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Palavras e imagens na pregação do Brasil colonial Dra. Marina Massimi Universidade de São Paulo A pregação no Brasil colonial: fontes e circunstâncias A pregação, muito freqüente no Brasil colonial e amplamente valorizada pela população, assumiu uma função importantíssima de transmissão cultural de con- ceitos, práticas e crenças da tradição clássica, medieval e renascentista ocidental, visando a mudança dos hábitos e da mentalidade dos indivíduos e dos grupos so- ciais pela força da palavra. A confiança no poder da palavra enquanto instrumento de persuasão e modificação dos comportamentos, baseava-se no conhecimento da arte retórica e de suas influências no dinamismo psíquico, proporcionados pela psicologia filosófica aristotélico-tomista, mas sem dúvida foi reforçada também pela importância assumida pela palavra e pelo discurso na tradição cultural dos índios brasileiros. Desde o século XVI, notícias e descrições acerca das atividades de pregação são freqüentes em relatos e cartas de viajantes e missionários. Uma das informações mais antigas a respeito é fornecida por uma narrativa de 1593 do padre visitador da Companhia de Jesus, o português Fernão Cardim (1548-1625): curiosamente, porém, refere-se não à pregação dos missionários e sim às atividades oratórias dos próprios índios em ocorrência da visita pastoral dos padres missioná- rios 1 . O relato destaca as peculiaridades da retórica indígena e frisa a grande pro- pensão dos nativos para a prática da palavra, inclusive evidenciando que a prega- ção dos “principais” indígenas foi necessária para criar a confiança de suas tribos na palavra pregada pelos jesuítas 2 . Podemos entrever neste e nos demais documen- 1 Cardim, F. Tratado da Terra e Gente do Brasil. Edição moderna organizada por Garcia, R. São Paulo-Belo Horizonte: Editora da Universidade de São Paulo e Editora Itatiaia, Coleção Reconquista do Brasil, n. 13, 1980 (Original: 1593). 2 Vários documentos atestam este fato, por exemplo, a carta enviada por José de Anchieta à Laínez, de São Vicente, no dia 8 de janeiro de 1565. Em: Anchieta, J, Cartas, framentos históricos e Sermões, Cartas Jesuíticas, n. 3, Belo Horizonte, Editora da Universidade de São Paulo/ Itatiaia, Coleção reconquista do Brasil, 2 série, vós. 149, 1988, pp. 133-134.

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Palavras e imagens na pregação do Brasil colonial

Dra. Marina Massimi Universidade de São Paulo

A pregação no Brasil colonial: fontes e circunstâncias

A pregação, muito freqüente no Brasil colonial e amplamente valorizada pela população, assumiu uma função importantíssima de transmissão cultural de con-ceitos, práticas e crenças da tradição clássica, medieval e renascentista ocidental, visando a mudança dos hábitos e da mentalidade dos indivíduos e dos grupos so-ciais pela força da palavra. A confiança no poder da palavra enquanto instrumento de persuasão e modificação dos comportamentos, baseava-se no conhecimento da arte retórica e de suas influências no dinamismo psíquico, proporcionados pela psicologia filosófica aristotélico-tomista, mas sem dúvida foi reforçada também pela importância assumida pela palavra e pelo discurso na tradição cultural dos índios brasileiros. Desde o século XVI, notícias e descrições acerca das atividades de pregação são freqüentes em relatos e cartas de viajantes e missionários. Uma das informações mais antigas a respeito é fornecida por uma narrativa de 1593 do padre visitador da Companhia de Jesus, o português Fernão Cardim (1548-1625): curiosamente, porém, refere-se não à pregação dos missionários e sim às atividades oratórias dos próprios índios em ocorrência da visita pastoral dos padres missioná-rios1. O relato destaca as peculiaridades da retórica indígena e frisa a grande pro-pensão dos nativos para a prática da palavra, inclusive evidenciando que a prega-ção dos “principais” indígenas foi necessária para criar a confiança de suas tribos na palavra pregada pelos jesuítas2. Podemos entrever neste e nos demais documen-

1 Cardim, F. Tratado da Terra e Gente do Brasil. Edição moderna organizada por Garcia, R. São Paulo-Belo Horizonte: Editora da Universidade de São Paulo e Editora Itatiaia, Coleção Reconquista do Brasil, n. 13, 1980 (Original: 1593). 2 Vários documentos atestam este fato, por exemplo, a carta enviada por José de Anchieta à Laínez, de São Vicente, no dia 8 de janeiro de 1565. Em: Anchieta, J, Cartas, framentos históricos e Sermões, Cartas Jesuíticas, n. 3, Belo Horizonte, Editora da Universidade de São Paulo/ Itatiaia, Coleção reconquista do Brasil, 2 série, vós. 149, 1988, pp. 133-134.

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tos análogos a utilização que os jesuítas fazem do preceito retórico ciceroniano e inaciano da ‘acomodação’ da prática retórica às circunstâncias sociais e culturais dos destinatários.

Através de pesquisas documentais iniciadas no ano de 2000, junto aos acervos de cidades históricas do Brasil, buscamos levantar e reproduzir documentos de oratória sagrada, especificamente sermões pregados no Brasil do século XVI ao fim do XVIII e posteriormente transcritos e impressos. Tais documentos são fontes preciosas para a reconstrução da história da cultura da época colonial, ainda mais importantes pelo seu teor de recursos elaborados visando a transmissão oral dos conhecimentos e a persua-são dos ouvintes. A extensão e relevância destas fontes no conjunto da produção cul-tural no Brasil da Idade Moderna é atestada pela Bibliografia Brasileira do período co-lonial (1969) de Rubens Borba de Morais3: nesta, a grande maioria das obras listadas é composta por sermões ou sermonários, de autores brasileiros. Fomos movido a empre-ender a investigação aqui relatada pela consulta deste texto, onde assinala-se a impor-tância e a urgência de um trabalho de coleta, listagem e catalogação desses documen-tos, indispensável para conhecer a extensão do fenômeno da pregação e para realizar investigações acerca de cada autor. Levantamos peças oratórias de cinqüenta e oito pregadores atuantes na época no Brasil, pertencentes a diversas Ordem religiosas (Companhia de Jesus, Ordem de Nossa Senhora do Carmo, Carmelitas Calçados, 5 Ordem de Frades Menores de São Francisco, Capuchinhos, Ordem dos Pregadores, Ordem de São Bento, Ordem dos Frades de Santo Agostinho) e cônegos regulares.

Os sermões eram pregados somente nas circunstâncias definidas pelos decretos tridentinos e sancionadas no Brasil pelas Primeiras Constituições do Arcebispado da Bahia de 1707. Na edição4 de 1720, procura-se estabelecer alguns limites, no que diz respeito à demanda do sermão no âmbito das celebrações litúrgicas das exé-quias, restringindo a prática apenas ao caso de morte de homens ilustres como reis, governadores, papas e bispos. Legitima-se também o uso do sermões nas cerimô-nias de agradecimento, desagravo, nos tempos litúrgicos da Quaresma, do Adven-to, na Semana Santa e nas Festa de Santos Padroeiros e de Nossa Senhora. O artigo 417 especificamente afirma que “sob pena de peccado mortal”, os pregadores de-vem exortar e persuadir os fiéis por meio de sermões, em alguma ocorrências reli-giosas especiais, a saber: o primeiro, quarto e último domingo de Quaresma, as festas da Ascensão de Cristo, de Pentecostes, da Assunção e Nascimento da Virgem Maria e nos domingos do mês de outubro.5 As Constituições estabelecem normas não apenas no que diz respeito às modalidades da pregação mas também aos seus conteúdos: o pregador deve deter-se na admoestação aos ouvintes no que diz res-peito aos quatro “Novíssimos Do Homem”, assim definidos no artigo 571 das mes-

3 Morais, R.B. Bibliografia Brasileira do período colonial. São Paulo: Instituto Estudos Brasi-leiros - Editora Universidade de São Paulo. 1969.4 Das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia feitas e ordenadas pelo Ilustríssimo e Reverendíssimo Senhor D. Sebastião Monteyro Da Vide, Arcebispo do dito Arcebispado e do Concelho de Sua Majestade, em o Sínodo Diocesano que o dito Senhor celebrou em 12 de junho de 1707. Coimbra, Real Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1720.5 Idem, p. 174-175.

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mas: “O primeiro é Morte. O segundo, Juízo. O terceiro, Inferno. O quarto, Paraí-so”6. Para “exortar e persuadir”, será necessário que as palavras do sermão atingiam as três “potências da alma”: memória, entendimento e vontade7, pela via dos “sen-tidos corporais”8. Além do mais, as Constituições estabelecem a necessidade de avaliar o preparo dos pregadores, diante dos freqüentes abusos registrados, visando centralizar o processo e atribuindo ao bispo local a função de realizar esses exames para concessão aos interessados das licenças para a pregação (em forma de docu-mento escrito).

Nosso corpo documental constitui-se portanto de sermões pregados em várias ci-dades pequenas e grandes do Brasil do século XVI ao século XVIII, impressos e preser-vados em diversos acervos e localidade do País, material documentário este, pratica-mente desconhecido e riquíssimo.

O poder da palavra como meios de transmissão cultural de idéias e práticas inerentes ao humano viver

O objetivo de nosso estudo, além do levantamento das fontes, é direcionado se-gundo um recorte específico: estuda-se o processo de transmissão de conceitos teóri-cos e cuidados práticos referentes à visa psicossomática individual e social. Com efeito, o percurso que propomos na análise assume como ponto de partida a apreensão do sermão como meio privilegiado de transmissão cultural e como gênero específico da literatura sagrada, enxertado na história da cultura escrita e de sua edição, na Idade Moderna. Nesta perspectiva, integram a visão de mundo transmitida pelo sermão ela-borações conceituais acerca dos temas da pessoa e do psiquismo humano, que, ineren-tes à formação cultural dos pregadores (cujas matrizes remetem a autores como Aristó-teles, Platão, Seneca, Cícero, Agostinho, Tomás), são transmitidos aos ouvintes segundo caminhos pedagógicos apropriados, pelo estabelecimento de relações peculiares entre as circunstâncias, os tempos e as doutrinas ensinadas. Pois, em obediência aos ritmos litúrgicos, cada tema deveria ser abordado segundo uma apropriada ordem de tempo e de espaço. O efeito visado da pregação é a ‘salvação’, tópico cristão por excelência entendido como conceito global de saúde, segundo a tradição da Medicina da Alma, a saber: saúde do corpo animado e espiritual do indivíduo e saúde do corpo político e social. Nesta perspectiva, a saúde é concebida como qualidade da vida pessoal, sendo o objetivo da saúde o cuidado para com a pessoa na sua integrida-de. A insistência acerca do cuidado de si mesmo, assim concebido, é originária da filosofia socrática e herdada posteriormente pelo estoicismo e pelas filosofias cris-

6 Idem, p. 227. 7 “As potências d’alma são tres. (‘Tractado Jardim espiritual’, 5 e 8). A primeira he a Memoria. A segunda, o entendimento. A terceira a Vontade.” (Constituições. 1720, Artículo n. 568, p. 227).8 No artigo n. 570 das Constituições, são definidos os “sentidos corporais”: “Os sentidos cor-porais são cinco. O primeiro é o ver. O segundo, ouvir. O terceiro cheirar. O quarto, gostar. O quinto, apalpar” (p.227).

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tãs9, sendo reconhecido como objeto da competência específicas inicialmente de duas áreas de conhecimento, a filosofia e a medicina; e posteriormente ao advento do cristianismo, também de uma terceira área de competência, a teologia. Se, por um lado, o interesse indagador acerca da totalidade do objeto era próprio do mé-todo filosófico, por outro lado, na tradição clássica e medieval, o médico era aque-le que conhecia o universo como um todo: a música, a astrologia, a meteorologia, as relações entre os deuses e os homens. Aplicando este enfoque global à visão do ser humano, evidenciava-se que cuidar dele implicava em considerar todas as di-mensões de sua existência, segundo o ideal socrático. Aristóteles, nesta mesma perspectiva, identificava a saúde ou salvação do homem com a realização da feli-cidade, sendo que “a felicidade é uma certa atividade da alma conforme à excelên-cia perfeita”10, que se alcança pela virtude da prudência. Esta baseia-se no reco-nhecimento e na escolha do “justo-meio”, princípio que a ética aristótelica compartilha com a medicina hipocrática. A virtude, pois, é o justo- meio entre os vícios (defeito ou excesso), sendo que seu aprendizado se alcança-se através da prática. A definição de pessoa explicitada por Tomás de Aquino, retomando Boe-tius, que como vimos, implicara a consideração de que “esta alma, esta carne e estes ossos pertencem à razão deste homem”11, acarreta, no plano terapêutico, a importância do cuidado com o princípio individual, com cada indivíduo. A preser-vação e o restabelecimento da saúde, enfim a cura, implicam também na existên-cia de um agente que cure e acolha a pessoa, ou seja pressupõem um relaciona-mento terapêutico, um lugar terapêutico.

No Brasil, onde a maioria da população é iletrada, o recurso à palavra oral, como veículo transmissor de idéias e como meio “terapêutico”, é prioritário. Além do mais, este recurso fora amplamente valorizado em sua conotação de cura, no âmbito da tradição cultural indígena, pois, desde o século XVI, nos relatos e cartas dos viajantes e missionários, ressalta a função taumatúrgica atribuída à palavra, pelos nativos.

Apesar de diversificados e estratificados serem os destinatários, a pretensão do pregador é de, através de sua palavra, reduzi-los a Um – na medida em que o modelo seguido é o do Sacramento Eucarístico, em que o Verbo se faz carne, criando o Corpo místico na história. A palavra – entendida em suas dimensões doutrinária, persuasiva, evocativa e revelativa, é, portanto, o verdadeiro pharmacon, em poder do homem, para que aprenda a bem viver e a bem morrer.

Por outro lado, na Idade Moderna, a exercício da arte retórica constituiu-se como lugar de experimentação das potencialidades da palavra, sendo este proces-so um pressuposto indispensável para o uso da mesma com função terapêutica. Pois, naquela época, “diante dos efeitos das dúvidas e da fragmentação do saber, são enfatizadas não tanto as coisas a serem comunicadas, quanto as maneiras de

9 Gilson E. A filosofia na Idade Média. Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fon-tes. 1995 (edição original: 1986).10 Aristóteles, Ética a Nicômacos, 1, 13, 1102a, Introdução e tradução italiana de Claudio Mazzarelli. Milano: Rusconi, p.82, trad. nossa. 11 Tomás de Aquino. Suma Teológica. São Paulo: Editora Loyola, 2001, I, Q.29, Art.2, p. 527.

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torna-las persuasivas”12. A palavra eloqüente não apenas veicula a coisa, mas in-duz também comportamentos diante dela, associando a razão à verdade e à mora-lidade e chamando em causa a liberdade como condição de tal associação.

A eficácia da retórica fundamenta-se em vários fatores: dentre estes, muito impor-tante é o conhecimento dos efeitos da palavra pregada no dinamismo psíquico dos ouvintes, conhecimento este ao qual os tratados da arte elaborados na Idade Moderna, dedicam grande interesse. Os fundamentos da oratória sagrada pós tridentina encon-tram-se na tradição da oratória clássica de Aristóteles, Cícero e Seneca e na tradição do gênero específico iniciada por Agostinho no De doctrina christiana, apoiados também na Patrística e no mais recente Humanismo. A arte retórica – segundo estes tratados - estrutura-se em cinco partes: inventio, dispositio, elocutio, memória, actio13.

A elocutio assume grande importância como o que confere cor, e em geral dimen-são sensorial, à linguagem, no sentido de propiciar a inteligibilidade e a intencionali-dade da palavra, através da valorização da componente sensorial do significante. Com efeito, grande importância é atribuída à esfera do sensível, do corporal, e do preconcei-tual, ou seja da faculdade imaginativa, como lugar interior no qual razão e afetividade se unem. Neste projeto retórico espelha-se assim a unidade da pessoa irredutível numa única dimensão: a palavra é análoga à alma, e a imagem ao corpo do discurso. Na verdade, a antropologia filosófica aristotélica unitária, contrária ao dualismo entre for-ma e substância, comportava uma psicologia atenta a descrever e reconhecer as múlti-plas interações entre o intelecto e a paixão, entre a racionalidade e a afetividade. A confiança na eficácia da palavra derivava da antropologia e da teoria do conhecimen-to de Tomás de Aquino, segundo a qual “Nihil est in intellectu quod prius non fuerit in sensu”, ou seja o homem só pode conhecer a partir dos dados sensíveis, recebidos pelos sentidos externos. Este percepto, por sua vez, é processado pelos sentidos inter-nos (fantasia, potência cogitativa, memória, senso comum) como fantasma. A potência cogitativa é ratio particularis, uma espécie de continuação do espírito na sensibilidade, pois manifesta nesta, o universal. Assim, mesmo que ela pertença ao âmbito do pré-racional, apresenta-se já orientada para o todo, de modo que a sensibilidade é ela também plasmada pelo espírito. Na continuidade entre sensibilidade e intelecto, a potência cogitativa é o meio onde o espírito e a sensibilidade unem-se, para formar um único conhecimento humano. Pois o pensamento - enquanto permanece num corpo não glorioso -, necessita sempre voltar ao sustento do sensível e do fantástico para en-tender. A palavra necessita sempre de um veículo sensível: a imagem: a retórica enfa-tiza a função de sinal que a imagem tem, utilizando-se de processos analógicos e imaginativos. A palavra encarnada na elocução, penetra os ânimos e atinge o plano moral, tornando-se assim ética. Desse modo, enxertando-se na tradição cristã, a retóri-ca pode ser pensada numa perspectiva humanista, unida à sabedoria civil e moral. A palavra eloqüente não apenas veicula a coisa, mas mobiliza afetos e sugere também

12 Battistini A.A, Il Barocco. Cultura, miti, immagini. Roma: Salerno Editrice, 2000. Pp. 40-41, trad. nossa. 13 Zanlonghi, G. Teatri di formazione. Arte, parola e immagine nella scena gesuitica del Sei-Settecento a Milano. Milano: Vita e Pensiero, 2002.

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comportamentos diante dela, associando a razão à verdade e à moralidade, chamando em causa a liberdade como condição de tal associação. De fato, em virtude da unidade alma-corpo, a esfera pré-racional dos apetites e dos afetos interfere profundamente, seja no conhecimento, seja no livre arbítrio. A vontade por sua vez pode agir sobre os apetites, para orientá-los e discipliná-los, tratando-os como “cives” da alma e não tanto como servos, sendo submetidos “politicamente” e não de maneira “despótica”. Atuan-do sobre os sentidos internos, a palavra eloqüente suscita o interesse da imaginação. Ao tornar bela a própria verdade, através do aprazível, estimula o apetite e solicita a adesão. Portanto, move “politice regendo, non cogendo”. Assim, a retórica através da mobilização e do governo dos afetos, estimula a adesão aos preceitos propostos.

Outra parte muito enfatizada na arte retórica da Idade Moderna é o uso da memória como acervo de recursos para a elaboração do discurso: trata-se de fixar, no pensamento, lugares imaginários onde colocar aquilo que deve ser lembrado, de modo que a ordem dos lugares guarde a ordem das coisas, a partir da ordem das imagens em seu acervo. Estabelece-se assim uma correspondência entre coisa, lu-gar e imagem. A noção de ordem faz com que a memória não seja entendida ape-nas como mero armazém passivo, mas seja reconhecida como faculdade ativa, dotada de função ordenadora, agindo assim em sintonia com a intencionalidade da mente humana. As relações entre memória e imaginação são concebidas com base na doutrina de Agostinho e valendo-se da tradição retórica medieval desenvolvida especialmente no âmbito da pregação popular14.

Por fim, a actio: segundo Quintiliano e Cícero, voz e gesto são importantes canais de comunicação. À voz é reconhecida a capacidade de movere. Tal relação entre elo-quência e comportamento funda-se no pressuposto de uma continuidade entre a inte-rioridade e os gestos exteriores, numa antropologia que, como vimos, pressupõe uma unidade entre a alma e o corpo, pela qual a educação de um envolve também a outra15, sendo possível assim a teatralização da interioridade. A localização fisiológica dos apetites no coração assinala, seja a submissão do corpóreo ao espiritual, seja a possibi-lidade do processo inverso, no sentido de que a imaginação recebe os impulsos senso-riais e submete-os à avaliação da razão, de modo que o aperfeiçoamento moral reflete-se novamente sobre o sensível. A importância da corporeidade na definição da ontologia do homem implica o reconhecimento da função das paixões, enquanto fon-tes de vitalidade e de energia psíquica. A esfera do corpóreo é elevada, na perspectiva de uma filosofia religiosa do corpo humano - considerado imago do corpo de Cristo que foi Verbo divino encarnado. As freqüentes metáforas corpóreas utilizadas na esfera da linguagem, atestam este fundamento16.

14 Bolzoni, L. La rete delle immagini. Predicazione in volgare dalle origini a Bernardino da Siena. Torino: Einaudi, 2002. 15 Um exemplo disto é a pregação de Paulo Segneri: Segneri, P., Quaresimale, in: , in Rai-mondi, E., Trattatisti e narratori del Seicento, in: La Letteratura Italiana, volume 36 , Mila-no-Napoli, Ricciardi, 1965, pp-656-690. Tesauro, R., Il giudizio, 1625, in Raimondi, E., Trattatisti e narratori del seicento, in: La Letteratura Italiana, volume 36 , Milano-Napoli, Ricciardi, 1965, pp- 10-18.16 Zanlonghi, 2002.

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Trata-se, portanto, de um projeto retórico unitário, sustentado por uma “aten-ção finíssima à psicologia”17.

Cabe, portanto, abordar, nesta ótica, também a função da palavra enquanto transmissora de conhecimentos e evocativa de afetos, na perspectiva do saber retó-rico da época.

Pregadores: médicos das almas e dos corpos da pessoa e da sociedade

Nesta perspectiva, importa estudar a difusão deste gênero, no Brasil da época colonial, a partir do lugar próprios dos atores, destinatários, circunstâncias e tempos da pregação, levando em conta a relevância crescente assumida pelo papel social do pregador, enquanto ‘médico das almas’, a partir sobretudo da segunda metade do século XVII. Evidentemente, existem elementos de continuidade e descontinuidade quanto à concepção e ao exercício da oratória sagrada, inerentes ao período estuda-do: entre o século XVI e o XVII, entre o século XVII e o XVIII. Há um caminho de formação, necessário para adquirir as competências necessárias ao orador sagrado: especialmente Retórica e Teatro. Além disto, as qualidades consideradas essenciais ao pregador são: o talento (definido com base em atributos quais o engenho, o juízo, a prudência) e a santidade, entendida como correspondência da palavra à experiên-cia de quem prega. Pois a pregação devia ser ato exemplar coincidente com as obras: o discurso num certo sentido deve identifica-se com a biografia.

Se “o sermão é uma ação que descobre e movimenta verbalmente os sinais divinos ocultos na ação do mundo”18, o pregador deve reunir em si um leque de competências múltiplas, destinadas ao cuidado e à cura, atuantes de modo unitá-rio, por serem sempre atentas à unidade do sujeito portador de saúde e da exigên-cia de cuidado, de modo a abranger as dimensões do somático e do mental, da saúde física e da saúde mental. Não lida apenas com almas, mas também com corpos, entendidos no plano individual, social e cósmico. O que explica a dupla função que o modelo exemplar da oratória sagrada luso-brasileira, padre Antônio Vieira, atribui ao pregador.

Por um lado, no Sermão da Sexagésima pregado em 1655, na Capela Real, após regressar da missão em São Luís do Maranhão, Vieira define o pregador como um “médico das almas”, pois o efeito do sermão não deve ser o deleite dos ouvin-tes, mas a cura deles:

17 Zanlonghi, 2002, p. 220. 18 Pecora, A O teatro do sacramento. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo-Editora Unicamp, 1994, p. 171.

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A pregação que frutifica, a pregação que aproveita, não é aquela que dá gos-to ao ouvinte: é aquela que lhe dá pena. Quando o ouvinte a cada palavra do pregador treme; quando cada palavra do pregador é um torcedor para o co-ração do ouvinte; quando o ouvinte vai do sermão para cada confuso e atô-nito, sem saber parte de si, então é a pregação qual convém, então se pode esperar que faça fruto19.

Por outro lado, em sermão de 1669, proferido diante da Capela Real de Lisboa, na terceira quarta-feira da Quaresma, Vieira apresenta o pregador como o verdadeiro médico das chagas do corpo espiritual e também do corpo social e político:

E quem não houvesse até agora no púlpito, quem tomasse por assunto a con-solação desta queixa, o alívio desta melancolia, o antídoto deste veneno, e a cura desta enfermidade? Muitos dos enfermos bem haviam mister um hospi-tal. Mas à obrigação desta cadeira (que é de medicina das almas) só lhe toca disputar a doença, e receitar o remédio. E se este for provado, e pouco custo-so, será fácil de aplicar20.

Em um sermão pregado na Terceira Quarta Feira de Quaresma de 1669, na Capela Real, Antônio Vieira estabelece uma analogia entre as crises do Estado, entendido como corpo político e social, e as patologias do corpo humano. Outra analogia entre a condição da vida política e o estado de saúde do corpo é colocada por Vieira no Sermão da Visitação de Nossa Senhora de 1640. Assinalando que a “origem” e a “causa original das doenças do Brasil” são o roubo, a cobiça, os inte-resses de ganhos e conveniências particulares, que impedem o respeito da justiça e determinam a perdição do Estado, o jesuíta exclama: “Perde-se o Brasil, senhor, porque alguns ministros de Sua Majestade não vêm cá buscar nosso bem, vêm cá buscar nossos bens”21. A terapia por ele recomendada então é moldada em analo-gia com as terapias de medicina do corpo:

Assim, como a medicina, diz Filo Hebreu, não só atende a purgar os humores nocivos, senão a alentar e alimentar o sujeito debilitado: assim a um exercito e republica não lhe basta aquela parte da justiça, que com o vigor do castigo a alimpa dos vícios, como de perniciosos humores, senão que é também neces-sária a outra parte, que com prêmios proporcionados ao merecimento esforce, sustente e anime a esperança dos homens22.

19 Vieira, A. Sermões. Organizados por Alcir Pecora. São Paulo: Editora Hedra. 2001, vol. p. 51.20 Vieira, ed. 2001, p. 101. 21 Vieira, 1993, vol. III, p. 1230. 22 Idem, p. 1222.

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É neste sentido então, que a palavra do pregador é concebida como o “farmaco” eficaz e definitivo para o bem dos corpos individuais animados pela alma racional bem como dos corpos sociais animados pelo vida do espírito de Deus – que ao mesmo tempo cria a comunidade eclesial (o corpo místico) e a comunidade política (a Res-pública: corpo do Rei e corpo do povo).

Persuasão e apropriação da palavra ouvida pelos destinatários

A pregação deve ser considerada como uma relação dinâmica de intercâmbio cultural entre pregadores e destinatários, assumindo as características que podem ser definidas, conforme uma expressão de R. Chartier, de uma “prática partilhada que atravessa os horizontes sociais”23– prática de encontro entre a cultura popular e a letra-da. Tal prática passa por diversos níveis de apropriação, que assinalam a intervenção da “invenção criadora no próprio cerne dos processos de recepção”24. As possibilida-des dos mesmos bens culturais, textos e idéias recebidos, serem submetidos a interpre-tações e empregos diversos, dependem da modalidade em que estes são recebidos pela comunidade dos ouvintes em seu conjunto ou pelos grupos diversificados que a com-põem. Pois, deve-se levar em conta que o ordenamento do corpo social na época considerada, obedece a vários princípios, fundamentados em diversas relações de pertença – o que implica uma atenção toda especial aos destinatários e a locais e circunstâncias de ocorrência da pregação. As modalidades de construir o sermão e de realizar a pregação consideram a existência de diversas pertenças dos ouvintes, sendo que tal consideração orienta cada pregador na escolha entre dois diferentes tipos de pregação: a oração erudita, destinada aos ouvintes letrados e a pregação popular, direcionada para ouvintes analfabetas, ou de contextos sócio-culturais muito diferentes. Já que os sermões associam palavra, escrita e gestos, a prática da pregação implica também uma imbricação entre formas derivadas de vários gêne-ros: formas orais e gestuais (utilizadas sobretudo no âmbito da pregação popular) e formas escritas (manuscritas e impressas).

As peças impressas constituem-se em textos, cujo objetivo não é tanto o de codi-ficar um discurso escrito quanto de estarem disponíveis como modelos e inspiração para futuros usos no campo da oralidade: de qualquer modo, seja como for, visam produzir, na prática, comportamentos ou condutas tidos por legítimos, úteis, “edifican-tes”. Com efeito, a finalidade principal de um sermão é a de persuadir os ouvintes. Este persuadir pode ser entendido de várias maneiras: adotando parâmetros um tanto ana-crônicos e pressentistas, poder-se-ia observar que a pregação pretenda incorporar, nos indivíduos, atitudes, crenças e gestos considerados convenientes – objetivo este reali-zado através de apelos intensamente emotivos e teatrais, mais do que pela convicção

23 Chartier, R. A História Cultural entre práticas e representações, Lisboa, Difel, 1990, p. 134.24 Iidem, p. 136.

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racional. A tese historiográfica de que a oratória sagrada popular poderia ser interpre-tada apenas em termos de uma prática de domesticação das populações, concebidas como receptores passivos, foi colocada já no fim da Idade Moderna por um crescente número de cronistas, eclesiásticos e intelectuais, influenciados pelo Iluminismo. Esta visão encontra ainda hoje respaldo na tese de alguns eminentes historiadores da cultu-ra como o já citado Chartier e Maravall25. Todavia, outros historiadores especialistas na área da oratória sagrada medieval e moderna, tais como Majorana26 e Châtellier27, afirmam não ser este o significado do persuadir vivenciado pelo pregador: por exem-plo, o desejo de provocar a comoção não seria a única finalidade das encenação pie-dosa realizada tendo o objetivo de teatralizar a prática oratória. Ao invés, pretendia-se tocar a inteligência, de modo a atingir a vontade, conforme o percurso da gnoseologia aristotélico-tomista. Exigia-se, portanto, a coerência intelectual do discurso e uma or-dem a ser seguida, seja na fala, seja nos gestos. Pois o objetivo era, através do visível e do sensorial, chegar à compreensão intelectual, num percurso que alcançara o espírito, passando pela sensibilidade anímica. Se, conforme afirma Châtellier, o vasto movi-mento das missões no século XVIII, foi “suscitado simultaneamente pela atividade apostólica dos religiosos e pelo desejo ardente das multidões que a acolheram, nela participaram, e com ela cooperaram”, devemos admitir que o referido movimento “transformou-se porventura no século XVIII e em certas regiões, na forma privilegiada escolhida pelas populações para viverem a sua religião”. Pois, “à medida que a institui-ção eclesial se consolidava, aí se descobria um espaço de liberdade para o qual o indi-víduo isoladamente considerado era solicitado, tinha uma decisão a tomar, e uma ta-refa a desempenhar”.(1995, p. 106). A valorização das expressões corporais do afeto suscitado pelas palavras, implicava a correspondência da experiência do ouvinte, aos conteúdos evocados pela palavra. Seguindo o mesmo rumo, Majorana (1996) insiste acerca do fato de que a pregação foi uma prática que acarretou também um grande esforço de adaptação pelos missionários e pregadores, tendo o objetivo de induzir um processo interativo. Com efeito, era preciso criar as condições para que os ouvintes desenvolvessem a disponibilidade de colocar o conteúdo ouvido no centro da própria experiência, não apenas meditando-o mas também, imitando-o, de modo que a eles era solicitado um papel ativo no processo de conversão. Evidentemente, este consenso não era óbvio, nem automático, e encontrava resistências. As dificuldades e reprova-ções sofridas, porém, solicitavam o pregador a dinamizar sua atividade retórica, o uso da palavra sendo assim acompanhado pelos gestos e por toda uma teatralização do comportamento. A assim chamada acomodatio às circunstâncias do público, à qual brevemente nós nos referimos no início deste texto, era algo muito importante no trabalho do pregador, implicando uma verdadeira e constante experimentação. Desse modo, segundo Majorana, na ação teatralizada da pregação, através da ação

25 Maravall, J.M., A cultura do barroco, 1975, tradução brasileira: São Paulo, EDUSP,1997.26 Majorana, B., Elementi drammatici mella predicazione missionaria. Osservazioni su un caso gesuitico tra XVII e XVIII secolo, in: Martina G., Dovere, U., La predicazione in Italia dopo il Concilio di Trento, Atti del X Convegno di Studio dell’Associazione Italiana dei Professori di Storia della Chiesa, Napoli, 6 a 9 di settembre 1994, Roma, Devoniane, 1996, pp. 127-152.27 Châtellier, L. A religião dos pobres. As fontes do cristianismo moderno século XVI-XIX. Lisboa, Estampa, 1995.

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com imagens agentes (por exemplo, uma estátua de Cristo, ou de um santo), o con-teúdo destas não era evocado apenas verbalmente, mas tornava-se inclusive figura animada e participe: personagem. É neste contexto que pode-se entender melhor o emprego difuso na pregação de um recurso importante da oratória: as imagens lingüísticas e as metáforas.

Palavras e imagens

A utilização das imagens na pregação (muta praedicatio) pertence à longa tradição da Igreja. O recurso ao olhar para confirmar a verdade divina reconhecida pelo intelec-to, está na origem de algumas práticas de piedade, como as Quarenta Horas dos fran-ciscanos: nestas, o pregador tinha a tarefa de guiar a meditação dos fieis com sermões aptos para suscitar a impressão de “ver’ a paixão de Cristo; assim ele transmitira a ba-gagem de imagens ricas de intensa carga emotiva para suscitar afetos nos ouvintes, vi-sando a eficácia persuasiva. Sabe-se também que certos pregadores costumavam na Sexta feira santa comover o auditório não somente com palavras mas também com a representação e a ostensão de objetos quais os instrumentos da Paixão, sobretudo a cruz, até chegar a bater com o martelo os cravos, para aumentar o pathos dos ouvintes. Desse modo, a palavra do pregador devia suscitar, no coração do fiel, a viva imagem da Paixão, conforme escreve Tasso num soneto dedicado ao pregador frei Ludovico de Siracusa: “Scolpisci, prego, in me divota imago/ che dentro porti e le piaghe e i segni/ di quel fuoco divin mai sempre ardente”28.

A importância e o significado da imagem, na oratória sagrada brasileira, é enfati-zado pelos próprios pregadores. Eusébio de Mattos, irmão do mais famosos poeta Gre-gório, destacado pregador jesuíta, o qual posteriormente passou à Ordem dos Carme-litas, exerceu suas atividades principalmente na Bahia. Num sermão29 dedicado às exéquias dos membros da Irmandade dos Passos, discute a função do “ver” uma ima-gem, referente à objeto real ou de ficção que seja, na medida em que esta pode ser considerada um “espelho”: “Quem põe os olhos em hum espelho para o ver, não vê ao espelho somente, senão que se vê a si mesmo representado no espelho” (1694, p. 171). Neste sentido, a imagem adquire importante função como auxiliar para o conhe-cimento de si mesmo. Por outro lado, as palavras, o discurso, podem tornar-se ‘ima-gens”, retratos de objetos ou situações que o pregador dispõe para a contemplação dos fieis. Por isto, Mattos, em outro sermão dedicado às dores de Maria, conclui a prática dizendo querer aliviar os olhos de Maria pelo “retrato” de seu discurso: “visto que os retratos servem de alivio nas ausências, aqui offereço a vossos olhos este ensanguenta-do retrato” (1694, p. 225).

28 Citado por Ardissino, E. Immagini per la predicazione: Le “imprese sacre” di Paolo Aresi. Rivista di Storia e Letteratura Religiosa, Firenze, Olskchki, a. 34, n. 1, (1998), pp. 3-25; p 25.29 Mattos, E. Sermoens do Padre Mestre Frei Eusebio de Mattos, Religioso de Nossa Senhora do Carmo da Provincia do Brasil, Primeira Parte, Lisboa, Officina de Miguel Deslandes, 1694.

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A posição expressa por Mattos enxerta-se na tradição da oratória sagrada pós-tri-dentina e é a partir da consideração desta tradição que podemos compreender as ma-trizes teóricas e as técnicas retóricas empregadas pela oratória sagrada no Brasil colo-nial. Com efeito, é perseguindo a intenção de explorar na sua máxima potencialidade a capacidade da palavra enquanto transmissora de conhecimento, que recorre-se, ao longo da Idade Moderna, ao uso da imagem, transpondo em imagens os acontecimen-tos da história sagrada e profana. Tal recurso inspira-se na filosofia neoplatônica, pela qual a representação goza, de alguma maneira, da natureza do objeto representado, sendo que a beleza das imagens é um caminho para a contemplação de realidades supra-sensíveis (Ardissino, 1998). Na verdade, conforme alerta Huizinga, já no fim da Idade Média observa-se a tendência a que o pensamento se solidifique e expresse em “figuras”, respondendo a uma “vontade desenfreada de conferir uma forma a cada idéia de caráter religioso, de modo que essa se imprima no cérebro através de uma imagem clara e precisa.”30 Desse modo, visando alimentar a fé no meio popular, a presença da imagem visível inutilizava a demonstração intelectual da verdade, sen-do que os conceitos teológicos fixavam-se nas mentes através das imagens: “Ver é crer”.31 A Igreja católica pós-tridentina favoreceu esta utilização, sendo inclusive a defesa e valorização das imagens, bem como da arte que as produz, fortalecida pela oposição da ortodoxia católica à visão iconoclasta dos reformistas. Nesta pers-pectiva, estimula-se o caráter teatral do rito e do culto e propõem-se vários méto-dos para disciplinar a imaginação e utilizá-la em função evangelizadora, conforme prega o texto da sessão n.o 25 do Concílio de Trento (1563):

Na pregação, o recurso às imagens é intensificado pela necessidade dos pre-gadores entrar “em concorrência” com outros atrativos e personagens, tais como cantores, palhaços e dançarinos, que atraem a atenção do público, muito mais do que os sermões. Sendo assim, eles precisam recorrer ao uso das imagens para po-der agir sobre o público e construir imagens interiores que possam influenciar e modelar as potências anímicas. A palavra do pregador deve agir não apenas do ponto de vista emocional, mas também no nível de conhecimento, de modo a transmitir ao ouvinte um conjunto de dados do saber da época que lhe permita decifrar as imagens utilizadas no discurso.

Na Idade Moderna, as regras que modelam o recurso à imagem na pregação são ditadas pelos manuais de retórica sagrada. Paolo Aresi, em seu tratado Arte di predicar bene (1627) descreve o mecanismo psicológico do conhecimento por imagens - capazes de representar os objetos como se fossem presentes, de modo tal que as potências interiores gozarão das representações como se estivessem presen-tes os próprios objetos. (Ardissino, 1998). Para ele, a imagem tem a capacidade de atrair a atenção e ao mesmo tempo é funcional à memória, pois

30 Huizinga, J., Autunno Del Medioevo, Rizzoli, Supersaggi, 1995, Trad. Italiana (Original: 1919), p. 205, trad. nossa.31 Jori, G., Per evidenza, Conoscenza e segni nell’età barocca, Crisis, Marsilio, Torino, 1998, p. 139, trad. nossa.

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as coisas, quanto mais são sensíveis e aptas ao deleite dos olhos, tanto mais podem mover o intelecto e permanecer impressas na memória. As imagens nós nos representam as coisas como sensíveis, como presentes e vistas por nós e por isso possuem a força de despertar a nossa memória. (em: Ardissino, idem, p. 22, trad. nossa).

Possibilitando a representação e memorização das idéias, o recurso da imagem tem a vantagem de mostrar o fato inteiro de modo muito mais sintético do que a escrita.

A tradição da oratória sagrada, sintetizada pelos manuais, prescreve que a utilização da imagem mude conforme o auditório e o tipo de pregação, seja ela solene ou popular: esta escolha pressupõe a competência do pregador que deve dispor de uma bagagem apropriada de recursos retóricos e iconográficos corres-pondentes às exigências da circunstância, e ao mesmo tempo atingir um conheci-mento atento das condições do auditório.

Conclusão

A prática da pregação constitui-se pois, no mundo do Brasil colonial, num fe-cundo terreno de experimentação do poder da palavra, seja no que diz respeito ao conteúdo veiculado, seja no que diz respeito à forma de transmissão – numa pers-pectiva que num certo sentido remete à atual compreensão psicanalítica e psicoló-gica da eficácia terapêutica da palavra, mas que, em se tratando da Idade Moderna, deve ser reconduzida principalmente à aplicação da arte da retórica.