Papas que caíram em heresia

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  • 8/9/2019 Papas que caram em heresia

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    Papas que caram em heresia

    A. O caso de Librio, que acabou a assinar uma confisso de f ariana e acondenar Santo Atansio.

    Depois das decises de Niceia, a questo ariana no ficou definitivamente resolvida,longe disso. Quando os arianos ganharam a simpatia do novo imperador,Constncio, este pressionou os bispos ortodoxos do Ocidente para quecondenassem Atansio, bispo de Alexandria e campeo da f nicena. A maioria dosbispos claudicaram, e Librio, bispo de Roma (352-366), que resistia em condenarAtansio sem ouvi-lo primeiro, foi como muitos outros deportado para a sia.

    Aps dois anos de exlio, Librio finalmente claudicou e subscreveu uma confissode f que, embora fosse ambgua, era aceitvel para os arianos. A frmula queLibrio assinou era uma redigida pelos bispos da corte, a mesma que o ancio sio,bispo de Crdoba e antes conselheiro de Constantino, tinha sido obrigado a

    subscrever.O que no resultou ambgua foi a sua condenao de Atansio. Librio escreveu aosarianos como seus "amadssimos irmos" e se desculpou por ter defendidoAtansio, com base em que o seu predecessor, Jlio, assim o tinha feito. Dizia: "Euno defendo Atansio... tendo sabido quando agradou a Deus, que o condenastes

    justamente, assenti vossa sentena. Assim que, tendo sido Atansio expulso dacomunho de todos ns, de maneira tal que no vou sequer receber as suas cartas,digo que estou muito em paz e concrdia com todos vs, e com todos os bisposorientais nas provncias. Mas para que saibais melhor que nesta carta falo naverdadeira f o mesmo que o meu comum senhor e irmo, Demfilo, que foi to

    bom em conceder mostrar-me o vosso credo catlico, o qual em Srmia foi pormuitos dos nossos irmos considerado, estabelecido e recebido por todos ospresentes: isto recebi com mente bem disposta, sem contradizer nada. A isto dou omeu assentimento; isto o que sigo; isto sustentado por mim... Rogo-vos queobreis conjuntamente para que possa ser liberto deste exlio e possa voltar sedeque me foi confiada por Deus".

    Testemunhas da defeco de Librio so o prprio Atansio, Hilrio de Poitiers,Jernimo, Hermias Sozomeno, Faustino e Marcelino.

    Atansio menciona a resistncia inicial de Librio (que "era consciente da

    conspirao formada contra ns" e a sua claudicao depois de dois anos de exlio( Apologia contra os arianos , 89). Em outro lado ( Histria dos arianos , 41) diz:"Assim se esforaram [os conspiradores arianos] ao princpio para corromper aIgreja dos romanos, desejando introduzir a impiedade nela assim como noutras.Mas Librio, depois de ter estado no exlio dois anos, cedeu, e por medo ameaade morte subscreveu. Ainda assim, isto s mostra a conduta violenta, e o dio deLibrio contra a heresia, e o seu apoio a Atansio, enquanto se lhe permitiuexercitar uma livre escolha".

    Evidentemente Librio no era feito da mesma massa que alguns dos seusantecessores e bispos contemporneos, capazes de enfrentar o martrio por causa

    da sua f.

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    Jernimo, em sua Vidas de Homens Ilustres (97), diz: "Fortunatiano, africano denascimento, bispo de Aquilia durante o reino de Constncio, ... , detestadoporque, quando Librio bispo de Roma foi exilado pela f, foi induzido pelainsistncia de Fortunatiano a subscrever a heresia".

    Sozomeno na sua Histria da Igreja (IV,15) diz que Librio tinha escrito umaconfisso de f ortodoxa que foi aprovada "parcialmente". "Pois quando Eudxio eseus partidrios em Antioquia, que favoreciam a heresia de Acio, receberam acarta de sio, circularam a notcia de que Librio tinha renunciado ao termo'consubstancial' e tinha admitido que o Filho dissimilar com o Pai. Depois destassanes terem sido feitas pelos bispos ocidentais, o imperador permitiu a Librioregressar a Roma".

    Faustino e Marcelino apresentaram aos imperadores um livro em 383, em que secontava que dois anos depois de ter sido exilado Librio, Constncio visitou Roma.Quando lhe perguntaram por Librio, o imperador respondeu que voltaria, e melhor

    do que quando tinha partido. "Desta maneira", dizem os autores, "aludiu oimperador ao consentimento de Librio, mediante o qual apertou as mos daperfdia".

    Hilrio de Poitiers, que transcreve a carta de Librio citada antes, interrompe atranscrio com palavras muito severas: "Esta a infidelidade ariana", "antema,te digo, Librio e teus cmplices", "de novo, pela terceira vez, antema aoprevaricador Librio". Escrevendo a Constncio em 360, diz Hilrio: "No sei secometeste maior impiedade quando o exilaste [a Librio] do que quando orestauraste".

    A defeco de Librio era reconhecida pelos martirolgios e brevirios romanos, atque no sculo XVI suponho que no calor da controvrsia religiosa foramretirados. Num deles se diz "Librio, papa, tinha expresso a sua conformidade coma perfdia ariana". O mesmo reconhece Barnio em seus Anais (56:57).

    Tomando em conta todos os dados, parece correcto afirmar que Librio no eraariano em seu corao. Isto no o iliba do facto de ter subscrito o arianismoe a condenao de Atansio para recuperar a sua sede . Em outras palavras,aceitou o que sabia que era injusto e errneo, e o comunicou oficialmente aosbispos orientais, para poder regressar a Roma, como efectivamente o fez. Nestacomplexa situao histrica, o mnimo que pode dizer-se do bispo de Roma quefez um papel muito pobre e no defendeu a ortodoxia nicena, que teve de sersustentada contra vento e mar pelo bispo de Alexandria, Atansio.

    B. O caso de Zsimo, um "supremo mestre" que no sabia distinguir umdocumento pelagiano de um ortodoxo, e que desconhecia tanto os cnonesde Niceia (que confundiu com os de Sardes) como os limites da sua prpriaautoridade, e teve de ser ensinado pelos bispos africanos.

    Traduzo o seguinte da Catholic Encyclopedia:

    No muito depois da eleio de Zsimo o pelagiano Celstio, que tinha sidocondenado pelo papa precedente, Inocncio I, veio a Roma para justificar-se

    perante o novo papa, tendo sido expulso de Constantinopla. No vero de 417,Zsimo realizou uma reunio com a clerezia romana na baslica de So Clemente,

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    perante a qual compareceu Celstio. As proposies redigidas pelo dicono Paulinode Milo, por causa das quais Celstio tinha sido condenado em Cartago em 411,foram dispostas perante ele. Celstio se recusou a condenar tais proposies,declarando ao mesmo tempo em geral que ele aceitava a doutrina exposta nascartas do papa Inocente e fazendo uma confisso de f que foi aprovada. O papa

    foi conquistado pela conduta astutamente calculada de Celstio, e disse que noestava seguro de se o herege tinha realmente mantido a doutrina falsa rejeitada por Inocente, e portanto considerava demasiado apressada a aco dos bisposafricanos contra Celstio. Escreveu de imediato neste sentido aos bispos da

    provncia africana, e convocou aqueles que tivessem algo que dizer contra Celstio para que comparecessem em Roma dentro de dois meses. Pouco depois disto,Zsimo recebeu de Pelgio tambm uma confisso de f artificiosamente expressa,

    juntamente com um tratado do heresiarca sobre o livre arbtrio. O papa reuniu umnovo snodo da clerezia romana, perante a qual ambos os escritos foram lidos. Asexpresses habilmente escolhidas de Pelgio ocultavam o contedo hertico; aassembleia susteve que as afirmaes eram ortodoxas, e Zsimo escreveu de novoaos bispos africanos defendendo Pelgio e reprovando os seus acusadores, entre osquais se encontravam os bispos galos Hero e Lzaro. O arcebispo Aurlio deCartago rapidamente convocou um snodo, o qual enviou a Zsimo uma carta emque se provava que o papa tinha sido enganado pelos hereges. Em sua resposta,Zsimo declarou que no tinha determinado nada em forma definitiva, e que nodesejava estabelecer nada sem consultar os bispos africanos. Depois da nova cartasinodal do conclio africano, de 1 de Maio de 418, ao papa, e depois das medidastomadas contra os pelagianos pelo imperador Honrio, Zsimo reconheceu overdadeiro carcter dos hereges. Ento publicou a sua "Tractoria", no qual eramcondenados o pelagianismo e seus autores. Assim, finalmente, o ocupante da S

    Apostlica no momento exacto manteve com toda a autoridade o dogma tradicional da Igreja, e protegeu a verdade da Igreja contra o erro.

    Pouco depois disto, Zsimo se envolveu numa disputa com os bispos africanos emrelao ao direito de apelao s romana de clrigos que tinham sidoexcomungados pelos seus bispos. Quando o sacerdote Apirio de Sicca tinha sidoexcomungado por causa dos seus delitos, apelou directamente ao papa, semconsiderao pelo curso regular da apelao em frica, que estava exactamente

    prescrito. O papa aceitou a apelao de imediato, e enviou a frica legados comcartas para investigar o assunto. Um procedimento mais sbio teria sido remeter

    primeiro Apirio para o curso ordinrio de apelao na prpria frica. A seguir,

    Zsimo cometeu o erro adicional de basear a sua aco num suposto cnon doConclio de Niceia [ecumnico], que era na realidade um cnon do Conclio deSrdica [local]. Nos manuscritos romanos, os cnones de Srdica seguiam-se aosde Niceia imediatamente, sem um ttulo independente, enquanto os manuscritosafricanos continham unicamente os cnones genunos de Niceia, de modo que ocnon a que apelou Zsimo no se encontrava nas cpias africanas dos cnonesnicenos. Assim surgiu um srio desacordo acerca desta apelao, que se prolongoudepois da morte de Zsimo.

    J.P. Kirsch , Pope St. Zosimus . Em The Catholic Encyclopedia, vol. XV ).

    provavelmente um facto afortunado para a Igreja de Roma que o bispado deZsimo (417-418) tenha durado to pouco, pois do contrrio possvel que tivessecometido ainda mais erros.

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    Embora o autor do artigo citado pretenda ilibar Zsimo e apresent-lo como oguardio da ortodoxia que "no momento exacto manteve com toda a autoridade odogma tradicional da Igreja, e protegeu a verdade da Igreja contra o erro", osfactos que ele mesmo narra so bem diferentes.

    O titular da s romana examinou cuidadosamente o exposto por Celstio e Pelgio,e chegou concluso de que ambos eram ortodoxos. Se v que o Esprito Santono o assistiu para distinguir a verdade do erro. Como consequncia da suaavaliao, corrigiu a condenao pronunciada pelo bispo romano anterior (o quemostra que nesta poca os papas no se sentiam ainda obrigados pelosensinamentos e decises dos seus predecessores, que podiam ser anuladas sefosse necessrio), censurou gravemente os bispos galicanos acusadores os quaisqualificou de maliciosos e turbulentos e pretendeu excomungar -, aconselhoupaternalmente os bispos africanos para que no se apressassem a crer o mal doseu prximo, e disse que desejaria que os africanos tivessem podido ouvir asexposies de Celstio e Pelgio, aos quais chamou homens de ortodoxia perfeita

    (absolutae fidei).Apesar da deciso do bispo romano, os bispos africanos se mantiveram na suaposio e reafirmaram a condenao dos erros pelagianos. Foi somente perante afirmeza dos africanos e a condenao e desterro de Pelgio pela autoridade imperial(que vaticinava um negro futuro para os seus defensores) que Zsimo publicou asua condenao dos pelagianos e seus escritos. O fez muito tarde para defender aortodoxia, que j tinha sido reivindicada pelos bispos da Glia e de frica, e apenasa tempo para salvar a sua prpria pele da acusao de heresia.

    Assim que, se Zsimo no era pelagiano, pelo menos engoliu a isca pelagiana com

    anzol e chumbo, atreveu-se a admoestar os bispos que defendiam a ortodoxia, e sa muito custo reagiu no instante final. Por certo, um papel muito triste para umpastor e mestre supremo.

    E embora o problema do pelagianismo tenha sido muito mais grave, a novacontrovrsia sustentada com os africanos a propsito das apelaes, mostra opobre Zsimo como muito pouco versado tambm em questes de disciplinaeclesistica, outra rea na qual se ensina hoje que as decises dos papas soinapelveis.

    O Cdigo de Direito Cannico vigente estabelece:

    "O Romano Pontfice o juiz supremo para todo o mundo catlico e julgapessoalmente, pelos tribunais ordinrios da S Apostlica ou por juzes por eledelegados" (# 1442).

    "No h lugar para apelao: 1 de uma sentena do prprio Romano Pontfice ouda Assinatura Apostlica..." (# 1629).

    "Contra uma sentena ou decreto do Romano Pontfice, no h apelao, nemrecurso" (# 333, 3).

    "Em razo do primado do Romano Pontfice, facultado a qualquer fiel recorrer

    Santa S ou introduzir perante ela, para julgamento, sua causa contenciosa oupenal, em qualquer grau do juzo e em qualquer estado da lide" (# 1417.1).

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    Parece que os bispos africanos do sculo V no estavam inteirados destas leis.

    C. O caso de Viglio, um papa extremamente vacilante, muito pouco aptopara ser mestre supremo da cristandade.

    Apesar das definies de Calcednia, o monofisitismo (doutrina de uma nicanatureza divino-humana em Cristo) estava longe de estar vencido. Enquanto asigrejas do Ocidente se aferravam ao proclamado por Calcednia, o imperadorJustiniano favorecia a heresia monofisita.

    Nesta situao o bispo de Roma, Viglio, posto ali pelo prprio imperador, seencontrava numa incmoda posio. Embora tenha tentado resistir aos decretosimperiais, uma visita obrigada corte bizantina fez que, em 548, no documentoIudicatum , subscrevesse a condenao imperial dos escritos de trs telogosantioquenos (detestados pelos monofisitas): Teodoro de Mopsustia, Teodoreto deCiro e Ibas de Edessa. Ao mesmo tempo que fazia isto, tentava sustentar asdecises de Calcednia.

    Aparentemente Viglio desejava ficar bem com ambas as partes. Contudo, os bisposocidentais no estavam dispostos a tolerar semelhante atitude. Foi considerado umviolador da ortodoxia, e se o teve por herege nas Glias, Dalmcia, Ilria e emfrica, onde em 550 foi excomungado por um snodo.

    Perante esta reaco, Viglio anulou o seu prprio escrito e sugeriu convocar umconclio geral em que houvesse igual representao dos bispos ocidentais e dosorientais. Isto o malquistou com o imperador e com os bispos orientais. Comoresposta s pretenses do bispo romano, Justiniano convocou um conclioecumnico, o II de Constantinopla de 553, do qual o papa ficou excludo. O Conclioo acusou de nestorianismo. Viglio foi desterrado, e o seu nome apagado dosregistos e documentos oficiais.

    Pela terceira ou quarta vez, depois de seis meses de exlio, o desafortunado bisporomano mudou novamente de opinio e aceitou as resolues do II Conclio deConstantinopla. Numa carta que dirigiu ao patriarca Eutquio de Constantinopla,confessava ter sido um instrumento nas mos de Satans, mas tinha sidofinalmente iluminado por Deus. Depois desta capitulao, lhe foi permitidoregressar a Roma, coisa que nunca chegou a fazer porque faleceu no caminho.

    De Viglio pode dizer-se com justa razo que os seus contemporneos, primeiro do

    Ocidente e depois do Oriente, o tiveram por herege. Os seus avanos e recuos noterreno doutrinal o tornavam extremamente inepto como mestre e pastor supremoda cristandade (ideia que, suspeito, teria resultado ento igualmente ridcula tantoaos bispos do Oriente como aos do Ocidente).

    D. O caso do papa Honrio, cuja condenao como herege permaneceu nobrevirio romano at ao sculo XVIII, quando foi piedosamente omitido.

    Honrio sucedeu a Bonifcio V, foi bispo de Roma entre Outubro-Novembro de 625e 12 de Outubro de 638. A condenao de Honrio pelo III Conclio deConstantinopla mostra cabalmente que o bispo de Roma estava sujeito mesma

    disciplina que os demais bispos, e que podia ser disciplinado se errava como mestre

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    e pastor. A Igreja antiga no conhece nada da actual doutrina dainfalibilidade sancionada por Roma h pouco mais de um sculo.

    O contexto histrico o da heresia monotelita, que ensinava a existncia de umas vontade em Cristo, o que tendia a minimizar a natureza humana de nosso

    Senhor como antes o tinham feito os monofisitas.O imperador Herclio desejava conciliar os monofisitas com os ortodoxos, e umafrmula que parecia adequada para ambos os grupos foi remetida a Srgio,patriarca de Constantinopla. Por sua vez Srgio enviou a Honrio de Roma umacarta dogmtica, solicitando a sua opinio.

    Honrio aceitou a frmula de compromisso entre monofisismo e ortodoxia ("Estascoisas pregar vossa fraternidade convosco, assim como ns as pregamos

    juntamente com vs", disse a Srgio). O pior que, em vez de "uma energia" comoos gregos, Honrio expressou: "Tambm confessamos uma s vontade de nossoSenhor Jesus Cristo" (ver Denzinger # 251). O ensino de Honrio deu origem formulao do ensino herege chamado monotelismo (uma vontade).

    Perante o facto de que como bispo de Roma, consultado formalmente pelo bispo deConstantinopla, confirmou este no seu erro em vez de corrigi-lo , Honriorecebeu de Sofrnio, patriarca de Jerusalm, e de outros bispos, um documentoque defendia a ortodoxia. Como resposta, Honrio escreveu uma segunda carta aSrgio, onde ratificava e ampliava o dito; a carta conclua:

    E estas coisas decidimos manifestar vossa mui santa fraternidade para que,estabelecendo esta confisso, possamos mostrar-nos de uma mesma mente comvossa santidade, estando claramente de acordo num mesmo esprito, com ummesmo ensino da f ... E escrevemos aos nossos colegas e irmos, Ciro e Sofrnio,

    para que no persistam na nova expresso de uma ou duas energias.

    Os defensores da infalibilidade papal usaram sem xito diversas tcticas para eludira condenao de Honrio: a partir da poca de Torquemada, se questionaram asactas do Conclio que condenou Honrio; posteriormente, ao fracassar isto, se quisreinterpretar o dito por Honrio para tom-lo em sentido ortodoxo (suponho quepor esta razo a sua declarao se publica no Denzinger). Outra artimanha de valorhistrico foi tomar o ensino de Honrio como a opinio de um telogo privado. Aeste respeito diz John Chapman, autor do artigo sobre Honrio em The Catholic Encyclopedia: A carta [de Honrio] no pode ser tida como privada, pois uma resposta oficial a uma consulta formal . No entanto, Chapman por sua vez recorre a outro subterfgio, a saber, que a cartasupostamente no define nem condena nada, nem se apresenta como vinculantepara todos os cristos, pelo que no se a pode considerar ex cathedra segundo amoderna definio do Conclio Vaticano I (1870). Na verdade, Honriosubscreve plenamente, com toda a sua autoridade, o dito por Srgio, eainda por cima acrescenta a confisso de "uma s vontade".

    Para l das subtilezas, a questo que por muitos sculos ningum ps emdvida que Honrio fosse herege.

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    Chapman diz de Honrio que "A sua maior notoriedade veio pelo facto de ter sidocondenado como herege pelo sexto conclio ecumnico (680)".

    Na Sesso 13 de 28 de Maro, as duas cartas de Srgio foram condenadas, e oconclio acrescentou: queles cujos mpios dogmas execramos, julgamos que os

    seus nomes tambm sejam expulsos da santa Igreja de Deus ... E alm destesdecidimos que Honrio tambm, que foi papa da antiga Roma, seja com elesexpulso da santa Igreja de Deus, e anatematizado com eles, porque verificamos nasua carta a Srgio que seguiu a opinio deste em tudo, e confirmou os seusdogmas mpios. Estas ltimas palavras so suficientemente verdadeiras, e, seSrgio tinha de ser condenado, Honrio no podia ser recuperado. Os legados[papais] no objectaram a sua condenao.

    ... A condenao do papa Honrio foi guardada nas lies do Brevirio para 28 deJunho (So Leo II) at ao sculo XVIII ...

    (John Chapman, Pope Honorius I. The Catholic Encyclopedia, vol. VII).

    O Conclio dirigiu uma carta ao ento bispo de Roma, Agato, na qual se incluaHonrio entre os que "erraram na f".

    No dito imperial que concedia fora legal s decises conciliares, se mencionavacomo anatematizado " Honrio, que foi papa da antiga Roma, o qual em todasas coisas promoveu e cooperou e confirmou a heresia ".

    A condenao de Honrio foi renovada pelos Conclios II de Niceia (787) e IV deConstantinopla (869-870).

    Ainda antes do Conclio Ecumnico citado, um importante snodo de Latro em 649,presidido por um sucessor de Honrio, Martinho (649-655) condenou todo aqueleque confessasse uma s vontade e operao em Cristo, o que inclua Honrio,embora talvez por vergonha, o seu nome no aparecesse na lista.

    O papa Leo II (682-683), sucessor de Agato, reiterou a condenao de Honrio.Numa carta ao imperador diz do papa herege que Honrio "no santificou estaapostlica Igreja com o ensino da tradio apostlica mas com profana traiotranstornou a sua f imaculada". Noutro lado coloca-o junto a outros hereges comorio, Apolinrio, Nestrio e Eutiques.

    Durante vrios sculos, o Liber Diurnus, que continha os juramentos que cadabispo de Roma devia prestar , inclua um antema contra "Honrio, que acendeuo fogo das afirmaes mpias". Este antema foi pronunciado por cerca decinquenta papas que prestaram juramento no lapso mencionado.

    Honrio foi tido por herege durante sculos, e tal opinio generalizada, sustentadaainda por dezenas de seus sucessores, somente foi questionada pelo seu efeitopulverizador sobre a doutrina da infalibilidade papal.

    Que um bispo de Roma casse na heresia era uma coisa pouco frequente, alm deuma grande desgraa ; mas a ningum, nem sequer aos prprios bispos de Roma,passava pela cabea que fosse impossvel . E de facto, ocorreu.

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    Por ltimo, a histria mostra que a soluo romanista para as diferenas nainterpretao das Escrituras no vlida .

    A Igreja teria admitido o arianismo se tivesse capitulado com Librio ; teriaafirmado o pelagianismo se os africanos no tivessem corrigido Zsimo ; estaria

    ainda vacilante se seguisse o usurpador Viglio ; e seria monotelita se deHonrio tivesse dependido.

    Como o expressa muito bem George Salmon:

    Quando se sugeriu que poderamos contentar-nos com a guia das SagradasEscrituras, os advogados do romanismo replicaram que embora a Bblia possa serinfalvel no uma guia infalvel; ou seja, no protege aqueles que a seguem doperigo de errar. Certamente agora podemos dizer o mesmo do papa. Que sejainfalvel, se quiserdes; que seja em seu corao da mais admirvel ortodoxia, aindaassim no um guia infalvel se pelas suas afirmaes pblicas leva ao erro o povocristo. indisputvel que houve casos em que o povo cristo erraria se seguisse aguia do bispo de Roma. Mesmo se fosse possvel demonstrar que nenhum bispo deRoma jamais albergou sentimentos que no fossem da mais rgida ortodoxia, ficariademonstrado que o papa no uma guia infalvel. Podemos assinalar caso apscaso em que se concedeu autoridade papal a decises que sabemos errneas, e emcada caso pode fazer-se alguma tentativa engenhosa para mostrar que a decisoerrnea no compromete o atributo da infalibilidade; mas mais cedo ou mais tardeos homens devem despertar para ver que o resultado de todos estes pedidos deexcepo que, enquanto esperavam um guia que sempre os dirigissecorrectamente, eles tm em seu lugar um guia que sempre pode encontrar algumadesculpa plausvel para cada vez que os extravia.

    (The Infallibility of the Church, pp. 441-442, vi).