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ASSUNTO: Um Passeio por Marrocos de Moto Reservados os Direitos do Autor: www.Rituais.com Autor: Carlos Cordeiro 15-01-06 Pág. 1 Procurávamos diversidade. Encontrámo-la nas montanhas, planícies, florestas, deserto, aridez, oásis, rios amplos, leitos secos, estradas sinuosas, rectas infindáveis, arquitecturas urbanas europeias, edificações magrebinas, traços saarianos, arabescos, chuva, calor, frio, sol, neblina, fósseis, coloridos, negros, brancos, céu azul ou cinzento de chumbo, riqueza, pobreza, simpatia, corrupção, segurança, alimentação saborosa mas limitada, e um sem número de outras realidades que nos envolveram durante uma semana de viagem em território marroquino. Necessitávamos também penetrar em ambientes conotados com imaginários de peripécias e exotismo, suporte essencial ao livro que estamos a preparar sobre viagens de moto realizadas por portugueses para destinos longínquos, singulares e de aventura. Marrocos serviu para quase todos os propósitos. Planeámos a viagem de forma aturada mas não exaustiva. Traçámos um itinerário que nos possibilitasse realizar um circuito espacial e permitisse um primeiro contacto com a tal variedade e particularidade que procurávamos. Elegemos conduzir em média 350 quilómetros por dia, sendo que a etapa mais longa em Marrocos devia ter cerca de 370 e a mais curta aproximadamente 200. Lemos sobre viagens anteriores de outros motociclistas. Juntámos um conjunto de informações logísticas e culturais sobre os locais de passagem e pernoita que intentámos conhecer. Aqui exagerámos e pouco cumprimos. Choveu durante metade do percurso do primeiro dia, 3 de Novembro de 2005. O Paulo vinha de Vila Real e eu de Queluz. Encontrámo-nos em Beja. Eu ainda parei na área de serviço de Montemor para ajeitar a gola do fato de chuva. Registei aí o primeiro “take” da viagem. Informaram-me, de imediato, de que a “Companhia” não gostava que filmassem o posto. Disse-lhes que era uma filmagem documental, doméstica e ofereci-lhes a cassete. Não aceitaram, acabámos a falar de motos e viagens … Até, Beja, a PanEuropean perdeu dois parafusos de plástico da carenagem - efeito provável dos 26 kms de terra batida de ida e volta ao Pulo do Lobo efectuados duas semanas antes. Por outro lado, a velocidade da GS (por baixa que fosse) ultrapassara o limite numa localidade beirã e recebera a pena habitual.

Paulo vinha de Vila Real e eu de Queluz. - rituais.com · número de outras realidades que nos envolveram durante uma semana de viagem em ... Paulo vinha de Vila Real e eu de Queluz

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Procurávamos diversidade. Encontrámo-la nas montanhas, planícies, florestas, deserto,aridez, oásis, rios amplos, leitos secos, estradas sinuosas, rectas infindáveis, arquitecturasurbanas europeias, edificações magrebinas, traços saarianos, arabescos, chuva, calor, frio,sol, neblina, fósseis, coloridos, negros, brancos, céu azul ou cinzento de chumbo, riqueza,pobreza, simpatia, corrupção, segurança, alimentação saborosa mas limitada, e um semnúmero de outras realidades que nos envolveram durante uma semana de viagem emterritório marroquino.Necessitávamos também penetrar em ambientes conotados com imaginários de peripéciase exotismo, suporte essencial ao livro que estamos a preparar sobre viagens de motorealizadas por portugueses para destinos longínquos, singulares e de aventura. Marrocosserviu para quase todos os propósitos.

Planeámos a viagem de forma aturada mas não exaustiva. Traçámos um itinerário quenos possibilitasse realizar um circuito espacial e permitisse um primeiro contacto com atal variedade e particularidade que procurávamos.Elegemos conduzir em média 350 quilómetros por dia, sendo que a etapa mais longa emMarrocos devia ter cerca de 370 e a mais curta aproximadamente 200. Lemos sobreviagens anteriores de outros motociclistas. Juntámos um conjunto de informaçõeslogísticas e culturais sobre os locais depassagem e pernoita que intentámos conhecer.Aqui exagerámos e pouco cumprimos.

Choveu durante metade do percurso doprimeiro dia, 3 de Novembro de 2005. OPaulo vinha de Vila Real e eu de Queluz.Encontrámo-nos em Beja. Eu ainda parei naárea de serviço de Montemor para ajeitar agola do fato de chuva. Registei aí o primeiro“take” da viagem. Informaram-me, deimediato, de que a “Companhia” não gostavaque filmassem o posto. Disse-lhes que erauma filmagem documental, doméstica eofereci-lhes a cassete. Não aceitaram, acabámos a falar de motos e viagens …

Até, Beja, a PanEuropean perdeu dois parafusos de plástico da carenagem - efeitoprovável dos 26 kms de terra batida de ida e volta ao Pulo do Lobo efectuados duassemanas antes. Por outro lado, a velocidade da GS (por baixa que fosse) ultrapassara olimite numa localidade beirã e recebera a pena habitual.

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Choveu intermitentemente até Serpa. Mais à frente, a estrada de Aracena já estava seca.Escureceu antes de Sevilha. Deparámos com cerca de 3 quilómetros de obras no início dotroço de via rápida Jerez de la Frontera - Algeciras. Atravessámos o Estreito de Gibraltarem 35 minutos, cerca das 9 da noite. Demorámos meia hora na fronteira marroquina,entre papéis e guichets. Havia pouca gente a atravessar, mas imaginámos que não seriaagradável entrar em Marrocos no Verão, a meio da tarde …

Antes das dez da noite estávamos no Íbis de Fnideq, dois quilómetros dentro deMarrocos, a saborear uma tajine de carneiro. Enfiámos as motos numa divisão dagaragem, apreciámos a pequena piscina com iluminação nocturna, vislumbrámos as luzesde Ceuta ali próximo, trocámos dinheiro, deitámo-nos cedo.

De manhã, estava fresco. Percorremos a marginal de duas faixas até Tetouan, ao longo deurbanizações de ócio, algumas em ruínas, outras a estrear. Antes, algumas guaritasdispostas junto à costa, serviam de refúgio a militares enregelados. Foram quase meiacentena de quilómetros, percorridos de forma calma ante a quase inexistência de trânsito.

Atravessámos Tetouan à conversa com um magrebino montado em uma “ 125” . Dizia terestado em Coimbra e sermos povos irmãos. Convidava-nos a conhecer a Medina dacidade. Declinámos. Havia muita gente na rua, ao longo da avenida principal, embora amaioria dos estabelecimentos permanecesse de portas fechadas. Era dia de “ Festa” . Já nostinham avisado no Íbis.

Começámos a trepar o RIF. Almoçámos numa esplanada,após cumprirmos uma estrada sinuosa com piso polido. APanEuropean deslizou por duas vezes, uma delas devido agasóleo, antes detectado. Ao Paulo, foi uma abelhainsolente que lhe invadiu o capacete. Sem consequências.

Se o primeiro contacto com a gastronomia marroquina noÍbis tinha sido agradável, confirmámos ao almoço queficaríamos fãs das brochettes, uma espécie de “ espetadas” .As inaugurais foram de carneiro. Teríamos bastantesoportunidades para experimentar de frango e de cabra. Opreço foi catita.

Considerando os padrões portugueses, havia demasiadagente na berma da estrada, muitas crianças, algumas

carroças e burros. As pessoas estavam paradas à espera de transporte ou tinham comodestino a povoação seguinte. Contudo, caminhavam calmamente.

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Descemos para Fez, que se ia estendendo aos nossos olhos e alargando no espaçoconforme nos aproximávamos. Atestámos, como habitualmente antes de entrar na cidade.

Nessa altura, entrou em contacto connosco oprimeiro guia do passeio. Montado numa“ acelera” , levou-nos ao Hotel Fez Inn, no ladooposto da cidade. Assegurou-nos outro guia,este oficial, para conhecermos a Medina de Fez,experiência imprescindível conforme defendia.Não intrujou.

As motos ficaram num corredor anexo ao hotel,visíveis da nossa varanda. Daí vislumbrávamosparte da zona nova mas, sobretudo, a mancha alva da zona antiga. Ao longe, porém.Havíamos de desfrutar de horizontes mais vastos, julgávamos. Mas não naquela noite …

Seguimos com o guia num “ petit táxi” , pequeno em dimensão - Fiat Uno - e na despesa -30 dirhans / 3 euros para fazer quase umadezena de quilómetros, à descoberta da Medina.Ainda era de dia quando partimos. Mas bastouentrar no labirinto das ruelas para que parecesseter anoitecido rapidamente.

Estreito, escuro e coberto, é assim o dédalo daMedina com mais de 800 anos de existência.Actualmente em recuperação por iniciativa daUnesco - há traves de madeira a escorar meiaMedina - foi sobretudo interessante visitá-lapara experimentar o traçado labiríntico eestreito das ruas, a riqueza das decoraçõesmetálicas das portas centenárias e espreitar ointerior de algumas lojas de Ali Bábá.

Fizemos algumas compras, compelidos pelonosso guia e pelo facto da esmagadora maioriadas lojas estar fechada. Era dia de “ Festa” ,como nos repetiam até à exaustão. Este dia

correspondia ao final do período do Ramadão, durante o qual a alimentação dos crentes éescassa. Não admira que o dia seguinte, fosse de festa …

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Esse motivo, tanto explicou o facto da quase totalidade das lojas estar fechada, como osdiversos “ descontos” que os vendedores iam apregoando ao elevado preço iniciar queatribuíam aos artigos. Alguns valores, os atribuídos, por exemplo, a uma jóia em pratacom pedras de âmbar, suplantavam o meu orçamento para a viagem, mas foi vendidocom um desconto de 90% …

Não havia muita gente nas ruelas. Felizmente. Houvesse e talvez a preocupação tivessesido não sermos atropelados ou empurrados para um qualquer beco escuro. Muitas ruassão cobertas por canas ou construções, o que, aliado à extrema proximidade das paredes,veda a entrada de luz do dia, já fraca então. Em algumas, eu dificilmente passava defrente …

Saímos vivos daquele enredo, onde muitas das ruas, mais estreitas do que as anteriores,terminavam numa porta baixa e escondida. Se a luz era ínfima, as indicações eram raras.Mesmo assim, passámos por uma biblioteca localizada num edifício nobre e por umamesquita suportada por colunas de uma geometria irrepreensível. Vislumbrámos ainda ostanques de coloração de tecidos e peles, as famosas tinturarias a céu aberto. Ao lusco-fusco, confiámos que aqueles líquidos tinham cores diferentes …

Escurecera entretanto. Ao longe, uma fortaleza iluminada, dominava a Medina. Ficámosconvencidos de que, caso entrássemos sozinhos naquele emaranhado de ruas, nãofaríamos mais do que duas ou três sem que nos perdêssemos. O dédalo, a escuridão e afalta de referências, seriam os nossos carrascos, caso não possuíssemos um guia.

Ao regressarmos ao hotel, tínhamos uma rusga da polícia por companhia, ali a doisprédios de distância. Como informou o nosso guia, Moahmed, homem bem informadoque não largava o telemóvel, tratava-se de uma investida das autoridades sobre um localpúblico que não estava autorizado a vender álcool.

Acordámos ao som da chamada electrónica à oração da manhã, acompanhada poucodepois por um despique de galináceos. Ao pequeno-almoço, detectámos uma lustrosabarata a explorar a vizinhança dos recipientes de café. A empregada também. Entrámosno “ espírito” da ambiente e deixámos a praga em paz.

Abandonámos Fez de forma fácil. Talvez aqui tenhamos percebido que não é complicadodeambular pelas grandes cidades marroquinas - que não são propriamente uma grandeMedina - mas que, no entanto, não dispõem de indicações de zonas turísticas,monumentais, restaurantes, etc.

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Pouco depois, a estrada voltou a enrolar-se e a ser acompanhada de árvores, bosques decedros, sobretudo a envolverem a zona de Ifrane, uma localidade semelhante a umaqualquer congénere francesa ou suíça. Perdemos a saída mais directa e fizemos umpequeno circuito florestal que nos levou mais tarde ao caminho correcto.

Daí a pouco entrávamos no Valedo Ziz, um oásis onde corre o riodo mesmo nome por entre umavegetação luxuriante. Estespalmeirais foram uma constantenos vales, aparecendo de novo noAtlas, permitindo a concentraçãourbana em melhores condições. Aágua e a vegetação determinavaminexoravelmente o habitat humanonesta zona.

Por ali, chegámos a estar próximodos 2000 metros de altitude,quando parámos num local aparentemente isolado, mas que ainda possibilitou ao Paulopousar com um local e com o seu jumento. O passeio no burro, far-se-ia por um cigarro,segundo suspeitei …

O tempo aqueceu. O horizonte, seco, plano e vazio já deixava antever uma sombra negraque se estendia até onde a vista via. Era o recorte dos montes Atlas, os mais elevados deMarrocos e da África do norte. Estavam longe e confundiam-se com as nuvens. Aestrada, essa, parecia desviar-se, à procura de um caminho menos íngreme para oultrapassar. Assim foi.

Não cruzámos mais do que meia dúzia de jipes e um par de trails, para além dos rarosveículos dos autóctones. Destes, muitos saudaram-nos. Parámos mais vezes, sobretudo àvista de aldeias cujas casas se assemelhavam em cor e forma. As tonalidades salmão eterra dominavam os conjuntos edificados. Quanto mais para sul, mais notório se tornava.Até que, mais à frente, verificámos que o horizonte urbano não passava de uma manchasalmão, ocre e ou terra, onde apenas a dimensão das habitações concedia ligeirasdiferenças à paisagem. Essa monotonia cromática estender-se-ia às aldeias do sopé doAtlas, a Ouarzazate, a muitas zonas de Marraquexe.

O Rif deixara-nos, muito embora, de vez em quando, ainda o percebêssemos. A estradaoscilava entre o razoável e o irregular. Nalgumas curvas havia areia na estrada, rapadadas bermas. As rectas sucediam-se, aparente e momentaneamente sós. Dai a pouco, uma

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família já esperava o táxi colectivo à beira da estrada - maneira mais económica dedeslocação - ou as raras e lentas carreiras de autocarros velhos e mal cuidados.

Parámos às “ portas” de uma ou outra localidade,à sombra de pequenas torres de adobe ou tijolorebocado que pareciam portais de fortalezas.Porém, raramente percebi o nome daslocalidades, por serem escassas as placas que omencionavam, até mesmo em árabe.

Ultrapassámos Erfoud, onde já se respirava umambiente de deserto. O movimento de pessoas eveículos pareceu recrudescer. Parámos à saídada povoação, junto de dois hotéis de quatroestrelas, para nos organizarmos em relação aodestino deste dia. Não tardou a sermosabordados por locais com oferta de alojamentos.

Dispúnhamos de um número de telefone de umconhecido do nosso guia oficial de Fez.Todavia, não havíamos ligado. Seria o nossocontacto de emergência. Não sabíamos, porém,que era exactamente de alguém que trabalhavano albergue Erg Chebi …

Parámos de novo à entrada de Rissani, última povoação antes do famoso conjunto dedunas. Como se de uma reserva setratasse, Yusef, o contacto de Moahmed ,estava nesse local à nossa espera.Trocámos algumas palavras sobre oestado do caminho para o albergue. Fácil,disseram-nos. Partimos na expectativa.

Cerca de vinte quilómetros depois deRissani, a placa indicava a direcção doalbergue, a caminho de nada. Anoiteceu,mal entrámos na terra batida. A carrinhaentrou à nossa frente e iniciou um bailadosobre terreno quase lavrado, numasucessão de curvas aparentemente

desnecessária.

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O solo foi amolecendo, até que o Paulo saiu do trilho, apanhou areia e enterrou a GS.Parámos e só foi preciso endireitar a BMW. O Paulo já estava em pé a verificar que nãohavia estragos. A partir dali dissemos aos guias que os queríamos bem na nossa frente ailuminar a pista.

Daí a pouco vislumbrámos o que parecia serum pequeno forte da Legião Estrangeira. Era oalbergue. Um quarto simples mas catita, umasala de jantar simpática com uma mesarecheada de livros de viagens, uma recepçãocom frigorífico comunitário. Edifícios comparedes e telhados lisos, tudo em adobe. Emredor, uma escuridão que criava algumaexpectativa quanto ao cenário do dia seguinte.

Jantámos quando quisemos, onde quisemos,conversámos com os anfitriões, demos umavolta pelo “ forte” . Celebrámos a nossachegada ao deserto com duas garrafitas de

” Magos” . A luz “ faltou” quando tomávamos algumas notas no quarto. Era habitual sercortada, para poupar energia.

De manhã, não resistimos em voltar aotelhado, ainda antes de tomarmos o(robusto) pequeno-almoço. Para oeste,a pista que havíamos feito na noiteanterior, mantinha-se vazia demovimento. Para norte, outra pistalevava ao albergue vizinho. Para sul,idem. Para leste, pequenas dunasantecediam outras de maior dimensão,num ondulado avermelhado queconfirmava que aquelas pequenaselevações de areia junto ao alberguecresciam bem mais do que as da Costada Caparica.

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Saímos rápido para a areia. Frescura, moleza e finura, foram estas as sensações primeirasque os pés nus me ofereceram. Apetecia continuar por ali, à espera de quem chegasse oude quem partisse, ou simplesmente a contemplar o ondulado avermelhado que se estendiapara leste a perder de vista. Só as sombras originadas pelos declives marcam a diferençade relevo.

Na próxima vez, “ inchala!” - umvocábulo equivalente ao nosso “ deuste ouça” ou “ oxalá” , comofrequentemente era invocado pelosnossos interlocutores - afiançámosque dormiríamos no deserto, apósum passeio de camelo e subiríamos àduna maior que nos desafiava.Teremos tempo suficiente parareflectir. Afinal para subir aquela queparecia mais próxima eram 45minutos a subir e outros tantos adescer.

Decidimos deixar o deserto entregue ao vendedorde fósseis que nos procurou na duna e vestia deazulado tuareg. Dizia não serem longe as minasde onde trazia as pedras que apresentavamanimais fossilizados que, apesar de seremantigos, polidos pareciam plastificados.Aconselhou-nos a passar uma noite no deserto, avisitar as grutas, a passear de camelo.

De dia, a pista mostrava-se mais fácil. Erectilínea. A não ser que os nossos homens dodeserto navegassem à vista (às escuras e seminstrumentos, na realidade) essa seria a únicarazão para, na noite anterior, termos feito tantascurvas … . para seguir em frente. Ah, e aescuridão nocturna do deserto? E aquele piso de“ chapa ondulada” ? Desgraçada Pan, aziago rabo.

Os palmeirais de Achouria e Touroug guiaram-nos até Tinejdade. Atravessámos outras localidades vizinhas e parámos algures, entre

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edifícios coloridos de cor salmão desbotado pelo tempo. O Paulo distribuiu mais algumascanetas, enquanto eu tentava perceber o que levava as pessoas constantemente de um ladopara o outro, percorrendo toda a localidade. Talvez a resposta esteja na distribuição doabastecimento, disseminado ao longo das estreitas mas extensas urbes.

Frequente nas aldeias, a aproximação de crianças a pedir “ stylos” e uma curiosidadeserena sobre a nossa presença. Nesta zona, muitas mulheres envergavam uma espécie dexaile negro, com ou sem listas estreitas de cores vivas. Normalmente andavam de rostotapado ou tapavam-no quando nos aproximávamos ou apontávamos as objectivas na suadirecção.

Sensivelmente a meio do percurso, dei por mim com ciúmes do banco da moto com aespuma de origem. O meu, rebaixado pelo dono anterior da Pan, favorece amaneabilidade e estabilidade da moto, além de permitir conduzir mais protegido pelovidro frontal. Todavia, após duzentos quilómetros de estrada irregular, começa a sentir-senos ossos a base metálica do banco …

Até Tinejdade as rectas dominavam a paisagem. Até que, os contrafortes do Atlasapareceram de novo a invadir o horizonte. Ao longe, algumas manchas alvas indicavam aexistência de neve nos cumes. Parávamos para fotografar a aridez. Depois, o relevocomeçava a enrugar-se e a crescer ao nosso lado direito. A vegetação, agora maisdiversificada, afastava-nos do ambiente do deserto. Deixámo-lo, com saudade.

Passámos mais aldeias. No sopé doAtlas havia mais gente, animais,veículos dos anos 60, muitas criançasao longo da estrada e nas aldeias.Condutores simpáticos indicavam-nosfrequentemente que podíamosultrapassar. Os comportamentostambém davam ares de há 40 anos emPortugal.

Almoçámos em Boulemane, umalocalidade estreita, sinuosa e extensa,que serpenteava por um vale #. Ascores das habitações e do relevo confundiam-se, apenas mediadas pelo detalhe do declivee pelo verde do palmeiral. O restaurante tinha uma esplanada excelente, de onde secontemplava grande parte do vale.

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Começou a chover, mal chegou o pão à mesa, e nem com o chapéu-de-sol abertoevitámos recolher ao interior. Entretanto, chegou um grupo de enduristas franceses emKTM 450. Andavam pelo Atlas com um guia marroquino. O mais novo, era mais velhodo que eu. Desejámos-lhes “ boas pistas!” .

Parámos com frequência empalmeirais para fotografar umKasbah - povoações fortificadas,equivalentes aos nosso castelosmedievais - motivados peloaparecimento de um arco-íris ousimplesmente para descansar orabo das imperfeições da estrada.

Deixámos, pesarosos, para novaoportunidade - “ inchala” , impõe-se- os percursos das gargantas doTodra e do Dades. Com aproximidade de Ouarzazate, asrectas sucediam-se com mais frequência. Chegámos cedo, passámos por um hotel de 4estrelas onde estava uma comitiva motociclística de americanos e israelitas, organizadapor um inglês que aluga motos em Valência e guiada por um marroquino.

Ouarzazate é umacidade recente, bemcuidada e destinada àclasse alta e ao turismode elite. Dispõesobretudo de uma ofertahoteleira de alto nível eem crescimento, aliadaà existência de umcampo de golf degrandes dimensões

junto de uma barragem e de aeroportointernacional.

Aqui não podemos visitar o kasbah porque sódepois de jantar nos dispusemos fazê-lo. À noite,além de não haver luz instalada, apenas osautóctones lá se orientam. Assim sendo, optámos por ir às compras. Antes, jantamos num

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restaurante muito agradável com plataformas assimétricas e bom panorama, queencimava um complexo de lojas. A vista ampla para o kasbah, iluminado exteriormentede maneira delicada, e o espaço de lazer que circundava a zona, deixou-nos durante umror de tempo a contemplar aquela arquitectura de traços elementares mas harmoniosos.

Entrámos na loja de um tuareg e, enquanto nos preparava um chá, mascarámo-nos comjabalas e espiolhámos as riquezas expostas. Contámos algumas anedotas de vizinhos, umtraço comum a europeus e magrebinos. Deixámos o Aziz quando ele sacou da sua caixamágica e, de lá retirou, como lâmpada de génio, os artigos mais valiosos que tinha paravender, jóias obviamente.

Ficámos hospedados num hotel que oferecia frigorífico no quarto, espaço suficiente paraos sacos de depósito, capacetes e demais tralhas sem ficarem a importunar o caminho.Dispunha bons colchões na cama e também das habituais toalhas limpas, mas rotas. Opequeno-almoço podia ser tomado junto à piscina onde, naquela altura, apenas meiadúzia de pombos iam bebericar água.

De manhã, impusemos uma boa primeira velocidade para trepar a rampa da garagemonde havíamos estacionado as motos, junto com quatro ou cinco quads com bom aspecto.Na noite anterior, lá em baixo, encostado à parede livre, um dos empregados haviaesticado um pequeno tapete e feito as suas orações, enquanto nós descarregávamos osnossos pecados em sacos de depósitos e nos sacos das malas …

Uma constante ao longo dopériplo foi a tentativa doscomerciantes, e não só, dedescobrirem a nossa identidade,perguntando: “ italianos … ?” . Àresposta “ portugueses!” , nãomostravam qualquer emoçãopeculiar. A mais evidente foi,porém, a de um lojista em AitBenadou, que nos perguntou sehavíamos vindo de moto e largouumas boas gargalhadas - coisarara de ouvir, uma vez que osmarroquinos nos parecerampessoas calmas, poucoestouvadas - quando a resposta que recebeu foi, “ não! Viemos de helicóptero!” .

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Poucos quilómetros após a saída de Ouarzazate, parámos à vista dos Estúdios Atlas,talvez fascinados pelas estátuas egípcias que, como pares de sentinelas, decoravam omuro de adobe que circundava o complexo. Face à investida de promotores locais,retirámos em ordem.

Aint Benadou, que alcançámos após cerca de meia dúzia de quilómetros numa estradasecundárial, é um dos kasbahs mais conhecidos e visitados de Marrocos. A suareconstrução parece ter sido assegurada pela Unesco, sendo bastante necessário que talapoio se concretize rapidamente. Não será seguramente a vintena de dirhrams que ládeixámos a suportar o custo das obras de que tanto necessita para a respectivamanutenção. Foi aqui, a única vez que ouvimos falar português em território marroquino,a dois casais de turistas já entradotes.

Como só é possível ter aceso ao kasbah atravessando o leito seco de um oued - rio -deixámos as motos na outra margem e carregámos os capacetes e o sacos de depósito.Não é muito funcional fazê-lo, mas a verdade é que o espaço anteriormente livre na malade topo, já estava ocupado com as míseras compras que havíamos feito em Fez.

O kasbah encontra-se numa formação rochosa elevada e a acompanhar o relevo daspedras. Dentro do perímetro formado pelas paredes das habitações exteriores - que seorganizam como de uma muralha se tratasse - surgem outras, consecutivas, em váriosníveis e de diferentes alturas, construídas em adobe, algumas com três e mais andares.

Estava quente o dia. Com a tralha às costas - capacetes, saco de depósito e blusão - rarafoi a parede que falhei, deixando algumas marcas naquele património mundial. Saímosde lá, esmagados pela simplicidade mas, ao mesmo tempo, grandeza do conjunto. Ali, aocontrário das medinas, adistribuição espacial dashabitações, por ser feita emaltura e assimetricamente,permitia à maioria a entrada desol e vista desafogada.

Voltámos à estrada, ao trânsitodiminuto - muitos veículosguiado por negros vindos dosul - às boas indicações desegurança viária - todas ascurvas mais acentuadas estãoassinaladas - às pequenaslocalidades bordejadas por

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vegetação - locais privilegiados para fixação das populações. E o Atlas, sempre presente,ia-se aproximando de forma suave mas ameaçadora.

Lá no cimo, o céu apresentava várias tonalidades de cinzento, a anunciar borrasca. Aestrada voltou a enrolar, subindo ligeiramente. Caíram algumas pingas tímidas ao longodo início da subida mais pronunciada. Parámos para mudar de luvas e apertar melhor osfatos.

Depois, desatou a chover. O céu, em redor, estava chumbo e vomitava torrentes de água.De tal maneira que a estrada começou a ser atravessada por regos de água barrentaprovenientes das bermas. Eu não voltei a inclinar a Pan, depois de uma escorregadelamais pronunciada.

Entretanto, durante uma aberta curta, parámos praticamente na passagem de Tizi-n-Tichka, onde supomos termos estado próximo dos dois mil metros de altitude. Estava frioe ameaçava continuar a chover. Não demorou. Os regos de água voltaram a atravessar aestrada especialmente nos locais onde esta se tornava mais sinuosa e panorâmica.

Na descida, o tempo conteve-se. Mesmo assim, não apeteceu parar nos inúmeros locaisde venda de artesanato, barros sobretudo, que bordeavam a estrada, alguns implantadosem cornijas ou nas bermas das curvas mais pronunciadas. Deixei com pena, aquelespratos coloridos ainda nos expositores que iam atribuindo alguma cor à monocromiaserrana.

Já com o sol a surgir entre os cumes do Atlas,parámos para almoçar numa localidade que poucomais tinha do que algumas lojas e restaurantes narua principal. Mais um assador, mais brochettes decarneiro. Mais uma ida à casa de banho, ondeimperava sempre uma torneira lateral em baixo,uma espécie de balde de praia e uma sanita ao níveldo solo. Tinham, também, um cheiro peculiar.

Deixámos o vale e entrámos numa zona plana.Alcançámos rapidamente os arredores deMarraquexe, através dos respectivos subúrbios.Atentos ao trânsito, enleados na modernidadeurbana que ia surgindo, quase sem dar conta,internámo-nos na cidade ao longo de grandesavenidas e demos rapidamente com um hotel.

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Eu esperava ver muralhas colossais, como anfitriãs, a circundarem a cidade e aesconderem-lhe as casas e as gentes. Só próximo do hotel onde ficámos as percebemos,mais baixas mas a formarem um conjunto admirável de cor salmonada. Em seu redor,jardins arranjados, iluminação agradável, bastante vegetação. Da varanda do hotel,contemplava-se um mar de edifícios com a mesma cor das muralhas.

Tínhamos o fim da tarde e a noite á nossa frente para participarmos, pelo menos, nadinâmica praça Jemaa Al Fna, uma referência da cidade que deu o nome a Marrocos.Arrumámos as motos num parque fechado mas a céu aberto, junto do hotel. Era vigiadopor dois velhotes simpáticos. Um deles mostrou-nos uma moca de respeito destinada aoseventuais ladrões. Ficámos descansados.

Saímos daí a pouco. Penetrámos nas muralhas através de uma avenida larga e extensa edai a pouco estávamos perante a imponência da torre Koutoubia, com 70 metros dealtura. Depois, foi a mesquita de BenY usef, ladeada por um espaço amplo com dezenasde colunas baixas, que domina o final do que podia ser um perfeito jardim andaluz.

Quisemos passar para o outro lado da estrada. Desconfiávamos, mas confirmámos que,em Marrocos, o peão era o elo mais fraco da circulação. É necessário fintar, bailar, correrentre faixas de rodagem para chegar ao outro lado da rua, caso não haja semáforos.Porém, o único atropelamento que vimos, ocorreu na praça Fna, protagonizado por umciclista. Não foi grave e cada um foi à sua vida.

Anoiteceu. Percorremos algumas ruas e lugares de comércio temático - tecidos,especiarias, candeeiros - até encontrarmos o palácio Bahia, fechado. Metemos por essarua, que levava a outra mais estreita, a outra ainda mais apertada. Estávamos no limiar daMedina. A partir daí o tráfego de gente, bicicletas e motorizadas começou a fazer parte daruela, que mostrava lojas de um lado e do outro. De uma era possível ver que horas eramno relógio de pulso do vendedor da do outro lado.

Daí a pouco, desembocámos na Fna como por encanto. Observada do solo, a praça nãoera mais do que um espaço amplo com muita gente a vaguear. Cedo percebemos que eramais do que isso. Do alto de um quarto andar onde jantámos - após propormos um menue o nos terem sugerido o preço - era possível ver um mar de gente, que ocupava osespaços vazios da grande praça, passeava junto às lojas, abancava nos restauranteimprovisados do centro, envolvia as bancas ambulantes ou assistia a desempenhosmusicais, adivinhações, sugestões terapêuticas, ou bebia simplesmente um saboroso sumode laranja marroquina por 3 dirhans.

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Pouco depois, metíamo-nos de novo na Medina e entrávamos e saíamos de um souk(mercado) como experimentados locais. O colorido dos produtos, os cheiros dassubstâncias, a animação tranquila das ruelas, motivou-nos a prosseguir por outras aindamais recônditas. Porém, a partir de certo ponto era impossível continuar, sob pena de nosperdermos. Se fosse em Portugal, provavelmente não me aventuraria tanto por aquelesbecos. Lá, senti segurança, talvez de principiante.

Voltámos à praça para o Paulobeber um sumo de laranja. Euenveredara pelos doces, em máhora, já que o sabor da descobertaobrigou a mascará-loposteriormente com um sumo delaranja. Deixámos a praça comvontade de termos experimentadoa comida dos restaurantesimprovisados para onde nosconvidavam sistematicamente.Para uma segunda-feira à noite,Marraquexe estava animada.

Habituámo-nos a deixar as motos noparque do hotel e efectuar as visitas a pé.Descansávamos o corpo do exagero dosefeitos de algum piso degradado,exercitávamos as pernas e deixávamos deter preocupação com alguma curiosidadeexperimental por parte dos locais.

Saímos de Marraquexe com a sensação deque tínhamos abandonado o Marrocos doexotismo, da novidade, da diferença. Pelopercurso subsequente, parece que não nosenganámos muito. A montanhadesapareceu, bem como alguma daquelaaridez que antecedia o deserto. Os oásiseclipsaram-se e a vegetação empobreceu.O vestuário das pessoas nas localidadestornara-se semelhante ao europeu. O pisodas estradas melhorou e passou a existir

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mais trânsito. Mesmo assim, não optámos pela auto-estrada. Aproximamo-nos da Europa.

O longo ingresso em Casablanaca, através de avenidas infindáveis e de trânsitocompacto, confirmar-nos-ia essa impressão. Até onde a vista alcançava, a tonalidadesalmão das casas havia sido substituída pelo branco sujo das fachadas e pela profusão devidro dos prédios modernos de estilo europeu. A organização viária melhorara, mas asindicações urbanas escasseavam, uma constante ao longo do passeio. Herança francesasupomos, o buzinar assim que o semáforo fica verde, tornou-se ali mais presente, maisirritante.

A ausência de indicação de lugares históricos manteve-se. O centro das cidades ealgumas instituições estão assinalados nos cruzamentos principais, assim como asdirecções das cidades seguintes. Porém, para encontrar lugares - como sejam asmesquitas, palácios, necrópoles, torres - ou se sabe o ponto do GPS, é a direito, ou sepossui uma boa planta do local. A estruturação do património monumental não foi aindacopiada do sistema europeu.

Parámos as motos à vista da imensa mesquita Hassan II, mesmo à beira de um Atlânticorevolto e frescote. Partimos através da zona portuária com destino a um qualquerrestaurante costeiro onde pudéssemos comer peixe. Gorou-se a oportunidade aoverificarmos que, fora da cidade, a extensa faixa habitada junto à praia não dispunha deum único. Voltámos às brochettes, esgotadas que pareciam estar as tajines e os couscous.

Fizemos dezenas de quilómetros junto à costa, polvilhada de habitações semelhantes àsalgarvias ou andaluzas da orla marítima atlântica ou mediterrânica. Umas mais pobres,outras riquíssimas. Umas das casas do rei de Marrocos, algures antes ou depois de Rabat- não sei precisar - estendia-se por alguns quilómetros e albergava um campo de golfe,em pleno contraste com a mesma dimensão de um bairro de lata ali próximo, cujostelhados todavia mostravam algumas centenas de antenas parabólicas …

Deixámos a zona costeira quando a estrada se tornou mais sinuosa e as sucessivaslocalidades obrigavam a rodar lentamente. Contudo, entrámos na capital de Marrocos,Rabat, pelo extremo sul e rapidamente encontrámos a grande muralha que encerra okasbah das Oudayas e a respectiva Medina, ali muito perto das praias.

À noite arremetemos pela Medina, à procura de um restaurante típico. Apesar de termosperguntado por restaurantes, recebemos informações contraditórias e recorremos a umsnack com fraco aspecto. Porém, a refeição foi excelente - as melhores brochettes daviagem - e das mais baratas em território marroquino. Percorremos meia Medina, entreruas que continuavam a alimentar a imaginação de ver ali um Minotauro, mas, apesar de

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continuarem a existir lojas catitas e estranhas, bem como produtos singulares, antigos,velhos e gastos, o plástico começava a tomar conta de muitos espaços.

Numa das ruelas quepalmilhamos, apósdecidirmos que tínhamos devoltar para trás, “ que aquilonão dar a lado nenhum” ,parei de filmar. Continuei aandar, absorvido peloaspecto decrépito do espaçoe pela antiguidade de algunsprodutos. De um momentopara o outro, comecei a seracompanhado por um rapazalto que, após algunsvocábulos ininteligíveis, mepassou a informar sobre olocal onde estávamos -antigo bairro judeu - que este

espaço ia ser alvo de intervenção com capitais israelitas, questionava-me se a ajuda judiadevia ser bem vinda, defendia a recuperação dos espaços urbanos, perguntava-me deonde vinha.

Eu julguei que se tratava de maisum guia de geração espontânea,mas fui ouvindo o que ele tinhapara dizer. Quando estava prestea perguntar-lhe qual era opropósito da exposição, apercebi-me de que estávamos a caminharem sentido contrário ao dorestaurante e alertei o Paulo.Esboçámos sair da Medina e omeu interlocutor despediu-setranquilamente e seguiucontinuando a beber o seu chá …

Ainda percorremos uma avenidade traçado moderno, comedifícios de estilo europeu, passámos por uma mesquita iluminada e esticámos as pernas

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ao longo de ruas de um bairro elegante. Chegámos ao hotel com vontade de beber umchá. Ali, não soube tão bem como o de hortelã, servido pelo vendedor de tapetes em Fez.Surpreendidos também ficamos ao assistir à transmissão relatada de um jogo de futebolna televisão Al Jazira entre o Marítimo e outra equipa portuguesa.

De manhã, parámos pouco depois do arranque, para fotografar as muralhas de um castelo,semelhante aos portugueses, construído em pedra acinzentada, o único dessa tonalidade,que vislumbrámos durante a viagem. Do outro lado da estrada, as muralhas árabes dacidade amarelecidas pelo tempo, faziam o contraste.

Antes de almoço, parámos em Arzila, para beber um café, o mais caro da jornada, aomódico preço de dez dirhrans, sensivelmente um euro. Havíamos deixado as overdosesde regateio pelo sul de Marrocos, pelo que apenas comentámos o facto. De pouco serviuestarmos frente às muralhas portuguesas que encerram uma famosa cisterna …

O tempo havia esfriado, embora o sol estivesse sempre presente. Em Tanger, não foi fácilarranjar um restaurante junto à areia da praia. Todos pareciam estar em reparação. Umdeles, onde julgávamos poder comer um dos oito pratos de peixe anunciados na ementa,apesar da boa vista e da decoração cuidada, pouco tinha para oferecer. Da janela, jávíamos o recorte da costa espanhola.

Parámos à saída da cidade para fotografar alguns camelos que descansavam na areia.Exceptuando dois que vimos regressar do deserto no Erg Chebi, apenas havíamosvislumbrado ao longe a silhueta de quatro ou cinco, algures numa zona árida depois deRissani. Durante o passeio, vimos mais burros do que camelos.

Ao entardecer, metemos pelas falésiasque dominam o caminho entre Tanger eCeuta. A partir de certo ponto, o ventosurgiu mais forte, conforme íamossubindo as elevações, cada vez aatingirem maior altitude. A paisagematraía e nós parámos três ou quatro vezesem cerca de 40 quilómetros de montanhae pequenas enseadas.

Chegámos a Ceuta pouco depois dobarco das quatro e um quarto ter partido.Tínhamos de esperar mais quatro horas

pelo próximo. Fomos beber um café ao centro, depois de atestarmos a 87 cêntimos o litro.

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Desligámos o nosso sistema horário e perdemos o barco seguinte, ao orientarmo-nos pelahora marroquina, nesta ocasião igual à nossa, mas atrasada uma hora em relação àespanhola que, obviamente, vigora em Ceuta. Tansos que fomos, batidos por uma questãoelementar.

Ficara noite. Não valia a pena esperar pelo próximo barco, o último daquele dia comdestino a Algeciras. Decidimos ficar no Parador de Ceuta, após termos conhecido cadaviela da cidade à procura de alojamento. Com efeito, a oferta hoteleira é escassa.

De manhã, entreguei as últimas dezenas de dirhans possíveis ao parceiro do políciafronteiriço marroquino, que me garantiu precisar mais deles do que eu. Em troca,carimbou os dois passaportes enquanto o Paulo tirava o capacete. Todavia, nem sequernos pediram uma das vias do documento de entradas das motos. “ Ainda por cá andam!” ,devolverá o computador da próxima vez que lá entrarmos …

Desta vez, demorámos quasetrês quartos de hora parachegar ao outro lado doEstreito. Porém, à hora dealmoço estávamos em Elvas.Deixei o Paulo sob oaqueduto, a caminho do seuTrás-os-Montes. À hora dolanche, regressava a casa,ainda passava o dia 10 deNovembro.

Hoje, duas semanas após oregresso, ainda se sucedemmuitas imagens da viagemenquanto escrevo. Surgem em cascata, mas não são muito diferentes umas das outras. É,contudo, um conjunto de representações simpático que me ajudou a relatar este passeio.Creio que algumas ainda estão ocultas e outras nunca se irão revelar.

Fico devedor da notável companhia do Paulo. Há escolhas distintas que determinam anossa felicidade. Sinto-me afortunado.

Carlos Cordeiro

Nota: este texto é o sumário de um resumo da viagem, um capítulo tímido do queenvolveu a jornada. Ainda assim, sintetizar sete dias diferentes da nossa mesmice

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quotidiana, pareceria uma lista de compras. Para não compor uma colecção de viagem,fiquei por aqui. Sinto o desgosto de não ter juntado alguns detalhes curiosos oupolémicos, mais informação cultural e praticamente não ter dado nota das motos que noslevaram.