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Parte 1

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Parte 2:

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VIVO DEMAIS PARA SER FELIZ IMPUNEMENTE

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Parte 2

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Entre silêncios De olhos e almas alfaiate Poesia para quê? Um par de linhas à hora da missa O que te sobra Gavetas

Quando Olhos abertos Assim Recôndito tempo Lábios esquecidos A palavra Do que prescinde Foi só Mata-te antes Hesitação Mas, por quê? Oferenda Pequena elegia do amor que passa Gravidade No meio da pedra tem um caminho

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Receita de nuvem Moça e pincel Branca Vestir Um borrão Invertebra-me O mesmo Faz um tempo

És fúria Baile de bruxa Baile de nuvem em três movimentos Patada de letras Poema dos cinquent’anos de miguel de

simoni Canção de orvalho fresco Canto de sereia A tese

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A distância Mosaico Mirada Rio e pedra O que se perde Uivo (o primeiro) Estabilidade Ser Trilhas Toca madeira Delírios saltimbancos Super-heroi Sabido Nós: os fracassados Fotos do caminho de santiago de

compostela West Fotos de nuvens Chove Junto pontos Corpo até Planície De tão corpo Vida em mim

108110111112113114117118118119120121121122

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Manada é coletivo de elefante?Matilha não é o de lobo,seria alcateia mas não rimaria com "armadilha".Coletivo de passo não é dança.Coletivo de palavra não é poesia,seria talvez palavrório.Para poesia faltariacerto silêncio a cingir-lhes,a poesia como este arcosaltando entre silêncios,não para ultrapassá-losmas, por serem o cimo da metáfora, tornaram-se o ponto de lançamento.Quem não ouve silêncionão vê poesia.Coletivo de ausência é saudade.Grito de saudade considera-se,para efeito de poesia,como silêncio.Coletivo de silêncio é poesia.

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Um poema não se faz com letras: um poema se faz com olhos e alma. A rima é o eco da ânsia de quem lê o poema. O ritmo é o pulso de quem o acaricia. O senso é uma vereda no passo de quem o acolhe. Monto palavras! Poema faz-se com olhos e almas de quem tem olhos e almas.

pena, pincelpencilagulha agoraalinhava corpotece teia chocou-se, incautapalavrinhaforçou asinhassoprou fôlego d’outra vidaexauriu...reencarnoumetáfora.

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De que adianta este brinco de palavras? Ordená-las para quê? Empilho-as na medida da proximidade de meus braços: verve, tartaruga, colher, praia,

idiossincrasia, tatuagem, coxas...palavras equilibradas. Não sopre! Eu disse para respirar baixo! Pronto, agora espatifou espalhando cacos... Mais que cimento, precisaria de certa dolência para juntar palavras de poeta. Hoje não será possível... Estou feliz - miseravelmente feliz!

Essa é uma gravação, o poeta está demasiado feliz para atender à chamada do poema. Deixe a sua mágoa após o sinal eletrônico que o poeta retornará em versos,

assim que for possível esquecer este sorriso.

Não mais farei sonetos de interdição.Tampouco buscarei nas metáforas herméticas a maquiagem do desejo.

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De que adiantam a mescla das nuanças, as projeções das sombras, o refinamento do traço e a idealização do seio para quem ama uma nuvem? O pior de idealizar o sonho é realizá-lo.

Sabe lá o que é amar uma nuvem?

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Um par de linhas!Só isso, escreverum par de linhasaceitáveisalgo do que não me envergonhassedepois eprincipalmente me livrasse da armadilhade apenas gostar.

Um par de linhas aceitáveis,pois com algode desencaixealguma aresta que sobrassefarpa que arranhasse qualquer incômodo para purificara decência.

Um par de linhasaceitáveissó pra saber que não está acabadotalvez uma chancealém deste par de linhasaceitáveisque preciso violarcom fome e despudor

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mas para issopreciso ultrapassar um par de linhasaceitáveisque sequer me visitam.

Espeto letrasaçoito um versotorturo uma páginaque gritamas não se rendenão revelanão entreganem ao menosum par de linhasaceitáveis.

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À HORA DA MISSA

À hora da missa prostro-me em obsequiosa contrição, com os sonhos esparsos tenuemente cingidos. A despeito da indagação pontiaguda da celebrada Helena, ouso preterir o eco dos vitrais, fazendo do sábio acento do celebrante Fritz uma trepidação morna, longe, amena de penetrantes ondas-curtas.

À hora da missa, hoje que percebi, quando todos vão à procura, a brisa santa irrompe pelas janelas cerradas da casa (ou brota dos poros das paredes, ou fecunda o sinteco estéril, enfim, nada lhe é hermético).

À hora da missa, impreterivelmente à hora da missa, um véu (ou seria um manto?) ondula quase imóvel entre o firmamento e o chão.Quando estica-se o lençol do silêncio, já não sou mais que altar, cálice, imagem: sou todo templo.

À hora da missa, especificamente à hora daquela missa, estive muito perto de tocá-Lo.

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Encontrava-me em revisita a Drummonde Ele começava a se desprender de cada letra. A pena de Carlos em litania... Eu lá, quietinho, encolhidinho, ouvia os dois conversarem.

À hora da missa, na agora distante hora da missa, precipita-se, intempestivo, o telefone em clamor URGENTÍSSIMO. O flutuante santuário de cristal estilhaça-se ante a fenda estridente. Seria para mim? (não se cala o toque) Seria Deus? (torna-se imperativo o toque) Será que Ele vai ralhar comigo por eu faltar à missa? (torna-se ansioso o toque) Ai, meu pai! Foi hoje só! (torna-se renitente o toque)Atendo-o em genuflexão, face contraída à espera de um tom grave...

Procuravam por Luciana. Mas Luciana, como estávamos à hora da missa, estava na missa. Juntei o livro ao peito, como para laçar meu coração a galope. Depois, abri-o num suspiro de eternidade. Não entendi mais nada do que ali se passava! Ouvia longe a voz de Carlos e a d’Ele numa íntima confabulação para mim já sem sentido. Havia perdido parte crucial do enredo e a estas horas já estava o bonde longe...longe...

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Tenta, com as mãos em concha, carregar um bocado de reminiscências.

Tenta, com uma teia de malha fina, aprisionar as nuvens doces de teus sonhos em vida.

Tenta poupar em cofres, ou colchões, os beijos sonhados que nunca deste.

Tenta olhar para a poeira atrás de ti e divisar a caricata silhueta da criança que foste.

O que te sobra, homem? Sobra-te a linha de tuas pegadas. Sobra-te o eco de tuas palavras.

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Volvo-me às gavetas onde, esquartejado, planto-me num futuro em que não me reconheço. O que de mim plantonão é a semente do hoje sonhando-se longeva. Planto o que em mim é híbrido e dúvida; planto um queixume que não arde; planto, cantando, a navalha que me fende e o cimo do penhasco de onde tropeço sem ver.

Volvo-me às gavetas dos desvãos...Ali encontro-me todono fragmento de um poema não nascido. Sou, antes de tudo, todos os poemas que não fiz, sobretudo aqueles que comecei e me venceram.

Volvendo às gavetas, são meus os cacos mas não é minha a letra: é do tempo. Percebo agora, e só agora, que planto cacos e a gaveta os transforma em poemas.

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Não é sempre que te quero. É só quando a aurora com olheiras roxas chega atrasada ao ocaso da noite;

É só quando o tempocom cabelos desgrenhados veste sua camisa pelo avesso;

É só quando a lua comovida por um beijo esquecido abandona-se no firmamento em soluços até o meio dia;

É só quando a pena verga flácida e o tinteiro resseca por não conseguir grafar adeus;

Não é sempre que te quero: é só quando existo.

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Não, não pisca! Aconteça o que for, mantenha a pupila dilatada e as pálpebras escancaradas ao eterno. Pelo amor de Deus, não pisca!

Tens a lua em tua íris. Nesse refratário úmido, o ontem, o hoje e o talvez ecoaram em uníssono e fui pleno. Ao menos ali reconheci-me íntegro, como o espelho sempre me negara. Eu por mim desconhecido, esboço de teu sonho. Era pleno e estilhaçado.Mitigado em planos e recomposto em amor: o teu.

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Porque seria antes assim quando tua sombra precedia-tee teus cabelos só chegavam horas depois, já no momento em que a sala, plena de ti, abafava-me à claustrofobia. Não era possível ali acomodar a mim e minha saudade.

Porque assim antes fosse quando tua sombra claudicava no tempo e o perfume de teus cabelos inaugurava a noite, então meu quarto, pleno de ti, devorava-me à glutonia. Ainda que um pedaço a mais de ti me causasse vertigens, escolhia sempre a tontura.

Porque antes assim fora quando tua sombra se perdia numa tarde qualquer e só o movimento de teus cabelos eu reconhecia entre nuvens misturadas, pois meu corpo, que só existia em ti, desvanecia-se à translucidez. Reconhecendo na cratera de teus olhos a morte, da vida partia sem olhar pra trás.

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RECÔNDITO TEMPO

Porque soubeste

de minh’alma o ardor que desconheço;

porque tiveste

de minha carne o sabor que nunca dera fruto;

porque foste

a presença que meu peito dilatou para acolher,

recuso-me a dizer-te adeus.

Freme ainda a chama no indizível espaço

oscilante entre o ontem e o sempre:

o recôndito tempo daquilo que se sonha eterno

mas só se eterniza por amor.

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LÁBIOS ESQUECIDOS

Como se fora antes um chamamento,

um congraçamento da esperança morta,

esquece tua boca à minha.

Pousa o lábio inerte,

sem aguardar a língua,

mas o sopro que inaugura uma vida.

Assim, esquecidos, os lábios drenarão

a saliva cáustica.

Assim, desavisados, irrigarão um orvalho doce

a lustrar-lhes a ânsia.

Assim, inermes, num contato distante,

perceberão, sem saber, não uma única boca,

mas um singular encontro.

Venha amor, não te peço que tragas a aurora

(nascer nem me apetece),

tampouco o poente

(morrer é meu secreto vício),

mas apenas o infinito entre eles.

Não te iludas, amada,

não te peço horas

(decapitá-las é meu tormento),

peço-te que tragas o sentido para as horas

num renitente milagre de amor.

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Amo-te tão bela e precariamente que não ousaria calar que te amo. Então digo. Digo e espero que o eco me convença. A palavra amor é boa de reverberação. Ela freme, pulsa e eu quase amo. Ora, como quase? Amo! Amo sim! Amo a carícia da palavra amor na minha pele. Amo sua eletricidade eriçando-me o pelo das narinas. Amo ver a palavra amor ricochetear entre nossos olhos tão próximos... e a palavra lá...saltando abismos.

Amo-te tão doce e volatilmente, que não ousaria morder a palavra amor, escorrendo de meus lábios úmidos de teus lábios. Não ouso morder a palavra, chupo-a, lentamente, à língua tesa. Lambo lubricamente a palavra amor, sobretudo o espaço entre as pernas da letra M.

Amo-te tão leve e translucidamente que não ousaria emoldurar a palavra. A palavra amor é belíssima mas detesta posar para retratos.Um poema retém, no máximo, a sombra da palavra

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projetada à sua frente quando do nascente de um sol apaixonado,ou atrás de siquando já o poente tinge de rosa um rastro de saudade.

A palavra que não ousaria calar, a palavra que não ousaria morder, que não ousaria emoldurar, apenas porque não é, mas sempre fora. No início era o verbodescarnado e criador e o verbo era amar.

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Prescinde da luz a nitidez,como do olho o amor. Prescinde do gesto o afago,como do gosto o amor.Prescinde do som a harmonia,como da jura o amor.Prescinde do braço o abraço,como do lastro o amor.Prescinde do sol a aurora,como do tempo o amor.

Só não prescinde o amor do dom de amar,imanência dos que nascem sob certo signo.

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Foi só quando me esqueci de lembrar que lembrei ser possível esquecer, porém logo depois esqueci-me disso e, sem lembrar, amei-te até esquecer de mim.

Foi também quando não quis querer-te que me vi querendo-te além do querer, porém logo depois deixei o querer esvair-se e, sem querer, queria-me por te querer.

Então, já quando não era mais o que fora que passei a ser aquilo que já sempre eu era, porém depois deixei ser o que fosse e, não sendo, pude, pleno, ser: teu.

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Oh não, não esperes o final deste beijo mata-te antes! Vai-se longe o sol, as copas das árvores lançam sombras famintas e banguelas.Vai, mata-te antes! Nem cotovia, nem rouxinol ouviste. O tempo parou um instante em respeito ao gozo, outro instante em respeito ao luto: o teu. Mata-te antes! Hoje foste brava e empunhaste a lança com leveza. Amanhã serás líquida, gotas esparsas e imiscíveis à espera de uma réstia de calor para evaporar para sempre. Mata-te antes! Foste sôfrega em soluços inomináveis, hoje não tem bolsos para amealhar um resquício de saudade. Venta-te antes!Mata-te antes! Ou antes, deixa-me morrer em ti.

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– I – Exato quando me tinhas, ousei ser-te não mais que um sopro.Querias-me um mastro e mais não fui que um alarido (o mar é tua decisão não minha, embora esteja eu no vórtice que cega tua vela). Não, meu amor, não te darei o salvo-conduto da dúvida: ou crês plenamente no canto inaudito, ou te resignas sob a frondosa copa (não serei eu a te desvirtuar).

Minha loucura, ópio fresco, não te beija os lábios espelhados: ou deitas comigo, ou jazes insone por meses – tu o sabes (jamais ousaria acordar-te para o idílio).

– II – Oh, amada minha, querosuscitar-te um pesadelo; quero acariciar-te com dedos farpados; ou sangras, ou dormes: a vida cospe o interlúdio.

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– III – Oh, tonta, escolheste a vida?!

Não será tua redenção a alvorada. Espera antes a lua grávida que não nasceu nem nunca nascerá: só neste instante serás inteira. A vida não te furta a verdade, mas exige seu quinhão de aurora. Dorme o dia, pois se aproxima a noite longa e minha lembrança mais não arde além de tua rosa aberta que nunca cicatriza.

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Mas, por quê? Sob a ocultação da noite, revestida em neblina de nuvem gorda, era teu sorriso o lúmen na picada torta. Por que mais não gracejaste? Onde o frio lustrava a derme e compelia ao desterro ou ao enfrentamento não cabendo mais ser expectante, por que te calaste? Exato ali precisei de ti. Precisamente ali foste-me imprescindível, exato quando tardaste. Por que piscaste? Bem sei foi um segundo, mas foi aquele. Aquele em que desferi o golpe incisivoque, cego ante a ocultação do farol de teus olhos, lascou a mim mesmo. E nem meu sangue ajudaste a estancar. Por que capitulaste? Era aquela a lacuna da história, o contratempo oferecido ao eterno e tu negligenciaste o portal inverossímil. Por que não transcendeste?Eu sei, era um ínfimo de um respiro do tempo que não aconteceu, mas era teu.

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Se ao menos tivesse gritado,saberia o corpo, não o aviltamento,mas uma perplexidade, encantada,da imobilidade rendida.

Se ao menos tivesse chorado,saberia o corpo, não o entalhe,mas a dispersão, rubra,do sangue aceso.

Se ao menos tivesse partido,saberia o corpo, não a distância,mas a presença, difusa, do encontro longe.

Mas não gritei,nem chorei,nem parti:calei em oferenda.

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Esperava-te de luto mas vieste vestida de medo. O mármore do banco, circunspecto, reverenciava o ocaso do amor em eretos pêsames, embora sentisse eu que ele também tinha as pernas flácidas. Estremecemos ao teu sentar.Sei que deveria ter dito que te amo! Calei! Esperava que intuísses...

Sobre amenidades adornei tua ausência, enquanto um véu de palavras vãs cascateava de nosso hiato, apenas porque temíamos o silêncio, arranhávamos a palavra perdão. O tempo inequívoco passou, trouxe à baila a desesperança.

Como eu quis que te esvaísses para apaziguar minha busca no prazer do exercício do faro!Nada havia a ser dito acerca do amor que passa. Estávamos apenas enredando o tempo...

Até que te foste, a cabeleira ondulando, ao ritmo daquele réquiem que só eu ouvia: Sei que deveria ter dito que te amo. Calei! Esperava que intuísses...

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É só a velocidadecomo epifania?Ofertar as bochechas, trêmulas,a um vórtex desconexo?Só isso?Um estrondo por diapasão...Tem certeza?Algum remanso, ou sótorrente, torvelinhoe queda?Promete?Além do corpo macerado,alguma outra revolução?Jura?Alguma ideia de fluxo?Quem desiste antes,a gravidadeou o amor?

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em cima da pedrauma pedra em cimabotar

choro uma pedraela rola de cimadepois empedrao choro

pegamos juntos a pedraencaixamos a lápidemas ela escorregade cima

na mão outra pedrabatemos em cimaaté rachara pedrapedrinhas voam

pegamos os blocosorganizamos um terremotosoterramos

semanas depoisainda a voz

da voz outro terremotoescombros em torvelinhopoeira de pedra

a voz ainda faltaram pedrasrolaremos nósa voz aindado amor

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As muito sólidas que me perdoem, mas ser nuvem é fundamental. É preciso que tudo seja lindo, mas que essa beleza, tanto quanto altiva, seja etérea e amorfa, não por sua inconsistência, mas antes pelo constante alumbramento que a nuvem enseja ao estirar-se, ou pela profunda saudade que ela entalha quando

não vem.

É preciso que seja íntegra em cada átomo. Tão inteira que prescinda da forma. Sim, adoradores de estruturas, que ela seja uma peremptóriadesarticulação, que lembre um portentoso soneto, mas que se desintegre em letras soltas, e seja uma nuvem com olhos e nádegas.*

Sobremodo pertinaz é ser uma nuvem alvíssima! Quando não, que esteja carregada da ira de eras, mas que se entregue, dignamente líquida, por pura paixão. Recomendável também é o uso de leves tons róseos

quando do poente.

É preciso que a nuvem não saiba marchar. Pelo infinito espaço que é seu caminho,

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mover-se é morrer plena e depois, renascida, replantar seu encanto fresco. É preciso que saiba a nuvem dançar, mas que seja uma dança sem passos, sejam movimentos de um ritmo sem tempos, e que seja o corpo sempre um avesso da alma, essa sim semovente, ondulando sempre rumo ao mais fundo e rumo ao mais alto.

Que a nuvem seja ainda esse regaço de perdição a ludibriar timoneiros, a entorpecer poetas buscando aspirá-la.Que seja a coisa mais perfeita dentre os belos e informes sonhos inconcebíveis.

É preciso que ela não deixe de ser nunca a eterna bailarina do efêmero e,em sua incalculável imperfeição, constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação

inumerável,* feito aqueles tímidos desejos que esfumaram-se como nuvens.

Inspirado em “Receita de mulher” de Vinícius de Moraes.

*Versos de Vinícius de Moraes

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Vi um pincelportando uma moça.À guisa de tela, estirou sobre o cavalete uma nuvemmuito brancaaté ela ficar lisamas lisa como um mar, lisa que respira.O pincel tragou o sol,depois deu baforadas de labaredas.Molhou os cabelos da moçanuma saudade esmaecida que trazia à palheta.Traçou um poente de amor findo.Achou sem graça...Soltando halos incandescentes,o pincel deixou o sol no cinzeiro,pigarreou, franziu o cenho,tomou novamente a moça aos dedos,virou-a, molhou seu sexo numa paixão quase seca(esquecera de trazer paixão nova),precisou molhar a paixão na ponta da língua.Dois traços rápidossem remorsosum passo atrás...agora sim, tinha a cor do terceiro minuto da aurora*

* cor inventada por Vinícius de Moraes

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Quantos tonsa branca teztem?Mármore lácteovertes ao seio.No polido do ventre, claro espelho refletindocores muitas de um desejo.Em tua nívea planície,após o jorro branco,repousa o encontro das cores,todas juntas, brilham:branco.

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O ocaso,de púrpuravestea janela azul;seios, ilhas,montanhas pontuamum horizonte desfocado.Solene,visto-mede tua pele.

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Não o espelho, caricaturista mordaz, com sua realidade contorcida e desfocada, imagens projetadas por desejos contidos. Não o daguerreótipo, laboratorista estoico, com sua realidade alquímica transmutada e injeções com unguentos para dores inventadas. Não o pincel, experimentalista desmedido, com sua realidade matizada e pictórica de sortilégios impressionistas em luzes nem intuídas. Tampouco a pena, sentimentalista hesitante, com sua realidade onírica de lendas, insinuando uma qualquer história de personagens espectrais.Não!Apenas a ausência me reconhece; apenas o difuso define meus contornos; apenas quando, amorfo, exaspero temores; sobre o leito, sobre a nuvem; apenas quando escorro pelos lençóis e gotejo no tapete;quando sou um grande borrão... ali me encontro e reconheço:no gozo que me desintegra, no beijo que me reinventa,no amor que me redime.

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Parte 2

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Invertebra-meToca a flauta do ococostelas de xilofonearticulações de origami.Invertebra-me!Fluido para vertersobre o leito a poçado próprio corpo.Ereto apenas quandoempilhando os deformescacos do amor.

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O corpo mesmotodo corpo apenas corpo mesmomesmo se apenas o corponão era o mesmoera outro.

A distância a mesmadois mesmos palmosentre o seio e o abismoa mesma eternidademas o eterno mesmoera outro.

O calor mesmotodo tépidomesma mão sobre o ventreardia a brasa mesmamas o que ardiaera outro.

O corpo mesmotodo outropasseando numa eternidade outrasoprando outra brasao amoro mesmo.

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Parte 2

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Faz um tempo, faz. Faz um tempo, fez. Fez-se um tempo, eu sei, mas não sei como o tempo se fez. Ou não se fez? Ou não me fez?

O que fiz eu do tempo que me fez? Amei. Amei como não se faz. Amei e, por vezes, não se fez.

O que fiz eu do tempo que me fez? Amei. E se amei algo se fez, ainda que sem se perguntar como se faz.

O que fiz eu do tempoque me fez?Ameie o tempo fi-lo eu.

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Nem lânguido, nem calmo, êxtase quiçá, o furor que irradias. És fúria!

Lúgubre nunca, indefesa jamais. Ira de dragões. Inquietude de um vulcão. Aproximar-me é um risco, fascínio da lâmina afiada.

Solta-te indomável entre mãos e rodopios. Calca meus anseios, sapateia sobre meus desejos. Não me observa: intima-me. És fúria!

Ludibria-me em teu molejo, toureando minha paixão obstinada com teu vistoso capote de enleios. Olé! Olé!

Abrevia este tormento, crava-me logo tua espada. Vara-me o peito descompassado ou beija-me. De toda sorte, será indolor a minha morte! És fúria! És fúria!

para uma Flamenca nuvem bailaora

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Vestida de trevas!Devorada a noite por suas entranhas, escuridão não é negar a luz, mas antes, extenuar o brilho das estrelas pelo amor da ocultação que liberta a quimera.Vestida de trevas ela se apropria do tablado, inquirindo suas rachaduras e a poeira que se lhe cai dissimulada.

É a hora da embriaguez!* Sob o véu do delírio demônios amontoam-se, esperam o calor das coxas e “la Mora” é um prato farto!

El Bola espreme uma Soleá e o lúgubre canto difrata na luz âmbar uma como que bruma desvanecendo a urgência. Tudo é opulência!

O primeiro demônio a morde por sobre o joelho. Tem começo o embate faustiano. Dessa vez são os demônios que imploram os donse o fazem a dentadas. A coxa de “la Mora” é fatiada em postas.

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Um demônio não se abate, ilude-se num jogo de concessões e enleios. A cabeça da serpente deve ser imobilizada no calcanhar numa batida de tacón.

Mas o sapateado não fere o demônio: massageia-o. Isto lhe é ainda mais letal! Do sangue que jorra no lanho pode mesmo prescindir, visto ser um tempero de sua paixão violenta,mas o aconchego do deslumbre imobiliza-o. Sucumbe o primeiro demônio no feérico regaço de um encanto.

O segundo demônio crava seus dentes no pescoço de “la Mora”.Um demônio não se expele, imobiliza-se no quebranto de um hálito pernicioso de desejo. Um touro possesso deve ser hipnotizado no focinho com um lúbrico paseo em um silencio.

Mas o molejo não abate o demônio: Incita-o a querer. Isto lhe é ainda mais letal! A dor pode mesmo suportar,visto ser a têmpera da existência, mas a ânsia do sabor o deixa inerme. Eis que o segundo demônio desmonta-se confrangido.

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Otra llamada, un corte!Tudo é mastigado de uma só vez. As coxas? O pescoço? Não, os demônios é que são deglutidos em rito antropofágico.

O engasgo, precedendo a digestão que incorpora o alimento e o transforma em corpo,é a harmonização última da saliva sobre o divino encanto do daimon. Paixão só se aplaca com paixão maior!

por “La Mora” en su baile flamenco* Verso de Baudelaire

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A primeira vez que vi a nuvem bailar em sucinta patada de bulerías, percebi que o despertar da fúria elide o tempo, conecta o encanto ao que nunca começou, condena o encanto a nunca terminar.

A segunda vez que vi a nuvem bailar, levantava-se da cadeira por alegrías e com um breve paseo quando de uma falseta ganhava o centro do tablado. Percebi que aquele torpor comprimia o espaço. O mundo cabia na amplitude daqueles passos, os oceanos todos apenas umedeciam-lhe as plantas dos pés, donde esfumavam-se qual incenso daquelas plantas quentes de escobilla. Tinha os continentes sob a envergadura dos braços semoventes.

A terceira vez que vi a nuvem bailar – bruxuleante entre as sombras, lânguida por Soleá – o alumbramento vicejante de seu silêncio obliterava minha retinacom uma cortina opaca de paixão, os céus se misturaram com a terra, o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas* e nunca mais pude ver nada.

Para a estreia do espetáculo “Luminescência” Inspirado em “Teresa” de Manuel Bandeira

*Verso de Manuel Bandeira

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Parir a palavra que da patapulsa.Da pata preme-se a palavra.Palavra minha pátria - pura pátria;puta patacujo pé partiu a palavra.Se molejo me falta,pato que sou,punge-me na planta a palavra.Se não requebro,duro ventre,quebro o verso em palavras moídas nas patas, poeira:patada de palavras...parida,partida,patadas de palavras...

por não saber dançar uma Patada de Bulerías quando convidado

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Desde sempre foi tosco. Já na intempestiva gênese em momento impróprio, na contramão,em dia de ponto facultativo durante uma greve dos anjos. Deus teve que abençoá-lo pessoalmente.

Límpido nunca foi, embora transbordasse pureza dos mananciais irrigados por suas palavras, tão doces e sábias, quanto turvas em vacilações, conquanto sempre potáveis.

Não é daquele que consideramos retos. À margem das avenidas, propõe trilhas na sinuosa rota das costelas, aquela que chega ao coração. Não detém a patente da verdade, a égide da lógica inexpugnável tampouco. Por vezes tonto, a agulha da bússola bêbada, busca caminhos dizendo: eu não sei.

O rosto também não é de herói. Aliás, pose não é seu forte. Mais Macunaíma menos Clark Kent.

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Se bem que é preciso peito de remador, fôlego de gato e boa dose da sanidade dos hospícios para nadar rio acima,corrente polindo aresta de pedra.

Trata-se de um ser danoso. Um absurdo! Com dificuldade chega à metade de um século. Enquanto Deus, cabelos e barbas em pé, mantém-se numa vigília constante (alguma Miguel pode aprontar!).

Enfim, trata-se de uma pessoa perigosa que não serve para nada, a não ser, fazer deste mundo um lugar mais bonito.

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Lúmen luzindo manso. Pirilampo salpicando o negrume. Brilho de erma estrela. Luz de anos-luz desembarcando, como deságua o rioem seu curso inexorável no mar salgado de lágrimas de amor.

Irrompe, infante, inaugura teu corpo, luz que foste, preservada na claridade da alma que brilha.

Feixe, fótons, força da fusão dos sonhos dos amantes criadores.

Farol, raio, relâmpago, no corpo aterrado fecha o circuito. Extravasando o fruto que acolhe,

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busca a vocação da semente e germina. Vasa, transborda por entre as coxas onde foste plantada.

Ante os holofotes, teus olhos:o clarão bem-vindo, fazendo do palco da vida uma eterna aurora.

Para o nascimento de Luísa, Gabriela e Bárbara

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criança de anéis e poemas menina de sóis e peixes moça de lua em feixes senhora de dádivas, dúvidas, teimas...

criança de recifes e poríferos menina de contas e coxas moça esponja, rede, teias frouxas senhora de acalantos, quebrantos, soníferos...

criança de cálcio e conchas de mexilhão menina das vagas e ventos de areia moça de signos, sopros, sonhos na veia senhora de mares, pesares, salgado coração...

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Neste exato instante, meu amado amigo Miguel de Simoni defende sua tese mais importante. Acostumado aos maneirismos acadêmicos, encontra-se rodeado por doutores. Miguel no centro das atenções! Ele e os doutores versam sobre aspectos díspares.

Os doutores debruçam-se sobre o que presumem ser a fonte: o cérebro. Perscrutam-no como o polo que irradia sentido e,não por acaso, tampouco por conta do aneurisma que combatem, ali encontraram sangue. Mais uma lição de Miguel aos doutores: mesmo o cérebro só pode ser irrigado pelo impulso da vida –o amor.

Passou antes esse sangue pelo coração, cada rubro átomo como porção completa do que Miguel espalhava em cada simples gesto. Deus abençoou-me com respingos. Que dádiva... eu disse a Miguel que o amava!

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Enquanto discutem os doutores, está Miguel diante da banca avaliadora com a qual sempre sonhara. Depara-se com uma banca que não julga, pois é em si todo o perdão; uma banca que não pune, pois é em si toda inspiração que recria; uma banca que não censura, pois é em si todo amor que liberta. Neste instante, estão só Miguel e Deus, dois amigos de barbas brancas a divagar em insondável simplicidade por mistérios de uma vida que busca.

Deus deve concordar com algumas coisas, discordar de muitas outrasmas entende o que meu amigo diz. Miguel não defende sua tese agora – isto ele fez em vida – em todo dia que ousava acordar para semear o encontro,ser fonte incongruente de um amor divino.

A defesa não é para convencer Deus, é uma chance que Deus está dando para o Miguel olhar para trás e ver que foi além do que supunham seus passos curtos.Assim, ele pode ver quanta gente veio ver a defesa com o coração na mão, lágrimas nos olhos, mas com o peito em festa para celebrar a sua vida.

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Os médicos também defendem suas teses: só amanhã saberão se obtiveram sucesso ou fracasso. A defesa de Miguel não recebe avaliação. Sua vida é por si um belo milagre,que retine num eco afável não só nos passos toscos desse professor que tento ser – porque um dia fui tomado de inspiração ao ver seu amor por sua obra que era a própria vida –, não só nas canções que dividimos ou nas garrafas que desvirginamos, mas numa paixão que queima o inextinguível feixe de lenha que é a opção, em vida, pela vida.

Se amanhã quando eu acordar os doutores disserem que a pressão craniana não esmaeceu, então terei certeza de que Deus,ouvindo o Miguel falar, convidou-o para outras rodadas sem saideira, deixando assim o céu mais bonito e meu coração com uma indelével mancha de saudade.

20/05/02 - 23:17 h durante a operação do professor Miguel de Simoni,

que morreria alguns dias depois

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- Falta muito?- Tá chegando...- Ainda?- Tá chegando...- De novo?- Sempre!Pela janela do trem, o tempo passa de revés. Esse trem de Teoria da Relatividade tem de ter sido deduzido num trem de beira do rio Doce. Muito saculejo na cabeça dá nisso.- Ainda tá longe?- Um dia chega.- É antes ou depois daquele morro?- É antes do que eu morro.Trem segue pra lá, rio desce pra cá, tempo corre pr’onde? E o guardado do tempo, escorre? Cai de lado? Em que margem do rio tenho que estar pra pescar lembrança? Mas se eu trocar de margem, fisgo lembrança de amanhã? O rio Doce é marrom. Chuva clara já foi, mas com barro foi cotejando no beiral da encosta, chegou marrom no leito. Rendido ao sol, chuva torna a ser. Onde fica o barro recolhido?- De novo esta curva?- É outra.- Como que você sabe se vira igual?- Não sei, mas a tonteira é outra?- Parece que não sai do lugar, sai?- Só pra poder voltar...Dormente de trem parece dormido, mas trilho eu asseguro que é sujeito direito, reto. Leva sempre. Mas trilho tem final? Eles se juntam lá nesse? Tem uns que leva e traz, é só trocar o lado do foguista. Quando de eu ir, passei por uma

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mangueira carregada, aguei. Foi chegar e procurar um pé. Em que pé eu subi? Não é a mesma manga do caminho? Essa quem plantou? Ou é a mesma, que o tempo plantou. Sei uns que comeram, mas num vi quem plantou. Os de depois terão o de comer?- Falta muito?- Só um tempo...- Tempo nunca é só! Falta.- Acho até que o tempo é só...- E chega onde?- Tá vendo aquele abraço?- Daqui parece pequeno!- Pois é ali que chega.- E qual a distância?- Um metro depois da saudade...

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Que parte cabe à parte quando o todo se parte? Quanto do todo se perde e partequando já uma parte de si se esquece? Em que parte mora essa parte que ao todo falta? E muito falta a cada parte só para o encontro do todo. Eu sou todo parte mas o desejo do todo não me parte, me junta.

Ajuntamento de parte não é todo. Parte, que é toda a sua parte, já todo é. Parte que com outra parte todo torna-se, parte não é somente: é todo milagre.Eu sou todo parte mas o desejo do todo não me parte, me junta.

Da vida, em cada parte todo sendo, busco, em parte, não a inteireza mas uma parte no encontro do todo, os tantos cacos, as muita partes, íntegros todos – mosaico.

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Quando confrontados com a beleza em sua forma de sopro, não mais conseguemver os olhos – isto é tarefa para o encanto. Quando diante das cores de uma palheta apenas intuída, não mais conseguem ver os olhos – isto é tarefa para o idílio. Quando inquiridos por um corpo que fremeno compasso de um tempo inumerável, não mais conseguem ver os olhos – isto é tarefa para o pulso. Ver na vária verve do senso: difuso,ampliado...

Enquanto uma noite, com olhos de eternidade, lança-me sua mirada.

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Morro abaixo, tempo frio! Morro aos poucos, corre o rio. Morro abaixo, tempo fluido; escorre o rio, fico pedra.

Morro abaixo, tempo lindo! Morro aos poucos, crio limo. Morro abaixo, tempo espuma; escorre o rio, fico som.

Morro abaixo, tempo urge! Morro aos poucos, forja-me o rio. Morro abaixo, tempo em giro; escorre o rio, fico curvas.

Morro abaixo, tempo sempre! Morro aos poucos, sonho mar. Morro abaixo, tempo hirto; escorre o rio... fico... só...

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Ah, minha doce inocência, quem turvou teu alvo espectro? Quando em ti, serena, esperei a calmaria que, supus, acalmariaa inquietude da pena.

Ah, minha doce inocência, quem molhou teu terno leito? Quando em ti, acolhedora, esperei pelo regaço onde depositaria o cansaço,abandonado na manjedoura.

Ah, minha doce inocência, quem plantou rugas em tua face? Quando em ti, singela, subverti toda a lei, em vão te procurei,até no riso de Marcela.

Ah, minha doce inocência, quem profanou teu santuário? Quando em ti, casta, a vida entreguei à sorte, da vida esperando a morte,nesta planície longa e vasta.

tépido

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Faz tempo – contou-me o vento – que certa feita, à luz coada de uma lua gorda, uma noite silente estilhaçou-se: um louco uivava rasgando a madrugada. Resgatados do letárgico sono,os lobos, um a um, acendiam seus olhos cinzas. Vestidos ainda de cálido leito, os lobos reuniam-seà praça. Olhavam-se como a indagar razões mas no íntimo clamavam por silêncio. Não fora apenas aquela a noite interrompida pelas vociferações daquele louco, cuja sombra deitava-se sobre a cidade dos lobos, a estas alturas em vigília perpétua. Os todos lobos tinham mesmo medo de não mais se acostarem a uma réstia de paz.

Com o pulso acelerado, pelos retesados, em círculo, o ancião cego ao centro observando,sem palavras os lobos puseram-se em formação.Haveriam de caçar aquele louco em nome da longevidade desta e d’outras gerações de

lobatos. Prescindiam da destreza do faro os lobos,bastava seguir aquele eco que, sabiam eles, jamais iria se calar,

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senão abafado pelas entranhas reviradas que o evocavam. Haveriam de dilacerar o louco!

O cimo da escarpa não tardou a ser alcançado. Sobre a pedra última em agulha, sem mais pontes para uma debandada heroica, jazia o louco em delírio lunático.Sequer intentou o louco qualquer reação. A alcateia em segundos o cercava, reluzindo as gotas de baba escorridas daqueles caninos de marfim.

O lobo ancião cego perscrutava... Em uníssono, rosnavam os lobos esculpindo suas piores carrancas. Diante da turba engatilhada, sem ameaçar hipótese de medo, o louco verteu uma única lágrima de cristal. Ao escorrer por sua face, a lágrima entalhou-lhe uma vereda rubra, caindo-lhe aos pés crispados. A lágrima de cristal não se quebrou!

A lua, abdômen contraído, soprou seu todo brilho naquela cristalina lágrima.A morna luz que o cristal difratavanão cegava por sua intensidade, mas por sua dolência. Os lobos prostraram-se, focinhos ao chão, inquirindo o velho lobo cego.

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Um seu volteio de cauda debandou a brigada, o velho lobo partindo por último, seus vítreos olhos mirando o calor que daquele cristal desprendia-se.

Houve paz novamente na cidade dos lobos, o louco nunca mais uivou. Desde então, a cada noite de lua cheia, revezam-se os lobosno cimo iluminado daquela escarpa para reverberarem o eco daquele primeiro pranto de amor perdido.

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Toda a estabilidade é suicidacomo todo chão é flácidocomo toda corda é bamba toda cinza é cor toda venda é de filó os espinhos têm rosas demência é sãcomo todo abismo é rasocomo todo prato é fundo como toda sopa esfria todo gelo escorre todo sangue coagula certeza é argôniocomo todo valor é pobrecomo todo tédio é rico toda bela é mulhercomo todo discurso é longo sabedoria é brevecomo todo espaço é étercomo todo poemaé éter...

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Ser o que não foimuito antes de sê-lo.

Ser antes mesmo de querê-lo.Pois, se és,

antes já o era.Se não foste,

não será agora que serás.E se não eras...

Bem, aíjá era!

No crepúsculoo púrpuro sol

Jazz.

Na madrugadao firmamento é tingido de

Blues.

Mas a noitedeve ser sorvida on the

Rock.

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TocaToca se teToca se te Toca se te toca o tocoSai da toca, pega o tacoDá com o taco sobre o tocoE sente o somTocaToca se teToca se teToca se te toca o tocoSente o tato, tanto senteToca a bota, tente o pulso noTocante coraçãoTocaToca se teToca se teToca se te toca o tocoToca forte de maneiraToca todo, tudo toca seToca madeira Toca madeira

Poema para ler com os pés, sapateando.

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Quem sou eu? Eu também sou brasileiro,eu também sou vigarista.Eu finjo, te enganosou arteiro, sou artista.Não te escondo o que façosou palhaço,sem circo e sem picadeiromeu palco é qualquer espaçomeu palco é o Brasil inteiro.Pode rir sou artista e brasileiro.É esse o meu retratoo de um pobre sonhador fazendo teatroe pior, amador.Mas não pense que sou tolopra fazer graça, de graçano meio da praça.Daqui não saio sem recompensa,isto nem se pensa.Não te peço joias nem ouronão é este o meu tesouro,eu já te deixarei em paz,só espero um sorriso e um aplausose não for pedir demais.

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Qual é o problema?Gatinhos em cima de árvores?Mocinhas em torres de castelo?Ou dragões que incendeiam os sete maresinfestados de piratas num submarino amarelo?Eu enfrento uma manada de elefantese com a mesma fúria me transformo em amante.Eu abro com um dente uma garrafa de refrigerante etransformo num sopro vidro em diamante.Vamos peça! Peça logo! peça tudo!Peça o mundo que te trago em um segundo.Só não me peça para ser eu mesmo,é perigoso e acho até que dói.Não se pode revelar a identidade de um super-herói.

Nunca soubeque sabia.Procurou saber:perdeu-se...Daí perdeu-se,entãodescobriu-sesabendo.

Leu pra dentro:não entendeu,mas soube.Sabido é o coração.

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As lutas, encaro-as todas. Sobretudo, todas as lutas inglórias. Assumida de antemão a derrocada, lutar não é maisque esgarçar uma paixão suicida. Encantos, embalo-os todos. Sobremaneira, o platonismo das estátuas de mármore. Partindo-se da abissal geleira, amar não é maisque amar seu próprio amor pelo amor. E o beijo - quem diria, cálido! – não é mais que puro acaso, ouum milagre (mas sempre um mistério).

Quero hoje cantar o fracasso dos mártires das causas diminutas e desterradas.

Viva a frente fria e seus arautos! Viva a cagada de pombo no paletó! Viva o pênalti na trave!

Louros! Louros! Louros a todos os vice-campeões! Repousem dependurada nas estrelas, em brilho protagonista, todas as medalhas de prata.

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Parte 2

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Loas àquele que não beijou a mocinha! Loas aos que perderam o trem! Loas aos saltos de sapato que se quebraram em bueiros! Loas ao pneu que furou! Loas à brochada homérica!

Felizes os que fizeram a quadra na loto! Felizes os que ficaram “pela boa” no bingo! Felizes os que não pegaram o morto! Felizes os que encaçaparam a bola branca! Felizes os que, com suas melhores bolinhas de gude,

morreram pagãos!

Sorte daquele que tem azar! Sábio aquele que empilha o fracasso! Valentes e sãos todos os Quixotes! Precisos todos os utópicos divagantes!

Então, que sejam benditas todas as ideias frustradas. Sejam benditas todas as previsões erradas, já que a história é escrita pelos fracassos, embora seja contada pelos vencedores.

Mas antes, realmente antes, sejam louvados todos os versos torpes, todos os poemas ruins (como este), todas as rimas pobres, todas as letras que não servem para nada! É sobre esses versos, que se deitam os poetas pequenos, seguindo ao léu, rumo ao fracasso, bendizendo o acaso e esperando o milagre de um sorriso desatento.

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FOTOS DO CAMINHO DE SANTIAGO DE COMPOSTELA

o caminho, como um rio,escapa à rederio não se deixa pescarmas é o rio o alimento

uma ponte cruzaum rio

ponte é estradamas o rio é o caminho

em cada Puebloum campanárioem cada peitoum sinoquem os toca?

é preciso disciplinapara desaprender

graduar-se bobona leveza da inocência

a força do riso

estar grávido de uma mochila

tem uma mochila que ri,outra não

uma é mais levecajado como apoiofaz música no chãomúsica como apoio

no meio do caminhotinha uma pedra

depois desta pedratinha o resto do caminho

qual das pedras teria sido?

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longe nunca é distanteperto nunca é simplesvida sempre é 400 mais

atrás do cansaço o corpo é leve

não é alívioé tributo ao caminho

corpo oferendaforça como armadilhapasso largo pesa mais

pedra não é apenas para sentartropeçar também dá sossego

um planalto deserto para desfrutarexílio, outro desertopresente do caminhoespada sobre o orgulho

encontro sempre ameaçao ritmo próprio

mas oferece um ritmo do encontroum passo se dá com dois pése muitos corações

em um altopor sobre acima

uma vastidão planao infinito em seu tempoo eterno em cada passo

uma abelha desfocadasobre um roxo impensável

uma ermida perdida

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o olho piscao caminho chama

alguém ficahá uma lágrima que arde

o valor do pesoescolher o que carregarsaudade também pesapreço do amor

eternidade vista por um deserto aprimora detalhes

a escolha da foto ensina o olho

uma ruína me emociona mais que uma catedral

ruína é catedral construída pelas vísceraso abandono por arquitetouma samambaia por badalotoca no sino o chamadode uma hora esquecidao som é grave

uma névoa baixa de presenteao redor, nada se vê

caminho apenas sentidona turbidez de cabeça nas nuvens

claridãouma lua resolutano firmamento ao meio diaum beijo deve ter sido esquecidoela aguarda

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dentre a neblina de sol dormenteentro por de através de um quadro de Monet

ao final do túnel de galhos escuros,um quase girassol de Van Gogh

(um holandês que inventou o girassol)a natureza tentou copiar

quando se fica por detráso tempo aguardavira-se, sorri e pergunta:que tal?o sorriso do tempo reinaugura o tempo

o passo não hesitamas o coração bate

pra frente e pra trástem uma parte que não quer chegar

chegar é uma forma de partirum brinde contente com taça vazia

fotografei o primeiro passohavia um pé

fotografei o últimohavia vários

por detrás dos eucaliptosazul em tantos tons de céude repenterasgo de outro azul, infindosurge o mar do ademais pra onde corre o riopra onde morre o rio

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no gelado azulsal de mar cicatrizaferidas no péabre outra no coração

no fim do mundoademais do fim

ademais do mundoatrás do infinito

o sol se retiraem que abismo dorme?lanço-me neste abismo

até aqui estivemosconstruindo a eternidadeagora começao ademais

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Passo à frentesombra à frenterumo ao Oeste.Rumo ao oestesombra à dentropasso ao poentesombra à frenteOeste adentro. Sombra do mundoOeste profundosombra profundaOeste inundaa sombra do passo.Atento, passoescutando a luaquando a sombra nuado beijo que desterepousa no Oeste. The West is the best!*

*Na voz de Jim Morrison

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nuvem de ali, longenuvem quase aqui, ondenuvem parece que, outranuvem em forma de, ontemnuvem hora que, houvenuvem perto que, chovechovechorachovechoralovellorachorachovebebo.

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Como raio aleatório mas resoluto, como um traço sem remorso de Matisse, como se o carvão escorresse livre rumo aos pontos de minhas fugas, junto pontos numa tela crua.

Como se o cinzel tivesse sido ele esculpido, como um martelo que forjasse a si, como se o mármore tirasse sua roupa à penumbra, junto pontos numa matriz dura.

Como se letra chovesse em tormenta, como se palavra tivesse encaixe, como se verso escorresse da palma da mão em concha, junto pontos num papel amassado.

Se castelo ou borrão, busto ou parangolé, alexandrino ou grafite, junto pontos para que se juntem os que antes juntos foram, os cacos oblíquos que são a caligrafia do tempo e só reconheço por não saber ler.

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CORPO ATÉ

O corpo vai atédaí é maisnão outra coisa que corpomas corpo mais

O corpo vai atédaí é o desertonão tão vasto que corpomas corpo incerto

O corpo vai atédaí é o mundonão sem fôlego no corpomas corpo fundo

O corpo vai atédaí é o portonão outro destino que corpodonde volto morto

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Onde apenas a intenção do vento já pulveriza as letras, os poemas são mágicas que duram um quartzo de

segundo. Os poemas são mágicas para corações que não piscam. E quando cansados de mim eles se forem, restará apenas o eco da ausência e láE.........................................................U com uma teia cheia de buracos remendando o tempo puído onde ele insistir em passar.Até a hora em que, esquecido de mim, eu também parta e me abandone no ermo a cingir abismos.

Corpo: paradoxoda pele. Espraia, expande...para dentro.Extrapola, extravasa... para o fundo.Incisão aguda, carne vibra,osso é além...um ritmo: espasmo.Espírito, de tão corpo!

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Sou vivo demais para ser feliz impunemente, trago em mim um mar que só se reconhece por um triz e nunca é um ser – apenas um estar.

Trago em mim as lembranças que não fiz e um porto que não vai jamais chegar. Jaz em mim o perdão e a cicatriz de um lanho desferido sob o luar.

Então, só assim me brota o sorriso: como um espasmo fértil e conciso à espera que um amor venha e o consagre.

Não vem do beijo opaco do Narciso, tampouco do gozar sempre indeciso. A vida em mim, irmão, é só milagre!