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PARAHYBA 03

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Revista Revista Parahyba 03 com o tema Imaginários Utópicos.

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CARTA DO EDITORIAL

O condicionamento das cidades ao capitalismo, que transforma seu crescimento em privatização e sujeita seus moradores ao papel de consumidores é o cenário perfeito para o surgimento de iniciativas como as retratadas nesta terceira edição da Revista Parahyba. O modelo desenvolvimentista traz consigo a desvalorização do uso da cidade por seus habitantes e, junto a isso, a diminuição de espaços de convivência pública estimulantes, convidativos e aconchegantes.

Cidadãos hostilmente tratados por medidas públicas, aridez nas rotas do cotidiano, limpeza social, vida violentamente controlada pela especulação financeira. Nesse cenário surgem ações e reflexões despertadoras de imaginários no espaço urbano. Práticas que, mesmo sem pretensão de solucionar problemas, provocam questionamentos acerca da realidade, agindo como catalisadoras de novas percepções e posturas.

Apresentamos nesta edição trabalhos que, de forma própria, trazem estímulos a um uso mais consciente e atento à cidade. Situações que fogem ao uso rotineiro dos espaços, que pegam de surpresa quem por elas passa. Contatos inesperados que podem provocar nas pessoas algum questionamento acerca da realidade e rotina em que vivem, e talvez das nossas próprias possibilidades de ação. A terceira edição da Revista Parahyba convida todos para se juntar à essas reflexões.

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Editores Luiz Gustavo Pataro, Paula Lobato e Pedro FloraConselho editorial Celina Borges, Deborah Arbex, Felipe Carnevalli, Gabriel Braga, Júlia Birchal, Juliana Ferreira, Luisa Grassi, Luiz Gustavo Pataro, Marina Sanders, Matheus Cardoso, Paula Lobato, Pedro Flora, Pedro Heliodoro, Pedro Igor, Ulisses Mattos e Vítor LagoeiroRevisão Gustavo NascimentoProjeto gráfico Luiz Gustavo Pataro, Marina Sanders, Paula Lobato e Pedro Flora Colaboradores André Mesquita, Aruan Mattos, Bernardo Carvalho, C.A.S.I.T.A., Camila Morais, Eric Crevels, Felipe Cardoso, Flavia Regaldo, GIA, Jose Llano Loyola, Luiz Felipe César, Luiz Gustavo Pataro, Luiza Silva, Manuel Andrade, Márcio José Gabrich, Marcos Gustavo Pires de Melo, Maria Cecília Alves, Mariana Rodrigues, Marina Sanders, Patrícia Brito, Rafael Machado, Thiago Flores e Tiago Cícero

Capa Lucas KröeffAgradecimentos Renato Brandão

Espaço aberto, horizontal e multidisciplinar de discussões sobre a cidade.Número 03 / Agosto de 2013ISSN 2237-1885 www.editorialpet.wordpress.com

Todo o conteúdo é de responsabilidade única de seus autores e não reflete necessariamente a opinião da revista.

Para anunciar ou enviar material: [email protected]

editorial

PET Arquitetura e UrbanismoEscola de Arquitetura UFMGRua Paraíba, 697, Sala 414B

Belo Horizonte, MGBrasil

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NESTA EDIÇÃO

04 A utopia do urbano Marcos Gustavo Pires de Melo

10 Contágio Urbano Eric Crevels

17 Série Habitações Impossíveis Lucas Kröeff

18 La notación del interprete Jose Llano Loyola

22 (D)o alto Luiz Felipe César e Márcio José Gabrich

26 Banquete Patrícia Brito

34 Barlavento Aruan Mattos, Flavia Regaldo, Manuel Andrade

41 Flutuador GIA

44 Curta em Santa Tereza CinEA

50 Costura Intuitiva Luiza Silva e Maria Cecília Alves

56 Um banco, muitas histórias Felipe Cardoso, Mariana Rodrigues e Marina Sanders

58 Resistência biopolítica: uma entrevista com Alex Villar André Mesquita

66 Observatório de fragilidad emocional C.A.S.I.T.A

74 Frutificai-vos Rafael Machado

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Em algum momento na história da humanidade, utopia ganhou uma conotação negativa, certa oposição ao real, ao realizável, ao possível. Em nossa concepção de mundo ocidental – marcada por dicotomias rivais e por uma obsessão por uma verdade incontestável e imutável – parece não ter sobrado muito espaço para o pensamento utópico.

Se for bem verdade que utopia anda ao lado do adjetivo “irrealizável” ou do “impraticável”, seria igualmente correto dizer que ambos os adjetivos estão imersos em determinado contexto social e, consequentemente, histórico e, assim, passível de certa relatividade. E se for verdade que utopia se opõe ao real, seria prudente nos questionarmos “qual real?”. Utópico, no entanto, não conota impossibilidade definitiva, muito embora se tente estabelecer o sinônimo entre as duas ideias.

O que aconteceu com a utopia? Ou ainda, talvez de uma forma mais precisa, o que aconteceu com a utopia crítica? Digo mais precisa porque em certo sentido vivemos uma utopia conservadora sem a perceber, uma utopia mascarada: a utopia do mercado perfeitamente competitivo, a do individualismo absoluto, a utopia do funcionamento perfeito do capitalismo que será capaz de prover, algum dia, o bem-estar de todos. Não será essa a grande utopia de nossos tempos? Uma que pretende acabar com todas as outras, que se pretende única e decisiva, que procura se legitimar (e esconder

A UTOPIA DOURBANO

Marcos Gustavo Pires de Melo

Graduado em Ciências Econômicas pela FACE/UFMG e atualmente aluno do programa de mestrado em Geografia pelo IGC/[email protected] Horizonte, MG

Texto escrito em agosto de 2012.

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sua faceta política) por detrás do discurso da ciência moderna, do progresso, uma utopia que esconde suas contradições e se transforma, enfim, em um aparente consenso: houve história, mas não há mais.

A libertação da utopia crítica passa pelo processo de reconhecimento dessa utopia outra e pelo repensar do processo de sua consolidação. Isso significa, concordando com Boaventura de Sousa Santos1, uma reinvenção que é tanto política, quanto teórica e epistemológica. Segundo esse autor, o conhecimento produzido hoje pelas ciências sociais se fundamenta, ao perseguir os paradigmas de ciência moderna lançados pela Física, na redução do presente e na amplificação do futuro. Isso significa que, ao estudarmos o que existe, jogamos fora sistematicamente uma série de experiências humanas classificando-as simplesmente como não científicas e, ao contemplarmos o que pode existir, imaginamos a linha reta, homogênea e infinita do progresso limitado aos ideais burgueses. A consequência dessa postura epistemológica é a formulação de teorias e de sistemas políticos conservadores, que cada vez mais, não servem para guiar, alimentar ou responder à efetiva realidade social.

É necessário, portanto, reinventar a emancipação social, e reinvenção sempre abre espaço para doses de utopia, de imaginação. É necessário libertar, como sugeriu Celso Furtado2, nossa criatividade que se encontra condicionada aos meios, à técnica. Libertar nossa criatividade não para radicalizar o presente, mas para imaginar outros presentes possíveis, outras regras de jogo. Quando dizemos inovação, por exemplo, logo nos vem à mente todas as recentes maravilhas tecnológicas que nos permitem produzir mais e

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melhor, pensamos nos novos meios de produção e consumo, carregamos a percepção de uma inovação ligada, de uma forma ou de outra, ao mundo das mercadorias. Raras são as vezes que identificamos inovação como uma possibilidade de novas formas políticas ou de novas relações sociais e essa raridade expõe as limitações impostas ao nosso imaginário criativo: enviar um homem à Lua é perfeitamente possível, mas revolucionar o sistema político é um sonho distante demais. Bill Gates é um visionário, Che Guevara um revoltado. A imaginação se limita ao que convém.

Alguns podem dizer que a atividade utópica nunca deixou de existir, mas que é silenciada, tornada invisível, tomando como base de argumentação a quantidade crescente de movimentos sociais que emergem por todos os lugares. De fato essa é uma parte da verdade, mas convém questionar: quais os alcances revolucionários desses movimentos? Poderão eles existir indefinidamente apenas como resistência? Dizer sim para esta última questão não é concordar com o futuro homogêneo e infinito do capitalismo? Invocando novamente Boaventura, isso significa dizer que é preciso construir, na termologia do autor, uma Sociologia das Emergências (ou das possiblidades) tanto quanto temos procurado construir uma Sociologia das Ausências (ou do que não foi evidenciado).

Parece-me que os recentes avanços pós-estruturalistas foram extremamente competentes quanto a esta última, mas se preocuparam muito mais em descontruir o que existia como meta-narrativa do que em construir algo novo

no lugar. O relativismo absoluto serve a todos, incluindo, e talvez principalmente, como destacado por David Harvey3, aos objetivos excludentes do capitalismo neoliberal. Quero dizer com isto que é preciso ampliar nossa visão de futuro tanto quanto temos tentado fazer com nossa visão de presente, sob o risco, caso falhemos, de trocarmos a revolução pela reforma.

Nesse sentido, para defendermos uma utopia da cidade torna-se necessária uma nova postura epistemológica, teórica e política em relação ao espaço vivido. Devemos denunciar a crescente mercantilização da cidade, o gerenciamento e o empresariamento4 que vêm dominando progressivamente a prática do planejamento urbano, a tentativa de homogeneização da vida cultural urbana, mas é preciso ir além dessa denúncia, é necessário procurar traçar um novo caminho que incorpora e consolida essa crítica, é preciso reviver a utopia em todas as dimensões.

Ver diferente, para interpretar diferente para fazer diferente. Acredito que o esforço de Henri Lefebvre caminha nesta direção. Ao escrever A revolução urbana5, Lefebvre assume a virtualidade como ponto central de sua argumentação quando define o conceito de urbano, que se torna substantivo livre de sua função de adjetivar o que se passa nas cidades:

O urbano (abreviação de “sociedade urbana”) define-se portanto não como realidade acabada, situada, em relação à realidade atual, de maneira recuada no tempo, mas, ao contrário, como horizonte, como virtualidade iluminadora. O urbano é o possível, definido por uma direção, no fim do percurso que vai em direção a ele. Para atingi-lo, isto é, para realiza-lo, é preciso em princípio contornar ou romper os obstáculos que atualmente o tornam impossível.6

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A utopia, personificada no urbano, assume sua posição libertadora no trabalho de Lefebvre que, para tanto, trabalha com uma postura epistemológica diferenciada em relação ao espaço, que deixa de ser um objeto não dinâmico disponível ao bel prazer do método analítico, para assumir uma nova importância ontológica (e subjetiva) de produção e reprodução da sociedade. Somente assim é possível definir as contradições socioespaciais que marcam a luta pelo e para o urbano. O espaço assume também seu caráter político, transformador em um sentido amplo: quando Lefebvre7 fala sobre um direito a cidade ele se refere a mais que o simples acesso aos equipamentos urbanos, ou uma acesso às localidades urbanas. Ele diz tudo isso, mas, concordando com David Harvey8, ele diz mais: o direito à cidade é o direito de reinventar a cidade, reinventar a vida urbana, reinventar as formas urbanas, é o direito de ter liberdade utópica e de exercê-la.

O urbano mostra-se como meio e produto de uma revolução, é um objetivo inicial que abrirá caminho para outros da mesma forma que a luta pela liberdade e pela democracia se encerram em si mesmas, mas apontam sempre para novas trajetórias antes escurecidas pela sombra do castelo de areia do “real”, do “possível”. A abstração liberta a mente e nos permite teorizar sobre o que ainda não veio em um processo chamado de transdução, que guia o esforço lefebvriano n’A Revolução Urbana.

Acredito que Lefebvre persegue o tipo de ação contra hegemônica totalizante necessária para a desconstrução de uma hegemonia igualmente totalizante: se os valores capitalistas se alastram sobre as diversas formas do pensar e do agir é preciso estar atento a esse movimento. Uma sociedade distinta não se sustentará somente em

setores isolados, uma vez que a prática social só pode existir enquanto totalidade. Uma nova sociedade pressupõe uma nova cidade, uma nova teoria, uma nova política, um novo tudo.

Henri Lefebvre9 constrói uma teoria, baseado em uma nova epistemologia, que pretende apontar novas aspirações políticas; é a pretensão da construção não somente de um novo tipo de espaço urbano, mas de uma nova sociedade, ou seja, é um projeto que assume a indissociabilidade entre espaço e sociedade. Esse projeto inclui a busca de um código que permite não somente ler o espaço (em qualquer perspectiva histórica ou social), mas também construí-lo; pretende descobrir uma verdade sobre o espaço e não o espaço verdadeiro. Pretende ainda desfazer a separação ilusória entre teoria e prática: não haveria em toda teoria uma prática implícita, e não teria em toda prática um esforço interpretativo teórico subjacente?

Hoje vivemos um problema complicado, uma discrepância entre teoria e prática social que é nociva para a teoria e também para a prática. Para uma teoria cega, a prática social é invisível; para uma prática cega, a teoria é irrelevante. E essa é uma situação que temos de atravessar se tentarmos entrar no âmbito da articulação entre os movimentos sociais.10

Concordando com Boaventura, devemos penetrar com a utopia incipiente dos movimentos sociais (urbanos) em todas as esferas da produção do conhecimento, não somente para reconhecer essa prática, mas também para

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potencializá-la, para ir além das aparências (das resistências) e revelar seu caráter revolucionário.

Podemos agora voltar por onde começamos, pelo título. A utopia do urbano carrega um duplo significado. Por um lado resume o que procuramos construir até aqui: a importância de uma utopia urbana como parte integrante e imprescindível da construção do novo, o urbano quanto utopia. Por outro lado procura caracterizar esse mesmo urbano como o espaço de utopias, ou seja, o urbano como uma utopia onde se produz utopias; um espaço que, representando uma nova sociedade, será a verdadeira liberdade do pensar e do fazer.

Ao terminar o texto, talvez eu tenha deixado o leitor, mais do que nunca, com a impressão de que a utopia urbana é um sonho distante. Não direi o contrário, pois os obstáculos são inúmeros, mas ela representa nossa vontade pelo novo, pelo diferente e, dessa forma, esse virtual faz parte do nosso real, guia nossa compreensão e nossa ação, alimenta nossa insatisfação e impulsiona a transformação. Ilumina o “campo cego”11 da nossa visão que, obscurecida pelo holofote da hegemonia, é impedida de enxergar a revolução que se anuncia e que, paradoxalmente, só passa a existir e ser possível uma vez que foi imaginada.

Reinventar a cidade significa reinventar a sociedade e reinventar a nós mesmos, sem que qualquer dessas reinvenções seja prioritária sobre a outra, de modo que todas são elementos importantes e indispensáveis do mesmo processo de emancipação humana. Quando escrevo utopia, leio liberdade.

1 SANTOS, B. S. Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social. São Paulo: Boitempo, 2007.2 FURTADO, C. Criatividade e dependência na civilização industrial. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.3 HARVEY, D. Condição pós-moderna. São Paulo: Editora Loyola, 1998.4 Ver HARVEY, D. Do gerenciamento ao empresariamento: a transformação da administração urbana no capitalismo tardio. Espaço & Debates, v. 16, n. 39, p. 48-64, 1996.5 LEFEBVRE, H. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.6 Ibid., p. 26.7 LEFEBVRE, H. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001.8 HARVEY, D. A liberdade da cidade. In: Urbânia 3. São Paulo: Editora Pressa, 2008.9 LEFEBVRE, H. The production of space. Oxford: Blackwell, 1993.10 SANTOS, B. S. Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 20.11 A ideia de campo cego é trabalhada por Lefebvre n’A Revolução Urbana.

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No próximo dia 30 de outubro, completarão dois anos do anúncio do Comitê Executivo da FIFA que nos “agraciou” como país sede da Copa do Mundo 2014 em uma cerimônia de enaltecimento do orgulho nacional brasileiro como terra do futebol. Encontramo-nos diante da dicotômica relação entre as cidades nas quais habitam brasileiros e a imagem ideal das “cidades sedes” que hospedarão o mundial. A situação pré-Copa do Mundo na qual nos encontramos revela diversos sintomas urbanísticos e sociais do choque entre a realidade urbana e o modelo de cidade espetáculo (asséptica, moderna, livre da pobreza, miséria e opressão), palco da efervescência econômica e paraíso turístico. Cidade que nos é imposta por critérios mercantis de instituições e corporações multinacionais que estipulam um código de conduta que legitima o inconstitucional, priorizando interesses financeiros sobre a legislação brasileira. Modelo urbano esse que é colocado como pré-requisito para a realização do mundial e é apoiado por políticos e empresários interessados em sua faceta econômica, afinal, o orçamento inicial de 23 bilhões de reais destinado ao evento é de crescer os olhos mais oportunistas. A máscara de realidade urbana, construída em função do mercado turístico e da visão da cidade como espaço internacional, é moldada através da reformulação do acesso à experiência urbana por meio da implantação de estratégias envolventes e expositivas que regulam o fluxo e classificam espacialmente o uso, direcionando o usuário a práticas subordinadas ao interesse corporativo multinacional. Essa visão

CONTÁGIO URBANO

Eric Crevels

Graduando em Arquitetura e Urbanismo pela UFMG.

[email protected] Horizonte, MG

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é o que postulo como imagem tour da cidade e está intimamente relacionada com a abordagem higienista e pacificadora da urbe. Sob o intuito de “apresentar” a cidade espetáculo ao mundo, os direitos humanos do cidadão são transgredidos sob o véu do progresso e da “revitalização” urbana.

Os resultados são, de certa maneira, clássicos processos de gentrificação: o “deslocamento involuntário” de famílias, como é chamada a remoção forçada dos moradores de suas casas, responde às estratégias de especulação imobiliária e da maquiagem do espaço urbano. Seja por residirem em áreas destinadas à implantação de equipamentos de suporte à Copa, seja pelo alargamento de vias, o fato é que o número (ainda nebulosamente impreciso segundo os dados governamentais) gira em torno de 150.000 a 170.000 habitantes desabrigados, ainda sem considerar aqueles cuja permanência em suas propriedades vem se tornando insustentável devido à progressiva valorização da terra (conseqüência da proximidade com os estádios ou áreas de interesse).

A Inversão

Buscando contornar a implantação da imagem tour da cidade, desvencilhando o megaevento da política elitista em que está inserido, a variação perspectiva de apropriação e uso do espaço possibilitaria a releitura da experiência sobre diferentes pontos de vista e análise, sobrecarregando a rede de significados com uma pluralidade situacional crescente, o que inviabilizaria a manutenção e manipulação de suas imagens e possibilitaria a relação não hierárquica entre a Copa do Mundo e as camadas sociais. Através da apropriação do espaço urbano por corpo social estranho à gestão institucional regulamentadora, somada a uma prática paralela de ocupação e uso

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do ambiente urbano de forma marginal, autogerada e autogerida, a ocupação da Lagoa da Pampulha entra em conflito crítico com as práticas gentrificadoras, se posicionando contrariamente aos “deslocamentos involuntários”.

É uma proposta de prática crítica através da apropriação de um espaço em contato direto com o estádio, espaço-símbolo máximo da Copa do Mundo. Abrigando na Lagoa da Pampulha os representantes do movimento “Atingidos pela Copa”, viajantes, nômades, boêmios, moradores de rua e quaisquer indivíduos ou grupos interessados e realizando atividades diversas em íntima relação com a cidade e sua dinâmica; cria-se um “retalho urbano” como instrumento de política crítica e interferência livre não governamental. Os “retalhos urbanos” são micro sistemas urbanos singulares, identificáveis pelas suas concordâncias funcionais e significantes interiores, sob ótica da ocupação do “não-lugar”¹. São situações peculiares específicas nos vazios² da cidade, agindo como complemento espontâneo para as porções de sociedade obliteradas pela ordem institucional de funcionamento social; ilhas de significância e apropriações autônomas, TAZ³ (zonas autônomas temporárias) que se originam sem intenção obrigatória, podendo funcionar como sintoma urbano.

O Contágio

Aproveitando a deixa proporcionada pelo prefeito de Belo Horizonte, Márcio Lacerda, em sua afirmação quanto à despoluição da Lagoa da Pampulha: “... na Copa, queremos a Lagoa da Pampulha no nível 3, para pesca e esportes náuticos...”, é possível visualizar uma maneira de ocupar a própria lagoa enquanto um espaço público até então “vazio”. No México, todas as ilhas são propriedades do Estado e têm legislação proibitiva contra sua ocupação. Apenas uma pessoa em todo o país

possui uma ilha privada, o inglês Richard Sowa. O motivo dessa exceção é explicado por um aspecto funcional advindo da condição de sua ilha ser artificial e flutuante, construída sobre uma estrutura de garrafas Pet que bóia sobre o mar. O fato da estrutura não ser fixa categoriza a morada de Sowa como embarcação, e não como uma ilha de fato.

Tendo como referência a experiência mexicana, apropriando-se das ilhas flutuantes para abrigar as pessoas envolvidas na proposta de ocupação crítica da Lagoa da Pampulha e utilizando da qualidade das ilhas como embarcação, a ocupação funciona no âmbito legislativo, justamente como “esporte náutico” e está desprendida das políticas autoritárias de repressão ao alojamento de pessoas no

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espaço público. Espacialmente, a ocupação se estabelece em dois momentos distintos. Para materializar a ideia faz-se necessário um projeto de intervenção pela caracterização e identificação de espaços e ações que envolvem a concepção do morar, deslocando-os de seu contexto habitual para uma abordagem livre e possível experimentação de suas funcionalidades significantes em maneiras paralelas do “habitar” a fim de permitir a vivência e a sobrevivência durante o período de ocupação. As ilhas construídas em garrafas Pet abrigam os participantes do movimento e suprem as premissas mais íntimas do “abrigo”, aproveitando da possibilidade de locomoção das próprias ilhas para assumir toda a gama de intimidade que cada momento requer. Equipamentos localizados na orla da lagoa catalisam a coletividade de atividades por essência comunais, como de alimentação, lazer e abrigam aquelas que necessitam de infraestrutura mais complexa, como saneamento, instalações hidráulicas, elétricas etc.

O modelo de ilha segue a proposta do inglês, porém, visa estabelecer o maior número possível de pessoas durante o período da Copa do Mundo, consolidando um evento paralelo em si, em contraponto à rígida política elitista e excludente do megaevento da FIFA. É um convite ao usuário a uma nova realidade urbana não maquiada e livre das convenções regulamentadoras do mundial. É uma abertura para a fruição de uma experiência urbana e social em seu caráter de diversidade e dinâmica, potencializando o encontro entre múltiplas realidades culturais (símbolo democrático e cultural utilizado como estandarte pela lógica dos megaeventos) como

de fato é: imprevisível e com infinitas possibilidades consequenciais. Essa imprevisibilidade quanto às possibilidades geradas a partir desse encontro é o objetivo central da ocupação, e através dele acontece a conformação da contraproposta crítica ao modelo da Copa.

Não podemos esperar que, mesmo as ilhas funcionando legalmente como embarcações, a ocupação não seja desfeita pelas forças de opressão social vinculadas aos interesses contrários antes mesmo de se consolidarem. Para tanto, faz-se necessário um complexo de táticas evasivas de âmbito ocupacional que vise estabelecimentos reativos aos processos de planejamento, ordem e ação do agente opressor, realizados com base temporal e espacial de resposta ao contexto estratégico adversário, para assim viabilizar a implantação de um “retalho urbano” que possa sustentar-se. É preciso inventar atalhos práticos para possibilitar que a ocupação se forme e depois se desenvolva. Esses reagentes de esquiva que mantém ou proporcionam o não contato entre o agente ocupante (apropriador) e o agente dissipador são práticas focalizadas que impedem/dificultam a ação repressora, atacando não violentamente suas construções estratégicas de funcionamento, organização e logística, utilizando-se de ações de amplo espectro de alcance para tornar invisível a ação apropriante. Essas práticas, com caráter de oposição e de viabilização a favor da ocupação social específica tomam caráter de guerrilha. São táticas de resistência.

Associados à implantação dessas táticas, práticas subversivas de apropriação e experiência da cidade se desenvolvem, baseados nas teorias situacionistas como a da Deriva4, tal como a criação sistemática de “atalhos”, oriundos do conhecimento da própria população sobre a parcela de cidade localizada entre dois pontos.

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1 Marc Augé define em Não-Lugares, Introdução a uma antropologia da supermodernidade (1992), o “lugar” enquanto espaço antropológico, como um espaço identitário, relacional e histórico. Portanto, o “não-lugar” é diametralmente oposto ao lar, à residência, ao espaço personalizado. O usuário do não-lugar mantém com este uma relação contratual representa-da por símbolos da supermodernidade que permitem o acesso, comprovam a identidade e autorizam deslocamentos impessoais.2 Entende-se por vazio os espaços em que suas potencialidades de uso não são plenamente exploradas. No caso, a predileção pela verticalização de áre-as já adensadas da cidade parece ignorar esses “vazios” como possibilidade alternativa de ocupação. 3 BEY, Hakim. TAZ - Zona Autônoma Temporária (1985).4 Teoria da Deriva, formulada por Guy Debord em 1958. Lançar-se à deriva é rumar, partindo de lugar qualquer, deixando que a cidade crie e indique seus próprios percursos. “É um estudo psicogeográfico que contempla a mudança no urbanismo, na arquitetura e na própria relação entre a cidade e o indivíduo, em uma realidade na qual cada pessoa seria tanto agente como receptor na construção do espaço urbano”.

O atalho é um caminho alternativo de uso não priorizado, de caráter fragmentário, flexível e coletivo. É um percurso parcelado de direcionamento em escala micro; uma condição espacial de fluxo enquanto objeto temporal, ligado à experiência cartográfica e a familiaridade regional. Ironicamente, o atalho, quando tratado como via, implica tanto na descoberta dos interstícios da cidade, pois coloca aquele que o percorre (mesmo que de automóvel) em contato com fragmentos urbanos que de outra maneira se esconderiam, como desafoga o tão odiado transito metropolitano, já que dispersa a grande quantidade de veículos por uma tão grande variedade de possíveis percursos. Após a integração desses diversos meios de apropriação e a consolidação de uma unidade representante de toda ação e prática crítica envolvida no processo, a Ocupação se estabelece como evento paralelo de resistência social, visando, primeiramente, a crítica à sobreposição de ideais corporativos de interesse puramente mercantilista aos direitos individuais e coletivos do cidadão comum, em um cenário de fantasia, construída para mascarar ações opressoras e inconstitucionais como “desenvolvimento”. Busca-se também a recategorização do espaço público como, de fato, público: aberto à re-significação espontânea da cidade pela dinâmica urbana, lugar do encontro não hierarquizado e da pluralidade potencial enquanto equanimidade entre indivíduos.

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Lucas Kröeff

Artista Visual

[email protected] Horizonte, MG

SÉRIE HABITAÇÕESIMPOSSÍVEIS

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LA NOTACIÓN DEL INTERPRETE

Jose Llano Loyola / CRAC Valparaíso

Co-editor de CRAC Valparaíso. Arquiteto da Universidad Central (Chile). Atualmente é Secretário Acadêmico da Escuela de Arquitectura UNAB VIÑA, Coordenador da Línea de Teoría e Historia UNAB, Professor Titular da Escuela de Arquitectura UNAB VIÑA e UNAB SANTIAGO e Professor do Mestrado “Territorio y Paisaje” da Universidad Diego Portales, curso Mapas Experimentales II.

[email protected]íso, Chile

Valparaíso es una ciudad inacabada de recónditos imaginarios, que busca detrás de cada situación una cuota de sobrevivencia de su propia vida y de su recurso diario. Se ha reinventado una y otra vez recurriendo a poetas, escritores, dibujantes y pintores, que claramente no imponen ideas definidas sino que cada cual se imagina a Valparaíso como quiere. Esa cuota de geografía individual construye un tipo de imaginario que se materializa en los procesos de sociabilizacion de la ciudad, espacios públicos, plazas, ascensores…etc y en su materialización sobre las formas de habitar y de encontrarse en la ciudad. Las ilógicas casas, que ha la primera impresión se vierten detrás de un recorrido incoherente, describen una temporalidad oral que se presenta sobre las pendientes, cotas y versatilidad de los elementos constructivos que cimentaron un “principio de agrupamiento, de reconocimiento y de legítima diferenciación” formal y de habitabilidad y que finalmente configuro una imagen del espacio local y urbano de Valparaíso. Esa manera de mirarse, no construiría un espejo, sino que desarrollo una relación entre una cercanía y su distancia de la identidad y la conformación de paisaje “local”. Desde las casas descolgadas, adyacentes, solapadas, superpuestas y extendidas se desenvuelve un pensamiento de coexistencia, un tipo de forma de habitar como un estado de conciencia y que a través de su imaginación, pensamiento y reflexión permite reconocer mil rostros, que construyen una geografía de ensamble y una silueta de contornos,

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de lugares y de relatos que a través de representaciones como las extensiones de las casas, las apropiaciones urbanas, las transformaciones espaciales de sus propias instalaciones populares, por ejemplo en el caso de la ex-cárcel de Valparaíso, permiten que emerja un tipo de experiencia sobre el lugar que transforma al habitante en interprete de su propia lugaridad.

Estas condiciones que se ven develadas y desarrollas por los intérpretes de la geografía íntima, bajo las representaciones graficas, pictóricas, narrativas y las composiciones de lugar que se vuelcan sobre las tectonicidades materiales de las construcciones, instalaron a modo de evidencia a través de las representaciones sociales del paisaje, un tipo de conocimiento local que permitió construir instancias de ensamblaje y desarticulación sobre las practicas urbanas y me refiero a las apropiaciones y resignificaciones de los propios espacios públicos como privados. Este tipo de constructos que apelan a nuestra experiencia social y a un tipo de lenguaje o narración que elabora una huella visible sobre el espacio, un espacio del relato que permite evidencias, inflexiones, acentos e ideas de las representaciones y formas narrativas de un paisaje como Valparaíso desde la notación del interprete, permitió comprender que las representaciones son el entrecruzamiento finalmente de escenarios de diálogos donde el sujeto interactúa de forma particular con sus procesos de identidad definidos por la geografía, el espacio social y su percepción del lugar, vivido, concebido y representado al mismo tiempo. La comunicación entre las huellas del espacio y las formas de organización colectiva e individual de Valparaíso, tanto políticos como culturales, lograron articular espacios sobre una convivencia construyendo territorios heterogéneos donde las fronteras entre lo real y lo imaginario apenas constituye un aspecto diferencial de los sentidos dando forma a un itinerario y a un relato de sus vidas.

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Es así como las notaciones del interprete y la espacialidad cotidiana, se entrelazan en un entretejido de niveles de diferentes realidades y de profundas lecturas sobre la huella de lo otro, donde las historias, biografías, la condiciones entrópicas de lo cultural se convierten en sedimento social y se transforman y mutan sobre las base de las extensiones de lo cotidiano, dando cabida aun otro entretejido de realidades. La notación del intérprete de esta manera, sobre las representaciones es una especie de códice abierto y extenso sobre nuestros propios imaginarios replanteando la noción de identidad que depositada sobre las condiciones de sus cerros y sus especulaciones urbanas, y entretejida por las realidades urbanas, actúa como espacio de encuentro bajo el discurso de la experiencia, condición que se extrapola mas adelante como existencia de lo multicultural, solo recordar el deposito de identidades nítidas que se fueron integrando al marco de referencias geográfica de miles de inmigrantes que conformaron cerros, tipologías, costumbres y territorios en Valparaíso a inicios de siglo, exponiendo a la experiencia como una portadora de la evidencia, me refiero a las historias y lecturas al paso de un evento de un Valparaíso acontecido.

Sin embargo, ¿Qué sucede hoy con Valparaíso y su marco de posibilidades de organización social, frente a los diferentes proyectos socio-culturales que involucran re-programar parte de la identidad de la ciudad? en ¿Donde residirá la potencia de la materia en Valparaíso adportas a realizarse el Forum Internacional de las Culturas? ¿Cuáles son los desafíos de organización socio-político que podrían re-programar las prácticas, metodologías u/o organizaciones sociales frente a los marcos de especulaciones obsesivas sobre nuestro imaginario? ¿Dónde radica la potencia de Valparaíso Contemporáneo para re-pensar y re-pensarnos bicentenariamente?

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(D)O ALTO

Luiz Felipe CésarMárcio José Gabrich

Arquitetos Urbanistas graduados pela Escola de Arquitetura da UFMG.

[email protected] [email protected] Horizonte, MG

É sobre a imagem da multiplicidade de planos direcionais da paisagem da cidade que se desenvolve a ideia para o céu de Belo Horizonte. Uma ideia que se pauta em modificar um plano pouco explorado, a partir da imagem que os dirigíveis geram no (para o espectador) e do (para o usuário) panorama urbano.

É, ao mesmo tempo, um alerta em dois sentidos. Em primeiro, à necessidade do habitante do espaço urbano de observar a cidade como um todo, em todos os seus patamares, novos níveis construídos e elevados pelo homem através dos grandes prédios, e em todos os seus planos de visadas – como ver a Serra do Curral a partir do começo da Avenida Afonso Pena, ou todo o complexo da Pampulha a partir da barragem. Olhar para baixo e ver o tecido urbano lá de cima; olhar para o alto, e alcançar o estrato máximo dos núcleos da cidade.

Em segundo lugar, é o alerta no sentido da mobilidade no ambiente urbano, que vem sendo um problema em nossos tempos. É uma dificuldade que vem tentando ser sanada por soluções de curta duração – ampliações de vias de arteriais, criação de alças, viadutos, trincheiras; obras e caos no tráfego de toda Belo Horizonte.

Um sistema de transportes por dirigíveis vem utilizar o estrato aéreo da cidade, um espaço que lhe pertence e do qual se tira tão pouco proveito. Vem, mais que isso, aproveitar espaços residuais, ou com grandes áreas livres, em prol de sua própria existência.

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Os pontos de paradas das linhas propostas correspondem, entre outros, a terrenos vizinhos a aeroportos –Confins e Pampulha –, heliportos existentes – Cidade Administrativa do Estado –, topos de edifícios, ou estruturas agregadas a esses – regiões da Savassi e Belvedere –, parques e espaços gramados – Jardim Zoológico, Parque do Betânia –, terrenos próximos a linhas de metrô – Horto, Venda Nova. Agrega, ainda, relações com a Região Metropolitana e com os núcleos históricos de Minas Gerais, tornando-se um meio alternativo de transporte de trabalho e de turismo, respectivamente.

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BANQUETE

Patrícia Brito

Graduada em Letras, especialista em política pública de cultura e patrimônio. Atua na área de restauração e revitalização urbana, trabalha como memorialista em culinária, desenvolve banquetes públicos e receitas gastronômicas a partir da memória gustativa.

[email protected] Horizonte, MG

O trabalho realizado pelo Festival de Inverno de Diamantina, Casa das Cidades – Banquete Público foi uma ação proposta sobre uma ótica diferenciada dos modelos de festivais, que atualmente acontecem pelas cidades. Com esta perspectiva, a proposta do Festival de Inverno avança no sentido da democratização e sociabilidade das pessoas que moram em Diamantina, o banquete teve um papel fundamental de agregar pessoas, e acima de tudo torná-las responsáveis pela movimentação cultural, que tivesse efetivos e avanços no que se refere aos encontros de umas pessoas com as outras. Nesta perspectiva do encontro, o Festival levou a reflexão do bem viver, do atuar, de não se fazer um festival por fazer e de se trabalhar a identidade local.

Fotos por Renato Brandão.

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Com a proposta de trazer elementos que remetam à memória gustativa da cidade para o banquete público, foi buscada uma solução de como utilizar os alimentos que estivessem presentes na cidade, usou-se com isto a estratégia de comprar todos os ingredientes, sua grande parte de pequenos produtores rurais de diversos distritos e povoados de Diamantina, no entanto, o trabalho não passou por uma questão de méritos gastronômicos, mas sim, de diálogos constantes entre as mulheres que ali já são articuladas com o fazer e o saber da culinária tradicional, além dos inscritos da universidade federal, assim como pessoas da comunidade local.

Em diálogos com o mundo real de quem cozinha e o fazer desta cozinha o seu ofício cotidiano, as Mulheres Reais, que assumiram a oficina concomitantemente comigo, contribuíram para os diálogos no sentido de relatar as memoráveis receitas, ou fragmentos delas, e com isto se propor uma releitura do fazer culinário, pensando sob uma ótica em que englobasse aspectos sociais, antropológicos e históricos, para assim nortear o banquete em questão. A partir dos dados levantados sobre a memória gustativa presente em cada um, foi singular a forma de como se construiu ao longo do trabalho os pratos que fizeram parte do banquete, com isto, diariamente fazíamos um banquete, diariamente trocávamos receitas e histórias que remetiam o cotidiano das pessoas, e paralelamente uma proposta de ações que trouxessem estas receitas como forma de deslocamento do nosso universo pessoal, de forma a compartilhar às experiências múltiplas de localidades, pessoas, objetos, lembranças que construíram um o cenário propicio à memória e à criação.

Foi neste sentido de tratar o festival e concomitantemente o Banquete como um bem viver, que as Mulheres Reais se inseriram na discussão

e no fazer. A princípio, por meio de reuniões anteriores ao Festival foi proposto à aproximação para uma interlocução mais abrangente no que se refere ao reconhecimento e conhecimento preliminar antes mesmo do início da construção do banquete, valorizando assim às identidades locais, além de problematizar para ver qual seria o caminho mais viável diante do que se propor no banquete. As Mulheres Reais que já vinham traçando um caminho de autonomia no trabalho, e por sinal com muitas dificuldades econômicas, encontraram também como alternativa pelo menos naquele período a sua organização e seu reconhecimento, pela comunidade local, assim como pelos visitantes que ali frequentavam o banquete público.

Passar pela cozinha nestas reuniões prévias, significava muito mais do que cozinhar e apontar receitas, entendia-se das partes, que cozinhar também seria uma forma de falar das vidas, dos saberes, das pessoas, dos valores culturais, das memórias e das vontades de como prosseguir a vida pelo viés da cozinha, tanto de uma parte quanto de outra. O desafio foi o deslocamento de ambas as partes, uma entender a outra que poderia entrar de forma direta e indireta na vida alheia e para isto foi preciso mergulhar, conhecer onde moram como lidam com os filhos e vice-versa, foi à abertura para se emocionar com as palavras chegadas por meio da cozinha.

Um dos desafios foi à inserção de pessoas que chegaram para cozinhar durante o festival, os inscritos e não inscritos, estes chegaram aos poucos, não houve objeção de inscrição, pois todos os dias havia novidade, seja na cozinha ou no quintal,

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onde também era expandida as receitas e os diálogos entre Mulheres Reais versos aqueles que chegavam. Não tratava-se de somente cozinhar, mas também entender o que o deslocamento era importante para entrar em universos distintos, e sem objeções aos encontros, ou seja, olhar para o outro e permitir ser olhado. A forma de expor isto foi cozinhar dentro ou fora do espaço da cozinha, mas ambos como espaços de convivência e colocação individual.

Cozinhar, comer e beber, foi o pretexto para o encontro, e para deixar outras possibilidades de reencontros para futuros projetos, que cada vez mais dariam autonomia ao pensamento e ao fazer do cozinhar, não somente como recurso econômico, mas, como forma de se colocar com autonomia no mundo, o cozinhar se tornou um ato de entender que cada um possui a sua memória e sua história diante do mundo. O foco central já não se tratava de oferecer poder aos articuladores da oficina, mas sim de propor que todos são responsáveis pelo conhecimento e pelas trocas ali propostas, além evidentemente de dizer para a cidade que as Mulheres conseguem propor novas formas de vida a partir de uma organização feita por elas, uma associação que se insere em contexto político e histórico que remete à história de mulheres que surgem do campo e que levam a vida como muitos brasileiros, cuidam de filhos e netos, trabalham para o sustento da casa e são responsáveis pela renda de todo o seu grupo familiar, isto sem tirar a vontade de

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viver e de se reconhecer como pessoas que estão construindo outras formas de viver, a produção do alimento e o cozinhar fazem parte de suas vidas.

A beleza no fazer de suas quitandas passa por experiências que trazem do campo, da horta que quase não há tempo para se cuidar, das madrugadas pertencidas ao trabalho, da sobrevivência, das experiências fizeram deste momento as misturas das ervas, agridoce, o sal que se estimulava a sua redução, o sabor das misturas das frutas, experimentamos sucos, as frutas do cerrado, o fazer de uma geleia de jabuticaba. Na receita da geleia de jabuticaba é possível perceber que a casca é um elemento essencial, que deixa a cor roxa, permite aos olhos uma conversa extensa até que o encontro fale do filho ao paladar. Com a geleia se faz capitães, ela misturada à bananada se divide em sabores, um azedo e outro doce, juntos são fortes e fazem das latas um recipiente para mostrar o valor da mãe que ali já se fazia daquela forma.

A conversa e a cozinha se misturam, começam as receitas, carne na lata, feita a partir da carne de porco é um alimento apreciado por muitas pessoas, se gasta tempo maior de cozimento, receita oriunda de uma cultura rural, especialmente quando não se tinha geladeira, porcos eram criados em quintais e comiam restos de alimentos deixados por pessoas, estes aliados aos grãos de milho ou farelo de trigo, assim se obtinha uma carne com consistência que em seu preparo aparentava cor vermelha viva, os preparos eram feitos no próprio quintal do porco se aproveitava tudo, tripa, miúdos e as nobres, pernil e lombo, destas últimas se faziam as carnes na lata que tinha uma duração grande pelo fato de se conservar na banha do próprio porco. Ao fazer esta em Diamantina, preparou-se a um

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O umbigo de banana que demorou três dias para tirar nódoa e fazer dele uma conserva foi aos poucos sendo modificado até assumir um sabor singular, o umbigo foi retirado cuidadosamente de sua casca, deixando ficar a parte branca que em seguida cortada finamente com uma faca amolada, e posteriormente mergulhada numa água com limão capeta, após retirar da sua casca dura todo o caldo alaranjado, colhidos por mulheres reais. Só depois de soltar toda nódoa e ser bem lavado e aferventado por três vezes é que se pode refogá-la no azeite no alho e sal, é preciso permitir que a acidez não acentue no sabor, para que ele assuma na boca um paladar ímpar e único de forma a se estender ao olfato até se sentir o cheiro da cozinha que se expande ao quintal.

As sobras das cascas que envolvem o umbigo da banana, a sua cor em vermelho foi o pote para alojar os capitães, ora doces ora salgados, pães foram acompanhados nestas guloseimas que chegavam aos poucos na cozinha, chegaram lentamente com outros pratos, bolo de mandioca, torta de mandioca, estes apareciam de acordo com as mãos que torneavam outros futuros capitãs. A aparição do broto de samambaia foi um acontecimento rememorável, já quase não se falava pelas bandas de lá e menos ainda por estas daqui, dos brotos surgiram tortas, verdes com cheiro de ervas, queijo minas, os mesmos fabricados pelos pequenos produtores da região, ali se comia uma reinvenção das avós que já habitaram cozinhas tipicamente rurais, a receita do broto de samambaia foi acontecendo coletivamente, misturou-se farinha de trigo, ovos, leite e fermento em pó, bateu-se tudo até obter a consistência de uma torta de liquidificador, o recheio já estava pronto, foi necessário retirar toda nódoa do caule e do brotos que se formavam em flores, cortou-se cuidadosamente até o caule em que sua consistência era mais maleável, preparou-se a fervura destes brotos,

suco com limão capeta, com alho, sal e pimenta do reino. Deixa-se marinando neste líquido por um dia, até que se obtenha um sabor singular entre o azedo e sal em medidas exatas de forma a equilibrar o sabor nem salgado e nem azedo. Após este processo, foi para o fogo que se alternava entre o lento e o médio. O fogão a lenha foi aceso com técnicas desenvolvidas pelas próprias mulheres reais, que explicavam os detalhes de se obter um bom fogo sem perder o ritmo. Após longas horas de fogo pode se obter uma carne com fibras fortes e macias, esta foi colocada submersa na banha dentro de uma lata.

Outras receitas a partir do que já existe nos proporcionou levar para a cozinha memórias até então fragmentadas, juntamos narrativas que havia tramas que aos poucos foram relembradas e agraciadas com encontros diversos, noturnos, diurnos e festivos. Da banana caturra se tirou a farinha, a partir de uma desidratação criada foi possível trazer os capitães esquecidos por muitos com uma nova roupagem que se expandia da memória de avó, quando oferecida para os netos como uma comida de passarinho, os grãos juntaram e a farinha deu liga.

O pilão foi um objeto trazido pelas mulheres reais, elas lembraram como as avós e a mães socavam os grãos, como ele era presente nos quintais, dele socamos a banana verde, depois de descascadas finamente e cortadas em lamina também finas, foi levada ao forno industrial em formas de alumínio, após elas desidratarem foram levadas ao pilão, socadas até ter uma consistência de farinha, fizemos uma nova versão de paçocas.

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já cortados em rodelas mínimas, fervia-se com cinzas embrulhadas em pano branco de forma a contribuir para a saída do amargo da samambaia. Após todo processo com o broto, refogue-o no azeite e alho, coloque um creme de leite fresco ou ricota para juntar a massa e levar ao forno em 180 graus por mais ou menos 45 minutos.

O fogo a todo o momento e há todos os dias acendiam, índios que frequentavam o festival era um público esperado para algum dia do banquete, a fartura foi o nome do banquete daquele dia de espera por uma cultura diferente e tão igual em sua essência rural com a qual estávamos a tratar. Em momentos de fogo e de brasa prezou-se por assar bananas maduras, batatas doce, broas e pães de cebola, a mesa estava posta, e era desta vez no quintal das Mulheres Reais, frangos eram depenados e sendo preparados para que nada faltasse ao banquete em que indígenas pudessem comer com fartura e pudessem narrar suas histórias que a tanto eram esperadas.

Com isto o calor do fogo era previsto acender para acender outros sentidos do paladar, trocar com índios, comunidades locais e amigos as receitas que falam de um saber que alimenta-se e proteger a vida sem desperdício. O festival representou esta gama de ações que movem a sensibilidade do paladar, da palavra e da memória, em etapas posteriores constroem-se projetos em que poderão continuar o diálogo sem escalas burocráticas e com propostas mais sensíveis aos que atuam da cozinha ao quintal revelando as memórias que ainda são poucas ditas.

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BARLAVENTO

Aruan Mattos Flavia Regaldo Manuel Andrade

Artistas belo-horizontinos que trabalham juntos desde 2010.

www.projetobarlavento.wordpress.comwww.azucrinarecords.netwww.cicloritmoscopio.comBelo Horizonte, MG

Diariamente um vento chamado Aracati entra pela costa no estado do Ceará e sobe o caminho traçado pelo rio Jaguaribe sertão adentro. O Aracati – do tupi guarani, “rajada forte” – sopra as cidades por onde passa em horários diferentes e é aguardado por quem ali está.

De abril a maio de 2012 construímos seis cata-ventos musicais em Aquiraz, município próximo a Fortaleza. Em junho e julho do mesmo ano, Barlavento seguiu o percurso do Aracati, carregando a orquestra tocada pelo vento.

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FLUTUADOR

GIAGrupo de Interferência Ambiental

Formado por artistas visuais, designers, arte-educadores e (às vezes) músicos que têm em comum, além da amizade, uma admiração pelas linguagens artísticas contemporâneas e sua pluralidade, mais especificamente àquelas relacionadas à arte e ao espaço público.

Atualmente fazem parte do GIA: Tininha Llanos, Luis Parras, Ludmila Britto, Mark Dayves, Tiago Ribeiro, Cristiano Piton e Everton Marco.

[email protected], BA

Desde meados do século XX até os dias de hoje, muitos grupos de artistas atuaram na interface entre espaço público e privado, repensando essas territorialidades tanto urbana quanto dos grandes espaços abertos naturais. Dentre eles os Situacionistas, Fluxus, artistas da Land Art, TAZ1, paisagistas contemporâneos, entre outros.

Os Situacionistas caminhavam pela cidade e construiam mapas psicogeográficos a partir das percepções sensoriais dos espaços, pensando uma nova forma de mapear o espaço urbano. O grupo Fluxus explora as ruas, as esquinas, para suas apresentações e eventos, e os land artistas manipulam a paisagem materialmente, criando novas configurações para seu entorno. Vários outros poderiam ser citados, já que, tanto nas áreas de conhecimento das artes quanto do paisagismo e urbanismo, as investigações sobre a construção do território são muitas.

O projeto Flutuador é uma intervenção que pretende permear as questões acima citadas, indicando um território dentro do que chamamos de espaço público e estimulando as pessoas a utilizá-lo. Trata-se de explorar e ocupar temporariamente a paisagem urbana com este objeto, abrir um canal de interação espontânea entre as pessoas e este espaço e, conseqüentemente, desses dois com a paisagem que os cerca.

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A forma escolhida para a obtenção de tais resultados se dá a partir da construção de um objeto, o flutuador propriamente dito, onde poderemos explorar esses espaços “democráticos” que, no caso, são as praias públicas.

O mar, aliás, foi o ponto de partida para a criação deste projeto, que surgiu a partir da percepção de que o mar, apesar de ser um território público, possui uma ocupação que permanece uma incógnita para a maioria das pessoas, que estão acostumadas com as formas “tradicionais” de ocupação do continente, muito bem delimitados pelas ruas, praças, prédios, cercas e muros. Soma-se a isso o fato de que cada vez mais restam menos áreas de lazer e de liberdade nas grandes cidades, em sua lógica de crescimento desenfreado.

O mar nesse caso pode ser entendido quase como um espaço residual, citado pela artista mineira Louise Ganz, quando ela escreve sobre seu projeto Lotes Vagos:

[...] Nas cidades, são reconhecidas oficialmente como áreas públicas os parques, as praças e as ruas. Os parques são grandes áreas para o lazer, que na malha urbana conformam pontos isolados e distantes entre si e que fazem com que moradores de bairros diversos se desloquem para freqüentá-los nos finais de semana. As praças, de uso mais local, existem praticamente em todos os bairros, quase sempre ilhadas pela circulação de veículos. As ruas, muito diversificadas em uma grande cidade, podem ser a própria extensão da casa, local para o lazer, o trabalho ou a domesticidade, mas também podem ser inóspitas, assépticas, apenas uma seqüência interminável de muros ou muralhas. Porém, este desenho urbano não abarca a complexidade de usos que se instalam não oficialmente em uma cidade. A constituição de um espaço público também se faz por uma prática informal, posto que áreas residuais,

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por toda a cidade, são ocupadas e usadas das mais variadas maneiras, sejam estas ocupações legais ou ilegais. Espaços residuais são aqueles que sobram normalmente após a implantação de uma infraestrutura, gerando áreas utilizáveis embaixo dos viadutos e passarelas, nas margens das estradas, nas beiras de canalizações, sob as redes de alta tensão, etc, ou podem ser frestas urbanas (pequenos nichos entre edificações ou sob elas, em muros), ou são acoplados à equipamentos urbanos (postes, bancos, árvores). Nestes espaços instalam-se usos diversos como habitação, inserção de bancas de vendas de materiais, plantação de hortas ou jardins ornamentais, campos de futebol, pinturas em muros, colocação de publicidade, ponto fixo para venda de serviços, etc. [...]2

Objetivamente, o flutuador é uma estrutura como um “deck” flutuante, ancorado numa praia pública, onde pode ser acessado por qualquer pessoa e que essa pessoa dê a ele a utilização que bem quiser. Ou seja, é objetivo também deste projeto levantar questões acerca da liberdade de utilização dos espaços públicos já que nenhuma regra existe neste ambiente, que é temporariamente gerido pelas pessoas no instante em que elas o ocupam, além da distancia física da terra (praia) possibilitar muitas oportunidades de atuação e liberdade.

1 Fazemos referência, aqui, ao conceito de Zona Autônoma Temporária, desenvolvido por Hakim Bay em seu livro TAZ: Zona Autônoma Temporária. São Paulo: Conrad, 2001.2 GANZ, Louise Marie. Lotes Vagos. Disponível em: <www.lotesvagos.arq.br>.

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CURTA EM SANTA TEREZA

Bernardo CarvalhoCamila MoraisLuiz Gustavo PataroThiago FloresTiago Cícero

Graduandos em Arquitetura e Urbanismo pela UFMG e membros do CinEA Cineclube.

[email protected] Horizonte, MG

Qual a primeira imagem nos vem à cabeça quando pensamos em cinema? A maioria irá responder que é uma sala escura, com uma grande tela branca, o ecrã. Com essa simples resposta entendemos o quão limitado está o espaço de exibição cinematográfico. Considerando a potencialidade do cinema e também do espaço de exibição é que partiremos para a apresentação da nossa intervenção no bairro de Santa Tereza, em Belo Horizonte.

“A sala escura e a tela rodeada de preto como um cartão de pêsames já apresentam condições privilegiadas de eficácia. Nenhuma circulação, nenhuma troca, nenhuma transfusão com o exterior”¹, já no início do século XX o cinema encontrou aí o seu abrigo, e, não muito tarde, esse isolamento coletivo – apesar de o espírito coletivo se encontrar apenas nas risadas e no silêncio mórbido, e a individualidade ser proibida - se tornou nossa única forma de contato com a produção cinematográfica.

Nossa relação com os filmes se conformou nesse modelo de sala escura, alcançando tamanha sedimentação que hoje, mesmo quando ocorrem projeções a céu aberto, na grande maioria delas, persiste a presença normativa dessa sala, com cadeiras enfileiradas, o silêncio absoluto a exclusividade da projeção, que proíbe todas as atividades que antes ocorriam no espaço sentenciado. Esse tipo de exibição, comum em festivais, sobretudo

Vídeo da ação em <vimeo.com/42243995>.

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nos sediados em cidades pequenas, se diz gratuito, mas para pagá-lo se apaga, no tempo de exibição, todas as demais possibilidades de um lugar.

Essa sala escura, normativa, limita a experiência do cinema, protegendo-a do espontâneo, empobrecendo reflexões e diálogos. Pensamos nas infinitas possibilidades perdidas nesse lugar, que poderiam ocorrer ao expandirmos a sala de cinema para a confluência da vida que acontece na cidade.

Desse modo é compreensível o fato de um número cada vez maior de espectadores evitarem essa sala e assumir esse isolamento, assistindo filmes na televisão e computadores, sozinhos, distantes do mundo, pois só aí

nos é permitido conversar, ignorar, dançar, beber, pular a cena que não nos interessa e rebobinar as incompreendidas.

Para a transposição do material escrito, com efeito, à tela, de forma que tocasse o expectador, seria necessário então repensar a exibição, colocar o cinema em um local de insegurança, onde possibilite a criação de novas relações entre este espectador e a obra produzida e também potencialize o uso do espaço urbano. Relembrando a sala de cinema da infância de Calvino, que vivenciou uma época de exibição de filmes a céu aberto na Itália, na primeira metade do século XX, “a visão do céu no meio de um filme era como uma pausa para meditação, com uma nuvem que passa devagar, vinda de outro continente ou século. (...) a presença do firmamento englobava todas as distâncias num único universo”.² É esta sensação, pelo

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menos essa possibilidade de diálogo, que sentimos falta dentro da sala escura do cinema atual e na qual pretendemos transformar em uma nova possibilidade de projeção, que possibilite novas maneiras de se relacionar com a obra.

Como propiciar a exibição de um filme de modo que permita um diálogo aberto entre os espectadores, o filme e o espaço de exibição? Como possibilitar também que o momento de exibição possa ser único, alterando em cada sessão a percepção da obra reproduzida? Como valorizar espaços urbanos de convívio coletivo e que estão sendo subutilizados ou marginalizados? Instigados por questões como estas que nos propusemos a repensar o cinema para fora da sala escura de projeção, comunicando com espaços públicos urbanos de Belo Horizonte.

Para tal, nosso projeto seria romper, literalmente, com as paredes de uma sala de projeção e, se possível, eliminar também o ecrã tradicional. Era nossa caminhada ao encontro da rua, uma tentativa de exibição que explorasse ao máximo as potencialidades do cinema em consonância com o espaço público.

Uma semana antes da exibição, visitamos o bairro Santa Tereza em busca de um ecrã ideal, buscávamos um espaço que conciliasse uma vida noturna boêmia a um vazio rotineiro, onde as pessoas entendessem a rua como local público mas que não aproveitassem todo o seu potencial. Encontramos no muro do metrô, desbotado, próximo ao Bar do Orlando nossa tela de projeção. Decidimos por não divulgar massivamente nossa ação, o público compareceria desavisado, em suas mesas espalhadas pela rua estreita, nos bancos da praça, no meio-fio, em rodas de samba. O dono do bar, com receio, concordou em

nos ceder seu ponto de tomada e depois acertarmos como pagar pela concessão de energia.

Com o espaço decidido, buscamos por curta-metragens mineiros contemporâneos e decidimos não fechar a escolha em uma unidade estética, exibindo, assim, ao público os diversos caminhos que o cinema brasileiro, sobretudo o mineiro, está tomando. Entramos em contato com os diretores e todos, com grande entusiasmo, cederam suas obras ao nosso projeto.

Chegou o dia de nossa intervenção. Exceto por alguns amigos, todos frequentadores da praça estavam desprevenidos do que iria acontecer ali. Iniciamos a projeção. A princípio nos sentamos no passeio, meio-fio e vagas de carro para assistir aos filmes, mas não demorou muito para nossa atenção sair do filme e começarmos a observar tudo o que acontecia além de nossa intervenção.

Do alto da rua, as pessoas que desciam resolvidas de seu destino paravam ao avistar o muro, era como se fossem impedidas de seguir o percurso da maneira de sempre. Paravam por alguns segundos, contemplavam o que acontecia, algumas se aproximavam um pouco, até o momento em que aquele curto encanto era quebrado por se lembrarem de voltar ao trajeto original.

Nos chamou atenção em especial um segurança que dava voltas pela praça. Nos perguntávamos se sempre se comportava assim ou se a curiosidade o impedia de levar como sempre a sua rotina de trabalho. Foi então, que

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no meio de nosso devaneio, se aproximou uma senhora vendendo amendoins e comentou o quanto era difícil se concentrar no seu trabalho, sua atenção era a todo tempo puxada para a tela, se desconcentrava por alguns segundos de sua venda, numa breve entrega àquilo que chamou, com uma incrível simplicidade, de “algo muito bonito“.

Seria esse também o sentimento do segurança? E dos fregueses do bar, que entre suas conversas pairavam o olhar sobre a projeção? Evidencia-se o poder de persuasão da imagem em movimento (o “algo bonito“ irresistível do qual nos falou a vendedora), e, talvez, fosse esse que afetava o que acontecia para além da exibição, envolvendo-a com os outros usos do espaço, reconstruindo a continuidade cotidiana, inserindo nela pausas, dispersões, diminuindo seu ritmo.

Algumas pessoas se ausentavam por um tempo maior de suas atividades, se aproximavam, sentavam, apoiavam em carros e postes. Fixavam o olhar naquele espaço, na imagem, mas assistiam ao filme? Compreendiam sua narração? Assistiam a imagens apagadas pelo muro, sons que se confundiam com o barulho ambiente. Elas viam a um filme do qual só enxergavam a sombra, e, mesmo assim, se envolviam em profunda imersão. Podemos apenas especular o que se passava dentro delas, talvez fizessem isso para se distrair da realidade, ou amenizar a solidão, o ócio, ou apenas pelo prazer de ver o muro abandonado pintado com novas cores e movimentos, possibilitando uma nova relação com aquele ambiente.

A relação do espectador com o cinema e com aquele local, ainda que por um tempo curto, foi reinventada, nesses pequenos intervalos da realidade, naqueles que aproveitavam da trilha sonora para dançar, na imagem miscigenada ao muro. Alguns foram mais longe, um frequentador do bar falava sobre a construção de um centro cultural naquele lugar, outro de fazer um filme a respeito do Estádio Independência, ideias improváveis de surgir na total imersão e alienação da sala de cinema.

No final da noite, uma boa surpresa, quando fomos recolher os equipamentos, Seu Orlando disse que estava tudo certo, não precisava pagar pela energia. Pelo que parece, foi afetado positivamente pela nossa intervenção. Em seguida, enquanto recolhíamos o fio, nos deparamos com uma moto com seu apoio cuidadosamente colocado em cima do fio da extensão. Alguém não nos queria ali. Pergunto-me quantos outros incomodados não tiveram a engenhosidade dessa pessoa para contestar a exibição. Contudo, positivamente ou não, nosso projeto foi bem sucedido ao provocar uma nova relação do cinema com o espectador e aquele espaço público. Um estranhamento foi causado e um novo canal de diálogo, troca e compartilhamento aberto.

1 BAUDRY, Jean-Louis. Cinema: efeitos ideológicos produzidos pelo aparelho de base. In: XAVIER, Ismail. A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2008, p. 395.2 CALVINO, Ítalo. Autobiografia de um espectador. In: FELLINI, Federico. Fazer um filme. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 11.

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COSTURAINTUITIVA

Luiza SilvaMaria Cecília Alves

Graduandas em Arquitetura e Urbanismo pela UFMG.

[email protected]@gmail.comBelo Horizonte, MG

A produção industrial em larga escala de crescimento ininterrupto e influência imensurável automaticamente transforma a vida cotidiana das cidades. Ela demanda o que se construiu aos poucos e pode hoje ser considerada uma vida de consumo, em que todas as atividades e processos são voltados à capacidade de compra e venda¹. A tudo foi atribuído valor financeiro. Os objetos, as vestimentas, os alimentos, os materiais, as qualidades, as habilidades, os acessos. Tudo tem um preço vulneravelmente definido por um mercado controlador e centralizado.

Nas atuais experiências mundializadas em que as tecnologias de transporte e comunicação já alcançaram todos os territórios e destruíram todas as fronteiras, o acesso à vida de consumo é generalizado. Em qualquer localidade do globo, nas grandes cidades ou em pequenos vilarejos, a compra de produtos industriais se faz presente e cresce independente das

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culturas locais, das raízes, e das identidades. Com isso, cresce também o risco do empobrecimento – em alguns casos até mesmo da perda total - de manifestações humanas de reflexão, criação e ação.

Foi criado um falso conceito de bem estar, pautado pela centralização do consumo como principal ativador da “felicidade”, capaz de convencer os homens da existência de modelos básicos de sobrevivência e satisfação². A alimentação, a moradia, os hábitos, a maneira de se vestir ou de se locomover na cidade e os lugares a serem frequentados são vendidos a todos de modo que se tornaram símbolos de status num mundo em que impera uma desonesta competição de aparências.

Inspiradas na militância do austríaco Friedensreich Hundertwasser - que aborda a recuperação do poder e do direito de transformação existente no interior de todas as pessoas - estudantes de Arquitetura da PUC e da UFMG, com o objetivo de subverter a experiência cotidiana do vestuário elaboraram e desenvolveram a Costura Intuitiva. Esta é baseada em um processo de incentivo ao resgate da curiosidade e da capacidade inventiva, que é facilmente notada na maneira pura como as crianças se relacionam com o mundo. No entanto, quando se trata da velocidade das experiências do mundo cotidiano contemporâneo, as exigências e os condicionantes levam muitas pessoas a perderem gradativamente a sensibilidade para estas qualidades. A absorção da educação e da cultura que hoje induzem o comportamento consumista passivo em que a única forma de criatividade exigida do homem é simples escolha e combinação de produtos industrialmente fabricados.

Em sua discussão sobre as diversas dimensões da existência humana, Hundertwasser (1997) as separa em camadas que se instituem como verdadeiras “peles”. A primeira é sua epiderme, o seu corpo, seu principal e mais orgânico instrumento e acessório de contato primário

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com o mundo que o cerca. A segunda é sua vestimenta, a pele que o homem escolhe ou confecciona para se representar e afirmar diante da sociedade. A terceira, sua casa e sua habilidade construtiva e de transformação do espaço como forma de nele registrar-se e expressar-se. A quarta é seu meio social, sua capacidade de associação e mobilização coletiva. E a quinta pele é sua humanidade, sua relação de equilíbrio com o mundo, sua consciência. Cada uma das “peles” está conectada às outras influenciando e sofrendo influências diretas do comportamento e das escolhas do indivíduo. Ao ser regido por uma cultura de consumo, ele abdica de suas capacidades providas pelas diferentes dimensões de sua existência, e perde aos poucos seu envolvimento mais profundo com o mundo, com as pessoas a sua volta, e finalmente com o que há de mais valioso: seu EU.

Tendo por base o abandono da lógica linear de comportamento influenciado pela produção industrial capitalista, a Costura Intuitiva preconiza a complexidade da observação do corpo e suas formas, curvas, volumes, rugosidades e outras características específicas e peculiares de cada indivíduo. Suas potencialidades geram a diversidade que se amplia com o processo de escolha regido pela percepção dos tecidos, suas cores e texturas em acordo com o gosto e a identificação individual do “costureiro intuitivo”. Essas geram nele a capacidade de produzir sua indumentária exclusiva e que, sendo sua “segunda pele”(Hundertwasser, 1997), funciona como autêntica forma de expressão de sua identidade ao mundo ao seu redor.

Partindo do princípio de que ao observar os detalhes de seu corpo e relembrar suas diferentes experiências o indivíduo tem plena capacidade de apurar a percepção de sua relação com o espaço, ele pode assim, intuitivamente desenvolver sua própria vestimenta. Em seguida, estuda cuidadosamente a adaptação dos tecidos às formas de cada parte do seu corpo e inventa, sem moldes, maneiras de costurar e transformar os tecidos, vieses, fitas, linhas e

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botões em peças exclusivas para seu vestuário. Nessa entrega o criador resgata dentro de si a sua mais genuína forma de se comunicar através do próprio corpo, livre de modelos pré-estabelecidos.

Duas oficinas foram realizadas em 2009 nos cursos de Arquitetura da PUC e da UFMG, e assim, a experiência da Costura Intuitiva foi compartilhada com mais de 30 pessoas, onde sentimentos e reflexões individuais se misturaram aos coletivos, inspirando assim todos acreditarem e então encontrarem a criatividade que existe naturalmente dentro de cada um. Em duplas ou individualmente, os costureiros escolheram os materiais e a partir deles elaboraram uma peça para seu próprio vestuário. Utilizaram técnicas variadas, com máquinas de costura ou a mão livre e intuitivamente, essas ações tomaram lugar aos poucos do receio do possível erro. Na medida em que se entregavam à experiência, conquistavam o prazer de consolidar resultados únicos e exclusivos.

Algumas pessoas nunca tinham manuseado os instrumentos de costura anteriormente. Outras já se aventuraram na customização de peças velhas. Mas poucas realmente haviam produzido uma peça da condição zero. Isto causou uma primeira impressão de insegurança e descrença em alguns, porém muita curiosidade em todos, que gerou uma capacidade de superação e entrega à experimentação. Assim, aos poucos os tecidos tomaram forma nas mãos de cada costureiro. O aprendizado era coletivo e mútuo, onde as contribuições de cada participante com suas vivências, suas dúvidas, suas reflexões e até mesmo seus erros eram incorporados às peças, atribuindo a elas um valor único, com ligação imediata à identidade de cada um.

Ao fim das duas oficinas, os participantes vestiram-se das roupas por eles mesmos produzidas, e puderam assim viver a experiência da

“segunda pele” de forma absolutamente ativa e muito diferente do que estavam acostumados. O sentimento de prazer era real, e completamente desvinculado da falsa sensação de satisfação gerada e evocada nas práticas cotidianas de consumo.

A Costura Intuitiva se apresenta como uma provocação à reflexão sobre a postura de cada um frente às diferentes dimensões de sua existência. Uma simples mudança de hábitos viciados - como o consumismo passivo - é capaz de proporcionar novos pensamentos acerca de como atuar de maneira ativa e ativadora da diversidade no meio em que se vive.

Uma cidade em que seus habitantes conquistassem a capacidade de enxergar seu poder de transformação - seja em qualquer dimensão: a de seus corpos, do espaço que os cercam, ou da sociedade da qual participam, pois todas estão interligadas - seria uma cidade verdadeiramente vivenciada e habitada, espontânea e viva.

REFERERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASBAUMAN, Zygmunt; DENTZIEN, Plínio. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2001.FEATHERSTONE, Mike. Consumer Culture & Postmodernism. London: SAGE, 1991.HUNDERTWASSER, Friedensreich. Architecture: for a more human architecture in harmony with nature. Koln: Taschen, 1997.RAND, Harry; Hundertwasser. Hundertwasser. Koln: Benedikt Taschen Verlag, 1994.________________1 Consultar FEATHERSTONE (1991) para maior aprofundamento sobre a cultura de consumo. 2 Mais detalhes em BAUMAN (2001).

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UM BANCO, MUITAS HISTÓRIAS

Os bancos, retratos estáticos de apropriações cotidianas das ruas e calçadas, ressignificam o espaço urbano e denunciam as histórias que podem estar por trás deles: um ambulante, um trabalhador cansado, um comerciante gentil...

No projeto “Um banco, muitas histórias”, desenvolvido na disciplina “Espaços Públicos Cotidianos” e orientado pela professora Lígia Milagres, foi criada uma coletânea de bancos encontrados no bairro Santo Agostinho, na região centro-sul de Belo Horizonte.

Felipe CardosoMariana RodriguesMarina Sanders

Graduandos em Arquitetura e Urbanismo pela UFMG.

[email protected]@[email protected] Horizonte, MG

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Com o objetivo de despertar novas percepções e discussões sobre os espaços públicos que estão presentes na vida das pessoas diariamente, as manifestações foram identificadas e colocadas em 20 panfletos, distribuídos nas ruas do bairro e deixados livremente em locais como praças da região, bares, árvores etc.

O formato dos panfletos era mais informal e simples graficamente, com impressão em papeis sulfite coloridos que pudessem ser replicados, xerocados e até imitados por outros moradores, que poderiam contribuir ativamente com as reflexões.

Além de uma provocação in loco sobre o espaço do bairro, o panfleto também chamava atenção para o site www.umbancomuitashistorias.tumblr.com, uma plataforma digital aberta criada para troca de informações e arquivos entre os moradores, onde a versão online dos panfletos estava disponível.

Tanto durante a identificação das apropriações quanto durante as distribuições dos panfletos, houve uma grande imersão e contato com o espaço do bairro Santo Agostinho e seus moradores e trabalhadores, que cederam diversas entrevistas e foram muito receptivos ao trabalho. É possível encontrar no site também as fotos desses momentos marcantes da pesquisa e do cotidiano do lugar.

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RESISTÊNCIABIOPOLÍTICA: UMA ENTREVISTA COM ALEX VILLAR

André Mesquita

Pesquisador das relações entre arte, política e ativismo.Atualmente é doutorando pelo departamento de História Social da Universidade de São Paulo com uma pesquisa sobre “mapas e diagramas dissidentes”, investigando obras de artistas e coletivos que produzem diferentes cartografias sobre o capitalismo contemporâneo. É integrante da Rede Conceitualismos do Sul.

[email protected]ão Paulo, SP

Pode o sujeito, no atual exercício do biopoder contemporâneo, engendrar uma potência capaz de pronunciar posições políticas e de resistência na vida cotidiana? Por meio de uma singularidade às vezes sagaz, às vezes silenciosa ou imóvel, o trabalho do artista brasileiro Alex Villar articula essa questão com ousadia. Pulando cercas, escalando paredes de prédios ou se colocando em frestas, Villar produz microintervenções no espaço urbano aproximando o corpo e suas tensões com a arquitetura. Nascido no Rio de Janeiro em 1962, Villar vive desde o fim dos anos oitenta em Nova York. Seu trabalho combina vídeo-performance, fotografia e instalação com um arcabouço teórico vindo de autores como Michel Foucault, Giorgio Agamben, Michel de Certeau, Gilles Deleuze, Judith Butler e Antonio Negri, além das práticas de deriva dos situacionistas e da anarquitetura de Gordon Matta-Clark.

O projeto artístico de Villar não se detém a coordenadas geográficas e históricas de um lugar específico. A ele, interessa principalmente as relações entre o corpo e as configurações particulares de situações urbanas diversas, às vezes com um mínimo movimento obtendo o máximo de consequência. Em Upward Mobility (2002), Villar escala cabines telefônicas e paredes. Em Temporary Occupations (2001), a

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resistência aparece como uma transgressão sutil e microscópica das brechas dos espaços e dos códigos que regulam as fronteiras entre o público e o privado. Villar percorre um trajeto na cidade encontrando fragmentos de espaços que são ativados pelos movimentos do corpo, assim como obstáculos que são ultrapassados com agilidade e humor. Seu projeto mais recente, Waste Management (2006), aborda questões sobre o que é considerado valioso e o que é dispensável na vida. Villar busca uma situação banal do cotidiano, como o ato de jogar fora o lixo, para tratar a maneira como a biologia do indivíduo passa a ser parte principal de todo um sistema de poder. Ao invés de identificar-se apenas com a ação de descarte, Villar coloca seu corpo em outra situação: na de um resquício sem valor. É o corpo exposto na cidade de forma nua e crua.

Em um momento atual onde os nossos corpos e vidas são capturados pelo capitalismo e transformados em reprodutores de seus efeitos, o trabalho de Alex Villar sugere pistas de como visualizar e produzir focos antagônicos em nossas ações cotidianas. A entrevista foi realizada por telefone em dezembro de 2006.

Olá, Alex. Como estão as coisas aí em Nova York? Ótimas. Hoje eu desmontei esse projeto que eu tinha lá em Downtown, foi tudo bem. Não se comentei com você, mas eu virei um container desses de lixo muito pesado...

Sim, vi algumas fotos do projeto. Virei o container de cabeça para baixo. Tive de revirar com muito cuidado porque o chão é propriedade de uma empresa, e é uma complicação danada. Esta cidade é cheia de não-me-toques.

Foi esse projeto que você deu o nome de Waste Management? Isso mesmo.

E como ele começou? Com uma proposta do Lower Manhattan Cultural Council dando bolsas para projetos públicos, especificamente nessa área de Downtown, em Manhattan. Depois do 11 de Setembro, quando aconteceu tudo aquilo, houve uma paralisação. Essa entidade cultural dava conta de uma residência no World Trade Center, que era muito conhecida. Tudo foi paralisado com os acontecimentos. Mas, dois anos depois, as coisas começaram a ser reativadas e houve uma proposta de apoiar projetos para artistas que realizam trabalhos públicos.

Em 2001, fiz um projeto dentro de um container de navio com um vídeo chamado Other Ways, o qual eu apareço andando pelo metrô. Agora, o container usado em Waste Management é como o de 2001, só que de uma categoria diferente.

A ideia inicial era criar uma situação de cinema no espaço público, levando o projeto para esse espaço de uma maneira que tivesse a ver com o conteúdo do trabalho.

O container que eu escolhi para Waste Management é usado para lixo, normalmente para obras em prédios. Tem um pouco essa relação com a arquitetura também, que é uma coisa com a qual eu sempre trabalho. Esse container passa acomodar um filme sobre a questão do lixo, e isso faz com que a sala de cinema não seja vista de uma maneira neutra. Tudo faz parte de um trabalho que aborda questões que são contemporâneas nessa situação pós-11 de Setembro. Há várias questões nesse contexto do uso do espaço na área de Manhattan. Uma delas é a revitalização dessa área que passa pelo processo de gentrificação. Ou seja, quem é a audiência? Quem tem valor? Quem não tem valor? A gentrificação passa por essas questões de valor.

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A gentrificação dessa área aconteceu após o 11 de Setembro, ou ela remete a um processo que vem ocorrendo há alguns anos? A questão da gentrificação é muito antiga por aqui. Ela adquiriu um caráter mais urgente em determinadas épocas. Por exemplo, depois da gentrificação do SoHo, do Lincoln Center, Lower East Side, Chelsea e depois a área de Downtown. O que vem acontecendo de novo está ligado a decisões recentes na cidade, de quem vai viver dentro de Manhattan. E, normalmente quem vive nessas áreas são os trabalhadores do setor financeiro, de setores mais privilegiados da economia. São tendências que já existiam, mas que estão se acentuando. Essa é uma questão, do ponto de vista material, da estrutura urbana. Mas existem outras, como a reflexão sobre o valor da vida no contexto contemporâneo. A cidade é só a ponta mais óbvia desse processo e aqui estou me referindo ao livro do Giorgio Agamben, Homo Sacer. Do ponto de vista teórico, esta são as questões que me interessam, de como pensar a vida nua, de como a própria biologia do indivíduo passa a ser a parte principal de um sistema de poder. Muitos dos meus interesses que informam o meu trabalho vêm dessa linha foucaultiana.

E como essas idéias foram trabalhadas em Waste Management? Procuro uma situação bastante local, microscópica, ao invés de tentar tratá-la de uma maneira geral. Pego um caso muito particular, que é essa situação cotidiana da seleção do lixo, do que é bom e do que não presta, do que se mantém e do se joga fora. Uma experiência com a qual todo mundo pode se identificar, é uma situação comum, com a diferença de, ao invés de ver o lixo sendo selecionado, descartado e segregado, o que se vê é o meu corpo sendo colocado nessas situações. Isso é uma constante dentro do meu trabalho, mas que se torna mais dramática dentro deste trabalho com o lixo.

O vídeo de Waste Management mostra sete minutos de cenas e ele começa com uma na qual o meu corpo se encontra jogado nos detritos. O corpo adquire uma configuração morfológica da distribuição do lixo no espaço, adquirindo essa característica do descartável. Mas, o trabalho também permite leituras imediatas do ponto de vista de representação, embora eu não lide tanto com representação. É possível ver representados estados subjetivos de apatia. Por exemplo, bêbados jogados ou homeless, pessoas consideradas sem valor e que se encontram em situações que se assemelham àquilo que eu apresento. Entro em latas de lixo que, como uma cápsula, podem ser pensadas como uma casa, uma habitação. O trabalho termina com uma série de cenas muito mais ativas e vibrantes nas quais escalo, salto, pulo e entro nas caixas, que é uma configuração que se vê nesse grupos de pessoas que vivem de dumpster, que colecionam detritos de pouco valor.

O que eu procuro representar é a apatia, ou mais do que isso, a relação entre estrutura e agência. A estrutura do espaço, de um sistema que exerce alguma determinação sobre o sujeito, que dá forma ao sujeito. E por outro lado, há a agência do sujeito, de articular sua própria posição intelectual, política e de cidadão dentro dessa estrutura que o delimita. Todo o trabalho procura articular uma relação entre esses dois vetores.

Quando se está num estado de não ter nenhuma possibilidade de agência sobre a sua situação, você está à mercê do poder dos outros. Pensando em alguns exemplos do Agamben com relação aos campos de concentração, onde as pessoas passam

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a viver em um estado quase vegetativo... É uma situação de quase completa submissão a um poder que é maior que você. O Agamben articula tão bem essa possibilidade de resistência e agência, de existir em uma situação como essa. Isso abole a ideia de que a agência passa pura e exclusivamente por um processo racional de conscientização que, a partir de uma reflexão intelectual, se adquire a capacidade de exercer a sua própria determinação. Essa é uma compreensão tradicional sobre a questão da agência.

Eu acho interessante, tanto na articulação do Focault como na do Agamben, essa possibilidade de entender a agência passando de uma forma lateral e transversal na questão da racionalidade.

Você saiu do Brasil no fim dos anos oitenta e foi morar em Nova York. Como que essa condição de imigrante te levou a orientar o seu trabalho para a rua? Eu morei no Rio, fiz Escola do Parque Lage. Lá, tive uma experiência muito interessante no campo multidisciplinar, de trazer gente de várias áreas para a discussão. Eu tinha uma base de filosofia, sociologia e alguns interesses teóricos que ainda não estavam concatenados e direcionados a uma prática.

Uma coisa que era corrente desde o início era essa relação com o corpo e os espaços físicos. Nessa fase preliminar, eu trabalhei mais com a ideia da marca deixada pelo corpo. Fiz alguns trabalhos no Parque Laje com porções da minha impressão digital recombinadas e outras coisas que tinham a ver com o corpo, mas não de uma forma óbvia.

Quando cheguei em Nova York, continuei com essa relação entre a forma do corpo e experiências cotidianas que criam essas marcas. O primeiro trabalho que eu fiz na rua foi tentar relacionar essas experiências desses traços com a aprendizagem do espaço urbano. Sem saber, repeti uma experiência dos situacionistas. Não sei se foi o Debord que escreveu sobre isso, mas há um desenho que é normalmente reproduzido na maioria das antologias sobre Situacionismo, o de uma mulher que mora em Paris e que tem aulas de piano em um lugar.

Sim, aquele mapa de como ela percorre a cidade, formando um desenho triangular. Exatamente! Só fui ver esse mapa muitos anos depois, mas eu fiz uma coisa muito parecida. Delimitei os pontos que eram mais constantes e comecei a mapear o meu percorrer de outros espaços. Formava esses mapas e colecionava objetos muito pequenos que eu encontrava. Era um desenho muito texturizado dessa relação entre o corpo e o espaço urbano. Foi o primeiro trabalho que aproximou essa sensibilidade anterior com questões que apareceram muito mais tarde. A tua observação, de que talvez a experiência do imigrante na cidade pode produzir um trabalho como esse, seria uma observação que eu poderia fazer somente de forma retrospectiva. Na medida em que você coloca o corpo nessas situações, a própria identidade e a experiência do corpo se adequar a esse espaço e encontrar essas situações de bordas, essa leitura se torna impossível. Mas há uma discrepância entre o desenvolvimento artístico propriamente dito e as leituras que são possíveis a partir dessa prática.

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Lembrei agora do trabalho Upward Mobility, que você realizou em Nova York e em Londres. Foi a primeira vez que você visitou Londres, então talvez essa ideia de estrangeiro em um novo território estivesse mais evidente nesse projeto. Na verdade esse trabalho foi feito para se discutir a questão do site-specific. Me convidaram para fazer esse projeto em um instituto de arte em Londres com a ajuda de dois artistas. Ao mesmo tempo, o crítico e curador Simon Sheikh estava fazendo uma residência em Nova York, e daí propus a ele uma discussão sobre as questões abordadas. A minha intuição era a de que dentro do meu próprio trabalho, as relações entre as configurações especificas do site, do ponto de vista geográfico e histórico, são menos relevantes que as relações específicas entre o corpo e configurações particulares de situações urbanas. Por isso o trabalho foi feito em Nova York e Londres, e o que eu fiz foi encontrar situações de caráter similar nas duas cidades, ao invés de tentar encontrar situações que fossem bastante particulares de uma cidade em relação à outra.

E o título do trabalho remete à ideia de mobilidade social. Exato, o título veio a partir de se trabalhar em Londres, dessa experiência britânica das classes serem bem segregadas, a mobilidade social nesse contexto ser bem difícil. A tentativa do trabalho é explorar de maneira literal a possibilidade do deslocamento vertical.

Há uma dualidade nesse título, que se refere à mobilidade social, mas que procura discuti-lo a partir de situações literais. O que eu busco no trabalho são oportunidades para essa

locomoção vertical. Oportunidades de se deslocar de uma fachada porque há um buraco, com a possibilidade de subir e de se aproximar de uma janela, ou a possibilidade de subir na parte de cima de uma casa, ou entrar dentro de um espaço. A ideia não é agir contra o espaço, mas tentar utilizar o que está no próprio espaço para então desafiá-lo e conseguir ultrapassar esse limite.

Você faz uma pesquisa prévia dos locais onde pretende trabalhar determinadas situações? Sim, as escolhas são bem específicas. Com relação a um trabalho como Temporary Occupations, a ideia era me colocar como um jogger. Se você vê uma pessoa correndo no espaço público, normalmente é um problema. Ou ela está correndo de alguém, ou ela está correndo atrás de alguém, ou ela está correndo de algum problema. Correr no espaço público é normalmente problemático, principalmente em uma cidade tão controlada como Nova York.

Mas, existem algumas possibilidades de correr que são aceitáveis. Uma delas é se você está correndo para fazer exercício, então aí existe um pretexto para uma atividade. Geralmente essas atividades são realizadas na calçada, e a calçada é esse espaçozinho público que divide a rua. A fachada é a fronteira entre o privado e o público. A pessoa que corre na calçada está exercendo esse limite da articulação pública. Tento adotar essa permissão de uma maneira cega e corro através desses espaços exercitando o meu direito. De uma maneira ou de outra, encontro momentos de interrupção. Ou porque tem um jardinzinho, ou porque o prédio invadiu um pouco do espaço público. Com esse meu caminhar, tento entrar em todos os pedaços públicos possíveis. E essa trajetória da pessoa que está fazendo jogging começa a se transformar em outra coisa durante

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esse percorrer. Começo a pular por cima dessas barreiras que estão no meu caminho, e elas começam a tornar-se maiores, tornam-se mais ambíguas. O caráter da performance transforma uma pessoa que está simplesmente exercitando o seu direito para uma pessoa que começa a invadir e a ultrapassar as barreiras de uma propriedade privada. Ou seja, a partir de uma possibilidade, de uma brecha, cria-se uma situação de desvio. É uma deriva diferente daquela dos situacionistas, porque a ideia de deriva era contrapor os fluxos racionais que organizam o contexto social através de uma lógica boêmia. A minha deriva é mais específica. Ela tenta descobrir o espaço não a partir da confrontação, mas adotando essa regra de uma maneira cega e possibilitando a interrupção e a modificação desses fluxos. Há uma diferença sutil nisso.

Uma outra característica do seu trabalho está no uso que você faz do humor. No catálogo da exposição The Interventionists, realizada em 2004 no MASS MoCA, você diz que cresceu no Brasil durante a ditadura militar e que o humor exerceu um papel importante nesse contexto. Muitas de suas intervenções são muito bem-humoradas e essa maleabilidade corpo me faz lembrar dos filmes do Jacques Tati! É verdade, não posso adicionar nada melhor do que você falou! O humor traz a possibilidade de articular o silêncio de uma maneira desestabilizadora.

Existem situações que você precisa de muitas palavras para definir algo. Eu mesmo me vejo utilizando tantas palavras para articular coisas que, quando eu faço um trabalho, as ideias aparecem de uma maneira mais clara. Acredito que assim eu me comunico com mais gente dessa forma. O trabalho não reduz, mas abre essas oportunidades. Em grande parte, essa é uma consequência da utilização do humor.

Eu não preparo o humor, não quero criar uma situação humorística. É muito mais uma justaposição irreverente do corpo a uma situação inesperada. O humor é resultado desse certo desconforto, que relaxa o sujeito a partir desse encontro. Com esse desarmamento pelo humor, cria-se uma grande oportunidade para se discutir coisas mais sérias.

O que você acha de outras ações que abordam o movimento do corpo na cidade, como o Parkour? Muita gente me mandou vídeos do Parkour depois de ver similaridades desse trabalho com projetos como Upward Mobility e Temporary Occupations. A princípio, minha reação é de simpatia. Acho que o trabalho deles, assim como o de várias outras práticas urbanas, acontecem de maneira espontânea, e são um resultado natural de uma certa resistência que leva a uma possibilidade de rearticulação do espaço. Agora, o que acontece com o Parkour é que isso se torna não só uma atividade física, mas também uma espécie de esporte. Houve até um filme da Nike utilizando uma série de coisas que eles fizeram. Acho que nesse ponto você começa a perceber uma distinção mais sintomática entre os trabalhos. O que reapropria o esporte é a estrutura do poder, essa ideia de heroísmo. O esporte é recuperado a partir da representação do progresso, de um indivíduo que supera os limites, que supera os outros e que excede de uma maneira heroica. E essa é uma representação que é comum ao capitalismo em várias áreas. O que eu procuro fazer é tentar manter uma relação não-espetacular com as minhas intervenções, tentando resistir a essa possibilidade de recuperação dessas imagens.

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OBSERVATORIO DE FRAGILIDAD EMOCIONAL

El Observatorio de Fragilidad Emocional es un espacio diseñado para activar la escritura de narraciones sobre la extendida precariedad existencial y emocional contemporánea, entendiendo que es una consecuencia de la convivencia y cruce de los siguientes fenómenos: Precariedad Laboral, regulación de los afectos y los cuidados por los nuevos capitalismos, la virtualidad emocional de Internet y la imparable renovación tecnológica que ha redefinido nuestros tiempos de vida.

Uno de los propósitos principales del Observatorio radica en analizar y tomar conciencia de cómo las formas de producción y trabajo se configuran como principales agentes en los procesos de creación de subjetividades. Nos interesa siempre especialmente en nuestros proyectos confrontarnos con la situación social, laboral y afectiva del contexto en el que trabajamos.

El Observatorio tal y como se presentó en su primera materialización en Madrid en 2011 contaba con Crónicas y Ficciones.

Crónicas es un video en el que nos apropiamos de las imágenes de las novelas gráficas de los años 60 y 70 con el fin de dotarlos de narrativas sobre las emociones de algunas situaciones en el momento presente.

C.A.S.I.T.A

Coletivo artístico cujos membros permanentes são Eduardo Galvagni, Loreto Alonso e Diego del Pozo Barriuso.

Constituem-se como um grupo difuso e para cada projeto contam com diferentes colaborações e agentes (artistas, coletivos, investigadores, designers, etc.).

www.ganarselavida.net [email protected], Espanha

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Imágenes del pasado con textos sobre el presente con el fin de hablar de la contemporaneidad.

En este ejercicio de manipulación de las imágenes es donde se ponen en práctica herramientas y metodologías artísticas para generar nuevos imaginarios sociales a través de la construcción de nuevas representaciones. Dónde sus imágenes tengan una lógica diferente a la lógica de las imágenes de los sistemas de producción y poder oficiales. Imágenes que propicien el empoderamiento de los públicos, actuando sobre la construcción de subjetividad en una nueva clave crítica.

El Observatorio también propone al público que intervenga libremente en unos impresos con estructura de foto-novela, es decir con marcos de imagen y bocadillos de texto vacíos, de modo que el espectador sea capaz de completar con textos y dibujos y con su particular punto de vista. De esta manera se ofrece y genera un espacio de experimentación sobre las narrativas de las emociones contemporáneas vinculadas a los conceptos de fragilidad y precariedad utilizando la escritura y el dibujo.

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Já faz alguns bons anos, que já nem sei quantos são, que observo meu pai “chocando” sementes em caixas de leite usadas, no pouco sol que entra na área de serviço de nosso apartamento. Praticamente todas as sementes das frutas que comemos em casa acabam por terminar ali, na “chocadeira” improvisada. Não demoram muito a aparecer os pequenos brotos, e os mesmos a tomarem vigor. E então sem tardar eles somem. Um movimento contínuo e cíclico que demorei bastante a me atentar e questionar sua razão. Um dia, já inquieto resolvi perguntar.

Para minha surpresa meu pai contou-me que quando as mudas estavam já fortes o suficiente ele saía de carro pela Rodovia do Sol, parando aqui e acolá e plantando uma árvore, e que também fazia esse processo há anos no Morro do Moreno. Naquela semana fomos ao dito morro e em meio às arvores daquela pequena mata nativa ele me mostrou alguns pés de acerola e pitanga escondidos que ele mesmo havia plantado. A ficha então caiu de que a polpa do suco da semana anterior havia vindo não do supermercado, como usualmente, mas daquele pequeno “pomar-urbano”. Essa verdade nascosta, subitamente revelada, me pôs em séria reflexão. Porque não temos mais árvores frutíferas espalhadas pela cidade?

FRUTIFICAI-VOS

Rafael Machado

Graduando em Arquitetura e Urbanismo pela UFES.

[email protected]ória, ES

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Iniciei uma pesquisa dos motivos que levam às administrações públicas a não utilizarem frutíferas em seus projetos paisagísticos. Cheguei a algumas respostas que a mim não satisfizeram.

1) Sujeira, gastos com limpeza das frutas que não fossem coletadas. 2) Pessoas subindo nas árvores e machucando-se com possíveis quedas. 3) Frutas amassando latarias de carros. 4) Incentivo à existência de moradores de rua.

Mas a falta de interesse público não é a única vilã dessa estória. A crescente velocidade com que vivemos na urbe nos tem separado cada vez mais de seus espaços públicos. Corremos pelas ruas sem que as percorramos, e dessa forma não somos capazes de experienciá-las e criar com elas um sentimento de pertencimento. Chego a duvidar se seríamos capazes realmente de notar frutas nas árvores pelas quais passamos. Aliás, duvido mesmo é de que saibamos nessa altura identificar espécie de árvore que for. Afastamos-nos do natural e perdemos cada vez mais conhecimentos básicos adquiridos pelo homem primitivo: O saber identificar aquilo que é comestível e; O saber cultivar aquilo que é comestível.

O quanto saberão as futuras gerações sobre a proveniência e história daquilo que comem? De onde vem a carne? De caixinhas e embalagens hiper-higiênicas? E as frutas, como chegam ao supermercado? Feira de rua, o que é isso?

O autor do Blog O onívoro (onivoro.com.br) lançou m 2009 a proposta de criar um mapa colaborativo em que se marcariam as árvores frutíferas de que se tivesse notícia em São Paulo. Para minha surpresa não foram poucs os espécimes mapeados (http://bit.ly/JA1Xxc). Reflito se aqui em Vitória (cidade onde vivo, no Espírito Santo) seriam tantos assim, e o quanto sou eu que já não os percebo no meu trafegar vazio pela cidade. As únicas frutíferas de que tenho notícia são as de dentro do Campus da Universidade Federal, e isso só reflete como atualmente só criamos vínculos com Casa e Trabalho/Estudo, e não mais com a cidade como um todo.

Um trabalho interessante que também reflete sobre a questão é o do grupo norte-americano Fallen fruit (fallenfruit.org/). Eles não só mapeiam as árvores frutíferas em espaços públicos pelo mundo afora, como também transformaram a questão da fruta na cidade em toda uma linguagem artística própria. Como está no próprio site, “o grupo imagina as frutas como lentes pelas quais é possível enxergar o mundo de modo diverso”. O trabalho é desenvolvido diretamente com os moradores da localidade em questão com uma metodologia própria.

Primeiramente o grupo mapeia as árvores frutíferas por si mesmo. Em seguida anuncia e convida a população para tours guiados durante o qual serão apresentadas as localizações e as espécies das árvores do bairro. Por fim, são realizados os chamados Public Fruit Jams (geleias de frutas públicas), quando são confeccionadas coletivamente geleias a partir das frutas coletadas na própria comunidade pelos moradores. As geleias são depois distribuídas pelo bairro.

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Assim, refletindo sobre as questões expostas, nasce o FRUTIFICAI-VOS (com Diego Pandolfi e Dangela Detemann, 2010). O projeto tem como linguagem o absurdo. A proposta é transformar artificialmente árvores não frutíferas em tais. Como? Árvores com certa visibilidade e, principalmente, acessibilidade são escolhidas, e a elas vincula-se uma fruta-filha que nem sempre, e propositalmente não, dialoga com aquela espécie. Tais frutas então são anexadas, penduradas, na árvore mãe.

Ao caminhar por debaixo daquela mesma árvore de sempre, o transeunte nota dessa vez que a mesma está carregada de goiabas; ou que aquela palmácea deu abacaxis; ou ainda que daquele arbusto estão nascendo peras. A reflexão que se busca é que, no local daquela árvore ali posta, na verdade poderia haver uma real macieira, bananeira, mangueira etc.

Da primeira execução do trabalho (em 2010), a ideia, que nasceu como uma forma de questionamento da realidade, se consolidou e se transformou mais em uma linguagem artística própria de comunicação do que numa forma de protesto. Foi o que mostrou a sua mais recente aplicação:

Sou parte atualmente do Coletivo Permear (permear.org), com a ideia de ações urbanas de pequena escala e de caráter Site Specific, ou seja, com o conceito de uma arte feita especialmente para o local onde será implantada. Nesse contexto é imprescindível considerar as histórias e realidades daqueles que moram na localidade e com a mesma comungam.

Nossos esforços atuais se concentram em Eurico Salles, bairro residencial do município da Serra, Espírito Santo. Estamos no estágio de aproximação com a comunidade, descobrindo a cada dia uma nova figura importante e reconhecendo os fragmentos

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que compõe a memória e o inconsciente coletivo do bairro. Um local, e sua história recente, nos chamou atenção. Um calçadão novo em folha, com playground e bancos pintados, ambiente bem iluminado, não verdadeiramente utilizado e incorporado à vida pública. Sua construção carrega uma cicatriz. Existiam ali pés de jamelão plantados por quem o bairro fundou e nele ainda mora. Tapumes levantados. Prefeitura trabalhando. Memória ignorada. Árvores “familiares” (frutíferas) arrancadas. Árvores “estrangeiras” (infrutíferas) plantadas. Um senhor. Uma lágrima. Um lamento.

Foi aí que enxergamos o potencial e mais uma vez o frutificai-vos nos serviu de linguagem.

Honramos a memória daquelas – as árvores – que um dia ali estiveram, e convidamos cada um a juntar-se ao todo.

Naquele mesmo dia, ao chegarmos ao centro comunitário do bairro para mais uma reunião de trabalho, uma moradora ao nos ver, vem correndo dizer: “Eu comi o Jamelão! Tava uma delícia!” e nos contou que uma senhora que mora logo em frente ao calçadão foi chamada às pressas pela filha que chegou em casa com a fruta na mão. Ao sair à rua e ver a árvore, pôs-se a chorar. Lembrou-se do marido, falecido, e que tanto tinha sofrido quando, 4 anos antes, cortaram o pé que ele mesmo ali tinha plantado. Uma surpresa para nós.

Como grupo, sentimos aquele doce sabor de missão cumprida e “dever de casa feito”. Afinal, acho que finalmente estamos aprendendo um dos métiers que mais nos encantam na arte contemporânea:

Comunicar-se com os outros diretamente de coração para coração. Fazer emocionar.

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FRoNTEIRA

convocatória

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mais informações: editorialpet.wordpress.com

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