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Padre Emmanuel Marie André O Naturalismo Opúsculo d Opúsculo d Opúsculo d Opúsculo de Pe. Emmanuel e Pe. Emmanuel e Pe. Emmanuel e Pe. Emmanuel-André André André André LÚCIDA ANÁLISE DA CAUSA DA DECADÊNCIA DA CIVILIZAÇÃO CATÓLICA. O QUE É O NATURALISMO; A ORDEM NATURAL E A ORDEM SOBRENATURAL - OS TERMOS: NATURAL, NATURALISMO E GRAÇA; O MAL DO NATURALISMO ENTRE OS CATÓLICOS; OS REMÉDIOS CONTRA O NATURALISMO. Divulgado por: Católicos Alerta! www.catolicosalerta.wordpress.com Ano: 2014

Pe. Emmanuel-André - O Naturalismo

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Pe. Emmanuel-André, OSB (1826-1903). Lúcida análise da causa da decadência da civilização católica. O que é o naturalismo. A ordem natural e a ordem sobrenatural. Os termos: natural, naturalismo e graça. O mal do naturalismo entre os católicos. Os remédios contra o naturalismo. * Link: https://catolicosalerta.wordpress.com/2014/07/14/o-naturalismo/ Católicos Alerta! Folhetos, livros e livretos para propagação da Fé Católica.

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Padre Emmanuel Marie André

O Naturalismo

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LÚCIDA ANÁLISE DA CAUSA DA DECADÊNCIA DA CIVILIZAÇÃO CATÓLICA. O QUE É O NATURALISMO; A ORDEM NATURAL E A ORDEM SOBRENATURAL - OS

TERMOS: NATURAL, NATURALISMO E GRAÇA; O MAL DO NATURALISMO ENTRE OS CATÓLICOS; OS REMÉDIOS CONTRA O NATURALISMO.

Divulgado por: Católicos Alerta!

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O Naturalismo - Opúsculo de Pe. Emmanuel-André

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ÍNDICE

Introdução - Apresentação do Opúsculo .......................................................................... 03

Parte I: O Naturalismo Teórico

1º Capítulo: O que é o Naturalismo .... 04

2º Capítulo: A natureza e seu mal ...... 09

3º Capítulo: Natural, Sobrenatural e graça ................................................... 11

4º Capítulo: Uma profissão de fé naturalista ........................................... 14

5º Capítulo: As ilusões naturalistas sobre o amor de Deus e do próximo ............. 17

6º Capítulo: O naturalismo entre os católicos .............................................. 20

Parte II: O Naturalismo Prático

7º Capítulo: As chagas da natureza ... 22

8º Capítulo: Os pecados capitais ........ 25

9º Capítulo: A moral do decálogo e a moral independente ............................ 27

10º Capítulo: As ignorâncias do naturalismo ......................................... 30

11º Capítulo: Os remédios para o naturalismo ......................................... 32

Fonte: http://www.permanencia.org.br/vida/Emmanuel/naturalismoindex.htm

Pe. Emmanuel-André, OSB (1826-1903). Grande espiritual do século XIX, restaurou a fé na sua pequena paróquia do Mesnil de Saint Loup, na França, tendo fundado em seguida um mosteiro beneditino, do qual foi o primeiro abade.

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INTRODUÇÃO

Dom Lourenço Fleischman, OSB

Abra este livrinho, leitor católico, com a certeza de nele encontrar uma análise profunda daquilo que resta de catolicismo na nossa sociedade. O Pe. Emmanuel escreveu-o no século passado, mas temos a impressão que assiste ao que nós vivemos.

Na verdade, as realidades expostas pelo autor só fizeram se acentuar nestes cem anos que nos separam da sua redação. O catolicismo desapareceu da vida social, Nosso Senhor Jesus Cristo não reina mais sobre as nações; nossas famílias se vêem ameaçadas por todos os lados: o espírito naturalista, tendo penetrado nos lares cristãos, não deixa nada intacto, e os melhores deixaram-se corromper pelo liberalismo reinante.

Dentro do esforço empreendido há mais de trinta anos de restauração de uma elite católica, mais uma vez pedimos ajuda ao Pe. Emmanuel, certos de que sua fé profunda, associada a uma rara penetração nos assuntos de que trata e de uma grande simplicidade de expressão, proporcionará aos nossos leitores uma boa ocasião de conhecerem melhor o perigo que corremos de diminuir nossa santa religião, deixando-nos contaminar pelo naturalismo.

É preciso defender nossa fé, defender a Santa Igreja dos ataques dos seus inimigos. Viver em torno da Cruz, em torno do altar de Nosso Senhor, porque «o justo vive de fé». Isso quer dizer viver da vida sobrenatural, ou seja, da Caridade, que é o amor de Deus presente em toda nossa vida, nos nossos interesses, nos nossos atos. Assim fazendo fugiremos do espírito naturalista e trabalharemos para a vida eterna.

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PARTE I: O NATURALISMO TEÓRICO

PRIMEIRO CAPÍTULO

O que é o Naturalismo?

A fé nos ensina que a natureza humana foi elevada a um estado sobrenatural pelas graças que Deus quis derramar sobre os nossos primeiros pais. Quis que eles fossem não apenas suas criaturas, mas seus amigos. Deu-lhes a fé, a esperança, a caridade, tesouros infinitamente preciosos, pelos quais os homens viriam a merecer bens ainda mais preciosos, uma felicidade infinita no seio do próprio Deus.

O que Deus deu a Adão, destinou a todos os seus filhos, que deveriam receber, ao mesmo tempo, a natureza e a graça.

Este magnífico plano de Deus foi atrapalhado pelo pecado de Adão. Desde então, todos os seus filhos recebem dele a natureza, mas a natureza despojada da graça, manchada pelo pecado, deteriorada quanto ao corpo e quanto à alma. Quanto ao corpo, que tornou-se sujeito às doenças e à morte; quanto à alma, que foi subjugada pela ignorância, pela concupiscência e, finalmente, pela morte eterna.

Sem esses dados da fé, o homem é para si mesmo um mistério inexplicável, porque há no homem traços ainda bem sensíveis de sua primitiva grandeza. Ele aspira à felicidade, que procura com incomparável ardor. Quer a imortalidade. A morte é para ele um enigma. Por outro lado encontra em si inclinações que o fazem enrubescer, apetites que condena mas que desejam ser satisfeitos. Carrega consigo a vergonha e essa vergonha é também um enigma. Porque se envergonhar do que é natural? E, por outro lado, porque a natureza humana traz em si mesma aquilo que a envergonha?

Esses problemas são grandes no presente, porém não maiores do que os do futuro. O que se tornará essa alma que quer ser imortal? Qual será o resultado final da responsabilidade dos atos de cada dia?

Somente a fé pode responder a todas essas questões que têm ocupado os espíritos sérios de todos os tempos. Somente na fé o homem pode encontrar a explicação de sua natureza. E isso é uma prova, entre tantas outras, de que a natureza foi e permanece criada para um fim sobrenatural.

O estado natural, quer dizer, o homem criado em estado puramente natural, sem a graça e sem pecado, é um estado que nunca existiu. A humanidade só conheceu ou o estado de graça ou a decaída da graça, que é, por via de conseqüência, o estado de pecado.

Quando a humanidade estava em estado de graça, caminhava na via da felicidade por onde a mão de Deus a conduzia infalivelmente.

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Agora que a humanidade caiu do estado de graça para o de pecado, ela está fora do caminho da felicidade e, por conseqüência, se encontra na via da infelicidade eterna.

A vinda do Redentor retira-nos do caminho infeliz, retira-nos do pecado, nos reintegra na graça de Deus, leva-nos para o céu. Fora da Redenção de Nosso Senhor não há salvação para a humanidade. Só lhe resta sofrer aqui em baixo e tais sofrimentos são apenas o começo dos males que não têm fim.

Eis a verdade.

Ora, existe um sistema pseudo religioso, pseudo filosófico,que pretende abarcar tudo, no presente e no futuro.

Um sistema que não leva em conta a queda primitiva, nem as chagas que carregamos em conseqüência dessa queda.

Um sistema que nem sequer se digna a prestar atenção ao que é, para a nós, a Redenção de Nosso Senhor Jesus Cristo. Que não leva em conta nosso batismo, nem os sacramentos que recebemos da misericórdia de Deus para a nossa salvação.

Um sistema que, insurgindo-se contra a palavra dita a S. Paulo: "minha graça te basta", diz ao contrário: "a natureza se basta".

Um sistema que, voluntariamente, fecha os olhos à vergonha que levamos em nós mesmos e que, longe de explica-la, põe sua glória naquilo que traz a confusão.

Um sistema que não tendo doutrina sobre a origem de nossa natureza, não tendo doutrina sobre o futuro da humanidade, faz-se de mestre, de doutor, de panegirista da natureza, gritando em todos os tons que, para ela, tudo está bem.

Esse sistema é o naturalismo.

Imaginem um doente que tendo caído, machucado pela queda, queimando de febre, é devorado por uma sede que nada pode aplacar.

Um médico chega e lhe diz: A sede que te devora,a febre que te queima, a dor do que chamas as tuas chagas, não passa de um efeito de tua imaginação trabalhada por preconceitos de infância. Despoja-te de toda essa bagagem, nós trabalharemos em seguida para te fazer conhecer, estimar e seguir a natureza. Suas aspirações são justas e boas. O desenvolvimento de tuas faculdades nativas te convencerá disso cada vez mais. Não digas que tens chagas, não acredites no que chamas febre. E quanto a essa sede, temos calmantes....Não estás doente!

Esse doente é a humanidade, esse médico, o naturalismo.

Tomando a humanidade como ela é, o naturalismo grita-lhe: Vai muito bem, avante!

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No nascimento, o registro civil é natural, é o que basta. Depois de um nascimento civil, o casamento civil. E na morte, um enterro civil. Tudo isso se atrai, se encadeia, se sucede.

Os indivíduos podem caminhar nessa via, a humanidade nunca. A humanidade tem outras aspirações às quais os particulares podem se subtrair, mas ela permanece como Deus a fez. Ela existe para o sobrenatural, do qual tem uma necessidade invencível. As grandes indagações se põem necessariamente diante dela: Quem sou? De onde venho? Para onde vou? que caminho seguir?

O naturalismo tem ensaios de resposta. Pode insinua-los a um e a outro, mas não para a humanidade. Ela não crê nisto. Porque ela tem necessidade de crer: isto é sobrenatural e está dentro dela. Mesmo se a matassem não a fariam renunciar ao sobrenatural.

O naturalismo tem seus doutores que vão chegando e dissertando sobre o que chamam religião natural, moral natural.

Gostaríamos de ouvi-los e saber deles em nome de quem eles falam, se são suas próprias palavras ou de um outro. Se são autorizadas ou não. E se são autorizadas, por quem e como? Porque para falar a um homem basta ser homem mas para falar à humanidade é preciso ser Deus ou enviado de Deus.

Gostaríamos de saber se os doutores do naturalismo crêem em suas próprias palavras ou não. Chamamos crer em suas próprias palavras estar pronto a morrer por elas, como os Apóstolos e os mártires de nossa santa religião.

Perguntaríamos também aos doutores do naturalismo se o que chamam religião natural, moral natural, foi praticado em algum lugar ou se ainda é praticado por alguma parte da humanidade. E em que lugar e por quem?

Porque desde que a humanidade é humanidade, a religião e a moral foram sempre ensinadas sobrenaturalmente aos homens. Se aqui ou ali alguns pagãos, dando a si mesmos o nome de filósofos, ensinaram alguma coisa sobre religião e moral, a humanidade deixou-os dissertar à vontade, sem nunca escutá-los.

A humanidade nunca existiu em estado natural. O próprio paganismo se bem que fosse uma imensa aberração, procurava o sobrenatural. Nunca o atingiu, pela simples razão de que depois lhe voltava as costas e pedia luz ao príncipe das trevas.

Os doutores do naturalismo acham que há coisas boas em nosso Decálogo, sobretudo nos mandamentos da segunda Tábua.

Se tivessem podido quebrar a primeira, esconde-la para sempre e dizer que a segunda é deles, acreditariam ter feito muito pelo sistema.

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Mas não poderiam fazê-lo. O Decálogo é anterior ao naturalismo. O Decálogo, em certo sentido , é muito natural porque regula melhor os deveres da natureza, mas acima de tudo é sobrenatural porque foi entregue por Deus a Adão e depois a Moisés.

O naturalismo pode tomar empréstimos ao Decálogo e até mesmo grandes empréstimos. Mas falta-lhe uma coisa importante: a autoridade para nos falar.

Concedamos que o naturalismo possa formular um código de moral. É evidente que ele não tem autoridade para isso, mas concedamos. O código de moral uma vez editado, teria de ser guardado.

Mas se a natureza é entregue a si mesma, não lhe acontecerá seguir suas próprias inclinações (que não são nem levadas em conta) mais do que as lições de moral dos doutores do naturalismo?

Suponhamos mesmo que a natureza quisesse guardar os preceitos desses doutores, que meios teriam eles para fortificá-la contra suas próprias deficiências? Infelizmente não têm nenhum! Não podem fazer absolutamente nada a esse respeito.

A instrução, a instrução, dirão! Ora a instrução se dirige ao espírito e não pode curar uma vontade doente. Pela instrução não se pode curar o mal e, muito pelo contrário, freqüentemente abre-se com ela uma porta para que o mal aumente.

As estatísticas judiciárias nos permitem saber quantos crimes são cometidos por gente instruída, porém instruída de modo naturalista.

A instrução que moraliza só pode ser dada por uma instituição sobrenatural que se chama a santa Igreja Católica.

Impotente para curar a natureza e sem autoridade para instruir, em suma que pode fazer o naturalismo? Uma só coisa, lisonjear a natureza. E para isso ele se põe em posição nada lisonjeira.

Primeiramente, ele se divide. O que já não é uma prova de força. Divide-se em naturalismo espiritualista e naturalismo materialista.

O naturalismo materialista, para dizer a verdade, não é um sistema, é uma brutal negação. Mas nessa negação há uma lógica formidável. O naturalismo negou a ordem sobrenatural contentando-se com a natureza e em seguida é levado a negar a alma humana, contentando-se em ser corpo, carne e sangue.

Há ai uma justiça de Deus, adoremo-Lo. Mas quando o naturalismo se faz assim materialista, deixamos de argumentar com ele.

Consideremos agora o naturalismo espiritualista que quer reconhecer a existência de Deus e a imortalidade da alma.

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A imortalidade da alma leva consigo a alternativa das recompensas ou dos castigos na vida futura.

O naturalismo espiritualista nos concede esta verdade.

A qual acrescentamos: Se um dia a alma deverá ser assim feliz ou infeliz, o que acontecerá com o corpo? Será ou não participante desse estado feliz ou infeliz da alma?

Neste ponto o naturalismo não está sobre um leito de rosas.

Se ele diz que o corpo ressuscitará, é apanhado em flagrante delito porque transporta para a natureza o que é da ordem sobrenatural. Se o sobrenatural é indispensável ao fim, porque repelir no começo?

Se, por outro lado, o naturalismo tem um horror persistente pelo sobrenatural e diz: não, o corpo não ressuscitará, o sistema cai em dois grandes inconvenientes. O primeiro é destruir a moral que prescreve deveres nos quais o corpo tem sua parte, porque se o corpo não tem nada a esperar depois da vida presente, porque não gozará nela, a seu modo, diga o que diga a moral? O segundo inconveniente é que, voltando o corpo ao nada, o sistema destrói a natureza.

Eis como o naturalismo, depois de ter repelido a graça, chega inevitavelmente a destruição da natureza.

Assim o naturalismo é o mal.

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SEGUNDO CAPÍTULO

A Natureza e seu mal

Na visão do autor da Imitação de Cristo

No capítulo anterior mostramos como o espírito naturalista, querendo lisonjear a natureza, só pode enganá-la, lançando-a no impossível e no absurdo. Dissemos que a natureza está doente e a prova é que ela está morrendo. Vamos apresentar e com satisfação, um autor que, tendo estudado a fundo a natureza, e a essência do seu mal, consignou suas conclusões nos seguintes termos:

«Observa com diligência os impulsos da natureza:

Ela é maliciosa e a muitos arrasta, enreda e engana e sempre faz de si mesma seu último fim.

A natureza não quer morrer, nem ser mortificada, nem dominada ou vencida, nem se submete de boa vontade.

Trabalha por sua comodidade e atenta só para o proveito que de outrem lhe advenha.

Recebe com prazer honras e homenagens.

Teme a vergonha e o desprezo.

Ama o ócio e o descanso do corpo.

Procura possuir coisas raras e belas e repele as feias e grosseiras.

Cobiça os bens temporais, alegra-se quando ganha, entristece-se quando perde, irrita-se com a menor palavra injuriosa.

É interesseira; prefere receber do que dar; aprecia o que lhe e próprio e particular.

Inclina-se para as criaturas, para a própria carne, para a vaidade e os passatempos.

Folga com algumas consolações externas que lhe afaguem os sentidos.

Tudo faz por amor do proveito e do interesse próprio; nada sabe fazer gratuitamente, mas só pelos benefícios que espera obter, iguais ou melhores em elogios ou favores e exige que sejam tidos em alta conta seus dons e feitos.

Compras-se de ter muitos amigos e parentes; gloria-se de sua nobre posição e linhagem, sorri para os poderosos, lisonjeia os ricos e aplaude os que lhe são semelhantes.

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Depressa se queixa da necessidade e da ofensa e só combate e discute pelos seus interesses.

É curiosa, quer saber os segredos e novidades; quer aparecer e experimentar muitas sensações; deseja tornar-se conhecida e proceder de modo a conquistar louvor e admiração».

Eis uma fotografia da natureza bem anterior à fotografia moderna. O autor deste quadro não é conhecido nem procurou sê-lo. É o autor da Imitação (Liv.III. C. LIV).

Ele nos mostrou a natureza vista na realidade. Sua característica fundamental é o egoísmo e a vaidade.

Disso ela se gloria. E nem tentem lhe dizer que ela está doente!

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TERCEIRO CAPÍTULO

Explicação dos termos: Sobrenatural, Natural, Graça

Falamos do naturalismo e acertamos no alvo, porque muitos leitores nos escreveram sobre esse interessante assunto. Todos nos encorajam a continuar o trabalho começado e, sem dúvida, para nos ajudar, pedem o desenvolvimento que julgam necessário ou explicações que deverão ser úteis.

Estamos encantados com a cooperação que nos trouxeram. É nossa firme intenção ir ainda mais fundo no assunto do naturalismo a fim de mostrar a todos a necessidade que temos do divino sobrenatural. Comecemos então as explicações que nos pediram.

Chamamos natural tudo que é inerente à constituição do homem composto de um corpo e de uma alma. Chamamos natural tudo o que constitui o corpo, com seu órgãos tão variados, a alma, com suas faculdade tão poderosas e tão belas. Chamamos natural o uso e o desenvolvimento dos órgãos do corpo e das faculdades da alma em tudo o que não eleva a natureza acima dela mesma, acima do conhecimento natural e do conhecimento dela mesma, daquilo que a cerca e até mesmo do seu Criador, porque este pode ser naturalmente conhecido por suas obras, que estão diante dos olhos de todos e falam igualmente a todos uma linguagem que nem todos compreendem igualmente.

Mas como o homem não foi criado para permanecer na medida do natural e Deus quis destiná-lo a um fim superior, não temos que indagar o que o homem teria podido ser, o que ele teria se tornado, se Deus o tivesse criado para um fim que não conhecemos. É preciso dizer agora o que é o sobrenatural.

Chamamos sobrenatural tudo o que encaminha, conduz e faz o homem chegar ao fim sobrenatural que foi do agrado de Deus lhe dar. Fim este que é a participação na felicidade do próprio Deus pela clara visão da própria essência de Deus.

Todo dom de Deus acrescentado à natureza para ajudar o homem a atingir seu fim se chama graça, já que é dado ao homem por uma pura liberalidade de Deus, sem que o homem jamais possa, por si mesmo, elevar-se ao conhecimento, ou ao desejo, e ainda menos ao mérito desses dons sobrenaturais.

A passagem do natural ao sobrenatural é impossível à criatura. Nisso o anjo não pode mais do que o homem. O anjo e o homem receberam de Deus o fim sobrenatural que foi do agrado de sua Majestade soberana lhes assinalar; com esta destinação, receberam também os dons sobrenaturais, sem os quais lhes seria impossível atingir um fim tão alto e tão desproporcionado à natureza, inclusive à angélica.

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Santo Tomás1 pergunta se o homem pode obter esta suprema felicidade de ver a Deus. E responde: Pode. Sendo a inteligência humana capaz de conhecer o bem supremo e perfeito que é Deus; sendo sua vontade capaz de desejar e de amar, segue-se que o homem é capaz de chegar ao gozo desse bem que está tão acima dele e de achar nesse bem a sua felicidade eterna.

Em seguida, o santo doutor pergunta: O homem, por suas faculdades naturais, pode chegar à felicidade suprema? E responde: Não!

E acrescenta: Existe uma felicidade imperfeita à qual se pode chegar naturalmente nesta vida. Mas, consistindo a bem-aventurança do homem na visão do próprio Deus, ninguém pode atingi-la por suas faculdades naturais, nem as do corpo, nem as da alma, as quais não podem atingir a essência divina. Podemos conhecer as obras de Deus, e pela obra conhecer seu Autor. Mas chegar a vê-lo tal como Ele é , isso nos ultrapassa e nos ultrapassa completamente. Se o homem tivesse o poder natural de ver a Deus, de alguma maneira Deus lhe seria submisso, e isso não pode ser. Se, então, o homem chega à visão de Deus é porque Deus quis se revelar a ele, é porque Deus quis lhe dar os meios de ver seu Criador. É ai que está a verdadeira e única felicidade do homem, e ela é toda sobrenatural: sobrenatural em si mesma e sobrenatural no meio de atingi-la.

Dissemos que esse meio é a graça. Mas como dissemos a graça e, em seguida, as graças, um de nossos correspondentes nos pergunta se há diferença entre os dois modos de nos exprimirmos. No fundo não há. Quando dizemos a graça, entendemos tudo o que Deus acrescenta à natureza para conduzi-la à vida eterna. Quando dizemos as graças, temos em vista o conjunto dos dons divinos pelos quais o homem é ordenado à soberana bem-aventurança.

Estas graças são, principalmente, ou em primeiro lugar, a fé a esperança e a caridade. A fé, que eleva a inteligência submetendo-a à Revelação divina; a esperança, que eleva e aperfeiçoa o deseja natural que o homem tem de ser feliz, orientando esse desejo para o próprio Deus; enfim, a caridade, que diviniza, de certa forma, a capacidade de amar que Deus nos deu, e aperfeiçoa a disposição da alma para a suprema felicidade, unindo-a a Deus de antemão por meio do mais doce e mais forte vínculo: o vínculo do amor.

Mas, para que o homem chegue realmente a essa suprema felicidade é preciso que ele não apenas tenha recebido essas graças divinas da fé , da esperança e da caridade, mas que nelas persevere; é o que chamamos da perseverança final, a qual assegura, para sempre, a felicidade eterna da criatura, anjo ou homem.

Foi assim que Deus constituiu a humanidade. Nem todos os homens juntos poderão jamais fazer uma revolução tão radical que a constitua de outro modo. O sonho de uma constituição diferente para a humanidade é exatamente a essência do naturalismo.

1 Summ. la 2ae. q. V. a 1 et 5.

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Porém, se o naturalismo trabalha para tirar da humanidade a única felicidade que lhe foi preparada, não tem nenhum tipo novo de felicidade para lhe oferecer. Nem as riquezas, nem os prazeres, nem as alegrias desta vida podem ser partilhados por todos. Mesmo aqueles que gozam das riquezas e dos prazeres nos dizem que são infelizes.

Os que podem, num sentido relativo e restrito, ser felizes na terra, são os que procuram, desejam e trabalham para merecer a felicidade perfeita na vida eterna.

Se o naturalismo prevalecer, que acontecerá? Os homens serão desviados da felicidade parcial que poderiam conhecer aqui embaixo enquanto procuram a felicidade do alto. Em suma, a terra se tornaria o átrio do inferno.

Quando, na vontade de Deus, ela deveria ser o átrio do Paraíso.

É evidente que o naturalismo é, ao mesmo tempo, um crime contra Deus e contra a humanidade.

Crime contra Deus, de quem rejeita os benefícios, contradiz a Providência, condena a Sabedoria, ultraja a Bondade, provoca a Justiça , atrai os castigos.

Crime contra a humanidade, da qual arruína as esperanças, relaxa os esforços, impede a felicidade no tempo e na eternidade.

Conclui-se, portanto, que o naturalismo, apesar do nome, é inimigo da natureza.

Sob o pretexto de querer seu bem, despoja-a do verdadeiro bem e depois lhe grita: Trabalha e aproveita! Trabalha, se queres e aproveita, se puderes!

O naturalismo derruba tudo e não edifica nada: nos tira tudo e não nos dá nada. Sua obra, obra de Satanás, só faz infelizes. Portanto, como já dissemos: o naturalismo é o mal.

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QUARTO CAPÍTULO

Uma Profissão de Fé naturalista

Em Paris, a cidade-luz, como disse Victor Hugo, um homem não batizado publica um jornal chamado La Justice, onde lemos uma declaração de princípios naturalista, apresentada nesse termos:

«O que distingue a ciência da religião não é o dogma teológico, é a própria noção de sobrenatural.

As religiões brigam entre si para saber se há um só Deus ou vários...se os homens tem almas...A ciência não aborda tais dissensões.. Tudo o que escapa à observação e à experiência lhe é estranho. Para ela, são igualmente indiferentes as concepções do judaísmo, do catolicismo, do bramanismo, do fetichismo, do deísmo, do teísmo, do espiritismo e de todas as teorias que repousam sobre o absoluto e sobre a pura hipótese.

A instrução pública estatal só deve ter por base a ciência....»

Examinemos essa profissão de fé.

«O que distingue a ciência da religião é a própria noção do sobrenatural». Se o autor quisesse dizer que a ciência é um bem da ordem natural e a religião um bem da ordem sobrenatural, só poderíamos aplaudi-lo. Mas seu pensamento está longe disso. Para ele, a ciência só é ciência porque rejeita a noção de sobrenatural.

E nós dizemos que isto não tem nada de científico. Com efeito, vemos a ciência agir de diversas maneiras sobre as naturezas inferiores. Ora o homem decompõe um corpo, transforma-o e, por assim dizer, o faz passar de uma natureza para outra. Tomando um agente natural, o faz operar de uma maneira inteiramente extranatural para tal corpo assim dominado pela ciência. Será natural que o fogo conduza veículos na terra e navios no mar? Será natural que o ferro transmita o pensamento a distâncias incomensuráveis com uma rapidez só igualada pelo raio? Não vemos nisso uma ação humana, realmente natural no homem, mas extra-natural e quase sobrenatural na matéria, elevada pela ciência a um poder que ela não tinha antes?

E, se o homem exerce assim seu poder, elevando à altura da ciência as naturezas que lhe são inferiores, não é lógico admitir que Deus possa exercer um poder análogo sobre sua criatura e elevar o homem ao estado sobrenatural?

A ciência sentiu a força desta razão de analogia; assim, temendo ser levada a reconhecer o sobrenatural divino se ela reconhecesse a natureza divina, tratou de negar a existência de Deus. Ora, uma vez que se entra no caminho das negações vai-se longe. Em breve teremos a prova.

Escutemos nosso autor:

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«As religiões...» Somos obrigados a dizer que esse modo de falar não é verdadeiro. A religião é uma só, como a humanidade, como a verdade, como o próprio Deus. Não se diz as religiões assim como não se diz as humanidades, os deuses. Mas, como a verdade é uma e o erro pode ser múltiplo, diz-se: as religiões falsas, diz-se os falsos deuses. Continuemos.

«As religiões discutem entre si para saberem se há um só Deus ou vários deuses. A ciência não aborda tais discussões».

No entanto, tais discussões são muito dignas de um ser racional que efetivamente raciocina. Não há efeito sem causa. À vista das maravilhas da natureza, não será digno da ciência remontar à causa de tudo isso que vemos? O homem, que não se fez a si mesmo, não agiria cientificamente se procurasse raciocinar sobre sua existência, conhecer a causa e o fim de seu ser? Certamente aí está uma ciência que a ciência não pode desdenhar.

Mas distingamos: há ciência e ciência. Há uma ciência que confessa que existe uma causa, uma causa primeira; mas, diz ela, essa causa nos escapa. Em outros termos, nós percebemos bem a verdade, a verdade que é Deus, mas não queremos essa verdade.

É essa a ciência da moda. Deus lhe dá medo, ela O nega. Sua negação não é um ato de ciência, é um efeito do medo.

Mas a verdadeira ciência não tem medo nem receio. Graças à razão que Deus nos deu, ela nos demonstra a existência e a unidade de Deus, a distinção entre o espírito e a matéria, a espiritualidade de nossa alma. A verdadeira ciência goza desta verdade e o estudo que faz de Deus e de suas obras lhe mostra que Deus pode agir e, efetivamente age sobre a natureza, ora por uma ação que deixa a natureza na ordem natural, como quando dá a saúde, a força, a inteligência, ou por uma ação que eleva nossa natureza acima de si mesma, como quando nos dá a fé, a caridade, a bem-aventurança.

Tudo isso é bem mais científico do que a ciência vulgarizada. Mas estudemos de mais perto essa ciência: «Tudo o que escapa à observação e à experiência lhe é estranho». A verdadeira ciência emprega precisamente estes dois grandes meios; a experiência e a observação. Observando que não há efeito sem causa, ela remonta à causa primeira que é Deus. Observando que os seres criados são contingentes, remonta ao ser necessário que é Deus. Tudo isso nos parece científico no mais alto nível. Por outro lado, a experiência nos demonstra a impossibilidade de seres que se sucedem por gerações sem que tenha havido um começo que não foi gerado, o que só pode ser a criação. A experiência vem ainda nos demonstrar o Criador que é Deus.

Mas, para nosso autor, a observação intelectual não existe. Para ele só existe a observação materialista, positiva. Depois de ter negado Deus por medo, precisará negar a inteligência humana. É um passo avante no caminho das negações; a ciência materialista deverá ir ainda mais longe. Ela irá e, para bem compreendermos, vamos acompanhá-la.

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«Para a ciência... são igualmente indiferentes as concepções do judaísmo, do catolicismo, do bramanismo, do fetichismo, do deísmo, do teísmo do espiritismo e de todas as teorias que repousam sobre o absoluto e sobre uma pura hipótese».

Notemos, primeiramente, que só as concepções materialistas não são tidas como indiferentes por nosso autor.. Para ele, o materialismo é a ciência. Sua enumeração é calculada à sua maneira, ela é científica. Começa pelo judaísmo e o catolicismo. O que é perfeitamente correto e de acordo com a tradição da humanidade. A verdade vem antes de tudo e nosso autor não perdeu completamente seu patrimônio. Façamos a reflexão de Tertuliano: Oh! testemunho de um espírito naturalmente cristão!

Nosso autor lança em seguida os olhos sobre a Ásia e diz: do bramanismo; depois sobre a África e a Oceania: o fetichismo. Está completo, deu a volta ao mundo.

Continuando, faz uma síntese filosófica e, voltando das regiões do erro às puras luzes da verdade diz: do deísmo, do teísmo, do espiritismo. Mas a fraqueza aparece logo, ele acrescenta: E de todas as teorias que repousam sobre o absoluto e sobre uma pura hipótese.

Já que nosso autor sabe filosofia, ele deve compreender que, negando o absoluto, torna impossível o relativo. E desde então não haverá mais nem homens, nem ciência, nem tese, nem hipótese.

Depois de ter negado Deus, precisará negar a inteligência humana; depois precisará negar tudo. A última palavra da ciência será uma negação completa. A ciência terá cavado para si uma fossa e sobre seu túmulo se escreverá um ponto de interrogação: «O que?»

Falta-nos saborear ainda essas palavras: A instrução estatal só deve ter por base a ciência...Gostaríamos de saber como a ciência demonstrará a uma criança que seu pai é seu pai, que sua mãe é sua mãe. «Tudo o que escapa à observação e à experiência lhe é estranho.» Com que observações, com que experiências, a criança conseguirá demonstrar a si mesma quem é seu pai, quem é sua mãe? Até agora a criança aprendia a crer em seu pai e em sua mãe, como aprendia a crer em Deus. Mas a ciência mudará tudo isso. A criança vai se achar diante de uma pura hipótese, de um absoluto inadmissível. Ela só poderá se estabelecer em uma igual indiferença e decretar, em nome da ciência, que não tem pai, que não tem mãe e que é filho da natureza, se é que é filho de alguma coisa.

Não exageramos nada. Pois as conseqüências monstruosas desse naturalismo ímpio são admitidas pela escola que quer a abolição do casamento.

Terríveis conseqüências da lógica. Depois de negar seu Pai que está no céu, nega seu pai daqui da terra. Essa é a profissão de fé do naturalismo.

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QUINTO CAPÍTULO

As ilusões naturalistas sobre o amor de Deus e do próximo

Quando a cólera de Deus lança sobre uma população o temível flagelo que se chama peste, alguns são atingidos e feridos de morte; outros, sem serem precisamente tocados pelo flagelo, sofrem de um mal estar às vezes considerável.

O naturalismo é para as almas uma verdadeira peste. Os que são atingidos em cheio são, por isso mesmo, postos fora da vida da salvação. Semelhantes a esses pestilentos que é preciso isolar do resto dos homens, eles se excomungam a si mesmos. Neste caso o naturalismo é levado até a heresia formal, renovando as impiedades de Arius e Pelágio e assumindo sobre si todos os anátemas com que a Igreja abateu essas horríveis heresias.

Mas o mal se mostra algumas vezes em estado mais benigno. Evita tudo o que é heresia e com isso se faz passar por inofensivo. Mas não quer abraçar, de modo algum, o sobrenatural divino em sua plenitude. Procura de bom grado pequenas querelas contra ele e se mantém, a seu respeito, em atitude de desconfiança. Numa palavra, prefere a natureza do que o natural.

Mesmo nesse estado que parece benigno o naturalismo é um mal perigoso. Para demonstrá-lo basta duas das numerosas ilusões nas quais costuma lançar as almas.

Todos sabem que para nós, cristãos, o grande mandamento é amar a Deus; o segundo, que é semelhante ao primeiro, é amar ao próximo.

Ora, dizemos que, a respeito desse duplo dever, o naturalismo lança as almas em ilusões muito funestas.

Deus que nos criou, pôs no fundo da nossa natureza uma inclinação invencível para amar o bem em geral. E como Deus é o soberano Bem, o único Bem das almas, as almas, naturalmente, devem se voltar para Deus. Todo homem que pensa e medita no Autor de seu ser, sente-se naturalmente voltado para ele. É um dever ao mesmo tempo de justiça e de gratidão. E as noções de justiça e de gratidão têm sobre nós um poder tão grande que não podemos nos furtar desse dever e é sempre honroso cumprir deveres fundados em tão autênticos títulos.

Sem o pecado original, a natureza se voltaria diretamente para seu Criador. Mas a ignorância e a concupiscência, frutos infelizes da queda original, fazem com que, muitas vezes, a alma pare diante de bens passageiros, se distraia e se acostume a amar ninharias em lugar de elevar seu amor até a fonte de seu ser.

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Mesmo nesse estado de queda a lei de Deus permanece: Amarás o senhor teu Deus. E a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo nos torna possível, fácil e doce a observação do grande mandamento.

O mal é que, com freqüência, depois de ter perdido a graça, depois de ter decaído da caridade, como continua a encontrar em si o amor do bem em geral, a inclinação natural para amar a Deus, as pessoas se contentam com estas disposições, e crêem estar quites com Deus. Estão em pecado mortal mas, como as inclinações naturais de amar a Deus , de amar o bem em geral, permanecem no fundo da alma, tomam essas disposições naturais, comuns a todos os homens, por disposições pessoais, como se fosse seu estado particular diante de Deus. Este estado, diante de Deus, é de pecado mortal, mas não percebem: as inclinações naturais ficam, são percebidas, contentam-se com elas e se induzem a crer que Deus se contentará também. Dizem para si mesmas: Não quero mal a Deus, sei que Ele é bom; sou inclinado a amá-lo; como Deus poderia me querer mal se eu não lho quero? Seria pior do que eu?

Aqui está, vista no fato, a grande ilusão cuja raiz é o naturalismo. Quantas pobres almas negligenciam os deveres mais essenciais do cristianismo, vivem sem a graça santificante, sem Nosso Senhor Jesus Cristo e, no entanto, afirmam com segurança que amam muito a Deus!

Lembra-nos um infeliz que pôs fim a seus dias, e antes de cometer seu irremediável crime, escreveu um adeus à sua família e nesse escrito, afirmava seu amor pelo bom Deus!

É evidente que ele tomava a inclinação natural de amar a Deus, que todos nós temos, por sua disposição pessoal, que não podia ser mais contrária ao amor de Deus!

O segundo de nossos grandes deveres é o amor ao próximo. Esse amor tem por base uma inclinação natural que leva todos os seres semelhantes a se associarem, e amar uns aos outros. A Escritura diz: «Omne animal diligit simile sibi». (Ecles,XIII,19).

Essa inclinação natural é muito viva e muito poderosa. Muitas vezes ela é mais sensível do que a própria inclinação de amar a Deus. Pois não vemos a Deus e vemos os nossos semelhantes.

É essa inclinação que leva os homens a se ajudarem mutuamente e a prestarem socorro e assistência de mil maneiras e em mil circunstâncias. Essa inclinação é tão poderosa, tão inerente à humanidade que lhe dá seu próprio nome. Ser insensível ao mal de um outro é não ter humanidade; compartilhar do sofrimento do próximo é ser humano, é ter humanidade.

Vindas de Deus, certamente essas inclinações são boas; louvamos suas obras, aplaudimos todas as beneficências. Mas, como cristãos que somos, temos que amar o próximo como Deus quer que o amemos, quer dizer, com amor sobrenatural que quer o bem da vida presente e o bem da vida eterna; com o amor, que é sensível a todas as necessidades do próximo, as do tempo

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e as da eternidade, as do corpo e as da alma, pois o homem não vive só de pão.

Esse amor sobrenatural que engloba todas as necessidades do próximo, não é um amor facultativo: ele é estritamente e rigorosamente obrigatório.

Mas, quando um cristão perde o amor sobrenatural do próximo, não perde, por causa disso essa inclinação natural de amar seus semelhantes; e a ilusão consiste em se contentar com a inclinação natural, como se ela bastasse para cumprir com o dever de amar o próximo.

Essa nova ilusão não é tão rara quanto se pode acreditar. O senhor X era rico, absorvido por seus negócios, seu comércio, talvez seus prazeres, vivia alheio a Nosso Senhor Jesus Cristo e não dava nada a Deus. Mas era generoso para com os pobres. Morreu quase repentinamente e certamente não teve tempo de se arrepender de uma vida tão pouco cristã. Ora! Ouviram-se vozes que lhe prometeram a vida eterna por suas obras beneficentes, fruto natural da inclinação natural que tinha por seus semelhantes.

A ilusão naturalista consiste em se contentar com as obras naturais, quando Deus pede obras sobrenaturais; em prometer a salvação sem fé, sem a caridade, sem as obras da fé e da caridade; em prometer a salvação pelas obras e para as obras puramente naturais.

Entendido assim, o naturalismo seria pura e simplesmente o pelagianismo.

Preferimos a graça de Deus que cura a natureza, salva-a e a leva à vida eterna.

Deus nos guarde das ilusões do materialismo!

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SEXTO CAPÍTULO

O Naturalismo entre os católicos

O naturalismo é um mal antigo; é verdade que, em nossos dias, ele chegou a limites extremos. Mas precisamente por ser um mal antigo, ele penetrou lá mesmo onde todas as entradas lhe deviam estar fechadas. Os próprios católicos, muitas vezes, são enganados por opiniões naturalistas. Por exemplo, a fé nos ensina tudo o que devemos a Nosso Senhor Jesus Cristo; o naturalismo quer constituir a natureza sem o Redentor e assim não lhe dever nada. Como conseqüência infeliz da difusão do mal, muitos católicos pensam não dever tudo ao Redentor e, de bom grado, prestam uma homenagem exagerada às forças e aos poderes da natureza.

Há muito tempo que o naturalismo, sob as aparências de opiniões permitidas, se infiltrou em muitos espíritos, mesmo nos melhores.

Sobre esse assunto, transcrevemos aqui uma das cartas que recebemos a respeito de nossos artigos sobre o naturalismo que nos chegou com o seguinte título:

O Cardeal de Berulle e o naturalismo

«Conjuro o senhor a levar até o fim a vigorosa campanha que empreendeu contra o naturalismo para a alegria das almas e o triunfo da graça de Nosso Senhor. Para empregar uma locução célebre: O naturalismo é para nós , o inimigo.

Eis uma pequena passagem sobre as origens do naturalismo que poderá edificar muitos leitores do Bulletin . Foi tirado de uma edificante compilação das vidas dos Padres do Oratório, escrita no começo do século passado (sec.XVIII) pelo padre Cloyseault, oratoriano, e reeditada pelo Padre Ingold, do novo Oratório. O texto que lhe envio foi tomado da vida do Padre Gibieuf, um dos discípulos mais íntimos do Cardeal de Bérulle.

"Naquele tempo – diz o Pe. Cloyseault – as discussões sobre a graça não haviam ainda chegado ao ponto a que chegaram mais tarde e era permitido a cada doutor, de boa fé, ter o sentimento que quisesse sobre esse assunto, desde que apoiado sobre a autoridade de alguns escolásticos, sem que ficasse exposto nem à censura nem à crítica de ninguém. O Pe. Gibieuf que, enquanto estivera na Sorbonne, quase que só se ocupara em ler os escolásticos dos últimos tempos, deles recebeu opiniões no tocante às questões da graça que estavam muito mais apoiadas sobre raciocínios humanos do que sobre a autoridade das Escrituras divinas. Ainda que, depois de ter entrado para o Oratório, ele tenha se dedicado inteiramente aos exercícios de piedade, tenha se curado de várias máximas falsas, das quais havia se alimentado anteriormente, no entanto isso não impedia que, de tempos em tempos, ele raciocinasse sobre essas questões da graça de acordo com os princípios que tinha. O Pe. Bérulle, cuja conduta era cheia de doçura e de paciência, não julgou apropriado, no início, fazê-lo ver a falsidade de tais colocações,

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temendo dar lugar a discussões escolásticas; contentava-se, algumas vezes, em dizer-lhe amavelmente: "O senhor me parece um pobre cristão; não tem bastante gratidão por Jesus Cristo: tem, certamente, mais obrigações para com Ele do que pensa". Outras vezes, explicando-lhe a profundidade das chagas que o pecado de Adão fez no homem, ele levava-o a concluir o quanto somos devedores ao Libertador que nos tirou de um estado tão deplorável. Enfim, desejando que seu espírito fosse esclarecido do alto, invocou as luzes do Espírito Santo sobre ele. Felizmente chegou um dia em que, tomando-o como acompanhante em uma visita de caridade, enquanto o Pe. Berulle falava com a pessoa que tinha ido ver, o bom Pe. Gibieuf tirou de seu bolso as epístolas de São Paulo para ler alguns versículos; e, à medida que meditava seu sentido, sentiu como que escamas lhe caírem dos olhos. As trevas de seu espírito se dispersaram e achou-se de tal modo penetrado das mais sublimes luzes deste Apóstolo, no tocante à graça de Jesus Cristo, que não podia conceber como tinha tido opiniões tão contrárias à verdade e tão indignas de Jesus Cristo. Depois desse tempo, dizia estar surpreso de ter caído em erros tão grosseiros como crer que alguém pode se salvar sob a lei da graça sem conhecer e amar Jesus Cristo em toda a sua vida; que fosse possível, no paganismo, merecer o céu sem a graça e que devêssemos nossa salvação mais à nossa própria vontade do que à misericórdia desse divino Salvador. Ficou tão plenamente penetrado da abundância e da eficácia desse dom que Deus nos fez em Jesus Cristo, seu Filho, que disto falava com tal unção que encantava todos os que o ouviam, e chegava a transmitir seus efeitos, de uma maneira muito santa e eficaz, às almas que tinham a vantagem de estar sob a sua direção"».

Depois de nos dar esse relato muito instrutivo e edificante, nosso correspondente continuou dizendo que esse texto mostra:

1. Que existiam no começo do século XVII opiniões demasiadamente humanas no tocante à graça de Deus, opiniões que induziam a diminuir o valor do inestimável benefício da Redenção;

2. que essas opiniões, carregadas de naturalismo, tinham livre curso nas escolas e nas próprias faculdades de teologia;

3. Que tinham imbuído delas mesmo os bons espíritos e que paralisavam em muitos padres a graça do santo ministério;

4. Que as luzes do Espírito Santo, sozinhas, têm poder para destruir completamente esses preconceitos, digamos melhor, esses erros grosseiros. A meditação das Epístolas de São Paulo é igualmente excelente remédio.

Em nossos dias, Nosso Santo Padre, Leão XIII, nos propõe um outro remédio que, no fundo, é a aplicação dos dois primeiros: o estudo aprofundado da tradição da Igreja apresentada por Santo Tomás de Aquino.

A este propósito, Reverendo Padre, poderia o senhor me dizer porque...»

Na verdade, nosso honrado correspondente nada tem a aprender conosco.

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PARTE II: O NATURALISMO PRÁTICO

SÉTIMO CAPÍTULO

As Chagas da Natureza

Em artigos precedentes consideramos o naturalismo particularmente do ponto de vista especulativo, examinando-o como uma doutrina. E como toda doutrina tende a passar aos atos e tornar-se prática, vamos agora considerar o naturalismo tal como passou para a moral de tanta gente.

Primeiramente, é preciso dizer que, se o naturalismo dogmático é difundido entre um número bastante restrito de espíritos, o naturalismo prático, ao contrário, está hoje em dia um pouco por toda parte.

Precisamos, antes de tudo constatar que a natureza está hoje num estado bem diferente daquele em que saiu das mãos do Criador. Escutemos a esse respeito, a palavra grave e profunda do maior moralista cristão. Meditando estas palavras de Jó: «Porque me puseste contrário a ti, e porque me tornei pesado a mim mesmo?» (Job VII, 20) ele comenta:

«Deus tornou o homem contrário a si mesmo quando o homem, pecando, abandonou Deus. Apanhado nas mentiras da serpente, tornou-se inimigo daquele cujos preceitos desprezou. O Criador, sempre justo, considerou o homem como seu opositor e reputou-o como inimigo por causa de seu orgulho. Mas essa oposição, obra do pecado, tornou-se para o homem um duro suplício, de modo que, por uma liberdade deslocada, o homem foi escravizado na corrupção, ele que, por uma feliz dependência, gozava livremente da felicidade. Abandonando a cidadela segura da humildade, chegou por seu orgulho ao jugo da enfermidade; querendo elevar-se, seu coração só conseguiu se escravizar e por não ter querido se submeter aos mandamentos divinos, ficou sujeito a todas as misérias presentes.

Isto se tornará mais evidente se considerarmos primeiramente as misérias do corpo e em seguida as da alma.

Mesmo sem se falar nas dores que o corpo sofre nem nas febres que o queimam, aquilo que se chama saúde está cercado de muitos males. O corpo se amolece pelo repouso e se esgota pelo trabalho; a abstinência o esgota por sua vez, então ele se reconforta pelo alimento a fim de subsistir; o alimento de novo o fatiga e ele tem necessidade do alívio da abstinência para retomar o vigor; o banho lhe é necessário para não ressecar, em seguida se enxuga com panos para não se reduzir em água; entretém-se com o trabalho para não elanguescer no repouso; depois repara suas forças no repouso para não sucumbir com o excesso de trabalho. O cansaço da véspera se repara com o sono; o torpor do sono se sacode com a vigília, pois um repouso muito longo o cansará mais. Cobre-se de roupas para não sentir frio; depois, sofrendo com o calor que procurou, entrega-se à frescura do vento.

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Procurando evitar um mal, encontra outro: trazendo uma funesta ferida, o homem se faz, por assim dizer, doente daquilo que é um remédio para seu mal. Quando estamos livres das febres e isentos de dores, nossa saúde é, ela própria, uma doença de que é preciso cuidar sem cessar. Pois tanto mais alívios procuramos para as nossas necessidades da vida quanto mais remédios opomos à nossa moléstia. E mais, o próprio remédio se converte em doença quando, usando-o por muito tempo, ficamos doentes daquilo que procuramos para nos curar.

Isto foi necessário para punir nossa presunção; e foi necessário para abater nosso orgulho. Uma só vez a natureza se encheu de orgulho e por causa disso carregamos um corpo de lama que sempre desfalece.

Nossa alma, por seu lado, carrega também seus males. Banida das alegrias sólidas e interiores, ela é ora enganada por uma vã esperança, ora agitada pelo medo, ora abatida de tristeza, ora entregue a uma alegria falsa. Agarra-se com teimosia aos bens que passam e, sem cessar, é alquebrada pela dor de perde-los, porque é, a todo instante, transformada pelo curso rápido das mudanças de tais bens. Sujeita a essas coisas sempre inconstantes, torna-se inconstante também. Não é sem angustia que encontra o que procurava e, encontrando, começa a se aborrecer com o que procurou. Muitas vezes ama o que tinha desdenhado e desdenha o que havia amado.

Aprende com muita dificuldade as coisas da eternidade e esquece-as rapidamente, se não se esforça sem cessar. Procura por muito tempo para encontrar um pouquinho das coisas celeste; depois, recaindo logo em seus hábitos, não se mantém nem mesmo no pouco que tinha adquirido. Se deseja ser instruída, é-lhe ainda extremamente penoso vencer a vanglória da ciência.

Com muito custo a alma vence a tirania da carne; depois sofre no seu interior com as imagens do pecado, embora lhe tenha reprimido os atos exteriores.

Quando procura se elevar ao conhecimento de seu Criador, encontra-se, pouco depois, como que empurrada e envolvida pelas trevas que, infelizmente, ainda lhe são caras.

A alma gostaria de saber como, sendo incorpórea, governa seu corpo, mas não consegue fazê-lo efetivamente. Pergunta-se, com espanto, coisas sobre as quais não pode responder e persiste na ignorância quando melhor seria que procurasse saber. Vendo-se ao mesmo tempo grande e limitada ela não sabe mais o que deve pensar de si mesma; porque se não fosse grande não procuraria tão grandes verdades e se não fosse limitada saberia achar ao menos o que procura.

Jó tinha razão de dizer: Porque me puseste contrário a ti, tornei-me pesado a mim mesmo. Pois o homem, expulso do paraíso, padecendo os incômodos da carne e dúvidas difíceis em seu espírito, tornou-se um fardo pesado para si mesmo. Pressionado por mil males, esmagado por doenças, o homem imaginou que, depois de ter abandonado a Deus, acharia repouso em

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si mesmo, mas só encontrou um abismo de perturbações; assim, depois de procurar demais a si mesmo com desprezo de seu Criador, é forçado a fugir de si mesmo sem ter mais os meios para isso».

Assim fala São Gregório Magno2.

De seu lado, o Doutor Angélico, mostrando a nu as chagas do pecado original diz:

«Assim como a doença corpórea consiste em algo de negativo, que é a falta da ordem que constitui a saúde, ela consiste também em alguma coisa de positivo, quer dizer, a perversão dos humores; assim também o pecado original traz consigo a perda da justiça original e, com isso, uma disposição desregrada das partes da alma. Não é, pois, uma simples privação, mas um certo estado ruim.»3

E mais adiante, perguntando se o pecado original diminui o bem natural, responde:

«O bem natural pode entender-se de três modos: primeiramente, os próprios princípios da natureza, aquilo que a constitui, o que ela é, e os atributos que derivam dela, como as potências da alma. Em segundo lugar, tendo o homem uma inclinação natural para a virtude, essa inclinação também é um bem natural. Em terceiro, pode-se chamar um bem da natureza o dom da justiça original, que foi conferido a toda a natureza humana, no primeiro homem.

O primeiro bem da natureza não foi nem arrancado nem diminuído pelo pecado. [Santo Tomas quer dizer que, pelo pecado, o homem não perdeu nem seu corpo, nem sua alma, nem a inteligência, nem a liberdade, princípios constitutivos de sua natureza. Peca mas não deixa de ser homem.]

O terceiro dos bens da natureza, de fato, lhe foi todo tirado pelo pecado de Adão. Mas o segundo, a inclinação natural para o bem, é somente diminuído pelo pecado. Com efeito, sendo o pecado contrário à virtude, desde que um homem peque, fica diminuído nesse bem natural que é a inclinação para a virtude.»4

Vê-se por esses testemunhos irrecusáveis de nossos grandes doutores como nossa natureza é doente, e quantas chagas carrega depois da queda. Consideraremos em particular essas chagas tão dolorosas e perguntaremos ao naturalismo que bálsamo ele tem para curá-las.

2 Moral., lib. VIII, c. XXXII.

3 Summa, 1, 2, q. 82, a. 1.

4 Ibid., q. 85, a. 1.

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OITAVO CAPÍTULO

Os Pecados Capitais

Prometemos lançar um olhar detalhado sobre as chagas da natureza. Teremos como guia São Gregório Magno e nos bastará escutar o incomparável doutor.

Explicando as palavras de Jó: «Ele sente de longe o odor da guerra, a arenga dos capitães, o ulular do exército» (Jó XXXIX, 25) ele diz:

«Entre os vícios que combatem invisivelmente contra nós, sob o império do orgulho, há alguns que marcham na frente como capitães, outros que seguem como simples soldados. Porque os pecados não dominam o coração da mesma maneira. Quando os pecados principais, que são em menor número, se apoderam de uma alma que se descuida, os menores, que são em número infinito, caem sobre ela em tropel. Quando o rei dos vícios, que é o orgulho, se apodera inteiramente de um coração vencido, ele o entrega, imediatamente, à devastação dos sete vícios capitais, como se fossem capitães às suas ordens. Esses são seguidos de um grande exército porque é deles que nascem todos os outros vícios. Explicaremos isso mais claramente, fazendo uma enumeração detalhada desses chefes e de seu exército.

A raiz de todo o mal é o orgulho, do qual está escrito: O começo de todo pecado é o orgulho (Ecl. X, 15). Suas primeiras produções são os sete pecados capitais que nascem dessa raiz empesteada, a saber: a vã glória, a inveja, a cólera, a tristeza, a avareza, a gula e a luxúria5.

Cada um desses vícios tem contra nós seus exércitos. A vã glória é seguida pela desobediência, a jactância, a hipocrisia, as discussões, a teimosia, as discórdias e a curiosidade pelas novidades.

A inveja é seguida do ódio, da maledicência secreta, da difamação pública, do contentamento com os males do próximo, da raiva por sua prosperidade.

A cólera engendra as rixas, a inchação do espírito, as injúrias, os clamores, a indignação, as blasfêmias.

A tristeza é seguida da malícia, do rancor, da timidez, do desespero, da tibieza diante dos mandamentos divinos e do extravio do espírito na direção das coisas ilícitas.

A avareza engendra a traição, a mentira, a falsidade, o perjúrio, a inquietação, a violência, o endurecimento do coração contra a misericórdia.

5 Saint Grégoire énumère les sept péchés capitaux dans un ordre un peu différent de nos catéchismes. Celui que nous

appelons la paresse pour lui est la tristesse. Comme par cette tristesse il faut entendre l’état d’une âme qui est sans

bonne volonté et sans goût pour les biens spirituels, et qui pour cela s’en détourne et manque à ses devoirs, il est

évident que son état n’est autre que la paresse.

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A gula é seguida dos prazeres loucos, das bufonarias, do impudor, da tagarelice, do embrutecimento intelectual.

A luxuria engendra a cegueira da alma, o alheamento, a inconstância, a precipitação, o amor de si mesmo, o ódio de Deus, a afeição pelo mundo presente e a aversão ou o desespero pelo mundo futuro.

E esses sete vícios capitais são ligados entre si por tão grande afinidade que se engendram uns aos outros. Assim, a primeira produção do orgulho, que é a vã glória, mal comunicou sua corrupção à alma, logo engendra a inveja, por que aquele que aspira ao poder ou a dignidade é atormentado pelo medo de que algum outro o obtenha antes dele.

Por seu lado, a inveja engendra a cólera: quanto mais a alma é interiormente roída pela inveja, mais ela perde a doçura e a tranqüilidade, ela só se alimenta com o desgosto nascido de sua perturbação. A tristeza degenera também em avareza, porque o coração, caído na confusão e tendo perdido o dom da alegria interior, vai procurar fora com que se consolar, e sai atrás dos bens exteriores com tanto mais ardor quanto menos tenha em si mesmo motivos de alegria a que possa recorrer. Depois desses restam os dois vícios da carne, a saber a gula e a luxúria, e ninguém ignora que a gula engendra a luxúria...6.»

São Gregório nota que, dos sete pecados capitais, há cinco que são vícios do espírito e dois são vícios da carne. E segundo ele, pode-se reduzi-los a dois: o orgulho e a impureza. O que é o orgulho senão a impureza do espírito? E o que é a impureza senão o orgulho da carne?

«Esses dois vícios – diz ainda São Gregório – exercem um duro domínio sobre todos os homens.

O orgulho rebela o espírito, a luxúria corrompe a carne: o antigo inimigo oprime a natureza humana ou pelo orgulho ou pela impureza, submetendo o homem condenado ao jugo de sua tirania pela vã elevação do espírito ou pela corrupção da carne. Há mesmo alguns a quem ele possui por esses dois vícios ao mesmo tempo7.»

Estando a natureza, depois da queda original, no estado que conhecemos, o naturalismo chega e anuncia seu grande princípio: A natureza se basta! Nós o veremos pondo-se à obra e cedo ele pretenderá nos ensinar a moral.

6 Moral., lib. XXXI, c. 45.

7 Ibid., lib. XXXIII, c. 3.

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NONO CAPÍTULO

A Moral do Decálogo e a Moral Independente

Estando doente a natureza, como mostramos e como constata a experiência universal, o naturalismo aparece e, oferecendo-se como remédio de todo mal e como condição indispensável de todo bem, começa a nos ensinar a moral.

Primeiramente poderíamos dizer-lhe: A moral, mas para que? Se tuas teorias são verdadeiras, que o homem siga suas inclinações naturais e tudo irá bem!

Mas nesse ponto, o naturalismo é forçado a reconhecer que nada vai bem e volta a gritar: A moral, a moral! A moral é necessária! É preciso a moral!

Escutemos, então, o naturalismo ensinando a moral.

Notemos primeiramente que, em matéria de moral, a humanidade nunca conheceu outra moral que não a do decálogo. Não daremos o nome de moral à doutrina de Confúcio, nem aos absurdos sistemas da Índia, nem mesmo às doutrinas dos Estóicos, ainda menos às de Epicuro. Mas o naturalismo não poupa nada do que no passado, levava o nome de moral. Ele quer achar em si mesmo a regra de todo bem, e como sua moral é bem diferente da moral do decálogo, dá-lhe um nome bem sucedido e que a caracteriza muito bem: moral independente.

Até aqui a humanidade sempre olhou a moral como a expressão exata da dependência e da responsabilidade dos homens.

Com efeito, a moral nos prescreve deveres para com Deus, para com o próximo e para com nós mesmos.

Quem não vê que o cumprimento desses deveres tão completos se impõe ao indivíduo e só pode ser obra de Deus, criador do indivíduo e da humanidade? É pois evidente que a moral é a expressão exata, a medida, a regra, a salvaguarda de nossa dependência.

Quando nos vêm falar de moral independente, é como se nos ensinassem deveres que não são devidos, regras que não obrigam, preceitos que não ligam, em uma palavra, uma moral impotente, o que não tem absolutamente nada de moral, nada de moralizante.

Isso é o que se torna evidente quando se considera a prática dessa moral dita independente. Inicialmente, ela suprime o que chamamos nossos deveres para com Deus. Aí está a grande conquista do naturalismo, o significado característico da moral independente. Segundo o ímpio Renan, Deus é uma palavra antiquada e um pouco pesada. Na verdade, como é possível que devamos alguma coisa a uma palavra, a uma palavra antiquada,

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sobretudo se é um pouco pesada? Uma palavra é fácil de desprezar, desprezar duas vezes se é antiquada e um pouco pesada, então só nos resta nos desfazer dessa carga.

Foi a esse preço que a moral naturalista se tornou independente. E, no entanto, eles não se sentem tranqüilos em relação a Deus. Não ousam dizer: Deus não é nada! São obrigados a confessar que é uma palavra e, se tivessem um pouco o senso da verdade, seriam obrigados a dizer que essa palavra é um nome, um nome que designa uma pessoa ou uma coisa e uma coisa única em seu gênero; porque Deus é um nome próprio e o próprio desse nome é ser antigo. Nós, cristãos, dizemos eterno.

O naturalismo não deixa de ter dificuldades no trabalho que empreendeu para se tranqüilizar com relação a Deus. Porque apesar de sua ciência e de seus esforços, os homens não podem chegar a negar a Deus senão negando sua própria inteligência; de acordo com a palavra profunda de um salmo, o homem que diz em seu coração: Deus não existe, é por isso mesmo convencido de ter perdido o bom senso: Dixit insipiens in corde suo: Non est Deus. (Sl. XIII, 1).

Para que a impiedade naturalista estivesse tranqüila quanto a Deus, seria preciso que ela fosse capaz de aniquilá-lo ou que tivesse sabido, de boa fonte, que Ele não existe. Mas a impossibilidade disso é manifesta em ambos os casos.

Portanto, se o naturalismo pode se constituir na dúvida ou na ignorância ou no desprezo em relação a Deus, nunca poderá levar esse desprezo, essa dúvida ou essa ignorância ao estado de ciência, e jamais homem algum no mundo pode nem poderá dizer: Sei que Deus não existe.

Portanto, o naturalismo não é admissível em sua pretensão de apagar nossos deveres para com Deus.

Vejamos a prática do naturalismo quanto a nossos deveres em relação ao próximo. Nós, cristãos, vemos claramente esses deveres porque Deus nos ensinou a sua vontade sobre isso e nos revelou a caridade. Mas o naturalismo, tendo fechado os olhos para Deus e para as luzes que nos vêm de Deus, nas lições que pretende nos dar, só se inspira no princípio do interesse pessoal. Assim, o filho honrará seu pai porque é ainda de seu interesse; o cidadão respeitará as leis porque isso é de seu interesse!

Quem não vê a fraqueza de tal princípio? Não haverá um dia em que se estabelecerá uma luta entre o interesse do indivíduo e o interesse da humanidade? E nessa luta, quais serão as regras do combate, quais serão as conseqüências? o indivíduo não terá necessidade de uma certa força moral para preferir o interesse bem entendido do próximo a seu próprio interesse mal entendido? Quem lhe dirá que ele compreende mal seu interesse pessoal, que ele deve dar preferência ao interesse do vizinho? Quem levará sua vontade a não querer o que ela quer e querer firmemente o que não quer de maneira nenhuma?

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O Naturalismo - Opúsculo de Pe. Emmanuel-André

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Moral independente, como ensinarás o homem a praticar uma moral não independente? Bem gostaríamos de ouvi-la falar sobre isso.

Gostaríamos também de ouvi-la ensinar ao homem seus deveres para consigo mesmo.

Sobre esse capítulo, o naturalismo só pode ensinar o egoísmo. A moral divina, a única que é verdadeiramente moral, pode falar ao homem sobre a abnegação de si mesmo; mas o naturalismo não pode pronunciar tais palavras sem se condenar, pois ele repele Deus para valorizar o homem. Se, depois disso, o homem renunciar a si mesmo, que lhe restará senão o nada? Quando a lei divina nos prescreve a abnegação de si mesmo, ela nos faz encontrar Deus e a nós mesmos em Deus, no estado de homens salvos. O naturalismo não pode fazer nada de parecido, é-lhe impossível elevar o homem acima do egoísmo.

Assim, o naturalismo fixa o homem no mais detestável dos vícios. Que ele adorne seu estado com não importa que nome faustoso, dignidade humana, independência, brio, tudo o que quiser, esse estado é vicio; e toda a moral dita independente termina nisso, sem a possibilidade de sair disso nunca mais.

É totalmente diferente a situação da moral cristã, cujo código é tão claro, tão luminoso. Que se julgue somente pelo primeiro artigo: Um só Deus adorarás e amarás perfeitamente.

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O Naturalismo - Opúsculo de Pe. Emmanuel-André

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DÉCIMO CAPÍTULO

As Ignorâncias do Naturalismo

Três conhecimentos fundamentais são necessários à humanidade. É da mais alta importância conhecer a sua origem, seu fim e os meios de alcançá-lo.

A fé nos traz todas as luzes que podemos desejar sobre essas graves questões: Quem sou? De onde venho? Para onde vou? Que caminho tomar? Nossas crianças católicas o sabem melhor do que todos os sábios da antiguidade grega e romana, chinesa ou hindú. E as luzes que nossas crianças têm sobre esses assuntos são puras e livres de todo perigo de erro; são claras tanto quanto o permite o estado da criatura neste mundo: são consoladoras, acima de tudo o que se possa dizer e, depois de todas as satisfações que nos trazem nesta vida, nos levam por um caminho seguro às alegrias da bem-aventurada eternidade.

Na pura luz da fé sabemos que viemos de Deus e que vamos para Deus e que não há outro caminho a não ser o caminho do Deus feito homem para salvar os homens.

Eis o que é claro sobre a nossa origem e sobre a verdadeira dignidade do homem; claro sobre o fim para o qual devemos tender, claro ainda sobre os meios necessários para chegar ao nosso fim, que é a participação da felicidade de nosso Criador.

É nessas santas e divinas luzes que repousam nossas pequenas almas, e ali, elas estão ao lado dos mais sublimes gênios que honram a humanidade. Os grandes e os pequenos, os mais simples e os mais sábios saboreiam a mesma paz na unidade de uma mesma fé, de uma mesma esperança, de um mesmo amor.

É aí que o homem encontra o repouso de seu espírito, a paz de seu coração, o remédio para os seus males, o freio para suas paixões, o campo de ação aberto para todas as suas faculdades, a condição, a regra, a lei de todo o progresso, de toda perfeição, de toda felicidade possível nesta vida e na outra.

Vem o naturalismo, semelhante a um flagelo desencadeado pelo inferno, e começa por nos tirar tudo o que possuíamos como cristãos. Arranca-nos o amor que temos no coração, a esperança que brilha no firmamento de nossa alma, a fé que nos esclarece o passado, o presente e o futuro.

O naturalismo nos arranca tudo. É impossível, repetimos, impossível, para ele, nos dizer se somos criatura ou Criador, se nós somos nós ou alguma partícula de um grande todo. Sobre nossa origem não sabe nada de nada.

E depois de ter produzido essas trevas três vezes profundas, gaba-se de bastar para tudo.

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Mas, para bastar para tudo é preciso não ter falta de nada. E o que constitui o naturalismo é precisamente estar fora de toda verdade, de toda luz. O naturalismo é, pois, a própria indigência e, por conseqüência, a própria impotência.

Quem não tem nada, nada pode.

Mas o naturalismo tem, no entanto, alguma coisa: pretensões. E essas pretensões são, por si mesmas, uma nova demonstração de sua impotência.

Na verdade, o naturalismo nunca pode unir duas almas. Por mais forte razão nunca poderá falar à humanidade, nem persuadi-la, nem esclarecê-la, nem lhe dar a paz, nem torná-la feliz.

O naturalismo não tem nada, não pode nada, não é nada; e esta é a última palavra que diremos sobre ele.

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DÉCIMO PRIMEIRO CAPÍTULO

O Remédio para o Naturalismo

Acabamos com o naturalismo: dissemos-lhe a última palavra que ele merece. Agora nos dirigimos aos homens de fé que estão interessados em nos ler e lhes dizemos: Vigiai! Recebemos de Deus a fé, a graça, o Batismo, a Crisma, a Eucaristia, todos os grande benefícios do Redentor que curam nossas almas e as recolocam no estado sobrenatural e na via da salvação eterna.

Mas trazemos em nós essa natureza cujo mal é o naturalismo. Nosso dever é não decair do estado sobrenatural onde nos pôs a graça do Redentor. A decadência poderia acontecer de diversas maneiras. «Non uno modo sacrificatur trangressoribus Angelis – há mais de uma maneira de sacrificar aos anjos transgressores», dizia Santo Agostinho.

A graça do Salvador, que nos foi dada, leva-nos não somente a fazer obras sobrenaturais, como os atos de fé, de esperança e de caridade, mas, além disso, leva-nos a sobrenaturalizar os atos que, por si mesmos, são de ordem natural, como beber e comer, andar e falar, sofrer e trabalhar, e o resto que nos toma uma boa parte de nossa curta vida.

É o que nos ensina claramente o apóstolo São Paulo: «Tudo o que fizerdes em palavras ou por obras, fazei em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, dando por ele, graças a Deus Pai». (Col. III, 17).

Depois, querendo expressamente fazer compreender que nesse mandamento estão as obras mais estritamente da ordem natural, diz: «Logo, ou comais ou bebais, ou façais qualquer coisa, fazei tudo para a glória de Deus». (I Cor. X, 31).

Assim, os cristãos não têm com que se enganar: devem fazer sobrenaturalmente as obras essencialmente sobrenaturais e tanto quanto possível elevar até um fim sobrenatural as obras que são naturais em si mesmas.

Um cristão não pode comer por comer, nem dormir por dormir, nem trabalhar por trabalhar. Nisso, como em todas as coisas, ele deve relacionar sua vida e suas obras a um fim mais elevado, ao cumprimento da vontade de Deus: deve fazer tudo para agradar a Deus, tudo pela glória de Deus, segundo a palavra do apóstolo.

Todo ato que não preencher essas condições é pecado ou matéria de pecado.

É pecado, se é feito para obedecer a uma das três concupiscências, que procuram sempre se apoderar de nossos atos e fazer-nos decair da ordem sobrenatural.

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O Naturalismo - Opúsculo de Pe. Emmanuel-André

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É matéria de pecado se, por falta de vigilância, a alma se expõe à queda, esquecendo a palavra de Nosso Senhor: «Vigiai e orai, a fim de não cairdes em tentação!»8

O pecado é a porta pela qual, do estado sobrenatural, o cristão cai no naturalismo.

Cai, não fazendo atos sobrenaturais; cai também, naturalizando, por assim dizer, os atos sobrenaturais.

Assim, um cristão que faz suas orações com a mesma seriedade com que diz bom dia ao vizinho, que recita simplesmente as fórmulas que encontra na memória e nos seus hábitos; que vai a Igreja como a qualquer outro lugar; que escuta a palavra de Deus com o mesmo gosto que escuta qualquer outra; que assiste à Missa esperando o fim; que comunga na Páscoa porque é de bom tom; que não faz mal a ninguém porque é correto, etc.,etc., tal cristão está longe de levar uma vida sobrenatural.

Ainda pior é usar as coisas sobrenaturais para servir a interesses terrestres, a fins naturais, digamos melhor: impregnados de naturalismo. A esse respeito escutemos Bossuet:

«Cristãos, o que corrompe nossas devoções até a raiz é que ao invés de as relacionarmos com a nossa salvação9, pretendemos fazê-las servir a nossos interesses temporais10.» [O interesse temporal ser o fim das devoções é uma verdadeira impiedade, é um naturalismo semelhante ao antigo paganismo.]

«Então, caridosos por interesses e piedosos por obrigação, damos um pouco a Deus para recebermos muito; e satisfeitos com o nosso zelo, que não passa de solicitude por nossos próprios interesses, achamos que Deus nos deve tudo, até milagres, para satisfazer os desejos de nosso amor próprio11.»

[O cristianismo eleva a natureza para Deus: o naturalismo abaixa Deus até a natureza; tocamos com o dedo a impiedade causada por ele.]

«Que religião! Cremos ter feito tudo pela Virgem Santíssima, quando elevamos sua glória acima do coro dos anjos, e levamos sua santidade até o momento de sua concepção. Mas se a mancha original lhes faz tanto horror, porque não combatem em si mesmos a avareza, a ambição e a sensualidade12, que são sua infeliz seqüela13?»

8 L’âme, habituellement distraite de la pensée de Dieu, ne lui rapportant presque jamais ses actes d’une manière

explicite, s’expose à ce que l’une des trois concupiscences s’en empare comme il est dit. 9 Ce qui est selon les lois de l’ordre surnaturel.

10 Si l’intérêt temporel est la fin des dévotions, il y a là une véritable impiété, et un naturalisme tout semblable à

l’ancien paganisme. 11

Le christianisme rapporte la nature à Dieu : le naturalisme rapporte Dieu à la nature ; c’est ce qui fait toucher du

doigt l’impiété dont il est la formule. 12

Avarice, ambition, sensualité ; amours funestes de l’argent, de la gloire et du plaisir : Ce sont les trois

concupiscences. 13

Si Bossuet parlait aujourd’hui, il ne manquerait pas d’ajouter : Et s’il vous plaît tant d’exalter le Cœur de Jésus, que

ne vous rendez-vous dociles à cette parole de Jésus : « Apprenez de moi que je suis doux et humble de cœur ? »

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O Naturalismo - Opúsculo de Pe. Emmanuel-André

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[Avareza, ambição e sensualidade; amor ilícito pelo dinheiro, pela glória e pelo prazer: são as três concupiscências. Se Bossuet falasse hoje em dia, não deixaria de acrescentar: Se lhes agrada tanto exaltar o Coração de Jesus, porque não se inclinam a essa palavra de Jesus: «Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração».]

«Estranha ilusão com a qual o inimigo do gênero humano nos fascina! Ele não pode arrancar do coração do homem o princípio da religião, que ele sabe que está profundamente gravado; ele lhe dá então, não seu verdadeiro emprego, mas um divertimento alegre, afim de que, enganado por essa aparência, acreditemos ter satisfeito, por nossos tíbios cuidados, as sérias obrigações que a religião nos impõe: Não se enganem, Cristãos!»

Assim, os pequenos cuidados, as devoções mesquinhas, que não atrapalham a natureza e deixam que a concupiscência reine facilmente, esses pequenos cuidados não nos dispensarão nunca das nossas sérias obrigações. Se nos enganamos com isso, tratemos de nos desenganar. Nossa grande obrigação é amar a Deus sobre todas as coisas. A obediência a esse grande mandamento nos eleva acima da natureza, nos salva totalmente do naturalismo, nos leva para a vida sobrenatural e, de lá, diretamente para a vida eterna.

Por isso, amemos o bom Deus!