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FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 21, n. 10/12, p. 613-625, out./dez. 2011. 613 PARÁBOLAS E ALEGORIAS: Resumo: o artigo Parábolas e Alegorias: Uma Junção nos Cristianismos Originários, parte com o objetivo de mostrar ao leitor a diversidade social em que Jesus estava inserido, apontando as diferentes formas de propagação do Reino de Deus, no contexto da Galiléia com Parábolas e na perspectiva dos grandes centros urbanos da época, no caso Antioquia ou Jerusalém com as Alegorias. Para isso, o texto é apresentado em quatro partes: a primeira parte - Parábolas e Alegorias: Uma Forma de Análise das Escrituras Sagradas - mostra ao leitor a diferenciação entre Parábolas e Alegorias e a integração de ambos. A segunda par- te - Parábola e Alegoria: Do Simples ao Complexo - percebendo um problema semântico e lógico do conhecimento alegórico. A terceira parte - Parábolas e Alegorias: A Construção Social de Jesus na Galiléia - remonta Jesus como ser histórico e político e o quarto tópico - Pará- bolas e Alegorias: do Campo a uma Nova Prática na Cidade - temos uma ideia da diversidade epistemológica dos ensinamentos de Jesus. Palavras-chave: Parábola. Alegoria. Semente. Evangelho. Campo. Cidade. UMA JUNÇÃO NOS CRISTIANISMOS Robson Pedro Véras** ORIGINÁRIOS* * Recebido em: 11.08.2011. Aprovado em: 23.08.2011. * Mestrando em Ciências da Religião na Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Pro- fessor. Graduado em Filosofia.

parábolas e alegorias: uma junção nos cristianismos

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parábolas e alegorias:

Resumo: o artigo Parábolas e Alegorias: Uma Junção nos Cristianismos Originários, parte com o objetivo de mostrar ao leitor a diversidade social em que Jesus estava inserido, apontando as diferentes formas de propagação do Reino de Deus, no contexto da Galiléia com Parábolas e na perspectiva dos grandes centros urbanos da época, no caso Antioquia ou Jerusalém com as Alegorias. Para isso, o texto é apresentado em quatro partes: a primeira parte - Parábolas e Alegorias: Uma Forma de Análise das Escrituras Sagradas - mostra ao leitor a diferenciação entre Parábolas e Alegorias e a integração de ambos. A segunda par-te - Parábola e Alegoria: Do Simples ao Complexo - percebendo um problema semântico e lógico do conhecimento alegórico. A terceira parte - Parábolas e Alegorias: A Construção Social de Jesus na Galiléia - remonta Jesus como ser histórico e político e o quarto tópico - Pará-bolas e Alegorias: do Campo a uma Nova Prática na Cidade - temos uma ideia da diversidade epistemológica dos ensinamentos de Jesus. Palavras-chave: Parábola. Alegoria. Semente. Evangelho. Campo. Cidade.

uma junção noscristianismos

Robson Pedro Véras**

originários*

* Recebido em: 11.08.2011. Aprovado em: 23.08.2011.

* Mestrando em Ciências da Religião na Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Pro-fessor. Graduado em Filosofia.

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PARÁBOLAS E ALEGORIAS: UMA FORMA DE ANÁLISE DAS ESCRITURAS SAGRADAS

As Parábolas não poderiam ser entendidas por aqueles que não advinham da Galiléia. O grupo de Jesus era um grupo simples, seu regionalismo

rural bastava para a assimilação, a priori, dos elementos expressados na singularidade por Jesus. Os grupos tomaram tamanha proporção onde as Parábolas necessitariam de interpretação. A Alegoria torna a unidade algo múltiplo. Os Grupos de Cristãos Originários, fora da Galiléia, passam a possuir a condição racional de entender os ensinamentos de Jesus por meio de um aperfeiçoamento antropológico de todas essas demandas.

A prática de formação religiosa, utilizando-se de Parábolas, foi algo bastante disseminado por Jesus, e posteriormente, repetidas pelos grupos de cristãos originários, por seus seguidores e até hoje. É sabido que uma Parábola significa uma ação prática, imediata, curta e cheia de significados – sejam simbólicos ou epistemológicos – que dariam, a rigor, uma noção exata do objeto apresentado a um público específico.

A proposta alegórica (Alegoria) possui uma temática dependente da ação da Parábola. Ao aferir uma Parábola, ela é especifica para o pú-blico que a recebe, possuindo um recorte regionalista. Cabe a Alegoria a contextualização dos elementos parabólicos a um público distinto ou diferente daquele onde a Parábola teria sido escrita ou falada inicialmente.

A relação entre o ente receptor da Parábola e o seu agente está relacionada com o processo de sacralização da experiência. As Escrituras Sagradas (Bíblia) comentam acerca das Parábolas inúmeras vezes, elucu-brando uma normativa interiorana, reservada aqueles que, especificamente, viveram realmente na época da manifestação do comentário inicial.

Assim, a proposta a seguir é de comentar os princípios e defini-ções que se deram nos escritos de Marcos 4, 1-30, apontando a unidade antropológica de uma Parábola e a multiplicidade epistemológica na sua aquisição interpretativa por meio da Alegoria.

A ação de representação da Parábola e das Alegorias são bem distintas do que vemos no decorrer de nossas práticas de fé, alias, essas práticas somadas a “filosofias” religiosas, descaracterizaram todos os enfoques dos grupos alvo dessas lições de Jesus.

A pedagogia da catequese, a pregação da igreja, durante vários séculos, mostrou-se um obstáculo à apreensão do real sentido das parábolas. Esta tradição religiosa descuidou-se do verdadeiro sentido das parábolas e fez

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delas uma leitura generalizante e moralizante. As palavras viraram, com o passar dos tempos, pequenas histórias inofensivas, lições gerais de moral, interpretadas de modo alegorizante. Foi essa a visão que a pregação e prática catequética da Igreja passou a maioria dos povos (ZAMAGNA, 1998, p. 75).

PARÁBOLA E ALEGORIA: DO SIMPLES AO COMPLEXO

Toda a escrituração bíblica nasce das mais simples das significações, nasce com a simplicidade do dia-a-dia de quem sobrevive basicamente na alusão de sua subsistência, de quem efetivamente lida com a terra e com seus benefícios. O caminho seguido por Jesus em ensinar por meio de parábolas remete a uma lógica reservada ao povo de uma comunidade rural, de algo meramente corriqueiro.

[...] Jesus era da roça. Por isso seus ensinamentos e parábolas foram tira-dos do campo, por exemplo, a parábola do Semeador [...] que revela um pouco da vida dos camponeses e camponesas da palestina no tempo de Jesus. As terras que estavam nas mãos dos camponeses eram constituídas, praticamente, de terra árida, pedregosa, difícil para o plantio, sobretudo, de trigo, elemento básico da alimentação do povo (CNBB, 1998, p. 9-10).

Do ponto de vista da Parábola a simplicidade era o alvo metodológico do ensinamento. É sabido que nem todos os grupos que passaram a seguir os ensinamentos de Jesus eram conhecedores da simplicidade dos campos da Galiléia. Como seria uma pregação de Jesus em Antioquia? Caberia a Alegoria dar ao ensinamento uma conotação viva ao novo público, le-vando o indivíduo a uma sistematização de (re)construção de sua própria identidade à luz de novas significações. Salienta-se que para aquele que possui crença, a existência de Deus basta. Seus significados permeiam o campo do misterioso, real e cheio de significação (OTTO, 1985, p. 30), a realidade cósmica está ligada a todos os conceitos e vice-versa.

Assim, é possível que a necessidade de uso de um argumento alegó-rico na (re)significação do divino seja percebida no processo de transição de um conhecimento, a rigor, pronto, apenas fixado com a Parábola com uma estrutura formal, com significados terceiros, longe do processo diário do campo, porém, perto da construção social da cidade.

É verdade que essa transição possui um forte legado, muito mais social que epistemológico, até porque a teoria do conhecimento, nesse

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caso, é a mesma. Observando a Parábola do Semeador (Mc 4, 3-30), o mesmo princípio evangelístico é tomado, a Parábola e a Alegoria têm a mesma significação, modificando, nesse turno, apenas o conceito do “eu” do agente social receptor.

Se partirmos isoladamente para uma ação alegórica, mesmo com a unificação de uma ideia de que o conceito evangelístico do “Semeador” existe, não podemos nem duvidar e nem supor sua existência. Como criar uma Parábola sobre a existência do “Semeador” partindo de uma Alegoria? Parece estranho, seriamos levados a um erro lógico da tentativa de mensurarmos ao que ainda não possui significação racional.

Assim, na Parábola do Semeador, Jesus argumenta utilizando-se de uma Parábola com a premissa Eis que o semeador saiu a semear. É sabido que Jesus falava para pessoas de conhecimento cientifico pequeno, não entendiam acerca da fotossíntese, sobre o PH da terra e nem mesmo acerca da acidez do solo. Mesmo assim, essa fala de Jesus significava muito para o seu público da Galiléia. Em sua assertiva, ele sabe que o povo entenderá que o plantio tem suas nuances, que a relação de fertilidade da terra é algo bastante relevante e o caminho entre a semente alçada até a árvore de bons frutos é um caminho frágil e que deve ser observado. Na verdade esse tipo de argumento só poderia ser feito por alguém que conhecia e reconhecia o ethos da localidade, alguém íntimo. Esse sistema de argumento não é concebido por todos, haveria os que não entenderiam, aqueles que não possuíam nenhum tipo de aliança com o povo que acompanhava Jesus, suas idiossincrasias eram diferentes da dos grupos de Jesus, era um caminho que levava as pessoas a outra fonte de conhecimento.

Nessa perspectiva, será que o povo consegue conceber a ideia da divindade sobre o ponto de vista da Parábola ou somente com a constru-ção de uma Alegoria à luz de uma Parábola? Bem, vejamos que o próprio Jesus conhecendo o seu público dedica-se, no caso do “semeador”, a cons-trução de uma Alegoria a posteriori, ou seja, sugere um processo natural de fecundação onde as intempéries naturais são respeitadas. É possível que não exista um compromisso direto, daquele que utiliza o elemento da Parábola, com a Parábola em si. O compromisso é com seu receptor.

Assim, Jesus preocupado em ser entendido pelo seu grupo e em não ser entendido por aqueles que remeteriam seus ensinamentos a perspectivas desconexas, sistematiza praticamente um idioma literário. Na verdade nós, os leitores das Escrituras Sagradas, lemos a Bíblia como se ela tivesse res-ponsabilidade de trazer uma construção objetiva acerca de nossas próprias vidas, será que possuímos alguma familiaridade epistemológica com o grupo

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de pessoas que acompanhavam Jesus na Galiléia? É possível que as estrutu-ras de entendimento percebidas na época de Jesus, ainda hoje sejam reais, principalmente se recorrermos à possibilidade de justificativa da existência da divindade ou de uma perspectiva que remeta os indivíduos a salvação.

Jesus sabia das dificuldades e da pluralidade de seu grupo, sabia que a construção de uma verdade era algo complexo e que a possível nudez da verdade assustaria o público ouvinte, conforme Anderson e Gorgulho (1989, p. 55):

Certa vez, a Verdade andava visitando os homens, sem roupas e sem adornos, tão nua como seu nome. Todos que viam viravam-lhes as cos-tas, de medo ou de vergonha. Ninguém lhe dava boas-vindas. Assim, a Verdade percorria os confins da terra, rejeitada e desprezada. Uma tarde, ela encontrou a Parábola que passeava alegremente num traje belo, e muito colorido.- Verdade, por que esta tão abatida? – perguntou a Parábola.- Porque sou tão velha que os homens me evitam, replicou a Verdade.- Que disparate, riu a Parábola. Não é por isso que os homens te evitam. Toma, veste algumas de minhas roupas, e vê o que acontece.Então a Verdade revestiu-se com algumas das lindas vestes da Parábola, e de repente, por toda parte por onde passava, era bem-vinda.

Para isso, a Parábola torna-se um depositário imediato de conceitos e sínteses ao povo simples da Galiléia. Para Dodd, toda a parábola deveria ser interpretada á luz do que havia, do ponto de vista cultural, na Galiléia.

PARÁBOLAS E ALEGORIAS: A CONSTRUÇÃO DE JESUS NA GALILEIA

Há quem pense que foi por acaso que os termos “pastor” e “ove-lha” inseriram-se fortemente no vocabulário cristão sem influência da História dos Cristianismos Originários. Na verdade, ao falarmos acerca dessa origem, remetemo-nos a uma história campesina, uma história de pessoas de vida puramente rural, para comprovar basta uma observação acerca das Parábolas e das Alegorias. Vê-se a simplicidade do argumento e a coerência epistemológica.

É impossível falar dos efeitos das Parábolas e Alegorias de Jesus aos seus seguidores, sem mensurar a condição social daquele povo. A Galiléia é uma região ao norte de Israel, conhecida por sua condição rural, sua

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formação simplória e por possuir um povo sem o domínio de mecanismos de produção, muito pelo contrário. Alias, a situação econômica daquela região é definida por possuir grande viés relacionado ao contexto escra-vagista. Para sistematizar essa ideia é necessário conhecermos a situação social sobre o ponto de vista do Império Romano. A principal forma de caracterização desse povo, ou de sua condição, emerge da premissa de que faziam parte dos meios de produção (HOUTART, 1982, p. 21), ou seja, eram tidos como objetos de produção, assemelhados a enxadas, barcos, foices e outros apetrechos de produção.

Assim, a fala de Jesus deveria reconhecer esse princípio de vulnera-bilidade social e atuar como agente de mudança, inserindo os indivíduos a uma condição histórica e por que não política. Os termos que Jesus usou conversavam diretamente com essa disposição social e o povo entendia prontamente as ações do mestre e o seguiam.

Para reconhecer todas essas propriedades é natural imaginarmos um Jesus participante desse meio social, envolvido com as questões, alusões, sonhos e principalmente com os sofrimentos ao qual o povo Galileu se submetia. Tanto as Parábolas quanto as Alegorias, tinham essa pertinência: falar ao povo. Pregar as situações cotidianas e relacioná-las com a perspectiva da imortalidade da alma, do perdão dos pecados e da possibilidade de milagres por meio da fé.

O novo testamento possui inúmeras Parábolas, junto delas, ou paralelo a elas, a sua explicação (Alegoria), cheias de regionalismo e com forte chamado a fé. Boa parte desses textos possui algum recorte que remete as dificuldades que a população rural possuía em seu dia-a-dia, seja com a luz (Mt 5, 14-15; Mc 4, 21-22; Lc 8, 11-33), com ervas daninhas (Mt 13, 24-30), remendos em roupas velhas (Mt 9, 16; Mc 2, 21; Lc 5,36), semeaduras e o solo (Mt 13, 3 – 8: 18-23; Mc 4, 3-8: 14-20; Lc 8, 5–8, 11-15), trabalho em vinhas (Mt 20, 1-16), lavradores (Mt 21,33-44; Mc 12, 1-11; Lc 20, 9-18), figueira (Mt 24, 32-35; Mc 13, 28-29; Lc 21, 29-31), servo fiel e sensato ( Mt 24, 45-51; Lc 12, 42-48), ovelhas e bodes (Mt 25,31-46), semente em crescimento (Mc 4, 26-29), servos vigilantes (Mc 13, 35-37; Lc 12,35-40), figueira infrutífera (Lc 13, 6 - 9), moeda (dracma) perdida (Lc 15, 8-10) e o senhor e seu servo (Lc 17, 7-10). Em todos esses exemplos, Jesus é acometido da simplicidade de suas instruções, por reconhecer que seu público abstrai o que é dito, construindo uma significação racional daquilo em que realmente sistematiza, permitindo que seu grupo dê o significado a temática e construindo uma identidade em conjunto com o público (Alegoria).

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Mas, é possível em uma única Parábola mais de uma Alegoria? É inte-ressante a ideia de que a partir de um conhecimento ministrado por alguém, nesse caso Jesus, possamos construir nossas próprias sínteses à luz do que foi proferido. Jesus sempre deixou essa conclusão ao seu ouvinte, reme-tendo ainda a necessidade de proferir discursos em Parábola para criar uma identidade específica com o público e dificultando o entendimento por terceiros ou perseguidores dos grupos que o seguiam.

Na Parábola da semente é possível a percepção sobre análises diferentes, uma análise puramente cheia de significações de uma estru-tura social e transformadora, e outras com alusões ligadas às concepções relacionadas à Conversão ao Reino de Deus (FERREIRA, 2007, p. 50). Nesse turno, Ferreira dispõe a possibilidade de interpretação sobre três vias, sendo que esse percurso sistematiza inicialmente uma ideia natural em virtude do Reino de Deus. Jesus prega naturalmente seus desígnios, utilizando as premissas de um meio rural (Mc 4, 26-29), elenca, ainda, elementos que corroboram para uma pregação daqueles que seriam alheios, ou “estrangeiros”, gerando com isso um caráter ideológico do processo de produção (Mc 4, 3-9), e uma terceira forma, com características cosmo-politas, desobedecendo a linha central do texto, trocando, por exemplo, a palavra “semente” pelo elemento “palavra” (Mc 4, 14-20).

[...] 3. Ouvi: Saiu o semeador a semear. 4. Enquanto lançava a semente, uma parte caiu à beira do caminho, e vieram as aves e a comeram. 5. Outra parte caiu no pedregulho, onde não havia muita terra; o grão germinou logo, porque a terra não era profunda; 6. mas, assim que o sol despontou, queimou-se e, como não tivesse raiz, secou. 7. Outra parte caiu entre os espinhos; estes cresceram, sufocaram-na e o grão não deu fruto. 8. Outra caiu em terra boa e deu fruto, cresceu e desenvolveu-se; um grão rendeu trinta, outro sessenta e outro cem. 9. E dizia: Quem tem ouvidos para ouvir, ouça! [...] 14. O semeador semeia a palavra. 15. Alguns se encontram à beira do caminho, onde ela é semeada; apenas a ouvem, vem Satanás tirar a palavra neles semeada. 16. Outros recebem a semente em lugares pedregosos; quando a ouvem, recebem-na com alegria; 17. mas não têm raiz em si, são inconstantes, e assim que se levanta uma tribulação ou uma perseguição por causa da palavra, eles tropeçam. 18. Outros ainda recebem a semente entre os espinhos; ouvem a palavra, 19. mas as preocupações mundanas, a ilusão das riquezas, as múltiplas cobiças sufocam-na e a tornam infrutífera. 20. Aqueles que recebem a semente em terra boa escutam a palavra, acolhem-na e dão fruto, trinta,

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sessenta e cem por um. [...]. 26. Dizia também: O Reino de Deus é como um homem que lança a semente à terra. 27. Dorme, levanta-se, de noite e de dia, e a semente brota e cresce, sem ele o perceber. 28. Pois a terra por si mesma produz, primeiro a planta, depois a espiga e, por último, o grão abundante na espiga. 29. Quando o fruto amadurece, ele mete-lhe a foice, porque é chegada a colheita (BIBLIA, 2002. p. 39-40). É possivel que a perspectiva de argumentação de Jesus tenha dado,

ao grupo de pessoas que o seguiam, uma legitimidade na construção de sua crença, na verdade, a utilização das Parábolas possuiam dois objetivos claros, o de disseminar a “verdade” e o de “oculta-la” (Mt 13, 10-11), os elementos que iriam mediar toda essa relação com o meio social, principalmente o Romano, eram as Alegorias. Assim, a estrutura alegórica era responsável por dar aos indivíduos uma ação ref lexiva do ponto de vista da fé e ao mesmo tempo sanar possíveis problemas que poderiam ser gerados pela expressão de tais “verdades”. As pessoas da Galiléia, no geral, conheciam seu engajamento com a construção de um solo fértil, sabiam da dificuldade em chegar a ter uma árvore cheia de bons frutos em uma terra cheia de pedras, entendiam as condições naturais de todos os elementos, eram nascidas naquele lugar, eram co-nhecedoras dos elementos pertinentes ao local, suas particularidades e potencialidades.

PARÁBOLAS E ALEGORIAS: DO CAMPO A UMA NOVA PRÁTICA NA CIDADE

Os Evangelhos sinópticos são representações claras da manifes-tação epistemológica dos conceitos de Jesus em seu paralelismo, no que se referem as figuras de linguagem e sua aplicabilidade. Em seus textos, os Evangelhos apontam as diferenças comportamentais e as formas que pregava. Jesus jamais esqueceu de contextualizar historicamente seu pú-blico ouvinte, percebe-se a diferença conceitual e até mesmo do ponto de vista do argumento na diferenciação entre o campo e a cidade. Vale ressaltar que um dos fatores que mais dificultava as ações centrais de favorecimento do povo era a ação direta do Império Romano, por meio da Lei do “puro-impuro” que limitava a população em acessar o plano de Deus (FERREIRA, 2009, p. 142-3).

É possivel que em textos como o de Quelle, Jesus seja visto com uma postura ainda mais preocupada com o povo camponês da Galiléia,

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sendo ele uma pessoa de característica mais humana, pessoa que real-mente se dispunha a preocupar-se com a vida prática das pessoas de sua comunidade (VAAGE, 1998, p. 15-31), seus ensinamentos vislumbravam uma prática real de vida, algo construído coletivamente com a demanda social local, longe de parecer em suas Parábolas e Alegorias apenas uma narrativa cheia de axiomas e limitada a um conhecimento meramente técnico e moral, muito pelo contrário, a prática de vida de Jesus era no meio do povo, sentindo o calor das demandas sociais e vendo o povo em sua relação com o Império Romano.

Como poderiam as Parábolas (kerigma) chegarem aos grandes centros urbanos? Sair, por exemplo, da Galiléia e chegar a Antioquia, Alexandria ou Roma? Precisamos recorrer uma vez mais a Marcos 4, 14-20. Assim, é percebido, nessa perícope, a existência de um ambiente hostil, há uma mudança em relação ao que é dito no início do capítulo (Mc 4, 3-9). A Alegoria inicia seu trabalho de adaptação. As tensões do mundo greco-romano estão em efervescência, os Cristãos Originários começam seu trabalho de difusão das características daquilo que Jesus pregava. O mun-do fora da Galiléia não era permeado por regionalismos relacionados a simplicidade da lavoura, o elemento, saiu o semeador a semear (Mc 4, 3), já não atendia as demandas ligadas ao público em epígrafe, a região era tomada por batalhas, por interesses grosseiros, os novos interlocutores das Alegorias se submetiam a realidades desconexas em relação ao povo galileu. O mundo está no início de suas transformações, a economia era algo importante? E o Reino de Deus? O elemento espiritual estava sendo transfigurado, a força da sociedade eclodia em uma natureza cheia de critérios de dominação, a Polis confundia o mundo em sua estrutura-ção ora política, ora fisiológica. Marcos e todos os seguidores de Jesus, percebem-se frente a essa questão e entregam-se a ações de interpretação das Parábolas a esses novos grupos que se formavam.

As Alegorias agora deveriam possuir recorte cosmopolita, os grupos modificaram seus elementos sincráticos, a “semente” torna-se “palavra”. Assim, é percebido que Marcos constitui uma nova linguagem, a Alegoria permite aos seus interlocutores uma perspectiva mais política, mais ligada aos aspectos ontológicos e, mesmo assim, perto de Jesus. Assim, como comenta López (1995, p. 145): “Parece que a estrutura poetica requer que se contraste o triplo fracasso da semeadura com a produção tripla da semente na terra boa” . O texto Sagrado reitera a possibilidade de que há de se perder muito até o trajeto do sucesso, de que por mais que seja “semeado” haverá aquela semente que sera germinada em terra ruim, percebe-se que

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nos três elementos é presente a ideia da germinação, não se comenta a semente “morta” ou a semente que nada gera.

Percebe-se que em nada é modificada a Parábola contada, a rigor, por Jesus na Galiléia, e multiplicadas em contexto greco-romano (FER-REIRA, 2006, p. 45) por evangelistas de igrejas primitivas, agora como Alegorias. Essa ideia de tradução das Parábolas de Jesus é um exercício - até hoje - bastante realizado pelas igrejas de Jesus, ou seja, é dada sempre uma possibilidade de interpretação daquilo que saiu da Galileia de forma tão simples, aos contextos mais diversos e universais, sempre sobre a égide da proclamação do Reino de Deus. Os grupos de Jesus cresciam, o interior tornou-se pequeno, é possivel que a dicotomia entre “semente” e “palavra” ainda hoje seja referendada pelo povo da Galileia ou por seus seguidores.

Mas uma semeadura (seja da palavra ou da semente) tem nuances distintas, tem dificuldade positivas que podem levar a frustração do objeto em tese ou do objetivo principal que é a colheita.

O grupo simples de Jesus na Galiléia sabia que o objetivo principal de quem planta é a colheita. A dificuldade do campesino são as ações de condições em que essa semente chega ao solo (Mc 4, 4-8), essa estrutura define, inclusive, a condição que o fruto será disposto no início do processo dialético da planta. O grupo de Marcos, possivelmente fora da Galiléia, dá a esse processo uma relação plenamente espiritual, relação que o grupo de Jesus caracterizava por reconhecer na sua própria estrutura de vida, a semen-te evangelística no processo de germinação. Nesse sentido, pela qualidade espiritual abrangente, do grupo de Marcos, sugere-se, imediatamente que a possibilidade de frutos corrompidos, dar-se-a pela influência de Satanás que retira das pessoas (terra) as palavras (sementes) que foram lançadas em seus corações (Mc 4, 15). Há ainda uma profunda relação com o processo de enraizamento da palavra (semente), sendo que, em solo pedregoso é dificultado pois, quando advir os problemas naturais, essa palavra (se-mente), sem raízes suficientemente sólidas, não sobreviverá ou não dará nenhum fruto (Mc 4, 17).

É importante a leitura de Marcos sobre o olhar político e social em que ele se insere e que está inserido seu grupo, verificando as par-ticularidades e as relações do texto em epígrafe com as dificuldades de todos os tipos que viveram entendendo, sobre todas as perspectivas, que o principal interesse das Parábolas e das Alegorias, era apresentar aos grupos, sejam de Jesus, inicialmente, e de Marcos, em seguida, e a todos os outrosa que se formaram, a pluralidade de formas e de possibilidades de buscar e daí, alcançar, as estruturas do Reino de Deus. Deixando claro

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o ambiente evangeslístico e o princípio doutrinário recorrente de todos os elementos que apontam a partir dos textos Sagrados.

A “semente” é só uma “semente”, Jesus foi quem à tornou um princípio evangelístico (kerigma). A mesma relação ocorre em outras Parábolas com outros elementos que retoma o mesmo princípio, a mesma origem. Assim, do ponto de vista da Parábola, a mensagem é um satu-rado de significados, a população in loco verifica a aplicabilidade dela à luz de sua formação antropológica e epistemológica, tendo com ela uma relação alegórica (Alegoria) quando se busca uma nova possibilidade de tornar a Parábola um conhecimento de cunho universal, pontuando em uma nova perspectiva cultural e gerando com isso o avanço de conceitos “macros” difundidos inicialmente por Jesus. Na verdade, a relação entre as Parábolas e as Alegorias retomam um processo de reconstrução diária, sobre o estigma de reviver uma mesma experiência sobre olhares sociais distintos, sobre a possibilidade de remontar o processo dialético da vida e de suas particularidades.

IDEIAS CONCLUSIVAS

O tempo ainda não foi suficiente para superar algumas temáticas. As exegeses que se relacionam com a divindade é um ponto importante, pois ela é responsavel por deixar alguns debates tão evidenciados. O que ficou evidente nesse artigo foi a dependência que a Alegoria possui em relação a Parábola. É descabido uma análise dos texto da perícope de Marcos (Mc 4, 1-30) sem uma análise a priori em relação a Parábola. Para isso, o próprio Jesus deixa bem fundamentado todo o contexto.

Nesse sentido, a questão da multiplicação faz-se-a também por meio da transformação de uma única parábola em uma multiplicidade de Alegorias, tendo cada uma um foco evagelístico diferente e falando para um grande número de pessoas. Alias, a saida dos ensinamentos de Jesus da Galileia em direção aos grandes centros urbanos possui uma conotação cosmológica muito apropriada, pois remonta uma ideia do ensinamento sobre um novo olhar social, refazendo a identidade simbó-lica de muitas regiões.

A questão da multiplicidade oferece as Alegorias um recorte ideo-lógico-político, pois dependem diretamente de um estudo socio-cultural para seu real engajamento no núcleo humano daqueles que recebem as palavras. Na verdade apenas na manifestação de um possível paraiso (Alegoria) é que realmente recorreremos a plenitude de Deus (Parábola).

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PARABLES AND ALLEGORIES: CHRISTIANITIES ORIGINATING IN A JOING

Abstract: Article Parables and Allegories: A Junction Christianities originate in part in order to show the reader the social diversity that Jesus was inserted, pointing out the different ways of spreading the Kingdom of God, in the context of Galilee, with the perspective and Parables major urban centers of the time, in the case Antioch or Jerusalem with the Allegories. For this, the text is presented in four parts: the first part - Parables and Allegories: A Shape Analysis of the Holy Scriptures - shows the reader the difference between parables and allegories and integration of both. The second part - Parable and Allegory: From Simple to Complex - realizing a semantic problem, and the allegorical logic of knowledge. The third part - Parables and Allegories: The Social Construction of Jesus in Galilee - back Jesus as a historical and political and fourth topic - Parables and Allegories: Field Practice in a New City-we have an idea of epistemological diversity of the teachings of Jesus.

Keywords: Parable. Allegory. Seed. Gospel. Field. City.

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