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Paisagem carioca no cinema brasileiro Todo e qualquer espaço urbano, por menor e mais insignificante que seja, constrói uma identidade especial, visual e de usos e costumes. Referências são criadas, percursos instaurados, uma imagem se forma. A permanência ou não de características básicas do sítio é que determinará a configuração de uma simbologia mais perene, algo que sinaliza suas virtudes (e eventualmente seus “defeitos”). Entramos, portanto, no caudaloso rio da historia e suas marchas e contramarchas, idas e vindas, construções e desconstruções. A formação de uma identidade maior, quer do ponto de vista interno, ou seja, um enraizamento cultural da cidade na mente de sua população, quer do externo, ou seja, a fixação de determinadas imagens recorrentes, chegando mesmo a uma marca “oficial”, é um processo longo, parcialmente inconsciente e ideologicamente seletivo. A augusta cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro tem quase cinco séculos e por volta de 1800 já podia ser considerada um dos maiores sítios urbanos do pais, apta a ratificar dentro em pouco a condição de melhor opção como capital nacional. Embora seu passado viesse se constituindo com alguma racionalidade, baseado no modelo geométrico português, uma vez ultrapassada a faixa litorânea, prosseguiu ao sabor das circunstâncias e premido pela sinuosa cadeia de morros da região. O ar levemente bagunçado pela paisagem citadina se esboça aqui. Não havia nesta época um projeto urbanístico propriamente dito para a cidade. Tal coisa a rigor só surgiria intencionalmente com a reforma hausmanniana. Mas curiosamente já havia um certo zelo em determinar determinadas áreas ou construções mais antigas, algumas das quais sobreviveram até o presente, como o Paço, o Passeio Público, a Ladeira da Misericórdia, etc. Isto talvez se explique pelo fato de que as nações emergentes do novo continente procuravam quase sempre transmitir a idéia de um certo lastro civilizatório. Não houve idade média por aqui, mas assim mesmo procurávamos construir uma certa tradição, procurávamos nos envelhecer. O fato de termos permanecido ligados a uma determinada configuração espacial e uma determinada arquitetura durante a segunda metade do século XIX, quando o crescimento

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Paisagem carioca no cinema brasileiro

Paisagem carioca no cinema brasileiroTodo e qualquer espao urbano, por menor e mais insignificante que seja, constri uma identidade especial, visual e de usos e costumes. Referncias so criadas, percursos instaurados, uma imagem se forma. A permanncia ou no de caractersticas bsicas do stio que determinar a configurao de uma simbologia mais perene, algo que sinaliza suas virtudes (e eventualmente seus defeitos). Entramos, portanto, no caudaloso rio da historia e suas marchas e contramarchas, idas e vindas, construes e desconstrues. A formao de uma identidade maior, quer do ponto de vista interno, ou seja, um enraizamento cultural da cidade na mente de sua populao, quer do externo, ou seja, a fixao de determinadas imagens recorrentes, chegando mesmo a uma marca oficial, um processo longo, parcialmente inconsciente e ideologicamente seletivo.A augusta cidade de So Sebastio do Rio de Janeiro tem quase cinco sculos e por volta de 1800 j podia ser considerada um dos maiores stios urbanos do pais, apta a ratificar dentro em pouco a condio de melhor opo como capital nacional. Embora seu passado viesse se constituindo com alguma racionalidade, baseado no modelo geomtrico portugus, uma vez ultrapassada a faixa litornea, prosseguiu ao sabor das circunstncias e premido pela sinuosa cadeia de morros da regio. O ar levemente bagunado pela paisagem citadina se esboa aqui. No havia nesta poca um projeto urbanstico propriamente dito para a cidade. Tal coisa a rigor s surgiria intencionalmente com a reforma hausmanniana. Mas curiosamente j havia um certo zelo em determinar determinadas reas ou construes mais antigas, algumas das quais sobreviveram at o presente, como o Pao, o Passeio Pblico, a Ladeira da Misericrdia, etc. Isto talvez se explique pelo fato de que as naes emergentes do novo continente procuravam quase sempre transmitir a idia de um certo lastro civilizatrio. No houve idade mdia por aqui, mas assim mesmo procurvamos construir uma certa tradio, procurvamos nos envelhecer. O fato de termos permanecido ligados a uma determinada configurao espacial e uma determinada arquitetura durante a segunda metade do sculo XIX, quando o crescimento populacional assustador e a incompatibilidade da infra-estrutura urbana com diversos avanos tecnolgicos e sociais(tipo bonde, carruagem, passeata, etc.) puseram em xeque o velho passado colonial, liga-se a esta difusa construo de uma idade adultae falta de um projeto concreto para a cidade. O maior intercmbio com o exterior durante o imprio trouxe novidades, comrcio, bens, mas trouxe tambm o estrangeiro, que, em geral, saa daqui horrorizado com a pssima qualidade de vida na cidade. A falta de noes mnimas de saneamento pblico tambm colaborou para a primeira imagem pblica do Rio de Janeiro e, por extenso, do Brasil. A idia genrica de cidade pestilenta metamorfoseou-se em inferno tropical. ramos o foco maior das endemias, o espao da morte por excelncia. No por acaso as agencias de viagem martima estampavam avisos de advertncia quanto aos perigos de rotas que inclussem o Brasil e mais especificamente o Rio de Janeiro.Pode-se dizer que esta foi nossa primeira imagem, nossa primeira marca. Este estigma foi to forte, que a passagem Repblica trouxe no s o lema do progresso como um projeto poltico e social, mas tambm uma atitude concreta para acabar com a mcula. Governantes, intelligentzia e mesmo a populao engajaram-se no apenas na reverso do pecado, mas sobretudo na construo simblica de uma nova cidade. quando o Rio deixa de ser lgubre, soturno, sombrio, mal iluminado e triste para se tornar alegre, gaiato, arejado, imponente, bonito e moderno. O bota-abaixo, em grandes (cortios, morros, favelas) e pequena escala (quiosques, carroas, camels) o momento de ruptura com esse passado, o ponto de inflexo para uma construo simblica do Rio de Janeiro. O smbolo aqui quase literal, pois o que mudou na prtica foi muito pouco, sobressaindo-se apenas a Avenida Central e arredores. Mas no se negligencie a fora que a idia teve. O morador do rio praticamente se reinventou nesses poucos anos, a ponto de deixar de ser fluminense para ser carioca. O rio de janeiro que habita nossas mentes nasce aqui. Contemporneo dessa nova cidade, o cinema brasileiro teve o privilgio de acompanhar as transformaes. Infelizmente as centenas de filmes aqui realizados de 1898 a 1930 perderam-se quase todos. O que ficou de material e de informao representa muito pouco e no sustenta afirmaes categricas. Por isso o que vai dito adiante tem carter meramente hipottico e pode deformar grandemente a compreenso desse objeto fugidio.Como dizia o crtico Paulo Emlio Salles Gomes, o cinema desses primeiros temas dedicava-se aos rituais do poder e ao bero esplendido, ou seja, registrava quase sempre cerimnias oficiais e signos da supostamente prodigiosa beleza natural do pas. No primeiro caso, havia um obvio foco nos homens, deixando-se o entorno fsico em segundo plano. No outro encontraramos efetivamente a construo de uma geo-iconografia que atuasse como smbolo das virtudes nacionais. Mas aqui surge um primeiro problema. Se isto verdadeiro, e aparentemente o , para a maior parte dos registros feitos no pas, no parece vlido justamente para o Rio de janeiro. Se encontramos o paranaense Anbal Requio fazendo um Cataratas do Iguau (1907), no conhecemos um Baa de Guanabara ou um Po de Acar realizado por aqui. Nenhum cineasta, ou melhor dizendo, cinegrafista carioca, parece ter se preocupado em destacar cones da beleza da cidade, pelo menos no como tema exclusivo de um filme. Nas listagens de filmes que chegaram at ns nada parece indicar a presena deste tipo de approach.O possvel bice do tambm possvel primeiro filme brasileiro, a filmagem de Afonso Segreto enfocando a Baa de Guanabara, no se sustenta porque na verdade o que teria sido enfocado eram as fortalezas e os navios e no um delineamento do acidente geogrfico. Isto to mais certo quanto no se verifica nas suas filmagens posteriores qualquer destaque nesse sentido para este ou aquele local. Afonso filma o Largo do Machado (1898), como filma a Rua Uruguaiana(1898) e na verdade, at onde sabemos, s filma lugares comuns como estes. Pode ser que o tal deslumbramento inicial com o cinema estivesse presente aqui. O xtase valia para qualquer coisa: muro, beb comendo, pessoas andando diante da cmara, l fora, e funerais, meetings e ruelas, por aqui. Isto no significa que lugares importantes no tenham sido filmados. Em 1908, a Empresa Paschoal Segreto vai ao Po de Acar e instala uma cmara no telefrico colhendo planos mais ou menos gerais da cidade. Mas sua inteno com isso destacar a Exposio Nacional que esta ocorrendo bem embaixo, na Urca. Ou seja, a cidade no ainda, pelo menos cinematograficamente, algo de aprecivel, objeto definido e definvel atravs de imagens enquadradas com intenes conscientes.Ao contrario, o primeiro registro a delimitar claramente um locus urbanus tomando-o como tema enfocar justamente a Avenida central. As imagens colhidas durante a inaugurao em 1905, frequentemente atribudas a Antnio Leal, provavelmente enfatizam o marco urbanstico e social que a obra representava desde a sua proposio alguns anos antes. Refora esta idia a profuso de documentrios que se seguem, tambm dedicados exclusivamente ao logradouro. Este interesse intenso pelo jovem boulevard e a ausncia completa de exames detidos em outros pontos chics da cidade leva a cr em uma primeira porm difusa simbolizao do Rio de Janeiro. A Avenida central uma metfora de toda a cidade, a nica passvel de apresentao frente s classes mdias que freqentavam as salas de exibio de ento e ao mundo, neste caso muito provavelmente de acordo com nossas elites pensantes. Alis, a construo literria do Rio segue o mesmo padro; Joo do Rio a frente. A belle poque propriamente uma construo discursiva, apoiada na coloquialidade da imprensa e dos polgrafos, na leveza do art-nouveau, no chiste de marchinhas, lundus e cia., na neutralidade do repertrio teatral e nas imagens reiterativas de nossos prsperos e iniciantes produtores cinematogrficos. Uma pea como A capital federal, de Alusio de Azevedo, no propriamente uma cida critica s contradies da cidade e sim uma celebrao do seu progresso, pois o matuto no s no a entende como no consegue domina-la. Nesse sentido compreende-se o alcance e a agudeza da obra de Lima Barreto, que procura desmascarar a impostura reinante.Para o bem ou para o mal, essa construo imagtica avana e vamos encontr-la no registro flmico mais antigo preservado da cidade. O luto pelo Baro do rio Branco (1911), annimo, encaixa-se na categoria dos rituais do poder, mas curiosamente enfoca pouco as autoridades, pouqussimo o velrio e muito a Avenida Central, logo denominada justamente Rio Branco por conta do falecido. O tom dos planos, porem, no tem nada de solene ou grandioso como seria de se esperar. A estatura poltica e pblica do baro no corresponde este ou aquele plano geral. Ao contrrio, h uma indisfarvel disperso na forma como as imagens so compostas. Os planos so surpreendentemente rpidos, os enquadramentos no reconstituem integralmente nenhum prdio ou local mais conhecido e o ir-e-vir de pessoas no merece destaque maior, exceo feita ao presidente da Repblica. O morto, inclusive, s aparece em recorte de jornal e no ao vivo.O que este filme e alguns outros fragmentos parecem traduzir a familiaridade compartilhada entre quem filma e quem ir assistir. Os realizadores aparentemente se restringem a indicar o signo Avenida Central, por exemplo - , sem conceber a necessidade de emprestar-lhe qualquer outra conotao. A interdio do resto da cidade por falta de qualificao civilizatria e a ausncia de preocupaes estticas maiores para com as imagens revelam a integrao do cinema da poca ao projeto da belle poque, em que a intimidade surge como o ndice mais acabado de traduo de um status quo. Isto talvez seja corroborado pelo fato de que s encontraremos uma visualizao mais refinada da cidade na dcada de 20. O Po de Acar ser enfocado como carto-postal em Esposa do Solteiro (1926) (cat.1059), de Carlo Campogalliani, merecendo a honra de ser palco do desenlace da fita, com direito a luta em cima do bondinho em pleno movimento (Moonraker [1979], de Lewis Gilbert, no uma novidade). E a ainda importante avenida central, agora Rio Branco, apresenta-se em diagonal perfeita, vista do alto, com os imponentes prdios construindo uma imagem de pujana, no olhar de Adhemar Gonzaga e seu Barro Humano (1929).Essas novas imagens que, podemos aproximar de uma certa viso turstica em formao, e que servem ao projeto esttico do cinema brasileiro da dcada de 20, preocupado em afirmar uma qualidade e uma estatura similares ao cinema americano e europeu (vide filmes no cariocas como A filha do advogado [1926], de Jota Soares, Fragmentos da vida [1929], de Jos Medina, So Paulo, a sinfonia da metrpole [1929], de Adalberto Kemeny e Rodolfo Lustig, entre outros), so contemporneas tambm da percepo de que efetivamente, para alm de o Rio de janeiro ser seguro, em termos sanitrios, e avanado, em termos culturais, ele isso e mais alguma coisa. uma grande cidade e como tal comporta diferenciaes internas e possui consolidados outros exemplos de interveno urbanstica que sustentam e difundem a sua magnificncia. O campo de signos se alarga e ganha agilidade narrativa. A maioria dos filmes srios da dcada de 20, cariocas ou no, inclui uma seqncia de montagem relativa a movimentao urbana (trnsito, corre-corre, smbolos locais, etc.), querendo com isso sinalizar o tal avano civilizatrio.Esta nova postura significa propriamente um mapeamento, um inventrio daquilo que a cidade pode oferecer de melhor. Houve exemplos isolados dessa atitude nos primeiros tempos; as tais excees que confirmam a regra. Mais especificamente em dois filmes muito famosos, Nh Anastcio chegou de viagem (1908), annimo, tido como o primeiro filme de fico brasileiro e paz e amor (1910), de Alberto Moreira, o de maior sucesso da bela poca. O primeiro contava a histria do matuto que vem capital pela primeira vez e percorre entre assombrado e assustado, decidindo ao final voltar para o campo. Seu itinerrio pode ser entendido como uma indicao do que considervamos naquele momento como nossas glrias citadinas: Estrada de Ferro Central do Brasil, Caixa de Amortizao, Palcio Monroe, Arcos da Lapa, Passeio Pblico, Avenida Central, etc. se o enquadramento praticado tinha o mesmo ar de familiaridade aqui enunciado, o foco era muito mais o matuto do que este ou aquele prdio ou lugar. O segundo tem o mesmo parti-pris. Acompanha o cronista Tibrcio da Anunciao em sua peregrinao pela cidade, revelando o que ela tem de mpar cinematgrafo, pera, mundanismo social, meetings e de criticvel a poltica, certas figuras pblicas. No se sabe exatamente o que era mostrado, mas claramente a inteno a cultura da cidade.O mapeamento pode ter comeado na srie sobre os estados brasileiros realizada em 1910 e que dedicava um nmero ento capital federal, Brasil pitoresco n 1 (1910), annimo. mais provvel que isso tenha acontecido no malogrado filme de episdios Os mistrios do Rio de janeiro (1917), de Coelho Neto, primeira vez em que a cidade alada ao ttulo de um filme em tom pomposo e indicativo de sua condio de personagem principal. O impulso pode ter recebido uma ajuda externa por ocasio da exibio do filme ingls A trip from Gibraltar to Rio de Janeiro (1919), annimo. Registro de uma daquelas costumeiras epopias de aviao, a obra aparentemente apresentou a primeira viso area marcante da cidade, colhendo a Baa de Guanabara e a urbis interior adentro. A faanha logo seria repetida, tomando-se o cuidado de elaborar a grande imagem do local. Juan Etchebarne sobe num avio no ano seguinte e procura dar uma idia do skyline carioca, semelhana da j comum imagem de Manhattan, em Rio de Janeiro visto de aeroplano (1920). talvez a primeira elaborao consciente, mas a no-recorrncia desta forma talvez indique a inadequao do Rio de Janeiro para esse tipo de construo. Ele destacou tambm o Po de Acar, o Corcovado (o morro, pois a esttua no existia ainda) e o Campo dos Afonsos.O marco definitivo desse processo de embelezamento cinematogrfico da cidade ficou por conta da Terra Encantada (1922), de Silvino Santos, filmado por ocasio das comemoraes do centenrio da independncia, quando a cidade foi preparada para sustentar o ufanismo ptrio. Algo talvez dispensvel, como o demonstra Cidade do Rio de Janeiro, realizado por Alberto Botelho, em 1924, como uma ilustrao preparatria e um presente famlia real italiana, que visitaria o pas dentro em breve. O que transparece neste filme a construo altamente racional do urbanismo carioca. Em que pese a evidente influncia francesa em prdios, jardins, parques e traado urbano, notvel a diversidade apresentada e o sentido de composio dos locais, com o filme realando-lhes, harmonia, linhas de fora, enfim beleza. Botelho cuidadoso mas no exatamente plstico, talento inato em Silvino. na obra deste que a cidade alada visualmente condio de maravilhosa. Utilizando recursos como tilting, panormica, plonge e contre-plonge, filmado do alto de prdios, de carros em movimento, de dia e de noite, nas ruas e no interior dos prdios e fazendo uma extraordinria comparao via montagem entre a graa feminina (com direito a primeiros planos) e o esplendor da cidade, o portugus sediado em Manaus recria o espao urbano carioca emprestando-lhe um sentido de magia. Esta terra possuiria tantos detalhes, tantas facetas, tanta riqueza, que um olhar virgem se deslumbra com sua profuso, sua inesgotvel capacidade de desdobrar-se em vias de desaparecer, encoberto pelo concreto e desfigurado pela ocupao humana. Este perodo que, grosso modo, vai at meados dos anos 40 apresenta uma espcie de sagrao da cidade. quando se desenvolvem grandes obras como o Jockey Club, a urbanizao da Lagoa, a construo do Cristo redentor, a abertura da Avenida Presidente Vargas, entre outras, e se compe justamente Cidade Maravilhosa (1936), a marchinha de Andr filho, transformada quase que imediatamente em hino. Alm do Centro a Zona Sul tambm se afirma, desenhando um perfil art-dco na paisagem e elegendo a praia como ponto de encontro entre a natureza e a ao humana, aspecto esse imortalizado no famoso calado. Estamos em um momento em que a imagem tudo, tendo pouco peso aspectos salientes da cultura da populao, entre ls o carnaval. Por isso, no h contradio entre a viso turstica que se instaura e da qual Lbios em beijos (1930), de Humberto Mauro, talvez seja o representante maior, ou entre a forte estilizao implementada pelo cinema de estdio advindo com o sonoro e da qual Favela dos meus amores (1935), Humberto Mauro, certamente um dos maiores exemplos, e a dura realidade do cotidiano, onde claros urbanos, obras inacabadas, desmonte de morros e favelizao crescente construram uma imagem um tanto menos risonha.Lbios em Beijos reflete a ascenso da Zona Sul e a flagra ainda distante e levemente deserta. Os locais retratados transmitem garbo, tranqilidade, placidez em contraste com o j tradicional vaivm do Centro, includo nas seqncias iniciais. Vemos o Jardim Botnico, a Vista Chinesa, a Visconde de Albuquerque, a praia do Leblon, a avenida Niemeyer, ou seja, justamente locais onde a natureza foi domada e organizada para fazer ressaltar sua beleza nica no mundo. No por acaso, pouco depois, o mesmo Humberto Mauro realizaria uma srie de sete curtas documentais infelizmente perdida intitulada As sete maravilhas do Rio de Janeiro (1934). Este sentido distintivo levar os realizadores a se aproximarem cada vez n=mais desses marcos e a repeti-los com freqncia. Temos assim o Hotel Copacabana Palace em 24 horas de sonho (1941), de Chianca Garcia, Carnaval no fogo (1950), de Watson Macedo, e O homem do Sputnik (1959), de Carlos Manga, para citar apenas um marco e alguns filmes expressivos. Inclusive, no h discrepncia entre a imagem cenogrfica construda pelas obras e o hotel real. O que importa referenciar o cone. Alm disso, na medida em que as narrativas vo dando campo a filmagens em locao, o efeito se torna mais intenso e direto, como a abertura de 24 horas de sonho, uma curiosa narrativa em torno de uma campe mundial de tentativas de suicdio. A escolha do Cristo Redentor como palco de mais uma tentativa fracassada aproveita-se da simbologia (e mitologia) nascente da cidade abenoada, aquela que acolhe a todos, proporcionando-lhes uma trajetria rdua mas feliz no final.No houve vozes discordantes internamente com relao a esse ufanismo carioca. No que no existissem intenes nesse sentido. Dentro em pouco Moacyr Fenelon comearia a desenvolver seu projeto de um cinema mais engajado socialmente, promovendo um retrato mais nuanado da sociedade carioca e trazendo para o campo cinematogrfico o universo das classes mdias baixas e do subrbio. Nada porm com a fora e o vigor do documentrio realizado por Orson Welles em 1942. Its all true representa o ponto de ruptura com essa imagem idlica, incursionando com olhar investigativo pelas verdadeiras razes da cultura popular carioca, o que significou adentrar no s o subrbio (filmou em Cascadura e Quintino) como principalmente o morro (Providncia, Mangueira e Sade, entre outros). O filme, porm, no foi concludo na poca e sua possvel influencia no ocorreu. As obras srias da Atlntida, portanto, permanecem como o ponto de inflexo na busca de um reconhecimento do homem que habita esse espao e de uma problematizao de sua vivncia na cidade. Os objetivos so alcanados apenas parcialmente, na medida em que a presena desses cones j no vem envolta numa fotografia glamurosa, desaparecendo assim o tom turstico. Os filmes falham em externar as contradies existentes entre ricos marcos citadinos e pobres e esmagados cidados. Isto pode ser percebido por exemplo na seqncia clmax de Amei um bicheiro (1953), de Jorge Ileli e Paulo Vanderley, passada no recentssimo e j famoso Aeroporto Santos Dumont.Esta questo implicava no s em um reconhecimento mais pertinente das diferenas entre as classes e do mecanismo de explorao capitalista brasileiro, como na construo esttica de uma nova escala imagtica. Um trabalho mais propriamente esttico em torno da cidade comea a ser esboado curiosamente em dois filmes institucionais encomendados pela Light, Cidade do Rio de Janeiro (1948), de Humberto Mauro, e O transporte do carioca (1950), de Jean Manzon. O que transparece aqui que a infra-estrutura urbana j no funciona to bem. H problemas - que a Light obviamente ir resolver...- e sua existncia evidenciada por curiosos jogos de montagem, por divertidas e irnicas narraes e por enquadramentos mais descontrados, integrando cones paisagem comum, como se o Rio de janeiro tivesse atingido uma maturidade que lhe permitisse inclusive revelar seus problemas. Logicamente o alcance dessas supostas crticas limitado. S ganham verdadeira consistncia no divisor de guas que o Rio 40 graus (1955). A colocao do homem comum no centro das atenes no implica o deslocamento dessa paisagem mais tradicional e conhecida, muito pelo contrrio. Ser justamente contra ela que se colocaro os dramas humanos, como na utilizao do Maracan, no filme de Nelson Pereira dos Santos. H inclusive uma certa sutileza em tosos esses novos filmes, pois eles escolhem marcos mais novos, mais modernos,tanto no sentido esttico, como no sentido social, j que so obras para as massas, algumas delas para as massas populares.Contudo, Rio 40 graus mesmo um divisor. O tratamento da paisagem carioca seguir de agora em diante duas grandes linhas. Uma se dedicar a apresentar a cidade de forma harmoniosa, recorrendo aos cones como confirmao e no mais como sagrao. Um clich se instaura e ser repetido quase a exausto, privilegiando-se o Corcovado e o Po de acar. Neste sentido basta citar obras bem recentes como Bete Balano (1984), de Lael Rodrigues e Como ser solteiro (1998), de Rosane Svartman e verificar a presena desses mesmos pontos servindo como marcos do que seria o Rio de Janeiro. Esta viso conservadora ganha lastro visual na obra do cineasta argentino Carlos Hugo Christensen, que adota a cidade para viver e a exalta em sucessivas elegias Meus amores no Rio (1958), Esse Rio que eu amo (1961) Crnica da cidade amada (1965). O que h de distintivo aqui ser justamente o emprego pioneiro da cor, como que renovando a j tradicional imagem da cidade. A outra linha procurar justamente o confronto entre esse Rio carto-postal e sua vivencia cotidiana. So obras como Assalto ao trem pagador (1962), de Roberto Faria, Cinco vezes favela (1962), de Carlos Diegues e outros, A grande cidade (1965), de Carlos Diegues, As cariocas (1966), de Roberto Santos e outros e Opinio pblica (1967), de Arnaldo Jabor, por exemplo, em que contradies oposies, situaes inconciliveis so encenadas justamente em locais tradicionais da cidade. Isso no significa uma desglamurizao da paisagem, ainda que ela realmente no seja mais tratada como smbolo de beleza em si. A escolha tem a inteno de integra o homem a esta paisagem e mostrar que ela tambm lhe pertence pelo menos idealmente. A violncia que se v nesses locais no culpa da paisagem e sim das relaes sociais que se expressam atravs dela. notvel comear a ver um filme como Garrincha, alegria do povo (1962), de Joaquim Pedro de Andrade, justamente por uma grande homenagem a esse palco popular chamado Maracan. A imagem o trata como um templo e a banda sonora se abstm de qualquer comentrio, deixando o coro das torcidas evidenciar o xtase que percorre o concreto e o gramado. mais notvel ainda ver o filme tomar uma posio bastante critica em relao ao futebol (seria o pio do povo) sem no entanto desfazer a mstica criada no inicio em relao ao local. O cinema novo promove ao seu modo tambm uma sagrao desse novo Rio de Janeiro, s vezes emprestando-lhe conotaes insuspeitas, como no caso do Parque Lage, reinventado em Terra em transe (1967), de Glauber Rocha, e Macunama (1970), de Joaquim Pedro de Andrade.Essa apropriao prossegue de forma mais significativa, embora efmera, em um conjunto de filmes de menos quilate, como Todas as mulheres do mundo (1966), de Domingos de Oliveira, Fome de amor (1968), de Nelson Pereira dos Santos, e Os Paqueras (1969), de Reginaldo Faria, entre outros, nos quais o que desponta a construo desse ser nico chamado carioca. A paisagem empresta signos que definem o morador autentico da cidade. Beleza, alegria, descontrao, bom humor, musicalidade, misticismo, miscigenao, enfim, integrao, fazem um resumo do descompromissado bando que se engaja no desbunde e cria novos stios urbanos como as famosas Dunas da Gal. A proposio se dilui e se caricaturiza na pornochanchada e no porn-chic, chegando a uma viso francamente negativa como a de Rio Babilnia (1980) (cat. 779), de Neville DAlmeida. Estamos em vias de expor com o mximo de violncia possvel a cidade de partida, para usar o termo do jornalista Zuenir Ventura. A cidade se parte e sua imagem se fragmenta. No h nada de particularmente distintivo na Copacabana de A viva virgem (1972), de Pedro Carlos Rovai, no Centro de A dama da lotao (1975), de Neville DAlmeida, ou na Zona Norte de Chuvas de vero (1978), de Carlos Diegues. So filmes comuns sobre uma cidade comum. Os velhos cones so agora cones de uma decadncia como a Estao da Leopoldina que aparece em Romance da empregada (1984), de Bruno Barreto. O esplendor se foi. Isso no significa que a cidade no tenha sido mais filmada. Muito pelo contrrio. O documentrio continuar a registr-la em profuso, eventualmente ainda fazendo-lhe elogios como em Rio amado (1966), curta de Fernando Cony Campos. Mas as centenas de complementos que lhe so dedicados ao longo dos anos 70 apontam na verdade para a busca de uma cidade que j no existe mais. Os temas giram quase sempre sobre costumes ou locais em vias de desaparecimento, como Cinema ris (1977), de Carlos Diegues, que inclusive ajudou na luta pelo tombamento da sala, ou Palcio Monroe (1978), de Clio Gonalves, que documenta a demolio do palcio de mesmo nome. H inclusive um tom nostlgico em alguns projetos como Folia (1974), de Adhemar Gonzaga e Memria do carnaval (1976), de Alice Gonzaga, em que imagens de arquivo servem de contraponto ao vazio ou degradao contemporneos. O esplendor realmente se foi.Era preciso portanto reinventar a cidade, ainda que isto no ocorresse de fato na realidade. ao que se prope filmes como Bete Balano e pera do Malandro (1984), de Ruy Guerra estilizaes altamente sofisticadas, que brincam com as noes do espectador a respeito de seus conhecimentos visuais e sonoros a respeito do Rio de Janeiro daquele momento e de outrora. Signos como bondes, carrilhes e blocos de carnaval surgem na banda sonora deste, enquanto aquele promove uma desconstruo geogrfica da cidade, apresentando um novo Rio para um novo pblico, que estava voltando a consumir cinema naquele momento. O que prevalece no entanto a imagem fracionada e violenta, vista de Uma avenida chamada Brasil (1989), de Octvio Bezerra, a Primeiro dia (1999), de Daniela Thomas e Walter Salles, este inclusive baseado parcialmente no livro Cidade partida. A nova geo-iconografia (um Sambdromo em Isto Noel [1991], de Rogrio Sganzerla, a Gvea e o Leblon em No quero falar sobre isso agora [1991], de Mauro Faria) no tem fora e a velha imagem (Maracan, Central do Brasil, Copacabana em Veja esta cano [1994], de Carlos Diegues e novamente a Baa de Guanabara e o Po de Acar em Como ser solteiro) perece apenas rebarbativa. Em que pese a beleza do plano sobre o Po de Acar no filme de Rosane Svartman, ele indica que o Rio apenas isso ou se resume a isso. Nada de novo no front.