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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa Universidade Federal da Paraíba 15 a 18 de agosto de 2017 ISSN 2236-1855 4380 “PARA ENSINAR A LER RAPIDAMENTE”: A CARTILHA DO POVO E OS SEUS LEITORES NO MEIO RURAL SERGIPANO (1940-1950) 1 Rony Rei do Nascimento Silva 2 Joaquim Francisco Soares Guimarães 3 Introdução “Naquela época tinha Cartilha do Povo, você já ouviu falar?” (ARAGÃO, 2012, p. 6). Partimos do questionamento lançado acima, pela professora aposentada, Maria Lima Santos Aragão, em meio a uma entrevista concedida no povoado São Mateus, município de Gararu, situado no alto sertão sergipano, para compreender a utilização da Cartilha do Povo no processo de alfabetização da população rural sergipana, no período entre 1940 e 1950. A Cartilha do Povo: para ensina ler rapidamente, de Manoel Bergström Lourenço Filho, publicada em 1928, dada sua categoria de meio privilegiado de consolidação dos métodos e conteúdos de ensino, foi usada no meio rural sergipano para alfabetizar gerações, especialmente, entre as décadas de 1940 e 1950. Situados no campo de pesquisa da História da Educação, sobretudo, em torno de estudos sobre as cartilhas de alfabetização, segundo Mortatti (2000a, 2006) e Bertoletti (2012), produzimos o presente artigo, tendo em vista a utilização da Cartilha do Povo no processo de alfabetização, no meio rural sergipano. Segundo Mortatti (2006), até meados dos anos 1990: [...] cartilhas de alfabetização, especialmente as antigas, não eram objeto de investigação prestigiado na pesquisa em Educação no Brasil. Vivia-se, ainda, certo clima de euforia decorrente da disseminação da teoria 1 Este artigo resultou de atividades desenvolvidas como mestrandos em Educação, junto ao Programa de Pós- graduação em Educação da Universidade Tiradentes (Unit), Aracaju, estado de Sergipe e, o posterior ingresso do primeiro autor do artigo, junto ao Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC), da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Campus de Marília, sob orientação da Profª. Drª. Maria do Rosário Longo Mortatti e vinculado à linha de pesquisa “Memória e História da Educação” do Grupo de Pesquisa “História do Ensino de Língua e Literatura no Brasil” (GPHELLB). 2 Doutorando em Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), Campus Marília. E-mail: <[email protected]>. 3 Doutorando em Educação pela Universidade Tiradentes (Unit)- Aracaju/Sergipe. Professor da rede municipal de Educação do município de Umbaúba (SE). E-mail: <[email protected]>.

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ISSN 2236-1855 4380

“PARA ENSINAR A LER RAPIDAMENTE”: A CARTILHA DO POVO E OS SEUS LEITORES NO MEIO RURAL SERGIPANO (1940-1950)1

Rony Rei do Nascimento Silva2

Joaquim Francisco Soares Guimarães3

Introdução

“Naquela época tinha Cartilha do Povo, você já ouviu falar?”

(ARAGÃO, 2012, p. 6).

Partimos do questionamento lançado acima, pela professora aposentada, Maria Lima

Santos Aragão, em meio a uma entrevista concedida no povoado São Mateus, município de

Gararu, situado no alto sertão sergipano, para compreender a utilização da Cartilha do Povo

no processo de alfabetização da população rural sergipana, no período entre 1940 e 1950. A

Cartilha do Povo: para ensina ler rapidamente, de Manoel Bergström Lourenço Filho,

publicada em 1928, dada sua categoria de meio privilegiado de consolidação dos métodos e

conteúdos de ensino, foi usada no meio rural sergipano para alfabetizar gerações,

especialmente, entre as décadas de 1940 e 1950.

Situados no campo de pesquisa da História da Educação, sobretudo, em torno de

estudos sobre as cartilhas de alfabetização, segundo Mortatti (2000a, 2006) e Bertoletti

(2012), produzimos o presente artigo, tendo em vista a utilização da Cartilha do Povo no

processo de alfabetização, no meio rural sergipano. Segundo Mortatti (2006), até meados dos

anos 1990:

[...] cartilhas de alfabetização, especialmente as “antigas”, não eram objeto de investigação prestigiado na pesquisa em Educação no Brasil. Vivia-se, ainda, certo clima de euforia decorrente da disseminação da teoria

1 Este artigo resultou de atividades desenvolvidas como mestrandos em Educação, junto ao Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Tiradentes (Unit), Aracaju, estado de Sergipe e, o posterior ingresso do primeiro autor do artigo, junto ao Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC), da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Campus de Marília, sob orientação da Profª. Drª. Maria do Rosário Longo Mortatti e vinculado à linha de pesquisa “Memória e História da Educação” do Grupo de Pesquisa “História do Ensino de Língua e Literatura no Brasil” (GPHELLB).

2Doutorando em Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), Campus Marília. E-mail: <[email protected]>.

3 Doutorando em Educação pela Universidade Tiradentes (Unit)- Aracaju/Sergipe. Professor da rede municipal de Educação do município de Umbaúba (SE). E-mail: <[email protected]>.

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construtivista, que demandava esforços por parte dos pesquisadores no sentido de compreender os problemas da alfabetização de acordo com a psicogênese da língua escrita e elaborar propostas de intervenção na prática docente alfabetizadora, por meio de uma “didática construtivista”, a qual, por sua vez, implicava abandonarem-se cartilhas, por serem consideradas empecilhos ao processo de construção do conhecimento a respeito da língua escrita, por parte dos alfabetizandos. (MORTATTI, 2006, p. 13).

Este artigo foi elaborado com base nas memórias orais de 15 professores(as)

aposentados(as) de oito regiões do estado de Sergipe. É necessário ressaltar, no entanto, que

não se trata de uma história da Cartilha do Povo, em seus aspectos editorias e materiais, mas

de uma história contada a partir das narrativas dos sujeitos que vivenciaram o processo de

alfabetização.

Para alcançar o objetivo de compreender a utilização da Cartilha do Povo no processo

de alfabetização da população rural sergipana, tomamos como fonte entrevistas, segundo os

pressupostos da metodologia da História Oral, de acordo com Alberti (2004). Chegamos até

os(as) professores(as) por intermédio do projeto de pesquisa Memória Oral da Educação

Sergipana4, que congrega em seu acervo digital 145 entrevistas de história de vida, com

professores(as) com idade de 57 a 103 anos. Dessas, selecionamos apenas 15 entrevistas5 e,

para operacionalizar esse recorte, optamos por entrevistados(as) que foram alfabetizados

e/ou ensinaram com a Cartilha do Povo, especialmente em escolas rurais.

Notas sobre a Cartilha do Povo (1956) de Manuel Bergström Lourenço Filho

Que a Cartilha do Povo, como o seu próprio título indica, continue a concorrer para a educação de crianças e adultos, mesmos os mais distanciados dos grandes centros, ensinando a ler e escrever milhões de brasileiros, da forma mais simples. A educação popular não se resume,

4 O projeto de pesquisa “guarda-chuva” Memória oral da educação sergipana foi coordenado pela Prof.ª Dr.ª Raylane Andreza Dia Navarro Barreto. O projeto está dividido de acordo com as regiões do estado de Sergipe, perfazendo um total de oito subprojetos. O objetivo era compreender como se constituíram os modos de educar de educadores atuantes no estado de Sergipe. Para tanto, foi necessário: mapear os educadores mais idosos e de maior representatividade na área educacional; identificar as práticas escolares; e analisar a cultura de escola que fora produzida nas instituições educativas. O propósito era possibilitar a produção de saberes e entendimentos acerca dos modos de educar e dos métodos de ensino, fomentando interações e trocas no âmbito da pesquisa e do conhecimento, envolvendo instituições de ensino, grupos de pesquisas, discentes, docentes e pesquisadores relacionados a áreas afins. O projeto foi financiado pelo CNPq. Edital MCTI/CNPq/MEC/CAPES. N. 18/2012. Nº do processo 405366/2012-4. O projeto também contou com bolsas de Iniciação científica PIBIC/CNPq e PROBIC/Unit.

5 As entrevistas foram cedidas pelos professores, a partir da “Carta de Cessão de Direitos”, dispondo sobre os direitos e deveres do entrevistado, bem como o esclarecimento sobre uso das entrevistas para fins de pesquisa acadêmica. As entrevistas foram gravadas em áudio e vídeo. Tais entrevistas foram devidamente transcritas em Microsoft Word 2010 e sua duração soma aproximadamente 32 h/s. As entrevistas se encontram armazenadas no acervo digital, que constituirá o “Centro de Memória da Educação Sergipana”, somadas às outras entrevistas audiovisuais decorrentes dos demais subprojetos.

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certamente, nesse aprendizado. A leitura e a escrita representam apenas um instrumento, não trazem em si mesmas uma finalidade. Educar o povo será dar-lhe também o civismo, a capacidade de produção, a saúde, o emprego sadio das horas de lazer. A leitura e a escrita estão submetidos nesse cargo programa mas são apenas elementos dele. Bem haja os que para a sua difusão cooperem, desde que não esqueçam o que restará ainda por fazer. (LOURENÇO FILHO, 1956, p. 2).

As palavras acima foram extraídas da recomendação “Aos senhores professores”, que

abre a Cartilha do Povo: para ensina ler rapidamente (1956), publicada pela Companhia

Melhoramentos de São Paulo (SP)6, segundo Bertoletti (2012): “[...] alcançou mais de duas

mil edições ao longo de sua trajetória editorial, tendo sido publicada por mais de seis

décadas.” (BERTOLETTI, 2012, p. 21). De acordo com os estudos desenvolvidos por

integrantes do Grupo de Pesquisa “História do Ensino de Língua e Literatura no Brasil”

(GPHELLB)7, a proposta de alfabetização de Lourenço Filho sintetizada em Cartilha do Povo

correspondeu à tentativa de responder às demandas de erradicação do analfabetismo,

sobretudo no que diz respeito a crianças e adultos. Tal projeto estava em sintonia com as

aspirações de sua época — em especial com os princípios do movimento da Escola Nova, de

que ele foi um dos principais expoentes — e se encontrava expandido no conjunto de sua

obra, mas apresentava-se nas cartilhas em sua forma mais “aplicável”. A atuação de Lourenço

Filho, segundo Mortatti (2000a):

[...] representa a busca de concretização de uma das aspirações sociais e culturais típicas do início desse momento histórico, cujos efeitos tendem a tornar “normais” e “rotineiros” nas décadas seguintes: a reforma da educação, diretamente relacionada à necessidade de renovação e inovação intelectuais e de uma reforma ampla em todos os setores da sociedade brasileira, iniciada com a revolução de 1930 e que pressupunha, dentre outros aspectos, difusão da instrução elementar e redefinição e aumento das escolas superiores, como forma de democratização da sociedade. (MORTATTI, 2000a, p. 142-143).

6 Primeira de uma série de obras didáticas do autor, Cartilha do Povo: para ensinar rapidamente teve sua primeira edição, pela Companhia Melhoramentos, em 1928, com uma tiragem de 1.080.000 exemplares. Durante muitas décadas publicada sem o nome do autor. A cartilha permaneceu no catálogo da Editora Melhoramentos até o ano de 1995. A esse respeito, ver Mortatti (2000a).

7 O objetivo geral do grupo é contribuir para a produção de uma história do ensino de língua e literatura no Brasil, que auxilie na busca de soluções para os problemas desse ensino, no presente, e também para a formação de pesquisadores capazes de desenvolver pesquisas históricas, que propiciem avanços em relação aos campos de conhecimento envolvidos. O método de investigação está centrado em abordagem histórica, com análise da configuração textual de fontes documentais, conforme conceito proposto por Magnani (1993)/Mortatti (2000a). A temática se subdivide em seis linhas de pesquisa: história da alfabetização; história do ensino de língua portuguesa; história do ensino de literatura; história do ensino de literatura infantil e juvenil; história da formação de professores; memória e história da educação. O GPHELLB está cadastrado no Diretório dos Grupos de Pesquisa do Brasil – CNPq e está sediado na UNESP - campus de Marília. Desde sua criação, é coordenado por Maria do Rosário Longo Mortatti. Informações disponíveis em: <http://www.marilia.unesp.br/gphellb>.

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Segundo Mortatti (2000a), em sua tese de Livre-Docência (Magnani, 1997), publicada

no livro Os sentidos da alfabetização: São Paulo 1876 – 1992, para fins de demarcação

cronológica, a publicação da cartilha se enquadra do terceiro momento8 da história da

alfabetização do Brasil. Nesse momento, sobressaíram às discussões respaldadas em

pressupostos psicológicos, em detrimento dos aspectos linguísticos e pedagógicos da

alfabetização. E, nesse cenário educacional, Lourenço Filho foi uma das figuras de maior

destaque. Nas palavras de Bertoletti (2011), o projeto de alfabetização de Lourenço Filho:

[...] sintetizado em Cartilha do povo correspondeu à tentativa de responder aos anseios e às necessidades da época em que foi produzida, no que diz respeito à alfabetização de crianças e de adultos. [...] A preocupação maior do autor consistia em oferecer, portanto, um instrumento de educação popular, correspondente à técnica do ler e do escrever, entendida como um meio de aquisição de cultura, por parte de cada indivíduo, e de progresso, riqueza, ascensão, abastança e prosperidade para a Nação, com a finalidade de propiciar ao país sair do atraso do passado e ingressar na modernidade. (BERTOLETTI, 2011, p. 102-103).

Nesse sentido, Lourenço Filho visava à maior rapidez e eficiência na alfabetização,

segundo Mortatti (2000a): “[...] a Cartilha tem por propósito já indicado pelo título:

concorrer para finalidade maior da educação popular – de crianças e adultos – e da

integração nacional” (MORTATTI, 2000, p. 172). A preocupação maior do autor consistia em

ofertar, portanto, um instrumento de educação de alcance popular, correspondente à técnica

do ler e do escrever, entendida como uma maneira de aquisição de cultura letrada.

A cartilha na mão e a lição na “ponta da língua”

Ah! Os métodos foi... Naquele tempo o primeiro livro da gente era o ABC9. Aí a gente dava a lição na banca, no birô dela. Ela chamava dois pra dar a lição. Um dava do lado dela e outro dava do outro. Primeiro era o ABC, pois já tinha aprendido o alfabeto. Aí dava as letrinhas miudinhas todas. Quando ela

8 Esses momentos e suas principais características são os seguintes: primeiro momento crucial (1876 a 1890) — disputa entre defensores do então “novo” método da palavração e os dos “antigos” métodos sintéticos (alfabético, fônico, silábico); segundo momento crucial (1890 a meados da década de 1920) — disputa entre defensores do então “novo” método analítico e os dos “antigos” métodos sintéticos; terceiro momento crucial (meados dos anos de 1920 a final da década de 1970) — disputas entre defensores dos “antigos” métodos de alfabetização (sintéticos e analíticos) e os dos então “novos” “testes ABC para verificação da maturidade necessária ao aprendizado da leitura e escrita”, criados por M. B. Lourenço Filho, de que decorreu a introdução dos “novos” métodos mistos; quarto momento crucial (meados da década de 1980 aos dias atuais) — disputas entre os defensores da então “nova” teoria construtivista e os dos “antigos” testes de maturidade e dos “antigos” métodos de alfabetização. A esse respeito, ver Mortatti (2016).

9 Geralmente iniciava-se o ensino da leitura com as chamadas “cartas de ABC”, estas firmaram uma tradição na história da escola primária brasileira. Mesmo sendo um utensílio originalmente vinculado a um dos mais tradicionais métodos de alfabetização (método sintético), nos termos de Mortatti (2000a), resistiu às inovações promovidas pelos partidários de outros modelos de alfabetização, continuou sendo editado até os anos 50 do século XX.

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sabia que a gente já sabia ler o ABC, aí ela passa um livro. Eu me lembro do primeiro livro que ela passou pra mim, era uma cartilha, chamada Cartilha do Povo. [...] A Cartilha do Povo... A gente estudava o primeiro ano e, passava o ano todo aprendendo nessa cartilha. Tinha que saber na ponta da língua. (ARAÚJO, 2013, p. 3).

A professora aposentada Maria Beatriz de Araújo relatou sobre a utilização da Cartilha

do Povo, no processo de alfabetização, na escola isolada10, no meio rural no município

Carmópolis, no leste sergipano11, na década de 1940. Os aspectos narrados por nossa

entrevistada na citação acima também são comuns com outros(as) professores(as)

contemporâneos(as) e conterrâneos(as), a exemplo da professora aposentada, Maria Luiza

Barbosa da Silva, quando alfabetizada na escola isolada, no povoado Sebastião Marques,

município de Poço Redondo, região do alto sertão sergipano: “Depois que terminava o ABC, a

gente estudava uma cartilha, chamava Cartilha do Povo. E assim, o primeiro ano era esse

processo.” (SILVA, 2011, p. 3).

Sobre o mesmo aspecto, testemunhou a professora, Maria de Oliveira da Silva, com

base nas memórias de escola isolada, no meio rural do município de Pinhão, situado no

agreste sergipano. Segundo ela, a sua professora primária:

[...] ensinava a gente num livrinho. A gente tinha aquelas cartilhazinhas, era a Cartilha do Povo. Ela ensinava a gente ali, e, a gente ia se sentar e, conforme ela ensinou, a gente ia soletrando e juntando pra aprender a ler. Alunos do primeiro, segundo e terceiro ano, enquanto não aprendessem aquela lição, não ia passar pra outra. Quando aprendia a lição, ela ia e colocava outra depois pra outro dia. A Cartilha do Povo era ilustrada, tinha desenho. Agora eu num lembro como era os desenhos, não. [...] Aí tinha aqueles desenhos, tinha aquelas letrinhas e tinha as sílabas pra gente juntar e ler. [...] Aí ia até o final, mas primeiro tinha que ler o ABC, né? Tinha que ler o ABC primeiro. Depois do final do ABC já tinha também umas silabazinhas, pra gente ir aprendendo. Aí quando a gente entreva na cartilha já sabia ler, porque no ABC a gente já tinha visto. (SILVA, 2013, p. 4).

10 O termo “escola isolada” denomina um modelo de escola unidocente e multisseriada. Sabe-se que tais unidades, ao contrário das escolas reunidas e grupos escolas, muitas vezes localizavam-se no meio rural e caracterizavam-se por serem precárias em sua estrutura. Santos (2016) demostrou em sua dissertação Por uma história vista de baixo: as escolas primárias dos territórios do centro e sul do estado de Sergipe (1930 – 1960), que para além do que circulou no campo das ideais, as escolas isoladas, caracterizadas pelas condições precárias de funcionamento e manutenção, sobreviveram ao tempo e às mudanças educativas, compondo um modelo heterogêneo de escolarização, em que coexistiram matrizes antigas e novos tipos de escolas ao menos durante as seis primeiras décadas do século XX, e possivelmente em todo o século.

11 Optamos por utilizar a divisão territorial atual do estado de Sergipe. O estado faz divisa com Alagoas ao norte, Bahia ao sul e oeste, e Oceano Atlântico ao leste, sendo dividido em oito regiões delimitadas a partir da divisão feita pela Secretaria de Estado do Planejamento, Habitação e do Desenvolvimento Urbano de Sergipe (SEPLAN), em 2008, a saber: alto sertão sergipano; médio sertão sergipano; baixo São Francisco sergipano; leste sergipano; agreste central sergipano; grande Aracaju; centro-sul sergipano; sul sergipano. Tais regiões contemplam 75 municípios.

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A Cartilha do Povo seguia uma proposta pedagógica considerada moderna para época,

segundo Mortatti (2000b), baseando-se em métodos mistos ou ecléticos (analítico-sintético

ou sintético e vice-versa): “[...] especialmente em decorrência da disseminação e da

repercussão dos testes ABC, de Lourenço Filho, cuja finalidade era medir o nível de

maturidade necessário ao aprendizado da leitura e da escrita [...].” (MORTATTI, 2000b, p.

45).

A professora aposentada, Josefina Sotero Santos Teles testemunhou sobre o processo

de alfabetização, que se dava em ordem crescente de dificuldade, em uma escola isolada, no

meio rural do município de Rosário do Catete, leste sergipano, na década de 1940. Segundo a

depoente, a lição:

[...] tinha que soletrar aqueles textinhos pequenininhos. Aí já ia aumentado. Depois não precisava mais a gente tá soletrando, era ler mesmo. Sabe ler? A gente ficava em uma leitura silenciosa e depois lia mais isso. No primeirinho era soletrando. [...] Na Cartilha do Povo, tinha aquelas filinhas de palavras e então a gente lia aquilo ali. – [reproduz a voz da professora]: “Não acertou toda. Vá estudar mais!”. (TELES, 2013, p. 6).

A professora aposentada, Maria dos Santos Santana, também contou sobre o processo

de silabação e soletração em seu processo de alfabetização, no meio rural do município de

Pedrinhas, localizado no sul sergipano, na década de 1940. Nas palavras da entrevistada, o

livro:

[...] era ABC. Hoje não tem ABC mais, né? De primeiro tinha ABC até... vamos soletrar o “bê-á-bá” [...] . Era uma coisa séria. Sempre, “adepois” que saia do ABC, a Cartilha Analytica12. Os mais adiantados já na Cartilha do Povo, todo misturado na mesma sala. Todos os colegas ela botou assim pra ler, mas sempre eu em primeiro lugar. (SANTANA, 2013. p.5).

A Cartilha do Povo era composta por desenhos e gravuras. A professora aposentada,

Maria Eurides da Silva, relatou sobre as ilustrações da Cartilha do Povo, quando alfabetizada,

no município de Itabaianinha, localizado no sul sergipano: “A Cartilha do Povo ainda tinha

umas coisinhas, uns brinquedos, uma bola. Agora a Cartilha Nacional13 era só letra.” (SILVA,

2011, p. 3). As ilustrações da cartilha foram lembradas pela professora aposentada, Terezinha

Vasconcelos Melo, com base em suas experiências vivenciadas na escola isolada, situada no

meio rural, no município de Ilha das Flores, localizado no baixo São Francisco, na década de

12 A Cartilha Analítica, do professor Arnaldo de Oliveira Barreto (1869 - 1925), foi publicada pela editora Francisco Alves (RJ), com 1ª. edição presumivelmente em 1909 e a última, a 74ª, em 1967. A esse respeito, ver Bernardes (2008).

13 A Cartilha Nacional, do professor Hilário Ribeiro de Andrade e Silva (1847-1886), foi publicada entre os anos 1870 e 1880, pela editora Carlos Pinto & Cia. A esse respeito, ver Bittencourt (1993).

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1940: “A gente aprendeu muito na Cartilha do Povo, que tem uma mãozinha assim, que

tinha as letras vogais assim “a”, “e”, “i”, “o”, “u”. [...]”. (MELO, 2012, p. 3).

A figura 1 apresenta algumas ilustrações da Cartilha do Povo mencionadas pelas

professoras:

Figura 1 – M. B. Lourenço Filho, Cartilha do Povo, São Paulo: Melhoramentos. 1956, p. 3-5. Fonte: Acervo do Grupo de Pesquisa História do Ensino de Língua e

Literatura no Brasil (GPHELLB), Marília (SP).

Quanto às condições metodológicas de ensino, as professoras entrevistadas

aprenderam em salas multisseriadas, frequentadas por alunos de variadas faixas etárias e

níveis de aprendizado. Entre os anos de 1940 e 1950, sobretudo no meio rural no estado de

Sergipe, eram comuns escolas multisseriadas e unidocentes (escolas isoladas), ou seja, um só

professor lecionava para todas as séries reunidas em uma única sala de aula. A professora

dividia seu tempo ensinando a ler e a escrever às crianças, que tinham idades diferentes e

cursavam séries também diversas.

A professora aposentada, Ceris Maria Souza, também relatou sobre a utilização da

Cartilha do Povo em seu processo de alfabetização na sala multisseriada e unidocente da

escola isolada, do meio rural de Divina Pastora, leste sergipano, na década de 1940. Segundo

a entrevistada, a sua professora primária:

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[...] começava pelo ABC, né? Ensinava o ABC, que hoje a gente chama de alfabeto. Aí depois que aprendesse todas as letras, que a criança tivesse decorado todo o ABC, que conhecia todas as letras, aí ela ia pra cartilha. Para os mais adiantados do primeiro ano, tinha uma cartilha chamada Cartilha do Povo, que vinha silabação, vinha também com algumas letras, textos pequenos. Chamava Cartilha do Povo. Era o primeiro livro depois do ABC. Os alunos do segundo e terceiro ano já passavam para outros livros. (SOUZA, 2013, p. 3).

A passagem do livro ABC para a Cartilha do Povo representava um tipo de “seriação”

no contexto de salas multisseriadas e unidocentes. A noção de tempo nas classes

multisseriadas se insere numa realidade escolar complexa e dinâmica. Na escola, a noção do

tempo escolar se dá a partir do tempo dos sujeitos, isto é, a partir da soma entre experiências

de tempo vividas por eles e as condições materiais e intelectuais neste contexto social, nesse

caso, o estudo da Cartilha do Povo significava uma divisão do tempo escolar, inclusive

quando o processo de alfabetização se dava no âmbito doméstico, como contou a professora

aposentada, Maria José Santos Freitas, sobre o uso da Cartilha do Povo para alfabetizar seu

próprio filho, no povoado São Pedro, município de Telha, localizado na região do baixo São

Francisco: “[...] ensinei o ABC ao meu filho mais novo. Depois [ele] deu a Cartilha do Povo,

mas ele não deu na escola, porque ele estudou em casa, porque não tinha idade. Quando ele

fez sete anos, já sabia ler.” (FREITAS, 2012, p. 11).

Outra professora aposentada, Janete Aguiar de Souza Cruz, também sobre o papel da

Cartilha do Povo na divisão dos níveis de aprendizagem, com base em suas memórias

escolares, nos idos de 1945. Segundo a professora, os alunos eram separados em:

[...] atrasados e adiantados. A gente aprendia muito nessa Cartilha do Povo, as letras, a silabação. Era ótima, nessa época lá em Tomar de Geru [município do Sul sergipano] todo mundo tinha que passar pela Cartilha do Povo. [...] Assim que aprendia a ler um pouquinho, ela passava logo à cartilha, porque a primeira parte da cartilha era toda silabação e tinha soletração, sílaba por sílaba, quando passava aquela página. Hoje não tem isso. E, se não aprendesse, ficava de castigo. (CRUZ, 2012. p. 2).

O professor aposentado, José Walter dos Santos, também lembrou sobre a divisão em

sala de aula, a partir do uso da Cartilha do Povo, no meio rural do município de Tomar do

Geru, localizado no sul sergipano, na década de 1940. Em suas palavras, o método:

[...] pra aprender a ler e a escrever era o seguinte: Ela [professora primária] começava. A gente lia o ABC, depois ela vinha e perguntava letra salteada [como se estivesse reproduzindo a voz da professora]: Que letra é essa? Que letra é essa? [...]. Depois ela fazia o ABC, mandava a gente cobrir de onde

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começava a letra, cobria com o tinteiro, com a caneta cobrindo. Depois estudava a Cartilha Analítica, a Cartilha do Povo, isso no primário. Agora a gente dava soletrando: “Maria”, “Antônio”. Aí ela perguntava onde estava o acento posto [...]. Já sabia contar as letras tudo. Só ela que ensinava. Todas as turmas, todas juntas, trabalhava muito. E aquele mais antigo tomava as lições do outro. Era individual que dava a lição. Se não desse a lição, ficava preso, ia pro castigo. O castigo era de joelho, com caroços de milho. Botava caroços de milho, pouco, entendeu? Ficar ajoelhado conforme o tempo que ela pedia, logo tinha que dizer. Não saia sem dar a lição e era individual. Ia pro quadro, mandava pro quadro pra saber se eles já sabiam já ler. (SANTOS, 2011, p. 2).

Era recorrente o uso de castigos físicos no processo de ensino-aprendizagem. Segundo

Lima (2013), no meio rural: “[...] a centralidade do processo educativo recai sobre o

conteúdo, a memorização, a repetição e em ações pedagógicas voltadas para o controle e a

disciplina, sendo comum o uso de castigos.” (LIMA, 2013, p. 327). A presença dos castigos

físicos era mais comum no meio rural, onde as supervisões escolares feitas pela Diretoria

Geral do Departamento de Educação14 se tornavam mais difíceis. A professora aposentada,

Maria dos Santos Santana, destacou o uso de castigos físicos no processo de alfabetização de

alunos, no meio rural do município de Pedrinhas, localizado no sul sergipano, na década

1940. Segundo a professora, quando uma:

[...] colega entrava na Cartilha do Povo. [reproduz um suposto espanto de uma colega de classe] “Olhe, Maria já terminou!”. Vamos entrar na Cartilha do Povo. Quando a colega entrava, eu já estava recordando. Porque existia recordar o livro, não é? Era soletrando, palmatória, palmatória. Eu estudei até o quarto ano. Pra fazer conta a conta, era no quadro. Tinha quadro de pedra, não era esses quadros “coisados” não. Aí fazia as contas. Graças a Deus! Cartilha do Povo, Ciência, dava lição de cor. Tinha palmatória. (SANTANA, 2013. p. 3).

A presença da palmatória constituía um símbolo da disciplina rígida empregada nas

escolas do meio rural. Pelas memórias escolares dos nossos(as) entrevistados(as), podemos

identificar sua utilização sobre problemas de aprendizagem, sobretudo, nos momentos de

perguntas e respostas nas sabatinas. Conforme Souza (1998), “[...] a palmatória, no

imaginário social, comportava-se como um emblema da profissão docente [...], uma espécie

de crédito moral suplementar emprestado aos mestres pelas famílias” (SOUZA, 1998, p. 86).

Apesar da Lei Imperial, de 15 de outubro de 182715, proibir os castigos físicos nas escolas –

14 Órgão público, estadual e administrativo que concentrava as funções técnicas e burocráticas. 15 A Lei Imperial de 15 de outubro de 1827 favoreceu os castigos morais, em detrimento dos físicos, já que o

Método Mútuo ou Lancasteriano passou a ser oficializado por D. Pedro I como o método pedagógico a ser utilizado na instrução pública brasileira, tendo no artigo 15 uma especificação balizando o uso dos castigos por este método de ensino. Cabe salientar que o Código de Menores de 1927, mesmo apresentando uma característica de higienização e repressão social, com enfoque nas crianças em situação de pobreza, elenca a

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entre outras prescrições –, muitos professores seguiam fazendo uso dos castigos em suas

aulas, a exemplo da professora primária que alfabetizou a professora entrevistada, Maria dos

Santos Santana. Segundo Aragão e Freitas (2012, p. 25): “[...] mesmo após a proibição de

castigos físicos, a palmatória adentrava no século XX como um artefato ainda inserido na

cultura material escolar”.

“O rato roeu a roupa”: uma cartilha “fenômeno” e o pacto entre gerações

A Cartilha do Povo era: [reproduz o trecho de uma lição] “o rato roeu a roupa”. Oh meu Deus! Era uma agonia! Na Cartilha do Povo tinha o ABC. [...] Agora, a Cartilha do Povo era um fenômeno, porque do meio em diante já apreciam textos maiores. Começava com a silabação, vinha o alfabeto. [...] A gente copiava não sei quantas vezes. Até porque não tinha muito o que se fazer na escola. Aí num lado copiava o alfabeto maiúsculo; o outro, o alfabeto minúsculo e o outro, as sílabas complexas, que tinham já no quarto ano. Começava “rr”, “ss”, “sç” [...] E o pior de tudo é que a Cartilha do Povo servia não só para uma turma, servia para duas turmas. Que do meio em diante, era pra turma mais adiantada. E tinha o ABC tradicional, aquele pequenininho também. (VASCONCELOS, 2012, p. 8).

O fenômeno ao qual se referiu o professor aposentado, Antônio Barros Vasconcelos,

alfabetizado no município de Boquim, situado no centro-sul sergipano, na década de 1950,

foi a Cartilha do Povo. Segundo Mortatti (2000a), tal acontecimento representou: “[...] a

fundação de uma (nova)tradição” (Mortatti, 2000a, p. 212), uma vez que a Cartilha do Povo

permaneceu por décadas nas salas de aula, como referência no processo de alfabetização de

crianças e adultos.

O professor Antônio Barros Vasconcelos continuou contando sobre a importância da

Cartilha do Povo, inclusive em cursos superiores de formação de professores, no estado de

Sergipe, na década de 1980. Segundo o professor, ele viu:

[...] o mundo que hoje não existe, porque você vê hoje professores formados. Preste atenção! Graduados em Língua Portuguesa e Pós-graduados, chamar “dependerosa”. Isso é um escândalo! [reproduz a palavra de forma correta] “Isso é uma coisa muito dispendiosa”. [reproduz frases com problemas de concordância verbal]: “Pra mim fazer”, “mim disse a mim”. Isso dói os tímpanos! Nós, quando fizemos faculdade, foi na Faculdade de Filosofia, na rua do Campus e tinha uma professora que era Rosália Bispo. Ela dizia assim [reproduz o diálogo da professora com uma aluna]: RB: Lindinalva, de onde você veio? L: De Frei Paulo.

questão dos castigos físicos na escola, proibindo-os e indicando o regime de prêmios e punições, porém, não criminalizando e permitindo o uso desses no âmbito familiar. A esse respeito, ver Aragão e Freitas (2012).

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RB: Minha filha, você conhece a Cartilha do Povo? O rato roeu a roupa? L: [silenciou] RB: Leia, pra aprender a escrever. (VASCONCELOS, 2012, p. 4).

A Cartilha do Povo atravessou o processo de alfabetização de gerações e marcou o

imaginário social e educacional brasileiro. Segundo Mortatti (2000b), a cartilha de

alfabetização, em geral, instituiu e perpetuou certo modo: “[...] de pensar, sentir, querer e

agir, que, embora aparentemente restrita aos limites da situação escolar, tende a

silenciosamente acompanhar esses sujeitos em outras esferas de sua vida pessoal e sócia.”

(MORTATTI, 2000b, p. 50). Nesse sentido, algumas professoras entrevistadas usaram a

Cartilha do Povo no exercício do magistério primário, a exemplo da professora aposentada,

Janice Santos Silva, no município de Arauá, localizado no sul sergipano, na década 1980. Nas

palavras da professora, para ensinar:

[...] o ABC a eles, eu ensinava devagarinho [fala pausadamente]: a, b, c. Devagarinho a gente chegava lá. Depois das letras vinha a cartilha. Vinha pra soletrar, devagarinho a gente chegava lá. Nesse tempo tinha cartilha, nesse tempo existia a Cartilha do Povo, a cartilha que eu dei. Era assim mesmo, a liçãozinha pequenininha. A primeira folha era uma mão assim [abre a palma da mão]: “a”, “e”, “i”, “o”, “u”. Vinha assim, isso aí eu me lembro. Embaixo: “a-u–au” “e-u-eu”, “i-a-ia”. Primeira folha. [...] Isso aí eu me lembro, ainda, isso aí eu me lembro como estou vendo agora. (SILVA, 2011, p.6).

A professora aposentada, Elienalda de Souza Reis, também utilizou a Cartilha do

Povo, como professora no povoado Convento, município de Indiaroba, localizado no sul

sergipano, na década de 1980. Conforme a narrativa da professora, os alunos:

[...] estudavam a Cartilha do Povo. Agora não estou mais lembrada, como eu sei que eles davam a lição da cartilha. [...] A cor dela, a capa era Azul. Tinha letras, tinhas os nomes. Assim que eles escreviam a copiazinha, eu dava ditado daquelas letras, daquelas palavrinhas que tinham na Cartilha do Povo. Eles foram aprendendo, conseguindo a leitura. Não era uma cartilha que tinha muitas páginas não, eram poucas páginas, eram bem curtinhas. As vogais, todo mundo sabe que é a letra: “a”, “e”, “i”, “o”, “u”. [...] os pais compravam, era só eu mandar a nota, compravam. (REIS, 2011, p. 14).

Mesmo na década de 1980, período em que se introduziu no Brasil a proposta

pedagógica construtivista16, nos termos de Mortatti (2016), fruto de estudos sobre a

psicogênese da língua escrita, desenvolvidos pela pesquisadora argentina Emilia Ferreiro,

16 A proposta metodológica construtivista surgiu em reposta às demandas do fracasso escolar brasileiro. O construtivismo, também conhecido como desmetodização do ensino, questiona o uso das cartilhas no processo de alfabetização. A esse respeito, ver Mortatti (2006).

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parte dos(as) professores(as) entrevistos(as) permaneciam usando a Cartilha do Povo, a

exemplo da professora aposentada, Maria Eurides da Silva, quando professora em sua banca

escolar17, no município de Itabaianinha, localizado no sul sergipano, na década de 1980: “Eu

usava a Cartilha do Povo. Agora depois botaram essa porção de livro que eu não sei é nada,

mesmo assim continuei usando. Hoje eu não sei mais ensinar a ninguém. A soletração hoje é

tudo diferente.” (SILVA, 2011, p. 3).

O momento de transição narrado pela professora foi: “[...] fundador de uma nova

tradição que identifica o ‘quarto momento crucial’ (ainda em curso) da história da

alfabetização no Brasil” (MORTATTI, 2016, p. 2269).

As narrativas dos(as) professores(as), que seguiram usando a Cartilha do Povo, nos

faz lembrar as recomendações feitas por Mortatti (2006), em uma conferência sobre a

história do ensino da leitura e escrita na fase inicial de escolarização de crianças. Segundo a

autora, é preciso:

[...] conhecer aquilo que constitui e já constituiu os modos de pensar sentir, querer e agir de gerações de professores alfabetizadores (mas não apenas), especialmente para compreendermos o que desse passado insiste em permanecer. Pois é nas permanências, especialmente as silenciadas ou silenciosas, mas operantes, e nos retornos ruidosos e salvacionistas, mas simplistas e apenas travestidos de novo, que se encontram as maiores resistências. (MORTATTI, 2006, p. 15).

Considerações Finais

Abrimos as considerações finais deste artigo, retomando o questionamento

apresentado inicialmente, quando a professora Maria Lima Santos Aragão nos interrogou se

já tínhamos ouvido falar da Cartilha do Povo. “Sim”, responderíamos para nossa

entrevistada. No entanto, adentrar pelos usos da cartilha pelo “ouvir-contar” dos(as)

professores(as), das diferentes regiões do meio rural sergipano, conferiu singularidade sobre

o que até então se conhece sobre a Cartilha do Povo, de Lourenço Filho.

Com base no que “ouvimos-contar” concluímos que no meio rural do estado de

Sergipe, a Cartilha do Povo se constituiu enquanto uma referência em matéria de

alfabetização de crianças. Ainda que o modo de educar privilegiado de aprendizagem era

baseado na repetição e verbalização dos conteúdos, tal modelo de ensinar e aprender os

rudimentos da leitura e escrita se perpetuou na memória de várias gerações.

17 “Banca” é a aula avulsa, ministrada em espaços não institucionalizados (casas, garagens, galpões, salões etc.). Neste caso, em especial, a banca, na ausência de escolas, configurou um espaço educativo voltado para os primeiros anos de educação escolar, entendidas como uma educação doméstica, de iniciativa particular, sem qualquer vínculo com o poder público e que usava como mobiliário e espaço escolar, os móveis e a casa da professora. A esse respeito, ver: Santos, Barreto e Silva (2012).

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