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Para além do punitivismo: tensões e conciliações entre a criminologia crítica e a criminologia feminista Camila Damasceno de Andrade 1 Resumo: Assim como a criminologia crítica evidenciou o papel do capitalismo e do racismo para a manutenção do sistema penal, a criminologia feminista demonstrou como a dominação patriarcal integra as estruturas do controle punitivo. Contudo, enquanto aquela se insurge contra os processos de criminalização, a criminologia feminista apela ao discurso punitivista que identifica no direito penal uma forma de reduzir os altos índices de violências de gênero. Destarte, este artigo tem o escopo de trazer elementos para a construção de uma criminologia crítica de cunho feminista, motivado pela exclusão das perspectivas de gênero nos mais afamados discursos criminológicos e, também, pela discordância em relação ao pleito criminalizante do feminismo. Analisam-se as similitudes e diferenças entre a criminologia feminista e a criminologia crítica e se propõe a formulação de uma criminologia que concilie as duas perspectivas, acolhendo as experiências femininas sem clamar pela expansão do controle penal. Palavras-chaves: criminologia; feminismo; violência. Introdução Sendo a desigualdade entre mulheres e homens um traço caracterizador da modernidade, presente, se não em todas, ao menos na maioria das sociedades, o pensamento feminista surgiu não apenas como meio para problematizar as situações de 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD/UFSC). Graduada em Direito pela UFSC. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Integrante do Grupo de Pesquisa Brasilidade Criminológica e do Programa de Extensão Universidade sem Muros, ambos coordenados pela Prof. Vera Regina Pereira de Andrade no PPGD/UFSC. Endereço eletrônico: [email protected]. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5917338636063851.

Para além do punitivismo: tensões e conciliações entre a ... · desvio e o desviante são frutos do controle social. A ideologia da defesa social, sustentada pelo discurso oficial

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Para além do punitivismo: tensões e conciliações entre a criminologia crítica e a

criminologia feminista

Camila Damasceno de Andrade1

Resumo: Assim como a criminologia crítica evidenciou o papel do capitalismo e do racismo

para a manutenção do sistema penal, a criminologia feminista demonstrou como a

dominação patriarcal integra as estruturas do controle punitivo. Contudo, enquanto aquela

se insurge contra os processos de criminalização, a criminologia feminista apela ao discurso

punitivista que identifica no direito penal uma forma de reduzir os altos índices de violências

de gênero. Destarte, este artigo tem o escopo de trazer elementos para a construção de

uma criminologia crítica de cunho feminista, motivado pela exclusão das perspectivas de

gênero nos mais afamados discursos criminológicos e, também, pela discordância em

relação ao pleito criminalizante do feminismo. Analisam-se as similitudes e diferenças entre

a criminologia feminista e a criminologia crítica e se propõe a formulação de uma

criminologia que concilie as duas perspectivas, acolhendo as experiências femininas sem

clamar pela expansão do controle penal.

Palavras-chaves: criminologia; feminismo; violência.

Introdução

Sendo a desigualdade entre mulheres e homens um traço caracterizador da

modernidade, presente, se não em todas, ao menos na maioria das sociedades, o

pensamento feminista surgiu não apenas como meio para problematizar as situações de

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD/UFSC). Graduada em Direito pela UFSC. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Integrante do Grupo de Pesquisa Brasilidade Criminológica e do Programa de Extensão Universidade sem Muros, ambos coordenados pela Prof. Vera Regina Pereira de Andrade no PPGD/UFSC. Endereço eletrônico: [email protected]. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5917338636063851.

opressão, mas veio elaborar uma profunda crítica do mundo social ao conceber o

patriarcado como uma das estruturas que regem e controlam a dinâmica da sociedade. Ao

combater os argumentos legitimadores dessas desigualdades, a contribuição do pensamento

feminista foi crucial para denunciar a situação inferiorizada das mulheres como resultado de

padrões de opressão.

Classificando o gênero como um sistema de organização social que toma o sexo

biológico como ponto de partida para a atribuição de papeis e estereótipos às mulheres e

aos homens, o feminismo vai denunciar a construção cultural de modelos idealizados do

feminino e do masculino. Demonstrou, portanto, que a discriminação em função do sexo

não tem raiz em características biológicas, mas em causas sociais (MENDES, 2014, p. 86), e

que o gênero não é somente o elemento constitutivo das relações sociais que se baseiam

nas diferenciações entre os sexos, mas é uma estrutura primária que significa as relações de

poder (SCOTT, 2008, p. 64).

A dominação masculina se projeta em todo um conjunto de instituições que mantém

e reforçam a noção de que a adequação aos papeis e estereótipos de gênero constitui um

consenso. O feminismo veio desnudar o caráter histórico do patriarcado, demonstrando que

a inferiorização feminina não passa de construção social que foi naturalizada,

fundamentando-se no domínio do homem sobre a mulher através da violência - esta

vinculada à própria definição do masculino - e promovida por meio de todas as instâncias

sociais (MENDES, 2014, p. 86-87).

Tendo isso em vista, a militância feminista se empenhou em batalhar por leis de

enfrentamento às violências de gênero e obteve vitórias no plano legislativo ao conseguir a

aprovação, por exemplo, da Lei Maria da Penha. No entanto, o pleito criminalizante do

feminismo não tem o condão de modificar a estrutura patriarcal que sustenta a violência

doméstica, ainda que seja capaz de, ao menos formalmente, desgastar as fronteiras

artificialmente construídas entre o público e o privado. Assim, é preciso pensar em projetos

políticos que viabilizem a redução das violências de gênero praticadas contra as mulheres ao

mesmo tempo em que combatam as violências institucionais que recaem sobre os estratos

sociais mais vulneráveis.

Com base nesses pressupostos, esta pesquisa tem o escopo de confrontar a

criminologia crítica e a criminologia feminista, enfatizando as tensões entre os referidos

saberes teóricos e, também, os pontos de conciliação entre eles. Como referencial teórico,

adotam-se as contribuições das teorias críticas feministas sobre os estudos de gênero, bem

como o arcabouço teórico desenvolvido pela criminologia crítica e pela criminologia

feminista. Utilizando o método indutivo, examina-se, inicialmente, o discurso sustentado

pela criminologia crítica e, em seguida, as contribuições apresentadas pela criminologia

feminista. Enfim, expõem-se as suas similitudes e diferenças, demonstrando que a

harmonização entre elas é possível. Pretende-se, com isso, trazer elementos para a

construção de uma criminologia que seja, simultaneamente, crítica e feminista, que se

posicione contra as opressões de gênero sem, necessariamente, apelar ao sistema criminal.

1 A criminologia crítica

A chamada criminologia crítica, cuja gênese pode ser atribuída às análises de Rusche

e Kirchheimer acerca da relação histórica entre sistema punitivo, estrutura do mercado de

trabalho e condições sociais, foi posteriormente maturada com o advento do paradigma da

reação social e, especialmente, com a publicação da obra de Alessandro Baratta. Ao

afirmarem existir uma reciprocidade entre as formas punitivas e as relações de produção,

Rusche e Kirchheimer (2004, p. 18-20) romperam com os princípios que regem a ideologia

da defesa social e negaram a narrativa idealista e evolucionista da história da punição, que

fazia crer, até então, que o progresso agia como motor primordial para as mudanças

históricas. Segundo Andrade (2015, p. 190-191), a história oficial do sistema punitivo

pressupõe o progresso como a direção corrente seguida pelo passar do tempo, como se as

penas corporais de outrora tivessem sido substituídas por um modelo humanista que prevê

a privação de liberdade como pena máxima. A criminologia crítica, no entanto, vai

demonstrar o idealismo do discurso jurídico, que valoriza a prisão ao encobrir a barbárie por

ela perpetuada ainda nos dias atuais.

A criminologia crítica engloba um conjunto de teorias criminológicas que,

desenvolvidas a partir do paradigma da reação social, têm em comum o criticismo diante do

controle penal, compartilhando de uma análise materialista e, nos dizeres de Baratta (2011,

p. 26), macrossociológica do sistema de justiça criminal. Mas não se utiliza,

necessariamente, de um referencial teórico marxista, apesar de muitos de seus autores

iniciais compartilharem uma interpretação materialista marxista, ainda que não ortodoxa

(ANDRADE, 2015, p. 189).

O objeto de estudo da criminologia enquanto disciplina científica foi alterado com a

ruptura paradigmática instituída pela teoria do labelling approach, que contraria a ideia

antropológica de que o criminoso nasce criminoso, ou desenvolve o comportamento tido

como marginal em razão de uma anormalidade biológica. Ao passo em que o chamado

paradigma etiológico instrumentalizou a criminologia para buscar as causas do crime e da

criminalidade, a ótica da reação social propõe que o processo de construção social da

criminalidade passe a ser encarado como o objeto da criminologia (BARATTA, 2011, p. 159-

161). O arcabouço teórico construído a partir dessa revolução paradigmática passou, então,

por uma revisão crítica que conduziu à emergência de uma criminologia de cunho crítico que

deixa de pensar o crime como uma realidade ontológica e apriorística, mas que o

compreende como resultado de processos seletivos e desiguais de criminalização que

impõem o rótulo de desviante a determinadas pessoas. A criminologia crítica, portanto,

busca investigar as estruturas sociais que conduzem à criminalização, ressaltando que o

desvio e o desviante são frutos do controle social.

A ideologia da defesa social, sustentada pelo discurso oficial da dogmática jurídico-

penal, baseia-se em princípios maniqueístas que opõem o criminoso à pessoa "normal",

patologizando a conduta desviante. Alardeando a ideia de que as leis penais têm o condão

de defender o interesse social, já que as condutas tipificadas como crime ofenderiam,

teoricamente, bens jurídicos fundamentais, essenciais aos cidadãos "de bem", ela é

resultado de uma confluência de preceitos da Escola Liberal Clássica e da Escola Positiva.

Destarte, a ideologia da defesa social pressupõe o fictício contrato social do liberalismo para

afirmar que os delitos elencados na lei penal violam os principais interesses de toda a

comunidade (BARATTA, 2011, p. 42-43).

Ainda que a Escola Liberal Clássica e a Escola Positiva não respeitem a uma mesma

unidade ideológica, elas compartilham de um modelo de ciência penal integrada (BARATTA,

2011, p. 41), em que dogmática jurídica e concepções sociais e individuais estão conectadas.

A primeira se origina com as teorias contratualistas contemporâneas à Ilustração, que

conferem ao Estado a titularidade sobre os meios de repressão (WEBER, 2004, p. 56-57),

colocando as liberdades individuais como limite ao poder estatal de punir. Autores como

Beccaria e Carrara integram os seus principais marcos (ANDRADE, 2015, p. 53-54).

Já a Escola Positiva, inaugurada por Césare Lombroso e sua antropologia criminal,

tem o positivismo como inspiração, tendo inaugurado a criminologia enquanto disciplina ao

atribuir um ar de cientificidade ao seu discurso. É a criminologia positivista que desenvolve

com profundidade o discurso patologizante da criminalidade ao reduzir a criminologia à

investigação das causas da criminalidade e à explicação causal do comportamento criminoso

individual. A visão etiológica por ela difundida posiciona a criminologia como uma ciência

auxiliar da dogmática penal, pois aceita acriticamente as definições de crime por ela

desenvolvidas (ANITUA, 2008, p. 305). No Brasil, é Nina Rodrigues (1957, p. 157-158) o

principal expoente da Escola Positiva. Difundindo a teoria lombrosiana, ele potencializa a sua

matriz racista ao apontar a mestiçagem como o problema central do país, advogando pelo

embranquecimento da nação e sugerindo uma gestão diferencial do crime a partir de

critérios raciais, já que enxergava nos negros uma raça inferior e propensa à delinquência.

Muito embora haja uma aparente contraposição entre a criminologia positivista e os

ideias liberais da Escola Clássica, as suas diferenças residem apenas no que concerne à

culpabilidade do delinquente. Desse modo, o embate entre as duas escolas se restringe, na

verdade, à atitude interior do sujeito desviante ao cometer o delito, porquanto, na medida

em que a Escola Clássica sustenta a reprovabilidade moral de sua conduta, a Escola Positiva

atribui a ela um sentido biopsicológico de periculosidade social. Por outras palavras, mesmo

que discordantes, as suas conclusões convergem para a necessidade de um projeto penal

apto a defender a sociedade do mal gerado pelo crime (BARATTA, 2011, p. 43). E é a

ideologia da defesa social que surge para cumprir esse papel.

A criminologia crítica vai analisar o horizonte de projeção do sistema penal,

apontando as estruturas e os atores protagonistas da sua atuação. Ademais, vai denunciar

que o desvio é construído socialmente a partir de condicionamentos globais determinados

econômica e politicamente, demonstrando que os interesses sociais que movimentam a

produção legislativa não são, na realidade, comuns a toda a comunidade, mas pertencentes

a uma parcela da sociedade, particularmente, aos grupos sociais mais favorecidos. Aqueles

que têm o poder de definir o que é e o que não é crime têm a possibilidade de construir uma

realidade e de qualificá-la. A criminalidade, nesse sentido, não corresponde a uma qualidade

subjetiva do autor da conduta delitiva, mas decorre de um processo social de rotulação que

atribui à determinada pessoa o status de criminoso (BARATTA, 2011, p. 118).

São as dinâmicas entre os macropoderes político/punitivo, econômico/financeiro e a

microfísica dos poderes sociais - hierarquizações de gênero e raça, por exemplo - que

movimentam o controle penal e demarcam as divisões entre normalidade e patologia,

sanidade e loucura, ordem e desordem. Considerando que o controle penal contemporâneo

é, necessariamente, consequência de interações entre Estado, mercado e sociedade, não é

apressado concluir que a integralidade das desigualdades sociais está refletida no sistema

penal (ANDRADE, 2012, p. 161).

2 A criminologia feminista

É necessário perceber, contudo, que a operacionalidade seletiva do sistema penal

não se restringe às camadas economicamente desprivilegiadas, nem às minorias étnico-

raciais. Leva em conta, também, a organização social de gênero, aprisionando aqueles que

contrariam os preceitos da estrutura patriarcal. Destarte, a inferiorização dos negros e dos

pobres é acompanhada por uma inferiorização das mulheres que é basilar para a

sustentação do sistema, sejam elas vítimas ou autoras de delitos.

O controle penal, como já falado, não se esgota na atuação institucional do Estado

através de sua dimensão stricto sensu (polícia, Ministério Público, judiciário, prisão,

manicômios), mas engloba todo o conjunto de mecanismos do controle social difuso

(família, escola, religião, mídias, moral, medicina, mercado de trabalho). Nesse sentido, a

mecânica do sistema penal é composta por um macrossistema penal formal que é

circundado por microssistemas informais e simbólicos, sendo todos sustentados por

estruturas que fornecem os elementos para a sua reprodução ideológica (ANDRADE, 2012,

p. 133-134). Assim, além de ser alimentado por uma estrutura capitalista e racista, o sistema

penal também se apoia na dominação patriarcal.

A desconsideração desses microssistemas e, especialmente, do suporte que a

estrutura patriarcal fornece ao sistema penal revela o sexismo que permeia o discurso oficial

da dogmática jurídica e parte dos estudos criminológicos. A reprodução cotidiana de práticas

sociais hegemônicas que associam intimamente cada gênero a um sexo biológico (BIROLI;

MIGUEL, 2014, p. 81) denota a importância do sistema binário de gênero para o sistema

penal. O feminismo e a sua variante criminológica - a criminologia feminista, que será

abordada doravante - se estabelecem, então, contra o modelo dado de relação sexo/gênero.

A criminologia feminista surge como resposta ao esquecimento da mulher e da

opressão de gênero nos discursos sobre o sistema de justiça criminal. Objetivando dar

visibilidade às especificidades da condição feminina em face da violência estrutural do

sistema penal, a formulação de um discurso criminológico feminista não se resume a

reinterpretar e estender o alcance das categorias criadas pelas construções teóricas

anteriores. Entende-se que a mera inserção das relações de gênero em teorias marcadas por

estruturais exclusões das experiências femininas não pode ser feita sem distorcê-las, porque

elaboradas sob parâmetros sexistas. Assim, apesar de os discursos criminológicos já

consolidados se aplicarem parcialmente às mulheres, eles não conseguem dar conta de sua

posição periférica dentro da sociedade, que não se confunde, embora esteja

intrinsecamente relacionada, com a marginalização socioeconômica tão bem estudada pela

criminologia crítica.

Nessa senda, a criminologia feminista vai apontar o sexismo dos discursos

criminológicos hegemônicos que desconsideram o debate de gênero em suas análises,

trazendo, também, elementos para a configuração de um novo saber criminológico,

edificado sobre uma epistemologia de viés feminista. Outrossim, ela vai discutir os altos

índices de violência contra as mulheres e questionar o discurso da criminologia crítica, que,

ancorado numa perspectiva abolicionista, não admite o apelo ao sistema penal sequer

quando utilizado para a proteção das mulheres. Conforme Campos e Carvalho (2011, p. 151),

a criminologia feminista vai se estruturar como um discurso de denúncia que privilegia as

opressões de gênero em suas análises, podendo ser classificada como uma perspectiva

político-criminal.

Identificando no sistema penal uma forma de reduzir os índices alarmantes de

violência contra a mulher, a criminologia feminista entende que inserir o debate de gênero

entre as preocupações do direito penal é um passo necessário para a extinção ou redução da

violência generificada. Observa-se, com isso, a tensão entre os saberes crítico e feminista: ao

passo em que a criminologia crítica tem como pilar a insurgência contra os processos de

criminalização, a criminologia feminista recorre ao discurso punitivista e batalha pela

expansão do controle penal.

No Brasil, a criação da Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/2006) é reconhecidamente

uma vitória do movimento feminista, assim como a recente inclusão do feminicídio no

Código Penal foi igualmente festejada. A criminologia feminista, então, vem pleitear pelo

agravamento das punições, pela ampliação do rol de condutas tipificadas como crime, pela

inserção de novas hipóteses qualificadoras, causas de aumento de pena e circunstâncias

agravantes, crendo que a legislação penal tem a capacidade de garantir a segurança

feminina, porque inibiria as condutas violentas perpetradas contra as mulheres.

O direito penal é instrumentalizado, pelo feminismo, para dar visibilidade aos

comportamentos violentos contra as mulheres. É utilizado, portanto, simbolicamente, com o

intuito de modificar a percepção social relativa a esses problemas ao estender a regulação

estatal às situações de violação dos direitos das mulheres. Ainda que a pena não seja

efetivamente aplicada aos autores dos delitos, entende-se que a tipificação da conduta

como crime é capaz de criar novos valores e intervir na simbologia social que reproduz a

dominação masculina (CAMPOS, 1998, p. 53-54).

Ademais, sabe-se que o controle social sobre os corpos femininos toma por base a

redução do gênero ao privado (LUGONES, 2008, p. 93), encarando as mulheres como

naturalmente inadequadas para o desempenho de funções na esfera pública e atribuindo a

elas, desde sempre, a responsabilidade pelas ocupações da esfera privada (OKIN, 2008, p.

307). A consequência dessa atribuição prévia de papeis sociais em função do sexo é, por sua

vez, a dependência das mulheres em relação aos homens, que tem no campo das finanças

familiares a sua principal expressão. Assim, a binariedade entre espaço público e privado,

que restringe a vida das mulheres ao ambiente da domesticidade, é enfraquecida com a

possibilidade de intervenção estatal no o âmbito doméstico.

Para muitas mulheres, resguardar a privacidade nas relações afetivas familiares

corresponde a proteger um espaço de violência de gênero, no qual elas são as principais

vítimas. Ao invés da privacidade atuar no sentido de uma defesa dos afetos, na prática ela

preserva condutas agressivas fundamentais para a reprodução da dominação masculina. Por

outras palavras, a ausência de intervenção estatal na esfera privada sob a alegação da

necessária proteção da privacidade nada mais é do que uma garantia de liberdade aos

homens para violentar, humilhar e objetificar mulheres. Assim, a manutenção da dualidade

convencional entre vida pública e vida privada impede a tematização da violência doméstica,

encarada como um problema particular e naturalizada como constitutiva das relações entre

mulheres e homens (BIROLI; MIGUEL, 2014, p. 42).

A não existência de legislação penal que regule as violências contra as mulheres traz,

também, efeitos simbólicos consideráveis: ao mesmo tempo em que o patrimônio privado é

extensamente protegido pelas leis brasileiras, a vida e integridade física das mulheres é

relegada a uma posição de inferioridade. Não estabelecer punições aos autores dessas

condutas não só pretere a relevância dessas violências, mas objetifica e disponibiliza o corpo

feminino para as violações masculinas (CAMPOS, 1998, p. 53).

Considerando que a violência de gênero perpetua uma ordem social que não protege

as mulheres das violações cometidas em sua intimidade, a ausência de intervenção penal

estabiliza essas relações de poder e assegura a supremacia masculina no âmbito doméstico

(BIROLI; MIGUEL, 2014, p. 34; CAMPOS, 1998, p. 55, 58).

3 Tensões e conciliações

Partindo do pressuposto de que a dominação masculina se mantém e se reproduz

por meio de instituições que alimentam uma lógica androcêntrica que desiguala homens e

mulheres, a criminologia feminista entendeu o patriarcado como uma das estruturas que

sustentam o próprio controle social formal e legitimam a alegada inferioridade feminina

(MENDES, 2014, p. 88). O controle penal reproduz os mecanismos de dominação que

oprimem as mulheres, estando, por sua vez, na base da manutenção da organização social

de gênero.

Ao colocar as perspectivas femininas no centro da investigação acerca do controle

punitivo, a criminologia feminista percebeu o cárcere como resultado de um sistema

patriarcal que recorre à violência para fundamentar o domínio do homem sobre a mulher. A

institucionalização estatal da violência generificada expõe a fluidez das fronteiras entre

espaço público e privado, pois absorve do controle social difuso da família e da moralidade

os elementos necessários para subjugar as mulheres também no âmbito formal.

Além de retratar as relações sociais entre os sexos, a violência simboliza o "eu"

masculino e atravessa os métodos punitivos contemporâneos, decorrentes de aplicações e

interpretações masculinizadas do direito penal (CAMPOS; CARVALHO, 2011, p. 152;

MENDES, 2014, p. 92). Sendo um sistema intrinsecamente androcêntrico e que,

historicamente, já se voltou contra as mulheres2, é possível afirmar que o controle penal é

2 As mulheres foram perseguidas pelo sistema penal desde o período inquisitorial, com a redação do Malleus Maleficarum pelos dominicanos Heinrich Kramer e James Sprenger, que transformou a caça às bruxas na

estéril para a sua proteção. Agravando a dominação masculina nas relações de gênero, o

aparato punitivo multiplica a violência contra a mulher ao desmoralizá-la e culpabilizá-la,

mesmo quando vitimada pelo delito (ANDRADE, 2012, p. 131-132).

Denunciando, portanto, a ineficácia do sistema penal no que se refere à proteção das

mulheres contra a violência, a criminologia feminista demonstrou que ele promove, na

verdade, uma dupla ou tripla agressão contra a mulher: não é capaz de prevenir novas

situações de violência (ANDRADE, 2012, p. 131); subvaloriza as especificidades das violências

de gênero quando a mulher ocupa a condição de vítima (CAMPOS; CARVALHO, 2011, p. 152)

- violências perpetradas, frequentemente, no ambiente doméstico e decorrentes, muitas

vezes, de relações afetivo-familiares -; e agrava a punição quando a mulher é sujeito ativo do

delito, submetendo-a a penalidades extra-oficiais não aplicadas aos homens - estupros e

humilhações perpetradas por agentes penitenciários, negação da maternidade, revistas

íntimas, escassez de absorventes, etc.

Nota-se que, de maneira análoga à criminologia crítica, que evidenciou o papel do

capitalismo e do racismo para a manutenção do sistema penal, a criminologia feminista

operou importantes mudanças no pensamento criminológico, demonstrando que a

dominação patriarcal também integra as estruturas do controle punitivo. No plano

epistemológico, por conseguinte, os saberes crítico e feminista se complementam e

contribuem para a desconstrução da concepção ontológica da criminalidade e da

racionalidade etiológica da criminologia tradicional, ampliando as suas formas de

abordagem e os horizontes de investigação. Porém, no plano político-criminal emergem

relevantes conflitos entre os referidos modelos criminológicos, que recorrem a projetos

bastante distintos e até antagônicos para buscar solucionar os problemas que lhes são

apresentados (CAMPOS; CARVALHO, 2011, p. 153).

principal atividade do Tribunal do Santo Ofício, além de iniciar um complexo processo de custódia das mulheres que as excluiu do espaço público ao confiná-las nos reservados espaços do lar ou do convento. Da mesma forma, as políticas de higienização do século XIX perpetuaram o estereótipo da mulher como naturalmente pérfida, maliciosa e predisposta ao crime. Todavia, ainda que permaneçam custodiadas e controladas pelos processos de criminalização e vitimização, as mulheres perderam, hoje, o protagonismo nas análises criminológicas, que passaram a enfocar a figura do homem delinquente (MENDES, 2014).

Tanto o feminismo como outros movimentos sociais, tais qual o movimento negro,

ambientalista e LGBT, enxergam no direito penal uma possibilidade de tutela de interesses

fundamentais até então negligenciados pela legislação, crendo que a expansão do controle

punitivo está apta a tutelar as minorias sociais mais débeis e violentadas. Contudo, as

demandas punitivistas desses movimentos acrescentam munição ao discurso legitimador do

sistema penal, ignorando que esse mesmo sistema foi edificado sobre uma estrutura

individualista incapaz de proteger interesses coletivos (ANDRADE, 2015, p. 294).

Tais reivindicações se revelam contraditórias para o próprio sistema penal, que, ao

mesmo tempo em que atende aos anseios por criminalização primária desses sujeitos e

grupos minoritários (potencial humanista-garantidor), prova, na prática, a ineficácia das

garantias prometidas e a sua debilidade na proteção dos grupos vulneráveis, visto que se

assenta num projeto classista, racista e sexista que se volta, predominantemente, contra os

menos favorecidos no momento da criminalização secundária (potencial técnico repressivo)

(ANDRADE, 2015, p. 294). Verifica-se, outrossim, que o diálogo entre o direito e a sociedade

é muito mais complexo do que sugere o pleito feminista pela utilização simbólica do direito

penal em prol das vítimas de violência. Ele não deve ser encarado como um simples meio de

publicizar e politizar a questão, uma vez que seus efeitos concretos sobre os criminalizados

são perversos, estigmatizantes e destacadamente insuficientes para a modificação da

estrutura patriarcal (CAMPOS, 1998, p. 54).

O direito penal se volta, especificamente, para as manifestações de violência

individual, enfocando a figura do agressor e deixando de lado toda a estrutura que alimenta

o seu comportamento violento (BARATTA, 1993, p. 47, 49). Não se esforça, de modo algum,

para modificar esse cenário, investindo seus esforços em investigar, denunciar e aprisionar

os membros das camadas sociais mais débeis, majoritariamente jovens negros, de baixa

renda e baixa escolaridade3, ignorando a violência exercida pelos homens brancos

integrantes das classes médias e alta.

3 Segundo dados do Sistema Nacional de Informação Penitenciária (Infopen) de dezembro de 2014, 61,67% da população carcerária brasileira é negra, ao passo em que essa etnia representa 51% da população nacional.

A operacionalidade seletiva do sistema penal colhe os seus alvos no interior dos

estratos mais marginalizados ao mesmo tempo em que imuniza os crimes praticados pelos

mais abastados. Assim, o preço da visibilidade conquistada pelo feminismo com a extensão

do controle penal às violências de gênero será pago, quase exclusivamente, pela juventude

negra e pobre, já vitimada pelo racismo cotidiano e pelas opressões de classe.

A criminologia crítica trouxe importantes contribuições a respeito da eficiência do

discurso criminalizante. As funções oficiais declaradas da pena criminal (neutralização,

retribuição, reeducação e prevenção) se caracterizam por uma trajetória de profunda

ineficácia, pois a reprimenda corporal, além de dificilmente lograr êxito na tarefa de

ressocializar o encarcerado, não exerce relevante efeito inibitório sobre a sociedade,

apresentando-se, na realidade, como mera vingança social contra o condenado. Portanto,

mais do que ineficaz, a pena e o próprio direito penal apresentam funções reais de eficácia

invertida em relação às suas funções declaradas, que são substituídas, na prática, por

funções latentes opostas (ANDRADE, 2012, p. 221-222).

Entende-se, então, que criminalizar as violências de gênero, em que pese todo o

arcabouço teórico desenvolvido pelo feminismo, não se configura como um instrumento

adequado para a proteção das mulheres, nem como uma solução para resolver os

problemas decorrentes de uma estrutura social sexista e violenta. Igualmente, tentativas de

reconciliação e a aplicação de penas restritivas de direitos como alternativa ao

encarceramento também não têm gerado efeitos positivos no combate à violência. Nessa

senda, novos desafios são impostos tanto à criminologia crítica quanto à criminologia

feminista: aquela não pode mais ignorar as relações desiguais de poder entre homens e

mulheres sustentadas pela preservação da dualidade público/privado; e esta não pode

deixar de lado a seletividade racista e classista do sistema penal e a ineficácia da

criminalização para a segurança das mulheres.

Analfabetos, alfabetizados informalmente ou com instrução formal até o ensino fundamental completo são equivalentes a 72,13% dos encarcerados, sendo que a maior parcela destes é a relativa àqueles que têm ensino fundamental incompleto (BRASIL, 2016). As estatísticas de 2014 não contemplaram a divisão dos encarcerados por renda.

Considerações finais

Percebe-se que a criminologia feminista tem se apresentado muito mais receptiva à

criminologia crítica do que o contrário. Ao passo em que esta ignorou, por décadas, as

contribuições do feminismo e de suas categorias centrais, aquela incorporou com mais

facilidade os aportes teóricos desenvolvidos pela criminologia crítica, apontando, inclusive,

novas ressalvas à utilização do sistema penal por parte das mulheres ao denunciar o sexismo

que lhe acompanha historicamente.

Por outro lado, a demanda punitivista do feminismo não pode ser desconsiderada.

Expressiva parcela do feminismo ainda clama por mais punição e criminalização, crendo na

eficácia da pena e na ideologia que sustenta o discurso oficial da dogmática penal.

Harmonizar a criminologia crítica e a criminologia feminista passa pelo

estabelecimento de projetos político-criminais que viabilizem a redução das violências de

gênero praticadas contra as mulheres ao mesmo tempo em que combatam as violências

institucionais que recaem sobre os estratos sociais mais vulneráveis. Um projeto crítico

feminista deve, portanto, empenhar-se na criação de pautas de ação que atendam,

simultaneamente, aos interesses das mulheres violentadas e das camadas sociais mais

débeis, estas compostas tanto por homens quanto por mulheres.

Ao propor a investigação das relações entre o controle social e as desigualdades de

gênero, a perspectiva feminista permite uma compreensão ainda mais globalizante do

universo do sistema penal. Destarte, uma criminologia que seja ao mesmo tempo feminista

e crítica deve deslocar o enfoque da visão androcêntrica da criminalidade para a análise e

julgamento dos impactos do controle formal e informal sobre a mulher, seja como autora ou

como vítima do delito. Sem se conformar com os altos índices de violência contra as

mulheres, deve reconhecer a ineficácia da pena para o combate das violências de gênero,

compreendendo que toda a estrutura da lei é fundamentada na dominação patriarcal. A

adesão ao pleito abolicionista, então, não significa relegar a violência generificada ao âmbito

privado, mas enfrentá-la sem recorrer à repressão penal.

Portanto, a construção de uma criminologia crítica feminista tem o condão de

suscitar nova virada paradigmática no pensamento criminológico, pois formulada sob os

parâmetros de uma epistemologia feminista. Agregando a perspectiva do sistema sexo-

gênero como elemento indissociável do controle social e das relações de poder, as reflexões

feministas não só permitem a denúncia das discriminações misóginas que permeiam a

academia, como podem ser tomadas como um novo paradigma do conhecimento que

trabalha a partir da marginalidade, conferindo pertinência a fatos e fenômenos sem

significância sob o prisma de outras interpretações.

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