3
Passado negro Daiane Holdefer, reportagem e fotografia. Moradoras da zona rural, negras quilombolas guardam a história de uma comunidade Ela tem nome de flor. Mas, ao contrário da flor, que é branca, ela é negra. Negra como o chão da casa onde vive com os cinco filhos, nas terras distantes do quilombo Quadra da Palma, em Encruzilhada do Sul. Há anos, negros remanescentes de escravos procuraram refúgio no local, que hoje abriga quatro famílias. Dentre os que ali chegaram, estava a mãe dela. Nascida e criada na terra negra do quilombo, Margarida Machado Castilhos, 76 anos, não conheceu o pai. Com um sorriso banguela, suas gargalhadas abafam as lembranças tristes da infância e cicatrizam as feridas da época em que andava de uma casa para outra lavando, var rendo, cozinhando. “Trabalhei desde criança fazendo faxina nas casas, para ajudar a minha mãe. Quase não brinquei.” Ela, que foi conhecer as letras do alfabeto depois de velha. Queria ser pediatra. “Desejava ser médica para cuidar das crianças”, conta. Da soleira da janela, a quilombola descobre que o tempo passou rápido demais. De repente ficou adulta, casou, teve filhos e continuou lá, na mesma casa de chão batido. A vida inteira no mesmo local. Margarida perdeu o marido quando a filha caçula Nalzira ainda era bebê. Sem a companhia do pai das crianças, ela precisou trabalhar ainda mais. Foram anos respigando arroz nas lavouras. “Como era longe o trabalho, eu chegava só de noite em casa. Tinha que deixar as crianças na casa de alguém”. Ao pé

Passado Negro

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Reportagem produzida para a disciplina de Produção em Mídia Impressa.

Citation preview

Page 1: Passado Negro

Passado negro

Daiane Holdefer, reportagem e fotografia.

Moradoras da zona rural, negras quilombolas guardam a história de uma

comunidade

Ela tem nome de flor. Mas, ao contrário da flor, que é branca, ela é negra.

Negra como o chão da casa onde vive com os cinco filhos, nas terras distantes

do quilombo Quadra da Palma, em Encruzilhada do Sul. Há anos, negros

remanescentes de escravos procuraram refúgio no local, que hoje abriga

quatro famílias. Dentre os que ali chegaram, estava a mãe dela.

Nascida e criada na terra negra do quilombo, Margarida Machado Castilhos, 76

anos, não conheceu o pai. Com um sorriso banguela, suas gargalhadas

abafam as lembranças tristes da infância e cicatrizam as feridas da época em

que andava de uma casa para outra lavando, varrendo, cozinhando. “Trabalhei

desde criança fazendo faxina nas casas, para ajudar a minha mãe. Quase não

brinquei.”

Ela, que foi conhecer as letras do alfabeto depois de velha. Queria ser pediatra.

“Desejava ser médica para cuidar das crianças”, conta. Da soleira da janela, a

quilombola descobre que o tempo passou rápido demais. De repente ficou

adulta, casou, teve filhos e continuou lá, na mesma casa de chão batido. A vida

inteira no mesmo local.

Margarida perdeu o marido quando a filha caçula Nalzira ainda era bebê. Sem

a companhia do pai das crianças, ela precisou trabalhar ainda mais. Foram

anos respigando arroz nas lavouras. “Como era longe o trabalho, eu chegava

só de noite em casa. Tinha que deixar as crianças na casa de alguém”. Ao pé

Page 2: Passado Negro

do fogão à lenha vermelho, a negra lembra-se do prato preferido da infância, a

canjica.

Diante de sua casa, a sorridente Margarida viu quase todo o povo do quilombo

ir embora. Há muito ela só vê os sobrinhos pelos retratos que ficam na mesinha

de madeira, ao lado do fogão. Mas a quilombola resistiu e ficou, assim como a

energia elétrica resistiu, mas chegou. Lá se vão quase três anos que o

candeeiro e as velas foram abandonados de vez.

As mãos da negra, que tanto deu lucros ao patrão, hoje descansam. Afinal, já

estão calejadas demais. Margarida gosta mesmo é de remendar as

lembranças, de costurar o tempo com retalhos de saudade. Tempo em que os

filhos eram crianças e ela mesma fazia as roupas que vestiam. “Aproveitava os

pedaços de pano e costurava as camisas que elas usavam no colégio”, diz

orgulhosa.

As lembranças e a saudade estão espalhadas pelo quintal, onde ciscam

galinhas e pintinhos. Todo dia, ao acordar, Margarida joga milho aos animais e

recorda que adora viver ali, na casa simples, que criou os cinco filhos. O desejo

dela é morrer na terra negra do quilombo, que lhe acolheu quando criança.

Aos 70 anos, Elza Barbosa, única irmã viva de Margarida, mora sozinha em

uma casa de dois cômodos, também no quilombo Quadra da Palma. Viúva,

mãe de uma filha e avó de três netos, toma chimarrão todos os dias, sempre às

10 horas. Uma cerca de arame e algumas árvores separam as casas das duas

irmãs. Elza, uma mulher de riso fácil, acorda bem cedinho, pela manhã, para

cuidar da plantação de mandioca. Desde criança trabalhou na roça. Cortava

trigo, respigava arroz e milho. “Eu trabalhava para ganhar dinheiro, graxa e um

saco de arroz. Uma patroa minha, dona Roni, essa pagava bem”, conta.

Elza lembra que as brincadeiras, na infância, eram improvisadas. Como não

tinham dinheiro para comprar brinquedos, as roupas viravam bonecas. “A gente

enrolava uma blusa, dava um nó ali, outro aqui e surgia o corpo de uma

boneca. Aí a gente brincava assim.” Foi no colégio, mas não conseguiu

aprender a escrever sequer o próprio nome. O que importava mesmo era

trabalhar, e foi isso que ela fez. Trabalhou nas lavouras igual homem, ou até

Page 3: Passado Negro

mais. Durona, não perde para qualquer um na enxada. “Hoje em dia a negrada

nova fica falando que faz isso, faz aquilo, mas eu dou uma surra neles no

serviço”, afirma.

Assim como Margarida, Elza nasceu e se criou nas terras do quilombo. Com

uma vida sofrida, o que mais temeu foi não ter saúde para trabalhar. Há pouco

largou o cigarro porque andava muito magra. Ficou com medo de morrer e

deixar as terras distantes do quilombo que tanto ama.