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Palavras de Revolução e Guerra: Discursos da imprensa paulista em 1932 LUCAS PALMA MISTRELLO * Resumo: Buscando entender o voluntariado e o esforços de guerra empreendidos na Revolução Constitucionalista de 1932, em São Paulo, o artigo tenta estabelecer como as principais bandeiras daquele movimento normalmente descritas como reconstitucionalização do país e autonomia estadual e seus discursos poderiam ressoar com a população, observando o debate político da época. Tendo como fontes principais os periódicos que circularam em São Paulo durante a ocorrência da guerra civil, entre 9 de julho e 2 de outubro daquele ano. Palavras Chave: Revolução Constitucionalista; Era Vargas; Revolução de 1930 **** Na noite do dia 25 de fevereiro de 1932, três caminhões com militares do quartel de São Cristóvão estacionaram na Rua Alcindo Guanabara, no centro da capital federal, próxima à Câmara Municipal, e assaltaram a sede do jornal Diário Carioca. Relatos veiculados na imprensa paulista contavam sobre tiros de metralhadoras e fuzis, depredação das oficinas, agressão a funcionários e tentativa de incendiar o edifício (Folha da Manhã, 26/02/1932). A ação foi registrada no diário do presidente: Neste período, o governo atravessa uma fase aguda de boatos e inquietação pública. Um grupo de oficiais do Exército e Marinha, levando praças armadas do 1º Regimento de Cavalaria, ataca, à noite, o Diário Carioca, empastela o jornal e fere alguns operários. O Ministro da Guerra declara que não pode conter os oficias, dispostos a atacar outros jornais se continuarem a campanha de desprestígio ao governo. [...] A polícia nada faz para evitar, o espírito público está inquieto, há * Mestre em História pela Universidade Federal de São Paulo.

Palavras de Revolução e Guerra: Discursos da imprensa ... · Antes de apelarmos para a última instância das armas, sofremos, pacientamos, advertimos, renunciamos. Nenhuma solução

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Palavras de Revolução e Guerra: Discursos da imprensa paulista em 1932

LUCAS PALMA MISTRELLO*

Resumo:

Buscando entender o voluntariado e o esforços de guerra empreendidos na Revolução

Constitucionalista de 1932, em São Paulo, o artigo tenta estabelecer como as principais

bandeiras daquele movimento – normalmente descritas como reconstitucionalização do país e

autonomia estadual – e seus discursos poderiam ressoar com a população, observando o debate

político da época. Tendo como fontes principais os periódicos que circularam em São Paulo

durante a ocorrência da guerra civil, entre 9 de julho e 2 de outubro daquele ano.

Palavras Chave: Revolução Constitucionalista; Era Vargas; Revolução de 1930

****

Na noite do dia 25 de fevereiro de 1932, três caminhões com militares do quartel de São

Cristóvão estacionaram na Rua Alcindo Guanabara, no centro da capital federal, próxima à

Câmara Municipal, e assaltaram a sede do jornal Diário Carioca. Relatos veiculados na

imprensa paulista contavam sobre tiros de metralhadoras e fuzis, depredação das oficinas,

agressão a funcionários e tentativa de incendiar o edifício (Folha da Manhã, 26/02/1932). A

ação foi registrada no diário do presidente:

Neste período, o governo atravessa uma fase aguda de boatos e inquietação pública.

Um grupo de oficiais do Exército e Marinha, levando praças armadas do 1º

Regimento de Cavalaria, ataca, à noite, o Diário Carioca, empastela o jornal e fere

alguns operários. O Ministro da Guerra declara que não pode conter os oficias,

dispostos a atacar outros jornais se continuarem a campanha de desprestígio ao

governo. [...] A polícia nada faz para evitar, o espírito público está inquieto, há

* Mestre em História pela Universidade Federal de São Paulo.

divergências no Ministério. Os jornais desta capital e das de São Paulo, Rio Grande

do Sul e outras suspenderam por 24 horas a publicação em sinal de protesto. [...]

Tenho que me decidir entre as forças militares que apoiam o governo e um jornalismo

dissolvente, apoiado pelos políticos e instigado mesmo por estes contra o governo.

Estou numa encruzilhada em que urge uma decisão. (VARGAS, 1995: 92)

Um ferrenho apoiador da Revolução de 1930 – a redação do periódico (a mesma ser

atacada naquela noite) chegou a receber um encontro entre os conspiradores da Aliança Liberal

naquele ano, contando com presenças como a do próprio Vargas – o Diário Carioca rompeu

poucos meses depois com o Governo Provisório e passou a ser veículo de fortes críticas

direcionadas ao Catete. (LUCA, 2011: 168)

O contexto dos primeiros anos da década de 30 foi dominado por uma disputa intensa

de projetos para o Brasil, fruto da heterogeneidade do movimento de outubro, que tinha como

marco a reconstitucionalização do país; pois dela seriam construídos os alicerces do novo

regime, assim como estabeleceria a duração do Governo Provisório. Algumas alas desejavam

o retorno mais rápido o possível ao regime constitucional e democrático para colocar os projetos

do país, supostamente, em discussão pública; enquanto outras, ligadas ao tenentes e aliados

civis, que possuíam maior força no governo, acreditavam que o poder oligárquico ainda estava

enraizado demais nas estruturas sociais do país e qualquer eleição no curto prazo estaria ainda

sob domínio dos inimigos derrotados na vidada da década. (PANDOLFI, 2015: 17) O Diário

Carioca foi uma das principais plataformas do primeiro grupo.

Além de incisivas críticas ao governo e aos setores políticos identificados com os

tenentes – que rendeu episódios de apreensão de edições do jornal por figuras tenentistas em

postos de autoridade – aquele periódico tentou patrocinar a criação de um “Clube 24 de

Fevereiro”, uma ironia com o Clube 3 de Outubro, principal organização política dos tenentes

e aliados civis, e anunciava a organização de manifestações no centro do Rio de Janeiro pela

reconstitucionalização do país. A data de 24 de fevereiro foi a de promulgação do inédito

Código Eleitoral brasileiro, prevendo justiça eleitoral, sufrágio universal, voto feminino e

secreto. Considerado um avanço do sentido do retorno ao regime legal, pois haviam sido

marcadas também eleições para uma Constituinte. “Coincidentemente”, o dia anterior ao ataque

à redação do jornal.

O empastelamento causou extrema comoção de alcance nacional; o evento foi

interpretado não apenas como uma retaliação à oposição ao Governo Provisório, mas ao

pretenso ideal democrático como um todo. Um recado de que forças políticas e militares não

permitiriam o reingresso à constitucionalidade tão cedo. O evento foi rapidamente associado ao

Clube 3 de Outubro – desde as primeiras notícias já se sabia que havia sido empreendido por

oficiais militares – e, eventualmente, ao próprio prefeito do Rio de Janeiro, Pedro Ernesto, que

também era presidente da associação tenentista. Em outra anotação do diário de Vargas:

Recebi Pedro Ernesto, a quem mandei chamar para ouvir sua impressão e a do

público, através dele, sobre o sucesso do empastelamento do Diário Carioca. Achei-

o insensível e parece até convencido de que praticou um ato louvável. Recebi depois

a visita de Maurício Cardoso, que pretende retirar-se para o Rio Grande, sentindo a

impossibilidade de levar adiante, no momento, o programa constitucional.

(VARGAS, 1995: 93)

Sendo organizado pelas próprias autoridades da capital, Vargas encontrou dificuldade

para organizar qualquer tipo de investigação ou punição sobre o episódio. O que fora entendido

pela oposição como, na melhor das hipóteses, má vontade do presidente, e, na pior, compactuar

com o posicionamento dos agressores. A escalada da crise continuou nos dias seguintes até

culminar com a renúncia de Maurício Cardoso, citado pelo presidente acima, então Ministro da

Justiça, que passou desacreditar nas intenções legalistas do governo – sendo seguido por outros

políticos importantes que eram aliados de Vargas no momento, como o Ministro do Trabalho,

que renunciaram coletivamente em apoio a Cardoso, todos gaúchos, e representes das elites

daquele estado no governo federal. Todos entenderam que, tanto o empastelamento do Diário

Carioca, quanto a não punição de nenhum dos envolvidos, sinalizava a direção política do

Governo Provisório. O Estado de S. Paulo ponderou após as renúncias:

A crise gravíssima que atravessa o governo da República, acentuada pela demissão

de vários auxiliares, dos auxiliares que representavam a corrente liberal e

constitucionalista, enche-nos de apreensões. Reputamos uma desgraça a marcha do

governo para o absolutismo, e essa crise, ao menos na sua face externa, nas suas

aparências mais acessíveis ao olhar, denota uma inflexão para aquele rumo. Parece

que, no seio do governo, já se decidiu contra o espírito constitucionalista a luta que

armara entre esse espírito e o ditatorial. (O Estado de S. Paulo, 05/03/1932)

O episódio do assalto ao periódico da capital nos é bastante caro ao revelar a

centralidade que a imprensa possuía na discussão política daquele contexto. Causou a renúncia

de dois ministros e outros políticos influentes (que iriam cerrar fileiras com a Revolução

Constitucionalista meses depois), acabando por ressoar pelo país como um marco decisivo de

orientação política do Governo Provisório e da Revolução de 1930. A reposta dos setores

agrupados no Clube 3 de Outubro, aliás, foi a realização de uma caravana até Petrópolis, onde

Vargas estava em reclusão, com mais de duzentas pessoas, entregar uma moção contrária à

realização da Constituinte1 e demonstração de total apoio ao governo (VARGAS, 1995: 94).

A imprensa era entendida como um veículo, como linha de frente, dos grupos políticos

que disputavam o poder e os projetos da época; eram intimamente associados às correntes e

agremiações, percebidos como representantes de primeira importância delas. Não apenas de

forma, ativa, ao veicular manifestos e opiniões, mas passiva: ataques aos órgãos jornalísticos

significavam ataques às próprias lideranças e ideários que eles representavam. Meses depois,

em 23 de maio de 1932, nos protestos que ocasionaram a morte dos jovens Martins, Miragaia,

Dráuzio e Camargo na Praça da República, em São Paulo, um dos alvos de fúria dos

manifestantes, ao lado da sede do Partido Popular Paulista (de onde partiram os tiros que os

vitimaram) controlado por membros do Clube 3 de Outubro, fora o jornal A Razão, contrário à

reconstitucionalização do país, empastelado naquela noite.

Uma trajetória como a do Diário Carioca, de apoiador da Aliança Liberal e do

movimento de outubro de 1930, para opositor do Governo Provisório foi bastante comum com

a imprensa de São Paulo. Em graus diferentes, com mais paciência ou mais hesitação, com o

governo derrubado e com o governo empossado, às vésperas da Revolução de 1932, a narrativa

dos periódicos para seu passado recente havia se estabelecido desta forma: como simpáticos à

Revolução de 1930, mas críticos aos rumos tomados pelo governo. Seja o caso das Folhas de

S. Paulo, que cobriram com entusiasmo os eventos daquele mês de outubro e teve postura mais

conciliatória nos anos seguintes (CAPELATO, MOTA, 1981: 81-96), ou de O Estado de S.

Paulo, que manteve bastante austeridade naquele episódio, mas já realizava críticas e

ponderações contra o regime anterior (CAPELATO, 1989).

1 De forma irônica ou tragicômica, Vargas descreve o episódio como: “Ato de solidariedade com a ditadura”.

O jornal da família Mesquita cedeu profissionais e equipamentos para a edição de O

Jornal das Trincheiras, órgão de imprensa oficial do governo revolucionário de São Paulo

durante a guerra civil de 1932. Circulou em 13 edições, entre 14 de agosto e 25 de setembro,

publicado duas vezes por semana e distribuído gratuitamente pelo estado, nas cidades e fronts

– e eventualmente até mesmo nos fronts inimigos através de “bombardeios”. Constituindo

importante fonte para entendermos os discursos daquele movimento. Em sua primeira edição,

havia um longo texto atribuído ao General Bertoldo Klinger, comandante maior das Forças

Constitucionalistas:

Antes de apelarmos para a última instância das armas, sofremos, pacientamos,

advertimos, renunciamos. Nenhuma solução airosa houvéramos repelido. Dez dias

após o triunfo da Revolução de 1930 [posse de Vargas], já chamava eu a atenção do

governo provisório para percalços a que estava, nestas palavras:

“Aproveito para deixar bem claro que vai longe do meu pensamento [...] de que só

discordo de ditadura militar, julgo que também uma ditadura civil é inaceitável, e

creio que comigo pensa toda a nação.

Nada teria adiantando a presente revolução nacional: ditadura civil era o que

tínhamos até aqui, apenas como mera satisfação aos imanentes de dignidade

nacional, mascaradas por uma organização de poderes nominais em torno do poder

realmente único do presidente da República”. (Jornal das Trincheiras; 14/08/1932)

Para além da capacidade mediúnica do general, que na posse de Vargas já o denunciava

como futuro ditador, o que nos chama a atenção é que a fala não desmerece o movimento de

1930. Continua o chamando pelo mesmo título que o de 1932, como Revolução. E, mais

importante, descreve uma noção de (falta de) ruptura com o regime anterior; a República Velha

se tratava de uma ditadura civil mascarada por rituais democráticos de fachada, e a presente

Revolução deveria tratar de romper com essa forma política. A questão é que para os

constitucionalistas, a quebra com a política anterior não havia sido, e nem seria alcançada, com

o Governo Provisório, que funcionava, segundo eles, como uma ditadura devido à ausência da

carta legal para o Brasil.

Nesse sentido, um traço característico do discurso da revolta de 1932 era não se

apresentar como contrarrevolucionário, pelo contrário, seria ainda mais revolucionário que a de

1930. Desta forma, podendo atingir todos aqueles que, além de estarem descontentes com o

Governo Provisório, já vinham descontentes com a República Velha – o que não era incomum,

tamanha a postura antipopular daquele regime e o consenso da grande imprensa paulista, em

maior ou menor grau, de que ele precisava ser superado, como já apontava O Estado de S. Paulo

(CAPELATO, PRADO, 1980: 34-40). Ao mesmo tempo, os movimentos ainda mais anteriores,

como os de 1922 e 1924 continuavam a ser resgatados e colocados ao lado de 1930 e 1932 –

que continuavam a ser chamados de “revoluções” (Jornal das Trincheiras, 14/08/1932), mesmo

quando criticados (A Platéa, 15/08/1932). Insatisfeito os membros tenentistas que compunham

o governo Vargas, o editorial de A Platéa ironiza a situação:

Interessante, a população de S. Paulo, governista em 1924, mostra-se, oito anos

depois perfeitamente integradas nas ideias que fizeram o movimento de então. Ao

passo que os maiorais desse movimento surgem, a 5 de julho de 1932, perfeitamente

satisfeitos nos andrajos da maroteira política para cujo extermínio se fez a revolução

de há oito anos. (A Platéa, 05/07/1932)

Da mesma maneira que se criticava o Governo Provisório tentando preservar aspectos

da Revolução de 1930, despejavam descontentamentos sobre os participantes das revoltas de

década de 20 ao mesmo tempo que desejava-se manter uma eventual simpatia que a população

pudesse ter com o tenentes e, especialmente, seu símbolo de contestação a um governo

autoritário – além de se entenderem como herdeiros, mais esclarecidos, daquelas rebeliões.

Sobre o movimento de 1924, Ilka Cohen define que, apesar da participação mais restringida aos

militares, “permite perceber com clareza os mecanismos pelos quais a política interfere na vida

de cada indivíduo” e que “obriga-os a toma partido, definir posições, defender interesses.”

(COHEN, 2007: 106). Nesse sentido, os discursos de 1932, procuram transferir aquele cenário

de contestação para alguns anos depois, na construção de uma narrativa que demonstre uma

grande revolução nacional em curso que vêm a culminar e consolidar-se na Revolução

Constitucionalista.

O ideal de constitucionalidade era a primeira bandeira desfraldada naqueles discursos;

a maioria dos textos do Jornal das Trincheiras têm por objetivo engrandecer “a restauração da

lei. O pálio que abrigará a nação inteira. [...] freio do arbítrio, nome tutelar dos direitos e

franquias, condição descrime entre civilização e barbárie” (Jornal das Trincheiras, 14/08/32).

Eram vários e longos tratados explicando e enaltecendo o mais nobre dos ideais, que viria desde

os tempos mais remotos:

A concepção do direito é sobre-humana, no espírito humano. Não há civilização, não

há cultura, não há povo que possa existir sem o predomínio consensual das leis, e

muito menos da respectiva lei fundamental, conjunto de sínteses jurídicas que é a

Constituição. (Jornal das Trincheiras, 04/09/1932).

A bandeira constitucional da Revolução de 32 é uma de suas características mais

criticadas, entendida como um desespero das elites de São Paulo para se reconduzirem à

liderança política nacional, pois assim era possível “trazerem os adversários para lutar em um

campo previamente conhecido: o político partidário.” (CODATO, 2010: 295). Também poderia

ser enxergada como uma forma das elites políticas de São Paulo, como resposta a crescente

participação popular nos eventos políticos daqueles anos, “reforçar[em] seus esquemas de

dominação” (CAPELATO, 1982: 85), engessando-os nas estruturas legais.

Esta preocupação legal não era nova, durante o calor da Revolução de 1930, A Platéa

publicava uma suposta entrevista com o recém-empossado presidente:

[tema] O respeito à Constituição e às Leis: [resposta de Vargas] Em geral, quando se

emprega a palavra “revolução” tem-se a impressão de estar em presença de uma

generalização, subversão de espírito e tendências políticas. O caso do Brasil não

confirma essa impressão, o que o povo brasileiro queria era que respeitasse a

constituição, as leis. [...]

O povo brasileiro é um dos povos mais inteligentes do mundo e pode também ser

contada sua elite, como das mais cultas. Não seria possível que um país, como o meu,

continuasse a tolerar uma política artificial, sem nenhuma ressonância popular,

egoística e visivelmente abaixo das necessidades de seu povo. Assim sendo, o que

houve no Brasil, foi antes uma verdadeira contra-revolução, orientada no sentido de

fazer observadas as leis e respeitada a vontade popular. (A Platéa: 06/11/1930)

A imprensa de São Paulo já debatia longamente no final dos anos 20 a necessidade de

reformas legais para o capenga regime republicano, em tom de alerta, especialmente, para evitar

convulsões sociais mais agudas e consolidar que o Brasil necessitava de apenas de

transformações políticas e não sociais; na esperança que a Revolução de 1930 funcionasse como

“um anti-modelo das revoluções sociais. [...] A Revolução vira bloquear as possibilidades de

ruptura.” Buscando criar uma “tranquilidade que advinha da certeza de que a revolução popular

fora impedida pela revolução conservadora” (CAPELATO, 1982: 171). A fala atribuída a

Vargas2 acima também nos é cara no sentido de que é possível reforçar nossa ideia anterior; a

noção de grande revolução nacional corrente suprimiu completamente o uso do termo

“contrarrevolução” para descrever o ideal legalizante; anos depois não houve problemas em

chamar o Movimento Constitucionalista de Revolução.

Ainda que as intenções dos políticos paulistas sobre os ideais constitucionalistas estejam

mais ou menos claras à historiografia, e demonstram certo caráter manipulatório, a importância

do regime legal para o país encontrava forte eco com a população. Como demonstrou o trabalho

de Jorge Ferreira, Trabalhadores do Brasil. Nele, o historiador estudou correspondências

endereçadas ao próprio Vargas, por meio da Secretaria da Presidência, e percebeu que a maioria

das reivindicações feitas ao chefe de Estado possuía um intenso clamor por justiça,

especialmente aqueles escritas no período Pré-Estado Novo pois tinham como comparação a

“prática política do regime anterior [...] definida como efetiva dominação política e social,

materializada em arbitrariedades e protecionismo políticos e pessoais.” Isso porque, naquele

período, “as perseguições políticas, listas negras, pistolões, leis sem garantia de cumprimento

e apadrinhamento não escapavam aos olhos da população”. (FERREIRA, 2001: 49). Em suas

correspondências, segue o autor, os trabalhadores usavam de referência a legislação vigente. A

legitimação de seus reclames buscava indicar como eles se adequavam às leis pertinentes à

situação descrita. Ele ainda conclui que:

[...] tinha um parâmetro para avaliar os períodos anterior e posterior a 1930: a

justiça. Para os trabalhadores, o regime anterior a Vargas foi marcado

fundamentalmente pela inexistência da justiça. A revolução [de 1930], por sua vez,

trouxe no seu próprio acontecer, a possibilidade sua efetivação. (FERREIRA, 2001:

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Os paulistas também fizeram coro com a esperança nacional de efetivação de justiça:

Peço venia vir, novamente a presença de V. Excia. como pequeno servidor da

República Nova, pedindo o amparo e a valiosa interferência na minha justa

pretensão, que é a minha promoção, ao cargo de Porteiro, da Delegacia Fiscal de

São Paulo. Quando servente na mesma Delegacia era perseguido, marquei passos

sem nunca ter sido promovido, pois tinha meu obscuro nome na Lista do ex-Partido

2 Não foram encontradas reproduções daquelas falas em outros periódicos consultados. Na edição do dia seguinte de O Estado de S. Paulo é mencionado que Vargas havia concedido uma grande entrevista à imprensa, mas o veiculado por ele são declarações diferentes das publicadas por A Platéa. De qualquer forma, nos interessa a publicação delas por parte dos jornais.

Republicano Paulista, por pertencer e cooperar como fiscal do Partido Democrático,

em diversos pleitos eleitorais. (APUD: FERREIRA, 2001: 49)

Os redatores de Jornal das Trincheiras também buscavam tocar neste ponto do debate

político da época:

[...] faltou à revolução vitória [de 1930] um programa sério, positivo, prático,

composto de soluções de soluções honestas aos problemas nacionais da atualidade.

[...]

Não bastava reformar toda a legislação vigente, no verdadeiro delírio que vimos

contemplando, formado de abortos legislativos e importações jurídicas de

contrabando, pois essa floração extemporânea, desambientada de início, só pode

multiplicar-se em corrigendas e resultar em leis inaplicadas.

Que não se pense, na continuidade de tais ou quais erros administrativos. Que não se

recorde, sequer, a repulsa para sempre extintas, entre as quais o profissionalismo

político, o coronelismo regionalista, os governos de igrejinhas partidárias... (Jornal

das Trincheiras, 18/09/1932).

O ataque dos discursos era frontal ao caráter entendido como ditatorial do Governo

Provisório, pela falta de Constituição e órgãos legislativos, e, conforme apontamos

anteriormente, propagava-se que acabariam por favorecer o cultivo das práticas políticas como

as do regime anterior. O adjetivo “ditatorial” era frequentemente utilizado para descrever os

adversários da guerra, martelando ideia na discussão da época, seja em editorais e textos

opinativos, ou também em notícias corriqueiras das batalhas, como este exemplo:

Travou-se hoje, na região de Grama, violento combate entre as tropas

constitucionalistas e as ditatoriais. As 16 horas, mais ou menos, o 2º B.E. das forças

constitucionalistas, sob o comando do 1º tenente Gumercindo da Fonseca,

coadjuvado pelo batalhão Elpidio Silveira, desfechou um brilhante assalto contra as

posições ditatoriais, acabando por toma-las a arma branca. Nesse ataque as tropas

ditatoriais tiveram 10 mortos e deixaram em nosso poder muitos prisioneiros, fuzis-

metralhadoras, fuzis mauser e grande cópia de munição.

Um avião da ditadura voou sobre Cascavel lançando bombas que, felizmente, não

produziram efeito algum. (O Estado de S. Paulo; 16/09/1932) [grifos nossos]

Vargas, como ditador, era o principal alvo dos discursos constitucionalistas, chamado

de “influência nefasta” (Jornal das Trincheiras, 18/08/1932) ou de “calamitosa” e “catastrófica

influência” (A Platéa: 23/08/1932), assim como era alvo de charges (Imagem 1) e tiras.

Entretanto, ainda além dele, na escala de inimigos, encontravam-se os tenentes e políticos

associados ao Clube 3 de Outubro: haviam relatos de que o interventor de Minas Gerais,

Olegário Maciel – que antes da eclosão da guerra civil, era dado como aliado do movimento –

estaria refém de políticos tenentistas dentro do palácio do governo (A Folha da Noite,

23/07/1932) ou, mais impactante ainda, de que o presidente estaria disposto a renunciar para

selar a paz do conflito, mas teria sido impedido “pelos tenentes”, que teriam o ameaçado de

morte caso saísse do governo (O Estado de S. Paulo, 18/08/1932).

(Imagem 1: Vargas na mão de um bandeirante)

Na imagem, segurando Vargas, está o bandeirante, que é o grande símbolo da luta

constitucionalista e da luta política de São Paulo até então, figura carimbada daqueles dias.

Normalmente associado a outra bandeira importante daquele movimento, a autonomia estadual.

Entretanto apesar de a elite paulista ter sido abertamente contra as políticas de centralização do

Governo Vargas pois:

Levada [s] por seus interesses políticos e econômicos mais imediatistas, sem uma

visão a longo prazo, com certa afoiteza [...] endeusar Vargas; tudo esperando de sua

atuação na chefia do Governo Provisório, sem perceber que isto significa a subida

ao poder de um novo grupo, com interesses mais nacionais. (BORGES, 1989: 188)

A questão da autonomia estadual pode ter mais de uma resposta, e mais de um eco na

população de São Paulo. Bem menos protagonista nos periódicos que a questão constitucional,

não haviam grandes textos explicando as origens ou a importância da autonomia estadual, muito

diferente dos verdadeiros tratados elaborados sobre a “causa da lei”. Esta expressão,

“autonomia estadual”, consolidada na historiografia como reinvindicação paulista, raramente

foi utilizada, e nos periódicos estudados não ocorreu com relevância. Normalmente o conceito

de autonomia vem como “autonomia dos estados” (A Folha da Noite, 11/07/32) ou “autonomia

de S. Paulo”, mas também “autonomia política” ou “autonomia da pátria” (A Folha da Manhã,

30/07, 12/07 e 06/08/1932). Mesmo para o próprio Vargas, se pronunciando ao povo paulista,

na tentativa de dissuadi-lo da luta, quando descreve a reinvindicação de São Paulo, diz: “a

autonomia do Estado, o direito de governar-se por seus próprios filhos” (Correio da Manhã,

30/09/1932). O presidente, na mesma oportunidade, alega que já cumpriu essa demanda a

nomear Pedro de Toledo interventor – o que foi feito na mesma semana da crise desencadeada

pelo empastelamento do Diário Carioca – e aceitar o gabinete e comando militar impostos nas

manifestações de 23 de maio. Todavia, isso não fora aceito como solução à demanda por

autonomia.

Isso talvez se deva porque a noção de autonomia não necessariamente estivesse isolada

da reinvindicação anterior de constitucionalidade. Um outro manifesto veiculado no movimento

dizia, “se combate no Brasil porque à nação se nega o direito de governar-se por si mesma”

(APUD: PONTES, 2004: 161), em referência à inconstitucionalidade do país; a expressão

“governar-se” é repetida. Um outro pilar da mitologia bandeirante, que age como espécie de

“mito fundador” do estado de São Paulo, residiria também em sua autonomia, seu arrojo e

dinamismo, durante o período colonial, expandindo fronteiras e descobrindo riqueza (LOVE,

2006: 66). Fórmula também utilizada, paradoxalmente, pelo Estado Novo em extensa obra do

escritor Cassiano Ricardo, ao realizar propaganda de desenvolvimento do interior do país, ou

Marcha para o Oeste (APUD: LENHARO, 1986: 61).

E se o bandeirante passou a ser usado posteriormente pelo inimigo do passado, durante

a Revolução Constitucionalista, os adversários políticos também usavam de um léxico e

argumentação muito similar no que tange ao regionalismo e à autonomia estadual. Em

manifestos circulados no estado, durante a guerra civil, que desejavam dissuadir a população

de participar tanto do voluntariado quanto dos esforços de guerra, havia conotação de classe,

mas também partia de ótica local:

“A questão social é uma questão de polícia”. Estes os termos textuais com que

Washington Luiz, Júlio Prestes e seus sequazes sumariavam o mais doloroso e grave

dentre os problemas sócio-políticos da atualidade em todo o mundo. Sempre, aliás, se

mostraram todos eles mais ferozes na prática que no pensamento, em tal matéria, com

suas brutais repressões policiais às mais pacíficas veleidades grevísticas, pois fãs ou

nefãs respondiam a pata de cavalo e tiro ou cerceavam a fio de sabre os surtos

reinvindicações do infeliz proletariado paulista. (Jornal de S. Paulo, 29/09/1932.)

Terminando com um clamor ao “Proletariado de São Paulo” o manifesto privilegia o

direcionamento aos habitantes do estado, não apenas no gentílico, mas na referência aos

políticos, Washington Luiz e Júlio Prestes foram representantes políticos do estado

initerruptamente desde 1914, ocupando prefeituras (intendências), senado, câmaras,

presidência estadual e nacional. Desta forma, explorando um drama muito particular da

população paulista. E em outros estados, o vocabulário para arregimentar forças para combater

contra São Paulo nos é bastante similar:

O Ceará, que no regime decaído viveu espoliado, que nunca teve o direito de ser

ouvido e cujos clamores nos seus momentos mais difíceis, salvo excepcionalmente,

jamais encontraram eco, não pode vacilar ante a investida de explorares de todos os

tempos. Foi com a vitória da Revolução [de 1930] que o Ceará conheceu a liberdade;

com Ela alcançou o direito de ser ouvido; somente após o triunfo dos ideais

revolucionários, foi olhado com interesse a que por todos os títulos faz jus. […] Como,

pois admitimos que o nosso Estado, que com tanto brilho auxiliou a queda dos

exploradores do Brasil, assista, indiferente, à impatriótica tentativa de reconquista do

poder por parte de nossos maiores inimigos […] cearenses, pela dignidade do Ceará,

pelo Brasil unido e forte: Às armas! (APUD: LOPES, 2009: 27)

O discurso acima foi realizado pelo interventor federal no Ceará com o objetivo e de

convencer os cearenses a contribuir com a luta do Governo Provisório contra os

Constitucionalistas; com uma cirúrgica troca de nomes, a fala facilmente porque ser atribuída

a algum político paulista. Isso nos revela que não necessariamente falas exaltando o estado,

seus valores, ou mesmo sua preponderância na união federal, correspondem à autonomia

estadual como reforço de federalismo, neste exemplo, está defendendo centralização política –

como também Cassiano Ricardo o fez com a figura do bandeirante no Estado Novo3.

Os sertanistas já povoavam a discussão política paulista há muito tempo, mas um

exemplo nos é caro na propaganda política do Partido Democrático nas eleições legislativas de

1928, que se tornou bastante célebre a denunciar o voto de cabresto e as fraudes eleitorais da

República Velha. Um dos cartazes era o seguinte:

(Imagem 2: Propaganda eleitoral do PD em 1928)

Na imagem 2, o bandeirante, gigante, aparece empunhando numa mão o “voto secreto”

e em outra o Partido Democrático em forma de espada, ameaçando os pigmeus representando

as fraudes eleitorais – eleitor de cabresto, eleitor estrangeiro e o fósforo eleitoral (eleitores que

votavam mais de uma vez). O ideal sufragista já circulava com força na imprensa paulista

naquele momento, inclusive como remédio para evitar uma possível revolta social, mas também

diminuir o poder das oligarquias na máquina eleitoral (CAPELATO, PRADO, 1980: 30) Neste

sentido, a mitologia da autonomia bandeirante se expressa na autonomia eleitoral; os

significados estão mesclados. Numa curiosa referência, posteriormente, uma foto (Imagem 3)

3 Por exemplo: “[O Estado Novo é] Bandeirante no apelo às origens brasileiras; na defesa de nossas fronteiras espirituais contra quaisquer ideologias exóticas e dissolventes da nacionalidade; no espírito unitário, um tanto anti-federalista; na soma de autoridade conferida ao chefe nacional”. In: RICARDO, Cassiano: O Estado Novo e seu sentido bandeirante. APUD: LENHARO, idem.

flagrou que a campanha pela legalidade do PCB, cassado em 1947, usou da expressão

“autonomia para S. Paulo”.

(Imagem 3: pichações pelo PCB em 1947)

Ficando mais claro, assim, como se acoplaram tão intimamente as duas das principais

bandeiras da Revolução Constitucionalista, a ponto de sustentar a principal guerra civil do

Brasil no século XX. As duas estavam mescladas e compartilhavam significados, que por sua

vez, possuíam uma polissemia, uma pluralidade de significados. Se por uma ótica os interesses

das elites paulistas seriam atendidos com o retorno mais rápido do país ao regime legal e com

o reforço do federalismo – e o retorno delas no poder nacional; por outra a população também

poderia identificar naqueles discursos oportunidades de impor também suas demandas.

Mergulhados numa sequência de movimentos políticos que se prolongavam desde 1922,

os leitores daqueles periódicos ressoavam a ideia de uma grande Revolução Nacional em

andamento, muito apresentada durante o movimento Constitucionalista. Desta forma, se viram

na oportunidade de participarem do processo político, por mais que tenham sido levados

entender que suas demandas poderiam ser compatíveis com as veiculadas na imprensa e talvez

não as fossem. O clamor por um sistema político mais abrangente, mais popular, mais aberto e

efetivo era muito forte – e significava muito devido a atmosfera de autoritarismo e descaso que

caracterizou a República Velha. Assim como o discurso de que o regime constitucional seria a

redenção de todo esse sentimento foi forte e significativo o suficiente para mobilizar milhares

de pessoas dispostas a pegarem em fuzis e morrerem por uma Constituição.

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