Julho/Agosto/Setembro 2000

Artigo de Opinião / Opinion Article

OS NOVOS HORIZONTES DA GASTRENTEROLOGIA 165

OS NOVOS HORIZONTES DA GASTRENTEROLOGIA

DINIZ DE FREITAS (1)

GE - Jornal Português de Gastrenterologia 2000, 7: 165-168

Numa época de fascinante progresso técnico-científico,de iniludível metamorfose no padrão epidemiológico dapatologia e de profundas mutações sociais, económicase políticas, a Gastrenterologia terá de confrontar-se, emprazo breve, com cenários e desafios que tenderão aquestionar a sua essencialidade e a sacudir as fronteirasda sua identidade,Há indicadores de mudança que não podem ser ignora-dos ou escamoteados. Os Gastrenterologistas em geral, enomeadamente os seus Órgãos representativos, vão sersolicitados a reflectir sobre os vectores fundamentais queinfluenciarão o seu futuro, e a elaborar, atempada e luci-damente, as estratégias adequadas no sentido de sustentare consagrar, de forma inequívoca, a indispensabilidade daGastrenterologia nos sistemas de cuidados de saúde.Em minha opinião, são quatro os vectores nucleares quevão demarcar os novos horizontes da Gastrenterologia, esobre os quais tentarei discorrer, em sinopse, sublinhan-do os seus traços essenciais:

A. ALTERAÇÃO NOS PADRÕES DASAÚDE DIGESTIVA

Com base nos indicadores e tendências recentemente

reportados pela '?'>..mericanDigestive Health Foundation"(1998), o padrão epidemiológico das doenças digestivasvai alterar-se de forma sensível, num futuro próximo,com consequente rebate na complexa dinâmica dobinómio procura/oferta.As principais notas epidemiológicas a sublinhar são:. Cerca de 30% da população dos países desenvolvidos

(I) Professor Catedrático de Gastrenterologia. Director do Serviço deGastrenterologia dos Hospitais da Universidade de Coimbra.

Recebido para publicação: 07/08/2000

Aceite para publicação: 29/08/2000

apresenta queixas digestivas anuais, e computa-se em12% a cifra de doentes internados com problemas

gastrenterológicos. De acordo com as projecções do"National Center for Health Statistics" dos Estados

Unidos da América, a prevalência de doentes com

patologia digestiva tenderá a aumentar;. A próxima década testemunhará um substancialincremento nas afecções crónicas e uma incidênciacrescente de neoplasias digestivas, em parte decor-rente do aumento médio de vida;. Terá tendência a crescer a prevalência de situaçõesclínicas de cariz comportamental, preponderante-mente o alcoolismo, a obesidade e os distúrbios nutri-cionais;. Embora se aceite um declínio nas doenças veiculadas

pelos alimentos, subsistem riscos apreciáveis detransmissão de enfermidades pela água;. No âmbito das valências da Gastrenterologia, aHepatologia constitui o sector onde a procura decuidados mais se acentuará, sobretudo porque conti-nuam a aumentar a incidência e a prevalência dahepatite crónica, da cirrose e do carcinoma hepato-celular.

Decorrente deste previsível cenário epidemiológico,adverte a "American Digestive Health Foundation" quetestemunharemos uma procura crescente de serviçosespecializados, mormente no âmbito do ambulatório.Em consequência, os custos directos dos cuidados nocontexto da saúde digestiva tenderão a aumentar, pre-vendo-se no entanto uma quebra nos custos indirectos(por exemplo, redução do absentismo e melhoria daqualidade de vida dos doentes). Por outro lado, conti-nuaremos a testemunhar uma discrepância entre os quenecessitam de cuidados especializados do foro digesti-vo, e os que efectivamente procuram esses cuidados.Essa divergência tem a ver, sobretudo, com razões deordem cultural ou económica, com desequilíbrios na dis-

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tribuição geográfica dos Serviços, e com carências derecursostécnicos e humanos.Perante um cenário epidemiológico assim tipificado,comproblemas clínicos de crescente complexidade, quesuscitarão um incremento na procura de cuidados,emerge uma interrogação crucial: quem vai propor-cionar às populações o atendimento especializado napraxis gastrenterológica? Tentaremos responder a esteimportante quesito na parte final desta exposição, apósuma análise dos demais vectores que em nosso entendercontribuirão para modelar o futuro da especialidade.

B. ACELERAÇÃO NA DESCOBERTAE DIFUSÃO DO CONHECIMENTO

A prodigiosa revolução científica e tecnológica quetemos vindo a testemunhar e a prelibar, vai contribuir, deforma assinalável, para a recriação de novos horizontesno domínio da Gastrenterologia. A endoscopia digestivaé uma das áreas onde as novas tecnologias disponíveisou emergentes vão revolucionar as metodologias dediagnóstico e as intervenções terapêuticas.É óbvio que se assiste igualmente, em especialidadesafins, como a Imagiologia e a Cirurgia, a progressos tec-nológicos de tal forma espectaculares, que representa-riam, para muitos, uma séria ameaça à projecção actualda endoscopia digestiva. Trata-se de uma convicçãoinconsistente e falaciosa. Quem acompanha atentamenteo avanço tecno-científico no campo da endoscopiadigestiva, facilmente conclui que as conquistas e ino-vações já consagradas ou emergentes, são verdadeira-mente revolucionárias. Não há que recear, por isso, oconfronto e a competição com outras áreas tecnológicas.Todas terão, evidentemente, o seu lugar e a sua indicaçãona prática clínica, cada vez mais dependente da comple-mentaridade de metodologias e da multidisciplinaridade.Importa entretanto vincar que a inovação e a difusão detecnologias endoscópicas crescentemente sofisticadas elaboriosas, reclamam exigências de formação de talapuro, que vão obrigar, necessariamente, a uma profun-da reflexão sobre o actual programa curricular da espe-cialização em Gastrenterologia. Prevejo que a prática daendoscopia digestiva terá, no futuro, vários patamaresde exigência curricular. A aquisição de competências emcertos domínios, designadamente no campo da endos-copia terapêutica, impõe uma preparação sumamenteespecializada, que ultrapassa os cânones actualmenteconsagrados no Curriculum da especialidade.A Gastrenterologia nacional deve estar atenta aos

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enormes progressos testemunhados no campo da endos-copia digestiva, mas nao só. De facto, a aceleração doconhecimento noutras áreas, obriga a procurar incorpo-rar, na formação e na praxis gastrenterológica, todos osavanços científicos e técnicos que se vão certificando,nomeadamente no âmbito da aplicação de testes nãoinvasivos de prevenção/rastreio, de metodologias oriun-das da engenharia genética e proteica, da nanotecnolo-gia, da informática e da robótica.Se desejamos que a nossa especialidade se tome cadavez mais fecunda e imprescindível, temos de ser cadavez mais competentes, criativos e pioneiros. Mas tam-bém mais exigentes, sobretudo no tocante à criação decondições que garantam ao doente do foro digestivouma assistência clínica baseada na autoridade e no rigorcientífico, na competência especializada e em apuradoadestramento técnico. Volta a colocar-se aqui a questãocrucial: quem deve assistir, preferencialmente, os doen-tes que padecem de doenças do foro digestivo?

C. PERFIL DO DOENTE E DO PRESTADOR

NAS PRÓXIMAS GERAÇÕES

Os futuros horizontes da Gastrenterologia serão tambémcondicionados por um terceiro vector: o perfil do doentee do prestador.Relativamente ao perfil do doente das próximas ge-rações, a investigação psicográfica tem procurado carac-terizar os seus traços gerais, que seriam os seguintes:. Mercê do acesso às tecnologias de informação, os

doentes serão, em geral, mais cultos e estarão maisactualizados e informados relativamente aos proble-mas da saúde. Serão mais idealistas e exigentes,encarecendo a perspectiva holística do indivíduosaudável ou doente, repudiando as burocracias e oscontrolos estatais ou privados, aspirando à optimiza-ção da qualidade de vida, privilegiando a prevenção ea promoção da saúde, e reclamando os direitos dodoente, designadamente no que respeita à opção pelalivre escolha do médico e a uma maior participaçãonas decisões sobre cuidados terapêuticos.. Graças à informação que tentam colher antes da con-sulta médica, e às garantias que reclamam no âmbitoda liberdade e da responsabilidade individual, ten-derão a privilegiar os sistemas de cuidados que viabi-lizem o acesso mais directo ao especialista reputado,dispensando a interferência do "gatekeeper".

. Ainda com base na pesquisa informática, o doentedas próximas gerações tenderá cada vez mais a auto-

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-medicar-se, ou a recorrer a medicinas alternativas,eventualmente em associação com a medicina alo-pática.. Por outro lado, importa sublinhar que o aumentomédio da vida influenciará os padrões epidemiológi-cos das doenças, e representa um factor que pesará,de forma sensível, na procura de prestação de cuida-dos, e dos seus custos.

Se se prevêm alterações significativas no perfil dodoente das gerações vindouras, admite-se igualmenteque a explosão biomédica do conhecimento, combinadacom o acesso universal à informação, vão determinar aocorrência de mudança no perfil do prestador de cuida-dos médicos. Concretamente, no que respeita à Gastren-terologia, prevê-se uma intervenção mais proeminentedesta especialidade no âmbito da prestação de cuidadosclínicos, designadamente no que respeita a doentes comafecções digestivas crónicas, quer no internamento, querno ambulatório, com crescente aplicação de novas meto-dologias orientadas designadamente para a prevenção.Por outro lado, expandir-se-à a vertente tecnológica daGastrenterologia, sendo previsível o recurso crescente àintervenção do especialista tecnicamente credenciado.De facto, afirmava recentemente a comissão deRelações Públicas da Associação Americana de Gas-trenterologia: "Establishment of the gastroenterologistas a principal caregiver for patients with chronic.diges-tive diseases is a major endeavor". No âmbito destatemática, não deixa de ser oportuno citar uma dastendências previstas no relatório recentemente elabora-do por uma comissão de peritos, sob os auspícios da"American Digestive Health Foundation" (ADHFTrends Report. Section 3, Patient and Provider Profiles):"General practitioners could be an endangered species,according to our interviews. Most patients seen by ge-neralists today are the 'worried well', and can be atten-ded by nurses or, eventually, expert information sys-tems. Ultimately, practice could devolve to a combina-tion of nurses and specialists".

D. NOVOS PARADIGMAS E SISTEMAS NA

PRESTAÇÃO DE CUIDADOS

Novos paradigmas e sistemas despontam no horizonteda prestação de cuidados médicos. No domínio dos pa-radigmas, emergem como mais salientes os seguintes:. Avaliação dos resultados do exercício da actividade

clínica, como critério de escolha dos serviços médi-

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coso Nessa avaliação incluem-se, como parâmetrosessenciais para aferição, a qualidade, a segurança e aeficácia na prestação de cuidados, e ainda a sua reper-cussão na qualidade de vida dos doentes com afec-ções digestivas crónicas;. Crescente reserva, da parte do médico e do doente, àfixação rígida de "guidelines" ou protocolos, pelaconflituosidade que começam a gerar;. Florescimento do paradigma "Forecast, Prevent andManage" (FPM), considerada a abordagem clínicamais eficiente e menos dispendiosa;. Desenvolvimento de um cenário ecológico social eeconómico, fundado na informação e no conhecimen-to, submergindo a tradicional sociedade industrial.

A assunção destes e de outros paradigmas que despon-tam, tenderá a repercutir-se na definição de modelos desistemas de saúde. A este respeito, estão definitivamentecondenados os figurinos estatizados, centralizados,burocratas e monolíticos. Mas também começa a gerarcontestação o modelo liberal do "managed care", pelasinjustiças, conflitos, tensões e desvios que comporta,sem falar no parasitismo social que nele germina. Areestruturação dos sistemas de saúde continuaráindefinidamente. Novos modelos acabarão por despon-tar, e os antigos evoluirão para figurinos mais flexíveis.Pessoalmente, defendo um sistema de saúde universal e

acessível, que incentive o controlo dos custos, elimine oparasitismo intermediário e recupere, como preceitofundamental, a relação médico-doente. Como afmna 1.Farrar, num artigo de opinião publicado este ano na re-vista "Digestive Diseases and Sciences", a edificação deum sistema com as características apontadas implica aconsagração de vários pressupostos essenciais, entreeles: 1) Justiça fiscal; 2) Dupla tributação, a expensas doEstado e do doente, no caso deste usufruir de condiçõeseconómicas satisfatórias; 3) Codificação dos actos mé-dicos e serviços clínicos, e fixação dos respectivos cus-tos; 4) Reembolso parcial do prémio pago pelo doente,consoante o grau de utilização dos serviços de saúde;5) Prestação de cuidados por entidades públicas ou pri-vadas.

Importa também acentuar que a evolução dos sistemasde saúde pode determinar a reestruturação dos serviçosassistenciais. No relatório atrás mencionado, sublinha-secomo um dos cenários plausíveis a possibilidade daexistência, no futuro, de quatro patamares essenciais naprestação de serviços:. Redes informáticas e sistemas especializados destina-

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dos a prover infonnação básica sobre a saúde, a doen-ça e os cuidados médicos;. Coordenadores de cuidados primários, encarregadosde facultar essa infonnação básica ou clarificar osdados obtidos nessas redes e sistemas infonnáticos.

Esses profissionais seriam médicos, enfenneiros oumesmo paramédicos;. Especialistas médicos, para assegurar cuidados clíni-cos a curto ou longo prazo, designadamente no ambu-latório;

. Hospitalares, encarregados da assistência clínica nointernamento.

Nas reflexões que acabo de tecer, procurei analisar, defonna sumária, os principais factores que neste dealbardo novo milénio vão seguramente determinar impor-tantes alterações na prática da Gastrenterologia. Se ana-lisarmos as tendências que se prenunciam, encontramosfundamentação suficiente para sustentar a indispensabi-lidade da Gastrenterologia em qualquer sistema desaúde. Mas mais. Os indicadores e as tendências repor-tadas, permitem asseverar que o especialista deGastrenterologia será chamado, no futuro, a desempe-nhar um papel cada vez mais relevante na prestação decuidados aos doentes do foro digestivo, no internamen-to e no ambulatório. É fundamental acentuar que osnovos padrões epidemiológicos, o desenvolvimentoexponencial no conhecimento biomédico, o floresci-mento de novas tecnologias, designadamente no campoda endoscopia digestiva, o perfil do doente nas futurasgerações e a assunção de paradigmas emergentes, vãoexigir a fonnação e a inserção profissional de gas-trenterologistas, em ritmo crescente. Negar esta evidên-cia, é uma manifestação de absoluta insciência que com-promete, de fonna grave, a qualidade, a segurança e aeficácia na prestação de cuidados aos doentes comenfennidades digestivas. Nem colhe, sequer, o argu-mento inconsistente e falacioso, de que a assistênciaprestada pelo especialista onera.os custos da saúde. No

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relatório da "American Digestive Health Foundation",acentua-se a dado passo (Section 4. Systems andParadigms for Health, Pago 15): "In POS plans, whichafford direct access to specialists, outcome measures aredisclosing that the specialists are giving the most cost--effective care to GI patients. So the quality movementcan be good for the digestive health field".Em face dos dados apresentados, invade-nos a perplexi-dade ao analisar-se a actual situação da Gastrenterologiano contexto nacional, lapidarmente retratada na exce-lente brochura recentemente editada pelo Colégio deGastrenterologia da Ordem dos Médicos. A absurda earbitrária limitação imposta pela tutela ao ingresso decandidatos na especialidade de Gastrenterologia, é into-lerável. Não tendo qualquer sustentação científica outécnica, constitui um gravíssimo erro de planificaçãodos recursos humanos, e uma posição atávica quando sereivindica um sistema de saúde actualizado e orientado

para os desafios da modernidade. Reclamar, de fonnaimperiosa, recursos humanos e técnicos adequados aoexercício proficiente e essencial da especialidade, nointernamento e no ambulatório, é uma recomendaçãoinstante que me permito dirigir às Sociedades Científicase ao Colégio de Gastrenterologia da Ordem dos Médicos.Na linha das reflexões tecidas, exorto também os Órgãosrepresentativos da nossa especialidade a pugnarem nosentido de uma refonnulação do actual programa curri-cular do internato da especialidade, com diferenciaçãoprofunda e preferencial em Hepatologia, Nutrição eEndoscopia Terapêutica, e a garantirem o estabeleci-mento de condições que viabilizem uma sólida e con-tínua fonnação profissional.Finalmente, advogo ainda que os Corpos Sociais daGastrenterologia reivindiquem apoio sustentado para ofomento da investigação científica. A criação de umaFundação Portuguesa de Saúde Digestiva, na esteira domodelo da "American Digestive Health Foundation",seria uma hipótese a considerar, designadamente para adinarnização desse objectivo.

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