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PATRIMÔNIO CULTURAL QUILOMBOLA NA SERRA DOS
TAPES: EM BUSCA DA HISTÓRIA, DA MEMÓRIA E VALORIZAÇÃO
DA IDENTIDADE DE SEUS REMANESCENTES
ÁVILA, Cristiane Bartz de(1); RIBEIRO, Maria de Fátima Bento(2)
1. Universidade Federal de Pelotas – ICH- PPGMP-Bolsista FAPERGS [email protected].
2. Universidade Federal de Pelotas – ICH-PPGMP e MERCOSUL
Resumo: O presente trabalho pretende levantar uma discussão em torno dos conflitos de memória que possam emergir a partir de pesquisas relacionadas com a memória e identificação de elementos do patrimônio cultural do 7º Distrito de Pelotas, denominado Quilombo. Através de pesquisa documental em processo crime, atas da Câmara Municipal de Pelotas e correspondências expedidas e recebidas por esse mesmo órgão, pudemos delinear o perfil desta região. Durante o século XIX, formou-se um quilombo na Serra dos Tapes chefiado por Manuel Padeiro, que teve o ápice de suas atividades nos anos 30 do referido século. A partir de visitações e entrevistas com moradores do 7º Distrito, foi escolhido o Quilombo Alto do Caixão para dialogar com a história de Manuel Padeiro. Dessa maneira, pretende-se apontar elementos da história dos quilombolas do século XIX e do referido quilombo e como resultado, esperamos trazer ao debate questões referentes ao patrimônio cultural daquela região e as questões sobre memória e silenciamento do grupo quilombola referido.
Palavras-chave: Patrimônio cultural. Quilombo. Conflitos de memória
II CONINTER – Congresso Internacional Interdisciplinar em Sociais e Humanidades Belo Horizonte, de 8 a 11 de outubro de 2013
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
As discussões sobre preservação do patrimônio surgem com grande força na
França, após a Revolução Francesa. Inicialmente a ideia de preservação está associada
aos monumentos, (os grandes prédios e objetos), representantes da cultura elitizada que
seriam associados ao “patrimônio da nação” em oposição ao antigo regime, no qual o
patrimônio era associado à figura do rei como dono do tesouro real e o mesmo dispunha
como queria, doando como dote, como agrado a outro rei com intenções diplomáticas, etc.
Dessa maneira, (Poulot, 2009) cita que os franceses revolucionários consideravam
que:
Um trabalho permanente deve, em suma, posicionar o patrimônio contra o passado,
como um dos símbolos da vontade revolucionária, associado aos dois temas do
reconhecimento e da emulação - do mesmo modo que, segundo a fórmula de
Hayden White, os historiadores das Luzes escreviam a história contra o passado.
A tradição preservacionista francesa influenciou muitos países, inclusive o Brasil.
Muitas de suas práticas iniciais foram reproduzidas, como o que foi citado acima, preservar
ou não elementos patrimoniais interessantes ou desinteressantes às classes sociais, o que
era decidido pelas pessoas que dirigiam o governo em determinado período histórico. De
uma forma geral, os bens escolhidos para serem preservados representavam elementos
associados à cultura europeia.
No Brasil, o panorama começa mudar a partir da Constituição de 1988, com os
artigos 215 e 216, os quais fazem menção sobre o patrimônio cultural brasileiro ser
constituído pela natureza material e imaterial, onde há referência à valorização das
manifestações culturais das mais diversas etnias, das quais podemos inferir a indígena, a
afro-brasileira, a alemã, a italiana, a francesa, enfim, dos mais diversos segmentos que
constituem a população brasileira.
Nessa questão, podemos dizer que os conflitos de memória podem geralmente
estar representados nas diversas manifestações do patrimônio cultural das diferentes
sociedades ao longo da história da humanidade. Neste sentido, apesar de fazer doze anos
que foi publicado o decreto 3551/2000 referente à proteção do patrimônio cultural imaterial
através de seu registro em quatro livros específicos (Livro do Registro dos Saberes, Livro do
Registro das Celebrações, Livro de Registro de Formas de Expressão, Livro de Registro dos
Lugares), ainda temos uma grande tendência em valorizar e proteger os bens materiais em
geral, pois estes estão mais ligados à cultura eurocêntrica, sendo que estes últimos não são
registrados e sim tombados. Podemos apontar algumas discussões acerca do patrimônio
cultural a fim de desmistificar a ideia de que este esteja dividido em patrimônio imaterial e
patrimônio material, pois estes estão interligados e acabam se complementando, numa
relação complexa de ser analisada. Para tanto, encontramos a seguinte explicação de
(Choay apud Sant’anna, 2009):
O monumento trabalha e mobiliza a memória coletiva por meio da emoção e da afetividade fazendo vibrar um passado selecionado, com vistas a “preservar a identidade de uma comunidade étnica, religiosa, nacional, tribal ou familiar”.
Segundo Sant’anna (2009) até o sec. XVIII, a seleção de monumentos históricos
produzia-se, no mundo restrito dos antiquários e estetas, referindo-se basicamente às
antiguidades greco-romanas. Na Revolução Francesa, essa concepção estende-se a
edifícios do passado medieval mais recente e surge neste momento a relação do
monumento com o conceito de Estado-nação, criando-se os museus e os inventários. Os
franceses foram os pioneiros na criação de uma legislação de proteção ao patrimônio,
“classement”, semelhante ao nosso tombamento, esta lei data de 31/12/1913.
Assim, até a II Guerra Mundial, o mundo Ocidental, preocupou-se em selecionar,
proteger, guardar e conservar monumentos associados ao patrimônio material. Somente
após esse período, é que países Asiáticos e do Terceiro Mundo começaram a trazer
reflexões sobre a preservação de natureza imaterial, não tão importante por sua
materialidade, mas por suas criações populares, expressões de conhecimentos, práticas,
processos culturais, modo de relacionamento com o meio ambiente, etc.
No mundo oriental, por exemplo, o que importa não é o objeto em si, mas o
conhecimento daqueles que sabem produzir o objeto. Em 1950, o Japão instituiu a primeira
legislação de preservação do patrimônio cultural, dando apoio a pessoas e grupos que
mantêm as tradições cênicas, plásticas, ritualísticas e técnicas que compõem esse
patrimônio. (SANT’ANNA, 2009), ainda nós indica:
Percebe-se, por fim, que retirar um objeto de seu contexto social de uso e produção, declará-lo patrimônio, conservá-lo como uma peça única e colocá-lo num museu não abrange todas as situações em que é possível reconhecer um valor cultural e preservá-lo. Não faz sentido, por exemplo, nos casos em que o que tem valor não é o objeto, inúmeras vezes rapidamente perecível ou consumível; importa saber produzi-lo. Não faz sentido, igualmente, nos casos em que nem mesmo há objetos, mas apenas palavras, sons, gestos e ideias.
Os países de Terceiro Mundo reivindicaram em 1972, junto à UNESCO, um
instrumento de proteção às manifestações populares de valor cultural, e, em 1989 o órgão
responde através da RECOMENDAÇÃO SOBRE A SALVAGUARDA DA CULTURA
TRADICIONAL E POPULAR, que recomenda aos países membros à identificação, a
salvaguarda, a conservação, a difusão e a proteção da cultura tradicional e popular por meio
de registros, inventários, suporte econômico, introdução de seu conhecimento no
sistema educativo1, documentação e proteção à propriedade intelectual dos grupos
detentores de conhecimentos tradicionais.
No Brasil, o precursor das ideias de patrimônio imaterial foi Mário de Andrade, pois
já nos anos 30 quando esteve ligado ao SPHAN, elaborou um projeto em que falava das
artes arqueológicas e ameríndia que compreendia não apenas, artefatos colecionáveis, mas
também paisagens e folclore. Suas ideias naquela época não foram avante, mas o
intelectual documentou ao longo de sua vida fotografias, gravações e filmes em suas
viagens ao nordeste. Outro personagem que influenciou bastante e produziu vários
trabalhos sobre o patrimônio cultural brasileiro foi Aloísio Magalhães quando trabalhou no
Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC).
Já o decreto 3551/2000 estabelece uma diferença de ação para os bens culturais
de natureza imaterial:
O objetivo é manter o registro da memória desses bens culturais e de sua trajetória no tempo, porque só assim se pode “preservá-los”. Como processos culturais dinâmicos, as referidas manifestações implicam uma concepção de preservação diversa daquela da prática ocidental, não podendo ser fundada em seus conceitos de permanência e autenticidade. Os bens culturais de natureza imaterial são dotados de uma dinâmica de desenvolvimento e transformação que não cabe nesses conceitos, sendo mais importante, nesses casos, registro e documentação do que intervenção, restauração e conservação. (Idem)
Dessa forma, o decreto 3551/2000, estabelece ações desenvolvidas com objetivo
de implementar uma política pública de identificação, inventário e valorização desse
patrimônio.
Temos também o INRC (inventário nacional de referencias culturais) que:
...é um instrumento de pesquisa que busca dar conta dos processos de produção desses bens, dos valores neles investidos, de sua transmissão e reprodução, bem como de suas condições materiais de produção. Operando com o conceito de referencia cultural, o INRC supera a falsa dicotomia entre patrimônio material e imaterial, tomando-os como faces de uma mesma moeda: a do patrimônio cultural. (Ibidem).
1 Grifo nosso.
Os instrumentos de reconhecimento e valorização criados pelo governo brasileiro
levam em conta a natureza dinâmica e processual dos bens, promovendo uma interação
dos aspectos materiais e imateriais do patrimônio cultural brasileiro.
Podemos apontar considerações de Fonseca (2009), onde a autora faz uma analise
dos monumentos que representam elementos da elite que não dão conta de demonstrar as
relações sociais de sua época, dando como exemplo a praça XV do Rio de Janeiro, e que
somente em algumas obras como DEBRET E HILDEBRANDT, viajantes estrangeiros, que
movidos pelo interesse de documentar o peculiar, e não estando atrelados aos interesses
nacionais, é que demonstram na paisagem, junto aos monumentos, os “excluídos”.
A autora (FONSECA, 2009). apresenta contradições de um registro do patrimônio
cultural:
Qual o objetivo do Estado ao criar um instrumento específico para preservar manifestações que não podem ser congeladas, sob o risco de, assim, interferir em seu processo espontâneo? Como evitar que esse registro venha constituir um instrumento de segunda classe, destinado a culturas materialmente “pobres”, porque a seus testemunhos não se reconhece o estatuto de monumento?
Alternativa apontada é que se faz necessário identificar e documentar, promover e
difundir ações que viabilizem a reapropriação simbólica e, em alguns casos, econômica e
funcional dos bens preservados.
Todo signo (e não apenas os bens culturais) tem dimensão material (o canal físico de comunicação) e simbólica (o sentido, ou melhor, os sentidos), como duas faces de uma moeda. Cabe fazer a distinção, no caso dos bens culturais, entre aqueles que, uma vez produzidos, passam a apresentar relativo grau de autonomia em relação a seu processo de produção, e aquelas manifestações que precisam ser constantemente atualizadas, por meio da mobilização de suportes físicos-corpo, instrumentos, indumentária e outros recursos de caráter material- ; o que depende da ação de sujeitos capazes de atuar segundo determinados códigos. A imaterialidade é relativa e, nesse sentido, talvez a expressão “patrimônio intangível” seja mais apropriada, pois remete ao transitório, fugaz, que não se materializa em produtos duráveis. (Idem)
Outra questão importante para aqueles que se interessam por questões ligadas ao
patrimônio cultural, são os estudos sobre memória e os conflitos de memória. ”A memória
coletiva seria a experiência cultural do tempo, a presença do passado no presente,
respondendo a objetivos e necessidades desse momento atual.” (FERREIRA, 2009)
Os conflitos de memória estão atrelados às questões sócio-politico-econômicas das
quais em muitas vezes se torna de difícil percepção para a sociedade que está sofrendo sua
influência naquele determinado momento, podendo-se inferir que os conflitos de memória
ocorrem toda vez que determinado grupo constitui a memória de um fato.
Segundo (Candau, 2004), o indivíduo nas sociedades modernas pertence a uma
pluralidade de grupos, que fragmentados produzem conflitos ao invés de construir uma
memória unificada. Podemos dialogar com casos citados por este autor. Um dos exemplos
que podemos inferir é nos quinhentos anos do descobrimento da América, nos Estados
Unidos, quando houve dois tipos de manifestações: Uma comemorava a epopeia
fundacional e outra sobre o holocausto dos povos nativos. Bem como as permanentes
tensões entre negros e brancos no que diz respeito à escravidão norte-americana.
UM POUCO DE MANUEL PADEIRO
Retomando as ideias anteriormente abordadas, podemos pensar sobre a memória
da comunidade quilombola do 7º distrito de Pelotas, a qual possa estar dentro dessa linha
de raciocínio: Memória Coletiva, conflitos de memória, esquecimento e silêncio. O que pode
ter sido herdado e considerado como Patrimônio Cultural dos quilombolas do século XIX por
essa comunidade anteriormente citada?
Contextualizando melhor nosso objeto de estudo, podemos dizer que o 7º distrito,
chamado Quilombo, recebeu este nome justamente por abrigar quilombolas que na época
da Revolução Farroupilha2 tiveram seu maior destaque. O sistema escravista do sul estava
abalado, por ter que enviar homens para a guerra e não dispor de aparato necessário para a
coerção das fugas. Segundo Monteiro (2012), ao recorrermos aos documentos oficiais deste
período, encontramos cartas entre as autoridades que pedem auxílio financeiro para
contratar homens para diligências ao quilombo a fim de capturar o grupo. Em outras fontes
consultadas3, existem referências a um grupo de malfeitores e bandidos da Serra dos Tapes
que deveria ser exemplarmente punido. Não se tem nenhum registro em defesa desse
grupo. O que se pode é tentar buscar fragmentos deste passado através de relatos de seus
descendentes, o que exige um trabalho de busca e identificação dessas pessoas, bem como
a afinidade das mesmas no que tange a vontade de querer falar sobre seus antepassados.
No decorrer de nossa pesquisa, estamos coletando dados em fontes diversas
incluindo entrevistas com moradores locais e todos que nos concederam entrevista, se
dizem quilombolas, autodenominando-se negros ou morenos (o termo mais comum usado, é
moreno). Não sabem muito sobre a história de Manuel Padeiro, e sempre apontam para
2 A Revolução Farroupilha ocorreu entre 1835 e 1845, conflito entre a elite gaúcha composta basicamente de
estancieiros e charqueadores que lutavam contra o Império. Inicialmente objetivavam que o charque gaúcho tivesse proteção em relação às taxas e comercialização no que se refere ao charque Platino, e após, o movimento tomou o objetivo da independência da Província Gaúcha em relação ao Império brasileiro. 3 Ver Atas da Câmara Municipal de Pelotas, Correspondências expedidas e recebidas da Câmara Municipal de
Pelotas, Processo Crime de Mariano.
outros moradores do 7º Distrito Quilombo, que não moram na comunidade Alto do Caixão
como sabedores de mais detalhes sobre este líder.
Nos registros consultados podemos buscar indícios4 sobre os quilombolas do
século XIX, tais como seu dia-a-dia, relatos de sua cultura, de suas relações familiares e
sociais, enfim de como funcionava a lógica dos Quilombolas que preferiam enfrentar às
adversidades do mato da Serra dos Tapes, ou seja, as intempéries aliadas às partidas5 as
quais os fugitivos eram caçados sem dó nem piedade. Para seus algozes, as suas vidas não
tinham prioridade e sim o término de suas atividades, pois estes “amedrontavam a
população de bem” da cidade de Pelotas.
Traçando um paralelo com a vida de escravizado nas charqueadas pelotenses,
temos a descrição de Maestri:
As condições de trabalho nestes estabelecimentos eram duras. Devido à necessidade de expor as carnes ao sol, as charqueadas não funcionavam no inverno. Nos meses de safra- no verão- os negros deviam preparar a maior quantidade possível de carne. Trabalhava-se quase sem descanso. Eram comuns jornadas de trabalho de 17 a 18 horas. Como as instalações produtivas das charqueadas ficavam ao lado da senzala, os cativos paravam apenas para algumas horas de repouso. Domingos e dias santos eram desconhecidos. Às duras condições de vida e trabalho acrescia-se um férreo regime servil. Nas margens do arroio Pelotas concentravam-se várias charqueadas e milhares de escravos. Os senhores viviam no constante medo de revoltas e insurreições. No Rio Grande do Sul, o trabalho dos negros das charqueadas permitiu a formação de uma rica classe de proprietários. (MAESTRI, 1982, pg.72)
Maestri continua discorrendo nas páginas seguintes sobre as condições aviltantes
em que vivia o escravo negro, fala sobre suas poucas roupas para enfrentar nosso frio e
sobre a alimentação que muitas das vezes consistia no aproveitamento de partes do boi
“não-aproveitáveis” das quais era feito um fervido. Também cita a forma como se
alimentavam, em gamelas e coitês de madeira e barro, utilizando as mãos ou colheres de
pau, de pé ou de cócoras.
4 Ver sobre o paradigma indiciário em GINZBURG, Carlo. 1989. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história.
São Paulo: Cia das Letras. 5 Neste caso, segundo o processo crime trabalhado partida é o termo utilizado para caracterizar o armamento de
homens da cidade de Pelotas que vão à caça dos Quilombolas. Conforme APERGS ,Município de Pelotas Cartório do Júri Nº 81 M3A 141 E7 E/141c CX:006.0300.
Figura 1. Varais de charque6
Figura 2. Varais de charque
Sabemos também que no período em que não se podia produzir o charque os
escravos eram redirecionados para a produção nas olarias, de telhas e tijolos utilizados nas
construções de seus Senhores. Outra atividade relatada no Processo Crime número 817 da
cidade de Pelotas é que os Senhores Charqueadores tinham suas chácaras na Serra dos
Tapes que eram utilizadas para a extração de madeira e produção de gêneros alimentícios.
Desta forma, os cativos além de sofrerem o “sequestro” de sua terra, de seus
familiares, terem de adaptar-se a uma nova Terra, às condições inóspitas (em especial ao
frio da cidade de Pelotas no Rio Grande do Sul), ao processo de humilhação e segregação
racial e degradação de seus aspectos culturais perante a sociedade escravocrata, também
sofriam com o excesso de trabalho nas charqueadas, nas olarias, nas chácaras, com a
pouca alimentação. A saída encontrada por muitos foram às formas de resistências que
poderiam ser das mais variadas formas: suicídios, banzo, abortos, infanticídios,
assassinatos, fugas...
Segundo Maestri (1982, pg. 88) “O cativo resistia ao trabalho porque era escravo e
não porque era negro. O cativo assenzalado, indolente e irresponsável, transformava-se em
um criativo e disciplinado produtor, no quilombo.”
6 Ver site da imagem nas referências.
7 Este processo versa sobre a prisão do Quilombola Mariano pertencente ao Grupo de Manuel Padeiro que
constituiu seu Quilombo na Serra dos Tapes no século XIX. O referido quilombo é considerado o maior da região Sul do Sul do Brasil.
Assim, o negro escravizado preferia pensar alternativas para escapar desta
exploração. Durante a década de 1830, temos referência ao Quilombo de Manuel Padeiro
na Serra dos Tapes.
No referido processo citado acima, podemos retirar fragmentos que denunciam
como os Quilombolas conseguiam o alimento: Em alguns casos, segundo o mesmo
processo, eles roubavam nas propriedades que já conheciam, de seus antigos Senhores.
Como exemplo, podemos nos referir ao depoimento de Mariano ( réu no referido Processo
Crime) em que este diz que os mesmos estiveram nas terras de Boaventura Rodrigues
Barcellos, Senhor do líder do Quilombo, O GENERAL PADEIRO, como era chamado por
seus companheiros. Geralmente eles vendiam o excedente de forma ilegal para
comerciantes8em troca de produtos que não tinham acesso, como armas, pólvora, pimenta
do reino... Neste processo ainda são mencionados períodos (geralmente sete dias) em que
os Quilombolas ficavam escondidos em “ranchos feitos de giribá9”, que lhes serviam de
abrigo para que pudessem plantar.
Ao chegarmos à atualidade, temos um quadro bem diferenciado: O 7º distrito foi
povoado, muitos imigrantes chegaram, e os remanescentes de quilombolas não ficaram
agrupados em uma só região. Formaram-se colônias dentro do referido distrito, e não se
configura mais que determinada colônia tem somente moradores de uma etnia, existe uma
miscigenação. Porém, em algumas localidades há a iniciativa de grupos que tentam
valorizar suas origens enfatizando a história de sua etnia dando destaque às primeiras
famílias que chegaram à região. Podemos citar o exemplo da etnia francesa na localidade
que abrange a região da Vila Nova existindo até mesmo um lugar de memória importante
para os moradores que se localiza na Colônia Francesa.10
8 Segundo o código de posturas da cidade (ver na sessão da Câmara Municipal de Pelotas em Sessão de
20/07/1835) era ilegal comercializar ou ajudar escravos. Para que o negro saísse à noite era preciso autorização de seu Senhor. Neste mesmo processo há a acusação do comerciante Simão Vergara que esta sendo processado por ter vendido pólvora para os Quilombolas. 9 Giribá é uma árvore que existe em vários locais brasileiros, com diversas nomenclaturas. É um coqueiro alto,
que dá pequenas frutinhas no alto, os quais são chamados de coquinhos. Esses coquinhos são comestíveis e ricos em gordura. A sua folha era aproveitada para cobrir as habitações construídas pelos quilombolas e pessoas de menos posses. 10
Consultar NORA (1984), sobre a importância dos Lugares de Memória para a constituição da memória de um grupo.
Figura 3. Obelisco comemorativo 50 anos da fundação da colônia Francesa em Pelotas-RS Fonte: Acervo pessoal do pesquisador Leandro Betemps.
Entretanto, na região quilombola denominada Alto do Caixão11, apesar de grande
miscigenação, os moradores locais há pouco tempo se reconhecem e foram reconhecidos
como remanescentes de quilombolas. Iniciando, portanto, uma caminhada de reflexões em
torno de sua memória coletiva e constituição de uma identidade de grupo. Dessa forma,
nesta localidade, não temos a construção de monumentos, o patrimônio cultural que
podemos identificar são elementos naturais e saberes-fazeres ligados às necessidades do
mundo rural, tais como artesanato em palha, conhecimentos de ervas de chás, e de
agricultura familiar em um local tão especifico, como esta região (se observarmos as fotos
abaixo, visualizamos uma região mais alta, repleta de pedras). No geral, as propriedades do
Alto do Caixão, apresentam esta paisagem, e os moradores têm o conhecimento de como
plantar em meio às pedras e o terreno irregular.
11
Alto do Caixão é uma comunidade remanescente de quilombolas, reconhecida pela Fundação Palmares, que se localiza dentro do Distrito Quilombo da cidade de Pelotas, que a partir desse reconhecimento e de ações afirmativas os quilombolas têm tido acesso às politicas públicas, tais como bolsa família, programa minha casa minha vida, etc.
Figura 4. Estrada que que dá aces- Figura 5. Propriedade Quilombola com so às propriedades diversas espécies plantadas em meio às pedras Fonte: acervo desta pesquisadora Fonte: acervo desta pesquisadora
Dessa forma a política de valorização do patrimônio imaterial nas últimas décadas,
deu vez e voz às etnias que por sua condição social não produziam bens culturais os quais
nos referimos anteriormente, suas produções se deram e ainda se dão em muitos aspectos,
no âmbito do imaterial, os quais podemos exemplificar como uma festa religiosa, uma
canção, um saber-fazer,etc12. O que pode ser pesquisado sobre estas culturas são
manifestações do não tangível, manifestações estas que requerem um estudo mais
detalhado em relação à memória coletiva do grupo, ao sentimento de identidade do mesmo,
e em relação ao que é dito e o que não é dito sobre fatos e eventos do passado. Fatos
esses que repercutem no modo de vida daquele grupo até o presente momento.
A partir do momento em que os grupos considerados minorias pela sociedade em
geral começaram a ser objeto de estudo para compor a memória coletiva do mesmo à fim
de que esta sirva de base para o conhecimento do patrimônio imaterial do grupo estudado,
acredita-se que os conflitos de memória tornaram a emergir. Na atualidade, o pesquisador
faz uma busca desenfreada para obter os diferentes veículos de mediação e transmissão
destas culturas que não têm representações tradicionais já conhecidas e reconhecidas pelas
sociedades. O que Candau (2008) chamou de sócio- transmissores, para as pesquisas com
os grupos étnicos minoritários durante muito tempo não eram reconhecidos como fonte de
pesquisa, sendo eles: objetos de uso pessoal, de pequeno valor, saberes-fazeres, tradição
oral...
12
No caso da comunidade Quilombola que existe na atualidade no distrito Quilombo, podemos apontar o conhecimento de saberes e fazeres típicos de comunidades rurais e remanescentes de quilombos.
Para darmos um exemplo concreto, durante a pesquisa, ao entrevistarmos uma
moradora local13, ela nos falou do passado, de como fazia para manter os filhos com
alimentação. O trabalho na fábrica de conserva, nas casas de vizinhos de outra etnia, no
trabalho como safrista. Em todas essas atividades, ia a pé, na estrada íngreme, muitas
vezes saindo muito cedo, no escuro. Ao voltar, tinha seus filhos e casa para organizar.
Conta que os filhos caminhavam muito para estudar. Diz que “queria ter tudo que temos
hoje, na minha época de nova...hoje tá muito melhor, as crianças têm micro para ir à escola,
não precisa fazer a farinha de milho pra ter pão, ou comer com café misturado. Se a gente
faz isso hoje eles reclamam, só querem coisa pronta, da venda.” - referindo-se ao filho e
neto que moram com ela.
Ao perguntarmos sobre a relação com os vizinhos próximos, que não são
quilombolas, nossa entrevistada diz que se respeitam, geralmente, alguns moradores do
quilombo trabalham como safristas para os outros colonos. Disse que houve um certo
conflito quando começaram as iniciativas de reconhecimento das terras dos remanescentes
de quilombolas. Uns vizinhos (ela optou por não revelar o nome), andaram comentando que
“os moreno agora querem tirar as nossas terras”.
Diz que até que os vizinhos entendessem que os quilombolas só queriam um
documento que dissesse que eles estavam muito tempo naquela terra, e que eram os
donos, para terem a certeza que não perderiam mais suas propriedades e para terem
acesso a financiamentos nos bancos, ao bolsa família, enfim “...que nem todos que têm um
comprovante de residência não tendo direito a ajuda do governo”
Nossa entrevistada diz que “hoje tá tudo mais calmo, quando chegou o
reconhecimento e os vizinhos viram que não mudou cerca nem nada, ficaram mais
tranquilos, ...”, entretanto, eles têm receio de conflitos, pois ao ser questionada sobre se
trabalhar com a importância da cultura afro-brasileira, para que os moradores e
principalmente as crianças da escola soubessem de suas origens, ela fica apreensiva, pois
acha que não se pode supervalorizar “...’as coisas de negro’, senão as nossas crianças vão
sofre com os deboche”.
Na fala de nossa entrevistada, podemos perceber a tensão que existe entre os
quilombolas e vizinhos de outras etnias. Embora ela diga que hoje as coisas estão mais
calmas, existe uma relação de certa dependência, uma vez que alguns ainda trabalham
como safristas para os colonos.14
13
Optamos por não identificar os moradores deste exemplo para não criar animosidades entre eles.
14
Os moradores do quilombo se identificam como nós, ou o pessoal do quilombo ou ainda como “morenos”, sendo que esta última nomenclatura também é usada pelas outras etnias ao se referirem ao pessoal do Quilombo. Os quilombolas se referem às outras etnias como os colonos.
Outra questão é a falta de estrutura, o posto de saúde é longe, e muitas vezes não
tem médico. Muitos moradores do quilombo Alto do Caixão não possuem condução própria,
e precisam negociar carona até a zona urbana para procurar ajuda médica. Por outras
vezes, negociam alimentos e dinheiro. A forma de pagamento é em forma de trabalho aos
produtores rurais de fumo na próxima safra. Essa dependência não lhes causa revolta, pois
é “...o único jeito na hora do aperto.”
Nossa entrevistada conta em meio a emoção, e mostra o jornal de 25 de abril de
2010. O fato ocorreu com um casal, vizinho seu. Estava na hora do bebê do casal nascer,
mas a casa esta localizada num ponto mais alto do quilombo, não permitindo o acesso de
um carro para levar a mãe para o hospital. Apesar do esforço dos moradores, não houve
tempo de salvar a criança.
Dessa maneira, a falta de recursos propiciada por vários fatores tais como a
histórica “negligência” enfrentada pela zona rural em relação ao poder público, a distância
natural em relação aos recursos urbanos, e a falta de documentos comprobatórios da
propriedade da terra que excluíam esses quilombolas do acesso à politicas publicas de
combate à fome e à miséria, levaram os mesmos a uma relação de dependência muito
grande em relação aos colonos. Ressaltamos que essas politicas de combate à miséria são
acessíveis às camadas menos privilegiadas sem distinção nenhuma de origem. Através do
documento recebido pela Comunidade Alto do Caixão da Fundação Cultural Palmares, a
partir de então, estes moradores têm um comprovante de residência que lhes possibilita
acesso ao bolsa família, ao programa minha casa minha vida, à financiamentos de
sementes.
Mesmo assim, a situação de vulnerabilidade dos quilombolas é bem intensa, suas
terras são pequenas propriedades que não produzem o suficiente para garantir suas
necessidades, e eles ainda precisam trabalhar como safristas, e alguns têm que trabalhar
toda a semana na cidade- é o caso de uma moradora, que trabalha toda a semana em
Pelotas e deixa seus filhos sozinhos em casa com a orientação de ir para a escola.
Pelo exposto acima, podemos perceber que ainda existem elementos de
dependência econômica dos quilombolas em relação aos outros moradores que possuem
propriedades maiores, e isso talvez faça com que os quilombolas tenham receio em entrar
em atritos com os mesmos. Além disso, é preciso pensar que exista também uma relação
de gratidão em função dos momentos em que foram ajudados pelos outros moradores da
região.
Em relação aos conflitos de memória relacionados anteriormente, Ferreira (2009),
aponta que:
Poderíamos aproximar também essa ideia de luta pelo reconhecimento como a de disputas no campo memorial, do qual o patrimônio é a expressão complexa e passível de instrumentalizações. A ideia de conflitos de memória vincula-se, num primeiro olhar, às representações de passados trágicos, imersos na dor coletiva, nos ressentimentos e manipulações, sobretudo de caráter político... É fundamental observar que em geral esses objetos de estudo estão imersos em zonas obscuras da memória dita coletiva emocionalmente ainda muito carregados de culpa e interdições. (FERREIRA, 2009, pg.03)
Considerações Finais
As questões sobre memória, identidade, patrimônio cultural, história, lugares de
memória, trabalho escravo, formas de resistência, quilombos, conflitos de memória que
foram abordadas durante este texto, precisam de um aprofundamento mais detalhado, mas
o que podemos depreender é que estas questões são repensadas na atualidade graças às
mudanças históricas, econômicas e sociais ocorridas nos últimos anos de nosso século.
Acreditamos que se obteve um avanço significativo com o reconhecimento,
estudos, discussões e implementação de políticas de proteção ao patrimônio cultural como
um todo, abrangendo os elementos cuja manifestação mais significativa nos remete aos
elementos materiais, imateriais e naturais.
Sobre o Quilombo do Alto do Caixão, tentamos demonstrar que a condição social
dos mesmos não possibilitou que fossem erigidos monumentos de “pedra e cal” como outros
grupos do distrito (citamos o caso dos franceses e seu obelisco comemorativo).Entretanto,
apontamos elementos da cultura imaterial do grupo Quilombola do Alto do Caixão, como os
saberes e fazeres dos mesmos, em relação ao conhecimento de se fazer uma horta em
meio a um terreno irregular e cheio de pedras, e também conhecimentos de ervas de chá.
Outra questão abordada foi o receio que os mesmos têm em valorizar elementos de
sua cultura para não causar atrito com seus vizinhos colonos. Apontamos neste ponto,
indícios de conflitos de memória que por ventura possam estar obscuros, entremeados pelo
silencio imposto pelas relações de dependência estabelecidas.
Sabemos que ainda há muito por fazer, principalmente para que se corrijam
injustiças e distorções, mas podemos dizer que essas reflexões e mudanças são dinâmicas
assim como são dinâmicas as diversas sociedades existentes hoje e ao longo de nossa
história.
Referências
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