e, se abrir para ti, hei de abrir para todos; em tal caso, porém, não mais me quedarei aqui». Tendo ouvido isto, disse o arcebispo: «Se é para expulsá-lo que o vou procurar, não mais o irei procurar».

9. Um irmão pediu ao Abade Arsênio que lhe desse a ouvir uma palavra. Disse-lhe o ancião: «Com toda a força que tens, luta para que a tua labuta interior seja conforme Deus, e vencerás as paixões exteriores».

10. Disse também : «Se procurarmos a Deus, aparecer-nos-á; e, se o guardarmos, permanecerá conosco».

11. Disse alguém ao Abade Arsênio : «Os meus pensamentos me afligem sugerindo-me : 'Não podes jejuar nem trabalhar; ao menos sai a visitar os doentes, pois isto é caridade'». O ancião, que conhecia as sugestões dos demônios, disse-lhe : «Vai, come, bebe, dorme e não trabalhes; apenas não deixes a cela». Sabia, com efeito, que a perseverança ña cela coloca o monge na sua ordem devida.

12. Dizia o Abade Arsênio que o monge estrangeiro em terra alheia em nada se deve imiscuir; desta forma encontrará sossego.

13. O Abade Marcos perguntou ao Abade Arsênio: «Por que foges de nós?» Respondeu-lhe o ancião: «Deus sabe que vos amo; não posso, porém, estar com Deus e com os homens. Os milhares e as dezenas de milhares de espíritos supernos têm uma só vontade, enquanto os homens têm muitas vontades. Não posso, por conseguinte, deixar Deus e vir para junto dos homens».

14. Dizia o Abade Daniel, a respeito do Abade Arsênio, que este passava a noite inteira em vigília; quando, ao despontar do dia, por exigência da natureza, chegava a dormitar, dizia ao sono: «Vem, servo mau!» Então, sentado, dormia um pouquinho, e logo se levantava.

15. Dizia o Abade Arsênio que ao monge basta dormir uma hora, se, de fato, é um lutador 2.

16 . Diziam os anciãos que certa vez foram doados aos solitários da Cétia alguns poucos figos secos; já, porém, que não pareciam de valor nenhum, não mandaram parte ao Abade Arsênio, intencionando poupar-lhe uma ofensa. O ancião, tendo ouvido isto, não compareceu à sinaxe 3, alegando: «Vós me excomungastes, não me fazendo chegar a dádiva que Deus mandou aos irmãos, por não ser eu digno de a receber». Ouviram todos e se edificaram pela humildade do ancião. O presbítero então foi-lhe buscar os figos, e levou-o com alegria para a sinaxe.

17. Dizia o Abade Daniel: «Tantos anos permaneceu conosco e somente um tálio 4 de alimento lhe preparávamos por ano; e ainda, quando íamos ter com ele, comíamos desse tálio».

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18. O mesmo dizia ainda a respeito do Abade Arsênio que só uma vez por ano mudava a água das folhas de palmeira; fora disto, apenas acrescentava nova água à água usada; de resto, trançava, corda e cozia até a hora sexta. Ora os anciãos exortaram-no, dizendo: «Por que não mudas a água das palmas, já que exala mau odor?» Respondeu-lhes : «Porque, em lugar dos perfumes e aromas de que gozei no mundo, é preciso que eu agora absorva tal cheiro» 5.

19. Contou ainda que, quando o Abade Arsênio ouvia estarem maduras as frutas das diversas árvores, dizia espontaneamente: «Trazei-mas». E provava, uma vez apenas, um pouquinho de cada qual, dando graças a Deus.

20. Certa vez o Abade Arsênio, tendo adoecido na Cétia, sofria a indigência até mesmo de uma camisa de linho. Não tendo recurso para comprá-la, aceitou de alguém uma esmola, e disse: «Agradeço a ti, Senhor, que me tenham tornado digno de receber uma esmola em teu nome».

21. A respeito dele diziam que tinha a cela afastada à distância de trinta e duas milhas. Não saia com facilidade; outros lhe prestavam os serviços necessários. Depois, porém, que fora devastada a Cétia, saía em prantos e dizia: «O mundo perdeu Roma, e os monges perderam a Cétia !»

22. O Abade Marcos perguntou ao Abade Arsênio: «Não será bom que alguém não tenha em sua cela algum objeto que o console? Pois vi um irmão que possuía pequenas hortaliças e estava a arrancá-las». Respondeu o Abade Arsênio : «É bom, sim ; de acordo, porém, com o temperamento do homem ; pois, se ele não recobrar forças neste gênero de vida solitária, voltará a plantar outras coisas» 6.

23. O Abade Daniel, o discípulo do Abade Arsênio, narrou: «Certa vez, encontrando-me eu perto do Abade Alexandre, acometeu-o uma dor, em virtude da qual ele se estendeu por terra, olhando para o alto. Aconteceu, então, que o bem-aventurado Arsênio se chegou para lhe falar, e o viu estendido. Tendo terminado de falar como intencionava, ainda acrescentou: «E quem era o secular que aqui vi?» Perguntou o Abade Alexandre: «Onde o viste ?» Respondeu : «Quando eu descia da montanha, olhei aqui para a gruta, e vi alguém estendido a fitar o céu». Alexandre atirou-se-lhe, então, aos pés, dizendo o seu arrependimento: «Perdoa-me, era eu; pois a dor me dominava». Respondeu-lhe o ancião : «Então eras tu ? Está bem. Julguei que fosse um secular; por isto é que perguntei».

24. De outra feita disse o Abade Arsênio ao Abade Alexandre: «Quando tiveres acabado de cortar os teus ramos de palmeira, vem comer comigo; se, porém, chegarem peregrinos, come com eles». Ora o Abade Alexandre trabalhava num ritmo sempre igual e lento. Vinda a hora de comer, ainda tinha ramos por cortar; querendo cumprir a ordem do ancião, resolveu acabar primeiramente Os seus ramos. O Abade Arsênio, então, vendo que tardava, comeu; julgava que talvez lhe tivessem ocorrido peregrinos. Quando à tarde terminou o seu trabalho, o Abade Alexandre foi-se. Perguntou-lhe então o ancião : «Recebeste hóspedes ?»

- «Não».

- Por que então não vieste ?»

- «Porque me disseste: 'Quando acabares de cortar os teus ramos, vem'. Ora, observando a tua ordem, não vim, pois há pouco é que terminei o trabalho».

O ancião admirou a fidelidade do discípulo e disse-lhe: «Rompe logo o jejum, para que digas o teu ofício e tomes a tua água; se assim não fizeres, em breve adoecerá o teu corpo».

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25. Certa vez chegou o Abade Arsênio a um lugar onde havia caniços, que o vento agitava. Disse então o ancião aos irmãos : «Que agitação é essa?» Responderam-lhe: «É de caninos». Acrescentou o ancião: «Se alguém que está tranquilamente sentado, ao ouvir o canto de um pardal, não conserva a mesma tranqüilidade era seu coração, quanto mais vós não vos conservareis tranqüilos, tendo ao lado a agitação desses caniços ?»

26. Contava o Abade Daniel que alguns irmãos, devendo ir à Tebaida 7 por motivo de fios de linho, haviam dito : «Dada a ocasião, vejamos também o Abade Arsênio». Ora o Abade Alexandre entrou, e referiu ao ancião: «Irmãos vindos de Alexandria querem ver-te». Respondeu o ancião : «Pergunta-lhes por que razão vieram». Informado de que tinham ido à Tebaida por motivo de fios de linho, comunicou isto ao ancião. Este respondeu : «Sem dúvida, não hão de ver a face de Arsênio, pois não por causa de mim, mas por causa do seu trabalho é que vieram. Faze-os repousar e, a seguir, despede-os em paz, dizendo-lhes que o ancião não pode receber».

27. Certo irmão foi ter à cela do Abade Arsênio na Cétia, e, olhando pela porta, viu o ancião como que todo em fogo; tal irmão era digno de ver isto. Quando o mesmo bateu, apareceu o ancião e notou que o irmão estava como que terrificado. Perguntou-lhe então : «Há muito tempo que estás batendo? Viste alguma coisa aqui dentro?» Respondeu: «Não». Puseram-se, pois, a conversar e, a seguir, Arsênio o despediu.

28. Quando certa vez o Abade Arsênio morava em Canopo, chegou de Roma, para vê-lo, uma virgem de linhagem senatorial, muito rica e temente a Deus. Acolheu-a o arcebispo Teófilo, ao qual ela pediu que convencesse o ancião de a receber. Teófilo, indo ter com o Abade, rogou-o nestes termos: «Tal jovem de família senatorial veio de Roma e quer ver-te». O ancião, porém, não consentiu em recebê-la. Quando isto lhe foi anunciado, ela mandou arrear os cavalos, dizendo: «Confio em Deus que hei de o ver. Pois não foi para ver um homem que vim, já que também na nossa cidade há muitos homens; mas foi para ver um profeta que vim». E, quando chegou às proximidades da cela do ancião, este, por disposição de Deus, passava alguns momentos de lazer fora da cela. Vendo-o, ela caiu-lhe aos pés. Este levantou-a com indignação, e fitou-a dizendo: «Se queres ver o meu semblante, ei-lo; olha». Ela, porém, tomada de confusão, não fixou o rosto do ancião. Disse então Arsênio: «Não ouviste falar das minhas obras? Para estas é que é preciso olhar. Como ousaste fazer tão longa viagem por mar? Não sabes que és mulher? Para parte nenhuma e em tempo nenhum deves sair. Ou será que vieste, para que, voltando a Roma, possas dizer ¡as outras mulheres: 'Vi Arsênio'; e façam do mar a via de mulheres que venham ter comigo?» Ela respondeu: «Se aprouver ao Senhor, não permitirei que alguém venha.aqui; mas reza por mim, e recorda-te sempre de mim». Em resposta disse ele: «Peço a Deus que apague de meu coração a recordação de ti». Tendo, ouvido isto, ela se foi perturbada; e, quando chegou à cidade, incidiu em febre, dada a sua tristeza. Foi então referido ao bem-aventurado Teófilo arcebispo que ela estava doente. Indo ter com ela, este perguntou-lhe o que tinha. Ela explicou: «Oxalá não tivesse vindo aqui; pois disse ao ancião: 'Lembra-te de mim!', e ele respondeu-me: 'Rogo a Deus para que de meu coração se apague a recordação de ti'. Eis que agora morro desta tristeza». Disse-lhe o arcebispo: «Não sabes que és mulher, e que pelas mulheres o inimigo combate os santos? Por isto é que o ancião falou de tal forma. Pela tua alma, porém, ele rezará sempre». Assim se tranqüilizou o espírito da virgem, a qual com alegria voltou para a sua pátria.

29. Narrou o Abade Daniel a respeito do Abade Arsênio que certa vez foi ter com ele um magistrado. Este lhe levava o testamento de um seu parente, de linhagem senatorial, o qual lhe deixava uma herança muito avultada. Arsênio, tendo-se apoderado do testamento, queria rasgá-lo. Então o magistrado caiu-lhe aos pés, dizendo: «Rogo-te, não o rasgues, pois que me seria cortada a cabeça». Respondeu-lhe o Abade Arsênio: «Eu morri antes dele; ele morreu há pouco». E mandou de volta o testamento, sem aceitar coisa alguma.

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30. Diziam também a respeito dele que, no fim do sábado, quando começava a luzir o domingo, deixava o sol atrás de si e estendia as mãos ao céu em oração, até que de novo brilhasse o sol sobre a sua face. Desta forma vivia ele 8.

31. Diziam do Abade Arsênio e do Abade Teodoro de Fermes que, mais do que todos, odiavam a glória dos homens. Por conseguinte, o Abade Arsênio não recebia facilmente alguém; o Abade Teodoro recebia, sim, mas apresentava-se como uma espada.

32. Quando o Abade Arsênio residia nas regiões do Egito inferior, já que era muito procurado pela gente, julgou bom abandonar tal morada. Sem, pois, levar coisa alguma consigo, foi ter com os seus discípulos faranitas 9 Alexandre e Zoilo. Disse então a Alexandre: «Levanta-te, e entra num barco». Este assim fez. E a Zoilo disse: «Vem comigo até o rio, e procura-me uma nave que desça para Alexandria; a seguir, embarca-te também tu e reúne-te a teu irmão». Zoilo, perturbado por esta ordem, calou-se.

Assim se separaram um do outro Arsênio e Zoilo.

Por conseguinte, o ancião desceu para a região de Alexandria, onde veio a adoecer gravemente. No entretempo, os seus discípulos diziam um para o outro: «Será que algum de nós entristeceu o ancião, de modo que nos tenha deixado ?» Nada, porém, encontravam em si que os acusasse, nem se lembravam de lhe ter desobedecido alguma vez.

Ora, tendo recuperado a saúde, o ancião disse: «Irei para junto de meus Pais». Assim embarcou-se, e foi para a região de Petra, onde se achavam os seus discípulos. Quando, porém, se encontrava perto do rio, uma jovem etíope chegou-se, e tocou a sua melote 10. O ancião repreendeu-a. A jovem replicou: «Se és monge, retira-te para o monte». Então o ancião, compungido por esta palavra, dizia em si mesmo: «Arsênio, se és monge, retira-te para o monte». Nessa hora chegaram-lhe ao encontro Alexandre e Zoilo. Como estes lhe caíssem aos pés, também o ancião se precipitou por terra; de ambas as partes puseram-se a chorar. Arsênio então falou,: «Não ouvistes que estive doente?» Responderam-lhe: «Sim». E o ancião a retrucar: «E por que não me fostes ver?» O Abade Alexandre disse: «A tua partida dentre nós não nos foi proveitosa; muitos mesmo ficaram mal impressionados, dizendo: 'Se não tivessem desobedecido ao ancião, não se teria ido'». Respondeu-lhes: «De novo, pois, hão de dizer os homens: 'A pomba não encontrou pouso para seus pés, e voltou a Noé dentro da arca». Desta forma se uniram em boa paz, e permaneceu com eles até o fim da vida.

33. O Abade Daniel referiu ter o Abade Arsênio contado o seguinte, como que falando de ou* trem; talvez, porém, se tratasse dele mesmo: «Estando certo ancião na cela, desceu a ele uma voz que dizia: 'Vem, mostrar-te-ei as obras dos homens'». Tendo-se, pois, levantado, saiu, e quem falara, levou-o para certo lugar, onde lhe mostrou um etíope que cortava lenha, e fizera um grande fardo; tentava carregar a este, mas não o podia; ora, em vez de tirar algo do fardo, de novo se punha a cortar» lenha, e acrescentava-a à carga. Isto, ele o ia fazendo por muito tempo.

Tendo caminhado mais um pouco, aquele que falava, de novo mostrou-lhe um homem colocado ã margem de um lago; hauria água, e derramava-a numa vasilha furada, a qual deixava a água recair no lago.

Disse-lhe de novo: «Vem, mostrar-te-ei ainda outra coisa». Viu então um templo e dois homens montados em cavalos; postos um em face do outro, carregavam um lenho atravessado entre ambos; queriam entrar pela porta, mas não o conseguiam, por estar o lenho atravessado; um desses homens não se abaixou diante do outro a fim de colocar o lenho em linha reta; por isto permaneceram do lado de fora da porta. «Estes são», disse, «os que carregam com soberba uma

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espécie de jugo de justiça, e não se abaixam a fim de se tornarem retos e caminhar a via humilde de Cristo; por isto permanecem fora do reino de Deus. Aquele que cortava lenha, é o homem réu de muitos pecados, que, em vez de fazer penitência, acrescenta novas iniqüidades aos seus pecados. E aquele que hauria água, é o homem que pratica boas obras, mas, por lhes ter misturado algo de mau, perdeu também as boas obras. É preciso, pois, que todo homem exerça a vigilância sobre as suas ações, a fim de que não labute em vão».

34. O mesmo contou que certa vez alguns dos Padres de Alexandria foram ver o Abade Arsênio; um deles era tio do velho Timóteo, arcebispo de Alexandria chamado «o Pobre», e levava consigo um dos seus sobrinhos. Naquela ocasião o ancião achava-se doente, e não os quis receber, para que também outros não o fossem procurar e o importunassem. Estava então em Petra de Troas. Aqueles se foram, entristecidos.

Ora deu-se uma invasão de bárbaros, e Arsênio permaneceu, de espontânea vontade, nas regiões do Egito inferior. Sabendo disto, foram de novo visitá-lo, e Arsênio os recebeu com alegria. Disse-lhe então o irmão que estava com eles: «Não sabes, ó Abade, que te fomos procurar em Troas e que não nos recebestes?» Respondeu-lhe o ancião: «Vós comestes pão, e bebestes água; mas eu, ó filho, em verdade nem pão nem água tomei, nem me assentei, castigando a mim mesmo, até que tive a certeza de que havíeis chegado ao vosso destino, pois por causa de mim vos tínheis fatigado. Contudo, desculpai-me, irmãos!» Eles, consolados, se foram.

35. O mesmo contava: «Certo dia chamou-me o Abade Arsênio, e disse-me: 'Reconforta teu Pai, a fim de que, quando se for para o Senhor, ore por ti e sejas bem sucedido'».

36. Diziam a respeito do Abade Arsênio que, certa vez, tendo ele adoecido na Cétia, o presbítero o levou para a igreja e o colocou sobre um estrado forrado de peles, pondo pequeno travesseiro debaixo da cabeça dele. Ora um dos anciãos foi visitá-lo, e, vendo-o sobre o estrado com um travesseiro debaixo da cabeça, escandalizou-se, e disse: «Este é o Abade Arsênio? Em tal leito é que repousa?» Então o presbítero, tomando-o à parte, perguntou-lhe: «Qual era teu trabalho em tua aldeia?»

- «Eu era pastor».

- «Como, então, levavas a vida?»

- «Vivia em muita fadiga».

- «E agora como levas a vida na cela?»

- «Gozo de mais repouso».

- «Vês este Abade Arsênio? No século era pai de Imperadores 11, e lhe assistiam mil servos, que se cingiam de cinturões de ouro, traziam todos jóias e vestes de seda, tapetes de grande preço se estendiam sob os seus pés. Tu, ao contrário, como pastor, não tinhas no mundo o bem-estar que tens agora, ao passo que este não tem aqui o luxo de que desfrutava no mundo. Por conseguinte, eis que tu gozas de alívio, enquanto este é atribulado».

Aquele, ouvindo tais palavras, foi compungido, e prostrou-se com arrependimento, dizendo: «Perdoa-me, Abade, pequei, pois, sem dúvida, tal é a verdadeira via: este veio para a humilhação, ao passo que eu vim para o alívio». E, edificado, retirou-se o ancião.

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37. Um dos padres foi ter com o Abade Arsênio. Quando bateu à porta, o ancião abriu, julgando que era o discípulo que lhe servia. Notando, porém, que outro era o visitante, caiu sobre a face. Este disse-lhe: «Levanta-te, Abade, para que te saúde». Respondeu o ancião: «Não me levantarei, enquanto não te fores». E, rogado durante muito tempo, não se ergueu, até que o visitante partiu.

38. A respeito de certo irmão que fora à Cétia para ver o Abade Arsênio, narravam o seguinte : Entrou na igreja e pedia aos clérigos que lhe fizessem encontrar o Abade Arsênio. Disseram-lhe: «Sossega um pouco, irmão, e hás de vê-lo». O mesmo retrucou: «Nada provarei enquanto não o encontrar».

Ora, já que a cela de Arsênio era distante, mandaram um irmão que apresentasse o peregrino. Tendo batido à porta, entraram, saudaram o ancião e sentaram-se em silêncio. Disse então o irmão da igreja: «Eu me vou, rogai por mim». O irmão peregrino, não tendo ânimo para falar ao ancião, disse: «Vou também eu contigo». E saíram juntos. Este rogou então àquele: «Leva-me a ver o Abade Moisés, que foi ladrão». E foram ambos ter com este, o qual os recebeu com alegria e, depois de os haver tratado amigavelmente, os despediu.

Disse então o irmão que conduzira o outro : «Eis, levei-te para a cela do estrangeiro e para a cela do egípcio. Qual dos dois te agradou?» Respondeu : «Sem dúvida, agradou-me o egípcio».

Ao ouvir o fato, um dos padres orou a Deus nestes termos: «Senhor, faze-me entender isto: um foge por causa do teu nome; o outro recebe no colo por causa do teu nome». E eis que lhes foram mostradas duas grandes naves no rio: numa viu o Abade Arsênio e o Espírito de Deus a navegar em sossego; na outra viu navegar o Abade Moisés e os anjos de Deus, os quais a Moisés davam a comer favos de mel.

39. Contava o Abade Daniel: «Quando o Abade Arsênio estava para morrer, mandou-nos: 'Não vos preocupeis em fazer ágapes em sufrágio de minha alma 12 ; pois, se pratiquei a caridade (agape); em meu favor, hei de a encontrar'».

40. Quando o Abade Arsênio estava próximo da morte, perturbaram-se os seus discípulos. Disse-lhes então: «Ainda não veio a hora; quando vier, eu vo-lo direi. Hei de ser julgado convosco no tremendo tribunal, caso deis a alguém o meu corpo». Retrucaram: «Que faremos, pois que não sabemos sepultar?» Respondeu o ancião: «Não sabeis passar uma corda em torno do meu pé e levar-me para a montanha?» Era esta a frase habitual do ancião : «Arsênio, porque te retiraste do mundo? De ter falado, arrependi-me muitas vezes; de me ter calado; nunca». Quando estava próximo da morte, viram-no os irmãos a chorar, e disseram-lhe: «Temes também tu, de fato, ó Pai?» Respondeu-lhes: «Na realidade, o temor que nesta hora experimento, me acompanha desde que me tornei monge». Nestes termos adormeceu.

41. Diziam que, durante todo o tempo de sua vida, estando ele sentado a fazer seu trabalho manual, tinha um pedaço de pano sopre o peito por causa das lágrimas que lhe corriam dos olhos. Tendo ouvido que morrera, disse o Abade Poimém em prantos: «Feliz és tu, Abade Arsênio, pois choraste a ti mesmo aqui neste mundo ; com efeito, aquele que não chora a si mesmo aqui, lá para sempre há de chorar. Portanto, seja aqui por espontânea vontade, seja lá por causa dos tormentos, ê impossível não chorar».

42. Referiu a respeito dele o Abade Daniel que jamais quis explicar alguma questão da Sagrada Escritura, embora o pudesse se quisesse. Também não era pronto a escrever cartas. Quando, periodicamente, ia à igreja, sentava-se atrás da coluna para que ninguém visse a sua face nem ele olhasse para alguém. O seu aspecto era angélico, como o de Jacó; tinha a cabeleira totalmente branca, o corpo gracioso ; era descarnado ; trazia barba longa, que lhe pendia até o ventre; os cílios

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dos olhos lhe tinham caído por tanto chorar. Fora de alta estatura; encurvou-a, porém, a velhice. Chegou à idade de noventa e cinco anos. Quarenta anos passou no palácio de Teodósio Magno, de santa memória, fazendo-se como pai dos digníssimos (príncipes) Arcádio e Honório; na Cétia passou quarenta anos: dez, em Troas na Babilônia superior, diante de Mênfins; três, em Canopo de Alexandria; e, os outros dois anos, ele os viveu de novo em Troas, onde adormeceu, tendo consumado em paz e no temor de Deus o seu curso, porque «era homem bom, cheio do Espírito Santo e de fé» (Atos 11, 24). «Deixou-me a sua túnica de pele, a sua camisa branca de cilício e as suas sandálias de folhas de palmeira; coisas que eu, embora indigno, usei a fim de ser abençoado».

43. Contou de novo o Abade Daniel a respeito do Abade Arsênio: «Certa vez chamou os meus Pais, os Abades Alexandre e Zoilo, e, humilhando-se, disse-lhes: «Pois que os demônios me assaltam e não sei se no sono me insinuam sorrateiramente, ao menos esta noite lutai comigo e observai se adormeço em vez de vigiar' E assentou-se um à sua direita, o outro à esquerda, ficando todos em silêncio a partir do anoitecer. Depois disseram os meus Pais: 'Nós dormimos e nos levantamos, e não observamos se adormeceu. De manhã cedo, porém, (Deus sabe se Arsênio o fez apenas para que julgássemos que adormecera ou se, de verdade, a força do sono o sobrepujou) soprou três vezes e logo se levantou, dizendo: Realmente dormi. Responde: 'Não sabemos'».

44. Em dada ocasião foram procurar o Abade Arsênio alguns anciãos, que muito insistiram para vê-lo. Arsênio abriu-lhes. E pediram-lhe que lhes dissesse uma palavra a respeito daqueles que vivem em solidão e com ninguém se avistam. Respondeu-lhes o ancião: «Enquanto a virgem está em casa de seu pai, muitos são os que a querem desposar; depois, porém, que outros a louvam, assim já não goza da estima que possuía antes, quando vivia oculta. Tais são também as coisas da alma: se são publicadas, não podem satisfazer a todos».

APOFTEGMAS DO ABADE EVÁGRIO

1. Disse o Abade Evágrio: «Quando estiveres sentado na cela, recolhe o teu espírito, recorda-te do dia da morte, considera o desfalecimento do corpo, pensa na desgraça; assume a labuta, condena a loucura que há pelo mundo, e isto, para que possas permanecer sempre no propósito de vida retirada e não fraquejes. Lembra-te também da situação no inferno: medita como lá estão as almas, em que mui terrível silêncio, em que acutíssimo gemido, em qual temor, luta e anseio; considera o tormento que não terminará, as lágrimas da alma que não cessarão. Mas recorda-te também do dia da ressurreição e do comparecimento diante de Deus; imagina aquele juízo que arrepia e atemoriza. Revolve em tua mente o que está destinado aos pecadores: vergonha diante de Deus, dos anjos, arcanjos e de todos os homens, ou seja, suplícios, fogo eterno, o verme que não dorme, o tártaro, as trevas, o ranger de dentes, os terrores e os tormentos. Revolve em mente ainda os bens que estão destinados aos justos: intimidade familiar com Deus Pai e seu Cristo, com os anjos e arcanjos, com toda a multidão dos Santos; o reino dos céus e os dons deste, a alegria e o gozo deste. Incute a ti mesmo a recordação destes dois destinos; e, a propósito do julgamento dos pecadores, derrama lágrimas, concebe dor, temendo que também tu sejas contado entre eles; a respeito dos prêmios dos justos, alegra-te e rejubila-te. Procura entrar no gozo destes, e alheia-te daqueles. Cuida para que em tempo nenhum, quer estejas dentro da cela, quer fora, percas a recordação destas coisas, a fim de que, ao menos assim, evites os pensamentos impuros e nocivos».

2. Disse também: «Deixa de ter relações com muitos homens, a fim de que a tua mente não se torne agitada, e perturbe a habitual tranqüilidade (hesychia)».

3. Disse mais : «Grande coisa é rezar sem distração; ainda maior, porém, é salmodiar sem distração».

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4. Disse ainda: «Recorda-te sempre de tua partida deste mundo, e não esqueças o juízo eterno; assim não haverá pecado em tua alma».

5. Disse também: «Retira as tentações, e não haverá ninguém que se salve».

6. Disse ainda : «Um dos Padres assim falava : 'Um regime de vida duro e não inconstante (regular), unido à caridade, leva muito rapidamente o monge ao porto da apatia (apatheia)'» (NT: vitória sobre as paixões).

7. Houve certa vez nas Célias uma reunião de conselho a respeito de determinada questão. O Abade Evágrio então falou; depois do que, disse-lhe o presbítero: «Sabemos, ó Abade, que, se estivesses em tua terra, terias sido feito freqüentes vezes bispo e chefe de muitos; agora, porém, é como estrangeiro que resides aqui». Evágrio, compungido, não se perturbou, mas, movendo a cabeça, disse-lhe: «Em verdade é assim, ó Pai; falei uma vez, não voltarei a falar segunda vez» (NT: citação deJó 40, 5).

APOFTEGMAS DO ABADE MACÁRIO

1. A propósito de si mesmo, o Abade Macário contou o seguinte: «Quando eu era jovem e residia numa cela no Egito, apreenderam-me e fizeram-me clérigo na aldeia. Todavia, já que eu não queria aceitar o cargo, fugi para outro lugar; aí foi ter comigo um homem secular, piedoso, o qual tomava os produtos de meu trabalho manual e me servia. Ora aconteceu que uma virgem, tentada, caiu em fornicação na aldeia; e, como ela estivesse grávida, perguntaram-lhe quem era que a tornara tal. Ela respondeu: 'O anacoreta'. Foram, então, buscar-me e levaram-me para a aldeia; aí penduraram-me ao pescoço marmitas escurecidas pela fumaça e asas de potes; assim me levaram a circular por todos os quarteirões da aldeia, espancando-me e dizendo : 'Este monge corrompeu a nossa virgem; agarrai-o, agarrai-o'. E tanto me batiam que quase morri. Entrementes, aproximou-se um dos anciãos, que disse: 'Até quando espancareis o monge estrangeiro?' O homem referido, que me prestava serviço, seguia, cheio de vergonha atrás de mim, pois também a ele insultavam muito, dizendo: 'Eis o anacoreta do qual davas testemunho; que fez?' Em dado momento os pais da virgem disseram: 'Não o soltaremos antes que dê a caução de que sustentará a jovem'. Então intimei isto ao meu servidor, o qual prestou a caução por mim. Assim voltei para minha cela, e dei ao servidor todos os cestinhos que eu tinha, dizendo-lhe: 'Vende-os, e dá de comer à minha esposa'. A seguir, falei comigo mesmo: 'Macário, eis que encontraste uma esposa; é preciso que trabalhes um pouco mais para sustentá-la'. Em conseqüência, eu trabalhava noite e dia, e mandava-lhe os lucros. Ora, quando chegou para a infeliz o tempo de dar à luz, ela passou muitos dias em dores para conseguir gerar. Perguntaram-lhe, pois: 'Que significa isto?' Ela respondeu: 'Eu sei, pois caluniei o anacoreta e o acusei mentirosamente; não é ele que tem culpa, mas tal jovem'. Então meu servidor, alegre, veio ter comigo, comunicando: 'A virgem não pôde dar à luz até confessar': 'O anacoreta não tem culpa, mas menti contra ele. Eis agora que a aldeia toda quer vir aqui com honrarias e pedir-te perdão'. Eu, ao ouvir isto, levantei-me e fugi aqui para a Cétia, a fim de que não me atribulassem os homens. Este é o motivo pelo qual vim para cá».

2. Certa vez Macário o Egípcio foi da Cétia à montanha da Nítria para participar da oblação do Abade Pambo. Pediram-lhe então os anciãos: «Dize uma palavra aos irmãos, ó Pai». Ele respondeu: «Eu ainda não me tornei monge, mas vi monges. Pois em dada ocasião, estando eu na Cétia sentado na cela, atormentaram-me os pensamentos sugerindo-me: 'Vai para o deserto, e considera o que lá se te deparar'. Fiquei em luta com este pensamento durante cinco anos, dizendo-me: 'Não seja ele inspirado pelo demônio'. Visto, porém, que o pensamento persistia, fui para o deserto; lá encontrei um lago com uma ilha no meio, aonde os animais do deserto iam beber. Entre os animais vi dois homens nus, o que fez estremecer meu corpo, pois julguei que fossem espíritos. Eles, porém, vendo-me atemorizado, disseram-me: 'Não temas; também nós somos homens'. 'Perguntei-lhes

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então: 'Donde sois, e como viestes para este deserto?' Responderam: 'Somos de um cenóbio; combinamos vir juntos para cá, e eis quarenta anos que aqui estamos e um de nós é Egípcio, e outro Líbio'. A seguir, eles, por sua vez, me interrogaram: 'Como está o mundo? Cai a água em seu tempo? Tem o mundo sua prosperidade habitual?' Respondi-lhes: 'Sim'. De novo interroguei-os: 'Como posso tornar-me monge?' Responderam-me: 'Se alguém não renuncia a tudo que é do mundo, não se pode tornar monge'. 'Repliquei: 'Eu sou fraco, e não posso fazer o mesmo que vós'. Observaram eles: 'Se não podes fazer o mesmo que nós, senta-te em tua cela, e chora os teus pecados'. Perguntei-lhes ainda: 'Quando é inverno, não sentis frio? E, quando faz calor, não se queimam os vossos corpos?' 'Responderam: 'Deus nos fez esta graça: nem sentimos frio no inverno, nem nos prejudica o calor no verão'. É por isto que vos disse que ainda não me tornei  monge, mas vi monges. Perdoai-me, irmãos».

3. Quando o Abade Macário habitava o pleno deserto, levava absolutamente a sós vida anacorética, enquanto mais abaixo havia outro deserto, onde muitos irmãos habitavam. O ancião, que costumava observar a estrada, certa vez viu Satanás que se aproximava sob forma de homem, devendo passar por ele; aparecia trajando uma túnica de linho perpassada de furos, dos quais pendiam pequenos vasos. Perguntou-lhe então o ilustre ancião: «Aonde vais?» Respondeu: «Vou recordar alguma coisa aos irmãos». Continuou o ancião: «E por que levas esses frascozinhos?» Explicou aquele: «São iguarias que levo para os irmãos. 'O ancião insistiu: «Isso tudo?» O outro afirmou: «Sim; se um não agradar a alguém, apresentar-lhe-ei outro; e, se também este não agradar, apresentarei um terceiro; finalmente, dentre todos ao menos um há de agradar». E, tendo dito isto, foi-se. O ancião ficou observando as estradas, até que de novo aquele voltou; ao vê-lo, Macário disse-lhe: «Salve!»Satanás perguntou: «Como me é possível salvar-me?» Disse o ancião: «Por que assim falas?» O outro explicou: «Porque todos foram cruéis para comigo, e ninguém me tolera». O ancião indagou: «Então não tens nenhum amigo lá?» Aquele disse: «Sim, tenho lá um monge amigo, e ao menos este me obedece; quando me vê, volta-se como vento». Prosseguiu o ancião: «E como se chama tal irmão?» Satanás respondeu: «Teopempto». E, dito isto, seguiu caminho. Então o Abade Macário levantou-se e foi ao deserto que estava mais abaixo. Quando soube da sua chegada, os irmãos tomaram palmas nas mãos e saíram ao seu encontro; a seguir, cada um pôs-se a fazer os preparativos, julgando que o ancião havia de se hospedar na sua cela. Macário, porém, procurava quem era na montanha o chamado Teopempto. Tendo-o encontrado, entrou na cela deste. Teopempto recebeu-o com júbilo, Quando estavam os dois a sós o ancião perguntou: «Como estás, irmão?» Aquele respondeu: «Bem, por tuas preces». O ancião continuou: «Os teus pensamentos não te atormentam?» O outro afirmou: «Em verdade estou bem», pois tinha vergonha de confessar. O ancião insistiu- «Eis há quantos anos levo vida ascética, sou honrado por todos; não obstante, mesmo a mim, ancião, atormenta o espírito da fornicação». Teopempto então confessou: «Crê, ó Abade, que também a mim». A seguir, o ancião pôs-se a alegar que ainda outros pensamentos o perseguiam, até conseguir que Teopempto confessasse o mesmo. Finalmente, perguntou-lhe Macário: «Como jejuas?» Aquele respondeu: «Até a nona hora». O ancião mandou: «Jejua até o pôr do sol; luta; recita de cor trechos do Evangelho e das outras Escrituras; e, se te sobrevier algum pensamento mau, nunca olhes para baixo, mas sempre para cima, e logo o Senhor te auxiliará. Tendo assim instruído o irmão, o Abade voltou para sua solidão. Ora eis que, quando estava a espreitar a estrada, viu mais uma vez aquele demônio; perguntou-lhe: «Aonde vais de novo?» Respondeu: «Lembrar alguma coisa aos irmãos». E continuou caminho. Quando voltou, o santo perguntou-lhe: «Como estão os irmãos?» Aquele disse: «Mal». O ancião indagou: «Por quê?» Respondeu: «São todos cruéis; e o maior mal é que também aquele que eu tinha como amigo obediente, mesmo esse, não sei como, se voltou; nem ele me obedece; ao contrário, tornou-se o mais cruel de todos; jurei por conseguinte, não andar mais por aqueles lugares senão após algum tempo». Dito isto, foi embora, deixando o ancião. E o santo entrou em sua cela.

4. O Abade Macário, o Grande, foi ter com o Abade na montanha. Tendo batido à porta, este veio-lhe ao encontro e perguntou: «Tu quem és?» Respondeu: «Sou Macário». Antão fechou a porta,

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deixando-o fora. Notando, porém, a paciência dele, abriu-lhe e disse-lhe com muita graça: «Há muito tempo desejava ver-te, pois ouvira falar de ti». Recebeu-o então hospitaleiramente, e restaurou-lhe as forças, pois estava muito cansado. Ao pôr do sol, o Abade Antão umedeceu para si algumas palmas; o Abade Macário disse: «Manda que também eu umedeça algumas palmas para mim». Aquele respondeu: «Umedece». Fez, então, um feixe grande, umedeceu-O; e ficaram os dois sentados desde o cair da noite, falando da salvação da alma e tecendo, de tal modo que a corda chegava a cair pela janela para dentro da gruta. De manhã, ao entrar, o Abade Antão viu a grande quantidade de cordame do Abade Macário e disse: «Muita força procede dessas mãos».

5. O Abade Macário dizia aos irmãos, a respeito da devastarão da Cétia: «Quando virdes uma cela construída perto do pântano, sabei que a sua devastação está próxima; quando virdes árvores, a devastação estará às portas; quando virdes meninos, tomai os vossos mantos e retirai-vos».

6. Disse também, para exortar os irmãos: «Aqui veio um menino possesso do demônio, com sua mãe. Ora o pequenino disse a esta: 'Levanta-te, ó velha, vamo-nos daqui'. Ela respondeu: 'Não posso andar'. A criança retrucou então: 'Eu te carregarei'. Fiquei estupefato pela maldade do demônio, que os queria afugentar daqui».

7. Contava o Abade Sisoé: «Quando eu estava na Cétia com Macário, subimos sete nomes (NT: "Nomes" está em lugar de "homens" ou "irmãos". Sete companheiros, pois, saíram com o Abade Macário) para fazer a messe com ele. E eis que diante de nós se achava uma viúva a colher espigas, a qual não cessava de chorar. Então o ancião chamou o proprietário do campo e disse-lhe: 'Que tem esta velha, pois está sempre chorando?' Aquele respondeu: 'É que o marido dela tinha bens de outrem em depósito, e morreu repentinamente sem lhe dizer onde os pusera; agora o proprietário do depósito quer levar a ela e aos filhos como escravos'. O ancião falou: 'Dize-lhe que venha ter conosco, onde estamos repousando por causa do calor'. Quando a mulher chegou, o ancião perguntou-lhe: 'Por que estás assim sempre a chorar?' Ela respondeu: 'Meu marido morreu depois de ter aceito o depósito de alguém, e, ao morrer, não disse onde o colocara'. O ancião intimou-a: 'Vem, mostra-me onde sepultaste teu marido'. E, tomando os irmãos consigo, seguiu a mulher. Chegando eles ao referido lugar, disse a ela o ancião: 'Retira-te para tua casa'. A seguir, fizeram oração, e o ancião chamou o morto, dizendo. 'Ó tal, onde colocaste o depósito alheio?' Aquele respondeu: 'Está escondido em minha casa, sob o pé da cama». O Abade concluiu: 'Dorme de novo até o dia da ressurreição'. Vendo isto, os irmãos caíram de medo aos pés dele, o qual lhes disse 'Não foi por causa de mim que isto aconteceu, pois nada sou; mas foi por causa da viúva e dos órfãos que Deus o fez. Isto é grandioso: Deus quer que a alma esteja sem pecado; e, se ela é tal, recebe tudo o que pede'. O Abade se foi, pois, e anunciou à viúva onde se achava o depósito. Esta o retirou, entregou-o ao dono, libertando assim os seus filhos». E todos os que ouviram isto, deram glória a Deus.

8. O Abade Pedro contou, a respeito de São Macário, que foi ter uma vez com um anacoreta e o encontrou doente; perguntou-lhe, então, o que queria comer, pois nada tinha em sua cela. Aquele respondeu: «Uma broinha de farinha». Em conseqüência, o corajoso Abade não hesitou em ir à cidade de Alexandria e satisfazer assim o doente. O admirável é que o feito a ninguém se tornou notório.

9. Referiu também que o Abade Macário vivia em simplicidade e inocência com todos os irmãos; alguns então perguntaram-lhe: «Por que te comportas assim?» Respondeu: «Doze anos servi ao meu Senhor para que me desse esta graça; e todos vós me aconselhais que a rejeite?»

10. Diziam do Abade Macário que, quando se permitia certo lazer em companhia dos irmãos, estabelecia para si o seguinte princípio «Se houver vinho, bebe por causa dos irmãos, e, em troca de um cálice de vinho, deixa de beber água durante o dia». Ora os irmãos ofereciam-lhe vinho para restaurar-lhe as forças. O ancião o aceitava com alegria para mortificar-se. O seu discípulo, porém,

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que sabia o que se dava, dizia aos irmãos: «Por amor do Senhor, não lhe ofereçais; senão, ele se macerará na cela». Informados disso, os irmãos não lhe ofereciam mais vinho.

11. Quando certa vez o Abade Macário se dirigia do pântano para a sua cela, carregando palmas, eis que lhe foi ao encontro na estrada o demônio, trazendo uma foice. Este quis espancá-lo, mas não teve vigor; disse-lhe então: «Procede muita força de ti, ó Macário, pois não te posso agredir. Eis que, tudo o que fazes, também eu o faço; tu jejuas, eu também; tu vigias de  noite, eu também não durmo; há uma só coisa em que me vences». O Abade Macário perguntou: «Qual é?» Aquele respondeu: «A tua humildade; e é por causa desta que não te posso agredir».

12. Alguns dos Padres perguntaram ao Abade Macário: «Por que é que, quer comas, quer jejues, teu corpo é descarnado?» Respondeu o ancião: «O lenho que revira os gravetos em combustão, é todo consumido pelo fogo. Assim também se o homem purifica a sua mente pelo temor de Deus, o próprio temor de Deus consome o corpodele».

13. Em dada ocasião o Abade Macário foi da Cétia a Terenutim, e entrou no templo para dormir. Ora lá havia antigos esqueletos de pagãos, dos quais ele tomou um, colocando-o na cabeça como travesseiro. Os demônios, vendo a coragem do Abade, foram acometidos de inveja; e, querendo amedrontá-lo, puseram-se a chamar um nome de mulher, dizendo: «ó tal, vem conosco ao banho!» Outro demônio respondeu debaixo dele como que dentre os mortos: «Tenho um estrangeiro em cima de mim, e não posso ir». O ancião, porém, não se aterrou; ao contrário, com muita coragem batia o esqueleto dizendo: «Levanta-te, e vai para as trevas, se podes». Ao ouvir isto, os demônios clamaram em alta voz: «Tu nos venceste». E fugiram confusos.

14. A respeito do Abade Macário o Egipcio, narravam que, certa vez, se pôs em viagem a partir da Cétia, carregando cestos; cansou-se, porém, e sentou-se no caminho; a seguir, orou dizendo: «Deus, tu sabes que não tenho forças». E logo foi encontrado junto ao rio.

15. Havia no Egito alguém que tinha um filho paralítico. Levou-o à cela do Abade Macário,

e, tendo deixado o menino em prantos à porta, retirou-se para longe. Ora o ancião, abaixando-se, viu a criança e perguntou-lhe: «Quem te trouxe cá?» Respondeu o menino: «Meu pai atirou-me aqui e foi-se embora». O Abade, então, mandou: «Levanta-te, e vai-te juntar a ele». E eis que o menino foi imediatamente curado, levantou-se e foi ter com o pai. Assim voltaram ambos para casa.

16. O Abade Macário o Grande dizia aos irmãos na Cétia, quando despedia a assembléia da igreja: «Fugi, irmãos». Um dos anciãos perguntou-lhes certa vez: «E para onde, além deste deserto, havemos de fugir?» Macário então colocou o dedo sobre a boca e disse: «Fugi isto». A seguir, entrou na cela, fechou a porta e sentou-se.

17. Disse o Abade Macário: «Se, ao repreender alguém, és movido à ira, satisfazes a própria paixão. Não é perdendo a ti mesmo que salvaras os outros».

18. O mesmo Abade Macário, estando no Egito, encontrou um homem que, acompanhado de jumento, roubava as coisas de que se servia o Abade. Este, então, como um estranho, colocou-se ao lado do ladrão; com ele pôs-se a carregar o jumento, e, com muita calma, despediu-se dele, dizendo «Nada trouxemos para este mundo; é evidente que também nada podemos levar (1Tm 6,7). O Senhor deu; como Ele quis, assim se fez. Bendito seja o Senhor em tudo» (Jó 1,21).

19. Alguns perguntaram ao Abade Macário: «Como devemos orar?» Respondeu o ancião: «Não é preciso falar muito, mas estender as mãos e dizer: «Senhor, como queres e como sabes, compadece-

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te», ou, se estiveres tentado: «Senhor, vem em meu socorro». Ele mesmo sabe o que convém, e usa de misericórdia conosco».

20. Disse o Abade Macário: «Se se tornarem a mesma coisa para ti o desprezo e o louvor, a pobreza e a riqueza, a carência e a abundância, não morreras. Pois é impossível que aquele que crê como deve e age com piedade, caia na impureza das paixões e no erro dos demônios».

21. Contavam o seguinte: «Dois irmãos na Cétia cairam em falta, e o Abade Macário, da cidade, os excomungou. Alguns foram então procurar o Abade Macário o Grande, Egípcio, e lhe referiram o que acontecera. Este respondeu: «Não são os irmãos que estão excomungados, mas Macário está excomungado». Macário, o Egípcio, amava o outro Macário. Ora este ouviu que fora excomungado por aquele ancião, e fugiu para o pântano. Aconteceu então que o Abade Macário o Grande, saindo, o encontrou todo mordido pelos mosquitos; disse-lhe: «Tu excomungaste os irmãos, e eis que eles tiveram que se retirar para a aldeia. Eu, porém, te excomunguei, e tu, como uma bela virgem, fugiste para cá como para a câmara interior. Ora eu chamei os irmãos, interroguei-os, e eles afirmaram que nada disso aconteceu. Cuida, pois, irmão, de que também tu não tenhas sido iludido pelos demônios (pois nada viste); antes, prostra-te pedindo perdão por tua culpa». O outro respondeu: «Se queres, dá-me uma penitência». Vendo, pois, o ancião a humildade dele, disse: «Vai, e jejua três semanas, comendo uma vez por semana». Com efeito, esta era a tarefa do Abade Macário o Grande em todo tempo: jejuar a semana inteira».

22. O Abade Moisés disse ao Abade Macário na Cétia: «Quero viver em paz, mas os irmãos não me deixam». Respondeu-lhe o Abade Macário; «Vejo que a tua natureza é delicada e que não podes repelir um irmão; mas, se queres viver em tranqüilidade, retira-te para o deserto a dentro em Petra, e lá encontrarás descanso». Aquele fez assim, e conseguiu repouso.

23. Um irmão chegou-se ao Abade Macário o Egípcio e pediu-lhe: «Abade, dize-me uma palavra pela qual eu seja salvo». Respondeu o ancião: «Vai para junto do túmulo e insulta os mortos». Ora o irmão se foi, injuriou e apedrejou; a seguir, voltou referindo o feito ao ancião. Este perguntou: «Nada te disseram?» Aquele respondeu: «Nada». O ancião continuou: «Volta lá amanhã e dize louvores a esses mortos». O irmão voltou, pois, e pronunciou louvores aos mortos, chamando-os Apóstolos, Santos e Justos. A seguir, regressou à cela do ancião e referiu: «Disse louvores». O Abade perguntou: «Nada te responderam?» O irmão negou «Nada». Aquele retomou: «Sabes quanto lhes disseste de injuriosos, sem que eles te tenham respondido, e quanto lhes disseste de injurioso, sem que eles te tenham respondido, e quanto lhes disseste de glorioso sem que te tenham falado; assim também tu, se queres ser salvo, torna-te morto; como os mortos, não consideres nem as injurias doshomens nem os seus louvores. Assim poderás ser salvo».

24. Quando uma vez o Abade Macário passava com irmãos por uma região do Egito, ouviu um menino que dizia a sua mãe: «Mãe, certo homem rico gosta de mim, e eu o odeio, ao passo que um pobre me odeia e eu o amo». Ao ouvir isto, o Abade Macário admirou-se. Perguntaram-lhe então os irmãos: «Que significa essa palavra, Pai, pois que te admiraste?» Respondeu-lhes o ancião: «Em verdade, Nosso Senhor é rico e nos ama, enquanto nós não o queremos ouvir. Ao contrário, nosso inimigo, odemônio, é pobre e nos odeia, enquanto nós amamos a sua impureza».

25. O Abade Poimém, com muitas lágrimas, pediu ao Abade Macário: «Dize-me uma palavra pela qual eu seja salvo». Respondeu o ancião: «O que procuras, já desapareceu dentre os monges».

2ô. Certa vez o Abade Macário foi ter com o Abade Antão e conversou com ele. Quando voltava para a Cétia, acorreram-lhe ao encontro os Padres. Estando todos em colóquio, disse o ancião: «Referi ao Abade Antão que não temos oblação em nossa região». Os Padres, porém, puseram-se a falar de outros assuntos, e não perguntaram a Macário qual fora a resposta do Abade Antão, nem

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aquele a referiu. Com efeito, um dos Padres dizia o seguinte: «Quando os Padres vêem que os irmãos se esquecem de interrogar a respeito de coisas edificantes, julgam-se obrigados a encetar eles mesmos uma conversa edificante; se, porém, os irmãos não correspondem, não continuam tal assunto, para que não pareçam falar sem ter sido interrogados nem a sua conversa seja tida como ociosa».

27. O Abade Isaías pediu ao Abade Macário: «Dize-me uma palavra». O ancião respondeu:

«Foge dos homens». O Abade Isaías continuou: «Que é fugir dos homens?» O ancião explicou: «É ficares sentado em tua cela e chorares os teus pecados».

28. O Abade Pafnúcio, o discípulo do Abade Macário, contou: «Roguei a meu Pai: 'Dize-me uma palavra'. E ele respondeu: 'Não faças mal a alguém, nem condenes quem quer que seja. Observa isto, e serás salvo'».

29. Disse o Abade Macário: «Não durmas na cela de um irmão que tem má fama».

30. Certa vez alguns irmãos foram ter com o Abade Macário na Cétia; não encontraram na cela dele senão água putrefeita. Disseram-lhe então: «Abade, vem para a aldeia, e nós te restauraremos as forças». O ancião respondeu: «Conheceis, irmãos, a padaria de um tal na aldeia?» Responderam-lhe: «Sim». Continuou o ancião: «Também eu a conheço. E conheceis o terreno de tal homem situado no lugar em que bate o rio?» Responderam-lhe: «Sim;>. E o ancião concluiu: «Também eu o conheço. Por conseguinte, quando quero, não preciso de vós, mas vou buscar para meu uso (o que quero)».

31. A respeito do Abade Macário contavam que, se um irmão o ia procurar com medo, como a célebre e santo ancião, ele nada dizia. Se, porém, um irmão lhe falava como que desprezando-o: «Abade, então quando eras condutor de camelos p roubavas sal para o vender, não te espancavam os guardas?», se alguém o interpelava assim, ele respondia com alegria a tudo que perguntasse.

32. Do Abade Macáno o Grande diziam que se tornou, como está escrito, Deus sobre a terra, pois, assim como Deus recobre o mundo, também o Abade Macário recobria as falhas, que ele via como se não visse, e que ele ouvia como se não ouvisse.

33. O Abade Bitímio referiu que o Abade Macário contava o seguinte: «Quando eu residia na Cétia, certa vez lá foram ter dois jovens estrangeiros, dos quais um tinha barba, e o outro um começo de barba. Chegaram-se a mim, perguntando: 'Onde fica a cela do Abade Macário?' Perguntei a meu turno: 'Por que o procurais?' Responderam: 'Tendo ouvido falar dele e da Cétia, viemos vê-lo'. Declarou então: 'Sou eu' Eles caíram por terra, dizendo: 'Queremos permanecer aqui'. Eu, vendo que eram delicados e como que afeitos à riqueza, respondi-lhes: 'Não podeis ficar aqui'. O mais velho, porém, replicou: 'Se não podemos ficar aqui, vamo-nos para outro lugar'. Disse então comigo mesmo: 'Por que os hei de expulsar e escandalizar? A labuta os fará fugir por si mesmos'. Falei-lhes, pois: 'Vinde, e fazei uma cela para vós, se podeis'. Responderam: 'Mostra-nos um lugar, e nós a faremos'. O ancião deu-lhes um machado, uma sacola cheia de pão, e uma porção de sal; a seguir, mostrou-lhes uma rocha dura, dizendo: 'Talhai a pedra aqui, ide buscar lenha no pântano e, quando tiverdes concluído o teto, morai aí'. — 'Eu pensava, disse o ancião, que, à vista do trabalho, haviam de partir'. Eles, porém, ainda me perguntaram qual deveria ser a sua futura ocupação naquela morada. Respondi: 'Tecer cordames'. E fui buscar palmas no pântano, mostrei-lhes como se começa a tecelagem e como se deve coser, acrescentando: 'Fazei cestas, e entregai-as aos guardas, os quais vos trarão pães'. A seguir, retirei-me. Eles, então, com paciência fizeram tudo que lhes mandei; e não me vieram procurar durante três anos. Neste entretempo fiquei lutando com meus pensamentos e perguntando-me: 'Que estarão fazendo, pois não voltaram para interrogar a

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respeito das suas idéias? Outros de longe vêm ter comigo; estes, porém, que habitam perto, não voltaram nem foram ter com outros; só vão à igreja, em silêncio, a fim de receber a oblação'. Orei então a Deus e jejuei uma semana, a fim de que me mostrasse o que eles faziam. Terminada a semana, levantei-me e fui ter com eles para ver como viviam. Bati à porta; eles abriram e saudaram-se em silêncio; fiz oração e sentei-me. Então o mais velho fez um sinal de cabeça ao mais novo para que saísse, e sentou-se para tecer corda sem dizer coisa nenhuma. À hora nona, ele fez um ruído; o mais jovem entrou, e, ao sinal do mais velho, preparou um pouco de mingau, pôs a mesa e sobre esta colocou três pães, deixando-se ficar em pé ao lado e taciturno. Eu disse, por conseguinte: 'Levantai-vos, vamos comer'. Levantamo-nos, e comemos; depois o jovem trouxe a caneca e bebemos. Quando caiu o sol, perguntaram-me: 'Vais embora?' Respondi: 'Não, mas dormirei aqui'. Eles então estenderam uma esteira para mim de um lado, e outra para si do outro lado, no canto; tiraram os seus cinturões e se deitaram juntos sobre a esteira diante de mim. Ora, quando já estavam deitados, roguei a Deus que me revelasse o que eles faziam. Abriu-se, então, o teto e desceu uma luz como que de dia; eles, porém, não viam a luz. E quando julgavam que eu estava dormindo, o mais velho cotovelou o lado do mais jovem; levantaram-se ambos, cingiram-se, e estenderam as mãos para o céu. Eu os considerava; eles, porém, não me perceberam. E vi os demônios que desciam como moscas sobre o mais moço; uns se pousavam sobre a boca dele, outros sobre os olhos; vi também um anjo do Senhor com uma espada de fogo na mão que protegia o jovem ao redor e dele afugentava os demônios. Quanto ao mais velho, porém, dele não se podiam aproximar. Ao despontar do dia, eles se deitaram de novo; eu fiz como se me estivesse despertando, e eles também. Então o mais velho me disse apenas estas palavras: 'Queres que recitemos os doze salmos?' Respondi: 'Sim'. O mais novo, pois, cantou cinco salmos de seis versos, e um Aleluia; a cada verso, saía uma chama de fogo da boca dele, a qual subia para o céu. De forma semelhante, quando o mais velho abria a boca para salmodiar, desta saiam como que labaredas de  fogo, as quais chegavam até o céu. Também eu recitei um pouco, de cor. Por fim, despedi-me, dizendo: 'Rezai por mim'. Eles, porém, prostraram-se por terra, em silêncio. Assim fiquei sabendo que o mais velho era perfeito e que ao mais jovem o inimigo ainda perseguia. Poucos dias depois, o irmão mais velho faleceu, e, três dias mais tarde, o mais moço».

Para o futuro, quando alguns dos Padres iam ter com o Abade Macário, este os levava à cela dos dois, dizendo-lhes: «Vinde, vede o martírio dos pequenos peregrinos».

34. Certa vez os anciãos da montanha mandaram pedir ao Abade Macário na Cétia: «Para que não se canse o povo todo indo ter contigo, rogamos-te que venhas a nós, de modo que te vejamos antes que emigres para junto do Senhor». Macário foi, pois, à montanha, e todo o povo se reuniu em torno dele. Os anciãos pediram-lhe que dissesse uma palavra aos irmãos; ao que ele respondeu: «Choremos, irmãos, e que os nossos olhos derramem lágrimas antes que nos vamos para aquele lugar em que as nossas lágrimas consumirão de fogo os nossos corpos». Puseram-se, então, todos a chorar, prostrados sobre a face, e disseram: «Pai, reza por nós».

35. De outra feita, um demônio apresentou-se ao Abade Macário com uma espadazinha, querendo amputar-lhe o pé; mas não o pôde por causa da humildade dele, e, em conseqüência, disse-lhe: «Tudo que vós tendes, também nós o temos; apenas pela humildade diferis de nós, e prevaleceis sobre nós.

36. Disse o Abade Macário: «Se guardamos a recordação dos males que nos são acarretados pelos homens, extinguimos a eficácia da recordação de Deus. Se, porém, conservamos a lembrança dos males causados pelos demônios, somos invulneráveis».

37. O Abade Pafnúcio, o discípulo do Abade Macário, referiu o seguinte dito deste ancião:

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«Quando eu era criança, apascentava bezerros com outros meninos. Certa vez estes foram roubar figos, e, quando corriam, caiu um figo, que eu recolhi e comi. Ao recordar-me disto, sento-me e ponho-me a chorar».

38. O Abade Macário referiu o seguinte: «Certa vez, quando eu andava pelo deserto, encontrei uma caveira no chão; empurrei-a com o meu bastão de palma, e a caveira me falou. Perguntei-lhe: 'Tu quem és?' Respondeu-me: 'Eu era sumo sacerdote dos ídolos e dos pagãos que moravam neste lugar. Tu, porém, és Macário, o portador do Espírito.

Na hora em que te compadeces dos que estão em penas e oras por eles, são um pouco aliviados'. O ancião perguntou então: 'Qual é esse alívio e quais são as penas?" A caveira respondeu: 'Quanto dista o céu da terra, tão intenso é o fogo que arde debaixo de nós, que, dos pés até a cabeça, estamos em meio ao fogo; e ninguém vê a outrem face a face; mas o rosto de um adere às costas de outro. Quando, pois, rezas por nós, acontece que um vê parte da face do outro. Este é o alívio'. Chorando, então, o ancião exclamou: 'Ai do dia em que nasceu o homem!'' E de novo perguntou à caveira: 'Haverá outro tormento pior?' Esta respondeu: 'Há um tormento pior abaixo de nós'. O Abade indagou: 'E quem são os que lá estão?' A caveira continuou: 'Nós, que não conhecemos a Deus, somos tratados ao menos com um pouco de misericórdia; aqueles, porém, que conheceram a Deus e O negaram, estão debaixo de nós'. Macário, então, tomou a caveira e a enterrou.

39. Do Abade Macário, o Egípcio, contavam que certa vez se dirigia da Cétia ao monte da Nítria. Quando se aproximou do termo da viagem, disse a seu discípulo: «Vai um pouco adiante». Ora, caminhando este à frente, encontrou-se com um sacerdote pagão, a quem interpelou, exclamando: «Ai de ti, ai de ti, demônio, para onde corres?» Este, voltando-se, espancou-o e deixou-o semimorto; a seguir, recolheu a lenha que carregava, e correu. Pouco adiante, quando corria, encontrou-se com o Abade Macário, o qual lhe disse: «Salve, salve, ó homem fatigado!» Aquele, admirado, aproximou-se e perguntou-lhe: «Que viste de belo em mim para me saudares?» O ancião respondeu: «Vi-te fatigado, e não sabes que te fatigas em vão». Ao que o outro disse: «Com a tua saudação, comovi-me também eu; e fiquei sabendo que és da parte de Deus. Encontrei, porém, um outro monge, mau, que me injuriou, e a quem, por conseguinte, espanquei mortalmente».

Neste o ancião reconheceu tratar-se de seu discípulo. A seguir, o sacerdote, agarrando os pés de Macário, disse-lhe: «Não te soltarei se não me fizeres monge». Continuaram, então, o caminho até o alto onde estava o monge; Macário e seu discípulo levaram ò sacerdote e o fizeram entrar na igreja da montanha. Os que viam o pagão com o Abade, se admiravam. Finalmente, fizeram-no monge, e, por causa dele, muitos pagãos se tornaram cristãos. Em conseqüência, o Abade Macário dizia que a palavra má torna maus mesmo os bons e que a palavra boa torna bons mesmo os maus.

40. Do Abade Macário contavam que, certa vez, estando ele ausente, entrou um ladrão em sua cela. Ora, quando aquele chegou, encontrou o ladrão a carregar o camelo com os objetos de Macário. Este, então, entrou na cela, e tomando os seus utensílios, pôs-se, com o ladrão, a carregar o camelo. Quando haviam terminado, o larápio começou a bater o camelo para que se levantasse; o animal, porém, não se movia. Ora o Abade Macário, vendo que este não se levantava, entrou na cela e aí achou uma pequena enxada, que ele colocou sobre o camelo, dizendo: «Irmão, é isto que o camelo deseja». E com o pé deu um golpe ao animal, mandando-lhe: «Levanta-te». Este levantou-se logo, e caminhou um pouco em virtude da palavra do ancião. De novo, porém, deitou-se, e não se levantou mais até que o tivessem descarregado de todos os objetos. Então partiu.

41. O Abade Aio pediu ao Abade Macário: «Dize-me uma palavra». O Abade Macário respondeu: «Foge dos homens; senta-te em tua cela e chora os teus pecados. E não tenhas prazer na conversa com os homens. Assim serás salvo».

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APOFTEGAMAS DO ABADE NILO

1. Disse o Abade Nilo: «O que quer que faças para te vingares do irmão que te injuriou, isso tudo voltará ao teu coração no tempo da oração.

2. Disse também: A oração é gérmen de mansidão e de carência de ira».

3. Disse mais: «A oração é defesa contra tristeza e desânimo».

4. Disse ainda: «Vai, vende o que tens, e dá-o aos pobres. A seguir, toma a tua cruz e renuncia a ti mesmo, para que possas orar sem distração».

5. Disse mais: «Tudo que suportares sabiamente, recolherás disso o fruto no tempo de oração».

6. Disse também: «Se queres rezar como deves, não deixes que a tristeza se apodere de tua alma; se deixas, é em vão que corres».

7. Disse de novo: «Não queiras que as tuas coisas corram como te parece bem, mas como agrada a Deus. Assim serás isento de perturbação e agradável em tua oração».

8. Disse ainda: «Feliz é o monge que se julga o rebotalho de todos».

9. Disse mais: «O monge que ama o retiro, fica ileso dos dardos do inimigo. Aquele, porém, que se junta às multidões, recebe golpes contínuos».

10. Disse de novo: «O servo que negligencia as obras do seu senhor, prepare-se para os flagelos».

APOFTEGMAS DO ABADE POIMÉM

1. O Abade Poimém, quando era jovem, foi certa vez visitar um ancião a fim de o consultar a respeito de três pensamentos. Quando, porém, chegava à morada do ancião, esqueceu um dos três pensamentos. Voltou, então, para a sua cela, e, quando colocou a mão sobre a chave para abri-la, recordou-se do que esquecera. Deixou, pois a chave e foi ter de novo com o ancião. Este disse-lhe: «Vieste depressa, irmão». Poimém explicou-lhe: «Quando coloquei a mão sobre a chave para tomá-la, recordei-me da ideia que procurava, e não abri: por isto, voltei. Ora a extensão da estrada era muito grande». O ancião respondeu: «Poimém (Pastor) de anjos (NT: Se em grego se prefere a forma variante "ageloon" em vez de "aggéloon", deve-se traduzir: Pastor de rebanhos, sendo o nome Poimêm equivalente a Pastor.), teunome será proclamado de boca em boca por toda a terra do Egito».

2. Em certa ocasião Paésio, o irmão do Abade Poimém, tinha colóquios com alguém fora da cela. Ora o Abade Poimém não queria isto; levantou-se, pois, e fugiu para junto do Abade Amonas, dizendo a este: «Paésio, meu irmão, tem colóquios com alguém, e, em conseqüência, eu não sossego». Perguntou-lhe o Abade Amonas: «Poimém, ainda vives? Vai, senta-te em tua cela e coloca em teu coração a ideia de que já há um ano que jazes no sepulcro».

3. Em dada ocasião, presbíteros da região foram aos mosteiros em que estava o Abade Poimém.

O Abade Anube chegou-se então a ele e disse-lhe: «Convidemos os presbíteros a vir cá hoje». E esperou em pé muito tempo, sem que Poimém lhe desse resposta; após o que, Anube se retirou triste. Então os que estavam sentados juntos a Poimém, perguntaram-lhe: «Abade, porque não lhe

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deste resposta?» O Abade Poimém explicou-lhes: «Nada tenho que ver, pois morri. Ora o morto não fala».

4. Havia no Egito, antes que lá chegassem o Abade Poimém e os seus companheiros, um ancião que gozava de grande fama e grande estima. Ora, quando chegaram da Cétia o Abade Poimém e os seus, os homens deixaram o ancião e iam procurar a Poimém. Este se afligia com o fato, e disse a seus irmãos: «Que havemos de fazer a este grande ancião pois os homens nos suscitaram aflição, abandonando o ancião e dirigindo-se a nós, que nada somos? Como poderemos ser agradáveis ao ancião?» A seguir, acrescentou: «Preparai pequenas porções de alimento, tomai uma medida de vinho, e vamos ter com o ancião; comeremos juntos; talvez assim lhe possamos dar agrado». Tomaram, pois, os alimentos, e saíram. Ora, quando bateram à porta, o discípulo do ancião, que os escutara, perguntou: «Quem sois?» Responderam : «Dize ao Abade que Poimém aqui está, querendo ser abençoado por ele». O discípulo referiu isto e voltou com a resposta: «Vai-te, não tenho tempo». Eles, porém, permaneceram no calor do sol, dizendo: «Não partiremos antes que sejamos julgados dignos de ver o ancião». Este, vendo a humildade e a paciência deles, ficou compungido e lhes abriu a porta. Entraram, então, e comeram com ele; quando, pois, estavam a comer, disse o ancião: «Em verdade, não somente o que ouvi dizer de vós, é fidedigno, mas ainda vi o cêntuplo disso em vossa conduta». E tornou-se amigo deles a partir daquele dia.

5. Em certa época o Governador da região quis ver o Abade Poimém; o ancião, porém, não o desejava receber. Servindo-se então de um pretexto, mandou prender como malfeitor o sobrinho, e o pôs no cárcere, dizendo: «Se o ancião vier e interceder por ele, eu o soltarei». Ora a irmã de Poimém foi ter com o Abade, ficando a chorar diante da porta; este, porém, não lhe deu resposta. Em conseqüência, ela se pôs a insultá-lo, dizendo: «Tu que tens entranhas de bronze, compadece-te de mim, pois é meu filho único». O Abade mandou-lhe dizer: «Poimém não gerou filhos». Assim se retirou ela. Ao saber disto, o Governador mandou dizer: «Que o Abade o ordene ao menos com a palavra, e eu soltarei o menino». O ancião fez saber em resposta: «Investiga conforme as leis, e, se é digno de morte, morra; se não o é, faze como quiseres.

6. Certa vez um irmão pecou num cenóbio. Ora havia naquelas regiões um anacoreta que, desde muito, não saía mais em público. O Abade do cenóbio foi ter com ele e contou-lhe o caso do delinqüente. O anacoreta respondeu: «Expulsai-o». Saindo assim do cenóbio, o irmão penetrou numa gruta, onde se pôs a chorar. Aconteceu então que irmãos, num momento de lazer, foram visitar o Abade Poimém, e, a caminho, ouviram o irmão que chorava; entraram, então, na gruta e, encontrando-o, em grande angústia, exortaram-no a ir procurar Poimém. Ele, porém, não queria, dizendo: «Aqui morrerei». Os irmãos então prosseguiram até a cela do Abade Poimém e narraram-lhe o ocorrido. Este, em resposta, lhes mandou voltar, dizendo: «Anunciai ao irmão: «O Abade Poimém te está chamando». Assim se chegou o irmão. O ancião, vendo-o aflito, levantou-se, abraçou-o e, tratando-o com bom humor, convidou-o para comer. A seguir, o Abade Poimém mandou um dos irmãos ter com o anacoreta, para transmitir o seguinte: «Tendo ouvido contar o que fazes, há muitos anos desejo ver-te, mas, por timidez de ambos, ainda não nos encontramos. Agora, porém, que se apresenta uma ocasião, se é vontade de Deus, dá-te a pena de vir até aqui e nós nos veremos». Ora o anacoreta não saía da cela; ouvindo, porém, estas palavras, disse consigo: «Se Deus não o tivesse inspirado ao ancião, este não me teria mandado tal recado». E, levantando-se, foi ter com Poimém. Os dois abraçaram-se mutuamente com alegria e sentaram-se juntos. Disse então o Abade Poimém: «Havia em certo lugar dois homens, os quais tinham cada qual um morto em sua casa; ora um deles deixou o seu morto para ir chorar o do outro». Ao ouvir isto, o ancião compungiu-se, recordando-se do que fizera, e disse: «Poimém, para o alto, para o alto, penetrando no céu; eu, porém, para baixo, para baixo, penetrando na terra».

7. Certa vez um grupo numeroso de anciãos foi ter com o Abade Poimém. Ora um dos parentes do Abade Poimém tinha um menino cuja cabeça, por ação do demônio, estava virada para trás. O pai

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da criança, vendo o grande número de Padres reunidos, tomou o menino e sentou-se fora do mosteiro a chorar. Aconteceu que um dos anciãos saiu, e, vendo-o, perguntou: «Porque choras, homem?» Este respondeu: «Sou parente do Abade Poimém; eis que sobre o menino recaiu tal maldade do demônio; desejamos levá-lo ao ancião, mas tememos, pois este não nos quer ver. E, se agora souber que estou aqui, mandará expulsar-me. Eu, porém, observando a vossa chegada, ousei aproximar-me. Portanto, Abade, compadece-te de mim, como bem quiseres; leva meu filho para dentro, e orai vós por ele».

O ancião, levando o menino, entrou, e pôs-se a agir com prudência: não o levou logo ao Abade Poimém, mas, começando pelos irmãos mais jovens, disse: «Fazei o sinal da cruz sobre a criança». Tendo conseguido que todos a persignassem, por último levou-a ao Abade Poimém. Este não queria que o menino se aproximasse. Os outros, porém, o solicitavam, dizendo: «Como todos, faze também tu, Pai». Ele, então, gemendo, levantou-se e orou dizendo: «Ó Deus, cura a tua criatura, para que não seja dominada pelo inimigo». A seguir, fez-lhe o sinal da cruz, ficando logo curado o menino, que ele entregou são ao seu pai.

8. Em dada ocasião um irmão foi da região do Abade Poimém para terra estrangeira, onde chegou à cela de certo anacoreta, que, por ter grande caridade, era procurado por muitos. O irmão falou-lhe do Abade Poimém, de modo que, sabendo das virtudes deste, o anacoreta desejou vê-lo. Certo tempo depois que o irmão voltara para o Egito, o anacoreta levantou-se e foi da terra estrangeira para o Egito em demanda do irmão que outrora o visitara, pois este lhe dissera onde morava. Vendo-o, este se admirou e alegrou profundamente. Disse então o anacoreta: «Faze a caridade de me levar ao Abade Poimém». O irmão conduziu-o ao ancião, a quem anunciou nestes termos as qualidades do visitante: «É um grande homem, dotado de muita caridade e de muita estima em sua terra. Falei-lhe de ti, e ele veio desejoso de te ver». Poimém recebeu-o então com alegria, e, depois de se terem saudado, sentaram-se. O estrangeiro começou a falar da Escritura, de coisas espirituais e celestes; diante disto, o Abade Poimém voltou o rosto e não deu resposta. Aquele, vendo que Poimém não lhe falava, ficou triste e saiu, dizendo ao irmão que o conduzira: «Em vão fiz toda esta viagem. Com efeito, vim visitar o ancião, e eis que nem quer falar comigo». O irmão entrou, pois, na cela do Abade Poimém e disse-lhe: «Abade, foi por causa de ti que este grande homem veio, ele que goza de tanta glória em sua terra; por que não conversaste com ele?» Respondeu-lhe o ancião: «Ele é do alto e fala de coisas celestes, enquanto eu sou de baixo e falo de coisas terrestres. Se me tivesse falado das paixões da alma, eu lhe teria respondido; tratando-se, porém, de coisas espirituais, eu não estou a par». O irmão então saiu e disse ao estrangeiro: «O ancião não costuma falar de Escritura, mas, se alguém lhe fala das paixões da alma, ele responde». O visitante, compungido, foi de novo procurar o ancião e disse-lhe: «Que farei, Abade, pois que me dominam as paixões da alma?» Poimém fitou-o com alegria e disse-lhe: «Desta vez vieste oportunamente. Agora abre a boca a respeito dessas coisas, e eu a encherei de bens». O estrangeiro, muito edificado, acrescentou: «Sem dúvida, essa é a via genuína». E voltou para a sua terra, dando graças a Deus por ter sido julgado digno de encontrar tal santo.

9. Certa vez o Governador da região mandou prender alguém da aldeia do Abade Poimém. Todos então foram pedir ao ancião que saísse e libertasse o prisioneiro. Ele respondeu: «Deixai-me três dias, depois dos quais irei». Nesse intervalo, orou ao Senhor, dizendo: «Senhor, não me concedas essa graça; pois não me deixariam mais ficar neste lugar». A seguir, foi rogar o Governador, o qual lhe disse: «Intercedes por esse ladrão, Abade?» Ora o ancião alegrou-se por não ter recebido o favor.

10 Alguns contaram que certa vez o Abade Poimém e seus irmãos estavam a fabricar pavios; mas não puderam continuar, por não terem com que comprar os fios de linho necessários. Ora um deles, caro a todos, contou isto a certo negociante, homem de fé. O Abade Poimém, porém, nunca queria aceitar algo de quem quer que fosse, por causa do assédio de gente que seria assim ocasionado (NT:

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Muitas outras pessoas, querendo beneficiar o ancião, o procurariam para levar-lhe os seus presentes). O negociante, então, intencionando fazer obra boa ao ancião, alegou precisar de pavios; foi, pois, com o seu camelo à cela do Abade, e voltou com os pavios que aí tomara. Depois disto, o dito irmão foi ter com o Abade Poimém, e, tendo ouvido o que o negociante fizera, disse, intencionando louvar a este: «Em verdade, Abade, mesmo que ele não precisasse, teria levado os pavios para nos fazer uma boa obra». O Abade Poimém, tendo assim compreendido que o negociante levara os pavios sem precisar deles, disse ao irmão: «Levanta-te, aluga um camelo, e traze de volta os pavios; senão os trouxeres, Poimém não habitará mais aqui convosco. Não quero causar dano a um homem que não precisa dos objetos; ele sofreria prejuízo, tomando os objetos com que eu lucro». O irmão foi-se com muita pena, e trouxe os pavios de volta; senão, o ancião os teria abandonado. Quando Poimém viu os pavios, alegrou-se como se tivesse encontrado grande tesouro.

11. Certa vez o presbítero de Pelúsio ouviu, a respeito de certos irmãos, que eles iam continuamente à cidade, se lavavam (NT: Lavar-se nos balneários das cidades era antigamente sinal de luxo) e se descuidavam da própria alma. Em conseqüência, por ocasião da assembléia litúrgica, retirou-lhes o hábito monástico. Depois disto, porém, seu coração o acusou, e, arrependido, foi ter com o Abade Poimém, como que embriagado em seus pensamentos, tendo nas mãos as túnicas dos irmãos, contou o caso ao ancião. Este perguntou-lhe então: «Não tens tu algo do homem velho? Será que já o despiste?» O presbítero confessou: «Participo ainda do homem velho». Continuou o ancião: «Eis, portanto, que tu és como os irmãos. Pois, se participas, embora pouco, do que é velho, também tu estás sujeito ao pecado». Então o presbítero se foi, chamou os irmãos, e pediu-lhes desculpas (eram onze); a seguir, revestiu-os do hábito monástico e despediu-os.

12. Um irmão disse ao Abade Poimém: «Cometi um grande pecado, e desejo fazer penitência durante três anos». Respondeu o ancião: «É muito». Os que estavam presentes disseram então: «E durante quarenta dias?» Mais uma vez replicou o ancião: «É muito». E acrescentou: «Digo que, se o homem se arrepende de todo o coração e não torna a cometer o pecado, Deus o recebe já após três dias».

13. Disse também: «O sinal do monge se manifesta nas tentações».

14. Disse ainda: «Como o espadário do rei a este assiste, pronto em todo tempo, assim é preciso que a alma esteja pronta diante do demônio da fornicação».

15. O Abade Anube interrogou o Abade Poimém a respeito dos pensamentos impuros que o coração do homem gera, e a respeito dos vãos desejos. O Abade Poimém respondeu: «Gloriar-se-á o machado sem aquele que o manuseia? (Is 10,15) Também tu não dês a mão a eles e serão frustrados» (NT: Isto é, as tentações não nos podem ser nocivas, enquanto não lhes prestamos nossa cooperação).

16. Disse de novo o Abade Poimém: «Se Nabuzardan, o cozinheiro-chefe, não tivesse vindo, não se teria incendiado o templo do Senhor (2Rs 25,8-10). Isto quer dizer: se o deleite da gula não entrasse na alma, a mente não cairia quando impugnada pelo inimigo.

17. Do Abade Poimém contavam que, convidado a comer quando não o queria, aquiesceu, embora em prantos, a fim de não deixar de atender ao irmão e não o contristar.

18. Disse mais o Abade Poimém: «Não habites em lugar onde vês que alguns têm inveja de ti; senão, não progredirás».

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19. Alguns referiam ao Abade Poimém que certo monge não bebia vinho. Respondeu: «O vinho em absoluto não é para os monges».

20. O Abade Isaías interrogou o Abade Poimém a respeito dos pensamentos impuros. Este respondeu: «Se tivermos um baú cheio de vestes e as deixamos fechadas, apodrecerão com o tempo. Assim também são os pensamentos: se não executamos com o nosso corpo, no decorrer do tempo extinguem-se ou apodrecem».

21. O Abade José propôs ao Abade Poimém a mesma pergunta. Este respondeu: «Se alguém lança uma cobra e um escorpião no mesmo recipiente e fecha a este, não resta dúvida de que morrerão com o tempo; assim também os maus pensamentos: suscitados pelos demônios, desaparecem pela paciência».

22. Um irmão foi ter com o Abade Poimém e disse-lhe: «Semeio o meu campo, e com os seus frutos pratico a caridade». Respondeu o ancião: «Fazes bem». O irmão saiu então animado, e multiplicou as suas esmolas. Ora o Abade Anube ouviu contar isto, e perguntou ao Abade Poimém: «Não temes a Deus, pois que assim falaste ao irmão?» O ancião calou-se. Dois dias depois, porém, mandou chamar o irmão e perguntou-lhe em presença do Abade Anube: «Que me disseste o outro dia? Minha mente estava em outro lugar». O irmão respondeu: «Disse que semeio o meu campo e com os seus frutos pratico a caridade». O Abade Poimém observou: «Julguei que falavas de teu irmão que vive no século; se és tu que o fazes, digo-te que isto não é coisa de um monge». Ao ouvir isto, o irmão entristeceu-se e replicou: «Não sei fazer outro trabalho senão este; não posso não semear o meu campo». Depois, então, que o irmão se retirou, o Abade Anube se prostrou diante de Poimém e disse-lhe: «Perdoa-me». E o Abade Poimém explicou: «Também eu, desde o início, sabia que essa tarefa não é própria para um monge, mas falei de acordo com as disposições dele, e, com isto, animei-o a progredir na caridade. Agora, porém, ele se foi abatido, e, não obstante, tornará a fazer o mesmo».

23. Disse o Abade Poimém: «Se o homem pecar e o negar, dizendo: 'Não pequei', não o acuses, pois lhe cortarias o ânimo. Se, ao contrário, lhe disseres: 'Não percas ânimo, irmão, mas guarda-te para o futuro', excitarás a sua alma à penitência».

24. Disse mais: «Boa coisa é a experiência, pois ela ensina ao homem honesto».

25. Disse ainda: «O homem que ensina, mas não pratica o que ensina, é semelhante a uma fonte, pois a todos oferece com que beber e se lavar, mas a si mesma não pode purificar».

26. Certa vez, quando o Abade Poimém andava pelo Egito, viu uma mulher sentada junto a um túmulo, a qual chorava amargamente. E disse: «Ainda que venham todos os deleites deste mundo, não lhe tirarão a alma da tristeza em que se acha. Assim também o monge deve sempre trazer a tristeza em si mesmo» (NT: Isto é, a grande dor de ter pecado).

27. Disse mais: «Há o homem que parece calado, mas cujo coração condena a outros; esse tal está sempre a falar. E há outro homem que fala da manhã à noite, mas guarda o silêncio, isto é, nada diz que não seja de edificação».

28. Um irmão foi ter com o Abade Poimém e disse-lhe: «Abade, tenho muitos maus pensamentos, e corro perigo por causa deles». O ancião levou-o ao ar livre e disse-lhe: «Dilata os pulmões e detém os ventos». O irmão respondeu: «Não o posso fazer». Continuou o ancião: «Se não o podes fazer, também não podes impedir que os pensamentos venham; mas está em teu poder resistir a eles».

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29. Disse o Abade Poimém: «Se três se reúnem, dos quais um leva dignamente uma vida tranquila, o outro é doente e dá graças a Deus, o terceiro faz o seu serviço com mente pura, esses três realizam um só e idêntico grau de virtude».

30. Disse também: «Está escrito: 'Como o cervo deseja as fontes das águas, assim minha alma deseja a Vós, Deus' (Sl 41,2). Ora os cervos no deserto, devoram muitas serpentes; a seguir, quando o veneno os faz arder de sede, desejam chegar-se às águas; e, ao beberem, refrescam-se, livrando-se do veneno das serpentes. Assim também os monges, morando no deserto, são queimados pelo veneno dos maus demônios, e desejam o sábado e o domingo para se chegarem às fontes das águas, isto é, ao Corpo e ao Sangue do Senhor, a fim de se purificarem da amargura do Maligno».

31. O Abade José perguntou ao Abade Poimém como se deve jejuar. Respondeu este: «Quero que todos comam diariamente, mas pouco, de modo a não ficarem saciados». O Abade José replicou: «Quando eras jovem, não comias de dois em dois dias, Abade?» O ancião respondeu: «Sim, e também de três em três, de quatro em quatro dias, e uma vez por semana. Todas essas coisas, os Padres, fortes como eram, as experimentaram, e concluíram que é oportuno comer todos os dias, mas pouco; assim nos entregaram a via regia, porque suave».

32. A respeito do Abade Poimém contavam que, antes de ir para o Oficio, se sentava a sós, ficando a examinar os seus pensamentos durante cerca de uma hora. Depois disto é que se punha a caminho.

33. Um irmão perguntou ao Abade Poimém: «Deixaram-me uma herança; que farei com ela?»

O ancião respondeu: «Retira-te, e volta dentro de três dias, e eu te direi». Aquele voltou, como lhe determinara o ancião, o qual lhe disse: «Que hei de te responder, irmão? Se te disser: 'Dá-a à igreja', lá farão ceias; se te disser: 'Dá-a a um parente teu', não terás recompensa; se te disser: 'Dá aos pobres', tu te descuidarás de o fazer. Age, pois, como bem quiseres; eu não tenho parte na questão».

34. Um outro irmão perguntou-lhe: «Que significa : 'Não retribuirás o mal pelo mal?' (1Tes 5,15; 1 Pe 3,9)».

O ancião respondeu: «Esse vício tem quatro modalidades diversas: a primeira provém do coração; a segunda, da vista; a terceira, da língua; e a quarta é não fazer o mal em troca do mal (NT: O Abade quer dizer que fazer exteriormente o mal em troca do mal supõe três defeitos exteriores). Se puderes purificar o teu coração, o mal não chegará aos olhares; se, porém, atingir os teus olhares, guarda-te de o pronunciares pela boca; se o pronunciares, preserva-te logo de fazer o mal em troca do mal».

35. Disse o Abade Poimém: «Refrear-se, vigiar sobre si mesmo, e usar de discernimento, estas três virtudes são as guias da alma».

36. Disse também: «Prostrar-se em presença de Deus, não se comparar, e atirar para trás a vontade própria, são instrumentos de que se serve a alma».

37. Disse ainda: «A vitória sobre qualquer pena que te sobrevenha, é calar-te».

38. Disse mais: «Todo repouso do corpo é abominação aos olhos do Senhor».

39. Disse também: «A compunção tem dois elementos: ela impele e também refreia».

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40. Disse mais: «Se te vier a preocupação das coisas necessárias ao corpo, e lhe satisfizeres uma vez; se voltar de novo e lhe satisfizeres; caso volte a terceira vez, não lhe dês atenção, pois é vã (NT: Isto é: a repetida solicitude das necessidades corporais não é inspirada pela virtude).

41. Disse de novo: «Um irmão perguntou ao Abade Alônio: «Que significa o aniquilamento de si mesmo?» O ancião respondeu: «Significa colocar-se abaixo dos irracionais, e saber que estes não podem ser condenados» (NT: O homem que renuncia a si mesmo por amor de Deus, deixa de viver conforme a razão natural, meramente humana, e conforme os seus apetites naturais; a este título, pode ser considerado inferior aos irracionais. Todavia tal homem pratica essa renúncia para ser elevado a um nível de vida superior, ditado pelo próprio Deus. Com isto adquire a segurança de não ser condenado.).

42. Disse de novo : «Preferirá calar-se, o homem que se lembre do que está escrito: «Pelas tuas palavras serás justificado, e pelas tuas palavras serás condenado» (Mt 12,37).

43. Disse também: «A distração é o começo dos males».

44. Disse mais: «O Abade Isidoro, o presbítero da Cétia, falou certa vez à sua gente nestes termos: 'Irmãos, não foi para labutar que viemos a este lugar? Agora, porém, não oferece mais labuta. Por conseguinte, preparei o meu manto e me vou para onde há labuta; lá encontrarei bem-estar'».

45. Um irmão perguntou ao Abade Poimém: «Se eu vir alguma coisa, queres que a conte?» O

ancião respondeu: «Está escrito: 'Quem pronuncia uma palavra antes de ouvir, é tolo e digno de censura' (Pr 18,3). Se fores interrogado, fala; se não, permanece calado».

46. Um irmão perguntou ao Abade Poimém: «Pode o homem confiar num só feito?» (Isto é: será oportuno cultivar predominantemente uma só virtude?) O ancião respondeu que o Abade João Curto afirmara: «Quero adquirir um pouco de todas as virtudes».

47. Disse também o ancião que um irmão perguntou ao Abade Pambo se é bom louvar o próximo; Pambo respondeu: «Melhor é calar-se».

48. Disse ainda o Abade Poimém: «Ainda que o homem faça um céu novo e uma terra nova, não pode deixar de ter preocupações».

49. Disse ainda: «O homem precisa da humildade e do temor de Deus como do sopro que procede das suas narinas (Isto é: essas virtudes são tão necessárias à vida cristã como a respiração à vida física.).

50. Um irmão perguntou ao Abade Poimém: «Que hei de fazer?» O ancião respondeu-lhe: «Abraão, quando entrou na terra prometida, comprou um sepulcro para si mesmo, e, por meio do sepulcro, recebeu a terra como herança». O irmão interrogou: «Que é um sepulcro?» Explicou o ancião: «É um lugar de pranto e luto».

51. Um irmão disse ao Abade Poimém: «Quando dou a meu irmão um pouco de pão ou outra coisa, os demônios me fazem crer que esta ação é tão suja como se fora feita para agradar aos homens». O ancião respondeu: «Ainda que o fizéssemos para agradar aos homens, não obstante, demos aos irmãos o que lhes é necessário». E contou-lhes ainda a seguinte parábola: «Havia dois agricultores que habitavam a mesma cidade; um deles, tendo semeado, recolheu frutos poucos e impuros; o outro, porém, tendo-se descuidado de semear, nada absolutamente colheu; em caso de fome, qual dos dois encontrará o sustento de sua vida?» O irmão respondeu: «O que recolheu frutos poucos e

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impuros». Concluiu o ancião: «Assim também nós: semeamos um pouco, ainda que impuro, para que não pereçamos de fome».

52. O Abade Poimém referiu o seguinte dito do Abade Amonas: «Há quem passe todo o tempo de sua vida a carregar o machado sem encontrar o modo de derrubar a árvore. Há também o homem perito de cortar, o qual com poucos golpes abate a árvore». E acrescentava que o machado é o discernimento.

53. Um irmão perguntou ao Abade Poimém: «Como deve o homem nortear a sua vida?»

Respondeu o ancião: «Consideremos Daniel; contra ele não se encontrou acusação a não ser a propósito do culto que ele prestava ao Senhor seu Deus».

54. Disse o Abade Poimém: «A vontade do homem é um muro de bronze entre ele e Deus, é uma rocha que reverbera. Se o homem a abandona, diz também ele: 'Por força de meu Deus saltarei o muro' (SI 17,30.). Por conseguinte, quando o preceito vai de encontro à vontade, o homem labuta».

55. Contou também o seguinte: «Certa vez os anciãos estavam sentados a comer, e o Abade Alônio se achava de pé, servindo. Vendo-o assim, louvaram-no; ele, porém, não respondeu palavra. Então perguntou-lhe alguém à parte: «Por que não respondeste aos anciãos que te louvavam?» O Abade Alônio explicou: «Se respondesse, pareceria aceitar os louvores».

56. Disse mais: «Os homens são perfeitos ao falar, mas ínfimos ao agir».

57. Disse o Abade Poimém: «Como a fumaça afugenta as abelhas e então se esvanece a doçura do trabalho delas, assim também o repouso do corpo afugenta da alma o temor de Deus e extingue todas as suas boas obras.

58. Um irmão foi ter com o Abade Poimém na segunda semana da Quaresma; abriu-lhe os seus pensamentos e ficou tranqüilizado; depois disto, disse: «Por pouco deixava de vir aqui hoje». O ancião perguntou: «Por quê?» Respondeu o irmão: «Dizia-me que talvez por causa da Quaresma não abririas». O Abade Poimém replicou: «Nós não aprendemos a fechar a porta de madeira, mas, sim, a porta da língua».

59. Disse de novo o Abade Poimém: «É preciso fugir do que diz respeito ao corpo (Isto é, excessivo cuidado do corpo). Pois, todas as vezes que o homem está próximo a uma tentação do corpo, assemelha-se a alguém que está em pé sobre um lago muito profundo; no momento em que apraz ao inimigo, este facilmente o derruba dentro d´água. Se, porém, o homem vive à distância do que é corporal, parece-se com alguém que está longe do lago, de modo que, embora o inimigo o puxe para precipitá-lo nágua, enquanto o puxa e lhe faz violência, Deus lhe envia auxilio».

60. Disse mais: «A pobreza, a tribulação, a morada em lugar estreito e o jejum, tais são os instrumentos da vida solitária. Com efeito, está escrito: 'Se estiverem estes três homens — Noé, Jó e Daniel —, vivo eu, diz o Senhor' (Ez 14,14.20). Noé é a figura da pobreza, Jó a do sofrimento, e Daniel a do discernimento. Portanto, se se acham estas três virtudes no homem, o Senhor habita nele».

61. O Abade José contava o seguinte: «Estando nós sentados com o Abade Poimém, este nomeou o Abade Agatão. Dissemos-lhe, então: «É jovem; porque o chamas Abade?» Respondeu o Poimém: «Porque a boca dele fez que seja chamado Abade» (As suas palavras exprimiam profunda sabedoria).

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62. Certa vez um irmão foi ter com o Abade Poimém e disse-lhe: «Que hei de fazer, Pai, pois sou perseguido pela fornicação? Eis que fui procurar o Abade Ibistião, o qual me disse: 'Não deves permitir que ela persista em te atacar'. Respondeu o Abade Poimém: «O Abade Ibistião, os seus atos estão no alto com os anjos, e fica-lhe oculto que eu e tu estamos em meio à fornicação. Se o monge domina o ventre e a língua e vive na qualidade de estrangeiro (Sentindo-se peregrino, tendendo sempre à pátria celeste), tem confiança, ele não morrerá».

63. Disse o Abade Poimém: «Ensina a tua boca a proferir o que se acha em teu coração».

64. Um irmão perguntou ao Abade Poimém: «Se eu vir uma falta de meu irmão, será bom que eu a encubra?» O ancião respondeu: «No momento em que encobrimos a falta de nosso irmão, Deus encobre a nossa, e, no momento em que a manifestamos, também Deus manifesta a nossa».

65. O Abade Poimém contou o seguinte: «Em dada ocasião alguém perguntou ao Abade Paísio: 'Que farei à minha alma, pois é insensível e não teme a Deus?' Este respondeu: 'Vai-te, e adere a um homem que teme a Deus, e, à medida que o fores frequentando, ensinar-te-á também a temer a Deus'».

66. Disse mais: «Se o monge vencer duas coisas, poder-se-á libertar do mundo». O irmão perguntou: «Quais são elas?» Respondeu: «O repouso da carne e a vangloria».

67. Abraão, o discípulo do Abade Agatão, perguntou ao Abade Poimém: «Como é possível que os demônios me impugnem?» Disse o Abade Poimém: «Impugnam-te os demônios? Eles não impugnam, enquanto seguimos os nossos próprios desejos. Com efeito, os nossos desejos se tornaram demônios, e são eles que nos atormentam, para que os realizemos. Se queres saber com que é que os demônios lutaram, recorda-te de Moisés e dos que foram semelhantes a ele» (Sofrer tentação e impugnações dos demônios é, pois sinal de que eles não nos dominam, de que não fazemos as suas vontades).

68. Disse o Abade Poimém: «Foi este o gênero de vida que Deus ensinou a Israel: abster-se daquilo que é contrário à natureza, ou seja, da ira, da concupiscência, da inveja, do ódio, da maledicência contra o próximo, e do mais que pertence ao velho homem».

69. Um irmão pediu ao Abade Poimém: «Dize-me uma palavra». Respondeu este: «Os Padres estabeleceram como princípio da obra a dor devida ao pecado» (o que quer dizer: a alma motriz de todas as nossas peões deve ser a compunção ou contrição pelo pecado). O irmão pediu de novo: «Dize-me outra palavra». O ancião respondeu: «Quanto podes, faze trabalho manual, para que com os seus frutos pratiques a misericórdia; pois está escrito que a esmola e a fé purificam dos pecados» (Cf. Pr 15,27). O irmão perguntou ainda: «Que é a fé?» O ancião explicou: «A fé é viver em humildade, e praticar a misericórdia».

70. Um irmão referiu ao Abade Poimém: «Se vejo um irmão do qual ouvi contar uma falta, não o quero introduzir em minha cela. Se, porém, veio um bom irmão, alegro-me com ele». O ancião respondeu: «Se fazes ao bom irmão um pouco de bem, faze o duplo àquele outro, pois é aquele o enfermo. Havia num cenóbio um anacoreta chamado Timóteo. Ora o Superior, tendo ouvido um rumor a respeito de certo irmão tentado, interrogou Timóteo sobre tal irmão; o anacoreta lhe aconselhou que o expulsasse. Depois que fora expulso, a tentação do irmão recaiu sobre Timóteo (Timóteo começou a sofrer da mesma tentação), de modo que este correu perigo. Timóteo, então, pôs-se a chorar diante de Deus, dizendo: «Pequei, perdoa-me». E desceu a ele uma voz que dizia: «Timóteo, não julgues que te fiz isto por outro motivo senão porque desprezaste teu irmão no tempo da tentação».

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71. Disse o Abade Poimém: «Estamos sujeitos a tão graves tentações porque não guardamos os nossos nomes e a nossa ordem, como também diz a Escritura. Não vemos a mulher Cananéia, como o Salvador a consolou por ter ela reconhecido o seu nome? (Cf. Mt 15 27. isto é, sua qualidade de indigna) Também Abigail disse a Davi: 'Em mim há o pecado' (Cf. 1Rs 25,24); por isto Davi a atendeu e a amou.

Abigail é figura da alma, e Davi, de Deus. Portanto, se a alma se acusa diante do Senhor, ama-a o Senhor».

72. Certa vez o Abade Poimém passava com o Abade Anube pela região de Diolco. Quando se aproximavam dos sepulcros, viram uma mulher mergulhada em profundo luto, que chorava amargamente. Depois de a terem observado, caminharam ainda um pouco e encontraram alguém a quem o Abade Poimém perguntou: «Que tem essa mulher para chorar amargamente?» Respondeu aquele: «É que lhe morreram o marido, o filho e o irmão». Então, o Abade Poimém dirigiu-se ao Abade Anube: «Digo-te que, se o homem não mortifica todos os desejos da carne e adquire tal luto, não se pode tornar monge. Pois toda a vida e a mente desta mulher estão mergulhados no luto».

73. Disse o Abade Poimém: «Não queiras medir a ti mesmo (Isto é, não queiras medir o progresso de tua vivtude), mas adere ao homem que vive dignamente».

74. Disse também que, se algum irmão ia procurar o Abade João Curto, este lhe prestava a caridade de que diz o Apóstolo: «A caridade é magnânima, é benigna» (1 Cor 13,4).

75. Referiu ainda, a respeito do Abade Pambo, que o Abade Antão, aludindo a este, disse: «Pelo temor de Deus fez que o Espírito de Deus habitasse nele».

76. A respeito do Abade Poimém e de seus irmãos, um dos Padres contou que, habitando eles no Egito, a sua mãe os queria ver, mas não o podia. Certa vez espreitou-os quando iam à igreja, e foi-lhes ao encontro. Eles, porém, logo que a viram, regressaram para a cela, e fecharam a porta à vista dela. A mulher ficou diante da porta, gritando, chorando com muito lamento e dizendo: «Possa eu vos ver, caros filhos meus!» Tendo-a ouvido, o Abade Anube dirigiu-se ao Abade Poimém: «Que faremos a essa velha que está chorando diante da porta?» Então Poimém, de dentro da cela, ouviu-a chorando com grande lamento, e perguntou-lhe: «Por que assim choras, ó mulher velha?» Esta, ao ouvir-lhe a voz, clamava muito mais e chorava, dizendo: «Quero-vos ver, filhos meus! Pois que há de mau em que eu vos veja? Acaso não sou vossa mãe? Não fui eu que vos amamentei? Tenho os cabelos todos brancos. Ao ouvir a tua voz, fiquei comovida». Perguntou-lhe, então, o ancião: «Desejas ver-nos aqui ou no outro mundo?» Ela respondeu: «Se não vos vir aqui, ver-vos-ei no outro mundo?» Poimém replicou: «Se te fizeres violências para não nos ver aqui, hás de nos ver lá». Depois disto, ela se foi alegre e dizendo: «Se, de fato, hei de vos ver lá, não vos desejo ver aqui».

77. Um irmão perguntou ao Abade Poimém: «Que significam «as coisas elevadas?» O ancião respondeu: «A justiça» (A justiça, na Sagrada Escritura, é a santidade).

78. Certa vez alguns hereges foram ter com o Abade Poimém e puseram-se a falar contra o Arcebispo de Alexandria, como se tivesse recebido a ordenação da parte de presbítero (Isto é: acusavam-no de ter sido invalidamente ordenado). A isso o ancião não respondeu, mas chamou seu irmão e disse-lhe: «Põe a mesa, faze-os comer, e despede-os em paz».

79. O Abade Poimém referiu que um irmão que morava com irmãos, perguntou ao Abade Bessarião: «Que farei?» O ancião respondeu-lhe: «Cala-te, e não meças a ti mesmo» (O que quer dizer: não te compares aos outros, não procures saber a que grau de virtude já chegaste).

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80. Disse de novo: «Não atendas em teu coração ao homem do qual não estás seguro».

81. Disse mais: «Se desprezares a ti mesmo, terás tranqüilidade, qualquer que seja o lugar que habites».

82. Referiu também ter dito o Abade Sisoé: «Há um pudor réu do pecado de temeridade».

83. Disse também que a vontade própria, o repouso (Isto é, a moleza do corpo) e a familiaridade com uma e outro derrubam o homem.

84. Disse ainda: «Se fores taciturno, terás tranqüilidade em todo lugar que habitares».

85. A respeito do Abade Pior referiu que todos os dias punha um inicio (Mantinha sempre o fervor de quem começa).

86. Um irmão perguntou ao Abade Poimém: «Se o homem for colhido por algum pecado e se converter, terá perdão junto de Deus?» O ancião respondeu: «Então Deus que mandou aos homens que perdoem, Ele mesmo não perdoará mais do que os homens? De fato, Ele preceituou a Pedro: 'Até setenta vezes sete'» (Cf. Mt 18,22).

87. Um irmão perguntou ao Abade Poimém: «É bom rezar?» Respondeu-lhe este ter dito o Abade Antão: «É da face do Senhor que procede tal voz: 'Exortai o meu povo, diz o Senhor, exortai-o'» (Is 40,1).

88. Um irmão interrogou o Abade Poimém: «Pode o homem deter todos os seus pensamentos e não entregar nenhum ao inimigo?» (Isto é: Pode o homem controlar todos os seus pensamentos, de modo que nunca peque por eles? — Veja-se o apoftegma seguinte.). O ancião respondeu: «Há quem tire dez e entregue um».

89. O mesmo irmão propôs igual pergunta ao Abade Sisoé; o qual lhe respondeu: «Sem dúvida, há quem nada entregue ao inimigo».

90. Na montanha de Atlibes vivia um grande eremita que os ladrões assaltaram. Ora os vizinhos, tendo ouvido os seus gritos, prenderam os salteadores e os mandaram ao Governador o qual os colocou no cárcere. Então os irmãos ficaram tristes, dizendo: «Por causa de nós é que eles foram entregues à prisão». Levantaram-se, pois, e foram ter com o Abade Poimém, ao qual referiam o caso. Poimém escreveu ao ancião que fora assaltado, nestes termos: «Considera a primeira entrega, como ela se deu, e, a seguir, considerarás a segunda. Pois, se não te tivesses entregue primeiramente em teu interior, não terias cometido a segunda entrega» (Poimém queria dizer que, se o ancião não se tivesse entregue interiormente, se não tivesse apego aos bens que lhe haviam sido furtados, não teria tolerado a entrega dos ladrões à prisão, mas teria procurado desculpá-los e libertá-los.). Ora o ancião era famoso em toda a região e não saía da cela; ouvindo, porém, o conteúdo da carta do Abade Poimém, levantou-se e foi à cidade; ai tirou os ladrões do cárcere e os libertou publicamente.

91. Disse o Abade Poimém: «O monge não se queixa de sua sorte; o monge não retribui o mal pelo mal; o monge não é dado à ira».

92. Alguns dos anciãos foram ter com o Abade Poimém e disseram-lhe: «Se virmos que os irmãos adormecem durante o Ofício, queres que os cotovelemos a fim de que estejam despertos para a vigília? «Aquele respondeu: «Quando vejo meu irmão adormecer, coloco, sem hesitar, a sua cabeça sobre os meus joelhos e proporciono-lhe repouso».

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93. A respeito de certo irmão contavam que era tentado à blasfêmia, mas se envergonhava de o dizer. Aonde ouvia que se achavam anciãos de grande mérito, acorria a fim de lhes referir a tentação; logo porém, que se chegava a eles, envergonhava-se de confessar. Assim é que muitas vezes foi ter também com o Abade Poimém. O ancião, ao notar que tinha maus pensamentos e não os manifestava, entristecia-se. Certo dia, porém, ao despedir-se dele, disse-lhe: «Eis há tanto tempo que aqui vens a fim de me manifestares teus maus pensamentos, mas, cada vez que te chegas, não ousas confessar, e sais aflito, conservando-os na mente. Dize-me, filho, o que é que tens». O irmão respondeu: «O demônio me tenta a blasfemar a Deus, e até agora envergonhei-me de o dizer». Ao contar isto, o irmão logo experimentou alívio. O ancião acrescentou: «Não te aflijas, filho; mas quando te vier tal tentação, dize: 'Não tenho culpa; a tua blasfêmia seja imputada a ti, Satanás. Pois minha alma não quer isso'. Ora tudo que a alma não quer, é de pouca duração». Tendo assim recebido remédio, o irmão se foi.

94. Um irmão disse ao Abade Poimém: «Esforço-me por encontrar um amparo em qualquer lugar para onde eu vá». O ancião respondeu-lhe: «Mesmo aqueles que trazem a espada nas mãos, têm Deus misericordioso para com eles no tempo presente. Portanto, se somos corajosos, Deus exerce a sua misericórdia conosco» (O irmão receoso das tentações procurava, aflito, refugiar-se contra elas e evitá-las. O ancião tranquiliza-o: o nosso auxílio nos vem infalivelmente de Deus, desde que o servimos corajosamente.).

95. Disse o Abade Poimém: «Se o homem acusa a si mesmo, persevera em toda a parte» (Porque não cai em litígios com os outros).

96. Referiu também ter dito o Abade Amonas: «Há quem tenha passado cem anos na cela sem ter aprendido como se deve residir na cela» (Sem tirar algum fruto de sua vida retirada).

97. Disse o Abade Poimém: «Se o homem consegue o que diz o Apóstolo: "Tudo é puro para os puros' (Tt 1,15), ele se julga inferior a toda criatura». O irmão perguntou-lhe então: «Como me posso julgar inferior ao homicida?» Respondeu o ancião: «O homem que alcançou o que diz o Apóstolo, vendo alguém matar, diz: 'Talhomem cometeu esse pecado só; eu, porém mato todos os dias'».

98. O irmão interrogou o Abade Anube a respeito da mesma frase do Apóstolo, referindo o que o Abade Poimém dissera. O Abade Anube respondeu: «Quando o homem que conseguiu o que diz o Apóstolo, vê as faltas de seu irmão, ele faz que a sua justiça devore tais faltas». Perguntou, então, o irmão: «E qual é a sua justiça?» Respondeu o ancião: «É que ele se acuse em todo tempo».

99. Um irmão disse ao Abade Poimém: «Se caio num miserável pecado, o meu pensamento me devora e me acusa: 'Por que caíste?' Observou o ancião: «Na hora em que o homem, tendo caído em culpa, diz: 'Pequei', a culpa cessa incontinenti».

100. Um irmão perguntou ao Abade Poimém: «Por que é que os demônios persuadem à minha

alma que me coloque com quem está acima de mim, por isso que o Apóstolo disse: 'Numa casa grande há não somente vasos de ouro e de prata, mas também de madeira e de argila. Se, pois, alguém se purificar de todas essas coisas, será um vaso de honra, útil ao Senhor, preparado para toda obra boa'» (2 Tm 2,20s. Poimém queria dizer que não é de admirar haja cristãos tentados e mesmo frouxos na Igreja (o próprio Apóstolo o atesta), mas é preciso se purifiquem de todas as impurezas e passem à categoria dos bons.).

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101. Um irmão perguntou ao Abade Poimém: «Porque é que não consigo falar livremente com os anciãos a respeito de meus pensamentos? «Respondeu Poimém ter dito o Abade João Curto: «O inimigo de nada se agrada tanto como daqueles que não manifestam os seus pensamentos».

102. Um irmão referiu ao Abade Poimem: «Meu coração desfalece logo que sou acometido de um pequeno sofrimento». Respondeu o ancião: «Não admiramos José, jovem de dezessete anos, como sustentou a tentação até o fim?» Deus, em conseqüência, o glorificou. Não vemos também Jó, como não desfaleceu, guardando a paciência até o fim? E as tentações não conseguiram abalar-lhe a esperança em Deus».

103. Disse o Abade Poimém: «O cenobita deve ter três faculdades de agir: uma é a faculdade de praticar a humildade; outra, a de obedecer; a terceira, a de se movimentar como que debaixo de um aguilhão, em vista do trabalho do cenóbio».

104. Um irmão disse ao Abade Poimém: «Num momento de aflição pedi emprestado um objeto a um dos santos, e ele mo deu como esmola. Se, pois, Deus também a mim dispensar seus bens (Isto é, se eu puder um dia dispensar esse objeto.), darei tal objeto a outros como esmola ou antes àquele que mo deu?» Respondeu o ancião: «Diante de Deus o justo é que restituas a este; pois deste era o objeto». Replicou o irmão: «Se, porém, eu lhe levar e ele não o quiser aceitar, mas disser: 'Vai, e dá-o em esmola a quem quiseres', que hei de fazer?» Respondeu o ancião: «Em verdade, o objeto é dele. Se, porém, alguém te dá algo espontaneamente, sem que o peças, tal objeto é teu. Se, ao contrário, pedes, seja de um monge, seja de um secular, e depois o proprietário não quer receber o objeto de volta, o justo é que, com o conhecimento do proprietário, dês o objeto como esmola em favor do mesmo proprietário» (Isto é, com a intenção de que Deus faça redundar essa esmola em merecimento do antigo proprietário.).

105. Do Abade Poimém diziam que ele nunca queria proferir a sua sentença depois da de um outro ancião, mas louvava plenamente esta outra.

106. Disse o Abade Poimém:«Muitos dos nossos Pais se tornaram insignes na austeridade, mas um ou outro apenas se tornou insigne pela discrição».

107. Certa vez, estando o Abade Isaque sentado com o Abade Poimém, ouviu-se o canto do galo. Aquele então perguntou: «Aqui há dessas coisas, ó Abade?» Este respondeu: «Isaque, por que me obrigas a falar? Tu e os teus semelhantes ouvis tais coisas; o homem vigilante, porém, não se importa com elas».

108. Diziam que, se alguns visitantes iam ter com o Abade Poimém, este os mandava procurar primeiramente o Abade Anube, por ser Anube mais velho. O Abade Anube, porém, dizia-lhes: «Dirigi-vos ao meu irmão Poimém, pois ele tem o carisma da palavra». Caso o Abade Anube estivesse sentado perto do Abade Poimém, este em absoluto não falava enquanto estivesse presente o irmão».

1G9. Havia um secular, muito piedoso em sua conduta de vida, o qual foi ter com o Abade Poimém. Achavam-se junto com o ancião ainda outros irmãos, que lhe pediam uma palavra. Ora Poimém dirigiu-se ao piedoso secular «Dize uma palavra aos irmãos». Este, porém, rogou: «Desculpa-me, Abade, eu vim aprender». Todavia, constrangido pelo ancião, disse: «Sou um homem secular que vende legumes e negocia; desato os feixes, e confecciono outros menores; compro por pouco e vendo por muito. De resto, não sei falar conforme a Escritura; em todo caso, proponho uma parábola: Um homem disse a seu amigo: 'Pois que desejo ver o Imperador, vem tu comigo'. Respondeu-lhe o amigo: 'Acompanhar-te-ei até meio-caminho'. Disse então a outro amigo: 'Vem tu, conduze-me até o Imperador'. Este respondeu: 'Levar-te-ei até o palácio do Imperador'. Disse ainda

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a um terceiro: 'Vem comigo até o Imperador'. Este anuiu: 'Irei, levar-te-ei até o palácio; lá me apresentarei, hei de falar e, por fim, introduzir-te-ei até o Imperador'. Perguntaram-lhe então qual era o significado da parábola. O secular explicou: «O primeiro amigo é a ascese, que leva até a estrada; o segundo é a pureza, que leva até o céu; o terceiro é a esmola, que introduz até o Rei Deus, com confiança». Assim edificados, partiram os irmãos.

110. Um irmão que residia fora de sua aldeia e havia muitos anos não voltava a ela, disse aos irmãos: «Eis há quantos anos aqui estou sem voltar à aldeia; vós, porém, voltais sempre que vos apraz». Ora contaram o caso ao Abade Poimém, o qual lhe disse: «Eu me chegaria de noite e circularia em redor da aldeia, para que em meu espírito não me vangloriasse de não ir lá».

111. Um irmão pediu ao Abade Poimém: «Dize-me uma palavra». Este respondeu: «Enquanto a panela é aquecida por fogo de baixo, nem uma mosca ou algum dos outros insetos voadores a pode tocar; logo, porém, que esteja fria, estes se pousam sobre ela. Assim também o monge; enquanto se entrega aos atos da vida espiritual, o inimigo não encontra como abatê-lo».

112. O Abade José referia o seguinte dito do Abade Poimém: «A palavra do Evangelho: 'Quem tem uma túnica, venda-a, e compre uma espada' (Lc 22,36) significa que quem goza de bem-estar, o deve abandonar e assumir a via estreita».

113. Alguns dos Padres perguntaram ao Abade Poimém: «Se virmos um irmão pecando, queres que o repreendamos?» Respondeu-lhes o ancião: «Em verdade, se eu tiver necessidade de andar por aqueles lugares e o vir pecando, passarei adiante e não o repreenderei».

114. Disse o Abade Poimém: «Está escrito: 'Das coisas que tiver visto o teu olho, dá testemunho' (Pr 25,8). Eu, porém, vos digo: ainda que apalpeis com as vossas mãos, não deis testemunho. Com efeito, um irmão padeceu ilusão desta forma: julgou ver o seu irmão pecando com uma mulher; ora, depois de sofrer grave tentação por isto, aproximou-se e deu um pontapé naquilo que julgava ser os dois delinqüentes; dizia: 'Deixai disso agora; até quando estareis assim?' Eis então notou que eram molhos de espigas de trigo. Por isso vos digo: ainda que toqueis com as mãos, não censureis».

115. Um irmão perguntou ao Abade Poimém: «Que hei de fazer, pois sou tentado à fornicação e à ira?» Respondeu o ancião: «Por isso é que disse Davi: 'O leão, eu o golpeava; o urso, eu o sufocava' (1Rs 17,35). O que quer dizer: a ira, eu a amputava; a fornicação, eu a oprimia em labutas».

116. Disse mais: «Não se pode encontrar maior caridade do que a que entrega a vida pelo próximo. Se alguém ouve uma palavra má, isto é, dura, e, podendo responder outra semelhante, luta para não responder, ou se alguém é defraudado e o suporta sem se vingar, tal indivíduo está dando a vida paio próximo».

117. Um irmão perguntou ao Abade Poimém: «Que é um hipócrita?» O ancião respondeu: «Hipócrita é aquele que ensina ao próximo algo que ele mesmo não chega a praticar. Com efeito, está escrito: 'Por que consideras o cisco no olho de teu irmão, quando há uma trave em teu olho?' e o que se segue (Mt 7,3s).

118. Um irmão perguntou ao Abade Poimém: «Que significa irar-se sem motivo contra o irmão?» O ancião respondeu: «Se teu irmão cometer uma fraude, qualquer que seja, contra ti, e te ampute a mão direita, se te irares contra ele, irar-te-ás temerariamente. Se, porém, te quiser separar de Deus, então deves irar-te».

119. Um irmão perguntou ao Abade Poimém« «Que hei de fazer contra os meus pecados?»

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Respondeu o ancião: «Aquele que quer resgatar os seus pecados, resgata-os com o pranto; e aquele que quer adquirir virtudes, adquire-as com o pranto. Com efeito, prantear é a via que nos ensinaram a Escritura e os nossos Pais, dizendo: 'Chorai' (1). Outra via não há senão esta».

120. Um irmão perguntou ao Abade Poimém: «Que é compunção do pecado?» Respondeu o ancião: «É para o futuro não mais cometer o pecado. Com efeito, os justos foram chamados imaculados porque abandonaram os pecados e se tornaram justos».

121. Disse também que a maldade dos homens está oculta por detrás deles.

122. Um irmão perguntou ao Abade Poimém: «Que hei de fazer contra as perturbações que me acometem?» Respondeu o ancião: «Choremos diante da bondade de Deus em todo trabalho nosso, até que use conosco da sua misericórdia».

123. De novo perguntou-lhe o irmão: «Que hei de fazer contra os inúteis desejos que tenho?»

Respondeu Poimém: «Há homens que já sofrem a respiração ofegante da morte, mas ainda atendem aos desejos deste mundo. Não te aproximes, e não toques esses desejos; eles se esvanecerão por si».

124. Um irmão perguntou ao Abade Poimém: «Pode o homem ser um morto?» Respondeu este: «Se o homem chega ao pecado, morre; se, porém, chega ao bem, viverá e o praticará».

125. O Abade Poimém referiu o seguinte dito do bem-aventurado Abade Antão: «A grande força do homem está em que assuma sobre si mesmo o seu pecado diante do Senhor, e espere tentação até o último respiro».

126. Perguntaram ao Abade Poimém a quem é que se aplica a palavra da Escritura: «Não vos (Entendem-se aqui as lágrimas de compunção.) preocupeis com o dia de amanhã» (Mt 6,34). O ancião respondeu: «Foi dita para o homem que, acometido de uma tentação, perde a coragem, a fim de que não pergunte preocupado: 'Quanto tempo deverei sofrer esta tentação?' Antes reflita um pouco, e de dia para dia diga: 'Hoje'».

127. Disse também: «Ensinar ao próximo é obra do homem sadio e destituído de paixões; pois que vantagem há em construir a casa de outrem ao mesmo tempo que se derruba a própria casa?»

128. Disse mais: «Que proveito há em que alguém saia para aprender uma arte e não a aprenda?»

129. Disse de novo: «Tudo que excede a justa medida, provém dos demônios».

130. Disse também: «Quando alguém intenciona construir uma casa reúne muitas coisas de diferentes espécies e necessárias para que a casa possa subsistir. Assim também nós assumamos um pouco de cada virtude».

131. Alguns dos Padres perguntaram ao Abade Poimém: «Como é que o Abade Nistero o suportou a tal ponto o seu discípulo?» Respondeu-lhes o Abade Poimém: «Se fora eu, teria posto até o travesseiro debaixo da cabeça dele». O Abade Anube perguntou então: «E que dirias a Deus?» Continuou o Abade Poimém: «Diria: 'Tu mandaste: Tira primeiramente a trave do teu olho; depois tratarás de tirar o cisco do olho de teu irmão'» (Mt 7,5).

132. Disse o Abade Poimém: «A fome e a sonolência não nos deixam ver essas coisas simples».

133. Disse de novo: «Muitos se tornaram poderosos; poucos, porém, se tornaram incentivadores».

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134. Disse também, com gemidos: «Todas as virtudes entraram nesta casa, exceto uma, sem a qual dificilmente permanece o homem de pé». Perguntaram-lhe então qual é esta; ao que respondeu: «Que o homem censure a si mesmo».

135. Disse muitas vezes o Abade Poimém: «De nada precisamos a não ser de uma mente vigilante».

136. Um dos Padres perguntou ao Abade Poimém: «Quem é que assim fala: 'Sou participante de todos os que te temem?' (SI 118,63) O ancião respondeu: «É o Espírito Santo que assim fala».

137. O Abade Poimém referiu que um irmão se dirigiu ao Abade Simão nestes termos: «Se saio da cela e encontro meu irmão divagando, também eu divago com ele, e, se o encontro rindo, também rio com ele; a seguir, quando volto à cela, não posso encontrar paz». Disse-lhe o ancião: «Queres também tu rir quando, ao saíres da cela, encontrares a quem está rindo, também tu falar quando encontrares a quem está falando, e, a seguir, ao entrares em tua cela, encontrar a ti mesmo como estavas?» Perguntou o irmão: «Como é isto possível?» O ancião respondeu: «Por dentro, mantém guarda; por fora, mantém guarda».

138. O Abade Daniel contava o seguinte: «Certa vez fomos ter com o Abade Poimém e comemos juntos; depois do que, disse-nos; «Ide-vos, descansai um pouco, irmãos». Foram, pois, descansar um pouco; eu, porém, fiquei para conversar a sós com o Abade Poimém. Por conseguinte, levantei-me e fui a cela dele. Ora, quando me viu chegar, colocou-se na posição de quem está dormindo. Com efeito, era costume do ancião fazer tudo de modo despercebido.

139. Disse o Abade Poimém: «Se vires espetáculos e ouvires discursos, não os contes a teu próximo, pois são uma subversão bélica».

140. Disse de novo: «Em primeiro lugar, foge uma vez; em segundo lugar, foge; em terceiro lugar, torna-te uma espada».

141. Disse de novo o Abade Poimém ao Abade Isaque: «Torna leve uma parte da tua justiça, e encontrarás paz nos poucos dias de tua vida».

142. Um irmão foi visitar o Abade Poimém, e, estando alguns sentados juntos, pôs-se a louvar outro irmão, porque este odiava o mal. Então o Abade Poimém perguntou-lhe: «E que é odiar o mal?» O irmão ficou perturbado e não encontrou resposta; levantou-se, pois, e prostrou-se diante do ancião, pedindo: «Dize-me o que é odiar o mal». Respondeu Poimém: «Odiar o mal consiste em que alguém odeie os próprios pecados e considere justo o seu próximo».

143. Um irmão foi ter com o Abade Poimém e perguntou-lhe: «Que devo fazer?» Este respondeu: «Vai e associa-te a quem diz: 'Que é que eu quero?' E encontrarás sossego».

144. O Abade José referiu a seguinte narrativa do Abade Isaque: «Certa vez estava sentado com o Abade Poimém e vi-o entrar em êxtase; já que eu tinha grande familiaridade com ele, prostrei-me depois diante dele e perguntei-lhe: 'Dize-me onde estavas'. Constrangido, respondeu: 'Minha mente estava no lugar em que Santa Maria, a Mãe de Deus, esteve, e chorava junto à cruz do Salvador; eu quisera chorar sempre desse modo'».

145. Um irmão perguntou ao Abade Poimém: «Que farei contra esta carga que me comprime?»

Respondeu: «As naves, pequenas e grandes, levam cinturões; no caso de faltar vento favorável, os marinheiros colocam esses cinturões sobre o peito, munem-se de cordas, e assim aos poucos vão

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puxando a nave, até que Deus mande o vento; quando, porém, observam que aproximam as trevas, apressam-se em voltar à nave e lançam a âncora, para que a embarcação não fique errante».

146. Um irmão interrogou o Abade Poimém a respeito dos assaltos dos maus pensamentos.

Respondeu-lhe o ancião: «Isso se assemelha a um homem que tem fogo à esquerda e um reservatório de água à direita; uma vez aceso o fogo, tome água do reservatório e apague-o. O fogo é a semente do inimigo, enquanto a água significa prostrar-se em presença de Deus».

147. Um irmão perguntou ao Abade Poimém: «Que é melhor: falar ou calar-se?» Respondeu o ancião: «Aquele que fala por causa de Deus, faz bem; e aquele que se cala por causa de Deus, faz bem».

148. Um irmão perguntou ao Abade Poimém: «Como pode o homem evitar dizer palavras duras ao próximo?» Respondeu o ancião: «Nós e os nossos irmãos somos duas imagens: todas as vezes que o homem considera a si mesmo e se acusa, o irmão lhe parece digno de honra: quando, porém, o homem se julga bom, acha o irmão mau em comparação a ele».

149. Um irmão interrogou o Abade Poimém a respeito da acedia (A acedia é o desânimo na vida espiritual.). Respondeu-lhe o ancião: «A acedia se encontra em todo início, e não há paixão pior do que ela. Se, porém, o homem a descobre e reconhece que é ela, encontra paz».

APOTEGMAS

 Pai Ammonas: O caminho estreito e apertado é este: controlar seus pensamentos e despojar-se de sua própria vontade por amor de Deus.

Pai Poemen: Quem não chora por si mesmo aqui embaixo, chorará eternamente... [Esta advertência pode ser resumida em uma palavra: compreensão.].

Pai Dioscorus: Estou chorando pelos meus pecados... Se eu pudesse ver os meus pecados, três ou quatro homens não seriam suficientes para chorar por eles. [Muitas vezes não temos a real compreensão nem fazemos a justa avaliação dos nossos defeitos-equívocos, nem qualitativa nem quantitativamente.].

Pai Epifânio: Um homem que recebe algo de outro por causa de sua pobreza ou da sua necessidade tem aí sua recompensa, e porque ele se envergonha, quando ele paga, ele o faz em segredo. Mas o oposto faz Deus; Ele recebe em segredo, mas paga na presença dos anjos, dos arcanjos e dos justos. [Qual foi o bem que eu te fiz para que tu me cuspas na face?].

Pai Agathon: Heresia é separação de Deus.

Pai Evágrio: Retirem-se as tentações e ninguém será salvo.

Pai Zeno: Os egípcios escondem as virtudes que possuem e acusam-se sem cessar de faltas que eles não têm; já os sírios e os gregos fingem ter virtudes que não possuem e escondem as faltas das quais são culpados.

Pai Zeno: O que quer que faças, faça-o em segredo. [O que a mão direita faz a mão esquerda não precisa conhecer.].

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Pai Zeno: Se um homem deseja ser ouvido rapidamente por Deus, antes de rezar por qualquer coisa, mesmo por sua própria alma, quando se elevar e estender suas mãos em direção a Deus, deve rezar de todo coração por seus inimigos. Através dessa ação Deus atenderá qualquer coisa que ele pedir. [Deus de meu Coração: ilumina a consciência dos meus adversários e permite que eu possa ser um instrumento de compreensão para toda a Humanidade.].

Pai Elias: O que pode o pecado onde há penitência? E de que adianta o amor onde há orgulho?

Pai Isaias: Quando Deus deseja apiedar-se de uma alma e ela se rebela, não suportando nada e fazendo sua própria vontade, Ele então permite que ela sofra o que não quer, de modo que volte a procurá-Lo novamente.

Pai Theodore: Se vocé é amigo de alguém que cai na tentação da fornicação, ofereça-lhe sua mão, se puder, e tire-o disso. Mas se ele cair na heresia e você não puder persuadi-lo de sair dela, saia de sua companhia rapidamente, para evitar que, no caso de você demorar, você também seja jogado nesse poço.

Pai Theodore: O homem que permanece de pé quando se arrepende não guardou o mandamento. [Permanecer de pé significa não se arrepender verdadeiramente, o que não adianta absolutamente nada. Mas, só poderá efetivamente se arrepender aquele que compreendeu.].

Pai Pambo: Se ele [Pai Theophilo] não se edificar pelo meu silêncio, não será edificado pela minha fala. [Muito mais do que através de um discurso, é pelo exemplo que serão plantadas sementes que darão frutos.].

Mãe Teodora: Vamos nos esforçar para entrar pela porta estreita. Como as árvores que não enfrentaram as tempestades de inverno e não produzem frutos, assim é conosco; esta vida presente é uma tempestade, e é através de muitas tribulações e de muitas tentações que poderemos obter a herança no reino dos céus.

Mãe Teodora: Um mestre deveria ser um estranho ao desejo de dominação, de vanglória e de orgulho. Ninguém deveria se capaz de enganá-lo pela adulação, nem cegá-lo com presentes, nem conquistá-lo pelo estômago, nem dominá-lo pelo ódio. Mas ele deveria ser paciente, gentil e humilde tanto quanto possível; ele deveria ser testado, e, sem partidarismo, imbuído de responsabilidade e de amor pelas almas. [Somos UM.].

Mãe Teodora: Nenhuma forma de ascetismo, nem vigílias, nem qualquer tipo de sofrimento são capazes de salvar, mas apenas a verdadeira humildade o pode fazer.

Pai John: Sou como um homem sentado debaixo de uma grande árvore que vê bestas selvagens e serpentes vindo contra ele em grande número. Quando não pode mais, ele corre e sobe na árvore e se salva. É a mesma coisa comigo: sento-me em minha cela e estou consciente de pensamentos maus vindo contra mim, e quando não tenho mais forças contra eles busco refúgio em Deus pela oração e sou salvo do inimigo.

Pai John: Implore a Deus que lhe envie as lutas [e as tentações] de modo que você recupere a aflição e humildade que você possuía, pois é pela luta que as almas progridem.

Pai John: Pusemos a carga leve de um lado – que é a auto-acusação – e nos carregamos com um grande peso – que é a autojustificação.

Pai John: Humildade e temor de Deus estão acima de todas as virtudes.

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Pai John: Vigiar significa sentar-se na cela e estar sempre presente a Deus. [Ora et Labora; Solve et Coagula.].

Pai John: uma casa não é construída do topo para baixo. Deve-se começar com a fundação para alcançar o topo. A fundação é o nosso próximo – a quem devemos conquistar – e este é o lugar para começar. Pois todos os mandamentos de Cristo dependem desse um.

Pai Isidore: Quando eu era mais jovem e permanecia em minha cela eu não punha limites à oração; a noite era para mim tempo de oração tanto quanto o dia.

Pai Isidore: Prezem as virtudes e não sejam escravos da glória; pois as primeiras são imortais, enquanto que as últimas logo se desvanecem.

Pai Isidore: As alturas da humildade são grandes e também as profundezas da vanglória; aconselho-os a atenderem à primeira e a não caírem na segunda.

Pai James: Tal como uma lâmpada ilumina um quarto escuro, o temor de Deus – quando penetra o coração de um homem – o ilumina ensinando-lhe todas as virtudes.

Pai James: Não precisamos apenas de palavras, pois no momento presente existem muitas palavras entre os homens, mas precisamos de atos – pois isto é o necessário – não apenas palavras que não produzem fruto.

Pai Isidore: Se você jejua regularmente, não se encha de orgulho; mas se você se vangloria por causa disso, então é melhor que coma carne. É melhor para um homem comer carne do que se inflar com orgulho e gloriar-se de si mesmo. [O vegetarianismo oriundo de um simples apelo emocional não tem o menor valor.].

Pai Copres: Abençoado aquele que sofre aflições com ação de graças.

Pai Cyrus: Se vocês não pensarem em fornicação, vocês não têm esperança, pois se vocês não estiverem pensando nisso, estarão fazendo isso. Quer dizer, aquele que não luta contra o pecado e resiste a ele em seu espírito vai pecar fisicamente. É bem verdade, entretanto, que aquele que está fornicando não está preocupado pensando nisso. [Novamente aqui se observa que a palavra-chave para tudo é Compreensão.].

Pai Lucius. Alguns monges, chamados Euchites, foram a Enaton para ver Pai Lucius. O ancião perguntou-lhes: — Qual é o seu trabalho manual? Responderam os monges: — Não fazemos trabalho manual, pois como o Apóstolo diz, rezamos incessantemente. O ancião perguntou-lhes se eles comiam, e eles responderam que sim. Então ele lhes disse: — Quando vocês estão comendo, quem reza, então, no lugar de vocês? E perguntou-lhes se eles não dormiam, e responderam-lhe que sim. E ele lhes falou: — Quando vocês dormem, quem reza no seu lugar? Eles não conseguiram encontrar nenhuma resposta satisfatória para dar ao Pai Lucius. Ele continuou: — Perdoem-me irmãos, mas vocês não agem como falam. Vou lhes mostrar como procedo. Enquanto faço meu trabalho manual, rezo sem interrupção. Sento-me com Deus, ponho meu junco de molho e trançando minhas cordas, digo: Deus, tende compaixão de mim. De acordo com Vossa grande bondade e de acordo com Vossa infinita misericórdia, livra-me de meus pecados. Então lhes perguntou se isto não era oração. Os monges disseram que sim. Prosseguindo, lhes falou: — Então, enquanto passo o dia todo trabalhando e rezando, ganhando treze moedas de dinheiro, mais ou menos, coloco duas moedas do lado de fora da porta e pago minha comida com o resto do dinheiro. Aquele que pega as duas moedas reza por mim enquanto estou comendo e quando estou dormindo. E assim, pela graça de Deus, eu cumpro o preceito de orar sem cessar.

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Pai Macarius: Não trouxemos nada para este mundo e não poderemos levar nada para fora dele.

Pai Macarius: Para rezar não é necessário fazer grandes discursos; é suficiente erguer as mãos e dizer: — Senhor, como desejas e como conheces, tenha piedade. E se o conflito crescer, digam: — Senhor, ajuda! Ele sabe muito bem o que precisamos e Ele nos mostrará Sua misericórdia. [Ao homem sincero nada é vedado.].

Pai Matoes: Eu, por mim, ainda não consegui amar aqueles que me amam como eu me amo a mim mesmo. [É extremamente difícil amar aos outros como a si mesmo; mas, mais difícil ainda é amar o outro como ele é.].

Pai Xanthias: Que ninguém se gabe por seus atos bons, pois todos aqueles que confiam em si mesmos caem.

Pai Poemen: O início do mal é não ouvir. [Não ouvir – ou não querer ouvir – a Voz Silenciosa do Coração.].

Mãe Syncletica: No começo, há luta e muito trabalho para os que se aproximam de Deus. Mas, depois disso, há uma indescritível alegria. É como acender uma fogueira: no início há muita fumaça e seus olhos lacrimejam, mas depois você consegue o resultado desejado. Assim devemos acender o fogo divino em nós mesmos – com lágrimas e esforço.

Mãe Syncletica: Há muitos que vivem nas montanhas e se comportam como se estivessem na cidade; e eles estão perdendo seu tempo. É possível ser solitário em sua própria mente – mesmo no meio de uma multidão – e é possível para um solitário viver na multidão de seus próprios pensamentos.

Abade Moisés: Vá, sente-se em sua cela, e sua cela lhe ensinará tudo. [Vá, sente-se em seu Sanctum, e seu Coração lhe ensinará tudo.].

Patriarca José: Se queres encontrar serenidade onde quer que estejas, então, em tudo que fizeres, deves dizer: —Quem sou eu? E não julgues a ninguém!

Um ancião do deserto: Assim como é impossível para um homem ver seu rosto em águas turbulentas, também é impossível buscar a Deus se a mente estiver ansiosa, agitada e distraída. [No Silêncio, tudo.].

Um abade do Mosteiro de Sceta: Quem é capaz de não se importar com o que os outros dizem é um homem que está no Caminho da Sabedoria.

Cipriano de Cartago: Rezai assiduamente ou lede assiduamente; por vezes falai a Deus, noutras escutai a Deus falando a vós. Quando rezais, vós falais com Deus; quando ledes, Deus fala convosco.

Pai Pambo: Vigiarei meus caminhos, para não pecar com minha língua...

Pai Abraão: Afasta-te do mal e faze o bem; procura a paz e segue-a...

Pai Cassiano: Se você deseja alcançar a verdadeira ciência das Escrituras, apresse-se primeiro para adquirir uma inabalável humildade de coração. É isto que o conduzirá, não à ciência que ensoberbece, mas àquela Ciência que ilumina, pela consumação da caridade.

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Um jovem se aproxima de um velho monge e lhe pergunta: — Padre, porque tantos começam este caminho da vida consagrada e voltam atrás? O velho olhou-o com carinho e disse: — Você já viu um cachorro correndo atrás de uma lebre? Você percebe que, tão logo que a vê, ele se põe a correr atrás dela, latindo forte. Os outros cachorros, quando o escutam latir, começam a latir também, e se põe a correr ao lado dele. Mas, os que não viram a lebre, logo começam a cansar, perdem o fôlego e param. Mas quem viu a lebre, esse vai até o fim.

Santo Antão: Os demônios só conjuram fantasmas contra o medroso.

Santo Antão: Sejam como meninos e tragam a seu pai o que saibam e lho digam, tal como eu, que sendo o mais velho, reparto com vocês os meus conhecimentos e a minha experiência. [Há quem saiba e ensine tudo. Há quem saiba e fique mudo. E há quem saiba e ensine errado.].

Santo Antão: Acautelemo-nos contra os maus pensamentos. Lutemos, pois, para que a ira não nos domine nem a concupiscência nos escravize.

Santo Antão: Ninguém é julgado pelo que não sabe, e ninguém é chamado de bem-aventurado pelo que aprendeu e sabe.

Santo Antão: Os demônios quando vêem que os homens têm medo, aumentam suas fantasmagorias para aterrorizá-los ainda mais.

Santo Antão: O Sol não se deve pôr não apenas sobre nossa ira, como sobre nenhum outro pecado.

Santo Antão: Cada um deve fazer diariamente um exame do que fez de dia e de noite. Se pecou, deixe de pecar; se não pecou, não se orgulhe disso.

Santo Antão: A Palavra [Verbum] foi sempre coexistente com o Pai.

Santo Antão: A fé surge da disposição da alma, enquanto a dialética vem da habilidade dos que a idealizam. De acordo com isto, os que possuem uma fé ativa [fé oriunda da experiência mística pessoal] não necessitam de argumentos e de palavras, e provavelmente os reputam supérfluos. A conclusão é que uma fé ativa é melhor e mais forte do que seus argumentos sofísticos.

Santo Antão: A fé em Cristo é suficiente.

São Pacomio: Foge das comodidades deste mundo para estares na alegria do mundo futuro... Não te aflijas quando fores ultrajado pelos homens; mas, sim, deves te afligir e deves suspirar quando pecares – pois este é o verdadeiro ultraje – e quando fores persuadido por teus pecados.

São Pacomio: A vaidade é a arma do diabo.

Pai Amon: Suporta todo homem assim como Deus te suporta.

Pai Antonio: Como uma pedra, deves alcançar a perfeição e imaginar que ninguém te ofende.

Pai Evágrio: O início da salvação é condenar-se a si mesmo.

Pai Geronte: Muitos daqueles que são tentados pelos caprichos do corpo não pecam com o corpo, mas cometem impurezas com o pensamento. E, mesmo conservando a virgindade do corpo, cometem impurezas com sua alma. Portanto, amados meus, fazei como está escrito: Cada um guarde seu coração com cuidadosa vigilância. (Prov. IV, 23).

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Pai Gregório: Que a tua obra seja pura pela presença do Senhor; não pela exibição.

Pai Mios: Obediência traz obediência. Se alguém obedece a Deus, Deus lhe obedece.

Pai Monio: Se um homem realmente quisesse, um dia apenas, do amanhecer ao anoitecer, lhe seria suficiente para alcançar a medida da divindade.

Pai Pastor: Quaisquer que sejam teus sofrimentos, a vitória sobre eles está no Silêncio.

 Pai Pastor: Quem responde antes de ouvir comete uma bobagem e cai na confusão. Portanto, fala se te perguntam; de outro modo, cala.

Pai Pastor: O homem deve incessantemente respirar a humildade e o temor de Deus do mesmo modo que inala e expele o ar através das narinas.

Pai Pastor: Prostrar-se diante de Deus, não se dar nenhuma importância e jogar fora a própria vontade: eis os instrumentos com os quais a alma pode trabalhar.

Abade Sisoé: Não é grande coisa que a tua alma esteja com Deus. Seria grande se tu tomasses consciência de que és inferior a todas as criaturas. Este pensamento, unido ao trabalho físico: eis o que corrige e conduz à humildade.

Abade Sisoé: Os instrumentos das paixões estão contigo, mas se lhes pagares a fiança irão embora.