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Págs. 4 e 5 LETRAS ARTES Hildebrando de Melo PALAVRAR O FERRO Pág. 8 Em A História é um Objecto, o Ferro é um sujeito moral com o sentido da Fala. A Obra feita é Ferro suado a contundir-se no próprio suor do Mago Ferreiro, Hildebrando, alieníge- na desembarcando em pleno coração de Luanda ovos míticos rectangulares de fertilizar o mundo com a gema visionária da Angolan New Art. ENTREVISTA A CREMILDA DE LIMA O prémio de Cultura e Artes deste ano, dado à escritora infanto-juvenil Cremilda de Lima é uma prova do papel deste género no desen- volvimento da imaginação, emoções e sentimentos dos mais pequenos. GUERRA DA ÁGUA À VISTA? Pág. 15 DIÁLOGO INTERCULTURAL Guerra da Água À Vista? O Conflito Potencial Entre Angola e África do Sul pelos Recursos Hídricos analisa o potencial da provável disputa no cenário regional entre Angola e a África do Sul, que de modo claro, transparecem como Estados-Di- rectores na África Austral. Pág. 3 ECO DE ANGOLA A LUTA ARMADA NA ÁFRICA AUSTRAL A luta armada na África Austral é a matéria debatida na Universidade de Witwatersrand, da África do Sul, pela Conferência “Políticas das Lutas Armadas na África Austral”, que decorreu nas suas instalações de 23 a 25 de Novembro do ano em curso. GOZ’AQUI “COM MULHERES HUMORISTAS ANGOLA NÃO VAI SER A MESMA.” Pág. 10 ARTES A tertúlia de Humor GOZ’AQUI celebra quatro anos de fazer rir o público, desmistificando a realidade social e política angolana revista no seu avesso hilariante. ECO DE ANGOLA 3 Pág. 8 Pág. fr , da Á and ersr t a w it W de ica A fr mada na Á A luta ar UTA ARMADA NA ÁFR A L ência er onf , pela C ica do Sul fr tida na Univ ia deba ér t al é a ma ustr ica A ICA ADA NA ÁFR I olíticas das “P ência ersidade tida na Univ STRAL AU A A o do ano em curso embr v 23 a 25 de No ica A fr madas na Á r utas A L fr , da Á and ersr t a w it W de HUMORISTAS “COM MULHERES GOZ’AQUI 10 Pág. ARTES eu nas suas instalaç r or , que dec al ustr ica A ência er onf , pela C ica do Sul fr o ano em curso HUMORISTAS HER ões de eu nas suas instalaç olíticas das “P ência VAI SER A MESMA.” ANGOLA NÃO HUMORISTAS . e t ian esso hilar v a evista no seu angolana r ealidade social e política a r , desmistificando o ir o públic r o anos de faz tr a qua elebr c túlia de Humor GOZ’ er A t MES ANGOLA NÃO HUMORISTAS ealidade social e política , desmistificando er o anos de faz QU A Z’ ’A OGO INTERCUL DIÁL 15 Pág. TURAL OGO INTERCUL LETRAS 4 e 5 Págs. REVISTA DE LIMA EMILDA 5 a 18 de Dezembro de 2016 | Nº 123 | Ano V Director: José Luís Mendonça Kz 50,00

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Págs.4 e 5LETRAS

ARTES

Hildebrando de Melo

PALAVRAR O FERRO

Pág.8

Em A História é um Objecto, o Ferro é um sujeito moral com o

sentido da Fala.A Obra feita é Ferro

suado a contundir-se no próprio suor do

Mago Ferreiro, Hildebrando, alieníge-

na desembarcando em pleno coração de Luanda ovos míticos

rectangulares de fertilizar o mundo com

a gema visionária da Angolan New Art.

ENTREVISTAA CREMILDA

DE LIMAO prémio de Cultura e Artes deste ano, dado

à escritora infanto-juvenil Cremilda de Lima é uma prova do papel deste género no desen-

volvimento da imaginação, emoções e sentimentos dos mais pequenos.

GUERRADA ÁGUAÀ VISTA?

Pág.15DIÁLOGO INTERCULTURAL

Guerra da Água À Vista? O Con�ito Potencial Entre Angola e África do Sul pelos Recursos Hídricos analisa o potencial da provável disputa no cenário regional entre Angola e a África do Sul, que de modo claro, transparecem como Estados-Di-rectores na África Austral.

Pág.3ECO DE ANGOLA

A LUTA ARMADA NA ÁFRICA AUSTRALA luta armada na África Austral é a matéria debatida na Universidade de Witwatersrand, da África do Sul, pela Conferência “Políticas das Lutas Armadas na África Austral”, que decorreu nas suas instalações de 23 a 25 de Novembro do ano em curso.

GOZ’AQUI “COM MULHERES HUMORISTAS ANGOLA NÃO VAI SER A MESMA.”

Pág.10ARTES

A tertúlia de Humor GOZ’AQUI celebra quatro anos de fazer rir o público, desmisti�cando a realidade social e política angolana revista no seu avesso hilariante.

ECO DE ANGOLA 3Pág.

8Pág.

fr, da ÁandersrtawitWde ica Afrmada na ÁA luta ar

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ência eronf, pela Cica do Sulfrtida na Univia debaértal é a maustrica A

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LETRAS 4 e 5Págs.

REVISTA

DE LIMAEMILDA

5 a 18 de Dezembro de 2016 | Nº 123 | Ano V • Director: José Luís Mendonça • Kz 50,00

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2 | EDITORIAL 5 a18 de Dezembro de 2016 | Cultura

Propriedade

Sede: Rua Rainha Ginga, 12-26 | Caixa Postal 1312 - Luanda Redacção 222 02 01 74 |Telefone geral (PBX): 222 333 344Fax: 222 336 073 | Telegramas: ProangolaE-mail: [email protected]

CulturaJornal Angolano de Artes e LetrasUm jornal comprometido com a dimensão cultural do desenvolvimento

Nº 123 /Ano V/ 5 a 18 de Dezembro de 2016

E-mail: [email protected]: www.jornalcultura.sapo.aoTelefone e Fax: 222 01 82 84

CONSELHO EDITORIAL

Director e Editor-chefe:José Luís MendonçaSecretária:Ilda RosaAssistente Editorial:Coimbra Adolfo (Matadi Makola)Fotografia:Paulino Damião (Cinquenta)Arte e Paginação:Jorge de SousaAlberto Bumba Sócrates SimónsEdição online: Adão de Sousa

Colaboram neste número:

Angola: Adriano De Melo, João N’gola Trindade, Lou-renço Mussango, Norberto Costa, Paulo Campos

Moçambique: Mauro de Brito

Normas editoriais

O jornal Cultura aceita para publicação artigos literário-científicos e re-censões bibliográficas. Os manuscritos apresentados devem ser originais.Todos os autores que apresentarem os seus artigos para publicação aojornal Cultura assumem o compromisso de não apresentar esses mesmosartigos a outros órgãos. Após análise do Conselho Editorial, as contribui-ções serão avaliadas e, em caso de não publicação, os pareceres serãocomunicados aos autores.

Os conteúdos publicados, bem como a referência a figuras ou gráficos jápublicados, são da exclusiva responsabilidade dos seus autores.

Os textos devem ser formatados em fonte Times New Roman, corpo 12,e margens não inferiores a 3 cm. Os quadros, gráficos e figuras devem,ainda, ser enviados no formato em que foram elaborados e também numficheiro separado.

Conselho de Administração

António José Ribeiro

(presidente)

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Victor Manuel Branco Silva Carvalho

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Catarina Vieira Dias da Cunha

António Ferreira Gonçalves

Carlos Alberto da Costa Faro Molares D’Abril

Administradores Não Executivos

Olímpio de Sousa e Silva

Engrácia Manuela Francisco Bernardo

OBRIGADO À UNAP1Em alusão ao 41º aniversário da Independência Nacional, aUnião Nacional dos Artistas Plásticos (UNAP) inaugurou nodia 25 de Novembro a exposição de escultura e pintura deno-minada “Expo Angola 41 anos”, que reuniu no local várias per-sonalidades do fórum político, social, económico e cultural.Durante a cerimónia de inauguração da exposição, a UNAP rendeuhomenagem a várias figuras que contribuíram para o desenvolvi-mento das artes plásticas, dentre as quais personalidades e institui-ções públicas e privadas. 2Apenas quinta-feira, dia 1 de Dezembro, o Jornal Culturatomou conhecimento de que o seu director e autor desteeditorial também foi homenageado pela UNAP, ao lermos,na página Gente do Jornal de Angola, a notícia com o título“Figuras de cultura nacional distinguidas pela União Nacional dosArtistas Plásticos”.A referida notícia do Jornal de Angola realçou que a ministra CarolinaCerqueira, uma das homenageadas, “prometeu continuar a apoiariniciativas que permitam a promoção, divulgação e preservação daidentidade cultural angolana.”Também nos causou imensa euforia saber que “a sede da UNAP po-derá beneficiar de pequenas obras de restauro para conferir maisdignidade e comodidade aos seus usuários”, afirmação feita pelo seusecretário-geral, António Tomás Ana (Etona), ao jornal O PAÍS.Vizinhos que somos da UNAP, conhecemos o edifício-sede da asso-ciação dos artistas plásticos e temos constatado, com um certo des-conforto, como as sementes da mulembeira do largo da Portugália setêm introduzido nas finas fissuras das grossas paredes e feito levan-tar novas árvores no cume do prédio histórico. O Jornal Cultura bem gostaria de ter estado lá para testemunhar oevento e celebrar com a UNAP os 39 anos da sua existência. Mas, éóbvio que também gostaríamos de lá ter estado porque muito noshonra ser homenageados, enquanto pessoas vivas, já que, depois demortos, não estaremos cá para escutar elogios póstumos, nem paraapreciar o aroma das flores que deitarão por cima das nossas tum-bas, como é da tradição. A notícia da página Gente do JA criou em nós um paradoxo de senti-mentos: ficámos alegres, mas, ao mesmo tempo, desapontados com aUNAP, porque só se percebe que a UNAP renda homenagem a um ci-dadão da Cultura angolana que está à mão de semear e este nem se-quer é convidado a estar presente, por qualquer falha na comunica-ção interna da UNAP. 3Cientes do facto, e porque compreendemos perfeitamenteque a nossa sociedade não evoluiu muito em termos de comu-nicação institucional, societária e interpessoal, agradecemosa homenagem que a UNAP nos rendeu, mesmo sem ter podidoestar presentes para receber o diploma das mãos do nosso amigoEtona, e desejamos-lhe renovados êxitos na sua carreira artística,bem como na condução dos destinos da associação.

JOSÉ LUÍS MENDONÇA

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A LUTA ARMADA NA ÁFRICA AUSTRALAluta armada na África Austral éuma matéria que continua a serobjecto de atenção e estudo de-vido à sua importância. A luta armadanesta região do continente africanotem sido analisada com base numaperspectiva multidimensional por-quanto ela abarca um vasto período detempo do século XX e porque possuiparticularidades muito próprias quediferem de outras regiões do conti-nente que também registaram lutasarmadas no contexto das lutas de li-bertação nacional. Nesta base a Universidade de Wit-watersrand, da África do Sul, atravésdo seu Workshop de História, do Ma-pungubwe Instituto de Reflexão Es-tratégica (MISTRA) e da História SulAfricana Online (SAHO), organizou aConferência “Políticas das Lutas Ar-madas na África Austral”, que decor-reu nas suas instalações de 23 a 25 deNovembro do ano em curso.A presente conferência sobre a lutaarmada, em termos de organização dostrabalhos, abarcou exposições de arte,posters, amostra e lançamento de fil-mes, textos biográficos, mesas redon-das, música, dança e dezanove painéiscom temáticas variadas, nomeada-mente: “Pontos de Viragem Estratégicae Táctica na Luta de Libertação da Áfri-ca do Sul”; “Cuba-África Sul: Depois daBatalha”; “História Patriótica e as Me-mórias Politicas na Namíbia e no Zim-babwe”; “Veteranos Militares no Pós-Libertação”; “Biografias e Histórias daLuta Armada”; “A Media e a Represen-tação da Luta Armada”; “A Luta Armadaem Poemas”; “Género e Luta Armada”;“Contra-insurreição e a Ética Políticadentro da Luta Armada”; “Mapeando aLuta Armada”; “Internacionalismo So-cialista e a Luta Armada”; “Debates so-bre a Não-Violência e a Viragem paraLuta Armada”; “Arte e Música na LutaArmada”; “Solidariedades Pan-Africa-

nas e a Luta Armada”; “Luta Armada naÁfrica Austral e o Mundo”; “Documen-tos e Arquivos da Luta Armada”. Estes painéis contaram com a parti-cipação de vários prelectores oriundosde várias partes do Mundo, com desta-que para a África Austral. Entre eles es-tavam veteranos, estudantes, acadé-micos e estudiosos dos assuntos liga-dos às lutas armadas da África Austral. Angola fez-se representar pelo his-toriador e investigador Miguel Júnior,que foi convidado pela Universidadede Witwatersrand. Nesta conferência,Miguel Júnior abordou o tema: “Agos-tinho Neto e a Luta Armada na ÁfricaAustral (Angola, 1961-1979)”. Esta conferência também foi ummomento que juntou veteranos daluta armada da África do Sul e de ou-tros países da região. Por conseguin-te, esta é uma iniciativa louvável e

que outras universidades poderiamseguir. Além do mais, Angola tem quemarcar presença nestes eventos com mais investigadores porque nestaconferência o país foi muito referidoem todos os painéis. Camaradas do ANC que estiveram em Angola e Miguel Júnior (ao centro)

Stanley Manong, Ronnie Kasrils do ANC e Miguel Júnior

Cultura | 5 a18 de Dezembro de 2016 ECO DE ANGOLA | 3

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4 |LEtRAs 5 a18 de Dezembro de 2016 | Cultura

PRÉMIO DE CULTURA E ARTES PARA CREMILDA DE LIMA

O RECONHECIMENTO DO PAPEL DA LITERATURA INFANTIL

ADRIANO DE MELO |

Reconhecer a importância da li-teratura infantil, com uma distin-ção nacional, é incentivar a forma-ção do hábito de leitura na infância,idade em que os hábitos se formam.O prémio de Cultura e Artes desteano, dado a escritora infanto-juve-nil Cremilda de Lima é uma provado papel deste género no desenvol-vimento da imaginação, emoções esentimentos dos mais pequenos.

Assim como disse o empreende-dor e filantropo norte-americanoLouis Bamberger, co-fundador doInstituto de Estudos Avançados, dePrinceton, EUA, lar académico de Al-bert Einstein, “o desenvolvimentode interesses e hábitos permanen-tes de leitura é um processo cons-tante, que principia no lar, aperfei-çoa-se sistematicamente na escola econtinua pela vida afora”, a escritoraangolana mostrou um pouco destapreocupação, quando contou umpouco do seu trajecto pela educaçãoe pela literatura angolana.

Considerada fundamental parao conhecimentos, recreação e in-teracção das crianças, a literaturainfantil, a infanto-juvenil e atémesmo a juvenil, têm tido um lu-gar secundário no “universo” dasletras angolanas. Porém, a distin-ção atribuída à autora, pelo con-junto da sua obra, mostra que o

Executivo, através do Ministérioda Cultura, tem acompanhado aevolução dos seus criadores.

Jornal Cultura - O que represen-ta para si o Prémio Nacional deCultura e Artes?

Cremilda de Lima - É o reconheci-mento de todo o meu trabalho, realiza-do há muitos anos e que começou em1977, quando fui contactada por Efi-génia Mangueira, a directora do ensi-no de base, para fazer parte do grupoque trabalharia na reforma educativa.Para mim, é o culminar de um percur-so de vida muito dedicado à literatura,em especial a para crianças.Jornal Cultura - Como ocorreu es-

te processo na época?Cremilda de Lima - Além de mimforam seleccionadas, pelo Ministérioda Educação, outras professoras, quetinham a responsabilidade de mudartodo o conteúdo de programas, ma-nuais, guias, cadernos de actividade,baseados antes na cultura portuguesa,e precisava ser adaptada a realidadenacional, depois de 1975, já que éra-mos um país independente.Jornal Cultura - Foi fácil fazer esta transição?Cremilda de Lima - Claro que não.Mas era e foi possível. Antes tudo o queestudávamos era relacionado comPortugal, porque Angola era uma pro-víncia ultramarina. Saber que já tínha-mos a possibilidade de criar conteú-dos novos para uma cultura e educa-

ção angolana própria, que não consi-dero tão nova, porque já existia quan-do Paulo Dias de Novais chegou, erauma luta de todos. Jornal Cultura - Como foram fei-

tas as mudanças?Cremilda de Lima - Na altura tra-balhávamos no Centro de InvestigaçãoPedagógica (CIP), do Ministério daEducação, que depois passou a serCentro de Investigação Pedagógica eInspecção Escolar (CIPIE), e sabíamosque era importante associar dois as-pectos fundamentais: a família, porser e a escola. Quando começamos afazer a reforma escolar havia o pré-es-colar, o I, II e III níveis. Depois os pré-universitários, para os alunos do ensi-no médio. Então decidimos trabalharcom unidades de trabalho.Jornal Cultura - Como funcionava

exactamente?Cremilda de Lima - As unidades detrabalho surgiram porque as criançasvinham de uma educação familiar eeram inseridas na escola. Então erapreciso introduzi-las primeiro a estesdois aspectos e só depois leva-las a co-nhecer a comuna, o município e porfim o país. Cada nível de formação ti-nha em conta estes factores. A inser-ção das crianças era feita através depequenas histórias. Jornal Cultura - E quanto aos as-

pectos culturais, a tradição e os va-lores da oralidade?

Cremilda de Lima - Na altura, eu e

a Irene Guerra Marques coordenáva-mos o grupo de língua portuguesa,que tinha em conta os aspectos cultu-rais. O Ministério da Cultura trabalha-va também em directa colaboraçãocom o da Educação para a preservaçãodestes princípios, parte essencial daidentidade de qualquer povo.Jornal Cultura - Como eram as

histórias inseridas nos livros da re-forma?

Cremilda de Lima - Já que o primei-ro contacto era com a família então estáera a base do pré-escolar. Cada históriaera acompanhada de muita gravura.Haviam desenhadores seleccionados,para as gravuras ajudavam muito na in-terpretação. Depois, nos ciclos seguin-tes, a criança tinha contacto com a co-muna, o município e o país, através dehistórias para recriar, educar e motivar.O objectivo era despertar o interessedestas em conhecer o texto.Jornal Cultura - Qual é a relação

entre trabalhar na reforma e o inte-resse pela literatura?

Cremilda de Lima - Para facilitara inserção das crianças eram criadashistórias sobre esses assuntos. Foinesta altura que comecei a escrever.Foram essas experiências, associa-das a outras da minha infância, queme incentivaram a escrever. “A VelhaSanga Partida” foi a minha primeirahistória editada num jornal, na épocao “1º de Dezembro”, numa página pa-ra crianças.

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LETRAS | 5Cultura | 5 a18 de Dezembro de 2016Jornal Cultura - Então já era co-

nhecida na época?Cremilda de Lima -Não. Os livrosnão eram assinados por nós. Era umtrabalho colectivo. Mas ajudou-mebastante a aumentar o meu interessepela literatura. Antes já escrevia, in-ventava histórias e fazia teatrinhos.Mas foi nesta época que comecei aaprimorar tudo o que sei hoje. Depoisde anos de experiências passei a edi-tar as minhas obras e a interagir cadavez mais com os alunos em palestras,programas de entretenimento, ou nasfeiras do livro.Jornal Cultura - Neste caso, toda a

sua experiência veio da reforma?Cremilda de Lima -Não. Um pouco,porque também aprendi muito quan-do publicava textos no suplemento in-fantil do jornal “1º de Dezembro”. A pá-gina era uma iniciativa do antigo Insti-tuto Nacional do Livro e do Disco(INALD). Na época os textos eram re-vistos por António Fonseca, Dario deMelo, Gabriela Antunes e RosalinaPombal. Era uma equipa que não se li-mitava só a receber as histórias, mastambém a critica-las, porque algumasdelas eram publicadas nos manuaisescolares. Portanto, não era só umapreocupação com a língua portuguesa,mas também com um pouco da vivên-cia da época, a cultura e o ensino.Jornal Cultura - Qual é a sua opi-

nião sobre o actual nível de leitura?Cremilda de Lima -Praticamente,é inexistente. Ainda é preciso fortifi-car muito a leitura e a interpretaçãoentre os leitores. Esses dois aspectostêm sido bastante negligenciado. Amaioria das crianças e jovens tem tidogrande contacto com os livros, emprojectos como o Jardim do Livro ouem feiras. Mas isso não é o suficiente. Épreciso uma inversão urgente.Jornal Cultura - Qual seria a sua

sugestão?Cremilda de Lima - A criação do“Plano Nacional de Leitura”. Umaideia minha, que surgiu quando faleisobre os temas “Literatura infantil -continuidades”, na União dos Escri-tores Angolanos, e “Ler é uma festa”,na Chá de Caxinde. É uma forma dasobras dos autores nacionais seremrealmente consumidas pelos leito-res, isso, no sentido de lidas. Projec-tos como o Jardim do Livro são muitobons, por trazerem novos títulos eoutros já publicados a preço acessí-vel. Porém, estes projectos não po-dem acontecer só nas feiras. As livra-rias, quiosques e bibliotecas deve-riam ter iniciativas do género.Jornal Cultura - Como deveria

funcionar este “Plano Nacional”?Cremilda de Lima - Como a ideia éque as crianças possam manusear oslivros, então a forma mais rápida eraincuti-los no currículo escolar, a partirdos primeiros ciclos do ensino. O ob-jectivo seria facilitar o contacto destescom os livros, através, por exemplo, deuma ficha de leitura, onde constaria otítulo da obra, as personagens princi-pais e o seu papel na história. Essas fi-chas teriam lacunas para preencher eserviriam para a classificação do alu-

no no final do ano lectivo.Jornal Cultura - Acredita que des-

ta forma poderíamos ter mais e no-vos leitores?Cremilda de Lima - Aos poucossim e, pelo menos, eles teriam a obri-gatoriedade de ler e conhecer os livrosde escritores angolanos. É a partir dainfância que se começa a moldar aspessoas e a despertar o seu interessepor qualquer coisa. Portanto, se o ob-jectivo é os incentivar a ler esta seriauma forma de colmatar a falta de co-nhecimentos sobre a literatura nacio-nal. Claro que é um esforço grande eum projecto oneroso, mas acreditoque vale a pena.Jornal Cultura - Qual deve ser o

papel da família neste processotodo?Cremilda de Lima -A família é fun-damental, por ser o núcleo mais im-portante da sociedade e onde se for-mam os primeiros valores, os que du-ram toda a vida. Pessoalmente, foramas vivências que tenho sobre a culturanacional, incutidas pela minha avó e amãe, que despertaram o gosto pelatradição e a oralidade. Por isso, paramim, não existe escola separada da fa-mília, nem o inverso. É um binómio.Jornal Cultura - Mas não é isso o

que acontece.Cremilda de Lima -Sim, geralmen-te, os pais acreditam que quando os fi-lhos começam a ir à escola eles nãotêm mais tanta responsabilidade nasua educação e acabam por afastar-se,entregando tudo a escola. Está errado,porque a criança é um ser especial. Àsvezes pensamos que é só mandar e acriança só olha. Mas ela deve serapoiada em casa pela família, porqueela é membro e faz parte do núcleo fa-miliar. Quando vai para a escola o cor-dão umbilical não deve ser desligado.No pré-escolar, então, o acompanha-mento paterno é fundamental, porqueé a sua inserção num mundo novo.Jornal Cultura - Em parte isso não

acontece devido a dinâmica da vidasocial?Cremilda de Lima - Sei que sim,mas não é desculpa, porque a vidasempre vai ser complicada. Os pais de-vem acompanhar, sempre, os seus fi-lhos, em especial na fase de aprendi-zagem, onde o contacto com a famíliadeve ser maior. Geralmente, são asmães que cuidam mais do que os pais,porém, não importa qual deles é o res-ponsável, mas sim os valores inculca-dos a estes. Hoje pensamos mais na es-tabilidade financeira, mas a formaçãodas crianças é responsabilidade de to-dos e não só do Estado.Jornal Cultura - Qual é a impor-

tância da gravura no aprendizadodas crianças?Cremilda de Lima -É fundamentalpor dar a criança a primeira perspecti-va sobre qualquer história. O contactovisual ajuda na sua compreensão dahistória. Para uma criança, a ilustraçãoé a leitura por imagem, ou seja a suaforma de ter contacto com a realidade.É nesta altura que devemos moldar oseu carácter e a inculcar valores. Aimagem também é essencial para a

ampliação da sua capacidade de me-mória. Só depois de anos é que estáaprende a fazer a sua própria ilustra-ção mental. Jornal Cultura - Qual é a sua opi-

nião sobre o crescente número deescritoras infantis?Cremilda de Lima -Acredito que is-so depende em parte da intuição e in-clinação destas para este género, outalvez, quem sabe, seja um pouco doamor materno. Mas isso não quer dizerque não temos bons escritores. O Dariode Melo e o Octaviano Correia deramum grande impulso à literatura infantile a infanto-juvenil. Hoje o John Bella fazo mesmo, embora se registe um cres-cente número de mulheres, dentre asquais se destacam nomes como MariaEugénia Neto, Maria Celestina Fernan-des, Marta Santos, Maria João Chipala-vela, ou Suraya Mendes. Claro não po-demos esquecer autoras como Gabrie-la Antunes (falecida), que deram outroimpulso à literatura.Jornal Cultura - Que conselho dei-

xa para os jovens autores?Cremilda de Lima - Os peço parafazerem muita leitura. Não devem sóescrever por o fazer, ou para ter su-cesso rápido. No caso da literatura in-fantil é preciso estes terem grandecuidado, em especial ao utilizar a lín-gua portuguesa nos seus textos. Épreciso que estes tenham tambémbom domínio da língua corrente esaibam utilizar os sinais de pontua-ção. A linguagem para crianças tam-bém é diferente.Trajecto

Maria Cremilda Martins Fernandes Alvesde Lima nasceu em Luanda, no dia 25 de Mar-ço de 1940. Fez o Curso do Magistério Primá-rio, na 1ª Escola que abriu em Angola, para aformação de professores, em 1962/1963, noBié, e 1963/1964, em Luanda.

Em 1987, concluiu o Curso de FormaçãoCientífico/Pedagógica na Escola Superiorde Educação de Setúbal e o Curso de Línguae Cultura Portuguesa, para professores de

Língua Portuguesa, na Faculdade de Letrasem Lisboa. Em 1992/1993, concluiu o CursoSuperior de Ciências da Educação Opção/Pe-dagogia, no Instituto Superior de Ciências daEducação (ISCED), em Luanda. Em 2003,obteve a Licenciatura na Escola Superior deEducação de Leiria, Portugal. Em 1980 con-cluiu o Curso Geral de Língua Francesa noInstituto Nacional de Línguas, em Luanda.

Actualmente é professora, profissão quecomeçou a exercer em 1964, em Malange.Em 1977, integrou o grupo de trabalho doMinistério da Educação de Angola paraelaborar a Reforma Educativa e respecti-vos manuais escolares onde trabalhou até1991, altura em que ingressou no quadroda Escola Portuguesa de Luanda.

Em 1984 tornou-se membro da Uniãodos Escritores Angolanos (UEA). Em 2000tornou-se um dos membros da AssociaçãoCultural e Recreativa Chá de Caxinde e em2005 integrou a Comissão para a Redacçãoda História da Literatura Angolana

Além disso, foi nomeada duas vezes parao Prémio Internacional Astrid Lindgren(2008 -2009), instituído pelo Governo Sue-co para honrar a memória de Astrid Lind-gren e fomentar a Literatura Infantil e Ju-venil no mundo.

Alguns dos seus livros foram traduzidospara outras línguas, nomeadamente paraservo-croata e castelhano. A obra “A kiandae o barquinho de Fuxi” foi traduzido parakimbundu. Outros foram adaptados parateatro. A sua vida e obra serviram de refe-rência para uma tese de licenciatura numcurso de Jornalismo do IMEL.

Entre os seus trabalhos publicados des-tacam-se “O balão vermelho”, “Mussulouma Ilha Encantada”, “A kianda e o barqui-nho de Fuxi”, “O Maboque Mágico e OutrasEstórias”, “Missanga e o sapupo”, “A múcuaque baloiçava ao vento”, “O tambarinodourado”, “A velha sanga partida”, “A co-lher e o génio do canavial”, “O nguiko e asmandiocas”, “O aniversário de vovô Imbo”,“Kiko o gatinho perdido”, “O livro das brin-cadeiras”, “A viagem do Pai natal”, “Kabulo,o Rei”, “A raposa e a perdiz”, “Histórias ehistorietas”, “O imbondeiro que queria serárvore de Natal”, “O livro das brincadeiras”e “O semba das penas coloridas”.

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COMO LI “NZAJI, O ÚLTIMO CONTRATADO”DO ESCRITOR DOMINGOS DE BARROS NETO

Tive imensa pena de não assistir aolançamento do livro do escritor Bar-ros Neto, que ocorreu a 16 de Novem-bro de 2016, no Palácio de Ferro deEiffel. Teria tido também a oportuni-dade de ver, pela primeira vez, comoficou a restauração de uma infraestru-tura metálica que bem devia ser consi-derada uma das maravilhas arquitec-tónicas da cidade de Luanda.Perdi essa oportunidade, mas, pornada deste mundo, me interessavaperder a obra que a veia escritora deBarros Neto me podia proporcionar;pois, nem sempre se tem à mão um li-vro de quem sabe escrever, pelo me-nos para mim!Li a obra como quem sorve gole agole uma chavena de chá de caxinde,adocicado com mel do Bié. Fi-lo, du-rante o voo de Luanda/Joanesburgo.Estranharam-se as hospedeiras pornão me verem comer nem beber coisaalguma, preso que estava a ler o pe-queno livro do escritor Barros Neto. O prefácio, redigido por um entendi-do em Língua Portuguesa, o Prof. Dou-tor António Fernandes da Costa, de

quem eu muito admiro a humildade e asabedoria, é já por si só um verdadeirocertificado de distinção para um traba-lho de imensa qualidade literária. Bem que eu podia ficar calado! Maso que me leva a escrever também algu-mas linhas a esse respeito, é que o es-critor – não apenas o autor – abordauma temática de que sou profunda-mente aficcionado: a dignidade doshumildes. Nem podia ser de outra ma-neira, porque senão a mão condenató-ria dos antepassados me cairia sobre acabeça por ingratidão!De acordo com alguém, escrever li-vros não faz ninguém um escritor, massimplesmente um autor. Um escritor éalguém que expressa algo de novocom palavras escritas. Barros Netotrouxe à ribalta um tópico interessan-te; um novo ponto de vista sobre a rea-lidade dos “contratados” da época co-lonial, e fê-lo com mestria, equinani-midade e equilíbrio intelectual. Eu di-ria mesmo que ele se revelou comouma verdadeira emanação da filoso-fia de Francisco de Assis: “onde hou-ver guerra que eu traga a paz”.

Na realidade é preciso ter-se umasensibilidade enorme; é preciso ter-se vivido nessa época “escura”, parapoder retratar com tanto pormenor avida dos que se esforçavam para so-breviverem, longe dos familiares. Emesmo quando assentavam arraiaisna “terra dos outros”, logo surgia atortura da saudade bem como a in-compreensão a dificultarem tudo, co-mo aconteceu ao Nzaji. Que vida infe-liz teve o Nzaji, que sofreu a explora-ção de todos os que se diziam protec-tores da sua vida e queriam ajudá-lo!Quanta traição! No entanto, como se-ria a vida se voltasse para a terra na-tal? Bem que se esforçou, o coitado,procurando aumentar o seu rendi-mento económico, mas a morte foimais célere e nem mesmo o enfer-meiro Casimiro pôde curá-lo como ofez na primeira vez que adoeceu qua-se mortalmente! Terá sido devido aofeitiço irremovível da senhora Bran-ca Makinda, sua última patroa?Pode dizer-se basicamente, usandoexpressão alheia, que Barros Neto foium artista que se expressou com pala-vras. As cores da melhor pintura darealidade africana não teriam expres-sado melhor “este dar muito e receberpouquíssimo dos “mona a ngamba”. Está de parabéns o escritor, porqueo seu livro, embora pequeno, está re-pleto de extraordiária comunicabili-dade, que me ajudou imenso; aprendinovas nuances da linguagem. Aprendicomo ser conciso no pensamento e ex-pressá-lo com as palavras certas; nemmais nem menos. Incrível!O livro proveio, a meu ver, da lógi-ca da alma rica, sensível e humildede Barros Neto. Foi por isso que acei-tei integrar a vida quotidiana difícilda “maternidade”; a vida peculiardos que teceram as memórias doDondo, de então. Tive a oportunida-de de sofrer e chorar e também par-tilhar com eles os momentos da eu-foria dos pobres. Apreciei com elesos cantares e bebedeiras para leniti-

vo dos males do corpo e da alma. Mas o que me impressionou pro-fundamente – e me repugna aindaagora – foi a inveja acirrada dos corre-ligionários. A dificuldade das pessoassó trabalharem se o chicote do colonoestiver à vista para os acoçar; que nãoaceitam que indivíduos da mesma li-nhagem as dirijam. Com estes, fingemque fazem alguma coisa; com aquelesdão o couro e o cabelo.De nada valeu ao Nzaji ter sido no-meado capataz adjunto, posto que lheaumentou ainda mais o trabalho e aincompreesão dos demais. Infeliz-mente é essa a formatação psicológicade quinhentos anos de colonialismo,que nos continua a acorrentar, subju-gar e subdesenvolver. Nos nossos dias, ainda há resquí-cios dessa mentalidade degradanteda pessoa humana. A ideia de que otrabalho dignifica o homem e a so-ciedade – apanágio das sociedadesque evoluíram – ainda não ganhouraízes em muitas pessoas, que fazemqualquer coisa sem a merecida exce-lência. Quem dera que essa mentali-dade pudesse ser remodelada na to-talidade, não importa em quantasdezenas de anos! A excelência, de facto, é sempre oreflexo de bases intelectual e moralsólidas; de muitos anos de trabalho ededicação; de boa orientação e cons-cientização; de boa formatação men-tal; de boas práticas, enfim. O escri-tor Barros Neto tem todo esse subs-tracto e mais algum. É o que se podechamar uma pessoa culta e, mais doque isso, humilde e simples. É, emmeu enteder, um exemplo a seguir,uma verdadeira referência.O livro “Nzaji, O Último Contratado”do escritor Domingos Fernandes deBarros Neto tem, sem exagero algum,o selo da excelência, no verdadeirosentido da palavra e brotou “ex abun-dantia cordis” e pode ser apontado co-mo o exemplo da arte de “bem calval-gar toda a sela” em termos da escrita.Definitivamente não se escreve paraensaiar, mas para legar à sociedadeum instrumento adequado de reflexãoe desenvolvimento. Bem haja.Pretória, aos 21 de Novembro de 2016.

6 |LETRAS 5 a18 de Dezembro de 2016 | Cultura

PAULO CAMPOS

O escritor Barros Neto

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A WEBNOTÍCIA COMO FERRAMENTADE DIVULGAÇÃO DA LITERATURAAnotícia é hoje vista como umamercadoria a ser vendida paraum grupo-alvo heterogéneo,nas mais variadas sociedades que con-figuram o puzzle da chamada AldeiaGlobal. Consequentemente, emerge àvelocidade da luz uma cultura impostapelos média cujas imagens, sons, sím-bolos e mitos ajudam a forjar o modode vida das pessoas. A cultura dos mé-dia, para além de lapidar opiniões e di-tar comportamentos sociais, tem for-necido as bases com que os indivíduoscriam sua identidade. Deste modo, os média, quer quei-ramos quer não, têm sido o móbil daindústria cultural. Através das suasinformações noticiosas e publicitá-rias ditam modas, regras, valores,símbolos e mitos; fornecem os mode-los comportamentais, bem como osrecursos que ajudam a construir umacultura comum para a maioria daspessoas em muitas sociedades domundo contemporâneo. Assim, deforma consciente ou inconsciente,dolosa ou não, os “fazedores” de notí-cias, pautando-se pelateoria hipo-dérmica, vão divulgando informa-ções persuasivas e com panos de fun-do propagandistas cujos objectivosconsistem em vender um produtomediático. Com isso, a cultura dosmédia tem oferecido, subliminar-mente, as directrizes com que certas

pessoas edificam o seu senso de“classe”, de “nós” e “eles”, define o queé visto como culto ou ignorante, bomou mau e moral ou imoral. A existência de várias rádios, jor-nais offline e cadeias televisivas e osurgimento massivo de sítios da inter-net e média online, faz com que as pes-soas, por falta de tempo e devido à cor-reria diária que os grandes centros ur-banos impõem, comecem a distan-ciar-se cada vez mais dos serviçosprestados pelos mass media tradicio-nais. Em contrapartida, vão acedendoàs informações a partir de um smartp-hone, tablet ou qualquer dispositivoportátil. E é tudo feito de forma rápida,instantânea e interactiva. Facebook— a montrada webnotícia sobre literaturaTal como já afirmámos, actualmen-te o indivíduo quase não tem temponem disponibilidade para se sentarnosofá, ler um jornal offline, assistir a umprograma de televisão ou mesmo ou-vir rádio. Tendo conhecimento destefacto, escritores, jornalistas e os gran-des conglomerados mediáticos têmvindo desde há algum tempo a inves-tir em plataformas digitais que per-mitem divulgar informações de con-sumo fácil e imediato. Estas têm aju-dado esses actores a conquistar umaaudiência que aos poucosse vai desli-gando dos média tradicionais e co-nectando-se cada vez mais aos meiosde comunicação online. Assim sendo,para a nossa abordagem sobre a web-notícia como ferramenta de divulga-ção da literaturaescolhemos o Face-book, visto que esta rede social espe-lha, em boa medida, o que acontecenos outros média.Além disso, a partirde partilhas, congrega desde vídeosdo YouTube e músicas doiTunes, entreoutras plataformas audiovisuais, elinksinformativos derivados de agên-cias, sites, jornais, revistas e portaisnoticiosos e de entretenimento onli-ne, que por ora não é de tamanha im-portância referenciá-los aqui. O Facebook, por causa da sua facili-dade de acesso e interacção entre osseus utilizadores, já deu sem sombrade dúvida mostras de que é a rede so-cial que mais internautas conquista naweb. Por outro lado, traz à baila infor-mações de vária ordem que o tornaum centro de opinião pública, umafonte, um meio de divulgação de notí-cias e uma ferramenta de web marke-ting credível. E é neste espaço virtualda internet que por meio de postsetagsse configura a comunicação de in-formações (webnotícias) mais ágeis,instantâneas, interactivas, personali-zadas e autónomas.

Em Angola há a emergência de umaclasse de jovens, e não só, que aos pou-cos vai ganhado cada vez mais o gostopela leitura e, consequentemente, pe-la escrita de literatura artística. Nessediapasão, muitos são os escritores quepor falta de cifrão, influência, contac-tos e até mesmo lóbis junto de jorna-listas dos média tradicionais, vêem noFacebook como o meio de comunica-ção e marketing mais eficaz para dar aconhecer a sua arte (produto a servendido) e o seu nome (enquantomarca), junto dos internautas quecompõem o mosaico de amigos vir-tuais. Assim, paralelamente aos con-tactos com os jornalistas, os escrito-res têm cada vez mais recorrido a es-ta plataforma digital para dar a co-nhecer, a Angola e ao mundo, traba-lhos literários que vão desde a sim-ples partilha de um poema, a agendasde futuras publicações de títulos e aveiculação de notícias sobre eventosde lançamentos de livros (ficção poé-tica ou narrativa), trabalhados de for-ma independente ou sob a chancelade uma casa editora. Os escritores mais atentos já perce-beram que a informação (webnotícia)veiculada no Facebooka partir deumsmartphone ou tablet, quandobem trabalhada do princípio ao fim,tem a capacidade de criar um efeito“multidão” nas pessoas. Efeito esseque visa persuadir o amigo digitalmais próximo ou distante para que,embora sem ser obrigado,venha a par-tilhar a informação. Quanto mais par-tilhado for o poema ou a notícia sobrea publicação de um livro, o perfil ou apágina do escritor, poderá em muitopouco tempo alcançar milhares de vi-sualizações e seguidores. Para isso, anotícia publicada no Facebook devecaptar a máxima atenção dos utiliza-dores, a fim deos levar a tomar umaatitude positiva perante o conteúdopartilhado, partilhando-o de novo.O Facebook é sem sombra de dúvi-das uma montra de divulgação dawebnotícia sobre literatura e pormeio dele os escritores têm tido, mes-mo sem a ajuda dos média tradicio-nais, grandes benefícios. Estes po-dem ir desde um simples like à parti-lha da informação, saída do anonima-to, reconhecimento dentro e fora dopaís, internacionalização de traba-lhos, intercâmbios com escritores deoutras nações, patrocínios para pu-blicação de livros, vendas de eBooks-nos sítios da internet, etc.Portanto, o escritor deve ter cons-ciência de que a informação na era dasTIC tornou-se portátil, podendo ace-der-se a ela com um simples clique. Oque exige da parte de quem faz e divul-ga estas notícias o uso correcto das

melhores técnicas de redacção epersuasão. Além disso, exige-se des-te profissional a procura de uma“linguagem amiga” que faça da web-notícia uma informação mais adap-tada às exigências de um público quese quer divertir e informar, mas como maior rigor, concisão e objectivida-de. A ser assim, todo aquele que pu-blica um poema ou divulga uma notí-cia com o fim de informar ou sim-plesmente entreter as pessoas nosmédia online deve encontrar a me-lhor forma de levar o webleitor, es-pectador ou ouvinte a desprender-se do hábito de ler, ver ou ouvir notí-cias construídas com base na técnicada pirâmide invertida. Mas não há belas sem senão, peloque o maior desafio que se coloca hojeem termos de redes sociais está na ve-racidade da informação. Com a proli-feração de notícias falsas, propagan-distas e manipulativas, cabe ao leitordigital o cuidado acrescido de prestaratenção às fontes da notícia, procu-rando sempre as mais credíveis e derenome. Neste sentido, seria impor-tante, desde os bancos da escola, for-mar crianças, jovens e até adultos emliteracia digital e mediática.

Lourenço Mussango nasceu naprovíncia de Luanda em 1986. É fi-nalista do curso de Comunicação So-cial pela Faculdade de Ciências So-ciais da Universidade Agostinho Ne-to. Amante das letras e do conheci-mento. É, desde 2014, Assistente Edi-torial e membro do Conselho de Lei-tura da Mayamba Editora. É Direc-tor Adjunto de Comunicação e Mar-keting da organização não-gover-namental Mais Amor, fundador eCoordenador-Geral do ObservatórioLiterário Tundavala. Colabora comojornalista na revista angolana Jo-vens da Banda e é Editor-Chefe doportal de notícias Bateu Bwé.

LOURENÇO MUSSANGO

LETRAS | 7Cultura | 5 a18 de Dezembro de 2016

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JOSÉ LUÍS MENDONÇA |Durante dois anos e meio, Hildebrando de Melo (HM) veio viajando na naveespacial da Memória, a palavrar o Ferro, conferindo-lhe outra dignidade quenão a de mero marcador da História da Humanidade. Em A História é um Objecto, o Ferro é um sujeito moral com o sentido da Fala.A Obra feita é Ferro suado a contundir-se no próprio suor do Mago Ferrei-ro, alienígena desembarcando em pleno coração de Luanda ovos míticos rec-tangulares de fertilizar o mundo com a gema visionária da Angolan New Art,fecundada desde António Ole, e Viteix, e desde a poesia de Ruy Duarte de Car-valho: [Olha-me a noite herdada, nestes olhos/ de um povo condenado a amas-sar-te o pão./ Olha-me amor, atenta podes ver/ uma história de pedra a cons-truir-se/ sobre uma história morta a esboroar-se/ em chagas de salitre. (1976,in A Decisão da Idade)].Esculturas de ferro integrado soldado sob o prisma de uma linearidade rec-tilínea, auge de uma idealização de duas décadas, “a minha tia, quando eu meportava mal, mandava-me para uma fundição trabalhar, na Cruz Martins &Wall, em Vila Nova de Famalicão”, mal sabia a tia de HM que estava a formarum futuro ferreiro.A ferrugem, o zarcão e a laca preta bem polida sobrepõem-se às excreções di-gitais na chapa do Tempo quase subterrâneo ao Poder aracnídeo de vigia aoscorpos da História.O tecido hexagonal da visão da Aranha exterior sugere uma África suspensado seu próprio esquecimento daquilo que foi o começo (begining), estruturasde interacção, o disforme pescoço da civilização (neck), escalada imprevista ouo fragmento de um voo. A imanente imobilidade da Aranha interior observa oEco imanente dos objectos nomeados: arma (gun), sonho roubado (stolen), fo-me, morte embalsamada… Agora, ali vagueando na efémera eternidade do Ferro, a Voz de cada objectoescultural nos escuta o formular subjectivo do seu Design endémico e impressi-vo, buscando no Eco nocturno do ferro forjado uma luz romântica que nos frag-menta: que geometria há-de configurar o futuro do Homem e a sua consciência?Entre uma figura e outra, há uma solução de consanguinidade anti-metálica,vermes de oxidação que a Natureza Negra das figuras lacadas devora em abso-luta negação: brilho de premeditada preservação, versus ferrugem enternecidade resignação, há essa inconformidade geométrica por exclusão do círculo.Aranha ou Alien, passageiro devorador da Solidão, HM é um construtor dememória dura, Palavra de Ferro lavrada. A voar. A Ser e Não-Ser. Fonema Único.A Poesia é perfeita testemunha desta catarse: emergem das chapas contíguasolfactos de tétano corrosivo, flores muito antigas que flagelam a um deus de fer-ro citadino as coisas mais ínfimas e inenarráveis da origem do próprio Ferreiro.De cada um de Nós. A haver um novo território para formar Nações, chamar-se-ia Metamorfoses do Ferro, ásperas arestas limadas até à rectilínea imanência doátomo, metáforas do voo em linha, da fala, do olhar, da devoração do Insulto His-tórico ou da combustão intrínseca do Desejo, fausta revelação da permanênciado Negro na suspensa bigorna anti-natural do aracnídeo. Silício ecuménico doHomo Metalicus nas arestas da (de)composição liberal do século XXI.Se a História é um Objecto, desejo e técnica transfundidos em metálica estili-zação da Criação, esse Objecto é Dor, é Nada, Comunhão, Soldadura Inamovívelde Vozes. À imagem e semelhança de HM.

[Exposição inaugurada dia 24 de Novembro de 2016, no Camões/ Centro Cultural Português, em Luanda]

Hildebrando de MeloPALAVRAR O FERRO

8 | ARTES 5 a18 de Dezembro de 2016 | Cultura

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ESTUDANTES DO CEARTEGANHAM AUDITÓRIO E DORMITÓRIOMATADI MAKOLA|Passo a passo, o CEARTE, Complexodas Escolas de Arte, vai sendo finali-zado, para melhor estar ao serviço deum sem número de angolanos quepartilham o mesmo sonho: estudararte. Aberto em 2015, ainda são vá-rias as dificuldades apontadas, e tal-vez a mais preocupante tenha sido odestino e cuidado a ter com os alunosoriundos de outras províncias, moti-vo que levou alguns a desistirem. Nodia 24 de Novembro, os ministros daCultura, Carolina Cerqueira, e Educa-ção, Mpinda Simão, e quadros directi-vos e artistas convidados, marcarampresença para abertura do auditórioda escola e da apresentação do dor-mitório, obras de conclusão da se-gunda fase do projecto. De pé no palco do auditório do CEAR-TE, a ministra da Cultura salientou a im-portância deste espaço como uma obraque deve nos encher de orgulho, sendoque a Cultura lançou mais uma ferra-menta para um futuro seguro da arteangolana. Como estratégia, a ministrafez saber que deverá recorrer à diplo-macia cultural e apelar a outros paísescom sensibilidade para as artes no sen-tido de investirem no sector. Da estreitarelação com o sector da educação, Caro-lina Cerqueira salientou que o sector daeducação, por ser um dos mais vulnerá-veis, e muitas vezes o que é menos com-preendido, mesmo apresentando gran-des valores e sendo um pilar importan-te no desenvolvimento de Angola, é deigual modo beneficiador. Garantiu que aescola poderá não só promover as disci-plinas artísticas, bem como será exem-plo de inclusão social, com alunosoriundos de várias partes do país, com-partilhando os mesmos sonhos e a se-rem formados para fazerem parte docorpus de artistas que receberão o lega-do da geração actual.Com capacidade para mais de 96alunos internos, divididos em 12quartos para rapazes, igual númeropara raparigas e 10 quartos para pro-fessores, o grande beneficio é semsombra a possibilidade dos alunosque vierem das províncias poderem

morar no CEARTE em regime de inter-nato, permitindo que a direcção da es-cola tenha um controlo maior destealunos que ficarão longe das suas fa-mílias, uma vez que o CEARTE é a úni-co escola em Angola que oferece for-mação média em artes, enfatizou a di-rectora do CERATE, Anabela Cunha,que também esclareceu que o auditó-rio tem capacidade para mais de tre-zentos lugares sentados e está apetre-chado com material de primeira. Supervisionar, acompanhamentode saúde, orientação e alimentação se-rão assegurados pela escola, podendoassim cuidar melhor dos alunos. Até adata da inauguração, ainda estavampor acertar os critérios de admissão. Aquestão dos transportes, devido a rotapouco fluida em que está situada a es-cola, está a ser levada em conta com amáxima atenção pela direcção da es-cola e entidades superiores, que espe-ravam ver este problema solucionadoo mais breve possível. Alunos e professores“Aqui no CEARTE vamos conseguirlapidar muitos artistas que ainda vêmbruto. Também é um garante de umaclasse artística melhor para o futuro.

Hoje temos cerca de 60 inscritos emdança”, disse Inocêncio de Oliveira, pro-fessor de Composição Coreográfica naescola de Dança e de Técnica de Expres-são Corporal, na escola de Teatro.Já Rosa, professora de Coro e CantoLírico, garantiu que os alunos podemesperar mais desta escola com a aber-tura deste auditório, que é uma peçafundamental para os cerca de 100 alu-nos inscritos no curso de Música. Osvaldo Tchisseca, aluno de Teatroe Cinema, sempre sonhou ser actor erepresentar grandes peças de teatro.Admirador de Leonardo di Caprio, édo Camama que começa o seu sonhode um dia ir a Hollywood e contrace-nar com os astros mundiais do cine-ma. Veio da Lunda Sul e está hospeda-do em casa de familiares. A jornadanão tem sido fácil, porque os vulgoscandongueiros ainda não circulam noperímetro onde está a escola. Mas, eporque diz-se que quem corre porgosto não cansa, o jovem nos disse es-tar seguro que terminará o curso.Depois de uma performance de en-cher os olhos, sob música de ÂngeloBoss e coreografia de Inocêncio de Oli-veira, o dueto de alunos da 10ª classecomposto por Julieta e Pascoal, veio

pragmaticamente elucidar a impor-tância do CEARTE. Julieta veio do Cu-bal e frequenta a disciplina de dança.Sempre sonhou ser bailarina e não sa-bia como isso podia acontecer, aindamais se tratando de dança clássica.Chegou ao CEARTE indicada por umgrupo de dança do Cubal. Dos seus so-nhos, disse-nos que sonha chegar dis-tante e recriar ao modo clássico as vá-rias danças de Benguela. Pascoal André veio da província doBengo. Ficou a saber da escola em2014 quando participou na passadaedição do FENACULT. Não hesitou emabandonar o instituto politécnico evir tentar a sua sorte no CEARTE, on-de tem sido feliz, enquanto decorre arealização do sonho de tornar-se bai-larino profissional. Os sonhos fervi-lham e já está a conceber a sua pri-meira obra, com perspectiva de serlançada em breve. Pedro Miguel, aluno de Músicaque estuda minuciosamente Violinoe Piano, é Luanda e sonha de tornar-se um maestro. Disse-nos ser possí-vel criar obras baseadas no cancio-neiro tradicional angolano, estandoaprender estes cálculos musicaisque um dia usará.

Presentes

Carolina Cerqueira e Mpinda Simão cortam a fita de inauguração

Anabela Cunha

Cultura | 5 a18 de Dezembro de 2016 ARTES | 9

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TIAGO COSTA, FUNDADOR DO GOZ’AQUI

“COM MAIS MULHERES HUMORISTAS ANGOLA NÃO VAI SER A MESMA.”

JOSÉ LUÍS MENDONÇA|A tertúlia de Humor GOZ’AQUI realizadia 21 de Dezembro, no Camões, emLuanda, o seu primeiro Festival Nacio-nal de Humor, para celebrar quatro anosde fazer rir o público, ou, pelo menos,desmistificar a realidade social e políti-ca angolana revista no seu avesso hila-riante, isto é, no seu lastro de verdade.Mais de 10 humoristas apresenta-rão 2 horas de show, no estilo stand upcomedy angolano, numa organizaçãodaquela que conta já com uma nomea-ção e vencedor dos Prémios ZapNewscomo "Humorista do Ano 2015”. Como é que nasceu o GOZ’AQUI?Tiago Costa, o fundador do grupo, vaidesfiando as suas memórias: “Foi tudomuito natural. Já tinha tido a oportuni-dade de estar no Artes ao Vivo, umevento essencialmente de comédia,mas que alberga alguns humoristas, eragrande a necessidade que eles tinhamde expressar a sua arte, mesmo que nãoestivessem no local certo. O GOZ’AQUInasce da necessidade de se criar umaplataforma que pudesse albergar nummesmo sítio, apenas e exclusivamente,humoristas, para que o sector pudessecrescer”, remata Costa, na sua conta-giante forma de comunicar.Os humoristas que Tiago Costaabordou, na sua maioria, estavam des-locadas. E todos, de um modo geral,foram passando pelo GOZ’AQUI. “Nãofalei com os Tuneza, nem com o Cala-do, porque eles já tinham o seu posi-cionamento, Constatei que havia osTuneza, cinco pessoas, há o Calado, edepois não havia mais ninguém a so-bressair. Na altura, pensei: existemseis milhões de pessoas em Luanda,seis milhões!, e só há seis humoristas.É uma desconformidade! Eu fui bus-car o resto. Foi no Artes ao Vivo queencontrei o Maestro. Depois, o Maes-tro, que já tinha outros amigos humo-ristas, ajudou-me a reunir as pessoas

que estão connosco até hoje”, explica onosso interlocutor. A plataforma dehumor do GOZ’AQUI terá produzidocerca de 200 espectáculos até à data.RETORNOSNo primeiro e no segundo anos deexistência do grupo, Tiago Costa “quei-mou” algum dinheiro. Estava sozinho acustear as despesas, tal era o entusiasmo.Usou do seu próprio salário. O terceiroano foi muito positivo e começou, já, a teralgum dinheiro no bolso, para produzir oespectáculo. Mas, neste último ano, o gru-po sofreu uma recaída. Tiveram de aban-donar o espaço tradicional, o Baía, emmeados do ano. A ida para outro localsem a experiência cultural do Baía, criouconstrangimentos financeiros.HUMOR DE REFLEXÃOO GOZ’AQUI sempre se pautou porum espectáculo de humor de reflexão,“um humor inteligente”. E muito públi-co identifica-se com a forma de fazer rirdo grupo. Depois criou-se o GOZA FM,

porque foram convidados para ir à rá-dio e faz mais sentido, na óptica de Cos-ta, ter uma rubrica de entretenimento-comédia, que dá pelo nome de GOZAFM, uma sub-marca do grupo e que vaiao ar, às quintas-feiras, às 16 horas, naRádio Mais, na rubrica Tudo à Toa.Na TV, foi-lhes dada a oportunidadede colaborar com a Zimbando, comhumoristas do grupo que participamno programa Viva a Tarde, da ZAP.JUVENTUDE E GÉNEROToda a malta do GOZ’AQUI é jovem,não há humoristas mais velhos?“Nós estamos a começar uma gera-ção. As pessoas esperam um bocadomais. Esperam “cachés” do tipo Tune-za. Só que os Tuneza trabalham há 12anos para poderem obter esse “caché”e acordam e dormem a rir. As coisasnão se fazem de um dia para o outro”,recorda Costa.No ano de 2015, o GOZ’AQUI teveuma mulher a fazer humor. Um dosgrandes objectivos deste grupo de hu-mor é pôr as mulheres angolanas cadavez mais confortáveis com a câmara,para fazerem humor.“No dia em que encontrarmos umamulher e a pusermos a fazer humor,Angola não vai ser a mesma. A mulhertem a capacidade de influenciar deuma forma tal que, se tivermos maismulheres humoristas a coisa muda defigura”, assevera Costa.

PROJECTOSMuita gente que segue o GOZ’AQUInão vive em Luanda. Por isso, a grandeplataforma do grupo é a Internet. Equem vive no interior do país, pergun-ta porque é que não há mais espectá-culos nas províncias?Alguns elementos do grupo até já fo-ram a Portugal fazer uma apresenta-ção para o público angolano na diás-pora. Antes do interior, já foram ao ex-terior. O problema é que o centro daCultura angolana (tal como da Econo-mia) é Luanda. Mas, diz Costa, “é en-graçado que as pessoas mais talento-sas de Angola não são de Luanda. É en-graçado como a pessoa de Luanda sen-te a necessidade de sair de Angola. O daprovíncia que é só chegar a Luanda”.É objectivo do GOZ’AQUI estar defi-nitivamente estabelecido na socieda-de em 2017. O grupo instaurou umnoticiário satírico na Internet, deno-minado SOPASABER. Para este grupoque faz humor diferente, a incom-preensão surge do contexto africanocomposto de sociedades acríticas, emque não se pode sequer cruzar com ossapatos de outra pessoa. “As pessoasdevem saber o que é que fazemos eporque o fazemos”, define Tiago Cos-ta. “Às vezes, acham que temos umaagenda politica, porque fazemos hu-mor político, mas não temos nada aver. Cresci num ambiente de liberda-de de expressão.” Tiago Costa

Angola tem um manacial de humoristas que, só de olhar para eles, já se fica de boca aberta

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KUZUATA EXPOSTA EM ITÁLIA ATÉ 31 DE DEZEMBROINVOCAÇÃO DO QUOTIDIANO ANGOLANO

MATADI MAKOLA|“Gente da minha terra”, exposta nagaleria ELA de 17 de Novembro a 7 deDezembro, reúne as mais diversas ma-nifestações artísticas do angolano Gui-zef. As obras expostas foram criadastendencialmente para saudar mais umaniversário da independência angola-na. Mas, no que se vê do seu desenvol-vimento pictural e linguagem estética,pode-se concluir ser um resumo deuma linha de pintura que o artista ofe-rece desde a sua primeira aparição.Nesta exposição Guizef continua assuas preocupações nas definições derosto, principalmente feminino, e nojogo de contraste das cores e expres-sões humanas captadas em telas. Augusto Zeferino Guilherme ́ Guizef´,disse-nos que foi ainda em idade tenraque outras pessoas indiciavam que omenino sempre ultrapassava as expec-tativas quando decidisse desenhar. À

procura de sossego, uma boa parte dasua família emigra para o Congo Demo-crático, onde aí viu-se seduzido a fre-quentar a escola de Belas Artes daquelepaís. O resultado desta tentativa quechama de indescritível não foi mais se-não a resposta que guarda e prometenunca esquecer: “Tu não tens cara deartista. Eu reconheço um artista quan-do o vejo”, disseram-lhe os avaliadores.Convencido que era um julgamento ab-surdo, o rapaz pediu que o teste fossefeito em base aos seus desenhos. Masnão adiantou em nada, porque os repre-sentantes da instituição simplesmentecontinuaram acensurara-lo, certos deque não estavam em presença de umpotencial artista plástico. Menino tími-do, disse consigo mesmo que podiamter razão. Isso resultou na sua fuga aoscânones estabelecidos academicamen-te, sendo um artista que não passou ofi-cialmente nas escolas de arte. Conse-guiu o conhecimento geral desta disci-

plina artística por meio de muita leiturae convívio com obras e outros artistas.Espontaneamente, tudo que era arte oatraia, principalmente a forma constru-tiva das formas e ângulos. Em finais dos anos 90 regressa aopaís, e apenaspintava em convívio res-trito, para amigos e para si mesmo, semqualquer intenção de expor o seu tra-balho ao senso crítico luandense. Nosanos 2000 trava amizade com um ar-tista, conhecedor e académico das Be-las Artes, que achou a sua técnica depintura curiosíssima. A relação se es-tendeu e vários debates à volta dascorrentes estéticas foram nascendo,ajudando a amadurecer Guizef e a po-siciona-lo no contexto do mercadoluandense. É esse amigo que o convidaa expor os seus quadros, mesmo con-tra vontade de Guizef, que estava re-ceoso e ainda tímido para com o seutalento, defendendo-se dizendo que“não gostaria de chegar aonde não éesperado, nem muito menos dar socono vento”. Guizef tinha receio que osseus trabalhos não fossem objectos decriação de opinião junto dos aprecia-dores de arte, que não tivesse força su-ficiente que chamasse atenção pelapeculiaridade do seu traço artístico.A exposição na Galeria CelamarEnfim, fecha-se para uma exposi-ção. Foi recriando vários trabalhosseus e passando a pintura sobrepostaa trabalhos já feitos, uma técnica usualde mestres como Leonard Da Vince,que normalmente causava, na misturaentre o antigo e o novo, uma nova ex-pressão ao quadro. 27 de Junho de 2014, na Galeria Ce-lamar, da também artista Marcela Cos-ta, à Ilha de Luanda, acontece a pri-meira exposição, que justificou o títu-lo ́ FeedBack´, tudo porque precisavaver de volta o mesmo amor e empenhoinvestidos no processo de feitura daexposição. Foi marcante, mesmo quetenha chegado lá carregado de dívi-das, pelo custo geral de todo o traba-lho, da produção à exposição. Aindano final deste mesmo ano de 2014,no

Salão Internacional da UNAP, sai a ex-posição “O Brilho da Alma”, que veiojustificar o seu estilo e traço artísti-co, bem como os personagens e he-roínas do seu cosmo artístico. Tam-bém ficou longe de ser um sucesso devendas, talvez porque as pessoas ain-da estivessem a digerir a sua obra,que causou um certo estranhamentono alinhamento das cores, e tambémuma certa razoabilidade na concep-ção da imagem.Saída em 2015 no Memorial Agosti-nho Neto, a exposição ´KuzuataKuaI-xiYetu (vestires da nossa terra)´ apre-sentou contornos e uma mistura de co-res até então não vista na obra de Gui-zef, embora tenham, no desenho e te-mática, seguido as duas primeiras.Consagra-o enquanto artista, tanto emtermos de venda como em contacto erequisição a galeristas do estrangeiro. Kuzuata em Milão Passado alguns meses de contacto ecolaborações profícuas, em Outubrodeste ano Guizef leva ´ KuzuataKuaI-xiYetu´ a Milão, exactamente na galeriado Grand Visconti de Palace, num lu-xuoso hotel de cinco estrelas, dandoinício ao propósito de uma andançapelo mundo. As 13 obras que o artistaangolano levou foram recebidas comgrande entusiasmo, tanto que ficamexpostas até 31 de Dezembro. Houve também momentos menosbons.A abertura da exposição aconte-ceu sem a presença da comunidade an-golana e teve pouca repercussão naimprensa italiana, atraindo apenas ou-tras galerias e coleccionadores quemanifestaram o seu interesse em coo-perar com Guizef, principalmente ga-leristas especialistas em obras africa-nas. Mas, para os angolanos que mo-ram na Itália ou com destino a Itálianeste fim de ano, ali terão oportunida-de em visitar a exposição deste artistaangolano, que só fecha a 31 deste De-zembro e que já leva como propostaquase garantida a passagem numa ou-tra casa de arte italiana, prevista parainício de 2017.

Guizef junto da sua obra

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A propósito das artes plásticas angolanasBreve relance sobre a legitimação do discurso criativo durante os 41 anos de independência

Como é sobejamente sabido, a artereflecte - ou refracta?- a realidade so-cial em que o artista está inseridonas suas mais variadas manifesta-ções: a literatura, a dança, a música, ocinema e o teatro. As artes plásticasnão poderiam escapar ao jogo da re-gra desta caracterização genérica,objectivadas nas mais variadas mo-dalidades em que se escora a presen-te exposição colectiva para saudar o41º aniversário da independêncianacional, onde avulta a pintura, semprejuízo da escultura, a gravura e atecelagem. O que equivale a dizer aquadratura do “circulo vicioso” da es-pontaneidade, que desemboca, gros-so modo, no CÍRCULO VIRTUOSO dacriatividade que a produção espiri-tual dos artistas plásticos angolanos,que não deixam de estar, “in limini”,de parabéns pela perseverança e aentrega demonstradas, de corpo e al-ma, no cultivo do belo que a verda-deira arte condensa.No fundo, no fundo, os artistasplásticos aqui representados captamas agruras de um real quotidianoatroz, traduzidos no caos social e cul-tural resultante de uma crise que so-bre si de forma assaz se abate, anun-ciando o fim do ciclo da monoculturados petrodólares, para o início de umnovo ciclo mais coerente e conformea racionalidade de transformação deum novo mundo, de uma nova geo-grafia emocional como resposta davirulência que se lhe apresenta no

seu horizonte sombrio. Mas nem tudosão espinhos, no caminho escarpadoe pedregoso que tem de percorrer, péante pé, rasgando um itinerário deperspectivas e expectativas. Mais doque desesperos, desventuras e deses-peranças, o artista plástico dialogaconsigo próprio na tela e na peça es-cultórica, estabelecendo um nexo deintertexualidade, decorrente de con-textos similares que lhe são dados aviver de forma profunda e intensacom os seus “...inter pares”. O artistaplástico em presença não desarmacom o pincel ou outra ferramenta dis-ponível e “pega teso no trabalho”, co-mo diria Amílcar Cabral, apesar dosconstrangimentos e escolhos que selhe colocam na sua démarche criati-va, como que operando respostas dosestímulos pavlovianos que o seu meiocircundante induz, enquanto ser so-cial por excelência e demiurgo da cul-tura por vocação e talento.Tendo como pano de fundo a inde-pendência, a busca da identidade cul-tural e o signo da liberdade, bem co-mo da afirmação de uma dignidadeindividual e colectiva perpassa, aquie ali, na tela, em homenagem a umpercurso que o traz ocupado na legi-timação de um discurso nosso, emcontraposição aos ventos avassala-dores da modernidade que ameaçamos valores positivos da tradição emnome de uma pretensa globalização,ou aldeia global que não respeita agrelha axiológica da aldeia local, uni-

dade social imediata de afirmação deuma racionalidade clânica ou mesmoétnica que corporiza, lá longe, a ra-cionalidade estatal em formação, se-dimentado por um corpo social emreconstituição naquilo que tem demais sublime o tecido humano, é di-zer, o homem angolano, produtor eproduto de cultura, que caracteriza oseu “proprium africanum”.Dito de outro modo: a linguagemda plasticidade plasmada nesta ex-posição mais do que o talento mane-jado pelo autor individualmente con-siderado, será a expressão da identi-dade colectiva nacional, que encon-tra na angolanidade a sua expressãoplástica, linguagem gestual e corpo-ral, sons, harmonia, ritmos, tons, to-nalidades e cores, ora quentes, orafrias, na horizontal, na vertical ou natransversal, linhas transfiguradasnum traçado característico e origi-nal, que emprestam a força de um in-disfarçável e assumido enraizamentotelúrico por mais intimo ou lírico queseja a narrativa do proponente, naocorrência, o pintor, o gravurista, oescultor ou a(o) tecelã(o).Os artistas plásticos aqui repre-sentados, bem como os seus compa-nheiros de rota, esquematicamenteenquadrados em duas ou três gera-ções, são os herdeiros das mais vivase ricas tradições histórico-culturaislocais, que encontram nas artes an-golanas uma das suas formas de ex-pressão mais vibrantes, caldeadasnas suas leituras partilhadas no seutirocínio pela sociedade e pelo mun-do afora, vivências, experiências e co-nhecimentos, numa palavra, saberadquirido, impregnado no rico filãoespiritual onde vão beber – qual tin-teiro virtual!- a ousadia e mesmo a ir-reverência do seu questionamentotemático e da sua reinvenção estéticae(ou) estilística, pois como dizia o fi-lósofo, “criar não é inventar”, mas simrecriar sentimentos, aspirações e an-seios de um povo sob o signo recor-rente da liberdade.Enfim, as temáticas vertidas nasobras expostas, além de evidencia-rem a postura estética e o compro-misso social dos autores com o seupúblico, como demanda outro artistaafricano “engajado” à entrada dosec.XXI, compaginam a História deum país em franca reconstituição dasua tessitura social, simbolizada numdia especial- o 11 de Novembro- ape-sar dos acidentes de percurso de que

os nossos cultores da UNAP nãoestão alheios nem indiferentes, masatentos no seu OLHAR crítico, lúdicoe até idílico, animados de uma pers-pectiva dinâmica de reencontro comos caminhos ascendentes do futuroque brota da aurora da manha anun-ciado uma nova jornada ou do cre-púsculo, ainda que nebuloso: dois su-gestivos micro-climas feitos motivosartísticos no final das contas, que umbom fazedor da arte pega freio nodente para seguir sempre em frente,não voltando o sentido da luta impli-cado no grande desafio que tem devencer no dia a dia do seu labor ofici-nal, ciente de que caminhante faz ca-minho pintando ou esculpindo e en-saiando mais sub-géneros artísticos,que fazem a riqueza na diversidadedestas distintas propostas que ten-des ante os vossos sentidos cinestési-cos (odores, sabores, visões, incluin-do o barulho do silêncio e etc…)Portanto, que venham cada vezmais obras deste quilate no firma-mento da afirmação da nossa incon-tornável idiossincrasia, - dir-se-ia,resumidamente falando, a angolani-dade que é a expressão viva e revivifi-cada da historicidade da autênticalinguagem plástica do povo angola-no, problematizando a todo tempo, atodo gás, quiçá, a todo transe, não océu e as estrelas, mas o indigentemeio circundante- O CAOS URBANO,onde se perdeu, pelo menos aparen-temente(?) a noção do nervo centrale da desterritorialização simbólicada periferia (os-sem-tecto é um factoparadigmático, a par da nudez, da ig-norância, do medo, a fome e da sedepela água potável), sendo que, comodizia Maikoviski, “sujos mexilhõesestão agarrados ao nosso casco”, fei-tos sanguessugas da espinal medulaplantada ao nosso dorso…vertical-mente (a)levantado com a classe daARTE que não se deixa vergar sob atrave mestra da inegociável indepen-dência(cultural). Amén!Ângelo de Carvalho

NORBERTO COSTA

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A CRÍTICA E O JORNALISMOSEMEAR NOVOS VENTOS PARA COLHER MELHORES FRUTOSADRIANO DE MELO |Quando AbrahamLincoln, o 16ºpresidente dos EUA, disse: “Sótem o direito de criticar aqueleque pretende ajudar”, ele, com certeza,não se referia àcultura, mas sim à áreaque dominava, a política. Mas, hoje, es-ta frase pode ser usada como uma“masterpiece”na construção de umaideologia assente na relação de res-peito entre o criador e o público.Lincoln foi um homem além do seutempo. A sua luta pela abolição da es-cravatura e a união dos norte-ameri-canos o tornaram uma figura de refe-rência mundial, mas é o seu pensa-mento, em especial o dedicado à críti-ca, a base deste texto.Interpretar, avaliar e julgar o traba-lho artístico de outrem é um desafioao qual todos os apreciadores de artes(não importa o género) devem se pro-por assumir, em especial os jornalis-tas, como formadores de opinião, coma obrigação de dar aos seus leitoresuma perspectiva diferente do produtoconsumido, a notícia.Actualmente, a crítica ainda não sefaz sentir no país, como nos grandesperiódicos e órgãos de informação depaíses europeus ou norte-america-nos, onde, às vezes, o sucesso ou fra-casso do artista em muito depende,primeiro, da recepção positiva do seutrabalho pelo jornalista.Geralmente, a ausência de críticosespecializados, ou de uma “boa ou má”crítica, quer do público ou jornalistas,nas artes,leva a obra a ser vista comouma mera “commodity” (mercado-ria), ou melhor, um produto superfi-cial.Para o crítico e professor de filo-sofia norueguês LarsSvendsen “a críti-ca deve ser independente e trazer comclareza a descrição, a interpretação e acontextualização da obra”.Svendsen acredita que o jornalismotem um papel fundamental na avalia-ção da produção de bens de consumo eusa mesmo um termo do sociólogofrancês, Pierre Bourdieu, para reforçarque a imprensa é responsável por“criar criadores”. Porém, esclarece quea crítica é um género de cobertura jor-nalística, que não tem nada a ver com apromoção, acto feito pelas assessoriasde imprensa, cuja linguagem acabasendo reproduzida na média.O jornalista e crítico de arte brasi-leiro Jacob Klintowitz, autor de 102 li-vros sobre o assunto, deixou isso claroquando disse que “a raridade de ver-dadeira crítica impede a interlocuçãoentre arte e sociedade e dificulta acriação de uma grande arte. O que ob-servamos é a repetição mecânica deideias e princípios, e a louvação nãoespecializada, ignorante, temerosa ebajuladora com as formas aparentesda vanguarda ou da criação. A ausên-cia de pensamento crítico impede que

se estudem as formas no seu contextoestético e social. Elas passam a ser ‘na-turais’, eternas, imobilizando a socie-dade como um processo permanentede transformação. Morre a metamor-fose. Saúda-se a imobilidade”.Assim, apesar do gosto, ou sensibi-lidade de quem analisa o trabalho deum artista pesar muito na decisão des-te, os jornalistas, particularmente osligados as editorias de cultura e jor-nais especializados do género, preci-sam começar a ter um papel de maiordestaque neste processo, de forma agarantirem ao público (e ao “arquivo”da próxima geração) produtos artísti-cos de melhor qualidade.O crítico, claro, é alguém formadonuma determinada arte, com forma-ção adequada para tecer comentáriossobre um determinado trabalho. Po-rém, de uma forma mais ampla, todosfizemos crítica na vida diária, desdeos nossos lares aos locais de trabalho.Se negativa ou positiva, esta crítica éfeita sempre no sentido de melhoria,no intuito de buscar o melhor do cri-ticado, e como disse o padre e escri-tor NormanPeale, considerado o “mi-nistro dos milhões de ouvintes”, “Omal de quase todos nos é que preferi-mos ser arruinados pelo elogio a sersalvos pela crítica.”

Para o autor de “O Poder do Pensa-mento Positivo” é importante que aspessoas respeitem a crítica. “Nuncareaja emocionalmente às críticas.Analise a si mesmo para determinarse elas são justificadas. Se forem, cor-rija-se. Caso contrário, continue vi-vendo normalmente”, dizia.Nesta fase de reconstrução do país,este trabalho é um desafio a ser imple-mentado o mais rápido possível, de for-ma que os artistas tenham também aobrigação de apresentarem trabalhoscondignos. É altura de primarmos maispela qualidade ao invés de quantidade.Claro que a ideia não é “esmagar” osemergentes, mas sim obriga-los a co-meçarem a esforçar-se mais, aquandoda elaboração dos seus trabalhos.Rectidão vs ousadiaO jornalista deve se ater apenasaos factos. Esta é uma regra de ourodesta profissão, porque só mesmo odesafio de relatar a informação exac-tamente como o facto aconteceu já éuma tarefa extremamente complexae nobre. Mas esta tarefa não deve im-pedir este de aceitar novos desafios.A crítica é um desafio que todos osjornalistas ligados a área cultural, dequalquer órgão de informação ou re-

vista especializada, devem abraçar.“Porque o jornalismo é uma paixãoinsaciável que só se pode digerir e hu-manizar mediante a confrontação des-carnada com a realidade. Quem nãosofreu essa servidão que se alimentados imprevistos da vida, não pode ima-giná-la. Quem não viveu a palpitaçãosobrenatural da notícia, o orgasmo dofuro, a demolição moral do fracasso,não pode sequer conceber o que são.Ninguém que não tenha nascido paraisso e esteja disposto a viver só para is-so poderia persistir numa profissãotão incompreensível e voraz, cuja obratermina depois de cada notícia, comose fora para sempre, mas que não con-cede um instante de paz enquanto nãotorna a começar com mais ardor doque nunca no minuto seguinte”. ParaGabriel GarcíaMárquez essa é a essên-cia do jornalismo. A busca interminá-vel por conhecimento e ter o discerni-mento de mostrar os erros sempre queestes existirem.Por isso, embora, como disse o jor-nalista brasileiro Felipe Pena, “no jor-nalismo, não há fibrose. O tecido atin-gido pela calúnia não se regenera. Asferidas abertas pela difamação não ci-catrizam. A retratação nunca tem omesmo espaço das acusações” é pre-ciso um maior cuidado e interesse daclasse jornalística angolana, ligada acultura, quanto ao conteúdo dos tra-balhos apresentados, de artistas con-sagrados e estreantes.Ofacto de o “jornalismo cultural”se-ra especialização nos factos relaciona-dos à cultura local, nacional e interna-cional, em suas diversas manifesta-ções, obriga-nos a termos uma noçãodiferente e mais analítica sobre osmovimentos culturais e os seus faze-dores. Às vezes, alguns destes órgãossão limitados, devido a natureza dassuas páginas, porque ligar, ou sepa-rar, informação de análise é um exer-cício muito difícil.Actualmente, os órgãos de informa-ção nacionais têm páginas, rubricas eprogramas destinados a produção ar-tística angolana, mas a maioria ainda élimitada a divulgação dos factos, ao in-vés de análises sobre as obras propos-tas. Porém, para isso contribuem emparte a falta de interesse dos jornalis-taspor ir mais além e por outro lado oscriadores e editoras que não apresen-tam as obras, com antecedência, à es-tes profissionais, para análise. Lem-bro de ter ido assistir a apresentaçãodo último livro de Manuel Rui Montei-ro,“A Acácia e os Pássaros”, e o jornalis-ta ter perguntado ao autor sobre o quefalava o livro. A pergunta é frequente enão o deveria ser, pois o contacto doprofissional com a obra deve aconte-cer com muita antecedência e, quasesempre, as editoras pecam.O erro não se limita só à literatu-ra. Na música também acontece o

Ardina

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mesmo. As barreiras surgem, mui-tas vezes, a partir dos agentes e pro-motores, assim como dos própriosmúsicos (claro que nem todos). Umerro a ser corrigido, rapidamente. Épreciso este contacto ser muito re-gular e frequente, de forma que aspessoas saibam o que estes criado-

res têm para “vender” ao público.Relação e incertezasNo dicionário informal, “relação” éuma palavra com vários sinónimos. Umdeles é referência, o outro é relaciona-mento e também vínculo. Este é o eloque deve unir artistas, jornalistas e o

público, num “enlace” harmonioso, on-de todos respeitam o papel de cada um.É uma realidade que precisa “ganhar vi-da” o mais rápido possível no país, emespecial para aqueles que trabalhamcom as artes e os ligados a mesma.Como na maior parte das especiali-zações jornalísticas, as fontes do jorna-lismo cultural são divididas entre pro-tagonistas (artistas, produtores cultu-rais, curadores, empresários) e autori-dades (secretário de cultura, funcioná-rios públicos, directores de fundações,museus e bibliotecas). Portanto a rela-ção harmoniosa é fundamental.O texto críticodeve ser normalmentesubjectivo, mas sempre com muito fun-damento, pela informação técnica queo seu autor coloca na matéria, ao pontodo leitor ter mais dados para fazer a suaprópria avaliação.Quase sempre, o crí-tico se especializa numa determinadaarte ou estilo e procura ter um sólidaformação teórica (ou académica) parafundamentar as suas opiniões. Uma

das perguntas que muito frequente-mente tem criado “entraves” no jor-nalismo cultural é para quem deveser os jornais especializados do géne-ro? Para o público comum, que ape-nas tem interesse por informaçõesrápidas ou o especializado, “que estápor dentro do assunto”.Para muitos críticos internacionais,as páginas de cultura dos jornais de-vem ter, na maioria das vezes, textos,como reportagens ou artigos, volta-dos para uma cultura que não segregaqualquer parcela da população. “Estamos a viver aquilo que se defi-ne como a sociedade da informação edo conhecimento, na qual a informaçãoe o conhecimento têm valor. O jornalis-ta pode ser visto como um profissionalcapaz de transitar nesse universo e fa-zer com que ele se torne compreensívelpara a sociedade”, defendia o jornalistabrasileiro Adalberto Marcondes, quan-do questionado sobre o papel do jorna-lista na sociedade actual.

A semelhança de um fruto, porexemplo, o filme apresenta, num certosentido, quatro partes principais: en-voltório ou casca, membrana ou pelí-cula, polpa ou matéria e, finalmente, onúcleo (conteúdo e forma).No caso, o envoltório ou casca con-siste na infra-estrutura de produçãoconvocada e posta a serviço de suarealização, permitindo ao diretor a or-ganização e condução da narrativa,

fornecendo-lhe meios e modos paraque seja efetivada e transmitida com amaior perfeição possível.A membrana ou película (significan-do a fina pele que entremeia a casca e apolpa, mantendo-as unidas), prefigu-ra-se na competência técnica do dire-tor e demais membros da equipe.A polpa ou matéria compreende aestória, os fatos e a ação. À primeiravista, segundo o entendimento cor-

rente, seria o fator principal de qual-quer obra de ficção.No entanto, simples envoltório,apenas representa, como no símile na-tural, elemento que compõe o filme,independentemente da casca e até dapelícula, solidificando e mantendo apolpa agregada.A casca, não obstante sua função,pode estar solta e ser até extraída ouretirada que o fruto permanece unifi-cado, íntegro.Já, a precariedade da membrana oupelícula acarreta automática atrofiado núcleo.Quer isso dizer que tanto a compe-tência e a técnica quanto a ação e os fa-tos, por melhores sejam, ainda nãoconfiguram a obra ou filme, mas, suaspartes externas, com funções específi-cas e relativa importância.O que se deve considerar, segundoHegel, não é a estória, mas, o aqui de-nominado núcleo (concepção e ex-pressão), ou seja, seu sentido, signifi-cado e elaboração formal, sintetizan-do continente e conteúdo internos.O que distingue filme comercial defilme de arte é apenas sua quartaparte. As demais, por alheias ao es-pecífico artístico, não têm o condãode diferençar, qualificar ou desquali-ficar a realização, atribuindo-lhe es-sa ou aquela categoria.Em consequência, pode-se ter fil-me competente e seguramente diri-gido, tecnicamente perfeito, contan-do com entrecho repleto de peripé-cias, intrigas, ação, lances dramáti-cos ou fulminantes, hábil e coerente-mente narrados, trançados ou en-trançados, mas que não seja arte, nãoatingindo o grau, o nível e as condi-ções próprias, necessárias e indis-pensáveis a essa condição.Ou seja, seu conteúdo é vazio de sen-tido, de verdade humana e carente de

sutileza, perspicácia e tratamentosofisticado. Ao contrário, pois, da per-cepção corrente, na hipótese quatripar-tite considerada, o núcleo perfaz todo ocomplexo autoral e unitário que englo-ba desde o entendimento do mundo atéa maneira (ou forma) de conduzir o dra-ma humano enfocado e de utilizar a lin-guagem cinematográfica.Constitui, pois, concepção unitáriae ao mesmo tempo abrangente do queseja (ou deva ser entendido) como nú-cleo ou cerne de qualquer obra ficcio-nal, independentemente da arte emque se manifeste, seja literatura (queinclui o texto teatral), seja cinema.Esse entendimento do fenômenoou prática ficcional faculta sua com-preensão, análise e avaliação, classifi-cando-o ou desclassificando-o sob oponto de vista artístico.Mesmo que se não o faça de imedia-to, consciente e eficazmente (pormeio da crítica), o passar dos seres hu-manos pelo tempo encarrega-se de se-parar uns e outros ou uns dos outros,relegando ao oblívio os que não atingi-ram o status artístico, condenando-osao desaparecimento.(do livro inédito Ficção e Cinema)___

Guido Bilharinho é advogadoatuante em Uberaba/Brasil, editorda revista internacional de poesiaDimensão de 1980 a 2000 e autorde livros de Literatura (poesia, fic-ção e crítica literária), Cinema(história e crítica), História (doBrasil e regional).

AS QUATRO PARTES DO FILME

GUIDO BILHARINHO

Obra de Hildebrando de Melo

Mafalda

14 | GRAFITOS NA ALMA 5 a18 de Dezembro de 2016 | Cultura

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GUERRA DA ÁGUA À VISTA?O CONFLITO POTENCIAL ENTRE ANGOLA

E ÁFRICA DO SUL PELOS RECURSOS HÍDRICOS

Guerra da Água À Vista? O ConflitoPotencial Entre Angola e África do Sulpelos Recursos Hídricos é um livroque integra a Série Relações Interna-cionais da Editora Kotev. O tema trans-versal da obra é a questão dos recur-sos hídricos na África Austral. Como sesabe, a água tornou-se século XXI umrecurso escasso e ao mesmo tempo es-tratégico, sobre o qual pesam contra-dições e conflitos em curso ou poten-ciais. A África Austral é seguramente aregião da África onde as polémicas re-lacionadas com o acesso às águas do-ces estão mais acirradas. Grande partedos cursos d’água da região é compar-tilhada entre vários países, o que porsi só incorpora formidável gama decontradições. Porém, o potencial dedisputas se acirra quando o cenárioregional coloca frente a frente duasnações, Angola e África do Sul, que demodo claro, transparecem como Esta-

dos-Directores na África Austral. AÁfrica do Sul enfrenta a agudização deuma crise no abastecimento de águamaximizado pelas demandas da suaeconomia, a mais avançada do conti-nente. Angola por sua vez, se destacapelo crescimento acelerado, ao mes-mo tempo em que dispõe das maioresreservas hídricas regionais. Um nexoeminentemente contraditório que co-loca numa encruzilhada tanto as pos-sibilidades de conflito aberto quantoda negociação diplomática. Aspectosque Guerra da Água À Vista? O ConflitoPotencial Entre Angola e África do Sulbusca alinhavar e discutir com preci-são e informação recente e de qualida-de, obtida por acurada investigaçãopor parte do autor, o pesquisadorMaurício Waldman, durante o desen-volvimento de sua terceira pesquisade Pós Doutorado (2012-2013), reali-zada na área de Relações internacio-nais na Faculdade de Filosofia, letras eCiências Humanas da Universidade deSão Paulo (FFLCH-USP), sob supervi-são do Professor Livre Docente Fer-nando Augusto Albuquerque Mourão,uma das maiores autoridade em Áfri-ca no plano internacional. Guerra daÁgua À Vista? O Conflito Potencial En-tre Angola e África do Sul é uma obraimperdível para todos os que preten-dem aprofundar o conhecimento so-bre a política e as relações interesta-tais na África contemporânea. PROBLEMA CONJUNTURALDe problema conjuntural ou episó-dico, os recursos hídricos evoluírampara um intrincado quadro enquantoproblema estrutural. Manifestamen-te, estamos diante de contextos nos

quais não propriamente a natureza,mas antes a natureza dos sistemassociais parece estar condenando oshumanos às agruras da sede (WALD-MAN, 2013a: 2 e 2006: 184-192). Ao longo das últimas décadas, a de-predação dos reservatórios naturaisdo líquido foi de tal ordem que impli-cou na retracção dos stocks disponí-veis, maximizando disputas pelas pro-visões remanescentes. Rarefeito, o líquido foi adereçadode pungentes controvérsias, as quaistendem auferir carácter conflituosoem função de que a oferta do meionatural, desigual em si mesma, temsido exaurida pela devastação am-biental, constatação amplamente re-ferendada pela própria incisividadedo stress hídrico.Conceito pioneiramente lançadoem 1989 pela hidróloga sueca MalinFalkenmark e igualmente conheci-do como Índice de Stress hídrico ouWSI (abreviatura técnica de WaterStress Index).A partir dos anos 1980 do séculopassado, firmou-se paulatinamentea compreensão do avanço de umaaguda, crescente e generalizada es-cassez de água. Nesta senda, dantes tradicional-mente visto como recurso inesgotável,o precioso líquido terminou brindadocom a qualificação de insumo finito, co-locado diante de inquietantes ameaçasde rarefação em larga escala (BLACK etKING, 2009: 19). É interessante registar que, emplena década dos anos 1970, os im-pactos da depleção das águas docessequer estavam consignados junto àprodução científica. Para afiançar es-

sa afirmação é possível citar o relató-rio Limites do Crescimento, texto ela-borado pelo famoso Clube de Roma(MEADOWS, 1973).

Documento considerado icónicono alerta sobre o esgotamento dosrecursos naturais, mesmo leiturasuperficial evidencia que Limites doCrescimento ignorava solenementea irrupção de um quadro de carestiade água doce. Mas, note-se que a despeito das tur-bulências emprumadas pelo the ghostof dry taps - o fantasma das torneirassecas -, certo é que polémicas envol-vendo o acesso à água se perdem nanoite dos tempos. Sintomaticamente,a própria origem etimológica da pala-vra rivalidade, oriunda do latim rivus -significando rio - conspira para confir-mar tal asserção.

Maurício Waldman

DIÁLOGO INTERCULTURAL | 15Cultura | 5 a18 de Dezembro de 2016

PROVÉRBIOS10º COLÓQUIOINTERDISCIPLINAR

Este ano, o Ano Internacional pa-ra o Entendimento Global, a Asso-ciação Internacional de Paremiolo-gia/ Internacional Association ofParemiology (AIP-IAP), foi reco-nhecida pela UNESCO como organi-zação de referência para o conheci-mento do património cultural ima-

terial tendo sido criado o ClubeUnesco de Paremiologia. Foi poissob esta aura que se realizou, de 6 a13 de Novembro, o 10º ColóquioInterdisciplinar sobre Provérbios.Nesta 10ª edição participaramnoventa e nove (99) especialistasde trinta e sete (37) países vindos

de África, América, Ásia, Austrália eEuropa, que apresentaram oitentae sete (87) comunicações que sedebruçaram, este ano, sobre o estu-do científico dos provérbios.O programa científico que contoucom oitenta e sete comunicações,como já se disse, foi completado

com um adequado programa cultu-ral que incluiu, nomeadamente, umconcerto de Bruno Belthoise em ho-menagem a Manuel de Oliveira.A AIP-IAP é uma Associação se-diada em Tavira, criada em 2008 ereconhecida este ano pela UNESCO.

Page 16: PALAVRAR O FERRO - blog.lusofonias.net · angolana revista no seu avesso hilariante. de Witwatersrand, da Áfr A luta armada na Á frica A A LUTA ARMADA NA ÁFR frica do Sul, pela

Foi no quintal do farol abandonado no topo duma verde colina feita em du-nas, que a Kianga e o pangolim Mabeco se deram a conhecer, no habitualpasseio da manhã da menina Kianga, que era feito à caminho da escola.Entrou pelo edifício, que há anos tinha sido abandonado, ficou a fingir ver ba-leias e outros animais do mar, anunciando ser uma grande capitã e que estava alipara pôr ordem nas coisas, que o mundo lhe parecia estar ao avesso. Junto à ja-nela,comseus olhos redondos e vivos, pôs-se a contemplar o sol abraçando aterra.Aconteceu que apeteceu-lhe ir ao quintal, onde havia algumas árvoresde fruta e um capinzal, de onde viu distinguir-se do verde, um conjunto de es-camas dispostas em camadas em tons de castanho claro, instantes depois doispequenos olhos chamaram mais a sua atenção, sem muita demora, o desco-nhecidomexeu-se e enrolando-se num repente; primeiro houve um susto porparte da rapariga, mas depois deixou-se ficar um instante, em observação eesperava alguma outra reacção.Ao contrário do que ouvia, decidiu aproximar-se e ver de perto, tratou de des-manchar o emaranhado de capim em que se escondia o desconhecido. Deu-seconta no momento, que tratava-se dum pangolim, vinha-lhe na memória, ima-gens de vários animais sobre quais aprendera nas aulas, e agora tentava distin-gui-lo dos outros. −O professor tinha dito que se chamava. Para o espanto dela, opangolim emitiu algumas palavras −Não me faça mal, sou um amigo. Tratou dechegar mais perto e saber mais. Aos poucos o medo e receio se desfizeram.A partir daquele dia, aos poucos, tornaram-se amigos. E assim o farol, passoua ser o ponto de encontro.O que era um acaso, passou a ser frequente, ali brinca-vam e jogavam nas horas livres, contando cada um, histórias do seu mundo,osencontros eram secretos, pois segundo orientações dos mais velhos “não de-viam brincar com desconhecidos”.Assim, guardaram esse segredoà sete chaves. Havia passado mais de três meses desde o último encontro, para a inquieta-ção da Kianga.Embora a ausência do seu mais novo amigo, continuou a frequen-tar a colina e o farol, onde deliciava-se de frutos da época como massalas3e ca-nhú, também da agradável vista ao mar. A colina era um lugar de incomum beleza, para alémdo farol, também havia-dunas que chegavam a cerca de 15 m de altura, com camadas de vegetação ra-sa, com flores escarlates, que apenas ali cresciam, fazendo ser motivo de co-mentários variados. “Éum lugar estranho, melhor é que ninguém vá la”, diziamos mais velhos; facto que não era levado a sério pela criançada. Ignoravam, ecada dia, a colina se tornava mais famosa e lugar preferido para as brincadeirasde outros meninos,antes e depois das actividades escolares.A época chuvosa,apesar de curta, e de chuvas abundantes, quando estas caiam, era sinal de boaépoca para sementeira e consequentemente excelente colheita,dias de festa e

de muita alegria.E assim foi nos meses seguintes, entre o intenso sol, calor echuvas.O pangolim que vivia distante da povoação, aparecia sempre nas ma-nhãs frescas, quando ainda as nuvens não inundavam o céu limpo, em contras-te, o verde reluzente dos arbustos, da folhas das árvores que apenas ali erampossíveis avistar. Para Kianga a queda da chuva não era apenas isso, mas algomais, e relacionava com a chegada de Mabeco. Embora tudo corresse bem, e se tornassem mais próximos, o facto do Pango-lim andar ausente nos primeiros meses do ano, não a deixava tranquila, tinhaque descobrir o que acontecia.Algumas pessoas do povoado assim como os pa-rentes da Kianga, ficaram a saber que havia um animal que rondava por ali, noque alertaram à que todos evitassem andar por caminhos desconhecidos, estesacreditavam que os pangolins estavam ligados a maus agoiros e uma ligaçãocom eles era como condenar o destino ao fracasso, atraindo azar para a comuni-dade, contestado por Kianga, pois Mabeco nunca tinha causado algum mal,des-de que se conheceram, conviviam com tranquilidade e harmonia, por insistên-cia dos pais, prometeu fazer algo…Estava uma manhã fresca, sem raios de sol, por cima de toda folha ainda via-se as gotas de água da chuva do dia anterior.Mabeco decidiu pela primeira vez,sair do quintal para visitar a vila, houve um encontro ao acaso, pelo estreitocaminho, ladeado por massaleiras que levava Kianga à escola. Pararam o pas-so, tendo-se cumprimentado e com desânimo atirou ao seu novo amigo, −olha, não devemos brincar sempre, sabes que muitos não concordam com is-so. – Não há o que temer minha amiga−ripostou Mabeco, por acaso fizemos al-go incorreto? Magoei-te? A nossa amizade é nossa amizade, e ponto final, des-culpa, devo discordar contigo.−Bom, melhor esquecer o que nos entristece, vamos sim aproveitar o dia; vêscomo está bonito o mar?− sim está mesmo, gosto muito deste lugar−ripostou.Eu não gostaria de sair daqui para um outro lugar, e digo mais. Vou convencer omeu pai que não fazes mal algum e quem sabe até te deixar viver aqui sempre−ao que concordou Mabeco, fazendo vibrar o seu corpo em escamas, trançadascom tamanha mestria da natureza.Mabeco não mais tocou no assunto, apesar dos comentários que andavam naboca de todos, embora assim estes mantinham uma firme amizade. Mas logoque a época chuvosa caminhava para o fim, e os sinais apareciam, os camposque de verde se enchiam, começaram por ficar secos, os rios que andavam atransbordar meses antes, agora via-se as margens em bancos de areia. Por ou-tro lado a vista do mar mudava de cara.E mantiveram a sua amizade, tendoconservado o lugar no quintal do farol e a sua visita sempre a coincidir com overão e a época chuvosa.

MAURO DE BRITO

SEGREDOS PORBAIXO DA CHUVA

16 | BARRA DO KWANZA 5 a18 de Dezembro de 2016 | Cultura