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MANOEL DE BARROS ARRANJOS PARA ASSOBIO

MAnoel de bArros ArrAnjos pArA Assobio · ... para descre-ver o mundo ... para chegar a essa “réstia espantada que sai pelas frin-chas de um homem”. O lugar ... “eu tinha o

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MAnoel de bArros ArrAnjos pArA Assobio

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Copyright © 1982, 2016 by herdeiros de Manoel de Barros

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Capa, projeto gráfico e editoração eletrônica Regina Ferraz

Imagem de capa Martha Barros

Créditos das imagens Todas as fotos e documentos reproduzidos no livro pertencem ao acervo pessoal do autor.

Textos de contracapa e orelha Italo Moriconi

Revisão Eduardo Rosal André Marinho

Todos os esforços para contatar os detentores de direitos autorais foram realiza-dos. Os editores ficarão contentes de corrigir, em edições futuras, erros ou omis-sões que vierem a ser apontados.

[2016] Todos os direitos desta edição reservados à editora schwarcz s.a. Rua Cosme Velho, 103 22241-090 — Rio de Janeiro — rj Telefone: (21) 2199-7824 Fax: (21) 2199-7825 www.objetiva.com.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) (Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Barros, Manoel deArranjos para assobio / Manoel de Barros. – Rio de Janeiro :

Alfaguara, 2016.

isbn 978-85-5652-005-0

1. Poesia brasileira I. Título.

16-00686 cdd-869.1

Índice para catálogo sistemático: 1. Poesia : Literatura brasileira 869.1

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A inauguração das coisas e das pessoas 7

Luiz Ruffato

ArrAnjos pArA Assobio 11

Sabiá com trevas 13

Glossário de transnominações em que não se explicam algumas delas (nenhumas) ou menos 47

Exercícios cadoveos 53

Exercícios adjetivos 59

Arranjos para assobio 65

Cronologia 77

Fotografias e documentos 85

Relação de obras 97

Bibliografia sobre Manoel de Barros 99

Índice de títulos e primeiros versos 111

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A inauguração das coisas e das pessoas

Certa feita, Manoel de Barros revelou que não conside-rava sua poesia fácil: “Não tem palavra difícil, mas tem muita imagem. E absorver uma imagem é preciso uma ginástica na cabeça”. No entanto, ano a ano cresce o nú-mero de leitores encantados com sua obra, sustentando tiragens pouco comuns no mercado editorial brasileiro, principalmente para o gênero fielmente praticado por ele. Qual então o segredo para cativar tão amplo pú-blico? A resposta o próprio poeta sugere ao definir que “a poesia não é para compreender mas para incorporar”.

Maravilhado com o que vê, Manoel de Barros obser-va tudo com os olhos da infância, tão maravilhado que tem urgência em compartilhar suas experiências. Como uma criança ainda não contaminada pela razão — por-tanto, desconhecendo regras e conceitos —, para descre-ver o mundo concreto das coisas e o mundo abstrato dos sentimentos compõe imagens por meio de uma apro-priação bastante peculiar das palavras. O resultado é a alegria vertiginosa de alguém evocando pela primeira vez a essência do universo.

Esse método — de inaugurar sentidos inusitados — aproxima muitas vezes Manoel de Barros do surrealis-mo, mas, avesso a escolas, o poeta — “espécie de vaza-douro para contradições” — abre atalhos particulares para chegar a essa “réstia espantada que sai pelas frin-chas de um homem”. O lugar em que celebra a sua poe-sia é a realidade, não a realidade aparente, mas a dos “inutensílios” que forjam o sentido último do cotidiano.

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Este sofisticado processo de elaboração poética pro-duz como resultado, paradoxalmente, versos de roupa-gem simples. A singularidade verifica-se ao imaginarmos reconhecer, em um primeiro momento, a imagem expos-ta até nos darmos conta de sua estranheza — quando então advém a “incorporação”: tornamo-nos árvores. Não entender o poema, mas senti-lo com o corpo intei-ro, este o convite subjacente a Arranjos para assobio.

Trata-se de uma poesia constituída de epigramas que se sucedem formando riachos, mais tarde rios, por isso avessa à solenidade e aos ruídos: ela exige silêncio para ser usufruída. A água desse manancial é pura e fresca, pois, segundo o poeta, é dever de quem tem preocupa-ção estética fugir do lugar-comum — e nisso segue à risca a deliberação de seu confrade, Guimarães Rosa. Para tanto, realiza uma sutil operação de desconstrução linguística — “escrever é cheio de casca e pérola”, ensina.

As frases feitas o poeta cata-as em meio ao entulho e renova-lhes o sentido: “sou fuga para flauta e pedra doce”, “aprende antro e estrelas”, “encostado em seus an-drajos como um tordo”, “rio de versos turvos”, “estou arrumado para pedra”, “restaurar nos homens uma te- lha de menos”, “eu tinha o roteiro do luar com o mapa da mina”. E as frases por fazer “mexe com pimenta até vir sangue no órgão”, transformando-as em “brincos”: “apenas me debatia contudo quanto a lagartixa de rabo cortado”, “borboleta morre verde em seu olho sujo de pedra”, “no remexer do cisco adquire experiência de res-tolho”, “catar um por um os espinhos da água”.

Em suas mãos calosas, substantivos transmudam em verbos — harpar, embostar, entardar, bronhar; verbo

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vira substantivo — esma, de esmar, que significa ava- liar; adjetivo vira substantivo — amorfo; afloram neolo-gismos (amareluz sambixuga, bestego), regionalismos (ensaruar), jargão pastoril (náufego); adjetivos amanhe-cem orvalhados — caminhoso, olhoso, andarejo, limbo-so, globoso, riachoso. Essa necessidade de renomear a realidade exterior deve-se ao fato de que “o mundo não é perfeito como um cavalo”.

A poesia brasileira, desde seus primórdios, mostrou--se radicalmente urbana. Mesmo quando formávamos um país agrário, poetas de imaginário rural ganharam pouco destaque e logo mergulharam no oceano escuro do esquecimento — quem ainda lembra de nomes como o cearense Juvenal Galeno (1838-1931), o maranhense Catulo da Paixão Cearense (1863-1946), o mineiro Bel-miro Braga (1872-1937)? Entretanto, utilizando como referência exclusiva elementos do mundo rural, Manoel de Barros passou a ser considerado um dos nossos maio-res poetas, e justo a partir da década de 1980, quando já havíamos nos tornado uma sociedade majoritariamente urbana.

O que ocorre é que a poesia sinestésica desse homem que “tinha sido escolhido, desde criança, para ser nin-guém e nem nunca”, nascida da combinação de cheiros e cores e temperaturas e volumes e sabores, conjura nossa ancestralidade, evidenciando-nos aquilo que em nos-sa curta vida vale a pena, que é, depois que todos se dei-tam, “passear sobre os telhados adormecidos”.

Luiz Ruffato

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ArrAnjos pArA Assobio

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sAbiá coM trevAs

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I.

Caminhoso em meu pântano, dou num taquaral de pássaros

Um homem que estudava formigas e tendia para pedras me disse no último domicílio conhecido: Só me preocupo com as coisas inúteis

Sua língua era um depósito de sombras retorcidas, com versos cobertos de hera e sarjetas que abriam asas sobre nós

O homem estava parado mil anos nesse lugar sem orelhas

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II.

Me abandonaram sobre as pedras infinitamente nu, e meu canto.

Meu canto reboja.Não tem margens a palavra.Sapo é nuvem neste invento.Minha voz é úmida como restos de comida.A hera veste meus princípios e meus óculos.Só sei por emanações por aderência por incrustações.O que sou de parede os caramujos sagram.A uma pedrada de mim é o limbo.Nos monturos do poema os urubus me farreiam.Estrela é que é meu penacho!Sou fuga para flauta e pedra doce.A poesia me desbrava.Com águas me alinhavo.

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III.

Quando houve o incêndio de latas nos fundos da Intendência, o besouro náfego saiu caminhando para alcançar meu sapato (e eu lhe dei um chute?)

Parou no ralo do bueiro, olhoso, como um boi que botaram no sangradouro dele

(Intrigante: não sei de onde veio nem de que lado de mim entrou esse besouro. Devo ter maltratado com os pés na minha infância algum pobre-diabo. Pois como explicar o olhar ajoelhado desse besouro?)

Com o seu casaco preto chamuscado nas pontas, ele em seguida nafegou no rumo do jardim e entrou no porão de um coreto por onde se comeu como um papel sem gosto

De manhã, catando pelas ruas toda espécie de coisas que não pretendem, sempre eu revejo esse ente que tem por abrigo o céu, como conchas ao contrário.

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IV.

(A um Pierrô de Picasso)

Pierrô é desfigura errante,andarejo de arrebol.Vivendo do que desiste,se expressa melhor em inseto.

Pierrô tem um rosto de águaque se aclara com a máscara.Sua descor aparececomo um rosto de vidro na água.

Pierrô tem sua vareja íntima:é viciado em raiz de parede.Sua postura tem anosde amorfo e deserto.

Pierrô tem o seu lado esquerdoatrelado aos escombros.E o outro lado aos escombros.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Solidão tem um rosto de antro.

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V.

Usado por uma fivela, o homem tinha sido escolhido, desde criança, para ser ninguém e nem nunca. De forma que quando se pensou em fazer alguma coisa por ele, viu-se que o caso era irremediável e escuro.Ou uma vespa na espátula.Esse homem pois que apreciava as árvores de sons amarelos — ele se merejava sobre a carne dos muros e era ignorante como as águas.Nunca sabia direito qual o período necessário para um sapato ser árvore. Muito menos era capaz de dizer qual a quantidade de chuvas que uma pessoa necessita para que o lodo apareça em suas paredes.De modo que se fechou esse homem: na pedra: como ostra: frase por frase, ferida por ferida, musgo por mus go: moda um rio que secasse: até de nenhuma ave ou peixe. Até de nunca ou durante. E de ninguém anterior. Moda nada.

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VI.

Há quem receite a palavra ao ponto de osso, de oco; ao ponto de ninguém e de nuvem.Sou mais a palavra com febre, decaída, fodida, na sarjeta.Sou mais a palavra ao ponto de entulho.Amo arrastar algumas no caco de vidro, envergá-las pro chão, corrompê-lasaté que padeçam de mim e me sujem de branco.Sonho exercer com elas o ofício de criado:usá-las como quem usa brincos.

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