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Para meu amigo, Luigui, que - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/5158579.pdf Espantada e horrorizada, eu começo a correr. Corro na mesma direção

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Para meu amigo, Luigui, que

me ensinou que fugir é algo

que faz parte da vida –

mesmo que para isso tenha

sido necessário me deixar...

Capítulo 1 – Saída Explosiva

As explosões nos faz correr como loucos. A estrutura inteira sacode, e montes de poeira de

concreto e pedaços de reboco e tinta caem sobre nós. Minhas pernas queimam, meu pulmão

queima. Eu e Gael estamos em chamas novamente, mas de um modo completamente negativo.

Os monstros atrás de nós não desistem, as explosões não desistem, e nós não desistimos.

Subitamente, Gael para de correr. Ele volta para trás alguns metros, onde estão enormes

caixotes de madeira. Não importa o que ele vai fazer, se ele não se apressar, vamos ambos

morrer!

- Gael! Não temos tempo para planos! Temos que fugir!

Mas ele não me ouve. Continua a empurrar as malditas caixas para o chão, para

derrubá-las. No frenesi que se tornou nossa fuga, não consigo distinguir qualquer pensamento,

então não compreendo o que está acontecendo. Só entendo que nossas vidas estão em jogo, e

que não temos tempo para executar qualquer que seja o plano.

- Gael, agora! – As palavras saem completamente berradas, desesperadas. Eu soo mais

como uma garota enfurecida do que como uma sobrevivente desesperada.

- Vai! – berra ele de volta, me assustando. Eu jamais o ouvira gritar. Quando ele o faz,

isso me faz saltar. – Encontre e libere uma saída.

Espantada e horrorizada, eu começo a correr. Corro na mesma direção de antes,

deixando Gael para trás. Fiquei assustada de imediato com sua atitude, mas sei que aquele não

é o Gael a qual estou acostumada. Não é meu Gael. Aquele Gael é o garoto que não quer

morrer, e não quer me ver morrer. Aquele Gael em breve vai embora, e o outro voltará. Voltará

para mim! Ele não me abandonará. Não agora.

O corredor é consideravelmente largo, e suficiente para que algumas paredes se

desfaçam e caiam sobre mim. Desvio dos pedaços de concreto por pouco, sentindo as

explosões recomeçando. O prédio vai vir abaixo em pouco tempo, e quando vier, Gael e eu

teremos de estar longe daqui.

Eu corro até meus músculos terem se fundido à meus ossos, e meus ossos terem se

tornado borracha fluida. Mesmo assim, eu não paro. Desvio com dificuldade do concreto

caindo, algumas vezes sendo acertada no ombro ou nas pernas por eles. Ensanguentada,

derretida até a alma, temerosa. Esse jogo não acaba, não é?

A porta é simples, grande e metálica, mas é como se eu visse brilho saindo dela, e o

cantar de anjos vindo de detrás dela. A saída está tão perto que quase posso sentir o ar fresco.

Com o ombro, eu me jogo sobre as portas. Estão trancadas, obviamente, mas não com o

mesmo nível de segurança das portas do lado de dentro. O presidente Abraham não esperava

que fossemos capazes de chegar até aqui. Ele nem ao menos se deu o trabalho de reforçar a

tranca. Com um chute, eu a abro. O ar quente do lado de fora e a luz do sol da tarde me

atingem com força, como um tapa na cara. O melhor tapa na cara que eu já tomei na vida.

Eu me viro para o caminho de onde Gael virá – bem a tempo de ver a parede ao longe

caindo. Ela se curva, com um som horrível, e cai, bloqueando a passagem. Gael, penso. É a

única palavra que eu consigo pensar. Gael. Ele não virá. Gael. Ele não sairá comigo. Gael. Um

buraco maior que meu coração começa a se abrir em meu peito. Não posso tê-lo perdido

também. Mas perdi.

Eu caio no chão, de joelhos, incrédula. Não. O pensamento vem solitário em minha

cabeça. Não pode ser verdade, mesmo sabendo que é. E é então que eu compreendo que o jogo

acabou – para mim. Não há porque continuar, não é? Gael está morto. Victor está morto. Por

que eu deveria continuar viva? Qual o sentido de a vida e o amor continuarem?¹ A dor toma o

lugar de tudo: da esperança, do amor, e principalmente, do desejo de viver. Agora tudo é dor, e

lágrimas. Eu choro, então.

Todos os momentos que vivi com Gael vêm à minha mente, me estapeando com força,

lançando-me em um turbilhão violento que me faz perder os sentidos. Tudo aquilo a que

sobrevivemos, de tudo aquilo que fugimos... Nada disso faz sentido agora que a luta acabou.

De alguma maneira, meu coração se desfaz ainda mais do que se desfez na noite em que

meu falecido melhor amigo, Victor, foi assassinado. As afirmações que Gael e eu trocarmos

durante nossa sobrevivência agora parecem distantes demais, como se tivessem acontecido a

um milhão de anos; ou melhor, como se jamais tivessem existido. Seus lábios se movendo

enquanto ele dizia “Eu também te amo” aparecem em minha mente, como um CD arranhado,

repetindo a mesma cena sem parar.

Gael se foi, e não vai voltar...

Eu ouço um barulho vindo dos escombros, mas não vejo nada. Minha visão está

completamente embaçada por conta das lágrimas, então não consigo ver o que está vindo. Mas

não me importo mais. Espero, sinceramente, que seja um daqueles robôs de metal psicopatas,

que tenha vindo me pegar, porque não quero continuar a viver. E mesmo se não for um deles,

mesmo se o presidente realmente não souber que estou aqui, e os monstros não vierem, eu

ficarei aqui, até que o prédio inteiro desabe e me enterre junto com Gael.

Eu abaixo minha cabeça, subitamente cansada. Agora que a corrente de adrenalina

deixou meu corpo, meu corpo está cobrando sua parte, me deixando exausta e sem vontade de

me mover. Pouco importa. Mesmo se eu pudesse correr a cem quilômetros por hora agora, eu

não correria.

Os escombros se movem novamente, e eu vejo uma mão ou um braço – minha visão

está embaçada demais – surgir. Eu sabia que eles – aqueles robôs malditos que foram lançados

atrás de nós – não desistiriam com facilidade. Aí está minha prova. Depois de muita

insistência, o monstro abre caminho para metade de seu corpo, e parece tentar me alcançar.

Mas estou distante, e ele não consegue.

Até que eu pisco, e as lágrimas acumuladas escorrem.

Gael.

É a mão de Gael, o braço dele. Ele está vivo, tentando sair do meio dos escombros,

canhestramente.

Quando o vejo, eu me levanto e corro para cima dele. Eu puxo-o com forço, tentando

tirá-lo da fenda de concreto. Mas há um empecilho: há uma armação de concreto muito

encostada nele, e sendo empurrada para cima dele pro causa do peso dela, como um torno com

dentes. Se eu puxar com mais força, há a possibilidade de rasgá-lo. Se eu não puxá-lo rápido, o

torno de concreto o empalará.

– Kaya, olha para mim! – Mas eu não olho. Pois sei o que ele vai pedir, e sei que eu não

conseguirei fazê-lo. – Kaya, olha para o meu rosto! – Mesmo relutante, eu obedeço. Seus olhos

estão sérios e tensos, mas ele conseguiu mascarar seu medo. Agora que sei que ele está vivo,

compreendi que farei qualquer coisa para que ele continue vivo. Eu seguro as pontas de meus

medos. – Você vai ter que me puxar. Não importa o quanto isso vai me machucar fisicamente,

não importa. A gente vai sair dessa juntos, entendeu?

Eu viro meu rosto por um momento, enquanto digiro a ordem. Sei que vai doer mais

nele que em mim, mas tenho de fazer. Não ficamos de pé todo esse tempo para cai agora. Eu

olho para ele, com os olhos cheios da determinação que assumi quando escolhi permanecer

viva ao lado dele, e sei que ele vê em meus olhos minha decisão. Não importa o que aconteça,

Gael e eu estamos nessa juntos, e vamos sair dessa juntos.

Eu agarro a mão de Gael com ambas as minhas mãos, e apoio meu pé na parede de

restolhos de concreto. Ele me segura com força. Eu respiro fundo três vezes, e concentro toda a

minha força em meus braços e pernas. Por um momento, minha determinação foge, mas eu a

recupero. Quando tenho certeza de tudo, eu o puxo.

Desequilibro-me e caio no chão, com Gael por cima de mim. Quando sinto seu corpo

rijo sobre o meu, mas sinto que ele está fisicamente bem, então eu sorrio. Sinto o sangue

escorrendo do corte em seu peito, e isso me preocupa, mas sei que é superficial. Gael

sobreviverá. Assim como eu.

Agora que meu momento de desespero ante a morte de Gael passou, eu volto a sentir o

chão chacoalhando, e meu desejo de sobreviver retornando. O complexo ainda está desabando,

e nós ainda precisamos sair.

A porta está a apenas alguns poucos metros de distância, mas parecem mais quilômetros

quando encaramos daqui. Gael se levanta, e me puxa junto com ele. Suas mãos estão

escorregadias por causa do sangue que escorreu, mas ele parece bem – um pouco pálido,

talvez, mas bem como um todo. Sua força física não foi afetada em nada. Eu engulo minha

saliva. É impressão minha ou sinto realmente o sabor do sangue?

Nós corremos até a saída, chacoalhando de acordo com as explosões. Estamos a apenas

um metro da gloriosa luz, e então tudo desaba.

A única coisa que sei é que sou puxada. O ar escapa de meus pulmões ante a queda

súbita, e o vento açoita meu rosto somente durante somente um segundo. Então sinto uma dor

lancinante nos joelhos e cotovelos e no quadril, mas sinto a mão de Gael ainda. Nem sei se

recupero o fôlego.

Quando abro meus olhos, vejo a luz brilhante do sol. Se estivermos mortos, devemos

estar diante do paraíso, ou quem sabe diante do fogo do inferno. Mas, ao me concentrar,

descubro que é luz do sol mesmo, clara e quente. E é assim que sei que estamos fora da

construção. Escapamos. Nós realmente escapamos. É quase inacreditável, depois de tanto

tempo, mas é verdade.

Eu olho para a direita, na direção da mão de Gael. Afrouxo meus dedos dos seus. Ele se

levanta lentamente, e abre os olhos. Um sorriso brota em seus lábios imediatamente. Ele

também está sentindo o alívio, exatamente como eu. Ele olha para mim, e eu sorrio para ele.

Nosso abraço é tão apertado que penso que se estivesse mais quente aqui, nós nos

fundiríamos. Não o solto nem por um segundo, nem titubeio. Estou segura aqui. Sinto-o aqui

comigo, e então sei que continuo viva, e inteira. Ou melhor, quase inteira. Mas isso não

importa. Eu consegui. Mantive-me viva, e Gael se manteve vivo. Nada mais importa agora.

Ao soltar-me de Gael, eu olho para a pilha de escombros que antes era o Shopping

Mall. Agora nada sobrou. Tudo o que aconteceu lá dentro, que, agora mais parece um sonho

ruim, permanece lá dentro. Tudo o que havia foi esmagado, e agora está em chamas. Nada

sobreviveu. Absolutamente nada. A pilha de mais de dez metros de altura de concreto armado

confirma que o plano mais brilhante de jogo do presidente Abraham funcionou perfeitamente.

Ou, como eu havia dito antes, quase.

Gael e eu nos levantamos. Deve ser de tarde agora, pois o sol nos banha com sua luz

maravilhosa, e a sombra dos resquícios do que um dia fora um centro de compras é projetada

para o lado oposto a nós. Estamos nos fundos da construção, perto do estacionamento. Boa

parte desta também desabou, mas em função do colapso do prédio principal, que estava

próximo demais.

Há diversos carros ali, o que pode nos oferecer um esconderijo, caso precisemos. Eu

olho de esguelha para Gael. Ele também vistoria o estacionamento. Sinto vontade de abraça-lo

novamente, mas me refreio. Não preciso dele pensando que estou desesperadamente carente –

mesmo que eu esteja. Compreendo então o que o olhar de Gael significa: um novo plano de

fuga.

Mesmo agora que estamos fora da armadilha mortal que fora o Shopping Mall, Gael

não para de se preocupar em fugir. Isso está claro. Em outras palavras, o jogo não acabou no

momento em que pisamos fora do prédio. Isso faz com que eu compreenda a metáfora do

presidente Abraham. Quando ele disse “que os mais fortes sobrevivam”, quando ainda

estávamos dentro do prédio, ele quis dizer que perante ele, nós todos somos fracos. Perante o

poder político do país, ninguém pode sobrepujar. Estamos todos à mercê deles, subjugados por

sua vontade.

Eu dou uma última olhada para trás, para os escombros, que agora são o túmulo de

milhares de pessoas, e, em especial, de meu amigo, Victor. Com um último aceno com a

cabeça, eu me despeço dele.

Viro-me para Gael.

- Você sabe dirigir?

Capítulo 2 – Mil Quilômetros Por Hora

Eu não sabia que Gael pilotava tão bem. Na verdade, eu nem sabia que ele sabia dirigir! Então,

quando arrancamos da garagem com um carro roubado, eu fico surpresa. E, como se para me

deixar ainda mais abismada, Gael sabe dirigir perfeitamente bem.

Enquanto ainda estávamos no estacionamento, Gael e eu ouvimos uma sirene. No

começo, pensamos se tratar de um caminhão de bombeiros, ou coisa que tipo, que viera para

extinguir o fogo que ainda queimava no lugar, ou resgatar os sobreviventes – que não existem

–, ou os dois. Mas quando eles se aproximaram, percebemos que se tratavam de carros de

polícia. Aquilo só podia ter um significado: Abraham sabia que estávamos vivos. E agora

mandou oficiais de policia para nos pegar.

Antes mesmo que eu tivesse tempo de entrar em pânico, Gael arrebentou a janela de um

carro, destravou a porta, fez ligação direta e me mandou entrar. No momento, como eu estava

assustada demais, nem considerei perguntar a ele onde ele aprendera a fazer aquilo. Mas alguns

momentos depois de entrarmos no carro, a pergunta começou a coçar em minha língua.

Mas não tive tempo para perguntar. Gael fechou sua porta, e mal esperou que eu

fechasse a minha. Simplesmente saiu arrancando, correndo estacionamento abaixo – estávamos

no primeiro andar. Quando atingimos o nível da rua, Gael só me pediu para colocar o cinto de

segurança. Um segundo mais tarde, três carros de polícia estavam atrás de nós, e Gael corria

freneticamente pelas ruas largas da cidade.

Agora, no momento atual, eu aviso a Gael:

- Tem outro carro, vindo esquerda do nosso. Eles vão nos encurralar se você continuar

usando a via principal!

Sem perder tempo, Gael faz uma virada brusca, e o carro faz um cavalo-de-pau.

Quando penso que ele não pode estar mais louco, ele pisa fundo no acelerador, e parte para

cima dos carros dos policiais. Eu mal consigo ouvir minha voz ao gritar seu nome.

- Se segura! – grita ele para mim. Eu me agarro ao apoio sobre minha cabeça.

Gael espera mais um segundo, enquanto acelera para cima deles. Eu quase posso ver

nossos carros colidindo, e pedaços de Gael e de mim e de todos os policiais voando para tudo

quanto é lado. Não dá para acreditar que eu sobrevivi tudo isso com ele para morrer agora, em

um acidente de carro causado por ele!

Mais um segundo se passa, e mais um monte de metros são devorados por nosso carro.

Então, inesperadamente, eu sinto o ar sento tirado de meus pulmões. Se não estivesse usando

cinto de segurança e não estivesse segurando o apoio, teria voado para cima de Gael. Tudo

dura poucos segundos, e então estamos novamente correndo em linha reta. Demoro um

segundo para entender o que aconteceu, mas é tempo demais, e logo estamos correndo em

direção à morte novamente: Gael virou o volante em alta velocidade, e nos fez mudar de

ângulo. Agora nos corremos para cima de uma muralha.

Quando acertamo-la, eu sou jogada para frente. O carro desacelera por um momento,

mas logo Gael pisa fundo novamente, e então estamos de novo correndo. Acabamos de quebrar

uma cerca que deveria impedir os motoristas de acessar as ruas adjacentes pela via principal!

Entramos na área urbana. Gael seguiu meu conselho.

Não demora um segundo para que eu ouça os carros de polícia correndo atrás de nós.

Agora o perigo se tornou ainda maior: além de mais carros nos perseguindo, estamos em uma

área onde as ruas são mais sinuosas e estreitas. Eu ouço um barulho altíssimo, e quando olho

pelo retrovisor, vejo que um dos carros de nossos perseguidores capotou.

Gael avança e ganha território, mas os agentes são rápidos também. Por enquanto,

estamos em uma rua reta, mas o que será que acontecerá quando encontrarmos uma curva.

Vejo pessoas correndo para sair de nossa frente, mas Gael parece implacável. Nosso plano era

fugir, não matar alguém, penso, mas não digo. Eu sei que ele não machucará ninguém.

Então, a resposta a meu pensamento vem. Linda e curta, uma curva de aspecto

monstruoso aparece. Seu grau é pequeno demais para que passemos na boa.

Vejo Gael se preparar para fazer a curva. Meu coração, que já não estava batendo a

cento e cinquenta por minuto, acelera. Os lábios de Gael se juntam em uma linha fina, e seu

maxilar fica tenso.

O tempo parece passar mais devagar enquanto fazemos a curva, mas Gael não

desacelera nem por um segundo. O carro sai do chão no meu lado, e eu sinto meu corpo

flutuar. Penso que não vamos conseguir, e novamente, a cena de nossos corpos despedaçados

no chão me vem, mas eu a ignoro. Sinto um tranco quando o lado de Gael do carro bate na

parede. Quando abro meus olhos, já estamos correndo de novo.

- Ky, o quê você vê aí atrás? Meu retrovisor já era!

Pelo retrovisor lateral, posso ver que os carros de policia, por serem mais pesados, estão

tendo as mesmas dificuldades em fazer a curva, mas isso não os está parando.

- Não vamos conseguir escapar se continuarmos fugindo assim! – grito para ele, por

cima do rugido do motor. – Temos que despistá-los!

Gael troca a marcha, e aos poucos o carro ganha mais velocidade. Chegamos aos cento

e cinquenta quilômetros por hora. Eu prefiro não ficar pensando na velocidade. Se capotarmos,

vamos ambos morrer!

Entramos em uma rua larga, sem diminuir a velocidade. Há outros carros aqui.

Depois de uma centena de metros, Gael fala comigo.

- Ky, você confia em mim? – Sua voz é muito séria. Eu concordo com a cabeça, até me

lembrar de que ele não pode olhar para mim.

- Confio! – grito de volta. Nem sinto mais meu coração batendo. Agora tudo o que

restou em meu peito é uma britadeira enlouquecida.

- Então tira o cinto de segurança! – Com uma mão, Gael faz isso, e tira o dele. Ele só

pode estar louco.

- O quê? Você perdeu o juízo? – Não consigo acreditar na falta de bom-senso desse

plano.

- Você disse que confiava em mim! – diz ele, e desta vez ele olha para mim.

Sem alternativa em vista, eu o obedeço. Rapidamente, tiro meu cinto de segurança, ao

mesmo tempo em que percebo que estamos chegando a um local que está em obras.

- Segura minha mão! – diz ele. Eu seguro a mão que ele oferece com toda a força que

consigo encontrar. – Ky, não importa o que aconteça, não importa o quão louco isso possa

parecer, não solte minha mão! Não se segure em nada, só em mim.

Eu engulo em seco. Meu peito parece estar sendo pressionado por uma chapa de aço de

leves trinta centímetros de espessura. O que ele vai fazer?!

A área em reformas está pior que eu pensei. A uns quinhentos metros à nossa frente, há

um enorme buraco, que ainda não foi preenchido o buraco é enorme, e começa muito

subitamente. Se alguém cair ali, suas chances de sobreviver são pequenas.

Gael avança, atropelando placas e montes de sacos de cimentos. Não há nenhum

trabalhador por aqui, percebo.

Sinto o carro sendo sacudido para a esquerda e para a direita. Gael só pode estar louco!

- Ky! – Eu olho para ele. Devo ter feito uma cara de pânico muito horrível, porque ele

desvia rapidamente. – Quando eu contar três, a gente pula, ok?

- O quê?! – Eu começo a protestar, a dizer que a experiência de quase morte dele mexeu

com seu cérebro, e que ele não está raciocinando direito, mas ele não me dá tempo.

- Se não pular, nós dois vamos morrer! Faça o que eu digo! No três. – Com uma mão,

Gael guia o carro, e a outra me segura. – Um! – Ele solta a mão do volante, e destrava a porta.

Não pode ser que ele esteja falando sério! Até mesmo se formos acertados pela porta nós

podemos morrer! – Dois! – Eu não acredito nele. Só pode estar brincando! Só pode estar

zoando com a minha cara. Já ouvi falar de plano suicida, mas isso é demais! Acabamos de

passar por dentro de outro depósito de cimento quando ele grita: – Três!

Não tenho tempo para desistir. Largo tudo o que estava segurando, e pulo junto com

Gael.

Novamente, o tempo fica lento. Os segundos parecem horas. Tudo o que consigo ver é a

luz do sol se expandindo, junto com uma mancha alaranjada. Ainda consigo ver o borrão

branco do cimento que atropelamos. O ar nem ao menos é tirado de mim, pois nem tempo de

me lembrar de que eu preciso dele para respirar. O máximo sólido que eu sinto é a mão de Gael

segurando a minha

Mas até mesmo isso é tirado de mim.

Quando Gael solta minha mão, e não há mais nada em que me segurar para continuar

viva, é que sei que estou caindo. Nos poucos segundos que eu fico sem sua mão, eu entendo

que se não der um jeito, vou cair da maneira errada, e quebrar o pescoço.

Ouço uma explosão. Sinto o calor e o impacto da explosão. E então, atinjo o chão.

Quando, mais cedo, eu havia dito que tudo era dor, quando pensei ter perdido Gael, eu

estava enganada. Eu nunca provara a sensação do mundo se tornando dor. O ar é expulso de

mim, como se fosse indesejado, e expelido de uma vez só. Meu braço direito atinge o chão

primeiro, e uma dor horrível toma conta dele.

Tudo o que consigo registrar é que eu ainda estou viva alguns segundos depois de

atingir o chão. Só não sei se ainda estou depois disso.

Capítulo 3 – Lentamente

Até mesmo abrir meus olhos é algo doloroso. Quando me sinto forte o suficiente para isso,

abro-os devagar, mas a luz que é difundida sobre mim lança uma pontada violenta de dor em

meu cérebro, então eu os fecho rapidamente. Mas essa dor é obviamente a mais tênue entre

todas. Todos os meus ossos doem, mas os ossos de meu braço direito berram comigo. Não

tenho de me preocupar com um único foco de dor, pois esta é distribuída por toda a extensão

de meu corpo.

Eu tenho mexer meu braço esquerdo, mas descubro que isso faz com que a dor aumente

infinitamente em intensidade. Então permaneço parada, tentando avaliar a gravidade das

lesões. Descubro também, rapidamente, que minha mente está muito enevoada, e meus

pensamentos não são abrangentes. Tudo no que consigo pensar é a dor que sinto.

Eu fico pelo que parecem ser horas na mesma posição – tal qual nem sei qual é, pois

não sinto meu corpo. Não consigo pensar em nada, por isso não consigo me lembrar de nada do

que aconteceu. Como será que eu cheguei aqui? Tudo o que meu cérebro entorpecido consegue

me fazer lembrar é do flash branco, e do calor tênue, e mesmo os dois parecem muito distantes.

Depois de muito tempo, eu tento me mover novamente. Pontadas de dor ainda são

lançadas sobre mim, mas meu cérebro parece um pouco menos anuviado. Eu consigo processar

detalhes que antes não consiga me lembrar. Lembro-me de Gael. Não sei onde ele está, mas sei

que ele está comigo. Nem sei se sobreviveu!

- Gael... – eu tento sussurrar, mas minha voz não passa de um pequeno miado agudo.

Em resposta, ouço um gemido baixo, tão baixo que eu não conseguiria ouvi-lo se aqui não

estivesse tão quieto. Isso significa que ele está vivo. Se está bem ou se ficará são perguntas que

eu não posso responder, mas isso não importa agora. Tudo o que importa é que ele está vivo.

Depois de muito tempo, eu consigo mover meu braço esquerdo – o direito ainda está

doendo terrivelmente. É quando percebo que meu braço está sobre o de Gael. Com um

movimento rápido, eu libero o dele, e o meu atinge o chão. Insistentemente, eu empurro meu

braço, até que sinto seus dedos nos meus.

Demora muito – muito mais do que posso contar –, mas eu a dor finalmente dá alguma

trégua. Com o passar do tempo, eu começo a conseguir processar melhor as coisas. Quando

abro meus olhos novamente, percebo que a noite já avançou, e que estamos sendo banhados

pela luz da lua. Agora consigo me lembrar de como acabamos aqui. E agora consigo explicar o

clarão e o calor. Eu me levanto muito lentamente, tomando cuidado para não forçar meu braço

machucado, e ainda sinto certa dor, mas esta é suportável.

Quando consigo me sentar, consigo ver os restos de nosso carro roubado. O que antes

era um belo carro esporte azul perolado agora é uma misera pilha de metal queimado e fino,

enegrecido. Nada sobrou. O chão está negro e poeirento. Nem mesmo as paredes do buraco

onde estamos foram poupadas. E pensar que seu tivesse sido teimosa com Gael, e não tivesse

pulado, teria morrido naquele lugar.

A pergunta que não quer calar é: por que o presidente tivera a chance de nos pegar e

não o fez? Estávamos completamente indefesos, machucados e desacordados. Não tínhamos

defesas, e o plano de Gael não fora exatamente o melhor desde que tudo isso começou. Então,

por que ele preferiu nos deixar aqui, ao invés de ordenar que nos pegássemos de uma vez? Sim,

é verdade que a explosão do carro sugeriu que nós dois houvéssemos morrido. Mas se eles

houvessem olhado para baixo, ao invés de recuar, teriam nos visto.

Eu avalio a gravidade de meus machucados enquanto pondero a situação. Há arranhões

feios em quase toda a extensão de meus braços e pernas, mas nada mortal. Meu braço direito

dói muito, mas eu consigo mexê-lo, então não está quebrado. Quando olho para cima, agradeço

à nossa sorte. Vejo a altura da qual caímos. Poderíamos ter morrido na queda, quebrando o

pescoço. A velocidade a que fomos lançados, assomada a altura a que fomos jogados deveria

ter nos matado, ou ao menos quebrado todos os nossos ossos.

Eu olho para Gael, mas não consigo ver seu rosto na fria noite. Eu lanço minha mão

sobre ele, sem me importar com o local que atinjo. Minha mão pousa sobre seu peito, e eu

sinto-o respirando – seu peito sobe e desce normalmente. Junto com a confirmação de que ele

está vivo vem um gemido de dor.

- Desculpe... – sussurro para ele. Discorro minha mão por seu peito até seu braço, e

então até sua mão. Entrelaço meus dedos nos dele. – Você está bem? – pergunto, mas ele não

responde. Sei que ele ainda sente muita dor, e ela é tão insuportável que ele não consegue nem

ao menos falar. Preciso, então, criar uma maneira de fazer com que ele me responda sem

precisar se esforçar.

- Gael, você consegue me entender? Aperte minha mão se for sim, e não faça nada se

for não.

Eu espero. Os segundos que demoram até que ele reaja me fazem tremer. Mas ele

finalmente aperta minha mão. Isso me faz sorrir. E sorrir lança um pequeno choque por minha

bochecha e maxilar. Quando eu toco meu rosto, percebo pequenas saliências serrilhadas.

Afasto minha mão, e afasto esse problema da cabeça. Preciso me focar em Gael agora.

- Você consegue se levantar? – Eu espero, mas ele não faz nada, então presumo que seja

um não. – Nem mesmo com minha ajuda? – pergunto. Ele aperta minha mão. Então não jeito

de sair daqui, pelo menos por enquanto. – Você acha que aguenta se eu te colocar no meu colo?

– Ele aperta a minha mão.

Devagar, e com cuidado, eu puxo Gael para cima das minhas pernas. Ele solta um único

gemido, mas se segura. Somente quando ele está em meu colo, apoiado em mim, é que eu sinto

que ele está seguro. Mesmo sabendo que estamos completamente vulneráveis aqui embaixo, e

que qualquer ataque poderia nos exterminar, eu sinto que agora, depois de tanto tempo, Gael

está finalmente seguro.

Eu acaricio o cabelo de Gael, que está sujo e poeirento. Meus dedos acariciam seu

rosto, seu maxilar, sua orelha direita. Eu me lembro mais uma vez de sua declaração de amor,

enquanto ainda estávamos no jogo. E então também sinto-me segura.

As horas se passam, e o dia amanhece. Eu vejo o sol aparecer, e então me lembro de

que precisamos sair daqui. Eu olho para Gael, e vejo que ele agora dorme. Eu sorrio para ele.

Permaneci acordada o tempo todo, nos guardando, e agora o meu corpo está cobrando seu

preço.

Gentilmente, eu sacudo Gael, e ele abre os olhos. Sou banhada pelo verde quente, e por

um sorriso que expulsa de mim todas as preocupações. Sei que, agora, ele já não está mais

sofrendo tanto de dor quanto estava há algumas horas.

- Tudo bem? – pergunto. É com certeza a pergunta mais ridícula que já fiz durante todo

o nosso relacionamento, já que a resposta é óbvia. Nada está bem. Em aspecto algum, nada está

bem. Mas a sensação de que as coisas podem dar certo vem, quando Gael responde:

- Tudo bem.

- Consegue se levantar?

Gael se senta na terra vermelha rapidamente, e vira o dorso para olhar para mim. Dou

um sorriso encorajador para ele. Eu me levanto antes dele. Sinto uma comichão estranha na

perna, onde a cabeça dele residiu por tanto tempo. Mas a sensação passa logo.

Quando Gael se apoia na perna esquerda, ele cai. Eu ajudo-o a se levantar, mas meu

braço direito também está doendo muito. Gael e eu soltamos um gemido de dor ao mesmo

tempo.

- Minha perna... – grunhe ele.

- Consegue movê-la? – pergunto. Ele aquiesce, e dobra a perna, depois estica. Ele se

apoia em mim para fazer os movimentos. – Não está quebrada, então. Meu braço também dói.

- Como eles não nos pegaram? – questiona. Eu balanço a cabeça. Mesmo agora, eu não

consegui entender o motivo.

- Você acha que eles não perceberam que não estávamos dentro do carro? – pergunto.

Não cheguei realmente a considerar a opção, mas agora parece plausível. Ou quem sabe não...

- Não, acho que não. Eles sabem que nós sobrevivemos. Só não entendo por que eles

não desceram e nos pegaram enquanto a gente estava inconsciente. – Gel continua apoiado em

mim quando começa a saltar em uma única perna. Eu caminho paralela a ele, e coloco meu

braço esquerdo em suas costas. – Eu tenho um palpite, mas não sei se estou certo...

- Bem, é por isso que se chamam de palpites, né? – Eu dou uma risadinha no final, e

isso faz com que minhas costelas ardam. Gael sorri, encorajado a falar.

- Já pensou que talvez ele realmente não quisesse que nós fossemos pegos?

- Como assim? – questiono.

- Ky... E se esse jogo ainda não acabou? – Eu olho para Gael, que parou de caminhar.

Eu estou começando a entender o que ele está tentando me fazer compreender. – E se esse for

um tipo de segunda etapa do jogo?

- A diversão ia acabar quando todos morrêssemos – digo. – E como não estamos

mortos...

- Um novo tipo de jogo começou. Nós somos os ratos, e ele é gato.

Com essa nova confirmação, eu sinto toda a tensão que senti quando estava dentro do

Shopping Center voltando, me tornando de novo uma peça desesperada em um jogo injusto.

Novamente, Gael e eu seremos perseguidos e ameaçados, e novamente teremos de correr e

lutar para nos salvar.

Este jogo só começou.

Mais uma vez.

Capítulo 4 – Calmaria Antes da Tempestade

Sim, foi muito difícil sair de dentro do buraco com meu braço machucado e a perna contundida

de Gael. Mas, depois de muitas tentativas e falhas, nós conseguimos. Tudo bem, admito que

passamos por um sufoco horrível, mas, como diria Victor, com paciência e jeito, não tem

buraco estreito.

Pensar em Victor faz meu coração vibrar e se contorcer dentro de mim. Mesmo tendo

dito a mim mesma que eu o deixei ao dar adeus aos restos mortais da construção que o matou,

sei, no fundo, que aquilo era só uma desculpa. Não há como escapar de ficar triste. Eu cumpri

minha promessa para com ele, e venci o jogo por nós dois, mesmo que ninguém houvesse me

avisado de que meu prêmio seria uma segunda parte para o jogo. Acho que, mesmo que tivesse

meu prêmio houvesse sido dinheiro e fama e proteção contra fogo e imunidade e vida eterna,

eu não me importaria. Uma parte de mim para sempre estará perdida por causa de Victor.

Gael e eu não temos para onde ir, então simplesmente saímos da zona de construção e

voltamos á urbana com o máximo de discrição que conseguimos. É claro, algumas pessoas

veem nosso estado, e ficam chocadas. Mas é óbvio. Estamos ensanguentados, completamente

sujos, possivelmente fedidos, e com cara de poucos amigos. O corte no peito de Gael é visível,

mas não está muito feio. Se ele conseguir seguir sem pegar uma infecção, não teremos de nos

preocupar com remédios. Mas, é claro, como tudo desde que o presidente resolveu tentar nos

matar, isso não está em nossas mãos.

Só agora percebo o quanto estou faminta. Não comemos nada desde meio dia antes da

cartada final dentro do jogo de Abraham, e os esforços físicos de quase dois dias em parar

estão cobrando seu preço – e é digno de nota lembrar que eles são consideravelmente altos.

Infelizmente, não poderemos fazer muita coisa imediatamente para aplacar a fome. Aqui não

há regras nem limitações para que não tenhamos para onde correr, mas também não seremos

agraciados com provisões para não morrermos. Aqui, estamos por nossa própria conta. Afinal,

fomos nós que escolhemos permanecer vivos, não é?

Mesmo chamando mais atenção do que o que gostaríamos, Gael e eu nos misturamos

com a multidão, mas permanecemos alertas. Não sabemos se há guardas vigiando as ruas em

nossa busca, então temos de prestar atenção a qualquer pessoa que o olhar não transmita

choque ou repulsa.

Para disfarçar um pouco nossa presença, nós dois nos escondemos nos becos e nas

passagens atrás das lojas, e esperamos que anoiteça.

Nossa cidade é um lugar muito peculiar. Dizem que, às vezes, quanto você caminha por

ela, viaja entre diferentes países do mundo, sem sair de um único lugar. Todo o nosso país

possui essa característica, a falta de alguma muiteza, ou algo que transmita a ideia de uma

cultura própria. Por ter sido construído e edificado há pouco tempo, não foi possível

estabelecer uma única cultura nele, então temos de dividi-la. Aqui, no lugar onde estamos,

sinto com se estivéssemos dentro da antiga Veneza, com suas ruelas em tons de sépia e casas

bonitas e parecidas. Há a possibilidade de caminharmos mais e acabarmos dentro do estilo de

Amsterdam. O lugar onde moro é algo parecido com o subúrbio de cidades como Nova Iorque

ou Londres – é difícil dizer com certeza, visto que os estilos se confundem com frequência, e

se completam de uma maneira que jamais daria certo em outro lugar.

Eu olho os nomes das ruas com frequência, e sei exatamente onde estamos. Estamos

ligeiramente longe do lugar para onde eu realmente gostaria de ir, mas nada que nos mate – eu

acho. Mesmo assim, ainda tenho de pensar bem se quero voltar. Há muito a considerar.

Gael não interfere em minhas decisões, e, tenho de ressaltar, eu decido nosso trajeto. De

tempos em tempos, imagino um lugar para onde passamos ir, mas então desisto disso. Nenhum

lugar é completamente acessível e seguro. Sabe-se lá qual o grau de determinação do

presidente Abraham em nos encontrar...

A noite cai, e logo eu começo a ficar com frio. Ainda estamos com as mesmas roupas

sujas e surradas do começo dos jogos. Eu quase não consigo identificar a ovelha em meu

moletom que antigamente era rosa, e que agora está quase sem as mangas. Minhas botas estão

em perfeito estado. A roupa de Gael está ainda pior do que a minha, e é quando percebo que

precisamos urgentemente trocar nossas roupas.

Dentro do jogo, lá atrás, no Shopping, a coisa era diferente. Não precisávamos nos

preocupar em estar roubando as pessoas visto que elas já estavam mortas. Além disso, tudo

aquilo era uma farsa, imagino, então os donos das lojas não sofreriam dano real ao ter suas

mercadorias saqueadas. Mas aqui, no mundo real, as coisas podem ser bem ruins. Nossas ações

dentro daquela porcaria de Shopping Mall definiriam somente nossa sobrevivência imediata.

Aqui fora, tudo o que fizermos pode acabar nos matando, e estaremos afetando àqueles a nossa

volta com nossas escolhas.

Mesmo achando completamente errado, Gael e eu precisamos de roupas novas, e, de

preferência, de um banho quente, mas essa última parte podemos passar sem durante algum

tempo. O que nós vestimos é um ponto de referência para nossos perseguidores. Mesmo

relutante, eu sugiro a Gael que bolemos um plano para conseguir novas roupas. Inicialmente, o

bom garoto, o garoto educado e civilizado dentro de Gael, se manifesta, e ele torce o nariz para

minha ideia. Mas então nossas necessidade imediatas se pronunciam mais prementes que a boa

educação. Então, juntos, como sempre fizemos, nós criamos um plano para conseguir roupas

novas.

Não sei por que fico surpresa comigo mesma. Sempre fizemos isso, essa coisa de

arquitetar estratégias para conseguir o que queríamos. Então, com a cara e com a coragem que

fui obrigada a adotar, Gael e eu partimos em busca do que carecemos.

Com o passar do tempo, essa coisa de roubar fica mais fácil. Depois de dois dias inteiros

entrando furtivamente nos lugares e roubando somente o necessário para passarmos o dia, eu

começo a me sentir mais confiante, o que é o extremo contrário de quando começamos, quando

eu me sentia mal e pequena e desajeitada. Agora, mesmo me sentido mal ainda, eu me sinto

confiante. Gael e eu somos espertos o suficiente para jamais nos deixarmos sermos pegos.

Quando temos o que queremos, saímos correndo sem rumo, para o mais longe possível

que conseguimos. Nesse ritmo, adquirimos uma mochila grande, algum suprimento

alimentício, roupas novas, e até mesmo algumas guloseimas como balas de goma.

Mesmo sabendo que desperdiçamos tempo e energia preciosos com isso, não consigo

deixar de agradecer a Gael. Mesmo sabendo que eu estava agindo como uma criança pedinte,

ele concordou comigo, e juntos roubamos as desnecessárias balas. Poderíamos ter usado esse

tempo encontrando armas para nos defender, ou mapas para nos ajudar a nos locomover, mas,

ao invés disso... Isso me faz pensar se eu realmente mereço a ajuda e o apoio de Gael. Quer

dizer, sim, eu ganhei o direito de continuar viva vencendo o jogo de Abraham, mas que direito

isso me deu ser aliada de Gael. Até onde sei, isso é injusto, não é?

Gael e eu nos sentamos no chão e encostamo-nos a uma parede, exaustos depois de

tanto correr. Estamos longe o suficiente do último lugar onde entramos para poder nos darmos

o luxo de descansar. É quase noite agora, então é seguro ficarmos parados, pelo menos por

algum tempo. Minhas pernas ainda queimam quando corro, mas a sensação diminuiu bastante

de intensidade, principalmente por causa do tanto de exercício que precisamos fazer todos os

dias.

Eu olho para Gael, e vejo o suor escorrer por sua pele clara. Ele sorri para mim. Ainda

estamos muito saturados de adrenalina para conseguirmos ficar cansados, mas em breve

seremos pegos pelo monstro faminto da exaustão. Não posso ver por causa da camiseta branca,

mas o machucado no peito dele já está muito melhor. Eu sorrio para ele.

- Até que estamos nos virando bem, né? – pergunta ele. Eu balanço minha cabeça, em

aquiescência. Meu pulmão ainda está fervendo demais para que eu consiga dar uma risada.

- Melhor do que eu esperava... – respondo. É a verdade. Estamos nos saindo melhor

aqui fora do que lá dentro. Mas isso é óbvio. Aqui fora não há paredes e portas como numa

gaiola, nem robôs psicóticos correndo atrás de nós. – Eu... – Transformo meu tom de voz, de

um tom de agradecimento para um tom sério. O que vou dizer é sério. – Eu acho que nós

deveríamos tentar voltar para nossas casas.

O sorriso de Gael se desfaz. Esse é um assunto complicado. Eu sei que Gael quer voltar

para casa, rever seus parentes, e voltar à vida normal. Eu mesma quero voltar para casa. A

saudade de meus amigos agora é quase insuportável. Mas, ao mesmo tempo, eu desejo

continuar com Gael. Aqui. Juntos, exatamente como agora.

- Ky, eu não sei... – começa ele, mas eu o interrompo.

- Gael, nós precisamos! Não é como se pudéssemos ficar para sempre na rua! Em breve

será inverno, e a gente não vai poder dormir ao relento! – Ele crispa os lábios. – Gael, por

favor! Não finja que nada está acontecendo. Ninguém vem atrás de nós há dias, então isso só

pode significar que ele desistiu de nos pegar.

- Ele não desistiu, Kaya. – Ele fica extremamente sério. Sua voz é baixa, mas há algo

nela que faz com que suas palavras não possam ser ignoradas. – Ele não vai desistir até que nós

dois estejamos mortos! – Eu solto um suspiro exasperado. – Ky, acredite em mim.

- Me dê um bom motivo – digo. Sinto-me ridícula por pedir isso a ele, mas eu realmente

não tenho mais tanta certeza. Ele – Abraham – teve diversas chances de mandar seus capangas

atrás de nós, mas não fez isso. Isso só pode ter um significado: que esse jogo finalmente

chegou ao fim!

Mas eu não preciso insistir em obter uma resposta. Eu ouço os sons antes de ver os

rostos, e mesmo quando os vejo, eu não os enxergo. Para mim, são apenas borrões. Borrões

assassinos, que vieram atrás de mim para tirar tudo o que mais preso no mundo.

Antes mesmo que eu consiga processar, meu corpo já está em movimento, e eu e Gael

corremos na mesma velocidade, sempre completando a necessidade do outro na corrida, da

maneira que aprendemos. E eu sei agora, que eu estava errada.

Essa maldita brincadeira de gato e rato não acaba. E eu temo que jamais irá acabar.

Aquele homem maldito arruinou minha vida, e tudo começou quando eu coloquei meu pé

naquele Shopping Center com Victor. Não só a minha, mas a de milhares de pessoas. Ele, sem

escrúpulos, sem piedade, sem misericórdia, arrancou de mim muito mais do que o tempo

poderia me ajudar a recuperar, mesmo que eu vivesse um milhão de anos.

Então, enquanto corro por minha vida, lágrimas grossas escorrem por meus olhos.

Não sei como, mas Gael e eu conseguimos despistar os guardas. Eu, sinceramente, até agora

não sei como nós conseguimos essa proeza. Em um momento, estávamos na frente deles,

simplesmente correndo, sem se importar com que direção tomar. No outro, Gael e eu nos

escondíamos em um beco ainda menor do que o onde estávamos inicialmente, ofegando e

rezando para que os policiais não houvessem nos notado.

Não sei por quanto tempo corremos. Só sei que foram horas. Pois somente quando

percebo que não consigo ver o rosto de Gael por causa da falta de luz, é que entendo que

anoiteceu. Se fugir durante o dia já é difícil por conta da pouca visibilidade, quando anoitece,

isso se torna uma missão quase impossível. Mesmo que tenhamos vantagem em nos esconder,

encontrar um esconderijo é um problema.

Eu me pergunto o que fizemos para acabar onde estamos. Escondidos, sujos,

esfomeados, machucados, cansados, desesperançosos... Escondemo-nos sobre debaixo da

proteção de uma ponte, espremidos na parede, sentido o fluxo de água do rio em nossos pés. Eu

me lembro desta ponte. Eu costumava passar por aqui de vez em quando, quando precisava

passar na casa de Victor antes de ir para a escola. Uma atalho. Mesmo sem a luz para ver, eu

reconheço este lugar.

Os guardas passam correndo por cima da ponte, com lanternas e bastões, prontos para

nos atacar. Estamos parcamente escondidos, e um simples foco de luz no lugar errado revelaria

nossa posição.

Eu sei onde estamos. Estamos perto da minha casa. Se atravessarmos essa ponte no

sentido oposto ao da escola e corrermos bem rápido, conseguiremos atravessar as duas quadras

que ainda lembram Veneza, e entrar no subúrbio e aí estaremos quase lá. Mas. É perigoso estar

perto daqueles que amo. Deus sabe o que Abraham faria a eles se soubesse que estão

corroborando conosco.

Não podemos nem ao menos nos aproximar de nossas famílias – eu da minha, ou Gael

da dele, ou mesmo vice-versa. Não podemos nem aos menos nos aproximar.

Para o bem daqueles que amamos, temos de ficar bem longe.

Capítulo 5 – Apanhados

Eu já sonhei em ser uma atriz. Claro isso já há muito tempo. Mas acho que todo adolescente já

sonhou com isso. O prestígio de estar na televisão era quase indescritível, mesmo que eu

jamais houvesse estado na TV. E, quando acontece, eu não poderia me sentir pior.

Enquanto procurávamos um novo abrigo, e nos esgueirávamos por baixo das janelas,

ouvimos algo interessante. Alguém estava com a televisão ligada, e em um volume

consideravelmente alto. Nossa intenção não era parar para ouvir, mas quando o nome de Gael

foi dito em voz alta, eu congelei. Gael também parou, mas estava de costas, então não pude ver

seu rosto, mas sabia que ele estava aterrorizado, assim como eu. Quando nossos sons se

dispersaram, pudemos ouvir as palavras da mulher que apresentava o noticiário local. E

naquele momento, eu soube o que nossa situação era pior do que pensávamos.

“...por crimes contra o estado. A ordem de prisão fora dada diretamente pelo presidente

Brokeraven, com base em seus próprios motivos, os quais não foram revelados. Os fugitivos,

como já citados antes, Gael Mitchel e Kaya Freya, foram vistos pela última vez no Canal Left

Canem, mas seu rastro foi perdido. A policia pede que qualquer cidadão que tenha os vista por

favor avise as autoridades locais o mais rápido possível... Agora, de volta às noticias locais, a

economia crescente...”

Quando tirei os olhos das janelas acima de mim, vi a expressão de Gael. Seus olhos

pareciam assustados, mas demonstravam mais do que isso. De agora em diante, somos

fugitivos procurados, e não poderemos nem mesmo permanecer em nossa cidade natal.

Eu nunca havia notado o quão fundo é o canal, nem o quão gelada é, até ter que encará-

lo.

Gael e eu caminhamos por dentro do rio, para que não haja pegada para que alguém

siga. Além disso, decidimos seguir o curso do rio, ao contrário, em direção à sua nascente.

Mais ou menos na metade do caminho até a nascente do rio, há uma floresta, por onde

podemos seguir até qualquer lugar que ela nos guie. É um plano horrível, é verdade, mas é o

único que temos, por enquanto.

A água chega à altura de minhas omoplatas, e é tão gelada que eu estou começando a

apresentar sinais de hipotermia. Ou talvez esteja exagerando. Gael está atrás de mim,

segurando nossa mochila com as provisões roubadas sobre a cabeça. Há coisas dentro dela que

não podem ficar encharcadas. Seria uma vantagem andar perto e dentro do rio se pudéssemos

beber a água do rio, mas o rio Canem – o qual passa pela cidade de Euris, ou seja, nossa cidade

–, é impotável, por ser excessivamente ferruginosa. Bem, nem tudo na vida são flores e céu

limpo.

Meu desejo é falar com Gael. Há coisas que quero perguntar, mas não quero fazer

alarde, pois aposto que nossos vizinhos nos delatariam se soubessem que estamos fugindo pelo

rio. Ninguém quer se meter ou ter problemas com Abraham Brokeraven.

Há quase cinco anos desde que Abraham “se elegeu” presidente. Toda a população

conhece perfeitamente sua personalidade, e sabemos que ele é um homem cruel e

inescrupuloso – até porque, para se tornar presidente, ele teve de deixar de lado sua moral e

caráter. Enfim, todos nós conhecemos bem a história de como Abraham Brokeraven, um cara

de meia idade com contatos poderosos, conseguiu se apoderar do poder presidencial. Desde

quando Aeris, nossos país, conseguiu se declarar independente, cento e vinte anos atrás, uma

vez singular foi criada. Esta lei rege todos os presidentes Arianos até hoje, e é o único motivo

pelo qual o presidente Abraham tem tanta certeza quanto ao que pode fazer, pois não haverá

consequências: as ordens e vontades do presidente são leis, acima das leis já impostas. Por isso,

Abraham não vai parar, até que nossas cabeças estejam empalhadas e secas em sua parede.

Ouvimos passos acima de nós, enquanto passávamos por uma das incontáveis pontes desta

parte da cidade. Vemos as luzes segundos depois do som, e eu entro em pânico. Mas Gael,

controlado como sempre, toca meu ombro, e faz um sinal para que eu permaneça calada. Eu

ofego, e sua mão continua me tocando.

Vejo Gael depositar nossa mochila na pequena calçada que fora construída para

controlar o rumo do rio – onde temos caminhado a maior parte do tempo – com cuidado para

não fazer nenhum barulho. Quando começo a me perguntar se ele pirou, ele toma fôlego e

tampa o próprio nariz com a mão. Só tenho o tempo de prender meu próprio fôlego antes que

ele me puxe para baixo d‟água.

Inicialmente, eu fico apavorada. É esse o plano de Gael, nos matar afogados? Começo a

imaginar o quanto aquela primeira parte do jogo que tentou nos aniquilar mexeu com a mente

de Gael. Será que ele realmente perdeu a noção do perigo? Mas quando sinto a mão de Gael

segurando a minha, não como se estivesse me impedindo de emergir, mas sim tentando

acalmar meus nervos. Gael não está nos matando, mas sim nos salvando!

Eu prendo minha respiração com força demais, e isso dói. Uso a mão oposta à que

seguro a de Gael e tampo o nariz com ela. Mesmo de olhos fechados, percebo que Gael não

está se movendo nem um centímetro, então o imito. É uma tarefa árdua permanecer

completamente parada debaixo d‟água, mas sei que é a única maneira de impedir que

ondulações sejam criadas, o que nos denunciaria. Por sorte, a água do Canem é escura, e

estamos no fundo dele, então é provável que os guardas não nos vejam aqui quando o foco de

luz passar por nós.

Não me atrevo a abrir os olhos. Não porque é simplesmente óbvio que não conseguirei

enxergar, mas porque, mesmo se pudesse ver, não gostaria de poder ver nossos perseguidores.

Eu quase não sinto nada. Não está mais tão gelado aqui embaixo, mas sei que é porque

meu corpo está todo na mesma temperatura do resto do ambiente. Não ouço nada além do

silencioso gorgolejar de quando seus ouvidos estão cobertos e cheios de água. Não vejo nada,

não sinto nada, não ouço nada. A única que coisa que me lembra de que eu ainda estou no

mundo real é a mão de Gael, que em nenhum momento fraquejou.

O tempo deixa de ter sentido. Tudo deixa de ter sentido. Não sei se passo segundos ou

horas debaixo d‟água, somente que meus pulmões estão se comprimindo dentro de mim,

virando algo que nunca mais terá a capacidade de armazenar oxigênio. O desespero de ser pega

desaparece, e é substituído pelo de que eu nunca mais vá respirar novamente. Minha garganta

se contrai, mas eu continuo a apertar meu nariz com força. Se eu não inspirar um mísero litro

de oxigênio nos próximos trinta segundos, não conseguirei mais ficar segurando.

Sinto Gael se levantar. Espero que ele esteja tão desesperado por ar quanto eu, porque

não aguentarei ficar dentro d‟água mais um segundo. Quando estou completamente em pé,

inspiro fundo, e um pouco de água entra por meu nariz. Inspiro golfadas de ar pela boca,

temendo que eu vá ficar carente disto novamente. Ainda seguro a mão de Gael; vou precisar

disso para o momento em que eles nos pegarem. Mas quando minha visão volta ao normal,

quando consigo tirar a mar de cima dos meus olhos, percebo que estamos sozinhos novamente.

Não arrisco de perguntar ainda se eles já foram, para o caso de eles estarem nos arredores e...

Gael!

Quando me viro para ele, vejo-o engolindo ar exatamente como eu. Então ele também

estava desesperado por isso. Eu me aproximo dele, meio nadando, e dou uma risada. Um

monte de água entra em minha boca, e eu cuspo tudo, e isso me faz dar mais risada. O alívio é

tão grande neste momento, por tudo o que não seremos obrigados a passar, que estou rindo à

toa.

- Gael, eles não nos viram... Gael? – Mas ele não parece nem um pouco aliviado com

não termos sido descobertos. É estranho. Ele parece perplexo. Aterrorizado? Desolado? –

Gael?

- Eles nos pegaram... – Ele fala baixo, mas é o suficiente para que eu escute. Ou talvez

eu tenha escutado errado. Como podem eles ter nos pego, se estamos sãos e salvos?

- O quê? – pergunto. – Como assim?

- Eles nos pegaram, Ky. – Eu olho para Gael por mais de alguns segundos, antes de

olhar checar nosso cenário. Tudo parece exatamente igual para mim – sem contar o frio que eu

passei a sentir. Eu me afasto alguns passos, e olho por cima da ponte, e nos cantos até onde

minha vista alcança, mas não há nada. Não há ninguém aqui. Eu me aproximo novamente de

Gael, e procuro – no único lado que consigo ver de seu corpo – por ferimentos. Mas não há

absolutamente nada aqui. E é então que ouço o estalo silencioso, e entendo o que ele está

tentando dizer.

- Eles levaram nossos suprimentos, Ky.

Capítulo 6 – Extenuação

Nós caminhamos sem rumo. Literalmente. Minha cabeça pende no pescoço, e eu não tenho

coragem de olhar para cima. Não sei como está Gael. Só sei que eu estou completamente

arrasada. E ele também, possivelmente.

Não sei quanto tempo se passa, até que começo a ouvir passos. Mas isso não importa

mais. Agora, nossa melhor opção será nos entregarmos.

Pela milionésima vez, Abraham tirou de nós tudo o que tínhamos, mas, desta vez, fizera

de uma maneira literal. Ao tirar de nós os suprimentos – que roubamos, diga-se de passagem –,

e acionar legiões de policiais para impedir que roubemos mais qualquer coisa no futuro, ele nos

condenou. Não há como sobreviver nessa cidade sem algum tipo de provisão. Mesmo quando

ainda tínhamos meios de nos alimentar e descansar com cuidado, éramos espécies em extinção.

Agora que não temos nada, só nos resta desistir.

Eu mal consigo olhar para frente. Tudo o que vejo é um par de pernas, que não parece

de um policial. Eu nem me dou o trabalho de parar de caminhar. Depois de alguns segundos

parados, o par de pernas se vira e sai correndo. Nem ao menos sei se eram pernas de homem ou

de mulher.

Novamente, não sei por quanto tempo Gael e eu caminhamos, mas sei que é tempo o

suficiente para que eu caia de joelhos no chão. Estou simplesmente exausta, e meus

pensamentos estão tão embaralhados que não dizer se há somente um ou vários.

Eu mal sinto a dor do impacto. Meus músculos clamam por descanso, então eu

simplesmente dou o que desejam. Não há qualquer outra alternativa para mim agora.

Gael cai ao meu lado, também. Com muita dificuldade, ele coloca o braço ao meu

redor, e, mesmo estando muito, muito ferrada, eu me sinto segura. Encosto minha cabeça em

seu peito, lutando contra a força que faz com que minhas pálpebras se fechem. Mas não

importa o quanto eu lute, o sono começa a me vencer.

Eu me lembro de sentir esse tipo de cansaço – mas claro, jamais tão profundo e intenso

quanto o que sinto neste momento. Na escola, eu jogava vôlei. Costumava sentir essa exaustão

depois de um jogo particularmente acirrado. E, para piorar, eu gostava! Agora, isso parece

irônico. É estranho pensar nisso assim, visto que até parece que minha época de escola

aconteceu a milhares de anos. E agora que eu penso na época da escola, lembro-me de que eu

nunca cheguei a ter um namorado. E, de repente, Gael surgiu. E agora, quando eu finalmente

entendi o que é ser amada, eu terei desistir disso. Eu tento não pensar nisso. Sincronizo minha

respiração com a de Gael, e durmo com o som de sua respiração pesada.

Eu abro meus olhos quando a luz se torna mais forte. Espero um bom tempo até que meus

olhos se acostumem com a claridade. É luz do sol. Não sei se considero isso sorte ou azar. Não

me atrevo a me mover um centímetro, com medo de acordar Gael.

Eu respiro fundo. Meu corpo ainda está dolorido, mas acho que pode aguentar mais

alguns quilômetros, se eu forçá-lo. Seja lá o que o presidente Abraham fará conosco, com

certeza será melhor do que o sofrimento a que estamos sendo submetidos. Talvez ele nos mate

com rapidez. Isso seria muito melhor.

Eu sinto Gael se mexer, e automaticamente me culpo por tê-lo acordado, mas minha

convicção se esvai no momento em que o sinto beijando meu pescoço. Esse é Gael. Mesmo

com a corda no pescoço como está agora, jamais me deixa desamparada.

- Bom dia – digo, me virando. Eu pressiono meus lábios contra os dele com delicadeza,

e percebo que sua boca não deixou de ter a magia que tinha quando nos beijamos pela primeira

vez.

- Nem tão bom – responde, e sua voz soa muito rouca.

- Pelo menos estamos vivos – contesto. Isso é verdade, e é importante. – Ainda. – É

duro ter de acrescentar essa palavras, mas é necessário. Esperança é algo perigoso demais

agora.

- Não importa quanto tempo ainda teremos – diz ele –, desde que eu passe ele com

você...

Com essa declaração – que serviu para me derreter inteira por dentro –, ele torna a me

beijar. Desta vez, seu beijo é um pouco mais intenso, mais faminto. Talvez este seja o último

beijo que receberei de Gael. Forço-me a ignorar esta ideia. Não porque não creio nela, mas sim

porque não quero desperdiçar o resto de tempo que ainda tenho com lágrimas e desespero.

Retribuo o beijo de Gael. Debaixo do fedor de suor e sujeira que adquirimos durante

essa nossa estada na rua, eu posso sentir seu cheiro. Enrosco meus dedos no cabelo de Gael, e

impeço-o de se afastar. Se há algo que quero estar fazendo quando morrer, é estar beijando

Gael, ou, ao menos, estar segurando sua mão. Se isso acontecer, posso morrer em paz.

Ao fundo, um pouco longe, eu escuto passos. E tenho certeza, dessa vez, de que são

passos de policiais. São decididos, pesados, confiantes.

Então é isso. Este é o fim. Meu Deus, eu jamais imaginei que fosse acabar assim,

principalmente com esta velocidade. Mas, agora que está acabando, eu fico feliz. Chega de

jogos, chega de perseguições, chega de sofrimento desnecessário. Chega de Abraham.

Eu me desprendo de Gael, mas continuo com a mão em seu cabelo, segurando-o em

frente ao meu rosto. Quero ter a imagem de sua linda face estampada em minha cabeça quando

chegar a hora.

Transfiro minha mão para a sua mão, e aperto com força. Juntos, encaramos nosso

futuro assassino – e pensar que eu já passei por isso, de estar frente a frente com aquele que vai

tirar minha vida, várias vezes. Ele parece jovem, e seu rosto não possui traços violentos ou

cruéis. Isso é ainda pior. Será que esse homem vai ficar traumatizado por ter de assassinar dois

inocentes? Ou será que ele gostará de fazer isso?

Gael se levanta, e me ajuda a me levantar. Sei o que ele está pensando, e é exatamente a

mesma coisa que eu desejo. Quero encarar isso de frente, com toda a coragem que tive no

momento em que tive assistir meu amigo morrer sem poder fazer nada.

Engulo em seco. Há uma mulher vindo atrás do homem. Ela também não parece ferina.

Na verdade, até parece inocente. E ela não veste roupas de policial. Será que é só alguém que

deseja ver logo nossa morte, para que esse inferno que se tornaram as vidas dos cidadãos de

Canem acabe de uma única vez? Não sei, e temo nunca poder ter estas respostas.

- Gael e Kaya? – pergunta ele. Eu balanço minha cabeça. Meu coração bate muito,

muito rápido – tanto que eu quase não o sinto, apenas o aperto em meu peito. – Nós os

encontramos, Siobhan! – diz ele para ela, que esboça um sorriso aliviado. Que tipo de ser

humano se alegra ao saber que outro ser humano em breve estará morto?

Ele dá um passo à frente, com a arma em mão, mas não aponta para nós. Se eu puder

pedir algo, pedirei que atire em nós de uma vez. Um sorriso desponta dos lábios do jovem. Ele

é bonito, sim. Como uma rosa: as coisas mais belas são aquelas que mais machucam – ou, onde

há beleza, há perigo. Seu cabelo é preto, e a barba que cobre seu todo o seu maxilar é preta.

Seus olhos são azuis, e parecem suaves, e não violentos. Talvez ele seja até mesmo sádico!

Meu coração afunda dentro de mim.

- Meu nome é Richter Yurievna. Esta é Siobhan Ramse. – Ele aponta para a mulher

atrás dele. Ela é ruiva, e seus olhos são azuis como os dele, mas, obviamente, eles não são

irmãos. A mulher, Siobhan, sorri para nós. O medo começa a me dominar com ferocidade.

- Por que você não acaba com isso de uma vez? – pergunto, mas minha voz tremula, por

causa das lágrimas que se acumulam em meus olhos e o bolo que se formou em minha

garganta. Não sei o que sinto. Talvez seja raiva. Talvez seja uma mistura dos dois. E o

provável motivo dos dois é o medo. Medo de morrer. Medo de perder Gael. Medo de não

morrer e perder Gael.

- Acabar com o quê? – rebate ele. Ele franze o cenho. Quando este jogo vai acabar? Por

que todos insistem em brincar comigo e com Gael, como se fossemos feitos de pixels ou gesso,

e não de uma mente inteligente? Minha vontade é de estapeá-lo. E chorar.

Minhas emoções estão muito oscilantes. Só há dois motivos, e um deles é ignorável.

- Por que não nos mata de uma vez, e acaba com isso? – pergunta Gael, e eu noto a

quantidade de cansaço em sua voz. Ele está tão exausto quanto eu, e não no sentido físico. –

Chega de jogos – diz ele, e dá um único passo extenuado para frente. – Chega, por favor... –

Sua voz soa sussurrada e fatigada, como se – o que provavelmente é verdade – falar exigisse

um esforço monstruoso de sua parte.

- Vo-vocês entenderam errado... – começa Richter, mas Gael o interrompe. Faz tempo

que eu não o ouço gritar, e quando isso acontece, eu fico apavorada.

- Entendemos errado? O quê nós entendemos errado? A parte em que nós não

deveríamos ter sobrevivido ao jogo? A parte em que não devíamos ter saído vivos, que

deveríamos ter sido enterrados naquele destroços depois da explosão? Não entendemos a parte

em que nunca deveríamos ter querido sobreviver? Não entendemos a parte em que Abraham

Brokeraven é um monstro sanguinário, e que vocês são seus capangas sádicos que vão nos

levar até ele para que ele nos torture bem lentamente por diversão? Não entendemos que

estamos todos submissos injustamente vontade do presidente Brokeraven? Pois eu garanto que

nós entendemos isso muito bem! Entendemos bem que vamos morrer, entendemos tudo! – Ele

para por alguns segundos, e toma fôlego. Nossos captores não demonstram nada, além de uma

leve surpresa. Quando volta a falar, ele está rouco. – Nós entendemos tudo.

Por algum tempo, talvez minutos, ninguém se move. Aposto que nem mesmo respiram.

Siobhan, a não policial, parece confusa. Richter parece simplesmente ansioso, e receoso. Qual

é o problema com eles? O vento sopra, mas está quente, e eu aposto que agora são mais ou

menos onze horas da manhã. E, ao notar isso, percebo que as coisas mais simples se tornam as

mais significativas quando você sabe que elas deixarão de existir.

Eu aperto a mão de Gael. Cada segundo que se passa é um segundo a mais perto do fim.

E eu estou cansada de repetir isso mentalmente.

- Vocês nos entenderam errado – diz Siobhan. Ela se aproxima, mas Richter permanece

no mesmo lugar. Ele não parece irritado, mas talvez eu esteja errada. Siobhan olha para Richter

como se procurasse uma confirmação. Ele levanta as sobrancelhas ligeiramente. Ela dá mais

alguns passos depois disso. Está perigosamente perto de nós. – Não temos intenção alguma

capturar vocês. Não estamos do lado de Abraham. Nós queremos ajudar vocês.

Eu mantenho meu olhar fixo nela. Não sei por que, mas há algo na maneira como ela

fala que me faz querer acreditar que está sendo sincera, que está falando a verdade. Mas Gael

discorda.

- E o por que deveríamos acreditar em vocês? – pergunta ele.

- Vocês não têm por que acreditar em nós – diz ela. – É um risco que vão ter de correr.

Capítulo 7 – Ajuda

Eu amo sopa! Sério. Entre todas as receitas do mundo, é a sopa a coisa que mais amo. Ou, pelo

menos, é tudo o que posso comer. Então, em todo o caso, é a receita que eu mais amo. Esta, na

verdade, não tem sabor de nada, mas parece muito apetitosa agora. Eu acabo com minha tigela

em poucos minutos, e ainda há espaço no meu estômago para mais, mas não posso exigir nada.

Sorvo, também, metade da garrafa de água que me foi dada.

Richter nos contou sua história, sobre como se tornou um rebelde ao descobrir que

nenhuma das pessoas que estavam dentro daquele edifício sobreviveriam, e sobre como se

sentiu quando nos viu fugindo dos robôs com tanta maestria. Aparentemente, todo o evento,

desde a primeira explosão que causou o tumulto, até a última das mortes, foi transmitido na

televisão. No começo, os cidadãos pensaram que tudo era parte da promoção de um novo filme

ou algo do tipo, mas quando viram os rostos de seus familiares nas imagens, descobriram que

nada daquilo era uma brincadeira.

Quando teve de nos perseguir, ele tentou impedir os outros carros de chegarem perto

demais, mas não pode fazer muita coisa. Ele estava dentro do carro que capotou. Então ele

conheceu Siobhan, que o ajudou a se recuperar dos ferimentos, e depois aceitou o ajudar a nos

encontrar. Richter também teve a ajuda de um garoto chamado Marvee, que, há pouco tempo,

fora um estagiário de Tecnologia da Informação, e por meio disso manteve Richter informado

sobre nossa localização o tempo todo.

Richter não teve, em nenhum momento, a intenção de nos entregar ao presidente. Ao

contrário. Ele, Siobhan e Marvee são insurgentes. Rebeldes. Gael e eu somos sobreviventes. E,

agora, Richter, Siobhan e Marvee estão conosco, e isso significa que Abraham os quer mortos

também.

Perguntei a Richter, enquanto ele nos trazia para seu trailer roubado, o motivo de ele ter

arriscado a própria segurança e a de seus dois companheiros por nós. “Eu não sei”, respondeu

ele, com os olhos cheios de uma dúvida profunda e também de uma certeza completa. “Só senti

que era a coisa certa a se fazer”. Siobhan só sorriu para nós e, e aquiesceu com a cabeça.

O que me lembra de que até agora eu não conheci o tal do Marvee.

Eu olho para Gael. Ele quase não comeu sua comida. Nem mesmo bebeu a água.

Suspeito que ele ainda não confia em Richter e Siobhan. Talvez ele tenha razão, mas, por

enquanto, tudo o que podemos fazer é ter esperança de que essas pessoas realmente têm boas

intenções.

- Você está bem? – pergunto. Seus olhos verdes estão sombrios e escuros. Ele balança a

cabeça, mas, por motivos óbvios, eu não acredito nele. – O que foi? – Ele aperta os olhos e

olha para os dois lados, e quanto fala, sussurra.

- Você confia nessas pessoas?

Eu penso antes de responder. Falo baixo, e meu coração se aperta ao falar. Sei que não

deveria conspirar, mas preciso ter certeza que teremos um plano „b‟ caso eles estejam nos

enganando.

- Não totalmente. Esteja pronto para correr caso as coisas apertem – digo. Um pouco da

obscuridade em seus olhos esvaece, e o brilho do bom e velho Gael reaparece. Ele ainda está

comigo, afinal de contas.

Antes que eu possa dizer qualquer coisa, ouvimos passos no corredor atrás de nós, e eu

me viro para ver quem chegou. Como eu esperava – em partes –, é Richter quem aparece,

seguido pela formosa Siobhan – eu ainda não me acostumei com a beleza de seus cabelos

ruivos. Ambos sorriem, e seus sorrisos parecem genuínos, e não conspirantes. Eu retribuo o

sorriso, mas não me viro para saber se Gael faz o mesmo.

- Ky – chama Richter. Eu nem sabia que havia dado a ele a liberdade para me chamar

desta forma, mas fico feliz por ele ter tomado esta iniciativa. Confio nele um pouco mais. –

Gael. Quero que vocês dois conheçam a pessoa que tornou possível que a gente encontrasse

vocês. Marvee...

Ao chamar, um garoto aparece da mesma entrada. Richter sai da frente do garoto, e sua

forma é revelada.

Caramba, isso é muito vergonhoso de admitir, mas meu queixo quando o vejo. Debaixo

dos óculos com armação negra, há um garoto que é simplesmente lindo demais para ser

recusado. Seus olhos são escuros, negros, e assim como seu cabelo, que cai sobre sua testa. Ele

possui um sorriso lindo e tímido no rosto, e suas bochechas estão coradas. Seu rosto tem traços

delicados, e seus lábios são finos. Beijos, eu penso, e imediatamente me sinto culpada por isso.

Ele estende a mão para mim, e eu a aperto-a com força. Seu toque é quente, e o contato

com minha mão faz com que minha pele formigue. Meu coração acelera quando o ouço falar.

- Marvee... – é tudo o que diz. Meu coração se derrete dentro de mim. Meu cérebro

liquefaz. Minha convicção se desfaz.

- Ky... – respondo.

Continua...

Agradecimentos

Agradeço a dois canais do Youtube que me ajudaram muito com o bloqueio criativo: RELAX

YOUR MIND – não reclame, se escreve exatamente assim –, e ao canal Derek & Brandon

Fiechter – os gêmeos mais geniais que eu já conheci. Eu, sinceramente, não sei como teria

terminado isso sem vocês.

Agradeço, em segundo lugar, mas não menos importante, a você, leitor, por ter chegado

até aqui comigo. Não se assuste, mas eu te amo. Umas dez mil palavras mais!

Agradeço a Deus por ter me dado criatividade e paciência para continuar essa saga.

Muito, muito obrigado. Amém.

Sou grato, também, à três pessoas que serviram de modelo de rosto para o Richter, a

Siobhan, e o Marvee, mas não vou dizer quem são – já estudei com um deles.

Agradeço novamente a minha irmã, por ter me ouvido falar incessantemente sobre

minha história – amo você, sua peituda!

Não posso me esquecer de agradecer ao meu amigo, Luigui, que me ensinou o que é ter

um irmão de mãe diferente, e o que é um coração partido. Eu ainda amo você, apesar de você

ter me deixado para trás.

Agradeço à minhas autoras favoritas, Suzanne Collins, Stephenie Meyer, Becca

Fitzpatrick, Kiera Cass, Cassandra Clare, Veronica Roth, e por último, mas não menos

importante, Katja Millay. Eu as amo. Obrigado por me fazer amar o mundo literário. Ah!, e

também ao Rick Riordan, ao Stephen King, à Lisa Mcmann, ao Harlan Coben, à Meg Cabot, e

à Jane Austen – não me esqueceria de vocês.

Agradeço imensamente ao site onde meus livros e contos estão hospedados. Para o caso

de você não saber, é o recantodasletras.com. どうもありがとうございました!

Agradeço, também, à Sarah Longatto Fuidio, do blog/canal/twitter faleemjapones, que

mora no Japão, mas é minha inspiração. Juro que se Kaya não fosse garota e hétero, eu

fantasiaria que ela fica com você! Te amo – por mais assustador que isso seja.

Por fim, agradeço novamente à meus leitores – lindos e cheirosos –, por estarem

comigo até agora. Eu gostaria de agradecer pessoalmente, mas, como não posso, deixo meu

mais sincero “eu amo vocês, e não seria nada sem vocês!”.

Sei que prometi novos personagens nos agradecimentos anteriores, e que só os dei

quanto a história já estava quase no fim, então não vou ficar prometendo nada de agora em

diante. Mas posso prometer uma coisa, e esta posso cumprir: times. A qual dos times você

pertencerá? Até a próxima, pessoal!