Para Escrever Escrever

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Para Escrever Escrever

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Ana Vieira PereiraEscrita Criativa e Criao Literria, QuintAventura Livros

Para escrever, escrever

26 de set de 2015

comum pensarmos que quem muito l, bem escreve. Grande iluso: escreve bem quem muito escreve. Escrever melhor quem dominar um repertrio vocabular amplo (adquirido tambm mas no s atravs da leitura), e escrever melhor quem tiver acesso a um cada vez maior nmero de formas de se usar a lngua escrita. Escrever melhor quem se dedicar a observar a maneira como a linguagem escrita est presente em nosso dia, caminhando na direo de um olhar crtico e avisado.

Mas para escrever bem o que preciso, mesmo, escrever. Muito. Com tcnica, disciplina, dedicao e tempo. Eu sei, quase desanima. Mas no to grande o drama quanto parece.H dois momentos fundamentais no processo da escrita. Valem para tudo, do poema que se dedica namorada tese de doutoramento em fsica quntica. Podem estudar-se todas as tcnicas e demais gavetas que guardam e fecham a produo textual. Sem o momento do desdobrar criativo e sem o momento da reflexo atenta sobre o escrito, muito pouco se faz.

Temos em comum, todos ns seres alfabetizados, um processo de aquisio de cdigo calcado sobretudo nos interditos. No que no se pode fazer. No se pode escrever errado, no se pode escrever sem usar maiscula no comeo de frase, no se pode escrever sem sentido, no se pode escrever com s quando com z (e vice-versa), no se pode usar ponto quando vrgula, no se pode escrever mentiras, nem bobagens, nem palavres, nem coisas sem princpio, meio e fim. Um nunca acabar de nos.

Escrever processo. De encontro do si mesmo. Da prpria e irrepetvel voz. Podemos (e devemos) escrever como escrevia Cames, ou Drummond, ou Clarice... e nessa procura do como um outro Eu se faz palavra, tatearmos por entre essa selva de letras, em busca da nossa prpria voz. Infelizmente, no se d escrita o tempo de que ela precisa. Para encontrarmos essa voz prpria e nica preciso lapidao, observao, compartilhamento. E preciso permitir que a palavra viva em estado de liberdade, deixando-a que se escreva errado, que no tenha sentido, que no corra atrs da letra certa, que diga mentiras e bobagens e comece do meio para chegar ao princpio. A palavra que no se diverte no se torna cano.

Antes de mais nada, so precisos espao e tempo para poder plasmar no papel as palavras tal qual sadas de nossas mos. Sem censor interno que fique procura do erro. Sem desvio do caudal criativo porque preciso saber se aqui precisa de dois pontos porque trecho enumerativo. Isso so assuntos para depois. Nesse momento do criativo, so precisas asas. Que voem alto, sem limites no cu. Que experimentem no silncio e no rudo, dentro e fora de salas, debaixo de rvores e em pleno sol, com companhias que escrevam a seu lado e em solitrio isolamento. No meu vocabulrio, isto ainda no escrever. Isto no tem nome. Isto penetrar no reino das palavras - onde as palavras vivem, como os poemas, em estado de dicionrio, segreda Drummond. construir a capacidade de ouvi-las dentro de si, na direo que queiram. Aprender a ouvir palavras uma arte que precisa praticar-se quando se quer escrever.

Como em toda arte, preciso matria. Preciso de argila para uma escultura, de tintas para uma pintura, de sons para uma sinfonia. Para escrever, preciso de palavras. E no de quaisquer palavras: daquelas que vivem em silncio e que, de repente, porque me atento, as ouo e escrevo. Uma folha cheia de palavras: agora sim, com matria concreta nas mos, posso escrever. Agora, com esse papel cheio das palavras que busquei (ou me buscaram?), posso olh-las. Pens-las. Refleti-las. Corrigi-las. Dar-lhes pontos e vrgulas e pargrafos, para que respirem. Experiment-las assim, nessa ordem, depois diferente. E depois daquele outro jeito. E fazer escolhas, sem pensar ainda por que, s ateno ao que o som diz. Palavra escrita som preso em linhas, que precisa da nossa voz para se fazer verdade.

A reflexo atenta sobre a escrita feita de escolhas. Ao lermos com ateno um trecho de Saramago, ficamos cara a cara com as suas escolhas. Gostamos, ou no - tanto faz. O importante perceber as opes tomadas, deix-las ressoar dentro de ns. Aprendemos pelas suas mos, no uso que faz das palavras e dos espaos silenciosos entre elas. Da mesma forma, encaramos o texto prprio. Aquela juno de palavras que ouvimos e a que demos forma. Agora lapidamos - na maioria das vezes, retiramos mais de metade de todas elas, como um Michelangelo que encontrasse finalmente seu Davi dentro do pedao enorme de mrmore. Na arte de escrever, menos sempre mais. Quanto mais se retira mais se ganha. Como, ento, retirar de onde nada se tem? Como imaginar que um texto nasa do nada, por arte de mgica, e encante pela sua profundidade?

No, no: preciso ter escrito para poder escrever.

A base da boa escrita est guardada dentro das vrias verses que se faz de um texto, sem considerar que a ltima hoje seja a definitiva de amanh. bom guardar por uns dias, e retomar o texto. L-lo em voz alta, para sentir a msica que tem (ou no) na retaguarda. Cuid-lo como a um filho. No se pode ter pressa para criar um texto.

A boa notcia que esse um processo que se aprende; comea a ser trilhado e, com o tempo e a prtica, ganha rapidez, ainda quando s pensamento. Comea-se a escrever enquanto se pensa, e a pensar enquanto se escreve. Adquire-se fluncia, tranquilidade, agilidade.

Na prtica de alguns esportes, existe uma forma de treino especfica - osparring. Com o mnimo de regras e de arranjos informais, e evitando o nmero de leses, osparring uma forma de colocar teorias aprendidas em prtica. Osparring partner,ou parceiro de treino, contratado no como adversrio, mas como um meio de aperfeioar a tcnica. Tambm na escrita um partner sparring algo de imenso valor. Algum que, com recursos tcnicos e experincia prtica, auxilia o praticante a esmerar-se no aperfeioamento tcnico e formal dessa arte. Umsparring partnerda escrita l e comenta, sugere e corrige, apoia e fundamenta.A escola um terreno propcio para a atividade dowriting sparring. O professor, com um domnio esmerado da arte da escrita, o parceiro ideal e privilegiado de seus alunos. L e comenta, sugere e corrige, apoia e fundamenta. V crescer, diante de seus olhos, as capacidades discursivas, poticas, narrativas e o longo etcetera que cabe no domnio da palavra.

Para isso, no entanto, preciso que se prepare; preciso que ele mesmo trilhe com antecedncia os caminhos que quer ver seus alunos trilharem; preciso que se aventure. O domnio da arte est ligado inexoravelmente sua prtica, e o professor que no pratica (ou seja, que no escreve, e reescreve, e busca ele mesmo a sua voz) no conseguir ser esse parceiro que orienta, nutre e estimula. E precisa, ele prprio, de um parceiro.

Ao longo do tempo, chegaro desafios que se guardaro insatisfeitos e incompletos por dentro de cadernos. H de chegar o seu dia. Como chegaro os nossos, se nos mantivermos atentos sua espera, confiantes na sua chegada e gratos pela sua existncia.