Paulo Pacha Relacoes pessoais de dependecia e subordinacao a dominacao no alto-medievo ibérico

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    RELAES PESSOAIS DE DEPENDNCIA E SUBORDINAO: A DOMINAONO ALTO-MEDIEVO IBRICO (SCS. VI-VIII)

    Paulo Henrique de Carvalho Pach1(UFF)

    I - Introduo

    Permitam-me comear por uma breve digresso terico-metodolgica: a despeito desse

    evento tomar com temtica geral o pr-capitalismo, no se enganem, trata-se de um evento

    sobre histria contempornea. Os historiadores do futuro, em condies que nos escapam

    imaginao, tero seu acesso ao passado (nosso presente) franqueado em parte porque no?

    pelos vestgios desse evento que sobreviverem ao do tempo. Encontraro a uma

    fotografia da produo historiogrfica brasileira acerca do pr-capitalismo e podero se

    interrogar se essa produo diz mais sobre o medievo e a antiguidade ou sobre a primeiradcada do sculo XXI. Eu argumento que esses vestgios falam com a mesma eloquncia

    sobre ambas as questes o pr-capitalismo e nosso mundo contemporneo , mas a

    percepo disso depende, fundamentalmente, desse historiador no futuro. O que estou

    enfatizando aqui, como primeira e primordial questo de minha apresentao, o mesmo que

    Crocce eternizou na clssica passagem cuja eternizao deve-se, no tenho dvidas, ao

    resgate e difuso de Marc Bloch e Lucien Febvre: toda histria histria contempornea2.

    O ouvinte impaciente poderia questionar a relevncia de tanta nfase em uma passagem que, dizem os entendidos, tornou-se lugar-comum em nossa estranha tribo de

    historiadores. Tais questes, conhecidas por qualquer aluno de primeiro perodo, constituiriam

    assim um pressuposto de qualquer investigao histrica que conste deste evento e no

    precisaria ser explicitada por qualquer um que almeje veicular qualquer novidade.

    justamente desse ponto, contudo, que retiro a justificativa requisitada: em primeiro lugar,

    penso que muito facilmente esquecemos dos nossos pressupostos originais e rapidamente

    adotamos verses mais ou menos deformadas, seja por comodidade, seja por uma prtica em

    meio a um campo que favorece essas deformaes no apenas por isso, mas principalmente

    porque tende a rotular como indesejvel qualquer considerao que seja levemente terica;

    segundo, em tempos de suposta hegemonia do ps-modernismo, o pressuposto em questo foi

    1 Mestrando em Histria pela Universidade Federal Fluminense e bolsista CAPES sob orientao do Prof. Dr.Mrio Jorge da Motta Bastos.2 CROCE, Benedeto. Histria como Histria da Liberdade, Rio de Janeiro, Topbooks, 2006

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    torcido e travestido em suas caractersticas mais importantes e existe hoje como justificativa

    para uma historiografia reacionria e anticientfica. Resgatar o real sentido dessa expresso

    uma tarefa que deveria orientar qualquer investigao em histria.

    De maneira geral, o segundo ponto resgate do real sentido da expresso toda histria histrica contempornea , se bem empreendido, contm em seu interior o primeiro

    anlise dos pressupostos que orientam a investigao histrica. Com essas questes em mente,

    passo ento a uma considerao mais plenamente historiogrfica das questes que indiquei no

    resumo desse trabalho, isto , uma anlise da forma, dinmica e desenvolvimento histrico das

    relaes pessoais de dependncia e subordinao no medievo, bem como de seu papel

    estrutural nessa sociedade. Enquadro meu objeto nos primeiros sculos da Alta Idade Mdia,

    aquele perodo sem lei e sem Deus, o qual, segundo os antiquistas s pode ser medieval, dado

    o seu barbarismo extremo e, segundo os medievalistas, pelos mesmos motivos, s pode ser

    antigo, fruto do desmoronamento trgico do Imprio Romano e em nada semelhante gloriosa

    Idade da F que encontramos alguns sculos depois e que constitui o foco prioritrio das

    anlises em histria medieval. Geograficamente, a Hispania, em especial o reino visigtico,

    o terreno por excelncia para a considerao de tais questes, dado o desenvolvimento precoce

    e acelerado do processo de emergncia e difuso das relaes pessoais de dependncia e

    subordinao nessa regio.

    Todos sabemos que em histria sempre procedemos de forma retroativa. Nunca temoso passado em si, mas sempre um passado determinado, no apenas pelas traas, mas sempre

    circunscrito por um quadro limitado de questes que nos so socialmente relevantes ou mesmo

    compreensveis (e essa circunscrio pode ser consciente ou no, mas sempre se impe). A

    proposta, supostamente revolucionria, de Alain Guerreau3, necessariamente esbarra nessas

    questes j que, por mais que fale latim fluentemente, o medievalista no pode jamais tornar-

    se medieval. Esse mais um aspecto da histria em sua radical e ineliminvel

    contemporaneidade.

    Se estou correto at aqui, posso argumentar que qualquer anlise histrica nasce de

    alguma questo posta pelo presente, de algum aspecto da vida social contempornea cuja

    historicidade buscamos e analisamos. As razes para tal busca podem ser diversas, mas o

    3 GUERREAU, Alain. El futuro de un pasado. La Edad Media en el siglo XXI. Barcelona: Crtica, 2002.

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    movimento da historiografia toma, necessariamente, essa forma.

    O limite primeiro de minha investigao , portanto, uma considerao do estatuto da

    fora de trabalho sob o capitalismo. As consideraes que seguem encontram aqui, contudo,

    no apenas um limite, mas tambm suas condies de possibilidade: apenas porquecaracterizo o estatuto da fora de trabalho sob o capitalismo que, retroativamente, sou capaz

    de enfocar o estatuto da fora de trabalho no medievo.

    II Fora de trabalho livre

    Para considerar essas questes, tomo apoio inicialmente na anlise de Marx

    especialmente em O Capital4. Segundo Marx, no processo de transformao do dinheiro em

    capital, necessrio que o possuidor do dinheiro encontre, no mercado, o trabalhador livre e,

    sempre bom lembrar, livre em dois sentidos, quais sejam: o de dispor, como pessoa livre, de

    sua fora de trabalho como sua mercadoria, e o de estar livre, inteiramente despojado de todas

    as coisas necessrias materializao de sua fora de trabalho, no tendo, alm desta, outra

    mercadoria para vender5. Em outra passagem, Marx pontua interessante considerar o

    quanto h a de ironia ou no que a esfera da circulao um

    verdadeiro paraso dos direitos inatos do homem. S reinam a liberdade,igualdade, propriedade e Bentham. Liberdade, pois o comprador e ovendedor de uma mercadoria a fora de trabalho por exemplo, sodeterminados apenas pela sua vontade livre. Contratam como pessoas iguais, juridicamente iguais. [...] Igualdade, pois estabelecem relaes mtuasapenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente porequivalente. Propriedade, pois cada um s dispe do que seu. Bentham,pois cada um s cuida de si mesmo6.

    importante destacar, contudo, que tal caracterizao encontra-se num elevado nvel

    de abstrao, orientada para as formas de manifestao do fenmeno a aparncia. Em outros

    momentos da obra Marx encontramos consideraes que decorrem diretamente dessa primeiraaproximao mas que, em seu desenvolvimento, desvelam o vu da aparncia e demonstram

    como estas so as formas de manifestao socialmente necessrias de relaes causais outras,

    4 MARX, Karl. O Capital: Crtica da Economia Poltica. Livro I. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2004.5 Idem, p. 199.6 Idem, p. 206.

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    mais profundas.

    Assim, englobando e superando as anlises da economia politica clssica, Marx

    demonstra como o reino da liberdade, igualdade, propriedade e Bentham, isto , o reino da

    pura individualidade, deve, ao contrrio, ser caracterizado pela dependncia multilateral dosprodutores entre si. Segundo o autor, no s a produo de cada indivduo dependente da

    produo de todos os outros; como [tambm] a transformao de seu produto em meios de

    vida para si prprio torna-se dependente do consumo de todos os outros7. Que o mercado, ou

    mais propriamente o valor, seja a forma de efetivar essa dependncia generalizada, portanto

    uma efetivao estranhada, no decorre da qualquer independncia, muito embora essa seja

    constituinte das formas de manifestao desse processo, portanto, real em determinado

    aspecto.

    III Relaes pessoais de dependncia

    de conhecimento geral a frase de Marx que une smios e homens, qual seja, a

    anatomia do homem uma chave para a anatomia do macaco8. O processo aqui,

    supostamente invertido, explicita apenas como a forma mais desenvolvida contm uma chave

    outras so possveis, ningum o negaria para o entendimento da forma menos

    desenvolvida. A suposta inverso decorre de nosso hbito intelectual, historicista de certa

    forma, de pensar o mundo como escatologia ou teleologia do tipo ruim, como se a formamenos desenvolvida redundasse, necessariamente, na forma mais desenvolvida. Um tipo de

    iluso biogrfica universal9. O processo racional, claro est, analisar a forma mais

    desenvolvida como um caminho possvel dentre outros, plenamente efetivado e que, como tal,

    nos arma com as ferramentas para compreender a forma menos evoluda em suas mltiplas

    determinaes.

    Essas consideraes sobre macacos e homens no devem nublar que estou aqui

    7 MARX, Karl. Grundrisse: Foundations of the Critique of Political Economy (Rough Draft).Harmondsworth: Penguin Books, 1977, pp. 156-74. Traduo: Mrio Duayer Departamento de Economia /UFF. Verso Preliminar.8 MARX, Karl. Manuscritos econmico-filosficos e outros textos escolhidos. Coleo Os Pensadores. SoPaulo: Abril Cultural, 1978, p. 120.9 Uma exagerada derivao universalizadora das indicaes de BOURDIEU, Pierre. A iluso biogrfica In:FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaina. Usos e abusos da Histria Oral. Rio de Janeiro: FGV,1996.

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    resgatando os pontos iniciais de minha apresentao, isto , temos a histria sempre de forma

    retrospectiva e, consequentemente, no devemos ignorar os desenvolvimentos que os

    processos do passado desnudam em nosso presente. Dito isso, posso explicitar na sequencia

    que a anlise de Marx no caracteriza apenas o estatuto da fora de trabalho no capitalismomas, no movimento descrito acima e, devo lembrar, tambm dialtico, dado que a

    compreenso da anatomia do macaco tambm contribui, em um segundo momento, para a

    compreenso da anatomia do homem caracteriza tambm o estatuto da fora de trabalho no

    pr-capitalismo em geral.

    A caracterizao de Marx acerca do estatuto da fora de trabalho no pr-capitalismo (e

    o medievo sempre o caso especfico por excelncia) pode ser resumida da seguinte forma: se

    no capitalismo reina a aparente independncia geral entre todos os indivduos que vela, j

    consideramos, uma efetiva dependncia multilateral , no medievo as relaes sociais so,

    prioritariamente, relaes pessoais de dependncia e subordinao, amplas e hierarquicamente

    articuladas. So essas relaes que constituem as determinaes mais gerais dessa sociedade e,

    ao mesmo tempo, o modelo para outras relaes. A dissoluo dessas relaes, como se v,

    pressuposto para o quadro que analisamos anteriormente, a esfera da circulao capitalista.

    As indicaes de Marx no que tange esse aspecto so bastante gerais. Trata-se apenas

    de demonstrar como a emergncia do modo de produo capitalista pressupe enormes

    transformaes nas relaes sociais humanas e, com isso, explicitar sua radical historicidade.A tarefa inconclusa, por outro lado, avanar essas indicaes gerais em consideraes mais

    detidas acerca do sociedade medieval, explicitando, contudo, que a orientao da investigao

    sempre contribuir no caminho de volta, isto , invertendo a frmula sempre em seu aspecto

    dialtico e enquanto segundo momento tomar a anatomia do macaco desvelada como uma

    chave para a anatomia do homem.

    O primeiro passo de tal considerao detida foi percorrido, entre outros, por Joo

    Bernardo, historiador portugus autor de uma sntese Poder e Dinheiro10 cuja extenso e,

    ao mesmo tempo, preciso no podem ser louvadas propriamente nos limites dessa

    comunicao. Assumindo o risco de parecer exagerado, trata-se, sem nenhuma dvida, de obra

    10 BERNARDO, Joo. Poder e dinheiro: Do poder pessoal ao Estado impessoal no regime senhorial Sculos V-XV. Vol. I. Sincronia: Estrutura econmica e social do sculo VI ao sculo IX. Porto:Afrontamento, 1995.

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    obrigatria para qualquer medievalista. Segundo Joo Bernardo, qualquer considerao detida

    do medievo deve em especial na Alta Idade Mdia sublinhar a distino j presente em

    Marx entre as relaes de dependncia e subordinao. Trata-se aqui de distinguir o carter

    eminentemente classista das relaes medievais, articulando dois blocos principais que seconstituem durante os primeiros sculos da Idade Mdia, isto , campesinato e aristocracia.

    Tal distino no a regra na historiografia que, ao contrrio, pouco trata dessas

    questes as v como pano de fundo para outras anlises e, quando o faz, insiste na suposta

    indiferenciao entre dependncia e subordinao, como se as relaes senhoriais e servis

    apresentassem uma identidade completa em suas lgicas, dinmicas e desenvolvimentos. A

    contribuio que esse trabalho objetiva demonstrar como mesmo nas fontes medievais tal

    distino aparece, ainda que nunca de forma explcita na clebre imagem de Georges Duby,

    h fontes mais carregadas de ideologia que aquelas produzidas no medievo? mas cujos

    fundamentos podem ser desvelados pelo historiador.

    Na Hispania do sculo VII encontramos uma sociedade, medieval em suas

    caractersticas gerais, mas fortemente marcada por um precoce desenvolvimento das

    tendncias que s alguns sculos depois sero verificadas em outros ponto da Europa

    Ocidental. No termo caro historiografia espanhola, trata-se da protofeudalizao visigtica11.

    Em linhas gerais, o termo refere-se posio hegemnica da aristocracia e ao acelerado

    processo de homogeneizao servil, constituindo assim as duas classes fundamentais dessasociedade. A indistino entre aristocracia laica e eclesistica importante para compreender

    como a hegemonia aristocrtica dessa sociedade une enquanto classe a comunidade dos

    aristocratas, explicitando sua experincia e interesses comuns, alm de uma posio no

    processo produtivo absolutamente idntica vivem do trabalho alheio, dos servos.

    Caracterizar os santos como parte do mesmo grupo tambm no deve constituir nenhuma

    surpresa exceto para aqueles que creem em sua natureza sagrada , dado que os hagigrafos

    esforam-se para construir, sem exceo, uma origem aristocrtica para os hagiografados.

    A Vida de So Milo12, redigida por Brulio, bispo de Saragoa, aproximadamente em

    636, narra em cores vibrantes a trajetria de Milo, santo de origem humilde que , conforme

    11 GARCA MORENO, Lus A. Historia de Espaa Visigoda. Madrid: Ctedra, 1998. RUCQUOI, Adeline.Histria Medieval da Pennsula Ibrica. Lisboa, Editorial Estampa, 1995.12 OROZ, Jos (ed.) Sancti Braulionis Caesaraugustani Episcopi. Vita Sancti Aemiliani. Perficit, S/l., SegundaSerie, v. IX, n. 119-120, pp. 165-227, 1978.

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    mencionamos, rapidamente alado condio de homem digno, purificado de sua vilania

    atravs do contato com o prprio Deus. A Vida profcua em detalhar como o santo, o

    escolhido de Deus, hbil em remover ou mesmo destruir os obstculos que se interpe

    em seu caminho. Aps um longo perodo em que se isola na regio escarpada ao norte dapennsula, Milo passa a ser procurado e reconhecido por sua capacidade de intercesso ao

    sagrado, sendo alvo de assdio por multides que o imploram pela realizao de milagres

    diversos como curas, exorcismos e proviso de alimentos.

    Segundo o hagigrafo, cada milagre realizado apenas aumentava ainda mais a fama e o

    prestgio de Milo, aumentando em torno deste a multido que buscava seu auxlio. A enorme

    diversidade dos contatos do santo com grupos sociais vrios salta aos olhos em qualquer

    leitura da hagiografia: alm da proviso de alimentos para a multido de famintos que o

    seguia, por exemplo, com um pouco de vinho sacia muita gente13, o santo realiza milagres

    diversos, devolve a viso a uma ancilla dosenatorSicrio14, livra do demnio o servo de

    um tal Tuncio15, cura a outro endemoniado, servo do conde Eugenio16, livra do demnio

    o senator Nepociano e sua mulher Proseria17 e mesmo profetiza a destruio da

    Cantbria18.Dessa diversidade de contatos, Peter Brown sublinhou o carter no-classista da

    santidade19, possibilitando que este transitasse entre as diversas classes sociais e

    permanecendo indefinvel, algum poderia dizer que mantm algo de seu carter sagrado, no

    mnimo misterioso.Um milagre em especfico relatado na hagiografia, por outro lado, revelador da real

    insero do santo nessa sociedade e nos ajuda a entrever como a diferenciao entre

    dependncia e subordinao vital para qualquer anlise da sociedade medieval. Narra a

    hagiografia que na casa de umsenator, Honrio, habitava um demnio terrvel extremamente

    nocivo e promotor de alvoroos20. Por exemplo, durante um banquete misturava na comida

    restos e lixo e ovos de animais mortos, ou, durante a noite retirava as roupas de homens e

    13 Idem, p. 205.14 Idem, p. 197.15 Idem, p. 199.16 Idem.17 Idem.18 Idem, p. 211.19 BROWN, Peter. The Cult of the Saints - Its Rise and Function in Latin Christianity. Chicago: Universityof Chicago Press, 1996, p. 19.20 OROZ, Jos (ed.). Op. Cit. p. 201.

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    mulheres enquanto estes dormia e as pendurava no teto21. Aflito por uma situao to terrvel,

    Honrio toma conhecimento da fama de Milo e manda chamar o santo, enviando os meios

    para seu transporte. Aps ouvir as splicas dos mensageiros enviados por Honrio, o santo

    encaminha-se para a manso dosenator, mas recusa o transporte enviado e caminha por seus prprios meios, segundo Brulio, para demonstrar a potncia de nosso Deus22. No local,

    Milo rene os presbterios da regio, decreta o jejum e, ao terceiro dia, exorciza a casa e pe

    em fuga o combativo demnio.23

    Tal milagre, aparentemente apenas mais um caso de exorcismo dentre os muitos que

    constam na hagiografia, revelador se articulado com outro episdio narrado posteriormente.

    Cercado por uma multido de famintos e sem qualquer meio para aliment-los, o santo inicia

    uma prece Deus: Ainda no havia concludo a orao, quando de repente entram pela porta

    algumas carroas abundantemente carregadas, que lhe havia mandado o senatorHonrio. O

    amado de Deus recebe a remessa, dando graas ao Criador do mundo por ter escutado a sua

    orao24.

    A compreenso desses relatos, se pensamos em sua ntima conjugao, s pode ocorrer

    no quadro da troca de presentes, ou, conforme a nomenclatura clssica, o dom. Desde que

    destacado o potencial conflituoso que essa relao engendra e figura, podemos adotar a breve

    caracterizao do dom empreendida por Marcel Mauss25, isto , o encadeamento de trs

    obrigaes recprocas: dar, receber e retribuir. Em resumo, deve ser destaca a idia de que tododom obriga um contra-dom, a retribuio. Na impossibilidade desta, torna-se aquele que no

    pode retribuir devedor do primeiro doador, elevando este a um patamar superior na relao.

    Considerada em tal quadro, a relao entre Milo e Honrio percorre cada um dos

    momentos do dom: doao (exorcismo da casa e expulso do demnio), recebimento da

    doao (aqui expressa ainda mais fortemente, j que Honrio busca o dom do santo) e

    retribuio (o envio das carroas carregadas de alimentos ao santo). A relao aqui

    restabelecida em seus termos originais de igualdade, dado que seus participantes so capazes

    de cumprir suas obrigaes recprocas. mesmo possvel avanar a hiptese de que a relao,

    21 Idem.22 Idem.23 Idem.24 Idem, p. 205.25 MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a ddiva In:Sociologia e Antropologia. So Paulo: Cosac Naify, 2003, p.188.

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    aps o contra-dom de Honrio, encontra-se ainda mais fortalecida, j que demonstrou-se a

    capacidade de cada participante.

    A distino entre dependncia e subordinao aqui vital. A relao entre iguais em

    momento algum, como se v, engendra qualquer tipo de dependncia. Ao contrrio, o que sev uma afirmao extrema da independncia de cada participante da relao, dado que o

    santo recusa o transporte enviado por Honrio e agradece Deus pela realizao do milagre.

    Entre aristocratas institu-se, desde que mantido esse estatuto, uma subordinao que ,

    essencialmente poltica, no se imiscu nas relaes fundamentais de produo e reproduo

    da vida. A vassalagem o melhor exemplo de tal caso.

    Ao contrrio, entre o santo e a multido de famintos que tem suas condies de

    reproduo possibilitadas pelo santo atravs da doao de alimentos , nada resta para

    retribuir alm de seus prprios corpos e vidas. Institu-se aqui no uma mera subordinao

    poltica, mas uma efetiva dependncia econmica, localizada no momento especfico de

    produo e reproduo da vida. O exemplo mximo aqui no outro seno a servido.

    Considerar a servido como a vassalagem destituda de luxo nublar uma diferena

    fundamental que articula e que s assim o pode fazer as classes fundamentais dessa

    sociedade e, assim toda a reproduo do edifcio social medieval.

    As consideraes acima referem-se, sobretudo, forma das relaes pessoais de

    dependncia e subordinao. Quanto s suas dinmicas e evolues histricas, as relaesintra-aristocrticas e entre a aristocracia e o campesinato tenderam a uma evoluo que

    possibilitou a completa homogeneizao da classe servil, reduzindo a dependncia os

    camponeses pobres e ainda independentes e assentando os antigos escravos em lotes

    familiares. Do ponto de vista da aristocracia, o processo de subordinao criou uma estrutura

    estatal extremamente hierarquizada e cuja sobrevivncia esteve intimamente ligada ao seu

    poder de atrao e dominao do campesinato, consubstanciada no desejo de preservao da

    mesma pela aristocracia, ainda que tenha sido alvo de sucessivos golpes dinsticos.

    Como bem nos conta Borges, o tormento de Funes, o memorioso26, conhecer os

    singulares em suas mltiplas e infinitas determinaes, mas a incapacidade de abstrair e

    generalizar o impedem tambm de pensar. Uma historia que no aborda a diferena, a

    26 BORGES, Jorge Luis. Funes, o memorioso.In: Obras Completas, V. 1. So Paulo: Globo, 2000.

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    comparao, a transformao, cujo nico objetivo adicionar elementos descries j bem

    estabelecidas uma histria perfeita para Funes, mas irrelevante para qualquer outro.