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Humanitas 58 (2006) 175-197 PARVULI VEL ADULESCENTES NOS MOSTEIROS VISIGÓTICOS FRUTUOSIANOS. ANTECEDENTES, LEGISLAÇÃO E PRÁTICAS DE ACOLHIMENTO 1 PAULA BARATA DIAS (Universidade de Coimbra) Pretendemos estudar a realidade concreta da variedade etária dos mosteiros visigóticos do séc. VII, mais concretamente, a presença de crianças e de adolescentes em ambiente monástico. Esta realidade possui, no meio hispânico, um contorno específico, não obstante integrar os ante‑ cedentes do direito civil romano e de uma justificação bíblica, realidades universais à civilização cristã da Idade Média. Começaremos por referir as fontes jurídicas e canónicas que funda‑ mentam esta realidade, no mundo oriental, no mundo ocidental e na Regra de S. Bento, exemplo matricial para a cultura monástica medieval. Posteriormente, analisaremos a legislação e as práticas de acolhimento dos minores aetati nos mosteiros visigóticos, a partir das regras monásticas visigóticas, da legislação canónica e civil, procurando uma explicação ________________ 1 Sobre este tema, apresentámos uma comunicação no International Medieval Congress Youth and Age, da Universidade de Leeds, Inglaterra, em Julho de 2005. Aproveitámos as sugestões de trabalho decorrentes desta apresentação pública, da parte de Isabelle Cochelin (Universidade de Toronto) e de Béatrice Caseau (Sorbonne, Paris‑4) e queríamos dedicar o trabalho que resultou desta reformulação ao Doutor Sebastião Tavares de Pinho, nosso professor desde a licenciatura, a quem rendemos homenagem. Utilizamos as seguintes abrevia‑ turas: DACL – Dictionnaire d’Archéologie Chrétienne et de Liturgie; Conc. – Concílio; RAur – Regra de Aureliano; RB – Regra de S. Bento; RCaes – Regra de Cesário de Arles; RI – Regra de Santo Isidoro; RF – Regra de São Frutuoso; RMC – Regra Monástica Comum; RCM – Regra Consensória dos Monges.

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PARVULIVELADULESCENTESNOSMOSTEIROSVISIGÓTICOSFRUTUOSIANOS.ANTECEDENTES,LEGISLAÇÃOEPRÁTICASDEACOLHIMENTO1

PAULABARATADIAS(UniversidadedeCoimbra)

Pretendemos estudar a realidade concreta da variedade etária dos

mosteiros visigóticos do séc. VII, mais concretamente, a presença decriançasedeadolescentesemambientemonástico.Estarealidadepossui,nomeiohispânico,umcontornoespecífico,nãoobstanteintegrarosante‑cedentesdodireitocivilromanoedeumajustificaçãobíblica,realidadesuniversaisàcivilizaçãocristãdaIdadeMédia.

Começaremosporreferirasfontesjurídicasecanónicasquefunda‑mentam esta realidade, no mundo oriental, no mundo ocidental e naRegradeS.Bento,exemplomatricialparaaculturamonásticamedieval.Posteriormente, analisaremos a legislação e as práticas de acolhimentodosminoresaetatinosmosteirosvisigóticos,apartirdasregrasmonásticasvisigóticas, da legislação canónica e civil, procurando uma explicação________________

1Sobreestetema,apresentámosumacomunicaçãonoInternationalMedievalCongressYouthandAge,daUniversidadedeLeeds,Inglaterra,emJulhode2005.Aproveitámos as sugestõesde trabalhodecorrentes desta apresentaçãopública,da parte de Isabelle Cochelin (Universidade de Toronto) e de Béatrice Caseau(Sorbonne, Paris‑4) e queríamos dedicar o trabalho que resultou destareformulação ao Doutor Sebastião Tavares de Pinho, nosso professor desde alicenciatura, a quem rendemos homenagem. Utilizamos as seguintes abrevia‑turas:DACL–Dictionnaired’ArchéologieChrétienneetdeLiturgie;Conc.–Concílio;RAur–RegradeAureliano;RB–RegradeS.Bento;RCaes–RegradeCesáriodeArles; RI –Regra de Santo Isidoro;RF –Regra de São Frutuoso;RMC–RegraMonásticaComum;RCM–RegraConsensóriadosMonges.

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para a especificidade visigótica e para a evolução damesma num con‑textohistórico.

“Seguindo o exemplo de Samuel”, diz a versão longa da RI, numdos fragmentos interpolados de origem frutuosiana2, fundamen‑tandonumepisódiodoATo costumededoar aomosteiro criançasdetenra idade3. É a primeira referência concreta, nas regras monásticas

________________

2AsduasrecensõesdaRI,umabreveeoriginal,aoutralongaeinterpoladaemambientefrutuosiano,dividementresiduasfamíliasdistintasdemanuscritose estão presentes em diferentes edições. A versão breve, edita‑a P. FAUSTINO

ARÉVALO,S. IsidoriHispalensisEpiscopiHispaniarumDoctoris opera omnia,Romae,1797‑1903,vol.6,p.524‑556.SegueotextodaediçãodeJUANGRIAL,DiuiIsidoriHispalensis episcopiopera,Philipi IICatholici regis iussu,Matriti1599,parsalterap.402‑413.TambémnaPL81,214‑216,emaisrecentementefoieditadanovolumeque Júlio Campos e Roca‑Meliá dedicaram, em 1971, àsReglasMonásticas de laEspaña Visigoda2. A versão longa ou interpolada, que nos interessa mais, estárepresentada na família dosmss. de Bento de Aniane:Munich 28118, fols 92r‑‑100v;oms.Valenciennes288,fols88‑104v.Tambémosms.DurhamB.III.8,fols215r‑220reumfragmentopresentenaprimeirasecçãodoEscoriala.1.13,fols32r‑‑33r,emquequatrocapítulosdaRI,numeradosde23,24,25,26,correspondemaos capítulos 17, 20 e 4 da edição de Campos‑Meliá da RI e possuem a parti‑cularidade de estarem inseridos entre excertos da RB. Holsténio, (HOLSTENIO

L‑BROCKIE M, Codex Regularum monasticarum et canonicarum quas SS. PatresMonachis,CanonicisetVirginibusSanctimonialibusseruandaspraescripserunt.CollectusolimaS.BenedictoAnianensiabbate;nuncautemauctus, amplificatus et in sex tomosdiuisus, obseruationes critico historicis a P. Mariano Brockie, illustratus, Ausburgo,1759),aoeditaroCodexRegularumdeBentodeAniane,apresentaestaversãodaRI,queaPLtambémaapresentanoseuvol.103,cols553‑572.

31Rs1,20‑28.ÀimagembíblicadojovemSamuel,entreguepelamãeAnaaoserviçodo templo,atéaoséc.XIeracostumequeamaiorpartedosmongesentrassenavidamonásticaemcriança,consagradospelospaisàvidamonástica.ARB 30, 37 sancionava‑o (e. g. os infantuli commenos de 15 anos podiam servergastados,masnãoexcomungados,dadonãoteremcompreensãoparatal)efoiprática corrente nomundo carolíngio.MAYKE DE JONG, In Samuel’s Image. Childoblation in the early medieval west, 1996, Brill, Leiden, p.40 concede à Hispâniavisigótica uma especial sensibilidade para lidar com os contornos jurídicos daquestão: “in comparisonwith themerovingian realm, visigothic bishops of theseventh century seem to had better control over internal life ofmalemonasticcommunities. The spanish councils systematically addressed a host of pro‑

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visigóticas, à oblatio puerorum, doação de crianças de tenra idade aomosteiro:

“Quicumque aparentibuspropriis inmonasterio fueritdeligatus, noueritse ibi perpetuo permansurum, nam Anna Samuhel puerum natum etablactatumquauoueratobtulit,quiqueetinministeriotempliquoamatrefueratfunctuspermansit,etubiconstitutusestdeseruiuit4”O factode esta interpolaçãoestar ligadaaumamatriz frutuosiana

confirma um traço constante do monaquismo hispânico da segundametadedoséc.VII:ointeresseconcretodosmosteirosemacolhermeno‑res, com carácter permanente e irrevogável, para seguirem a profissãomonástica.Esteinteressereforçou‑seaolongodoséc.VII,eacompanhouuma estratégia política e eclesiástica de fixação precoce de pessoas aestruturaspoderosasdasociedadevisigótica.Assim,oscontornospráti‑cosdestapresençadeváriasgeraçõesnomosteirosãoassuntosquevãosendo expostos com um progressivo detalhe nos textos frutuosianos,acompanhandoumalegislaçãocivilecanónica.

Notratamentoqueoassuntoapresentanasregrasmonásticasvisi‑góticas,podemosverumamanifestaçãodequeosmosteirosvisigóticoseram estruturas sociais de cúpula, em sintonia com a Igreja e com oEstado, interessados activos numa ordem social de cuja estabilidadedependiam.________________ blems ensuing monastic life, including those created by irrevocable nature ofchildoblation”.

4 DÍAZ Y DÍAZ, “aspectos de la tradición de laRegula Isidori”, StMon 4, 1,1963,p.37.PL83,RI4Deconuersiscol.872.CAMPOS‑MELIÁ,p.95,RI4Deconuersis.SegundoDíazyDíaz,otextopodeserautenticamenteisidoriano,namedidaemquepodeseraversão“regularizada”doIVConcíliodeToledoc.49,em633,emqueestevepresenteIsidoro.“monachiautpaternadeuotioautprofessiofacit;quidquidhorumfuerit,alligatumtenebit.Proindeeisadmundumreuertiintercludimusaditumetomnemadsaeculuminterdicimusregressum”.NoXConc.deToledo656amedidaésuavizada:ospaissópodementregarascriançascommenosde10anos,eestes,em adultos, podiam pronunciar‑se quanto à sua vontade de permanecer nomosteiro.Masoquevigorounaleicivilvisigoda,estabelecendoprecendentesnomundo carolíngio, foram as decisões doConcílo de Toledo de 633: o princípiogeraldadeuotiopaternaedapropriaprofessio(MAYKEDEJONG,op.cit.,p.46).

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1.Fundamentosjurídicosereligiososparaaoblatiopuerorum:

Osaspectosjurídicosdadeuotioparentumpossuemcontornosances‑trais,desdeosprimórdiosdodireitocivilromano.Oexercíciodopoderpaternalsobreosmembros,geradosenãogerados,dasuafamilia,jácon‑sagradonaleidasXIITábuas,passavapelapossibilidadedatransferên‑ciadessepatrocínioparaoutrasede.Odireitoromano,comoestruturadomundo antigo, foi preservado com a chegada do cristianismo e com onascimentodenovosEstadosherdeirosdacivilizaçãoromana.Assim,oCodexIustinianus,emboratenharetiradooiusuitaenecisqueaospais,con‑tinuaapermitiravendadestese,reconhecendoaperenidadedapotestaspatrumsobreosfilhos,afirma: iusautempotestatisquodinliberoshabemus,propriumestciuiumromanorum;nullienimsunthominesquitantaminliberoshabentpotestatem5.Aalienaçãoda tutela sobreumdependenteem favorde terceiros, numa transferência de potestas, é um princípio estável nodireitocivilromanoquemigraharmonicamenteparaapráticasocialdaAlta IdadeMédia, constituindo um dos aspectosmais interessantes dacontinuidadeentreomundoromanoeomundomedievalcristão.

ComoCristianismo,eoprogressivoprestígiodas instituiçõesnas‑cidasàsuasombra,as igrejasouosmosteirostornavam‑sebeneficiáriasnaturais desta deuotio paterna, conservando sobre os oblati um poderpaternal.AIgrejatornava‑se,pois,“patrona”destesmancipati,exercendosobre eles o direito de cuidado e de vigilância. Como estabeleceu lapi‑darmente o c. 70 do IV Concílio de Toledo, em 633, consciente de quelidavacomumcostumejurídicoconsagrado:

Liberti ecclesiae, quia numquam moritur eorum patrona, a patrocinioeiusdem numquamdiscedant nec posteritas quidem eorum, sicut priorescanonesdecreuerunt…

________________ 5LegesXII Tabularum (Fontes IurisRomaniAntiqui I,GEORGBRUNS,OTTO

GRADENWITZ, Tübingen, 1904, tab. IV, V, citadas por Ulpiano, frg. 10,1); Gaio,Institutionum Commentarii libri IV, I De iure ciuili et naturali; III De conditionehominum (E. SECKEL, B.KEBLER, IurisprudentiaeAnteiustinianae..., II, 2, Leipzig,1927,p.395‑431.1,tit.3DeIurepersonnarum1.4Inpotestateetiampatrumsuntfiliiexlegitimomatrimonioprocreati.tit.6Quibusmodisfiliiexeuntdepotestatepatris1.6“filiiquiinpotestatepatrissuntmortuopatre,suiiurisfiunt”.Justiniano,CorpusIurisCiuilis, Institutiones l. I, tit. 9, 2; sobre o direito de venda, l. IV tit. 14 (Kruegered., Zurich, 1970). J. GAUDEMET,Droit Privé Romain,Montchrestien, Paris, 2000,p.323‑324.

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Opatrocíniodaigrejasobosseusdependentesassumiaumcarácterirrevogávelna legislaçãovisigoda,queagia judicialmentecontraaqueleque abandona o seu estatuto. Com a cumplicidade da administraçãojudicialcivil,ofugitivoeradevolvidoeencerradonomosteiro6.

Contrariamente à prática ocidental, omonaquismo oriental valori‑zavaoaspectodo livrearbítrioemesmoaentradamais tardianomos‑teiro.Assim,aRegradeS.Basílioadmitiaaentradaprecocedejovensnomosteiro,desdequeconjugadacomoexercício,namaturidade,daliber‑dade de escolha. Assim, Basílio considera que os anos dos pequenosoblatossão ideaisparaaaprendizagem,equeaentradanomosteirosepodefazeruoluntate,oupiaoblationeparentum,quesão,numcasoenou‑tro,sempreactospúblicos.Masaprofissãodavirgindadesóserádefini‑tiva na idade adulta, respeitando o carácter e o desenvolvimento doindivíduo.Seestenãodermostrasdequalidadesedefortaleza,émelhorqueabandoneomosteiro,semquehajaumasançãoassociada7.________________

6 Lex Visigothorum (LV) III, 5, 3 (MGH, ZEUGMER E. Ed.), promulgada noreinado de Cintasvinto (646‑652) «…Ideoque hac in perpetuum mansura legesancimus, ut, quicumque religionis abitumper honorabile tonsure signum aut temporepenitentie petendo susceperint, aut non fraudulenta sed uera parentum oblationemmeruerint,autproprieuolumtatisdeuotionetenuerint,etadlaicalemconuersationempostmodum apostizando redierint, iuxta sententia canonum ad eumdemreligionis ordinem quolibet prosequente reducantur inuiti, adque infamie notarepersi et in monasteriis perenniter religati, districtiori maceretur penitentiacorrigendi».

7 Basilii Regula Int. VII (K. Zelzer, CSEL vol. 86, Vindobonae, 1986, p. 38)À pergunta “Ex qua aetate oportet nosmet ipsos offerre Deo, uel uirginitatis profes‑sionemquandooportet firmamacstabilemiudicari?”Responde,comoécostumeemBasílio, com uma citação bíblica que faz entender a aproximação precoce dascriançasaomosteiro“DicenteDominoSiniteinfantesuenireadme,etapostoloPaulocollaudanteeumabinfantiasacraslitterasdidicisset,etrursumpraecipienteeducarifiliosindoctrinaetcorreptionedomini,omnetempusaprimaaetateopportunumquidemesseducimus ad suscipiendum timorem et eruditionem Domini; firma tamen tunc eritprofessio uirginitatis, ex quo adulta iam aetas esse coeperit, et quae solet nuptiis aptadeputariacperfecta.Oportettameninfantes,uoluntateetconsensuparentum,imoabipsis parentibus oblatos, sub testimonio plurimorum suscipi; ut omnis occasiomaledicti gratia excludatur hominum pessimorum (...) Si uero cum aetatis augmentonullus eis deprehenditur profectus industriae; sed uaga mens etiam post instituta

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Basíliotambémentendequeascriançasórfãsouabandonadaspelospaispodemsercriadasnosmosteiros,empédeigualdadecomascrian‑çasqueentrampordeterminaçãopaterna.Noentanto, chegadaa idadedarazão(sedecimuelseptemdecim),cabe‑lhesescolherocaminhodevida8.

As inscriçõescoptasconfirmamapresençadecrianças,comoobla‑tos, nomosteiro9.Mas também testemunhamque algumas destas obla‑ções diziam respeito aos filhos dos servos do mosteiro, que assimtransmitiamesteestatutoàsuadescendência.Ouseja,ooblatointegravaomosteiro como sua propriedade, podia casar e gerar descendência, aquemtransmitiaolaçodeservidão.Estanãoera,noentanto,irreversível,uma vez que podia “pagar” a sua liberdade, àmaneira de um escravoqueassimconquistaaliberdade10.Poroutrolado,esteservopodia,sobaprotecçãodomosteiro,escolherummodelomonásticodevida,ouman‑ter‑secomolaicoaoserviçodomosteiro.

Desta forma, noOriente, temosdois quadrosdistintos: opropostopor Basílio, que concede o direito de escolha na idademadura; e o domonaquismocopta,emqueooblatopodesairdopatrocíniodomosteirose estiver disposto a pagar a sua liberdade, a título de compensação àinstituiçãoqueocrioueocuidounosanosdemenoridade.Numcasoenoutro, uma diferença abissal se estabelece com o regime ocidental, namaioria dos casos: o carácter reversível da profissãomonástica quandoestaresultoudeumaentradaprecocenomosteiro.

As leisrecolhidaspor JustinianonoseuCorpus IurisCiuilisdiscuti‑ramasincompatibilidadesparaoexercíciodavocaçãoreligiosa,semquenestasse incluaa idadeprecoce.Assim,estãoexcluídosdaclericaturaedoepiscopadoosquepertencem,pornascençaouporescolhapessoal,aoexércitoouàadministração.Aexcepçãoéconcedidaparaosquedesdetenra idade tivessemprofessado omonaquismo, estando estes habilita‑dosparaaordemsecular.Éesteumsinaldequeosmosteirosbizantinosacolhiam crianças, numa espécie de antecâmara formativa para a cleri‑catura.Poroutrolado,aentradaprecocenosmosteirosorientaisconver‑tia‑senumveículopromotordamobilidadesocial,namedidaemquea________________

probabilia infructuosos permanserit; huiuscemodi abici oportet; et maxime cumiuuenilisferuorrudemlacessitaetatem.

8Ep.2,aAnfíloco,PG31,col.955.9DACL,12“oblat”,col.1868‑1871.

10DACL12,col.1870.

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entradanomosteiro libertavadeterminadasordens sociaisdo seu com‑promisso com um exercício particular, como o exército ou a admi‑nistração.

A irreversibilidade da vocação religiosa surgia já delineada nestelegislador, e está implicadacomadelicadaquestãopatrimonial.Assim,proíbe‑seaosmongesadeserçãodoseumosteiro,oquelhespodecustarpenaspecuniáriasoucastigosfísicos,conformeaspossesdofugitivo.Ascrianças ou rapazes que entraramna vida religiosa, secular ou regular,não podem ser reclamados pelos pais, nem deserdados. No caso deabandono da vocação religiosa, todos os seus bens ficam na posse daigrejaoudomosteiroqueosacolheu11.

As leis de Justiniano exerceram uma forte influência na Itália doséc. VI, território que os bizantinos dominaram a partir de 535, restau‑randoporbrevesanosalgumaunidadeentreaparteocidentaleorientaldoantigoImpérioRomano.Nãosurpreende,pois,queaRegradoMestreeaRegradeS.Bentoadmitamaentradaprecocenomosteiro,etendamparaairreversibilidadedavocaçãomonástica.

2.AoblatiopuerorumnaRegradeS.BentoA Regra de S. Bento influenciou, pela sua expansão no Ocidente

medieval, e uma das faces desta influência foi a permanência de ummodelodeacolhimentodemenoresnosmosteiros12.

________________ 11Corpus Iuris Ciuilis, t. IICodex Iustinianus, P. KRUEGER ed., Zurich, 1970,

Cod. I,3,52,1‑2de531; I,3,52,9, repetindouma leidatada jádeTeodósio,de431,aqueimpediaosmongesdedeambularempelascidades;I,3,54,5‑7.

12Nomundomerovíngio,oquadronãosealteraemrelaçãoaumpadrãoocidental:aentradanomosteiroassumiaumcarácterirreversíveleestapodiaserdeterminada por vocação própria ou por determinação paterna. O I Conc. deOrleães,em511,c.19,20,21.Particularmenteoprimeirocânone,queosmongesfugitivossejamconduzidosà forçaaomosteiro,eque todososseusbenssejamintegradosnapropriedadedomosteiro(Conc.deAuxerre,561,c.23.VConc.DeParis,c.15Deuiduabusetpuellisquaesibiinhabitureligionisindomospropriastam a parentibus quamper se uestemmutauerint et se postea contra institutapatrumuelpraeceptacanonumconiugiocrediderintcopulandas(…)habeanturacommunionesuspensi…).

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Ocap.59daRBDefiliisnobiliumautpauperumquiofferuntur13,previaqueospaisfizessemaoblaçãodosseusfilhoscomumritualparaleloaoqueéprevistoparaosqueseconsagramspontesua(cap.58).Sipuerminoraetateest,sãoospaisalavrarapetitio,documentoqueenvolviaamãodomenor,eaoferecê‑lodiantedoaltarempresençadetestemunhas,comasoutrasoferendas.Quantoaopatrimónio,eaocontráriodoqueédefinidono Codex de Justiniano, a RB proibia que o oblato mantivesse os seusdireitosdeproprietáriooudeherdeiro,quianumquamperse,numquampersuffectam personam nec quolibet modo ei aliquando aliquid dant aut tribuuntoccasionemhabendi.Seospaisquiserem,podemaliquidofferreinelemosinammonasteriopromercedesua,faciantexrebusquasdareuoluntmonasteriodona‑tionem,reseruatosibi,siuoluerint,usufructu.

Aquestãopatrimonialaquireferidamereceserexplicitada:ooblatoestavaimpedidodapeculiaritas,istoé,daposseprivadadosbens.MasaRB permite que omesmo entre nomosteiro acompanhado de doaçõesque ficariam na posse domosteiro, conservando a família o direito deusufrutodosbensdoados.Ocap.58daRB,paraqueremeteocapítulodedicadoaoblaçãodecrianças,confirmaestanossainterpretaçãoquantoà questão patrimonial, bem como a perpetuidadedo votomonástico: ocandidato a monge deve permanecer quatro ou cinco dias à porta domosteiro enfrentando as perguntas e injúrias dosmonges, num teste àperseverançadasuavocação.Operíododenoviciadoduraumano,divi‑dido em três períodos desiguais, de dois meses, seis meses e quatromeses,nos intervalosdosquaisonoviçodeveescutara leitura,emvozalta,daregraeafirmarempúblicooseupropósitodeconversão.Aregraafirmaentãoaimpossibilidadedeesterevogarasuadecisão,peloque,apartirdesteano,éimpossíveloabandonodomosteiro14.Entãoexprimiráa sua profissão de fé numa petitio, em nome dos santos e do abade alipresente,escritopelasuamãoou,casonãosaibaler,poroutro,assinandooprofessonofinaldodocumento.

Quanto ao seu património, o novomonge é livre de o deixar aospobres ou de o doar aomosteiro, nada reservando para si próprio em________________

13 La Regla de San Benito, COLOMBAS ARANGUREN ED, BAC, Madrid, 1993,p.167‑168.

14RB58,ed.cit.,p.165“…sciensetlegeregulaeconstitutumquodeiexilladienon liceategredidemonasterio,neccollumexcuteredesub iugoregulaequemsubtammorosedeliberationelicuitautexcusareautsuscipere”.

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exclusivo.Éesteoprincípiodanegaçãodapeculiaritasaomonge.Estefazvotoderenúnciaindividual,masnadaobstaaqueacomunidadeaquepertença seja, colectivamente considerada, uma instituição provida demeios de subsistência e depositária do património acumulado a partirdasdoaçõesindividuais.

Apartirdessemomento,omongesabequedeixoudeexercerolivrearbítrio,caindonapotestasdomosteiro.Forja‑se,assim,amesmaanalogiaque verificámos no c. 70 do IV Conc. Toletano, de 633: omonge, ou aconsagração religiosa, equipara‑se auma situação legal emque alguémcaiinpatrocinio,inpotestatedeumainstituição,sendooactoirreversível15.

Nãoéclarose,paraaRB,osmenoresoblatipassavampeloperíodoprobatório de um ano, mas pensamos que não. Este interregno estavadivididoemciclos,paraqueonoviçopudesseconfirmarasuavocação.Tratando‑sedemenores,seriamospaisaexerceroarbítrioporeles,ou,como indicia o início do cap. 59, seriam alvo de um acto único edefinitivodedoaçãoaomosteiro,como lavrar imediatodapetitio?Pelalógica,estespueriestavamdispensadosdoperíodoprobatório,dadonãoexercerem,pornãoterempoderparatal,odireitodeescolha16.

Finalmente, a RB fornece instruções para a vida quotidiana destesmais novos no mosteiro: que os adolescentes não durmam em camascontíguas,masmisturadoscomosmaisvelhos,dizocap.2217;quesejamcorrigidos, sobretudo, com jejuns e açoites, em vez de excomunhão,medida cujo alcance a sua fragilidade não pode entender (cap. 30)18; odispenseiro deve cuidar com zelo especial as crianças, tais como osdoentes,hóspedesepobres19;talcomoosidosos,ascriançasdevem,reco‑nhecidaasuafragilidade(considereturineisimbecillitas),comerantesdas________________

15 RB 58, ed. cit. 166 “res, si quas habet, aut eroget prius pauperibus aut factasollemniterdonationeconferatmonasterio,nihilsibireseruansexomnibus,quippequiexillodienecpropriicorporispotestatemsehabiturumscit”.

16 RB 59 ed. cit., p.167 “Si quis forte de nobilibus offerit filium suum Deo inmonasterio, (…) parentes eius faciant petitionem quam supra diximus…” Depreen‑demos que para os pueri minores aetate, o processo de adesão ao mosteiro sócomeçavanoactosolenedolavrardapetitio.

17RB22,op.cit.p.116adulescentioresfratres.18 RB 30, p.124 pueri uel adulescentiores aetate aut qui minus intellegere

possunt…19RB31,p.125…infirmorum,infantum,hospitum,pauperumque...

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horasregulamentares(cap.31)20;osqueseenganamnorecitardoofício,devem ser punidos, sobretudo se não manifestarem, imediatamente àfalta, o seu pesar (RB 45)21. Portanto, as crianças participavam activa‑mente no ofício, e estas eram disciplinadas pelo castigo físico, dadonão terem entendimento para a medida, considerada mais dura, deexcomunhão.

Nocap.63Deordinecongregatione,discute‑seahierarquianointeriordomosteiro,eS.Bentoébemexplícitoaafirmarqueoimportantenãoéaidade, quia Samuel etDanihel pueri presbyteros iudicauerunt, e sim a anti‑guidade da conversão.Nestamedida, dentro domosteiro estabelece‑seumahierarquiaetáriaartificialquepodenãocorresponderaumadistin‑ção cronológica objectiva, bem patente na escolha do vocabulário: osjovens – iuniores, isto é, osdemais recente conversão –devem respeitoaos mais velhos – priores isto é, os que se converteram primeiro aomosteiro–eestesdevemamarosmaisnovos.

Nasregrasde tratamentomútuo,osprioresdevemchamarosmaisnovosde fratres,eestesreservamparaosmaisantigoso títulodenonni“quod intellegitur paterna reuerentia”. Ao cruzarem‑se, os iuniores devempedirabençãodosmaisvelhos,devemcederoassentoaomaisvelhoqueacabade chegar, edevemaguardardomais antigo autorizaçãopara sesentar22.Nomesmocapítulopercebemoshaverumaordem,nooratórioeno refeitório, específicaparaospueri paruiuel adulescentes, edeve sobreeleshaverumavigilânciaedisciplinaatéqueatinjamaintellegibilemaeta‑tem.Umirmãomaisjovempodeaindaajudaroporteirodacomunidade(cap.66)23.

O cap. 70 define uma idade abaixo da qual os mais novos estãosujeitosaumadisciplinaminuciosaevigiada,acargode todososmais________________

20RB37,p.153tit.Desenibusuelinfantibus.21RB45,p.144infantes.22 Iunior e prior são divisões hierárquicas que não reflectem a idade

cronológica e sim a antiguidade da conversão. RB 63 p.173‑174 iuniores. Cf. ocap. 68,p. 183: seumsuperior (prior)ordenaralgo impossível aum iunior, estepode recorrer da ordem, mas se esta for confirmada, deve cumprir o deter‑minado. Também RB 71, p.184 (iunior) os de mais recente conversão (iuniores)devemobediênciaaosuperior imediato, istoé,oqueémaisantigonaprofissãomonástica(priores).

23RB66p.180iunioremfratrem.

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velhos.Esteéumaspectomuitoimportante,porquenospermiteentreverquer um limite concreto para aminoritas aetate, quer umamaior tutelasobreestesmenores.Enquantoomongemaiorsópodesercastigadoporum superior se o abade tiver conhecimento e autorizar, recomenda‑seapenas,apropósitodascrianças,quenãosepunacomexcesso,realida‑desque,aacontecer,seriamalvodeprocedimentodisciplinar24.

ARB reconhece,pois, adesigualdadedeestatutoparaosmenoresde15anos25:regrasdeentrada,acolhimentoquotidiano,ensino,normasderelacionamentocomosoutrosmonges,regimedetrabalho,disciplinaepuniçãosãodiversificadasdeacordocomageraçãoaqueomongeper‑tence. O cuidado posto no diferenciar das situações confirma‑nos, poroutro lado,queapresençadecriançasnosmosteirosbeneditinosoudeinspiraçãobeneditinaerafrequente.

3. Arealidadevisigóticaquantoàoblatiopuerorum:ocasoparticulardofrutuosianismoA oblatio puerorum nomundo visigótico passou por três fases dis‑

tintas,quesedistinguemporumprogressivoagravamentodosvínculosqueunemooblatoàinstituiçãoqueorecebeu.Nestesentido,alegislaçãoconcentra‑se em três aspectos: o estabelecimento de limites etáriosmínimos;oreconhecimentodolivrearbítrioouaconfirmaçãodopróprionuma idade posterior e, sobretudo, a irreversibilidade da vocação.

________________ 24RB70Vtnonpraesumatpassimaliquiscaedere,ed.cit.p.184“…utnulliliceat

quemquamfratrumsuorumexcommunicareautcaedere,nisicuipotestasababbatedatafuerit (...) infantum uero usque quindecim annorum aetates disciplinae diligentia abomnibusetcustodiasi;sedethoccumomnimensuraetratione.Naminfortioriaetatequipraesumit aliquatenus sine praecepto abbatis uel in ipsis infantibus sine discretioneexarcerit,disciplinaeregularisubiaceat,quiascriptumest:quodtibinonuisfieri,aliononfeceris”(Mt.7,12).

25 As regrasmonásticas hispânicas são, no geral, omissas quanto à idademínimapara estaoblação, epodemosmesmopresumirqueestanãoexistia, aocontrário da RCaesV 5 e a RAur 17: assim, a Regra de Cesário às Virgens, daprimeirametadedoséc.VI,determinaquenãoentremnomosteiromenoresdeseis ou de sete anos. A RAur escrita por volta de 545, estabelece que não seadmitamnomosteiromenoresdedezoudedozeanos.

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Apartirdoséc.VII,oequilíbriodestestrêsprincípiosaltera‑separaummaior rigor,nosentidodedispensaro livrearbítrioparaaconsagraçãoreligiosa,emesmoaautoridadeparental,comopontodepartidaparaaentrada de menores no mosteiro. Vejamos os textos que ilustram estaanálise:

Emmeadosdoséc.V,acartadoPapaLeãoMagnoaoBispoRústicodeNarbona – região nesta altura ainda pertencente aomundo políticovisigodo‑expõeocritériodalivredecisãoparaaentradanomosteiroeo carácter irrevogável do voto inicial, o que está conforme os usosocidentais:

“propositummonachi proprio arbitrio ac uoluntate susceptumdeseri nonpotestabsquepeccato.QuodenimquisuouitDeo,debetet reddere (Deut22,21;Ps.49,14).Vndequirelictasingularitatisprofessione,admilitiamuelad nuptias deuolutus est, publicae poenitentiae satisfactione purgandusest26Assim,oIIConc.deToledo,c.1,reunidoem527soboreinadode

Amalarico, é ainda fiel a este princípio da liberdade de escolha. Estecânone,intituladoDehisquosparentesabinfantiainclericatusofficiomanci‑parunt,siposteamuoluntatemhabentnubendi,possuiaparticularidadedemencionaraidadedeentradanavidareligiosa,osdezoitoanos:

Dehisquosuolumptasparentumaprimisinfantiaeannisclericatusofficiomanciparit, hoc statuimus obseruandum: ut mox detonsi uel ministerioelectorum contraditi fuerint in domo ecclesiae sub episcopali praesentia apraeposito sibi debeant erudiri; at ubi octauum decimum aetatis suaecompleuerint annum, coram totius cleri plebisque conspectu uolumptaseorumdeexpectendoconiugioprescrutetur(...)27

________________ 26PL54,Ep.167,12,12.Teriasidoescritaem458.Jáaplicadoàsmulheres,

temos omesmo princípio de livre escolha,mas a irreversibilidade da condiçãomonástica,mesmoseelaaindaestánumestadointermédioqueclassificaríamoscomosendode“votosprovisórios”(etsisiconsecrationonaccessit):puellae,quaenoncoactaeparentum imperio, sed spontaneo iudiciouirginitatispropositumatquehabitumsusceperunt,siposteanuptiaseligunt,praeuaricantur,etsisiconsecrationonaccessit...

27JOSÉVIVES,ConciliosVisigóticoseHispano‑romanos(CH)Barcelona‑Madrid,CSIC,1963.

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Osquequeriammanter‑senaIgreja,ascenderiamaosubdiaconadoaosvinteeumanos,eaodiaconadoaosvinteecinco.Paraosquedeseja‑vamcasar‑se,dizoc.1:

his autem quibus uolumptas propria interrogationis tempore desideriumnubendi persuaserit, concessam ab apostolis sententiam auferre nonpossumus...A legitimidade para a permissão do casamento, reclamada aos

dezoito anos, está, quantoanós, fundamentadana concessãodePaulo,na sua 1Cor 7, 6, cujo sentido é: “…melhor seria não se casarem.Masparaosquenão têmessa força,melhoré casarem‑sedoquecaíremempecado”.

Ainda neste âmbito, consideramos de muito relevo o c. 20 do IVConc.deToledode633,emquesereconhecequeocostumedeconsagrarcrianças ao sacerdócio, prática corrente na Igreja visigoda, não está deacordocomaleiveterotestamentária,queestabeleceidadesprecisasparao levirato, e para os diversos estádios de consagração28. Os trinta anossão, assim, a idade da ordenação de um presbítero, como será confir‑madopeloIVConc.deToledo,c.20.Era,noentantocompreendidoumperíododeformação,comoomesmoIVConc.deToledo,c.24atesta,apartir da adulescentia, servindo para a correcção dos costumes infirmesdosjovenseparaapreparação,teológicaepastoral,dasuamissão29.

________________ 28 J. VIVES, CH IV Conc Tol. C. 20 In uetere lege ab anno uicesimo et quinto

leuitae tabernaculoseruiremandantur,cuiusauctoritatemincanonibusetsanctipatressecutisunt.Nosetdiuinae legisetconciliorumpraeceptis inmemores infantesetpuerosleuitasfacimusantelegitimamaetatem,anteexperientiaeuitae:ideoqueneulteriusfiatanobis et diuinae legis et canonicis admonemus sententiis, sed a uiginti quinque annisaetatisleuitaeconsecrentur,etaXXXpresbyteresordinentur(Num.4,1‑3).

29 IV Conc. Tol “...Nihil enim incertius quam uita adolescentium; ob hocconstituendumoportuitutsiquiincleropuberesautadulescentesexistunt,omnesinunoconclaui atrii commorentur, ut lubricae aetatis annos non in luxuria sed in disciplinisecclesiasticisagantdeputariprobatissimiseniori,quemetmagistrumdoictrinaeettestemuitaehabeant.Obispoassume‑secomotutordosórfãosintegradosnestasescolasepiscopais“Quodsialiquiexhispupilliexistuntsacerdotalitutelafoueantur,utetuitaeoruma criminibus intacta sit, et res ab iniuria improborum.Quiautemhispraeceptisresultauerint, monasteriia deputentur, ut uagantes animi et superbi seueriori reguladistringantur”. Conc. de Narbona, c. 11, em 589, determinou‑se que ninguém

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Masseolivrearbítrioé,numaprimeirafasedalegislaçãocanónicavisigótica,concedidoefundamentadonasEscrituras,numasegundafase,eleédesvalorizado,ocarácterirrevogáveldaconsagraçãoébemvincado.Assim, no IVConc. neToledo, c. 49, em633, no reinadode Sisenando,sob presidência de Santo Isidoro, metropolitano de Sevilha, o livrearbítrio ou a determinação paterna têm idêntico valor na profissãomonástica:

Monachum aut paterna deuotio aut propria professio facit; quidquidhorum fuerit, alligatum tenebit: proinde eis ad mundum reuertiintercludimusaditum,etomnemadseculuminterdicimusregressum…

Oc.55desteConcílioestabeleceomesmoprincípiodairreversibili‑dade para toda a vocação religiosa. Os que abandonarem a profissãoreligiosa,serãojulgadoscomoanátemaseapóstatas:

Non aliter et hii qui detonsi a parentibus fuerint aut sponte sua amissisparentibus se ipsos religioni uouerunt, et postea habitus secularessumserunt,etidemasacerdotecomprehensiadcultumreligionisactapriuspoenitentia reuocentur; quod si reuerti non possunt, uere ut apostataeanathematissententiaesubiciantur…

Umavezalligati, o regressoao séculoestavaproibido.Destacamosas condições de entrada nomosteiro: esta pode acontecer por vontadeprópria,ouporpaternadeuotio, (tambémparaaordemclerical“detonsiaparentibus”)e,nafaltadestes(amissisparentibus),spontesua.OIVConc.deToledo de 633 não estabelece uma idade para se exercer o arbítrio, oupara se cumprir a determinação paterna. Na verdade, estes cânonespodem aplicar‑se a todos que estejam sob a potestas parentum, os filhosnãoemancipadosportanto.

O X Conc. de Toledo, presidido por Recesvinto e por Eugénio deToledo,em656,agravamaisestequadro.Oc.6desteConcílioprecisaasdeterminaçõesdoIVConc.Tol.,numadirecçãoqueinterpretamoscomo

________________ iletradosejaordenado.Maisconcretamente,noVIIIConc.deToledo,c.8,em653,se precisa que os encarregados dos ofícios devem conhecer o saltério, oEvangelho,oshinos,oscânticosusuaiseoritualdobaptismo.

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uma limitação ao poder parental, transferido para a Igreja ou para oEstado.

Vincando bem o carácter irreversível do laço religioso, o prólogodeste cânone assume que está a corrigir abusos de alguma indefiniçãolegal. Assim, se os pais tonsurarem os seus filhos ou lhes derem umhábito (isto é, se os consagrarem à vida religiosa), a condição religiosadesteséirrevogável.

Acrescenta,noentanto,umainquietantecláusulaque,atéagoranãotemsidointerpretadanasuadevidaimportância:seospais,responsáveislegaispelosseusfilhos,nãotomaremconhecimentodaocorrênciadessesactossimbólicosdeconsagraçãoàvidareligiosa,ousenãoadesejarem,têmumtempolimitadoparaseoporemostensivamenteaessaconsagra‑ção. Se os deixarem assumir, na igreja e diante de todos, o seu novoestado, este permanecerá irrevogável, ainda que tenha ocorrido semdeterminaçãopaterna:

Quoniam hucusque dissolutae operationis effectus interdummutare fecithonestae constitutionis editum, dum inconditer solui putatur quodindissolubile sancionis auctoritate tenetur (...) euidenter abici decet ut deceteronicilsupersitquodindubiumnutet(...)ideoque si in qualibetminori aetate uel religionis tonsuramuel religionidebitam uestem in utroque sexu filiis aut unus aut ambo parentesdederint, certe aut nolentibus uel nescientibus se susceptam, non moxuisaminfiliisabdicauerint,seduelcoramecclesiapalamqueinconuentueosdemfiliostaliahaberepermiserint,adsecularemreuertihabitumipsisfiliis quandoque penitus non licebit (...) sub aeterna districtione huiusceobseruantiaeobseruirecogantur.

Omesmocânoneconsagraolimitedos10anosparaoexercíciodadeuotioparentum.Depoisdessaidade,ojovemrespondeporsi.

Parentibus sane filios suos religioni contradere non amplius quamusqueaddecimumaetatiseorumannumlicentiapoteritesse,posteaueroancumuolumtateparentuman suaedeuotionis sit solitariumuotum,eritfiliislicitumreligionisadsumerecultum…

Àprimeiravista,estescânonessãomaisliberaisdoqueosanterio‑res,namedidaemquepermitemaomaiorde10anosoexercíciodalivreescolha,naopçãoporumaprofissãoquesetornaráirreversível.

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Nestareflexão,nãopesamosaduvidosapossibilidadedeumjovemde10anosexercercomconhecimentodecausaumdireitoque lheafec‑taráorestodavida.Masestaéumaavaliaçãoquepodemosfazercomosconhecimentosdehoje, quenãodevem ferirnem toldar a análisedestamudançaàluzdamentalidadedaépoca.

Na prática, o que está em causa é o facto de os pais só poderemimpediraconsagraçãodosseusfilhos,edentrodecircunstânciasmuitolimitativasparaoexercíciodessedireito,ouseja,enquantoelestivessemmenosde10anos.

Este contexto de limitação do poder parental teria sido aplicadonummomentodeinstabilidadesocialepolíticaqueafectou,emgeral,osanos finais do mundo visigodo: Alguns pais revoltar‑se‑iam contra osmosteiros, reclamando o retorno dos seus filhos à vida secular, com oargumentodafaltadeconsentimentooudeconhecimentoparaaconsa‑graçãoreligiosa,oupormotivospatrimoniais.

Estecontextosocialperturbado,emqueossecularesinvestemcon‑traosmosteiros,reclamandopessoasebensanteriormentecedidos,surgebemdocumentadonasregrasvisigóticasmaistardias,concretamentenaRegulaMonasticaCommunisenaRegulaConsensoriaMonachorum30.________________

30RMC1,PL87col.1111“Etquiasuoarbitriovivunt,nulliseniorumvoluntessesubjecti, et nil de propria substantia pauperibus erogant, sed adhuc aliena, quasipauperes,raperefestinant,utcumuxoribusetfiliisplusquamcuminsaeculoerantlucraconquirant. Et haec faciendo perditione animarum non curant, ut non animarum, sedcorporum plus quam seculares homines emolumenta habeant, et pro suis pignoribusmore luporum doleant, et de die in diem non retroacta peccata plangant; sed cumscandalo semper studio rapacitatis anhelant; etnondepoena futuracogitant,sedundeuxoreset filiospascant,acriusanxiantur; etcumipsisvicinis,cumquibuspriussecum juramentis ligaverant, pro hoc tepefacti cum grandi jurgio et discrimine se abinvicem separant; et res quas ante per imaginariam charitatem expendendascommunitermiscuerant,nonjamsimpliciter,sedcumexprobrationeunusalteriraptat.(...)RMC18,col.1125“Comperimusperminuscautamonasteriaquicumfacultaticulissuisingressisuntposteatepefactoscum,grandiexprobrationerepetereetsaeculum,quodreliquerant, ut canes ad vomitum revocare: et cum suis propinquis quod monasteriocontuleranthocextorquere,etiudicessaecularesrequirere,etcumsenioribusmonasteriadissipare,etperunumnegligentemmultossimplicesdeturbatosvidemusesse...”;RCM4,PL 66, col. 995 “Sed si contigerit ut aliquis ex qualibet causa necessitatis amonasterio fuerit abstractus, ne uel mente concipiat secum aliquid ferre de hisomnibusquaeinmonasteriofuerint;siueetiamquaesecumaliquandoattulerat”;RCM7

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Oscânonesde656clarificamoslimitesparaaintervençãodoslaicosnomosteiro,econtribuemparaumreforçodaautoridadedomosteiro,edaIgrejaemgeral,sobreoelementosocial.Considerandoqueoscânonesconciliaresreflectemtambémavontadepolíticadospríncipes,esteendu‑recimento da legislação coincide com a resposta política visigoda, quenesta altura limitou a liberdade individual, endureceu o código penalcomo instrumento de estabilização social, promovendo uma concentra‑ção de recursos económicos, face a uma realidade social, demográfica,económicaepolíticadecrise.Nestesentido,osmosteiros,talcomaIgrejavisigótica,convergemcomoEstadonoreforçodoseuascendentesobreoscidadãos.

Enãodeixadesercuriosoomodocomoasregrasmonásticasvisi‑godas, aplicadas no âmbito restrito da população monástica, acompa‑nham esta progressiva tendência de fixar precocemente a população,vinculando‑apermanentementeaumainstituição.

Assim,naRegradeSantoIsidoro,escritaemmeadosde620,épos‑sívelatestarapresençadecriançasnomosteiro,semqueestassejam,noentanto,alvodeumtratamentodiferenciado,oudemedidasespecíficasexplicitada comoníveldedetalhepresentenaRB,por exemplo,que jádescrevemos.Dir‑se‑iaqueeraumasituaçãodeiure,potencial,masnãodefacto,ouseja,comescassapresençanosmosteirossevilhanos,atalpontoresidual que não seria fundamental regulamentar o quotidiano destesminores aetate: as excepções são o cap. 20, em que nenhum abade oumongepodealienarapropriedadedomosteiro,etudooqueestereceberemdoação,serápublicamentedivididopelasnecessidadesdomosteiroepara a assistência dos indigentes31. Entre as necessidades do mosteiro,

________________

“Si uero, ut fieri solet, incursio repentina supervenerit aut hostilitas, utimpossibile sit fratribus in unum fugam petere, propter insectationem inimicorum, etpostmodumDeo favente evaserint, etpotuerintpervenireubi abbatemesse cognoverint,uelutfiliiadpatremfestinaredebebunt.”

31 RI 20, (ReglasMonásticas de la España visigoda, J. CAMPOS E I. ROCA eds,BAC,Madrid,1971,p.119)“Abbatiuelmonachomonasterii seruumnon liceat facereliberum.Quienimnihilpropriumhabetlibertatemreialienaedarenondebet.Namsicutetsaeculilegessanxerunt,nonpotestalienaripossessionisiapropriodomino,itaetomnequod in monasterio in nummo ingreditur sub testimonio seniorum accipiendum (…)tertia pro uestimento fratrum et puerorum uel quibusque ad necessitatemmonasteriicoemendis(…)»

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mencionam‑seasvesteseospueri,quedevemsercuidados.Tambémnocap.17Deexcommunicatis,sedetermina,comojáaconteceranaRB,queosmenoresnãodevemserexcomungados,e simreprimidoscomaçoites32.Entreosdelitospossíveisnomosteiro(cap.17)nomeiodosgrauioresestáapuniçãoaomongeque“cumparuuloiocauerit,riserituelosculatusfuerit”.

Jáostextosdematrizfrutuosiana,maistardiosdoqueaRI,sãomaisprecisosquantoàvidadosmenoresnomosteiro.Nestamatrizincluímos,comoéevidente,otextointerpoladonaversãolongadaRIquecitámosno iníciodesteartigo,emqueseapresentauma justificaçãoveterotesta‑mentária(adoaçãodeSamuelporAna)paraumapráticanova,oupelomenosreforçada,queeraadapresençasignificativademenoresnointe‑riordosmosteiros.

ARF,datadadecercade640,isentaosiunioresdotrabalhoobrigató‑riodepoisdahoranona,determinandoparaelesapermanêncianassuasdecanias,atentosàleituraeàrecitação.Estassessõestinhamoobjectivode formaro jovemmonge:“iunioresquoquesuos iugiterdecani illi commo‑neant,nealiquanegligentiadecidant,seduirosspiritalesetsanctos illissemperinexemploproferant,utillorumcontemplationeassidueadmelioraproficiant”.Aindaquemantenhamosparaestesiunioresomesmosentidoqueidenti‑ficámosnaRB,istoé,osnoviços,ouderecenteconversão,nãoseráincor‑recto julgarque estes seriam,na suamaioria,nãoadultos, aptospara aedificação espiritual e a formação teológica33. Tanto que, para os queatingiramamaturidade,aaetasperfecta(istoé,os30anosdeidade),apósarefeiçãodahoranona,aRFestabelecequepermaneçamnassuascelas,emmeditaçãoounodesempenhodeumtrabalhomanual.

Cumpre‑se,pois,adisciplinamonásticaquereservaparaos“madu‑rosnafé”odireitodeteremumacela,emvezdepartilharemodormitó‑riocomum.Há,assim,umsentidodedistinçãoetária:depoisdarefeição,os iuniores sigamparaassessionesdeedificação,eosseniores fiquememmeditação.

________________

32 RI 18, p.116 “In minore uero aetate constituti non coercendi sententiaexcommunicationis,sedproqualitateneglegentiaecongruisadfligendisuntplagis,utquosaetatisinfirmitasaculpanonreuocatflagelladisciplinacompescat”.

33 RF 5De operatione, ed. cit. p.143‑144. Nomesmo capítulo se determinapara os mais velhos “hi quorum aetas perfecta est et conscientia pura, meditentureloquiaDomini,uelopusquodlibetintracellulaminiunctumexercentes”.

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ARF contempla também,no seupenitencial, umapunição especí‑ficacontraomongeabusadordosmaisnovos.Esteexcerto, retiradodocap.16,nãosónãotemprecedentesnaliteraturaregularmonástica,comoteráumgrandeimpactonacanonísticamedievalposterior.Encontramo‑‑locitadoemEgbertodeYorkeemIvodeChartres.Tambémosautorescarolíngios Bento de Aniane e Esmaragdo citaram o passo nas suasobras34. A puniçãomais severa de todas recai sobre os culpados destecrime:decalvação,sujeiçãoàhumilhaçãopública,privaçãodeliberdadeepresocomcadeiasduranteseismeses,regimedepãoeágua,fornecidosapenas três vezes por semana. A gravidade da punição prolongava‑seportodaavida,poisapósaliberdadeprovisória,seguia‑seoperíodoemqueoprevaricadorseriasemprevigiado,impedidodeseaproximardosmaisnovos35.AgravidadedesteaspectonaRFmostraapresençadegera‑çõesdiferentesemcoexistêncianosmosteirosfrutuosianos,oúnicocon‑textoquepoderiadespoletarasituaçãodeabusosexualsobreosmaisnovosaumadimensãoqueimpusesseumadeterminaçãoescritasobreoassunto.

ARegulaMonasticaCommunis,(RMC)escritacercade20anosapósaRF,constituindoumarevisãocontextualizadadoespíritomonásticofru‑tuosiano, inaugurou uma abordagem pragmática sobre a presença depueri nomosteiro, e acusa a aplicaçãoplenados cânones aprovadosnoConcílio de Toledo celebrado em 656: temos, no mosteiro, crianças detenra idade eximidas à autoridade paterna, que podem, no entanto,________________

34EgbertodeYork,ExcerptionesPL67,32col.388.YvodeChartresDecretum9,93,PLcol.682.BentodeAniane,ConcordiaRegularum32,3,CCELSL158‑158A,P. BONNERUE ed. Brepols, Turnhout, 1999, t. 2, p.282; Esmaragdo, Expositio inregulamSanctiBenedicti,25,PL,col.850.

35RF15,ed.cit.p.154“Monachusparuulorumetadolescentiumconsectator,uelquiosculouelqualibetoccasioneturpicomprehensusfuerit,iniurecomprobatapatenter ab accusatoribus uerissimis siue testibus causa, publice uerberetur. Coronamcapitis quam gestat amittat, decaluatusque turpiter opprobrio pateat, omniumquesputamentis oblinitus in facie, probra aeque suscipiat, uinculisque arctatus ferreis,carceralisexmensibusangustiamaceretur.Ettriduanaperebdomadassingulasrefectionepanisexiguihordeaceiuespertinotemporesubleuetur.Postdeinde,expletishismensibus,aliis sexmensibus succedentibus sub senioris spiritalis custodia, segregata in corticuladegensoperamanuumetorationecontinuasitcontentus.Vigiliisetfletibusethumilitatesubiectus et paenitentiis lamentisque ueniam percipiat, et sub custodia semper etsollicitudineduorumspiritaliumfratruminmonasterioambulet,nullapriuatalocutioneuelconciliodeincepsiuuenibusconiungendus.”

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ocupar temporariamente, como hóspedes e peregrinos, o espaço nomosteiro.

Na flexibilidade que caracteriza este texto singular, a entrada decriançasfaz‑senacompanhiadassuasfamílias,eoprocessodesegrega‑çãoentreospaissobatuteladomosteiro,quepassamavivermonasticomodo, e os filii paruuli, id est infra septem anni, começa já no interior domosteiro36.

Cumuenerit quispiam cumuxoreuel filiis paruulis, id est infra septemannos (...) tam parentes quam filii in potestatem se tradant abbatis (...)primum nullam corporis sui potestatem habeant, neque de cibo autindumento recogitent. (...) sed tamquamhospites et peregrini, subiecti inmonasteriouiuantOs pais prosseguiam nomosteiro uma vida de piedade na quali‑

dadedeconversos.OmonaquismodescritonaRMCadoptaummodelosocial de extrema variedade, e acusa interacção com o meio secularenvolvente: hóspedes, peregrinos, doentes são acolhidos no mosteirodesde tempos imemoriais, e, neste aspecto, a RMC não foge à tradiçãomonástica. Mas penitentes da justiça secular37; cativos redimidos aexpensasdomosteiro38; idosos cujaúnicamotivaçãoparao ingressonomosteiro é a fragilidade incapacitante da velhice e omedo damorte39;homensemulheres,algunsanteriormenteunidospelolaçodomatrimó‑nio,dispostosaintegraromosteiro,vivendoemespaçosseparados,comapartilhadeumoratório40,sãomanifestaçõesdeummonacatodevoca‑

________________ 36 RMC 6, P. BARATA DIAS, Regula Monastica Communis ou Exhortatio ad

Monachos?,Problemática,tradução,comentário,Colibri,Lisboa,1998,p.148.37 RMC 19, tit.Quid in monasterio debeant obseruare, qui peccata grauiora in

saeculocommiserint,p.160.38RMC9,p.151“…inderedimunturcaptiui”.39 RMC 8, p.149 “...Solent plerique nouicii senes uenire ad monasterium, et

multos ex his cognoscimus necessitatis imbecillitate polliceri pactum,, non obreligionis obtentum...” Num registo muito realista, a RMC observa que estesnoviçosdeidadeavançadatêmdificuldadeemabhorrereconsuetudinespristinos,eemaceitaradisciplinamonástica,feitadesilêncioedeobediência.Sobreelesrecai,poisumagravevigilância,paraqueregressemàpiamiserationesicutinfantulos.

40 RMC 15‑17Qualiter monasteria uirorum ac puellarum se custodire debeant,p.157‑158

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Paruuli uel adulescentes nos mosteiros visigóticos frutuosianos

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ção assistencial, socialmente poroso. De facto, o mosteiro visigóticoretratadonaRMCexercefunçõesdeserviçopúblico,umainstituiçãoqueé, simultaneamente,hospício,hospedaria, escolade iniciação religiosaemonástica (para osmais novos, sobretudo), casade correcção emesmoprisão.

O cap. 9 da RMC, ao justificar a necessidade da pastorícia comoactividade fundamentaldomosteiro, ilustrabemesseprincípio.Osqueestavam encarregados desta actividade caíam frequentemente emmur‑múrios, porquenão cumpriamopreceitodapermanência, emoração etrabalho, no interior do mosteiro. Eram maioritariamente os noviços,acolitados de paruuli, que estavam encarregados desta tarefa, presumi‑mos que pela natural robustez física41. Com espírito prático, justifica aRMC a importância da pastorícia como fonte de rendimentos para acomunidade:

Quia exinde non unam, sed multas consecuntur mercedes: inde susten‑tantur infirmi, inde recreantur paruuli, inde fouentur senes, inderedimunturcaptiui,indesuscipiunturhospitesetperegrini42Osfilhosdestescasaishospitesetperegriniintegravamomosteirona

qualidadedefuturosmonges,constituindoesteprocedimentoumaformade promover o crescimento da comunidade monástica especificamenteconsiderada.Assimascrianças infra septemanni acompanhavamospaisdeperto.Nestaidadetãoprecoce,aRMCconcedequeestesmantenhamoconvíviocomosseusprogenitores:

illos tamenparuulosquosadhuc increpundiauidemus tenerulos,proptermisericordiam, concessam habeant licentiam, quando uoluerint, adpatrem aut ad matrem pergant. Ne fortasse parentes, pro ipsis, in uitiomurmurationiscadant,quiasoletproeisgrandisinmonasteriomurmuratioeuenire. Sed inter utrosque foueantur, quousque quantulumcumqueregulamcognoscant,etsemperinstruantur,utsiuesintpuerisiuepuellaemonasterioprouocentur,ubihabitarefuturieruntEstes jovens,meninosemeninas,seguiamumprogramadeinstru‑

çãonaregradomosteiroede formaçãoéticaemoral,acargodospais,________________

41RMC9,p.151“sedetparuuliperuicissitudineseidenturiuniores,cumquibusferrepossitipsumlaborem...”

42RMC9,p.151.

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numafasemaisprecocee,maistarde,integradosemdecanias,acargodeseudecano:

Ceterumuerosicinstruanturutabsquebenedictioneetimperionihilinoresuomitteredebeant,quiinfantessuumhabeantdecanumquiplusdeeisintellegit,utregulamsupereosobseruetetabeosemperadmoneantur,nealiquidabsqueregulafaciantautloquantur,autcerteinmendacio,furto,uel periurio deprehantur. Quodsi in aliquo quae diximus deprehensifuerint,continuoabipsosuodecanouirgaemendenturÉ‑lhestambémconcedidoumregimedealimentaçãoespecial,bem

mais tolerante do que o que cabe aos monges43, cuidados de higienesuplementares, actividades quotidianas a cargo de um cellararius, umtutorouumnutritor,queconduzosseuspupilosparaasantidadeelhesensina os princípios da fé. Estes pueruli eram educados para a vidamonástica,edairreversibilidadedaprofissãojulgamosnãohaverespaçoparadúvida44.

Etqualiteripsiinfantesinmonasterionutrianturplanamostendimusuiam,(...)Eligaturcellarariusbonaepatientiaeprobatusquemcommuniselegeritconlatio et abomni excuseturmonasteri seruitio et coquinaeofficio, itautsemper cellarium teneat propter ipsos paruulos, senes, infirmos, uelhospites; et si maior fuerit congregatio, iunior ei detur pro ipso seruitiodiscurrendo qualiter ipsi infantes ab ipsius imperio ad horas congruascopulenturet accipiat alimentum.AsanctoPaschausqueoctauokalendas

________________ 43SegundoaRF17,p.156,aúnicarefeiçãooscilavaentreashorassextae

nona,conformeoperíododosjejunscanónicos.44MAYKEDE JONG,op.cit.p.43sobreadiversidadedepropostasdaRMC

“Husbands,wifes and childrenwere to livehas guests andpilgrims, subject tothe rules of the community”. Os adultos não eram obrigados, mas as criançasestavam votadas a permanecer no mosteiro. Durante o período preparatório,podiammanterligaçãocomosseuspais.Issodecorriaatéaosseteanos.ARFnãotemnenhumcapítuloequivalenteaestedaRMC,masapresençadecriançasedejovens no mosteiro é previsível, quer pelo facto de estes terem um decanoresponsávelpelasuaeducação,“colégio”queisentaos iunioresdedeterminadastarefas,RF5Deoperatione“iunioresuero coramsuis residentesdecani lectioniuelrecitationiuacent(...)iunioresquoquesuosiugiterdecaniillicommoneanturneinaliquanegligentia decidant, sed uiros spiritales et sanctos illis semper in exemplo proferat”;querpelapuniçãocontraosabusadoresdosmaisnovos(RMC15).

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Octobris,manducentper singulosdies quatuoruices.Aboctauokalendasoctobris usque ad kalendas Decembris, tres uices. A kalendas Decembrisusque ad sanctum Paschha, in potestate sit ipsius cellararii. (...) Et ipsecellararius eispedes etuestimenta lauet et qualiter in sanctitateproficiantcum omni intentione edoceat, ut a Domino plenam remunerationemaccipiatetVeritatisPraeceptadicentisaudiat,quiait:‑Siniteparuulosuenireadme,neprohibeatiseos,taliumestenimregnumcaelorum(Mc.10,1).Emacordo comasdisposições conciliares, verificamosqueaRMC

representa o culminar do reconhecimento da importância dos efectivosjuvenisnomosteiro,epor issoestessãoalvodecuidadosespeciaisquevisamasuasaúde,educaçãoecrescimentoespiritualcomomonges.

Os mosteiros frutuosianos estavam conscientes das vantagens daentradaprecocenomosteiro:umabandonoprecocedoséculo,umaedu‑cação modelada de acordo com os princípios da vida monástica, umaforça de trabalho saudável e produtiva, uma legislação canónica e civilquelimitavaosconflitospatrimoniaiscomosfamiliaresseculares,seriamestes os factores que favoreceriam a presença de jovens no interior domosteiroeo sucessodestes como instituiçãodeguarida, inseridanumarealidade social e política instável, como foi a dos anos finais do reinovisigóticodeToledo.

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