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4º COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016 PAISAGENS EFÊMERAS: o patrimônio sob diferentes regimes de visibilidade GÓIS, Marcos Paulo Ferreira de Universidade Federal Fluminense. Departamento de Geografia e Políticas Públicas do Instituto de Educação de Angra dos Reis Av. do Trabalhador, 179 - Jacuecanga, Angra dos Reis - CEP: 23914-360 [email protected] RESUMO Neste texto gostaríamos de discutir a visibilidade da paisagem e sua efemeridade ao longo do dia a partir de alguns exemplos da cidade do Rio de Janeiro. A efemeridade é uma qualidade das paisagens quando se tem em razão a questão da visibilidade ao longo do dia e sua transformação entre o diurno e o noturno. Este jogo de visibilidade expõe valores e significações que falam sobre a sociedade e sobre aquilo que ela considera como sendo relevante exibir como parte de seu conjunto patrimonial. Se durante o dia o esquema visual pode ser pouco alterado, durante a noite o ato de iluminar se manifesta como uma arte sobre a forma, realçando algumas marcas simbólicas presentes nas paisagens e obscurecendo outras. Veremos como as técnicas de iluminar também possuem um compromisso político, cultural e econômico, o que implica em diferentes formas de organizar a cidade e a sua imagem. Por fim, observaremos como as escolhas ligadas ao ato de iluminar compõem cenários urbanos e podem ser compreendidas em sua relação com as práticas sociais. Palavras-chave: paisagem; visibilidade; patrimônio; arquitetura; luminosidade.

PAISAGENS EFÊMERAS: o patrimônio sob diferentes regimes … · efêmeras decorre da observação de que as paisagens mudam conforme os jogos de visibilidade ao longo do dia e que

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4º COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

PAISAGENS EFÊMERAS: o patrimônio sob diferentes regimes de visibilidade

GÓIS, Marcos Paulo Ferreira de

Universidade Federal Fluminense. Departamento de Geografia e Políticas Públicas do Instituto de

Educação de Angra dos Reis Av. do Trabalhador, 179 - Jacuecanga, Angra dos Reis - CEP: 23914-360

[email protected]

RESUMO

Neste texto gostaríamos de discutir a visibilidade da paisagem e sua efemeridade ao longo do dia a partir de alguns exemplos da cidade do Rio de Janeiro. A efemeridade é uma qualidade das paisagens quando se tem em razão a questão da visibilidade ao longo do dia e sua transformação entre o diurno e o noturno. Este jogo de visibilidade expõe valores e significações que falam sobre a sociedade e sobre aquilo que ela considera como sendo relevante exibir como parte de seu conjunto patrimonial. Se durante o dia o esquema visual pode ser pouco alterado, durante a noite o ato de iluminar se manifesta como uma arte sobre a forma, realçando algumas marcas simbólicas presentes nas paisagens e obscurecendo outras. Veremos como as técnicas de iluminar também possuem um compromisso político, cultural e econômico, o que implica em diferentes formas de organizar a cidade e a sua imagem. Por fim, observaremos como as escolhas ligadas ao ato de iluminar compõem cenários urbanos e podem ser compreendidas em sua relação com as práticas sociais.

Palavras-chave: paisagem; visibilidade; patrimônio; arquitetura; luminosidade.

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

Introdução

A paisagem é um conceito polissêmico, aparentemente banal, mas complexo quanto a sua

definição (MEINIG, 1979). Na verdade, não há consensos e podemos observar pelo menos

duas propostas de definição, comuns a intelectuais, técnicos e especialistas. Em primeiro

lugar, a paisagem pode ser compreendida como um dado material, algo que possui extensão

física, uma morfologia modelada pelo trabalho humano sobre a natureza ao longo do tempo.

Esta versão teve grande centralidade para os primeiros naturalistas e geógrafos culturais até

meados da década de 1940. Em segundo lugar, a paisagem seria uma forma de ver, uma

estética criada pela inteligência humana, uma composição visual, como uma tela que

representaria um ponto de vista sobre uma região. Esta visão parece ter grande proximidade

com a história da arte e um vínculo forte com as definições do senso comum, bem próxima da

ideia de panorama, por exemplo.

Em todas as definições permanecem dois atributos fundamentais do conceito de paisagem. O

primeiro é a ideia de composição, no sentido de ordenamento de posições (GOMES, 2013). O

conceito de paisagem é o meio teórico-conceitual com o qual os especialistas tentam

compreender a organização desses objetos por meio da análise morfológica, estética ou

contextual. As definições de patrimônio normalmente associam a forma e a estética de um

objeto ao seu contexto espaço-temporal para a definição dos conjuntos paisagísticos ou

unidades de paisagem (RIBEIRO, 2007). Este parece ser, inclusive, um artifício no qual se

busca dar uma imagem coerente para se pleitear uma posição no hall de lugares celebrados

como patrimônios históricos e culturais da humanidade.

O segundo atributo é a visibilidade. A visão ainda é um imperativo para a definição do conceito

de paisagem. A composição dos objetos em termos artísticos, arquitetônicos ou paisagísticos

obedece a este imperativo. Os objetos são expostos para serem vistos, o que exige um

cuidado especial na sua apresentação. Seja como objeto no mundo ou como representação, a

paisagem existe para ser vista (ROGER, 1997). A exposição dos objetos paisagísticos

costuma fazer parte dos grandes projetos de valorização do patrimônio arquitetônico e

cultural, constituindo-se em expediente obrigatório para a apresentação das características de

estilo em seus contextos espaço-temporais.

Composição e visibilidade são duas características dos objetos presentes nas paisagens. A

perspectiva patrimonial tende a acentuar estas duas qualidades para expor os elementos que

fazem de determinada paisagem um documento de um período. Além de valorizar a

composição, os projetos de patrimonialização tendem a se preocupar com a sua visibilidade.

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Porém, a visibilidade da composição morfológica é variável segundo alguns fatores como a

disposição socioespacial, a escala do objeto e a disponibilidade de luz para realçar seus

aspectos centrais. Durante o dia, com a luz natural, a visibilidade é adquirida por um “jogo de

luzes e sombras”, ou seja, pelo aproveitamento dos contrastes entre objetos de diferentes

formas e pela projeção das sombras sobre a arquitetura. Este controle raramente permite o

realce da morfologia em sua composição simbólica, visto que a fonte luminosa é projetada a

partir de uma única posição (zenital). De modo diferente, durante a noite, a luminosidade é

controlada pelo intelecto humano que constrói técnicas e equipamentos para dirigir a luz sobre

áreas a serem destacadas. Assim, a iluminação artificial é necessariamente seletiva e a

exposição das características de um objeto passa a fazer parte de um projeto luminotécnico.

Após uma rápida reflexão sobre os atributos do conceito de paisagem em sua relação com o

patrimônio, gostaríamos de discutir a visibilidade da paisagem e sua efemeridade ao longo do

dia a partir de alguns exemplos da cidade do Rio de Janeiro. O que chamamos de paisagens

efêmeras decorre da observação de que as paisagens mudam conforme os jogos de

visibilidade ao longo do dia e que há entre o diurno e o noturno uma diferenciada significação

da paisagem em virtude de sua diferenciada visibilidade. Se durante o dia o esquema visual

pode ser pouco alterado, durante a noite o ato de iluminar se manifesta como uma arte sobre

a forma, realçando as marcas simbólicas presentes nas paisagens. Em um primeiro momento

trataremos da ideia de efemeridade comum as paisagens noturnas para que, em um segundo

momento, possamos apresentar algumas formas de se iluminar as paisagens urbanas que

tem tido repercussão na cidade do Rio de Janeiro em suas áreas patrimoniais.

Paisagens, formas e visibilidade noturna

É comum que na arquitetura se dê considerável atenção ao problema da visibilidade. Afinal, o

realce da forma, a exaltação de seus conteúdos e a exibição de seus referentes simbólicos

são alguns dos elementos importantes na identificação de estruturas arquitetônicas. O

reconhecimento da forma é parte crucial e a percepção visual deve ser convocada para isso

(LIMA, 2010). A iluminação do espaço se torna, assim, um dos componentes centrais de um

projeto arquitetônico, seja sob a luz do sol ou de lâmpadas. A criação de um projeto

luminotécnico geralmente tem como objetivo a organização entre a forma construída e as

fontes luminosas, buscando reconstituir visualmente a paisagem, produzindo um jogo de

visibilidade entre os objetos no espaço durante a noite. Esta organização também teria a

qualidade de organizar as relações entre as formas espaciais e as interações sociais.

Jean-Paul Thibaud (2001) chamou esta organização de quadros de visibilidade e definiu cinco

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quadros que se apresentam comumente nos espaços públicos: a superexposição que ocorre

pelo contraste entre lugares de extrema visibilidade e lugares obscuros, podendo ser

comparado a estrutura de um teatro moderno; o encapsulamento, comum a estruturas que

exibem partes enquanto escondem outras, como as janelas, vãos e portas que exibem

apenas parte de uma cena; a filtragem como o efeito proporcionado pela passagem de luz por

superfícies transparentes como vidros; a obscuridade criada por luzes que ofuscam a forma

dos objetos; e a marcação de silhuetas, ou seja, luzes que tendem a marcar os contornos da

forma e não as suas características individuais.

Os quadros de visibilidade nos mostram que a relação entre arquitetura e iluminação pode ser

muito mais complexa se tivermos em conta as práticas sociais, as quais dialogam com as

formas e as fontes de luz na interpretação da paisagem. Tradicionalmente, a arquitetura da

paisagem não tem em conta esta relação, atribuindo o papel da iluminação a aspectos bem

mais objetivos como a segurança e o deslocamento, usualmente atribuindo as melhores

condições de vida social aos lugares que têm bons projetos de iluminação. Em alguns casos,

a localização dos dispositivos luminosos torna-se um fator de determinação das ações sobre o

espaço, o que já demonstra que há mudanças na forma em que se entende o papel da

iluminação do espaço urbano (MASCARÓ, 2006).

O uso da luz para a construção de cenários e meios de interação social é bem menos comum,

mas já se constitui como um dos objetos centrais da revitalização de centros históricos e

conjuntos patrimoniais. As pesquisas mais recentes em arquitetura e urbanismo têm

promovido através dos estudos da arquitetura da paisagem ou do meio ambiente uma nova

reflexão sobre os papéis da iluminação na recuperação dos valores arquitetônicos e sociais

de tais conjuntos. Ainda que as associações entre iluminação eficiente e melhor segurança

ainda estejam presentes, elas não parecem ser agora tão centrais. As novas propostas de

arquitetura luminosa parecem localizar seus interesses sobre as formas de percepção e uso,

as características do lugar, a geração de diversidade, a incitação à interação e o seu papel no

reconhecimento da forma (FIORI, 2008). Estas ações se aproximam das novas propostas de

definição de conjuntos patrimoniais, nas quais a relação entre morfologia e práticas sociais

tem recebido grande atenção.

A criação de um projeto de iluminação urbana incorpora diversos subtemas e problemas

ligados à visibilidade: segurança, orientação, propaganda, sinalética, destaque arquitetônico,

destaque paisagístico etc. A concentração da diversidade de formas e de objetivos de se

iluminar daria, de certa maneira, um quadro da distribuição espacial do interesse noturno e

exibiria, ao mesmo tempo, as implicações em termos das velocidades e ritmos dos lugares

(GÓIS, 2011). Neste sentido, o planejamento das cidades tem nos últimos anos apresentado

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propostas exclusivamente para a cidade noturna, unindo o reconhecido interesse pelo

embelezamento de fachadas aos novos modelos de gestão energética e de valorização dos

espaços públicos urbanos.

O avanço do pensamento crítico sobre o uso da tecnologia na criação de ambiências noturnas

permitiu que a paisagem urbana noturna fosse incorporada ao planejamento da cidade,

reservada agora a um papel diferenciado. Nos primeiros anos de instalação da iluminação

elétrica nas ruas das cidades brasileiras, por exemplo, havia uma indústria pulsante de

produção de postes ornamentais (DUNLOP, 2008). A função de tais postes era ao mesmo

tempo a de sustentar os equipamentos de iluminação e de garantir os efeitos de

ornamentação para sua adequação à arquitetura vista durante o dia. A partir da década de

1950, no entanto, foram adotadas normas de iluminação externa e padrões de lâmpadas,

luminárias e postes (Ferreira, 2009). Desde então, a cidade do Rio de Janeiro passou a gozar

de um período de pouca criatividade nas ações de iluminação pública, limitando-se à

instalação de braços e luminárias nos postes da rede de distribuição de energia elétrica

(MIGUEZ, 2001), reproduzindo o funcionalismo na iluminação do período posterior a II Guerra

Mundial (NARBONI, 2004). Isto se deu em razão da necessária padronização dos serviços

dentro de um quadro de objetivos de se iluminar os logradouros de toda a cidade. Os custos

elevados de postes ornamentais e a necessidade de tecnologia mais moderna na criação e

manutenção das luminárias obrigaram o governo local a realizar esta modificação (Mendonça,

2004). Esta visão sobre a iluminação urbana, que ainda se encontra presente na atuação do

poder público, começou a ser revista a partir do fim da década de 1980 em diversos países.

Ainda que a adoção de padrões e normas de instalação de iluminação artificial tivesse que ser

respeitada, os novos especialistas em luminotécnica acreditavam que poderiam construir

cenários noturnos mais criativos, funcionais e esteticamente agradáveis (FIORI, 2000). Os

departamentos de planejamento urbano também passaram a adotar novas formas de lidar

com a noite na cidade, tendo a iluminação como um dos vetores de renovação urbana (Brandi

e GEISSMAR-BRANDI, 2007).

Mudanças na forma de pensar a noite urbana foram colocadas em prática por diversos

motivos ao longo dos anos 1980. Em primeiro lugar, o retorno da economia urbana aos

centros metropolitanos teve um papel importante na relação entre iluminação e patrimônio. A

reconstituição do acervo arquitetônico e da história social das cidades do passado previa não

só a refuncionalização da forma, mas a sua reabilitação no quadro de apresentação das

cidades. À imagem diurna se adiciona uma outra, a noturna, que procurava dar ainda mais

destaque às áreas patrimonializadas em relação ao seu entorno. Estas novas luzes atuariam

como um elemento cênico nas áreas reurbanizadas. Em segundo lugar, as atividades de lazer

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começaram a ganhar maior visibilidade nas políticas de governo e no interesse social,

absorvendo, por exemplo, as demandas turísticas, o que levou a aplicação de medidas que

visassem a segurança e a orientação dos usuários. Em boa parte dos casos, as quadras dos

conjuntos patrimoniais se tornaram centros de entretenimento cultural, com estabelecimentos

comerciais e de serviços voltados quase que integralmente ao período noturno. Com isso, as

luzes das fachadas seriam integradas às luzes das calçadas, uma medida que tentou dar

continuidade visual para as áreas recém-preservadas. Os projetos de renovação urbanística

começam, então, a reorganizar também as próprias funções urbanas, pensando no

desenvolvimento de ações ligadas ao zoneamento noturno das cidades.

A consideração pelos fatores de planejamento e de distribuição espacial da iluminação

urbana, nos mostra que o pensamento pragmático e voltado unicamente para a técnica de

iluminar vem sendo parcialmente contestado por novas formas de compreensão do papel da

luz na vida social. Neste sentido, encontramos dois polos de reflexão contemporâneos sobre a

iluminação de cidades no urbanismo: o modelo City Beautification e o modelo de Urbanisme

Lumière. Ambos surgiram no fim dos anos 1980 e propunham uma nova perspectiva sobre o

urbanismo noturno, ainda que segundo pressupostos diferentes, os quais receberam críticas

em relação aos seus papéis no processo de gentrificação urbana, como veremos no caso da

cidade do Rio de Janeiro.

Formas de iluminar, formas de ver o patrimônio

Já parece estar claro que o ato de iluminar possui uma intencionalidade e que como tal possui

também a característica de ser uma forma criativa de repensar as paisagens no período

noturno. As decisões sobre o que se deve dar visibilidade e como se iluminar dependem, no

entanto, de um entendimento sobre a forma de se pensar a própria vida social urbana,

integrando aos projetos luminotécnicos os usos que se pretende motivar. Neste sentido, o

entendimento sobre tais fatores não é unívoco, o que produz importantes diferenças, tanto em

termos técnicos e de engenharia, quanto em termos simbólicos e de atribuição de valores

sociais. Ainda que as formas de se iluminar e de se ver a paisagem noturna tenham se

modificado substancialmente nos dois últimos séculos, desde uma perspectiva que buscava

imitar a luz solar até as alternativas econômicas e ecológicas do mundo contemporâneo,

vestígios de modelos anteriores permanecem e podem ser observados na paisagem urbana

hodierna. Dentro do variado número de casos que se apresentam hoje para o debate sobre a

iluminação do espaço urbano há alguns modelos que parecem ser paradigmáticos no atual

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momento de valorização da noite como tempo de ativação da vida social. Os dois modelos

receberam os nomes de City Beautification e Urbanisme Lumière.

O termo City Beautification tem como referência o movimento do início do século XX,

chamado City Beautiful, o qual pretendia criar obras monumentais para valorizar a paisagem

das cidades norte-americanas, dentro do que Jacobs (2006) denominou como culto ao

desenho arquitetônico. A versão contemporânea ainda mantém um pouco do debate sobre as

escalas das obras urbanas, mas busca, ao contrário, valorizar a história urbana pelo uso de

outros elementos, como as artes plásticas, a criação de cenários, vistas e belvederes, além

dos shows de luzes e eventos culturais de grande escala. Assim parece que o conteúdo do

City Beautification não se apropriou dos princípios morais e cívicos propostos pelo movimento

anterior, mantendo somente os aspectos elementares ligadas a uma estética urbana

altamente concentrada sobre a ideia de uma ordem, seja ela civil, morfológica ou visual.

O City Beautification pode ser resumido em algumas ações de iluminar cidades através de

intervenções pontuais em locais de grande atratividade, identificação ou visibilidade. Em

termos bem gerais o urbanismo noturno proposto pelo movimento City Beautification procura

criar cenários ou ambiências para grandes eventos, festividades e valorização patrimonial.

Visibilidade, identidade e produção cultural são qualidades apreciadas em projetos de

iluminação especial que procuram embelezar as cidades à noite (GODOY, 2003). O intuito de

iluminar está submetido, neste caso, ao interesse turístico e ao valor estético da cena noturna,

o que contribui para a valorização da imagem da cidade. São comuns as imagens atuais de

grandes monumentos, iluminados por feixes de luz e projeções, flutuando sobre um fundo

quase negro, imperceptível devido ao contraste entre luzes e sombras. Este parece ser o caso

de monumentos como o Cristo Redentor que parece flutuar sobre a urbe carioca em seu

variado colorido produzido pela projeção de cores sobre a forma (figura 1).

O City Beautification procura adaptar o zoneamento diurno das cidades às necessidades

noturnas, evidenciando a forma física dos elementos urbanos e os significados das obras

humanas, reforçando a valorização do processo de patrimonialização, criando uma estética

de apresentação desse patrimônio e viabilizando a sua apreciação por meio de eventos.

Talvez em razão disso o movimento venha recebendo muitas críticas ao seu desempenho na

reconfiguração de cidades e seu potencial para a recuperação social do período noturno. Em

primeiro lugar, por não ter uma visão ampla do urbano, reforçando as disparidades diurnas e

sendo mais algo que realça a desigualdade sócio-espacial e que articula ações que, no limite,

podem levar a gentrificação de algumas áreas da cidade, especialmente nos antigos centros

comerciais. Em segundo lugar, pelo papel ativo que transfere para a tecnologia de iluminar na

caracterização dos lugares e em decorrência o papel secundário oferecido às práticas sociais,

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ou seja, as práticas estão voltadas ao consumo e a iluminação deveria servir a este princípio.

Outras funções urbanas parecem não cumprir um papel significativo nas ações do City

Beautification, havendo poucas referências sobre o tratamento das questões de trabalho,

moradia e mobilidade em seus planos. Por fim, a ênfase exagerada sobre as áreas turísticas

subtrai os interesses dos habitantes das cidades, relegando áreas ao desaparecimento

noturno e o surgimento de manobras visuais para o destaque e a inibição de comportamentos

transgressores. Em maior escala, trata-se de um projeto aplicado ao processo de “retorno ao

centro urbano”, do modelo norte-americano de criação de mercados e de festivais na área

central que se fortaleceu a partir da década de 1980 (HANNIGAN, 1998).

FIGURA 1 - Cristo Redentor, cidade do Rio. Fonte: http://www.cidadedorio.com. Acesso em: 20 ago. 2016.

O modelo de embelezamento das cidades parece se apropriar da demanda dos governos

locais, que buscam atrair grandes eventos, produzir centros de lazer e entretenimento para

atrair visitantes e aumentar a arrecadação de impostos com a introdução do noturno na

economia urbana. Sem dúvida, o embelezamento possui uma lógica ligação entre o modelo

de Estado empreendedor e o avanço do capital internacional por meio de patrocínios,

propagandas e direitos de exclusividade em torno de eventos esportivos, culturais e de

entretenimento (HARVEY, 2005). A forma pontual de atuação do modelo City Beautification

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possui, assim, um conjunto de estratégias espaciais, tecnológicas e temporais que se

beneficiam fortemente de tal relação.

A outra proposta, a qual parece ter objetivos diferentes daquelas do modelo City

Beautification, foi desenvolvida na França, no contexto em que novas intervenções artísticas e

culturais começaram a fazer parte do calendário anual de cidades como Paris e Lyon. O

movimento chamado Urbanisme Lumière, criado no fim da década de 1980, trata de um

conjunto mais coeso de arquitetos, urbanistas, planejadores e designers, os quais têm

promovido soluções para o urbanismo noturno de cidades europeias. Nos últimos vinte anos a

ideia de um planejamento noturno para as cidades ganhou a atenção de alguns gestores

urbanos em metrópoles asiáticas e americanas, incluindo algumas capitais de estados

brasileiros.

A proposta fundamental do modelo francês é a criação de um planejamento luminoso para as

cidades, com políticas de zoneamento urbano e organização territorial. Esta proposta surge

da premissa do Urbanisme Lumière como uma forma de urbanismo no qual a cidade à noite é

vista como sendo qualitativamente diferente da cidade diurna (NARBONI, 2008). Neste

sentido, os elementos que pertencem ao conjunto de cada cidade são repensados e

reorganizados durante a noite, o que é promovido especialmente através de inovações e de

projetos locais de iluminação artificial. Dessa maneira, a proposta francesa sugere uma nova

forma de gestão da iluminação urbana, estabelecida na criação de ambientes noturnos e na

integração da cidade através da luz. Não se trata, portanto, de uma tentativa de adaptação

aos ditames da dinâmica diurna, mas de uma reflexão sobre outra cidade, formada por um

novo zoneamento em virtude de suas diferenças em termos de ritmos e de funções.

O Urbanisme Lumiére parece envolver propostas de valorização das identidades dos lugares,

promovendo mudanças que envolvem o poder público como seu principal desenvolvedor,

incitando a participação popular no desenvolvimento de um projeto para a cidade. Ao contrário

do City Beautification, no qual os projetos tendem a ser desenvolvidos essencialmente pelo

setor privado e retido às áreas renovadas; a intenção do modelo francês parece ser a de se

produzir uma forma de administrar a cidade segundo dois diferentes momentos, ou seja, um

planejamento diurno e outro planejamento noturno (NARBONI, 2004). Com isso a função do

Estado é menos aquela de um ator empreendedor e mais próxima de sua função mais comum

de gestor da ordem urbana.

Um dos maiores interesses do Urbanisme Lumière é valorizar o conjunto patrimonial em

acordo com o zoneamento urbano, destacando a obra humana, a arquitetura e os valores

sociais atribuídos a história da cidade sem que isso se desconecte das relações e das práticas

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sociais contemporâneas. Neste sentido, a ideia de se manter uma unidade visual a partir da

diversidade de funções urbanas é central e isto pode aparecer em eventos extraordinários

como a Fête des Lumières, que ocorre anualmente na cidade de Lyon, na França, mas que

idealmente deverá ter visibilidade e acompanhamento contínuo dos projetos (figura 2).

Figura 2 - Lyon, França. Projeções sobre fachadas da área central destacam o evento e divulgam as ações do urbanismo luminoso francês. Fonte: http://www.fetedeslumieres.lyon.fr/. Acesso em 20/08/2016.

Cada modelo tem assumido uma perspectiva diferente sobre as cidades, sendo pontual no

caso do City Beautification; ou zonal, na escala urbana e interurbana, no caso do Urbanisme

Lumière. Estes modelos têm, juntamente com as necessidades de economia de energia

elétrica e de contenção da poluição luminosa, orientado os projetos e as ações de iluminar as

cidades. Os modelos se assemelham, no entanto, em relação às suas ontologias

classificatórias das atividades noturnas, ignorando algumas continuidades e

complementaridades entre a noite e o dia, algo mais comumente relatado no trabalho dos

historiadores e sociólogos da noite urbana. Além disso, em ambos os casos há críticas sobre

o potencial risco de que suas ações ajudem a promover o processo de gentrificação ou

acelerar situações de disparidades sociais, obscurecendo identidades e reafirmando valores

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culturais hegemônicos, além de problemas relacionados à poluição luminosa e seus efeitos

sobre espécies animais (MALLET, 2011).

Apesar dos problemas, os dois modelos têm proposto uma nova forma de composição da

paisagem da cidade, acrescentando novos aspectos às imagens urbanas. No caso brasileiro,

por exemplo, ao longo dos últimos vinte anos, tem se criado uma política mista que, ora se

utiliza das tradicionais preocupações técnicas, ora absorve algumas questões de City

Beautification e de Urbanisme Lumière. Assim, as combinações entre luz e objetos espaciais

são orientadas na atualidade através de objetivos construídos a partir de projetos ou de

reflexões sobre o espaço urbano durante a noite. No caso do Rio de Janeiro há um grande

interesse pelo patrimônio arquitetônico concentrado no centro da cidade e as formas de

iluminar esta área comporão a última parte do texto.

Paisagens Luminosas Cariocas

As intervenções luminosas na noite carioca fazem parte de um processo de acolhimento de

propostas para um maior ordenamento urbano e valorização estética do seu conjunto

patrimonial. Se trata de um processo não-linear, com a participação de diferentes agentes

públicos e privados, os quais guardam suas respectivas particularidades, interesses e formas

de uso dos modelos de intervenção na paisagem noturna da cidade. Assim, o projeto de

iluminar nem sempre aguardou o tombamento de um imóvel ou a renovação física de um

logradouro, se antecipando, assim, às mudanças na própria forma arquitetônica. Em outros

casos, o projeto de revigoramento físico já venho acompanhado de um projeto luminotécnico.

E na maioria das vezes este projeto foi posterior, sendo repensado conforme o passar do

tempo e as necessidades dos proprietários dos imóveis.

Dentro do conjunto de transformações ocorridas na área do programa Corredor Cultural

Carioca houve um significativo incremento da preocupação com a readequação da iluminação

artificial, tanto nos espaços públicos, quanto nas fachadas dos prédios. Neste caso, a

participação do Estado foi apoiada pelo Plano Diretor de Iluminação Pública, lançado em

1993, o qual serviu como instrumento de melhoria da qualidade geral da iluminação pública na

área central. Esta medida viabilizou ainda a participação dos agentes públicos e privados na

melhoria da estética e da visibilidade dos prédios conservados no conjunto de medidas do

Corredor Cultural Carioca, incluindo, então, a área da Praça XV de Novembro e as principais

ruas do atual bairro da Lapa (figura 3). A organização visual da paisagem noturna carioca é,

em parte, o resultado não acabado destas intervenções, mesclando a funcionalidade das

ações dos agentes públicos e a especificidade das ações de agentes privados. A visibilidade

da cidade se exibe, assim, segundo a intervenção provisória desses agentes.

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Figura 3 - Arcos da Lapa, Centro do Rio. A preservação de prédios, monumentos e obras faz parte da manutenção do conjunto patrimonial destacado durante a noite pelas luzes. Fonte: Góis, 2014.

Em espaços públicos e áreas livres como, por exemplo, praças, jardins e parques a opção da

prefeitura municipal se deu pelo uso de luminárias padronizadas, visando a melhor visibilidade

e a maior economia de energia, buscando criar efeitos luminosos sóbrios que destacassem as

principais ruas, sem que com isso se ofuscassem as formas dos prédios do entorno. Coube

aos proprietários dos prédios a elaboração dos projetos luminotécnicos, a manutenção do

material e até mesmo a organização dos horários de seu funcionamento. Em alguns casos os

projetos de iluminação foram confiados a patrocinadores, como bancos, empresas

petrolíferas e de extração mineral; em outros a organização ficou a cargo dos próprios

proprietários, como algumas ordens clericais que investiram parte das arrecadações do

templo em um projeto de destaque de fachada.

Em boa parte dos casos o estímulo à vida noturna e à utilização dos espaços públicos foram

reforçados pela criação de projetos que valorizaram as fachadas, exibindo-as como se fossem

vitrines para o passado ou um cenário no qual as práticas dos atores sociais pudessem se

instalar. A iniciativa de retorno da “vida divertida” ao centro do Rio envolveu variados agentes

sociais, em boa parte composta por uma mescla de intelectuais, funcionários da prefeitura do

Rio de Janeiro e proprietários de imóveis da área. O diagnóstico criado por este grupo foi de

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um centro moribundo e fadado ao esquecimento. Recuperar a história, a imagem e a

arquitetura do Rio do passado era parte de um projeto mais audacioso de recuperação

econômica da área central. Neste sentido, a preservação, recuperação e exibição da forma

urbana foi uma forma de enobrecer um capítulo da história da cidade, associando-o à festa, à

descontração e às instituições formadoras da nação.

As fachadas receberam um tratamento estético orientado pelos técnicos do IPHAN (Instituto

do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), por engenheiros e arquitetos de escritórios

especializados, e técnicos da prefeitura e suas autarquias. A criação de tal expertise produziu

como um dos resultados a discussão sobre as possibilidades de adoção de modelos de

reorganização da cidade noturna, como o Urbanisme Lumière e o City Beautification. A

adoção de cada modelo se deu de forma descontínua, sem que a prefeitura conseguisse

orientar os proprietários na direção da construção de uma suposta harmonia visual. A

descontinuidade dos projetos luminotécnicos, a variação dos recursos disponíveis para as

ações da RioLuz (autarquia da prefeitura responsável pelos projetos) e as mudanças nos

planos estratégicos do governo local ao longo dos últimos 30 anos fizeram com que um

zoneamento noturno da cidade fosse deixado de lado por um modelo pontual e fragmentado

de ações de iluminação das fachadas e espaços públicos. Para as fachadas parece ter

prevalecido o arbítrio individual dos proprietários; para os espaços públicos restou a linha

mestra da economia energética e a obsessão pela iluminação funcional dos logradouros.

A questão da iluminação deixou de ter o modelo do urbanismo luminoso francês como mote

central e passou a se dedicar ao embelezamento como ferramenta para a criação de cenários

da economia noturna (Miguez, 2001). Nos casos da Lapa e da Praça XV de Novembro, por

exemplo, o processo de reconquista da noite foi incentivado a partir de duas estratégias

principais: a criação ou a renovação do espaço construído, incluindo reurbanização e

revitalização arquitetônica, mas tendo a iluminação uma centralidade especial, visto que os

problemas de segurança e de invisibilidade do patrimônio eram entendidos como barreiras

para a expansão das atividades sociais à noite; e, em consequência, o surgimento de

atividades de lazer, cultura e entretenimento noturno nos prédios tombados e no entorno das

praças (dos Arcos e XV de Novembro). As fachadas e as estruturas internas do casario antigo

teriam que ser renovadas para mudar o aspecto de degradação associado a eles. A ideia

contida nessas ações era que a iluminação poderia ajudar a valorizar o patrimônio histórico e

a estética dos prédios, atraindo consumidores para a uma área que possui um cenário

agradável, belo e seguro (figura 4).

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

Figura 4 - Rua do Lavradio, bairro da Lapa, Centro do Rio. A iluminação das fachadas compõe o cenário das atividades de lazer que ocorrem nos espaços públicos. Fonte: Góis, 2014.

As fachadas podem também ser entendidas nestes casos como espaços públicos. Isto

significa que elas compõem o ambiente no qual ocorrem interações sociais e fazem parte de

uma chave de leitura do espaço, sendo elementos concretos e visuais que permitem a

orientação dos indivíduos, seu reconhecimento como parte de uma coletividade e o

sentimento de estar dividindo algo que possui significados para todos que observam a mesma

paisagem. Neste caso a paisagem noturna é mais do que meramente um cenário para o

consumo, ela se transforma em um quadro de participação, onde os indivíduos se posicionam

e se apropriam espacialmente.

Finalmente gostaríamos de acrescentar que as fachadas são objetos que possuem

significados culturais. Iluminar é dar destaque a esses símbolos e tornar visível as expressões

de uma coletividade. Alguns valores podem ser universais ou de fácil identificação por parte

dessa coletividade; outros podem ser, no entanto, mais específicos, o que implica em uma

leitura mais densa para a compreensão dos seus significados. Para além da funcionalidade de

iluminar algo, as luzes artificiais possibilitam uma seleção visual, definindo o que se quer exibir

e aquilo que se quer esconder. Os valores se tornam objeto de apresentação e a efemeridade

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e a seletividade da iluminação concorrem para que esta exibição se torne arbitrária e dirigida

objetivamente ao seu público, seja para o consumo da paisagem, seja para a sua apreciação

coletiva como parte de um bem partilhado.

Comentários finais

Já parece ser de comum acordo que a noite é um momento social importante para a vida nas

cidades. Seu papel na organização social, no crescimento econômico e na difusão de

produtos culturais é reconhecido por gestores públicos e agentes privados das mais diversas

origens. Esta conclusão decorre de um processo de entendimento social sobre o valor da

noite para outras atividades que não somente aquelas destinadas ao descanso e ao ócio, o

que tornou a cidade noturna em um centro produtivo, especialmente após a segunda metade

do século XIX. O reconhecimento do papel da noite também passou a ser tomado pelas

preocupações sobre a iluminação dos espaços públicos, em busca de maiores garantias de

segurança para a população. O uso da luz artificial teve também, desde o princípio, o objetivo

de embelezar a cidade, cobrindo prédios e espaços públicos com lâmpadas que revelavam as

silhuetas e davam visibilidade à forma urbana. Este uso, comum desde as primeiras feiras

internacionais, foi sendo redescoberto mais recentemente, a partir dos anos 1970 e 80, com

inovações técnicas que buscavam se associar à conservação dos patrimônios materiais de

conjuntos arquitetônicos das cidades. Esta paisagem iluminada ajudou a dar sentido e

destaque ao patrimônio cultural dos povos, especialmente valorizando os prédios que

ajudariam a contar a história de cada cidade. Dessa forma, a luz artificial teria o papel de ser

uma marcação brilhante sobre parte do texto que a morfologia urbana exibia para contar a sua

história. Hoje temos a paisagem noturna de uma cidade como uma das principais imagens

que compõe o seu álbum.

Nas páginas anteriores notamos que os valores associados ao patrimônio estavam

associados a projetos e modelos de iluminação urbana. Vimos que há o modelo de urbanismo

luminoso francês que pretende ser uma nova forma de abordar o urbano, propondo um

zoneamento específico para a vida noturna e aplicando a iluminação das áreas como

esquema de organização funcional dos espaços. De outro modo, foi observado também o

modelo americano de embelezamento das cidades, no qual se prefere uma atuação mais

pontual, voltada para atividades específicas, especialmente o turismo e o lazer. De qualquer

forma, a cidade do Rio de Janeiro buscou adotar ambos os modelos, mas seguindo os

próprios interesses dos autores envolvidos, implicando em uma complexificação dos modelos

adotados. A característica final de organização da paisagem noturna carioca tendeu a

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valorizar o tratamento individualizado dos objetos patrimoniais, os quais acabaram se

tornando, na maioria dos casos, objetos de contemplação. A ideia de uma unidade visual

noturna, construída a partir de uma composição luminosa, conseguiu apenas se conformar

em casos nos quais os agentes sociais envolvidos estabeleceram um acordo. Nestes casos, a

iluminação das fachadas produziu um cenário para a vida social, aderindo não somente como

fundo, mas se tornando parte da frente de cena, como um elemento físico e simbólico que

constitui a publicidade de um espaço.

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