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 1 PCHEUX, M. L . I. ORLANDI, E P. () . .. : . T: B S. C. M . . C: E U, 1994, .5566 (C R).    .     .   O  ,    , ("" ) , . A , , , , " ", . A ( ), , . *  Este texto foi objeto de inúmeras discussões com Bernard Conein, Jean Jacques Courtine, Françoise Gadet, Jacques Guilhaumou, Claudine Haroche, Paul Henry, Mireille Lagarrigue, Jacqueline Leon, Denise Maldidier e Jean-Marie Marandin.

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    PCHEUX, M. Ler o arquivo hoje. In. ORLANDI, Eni P. (org) [et. al.]. Gestos de leitura: da histria no discurso. Traduo: Bethnia S. C. Mariani [et. al]. Campinas: Editora da Unicamp, 1994, p.55-66 (Coleo Repertrios).

    LER O ARQUIVO HOJE*

    M. Pcheux

    A histria dos rastros do

    homem atravs de seus prprios

    textos permanece em grande

    parte desconhecida.

    Michel de Certeau

    O propsito deste texto o de examinar o desenvolvimento atual das

    questes que envolvem a anlise dos discursos, textos e arquivos, interrogando

    sobre as relaes entre o aspecto histrico e psicolgico ("linguageiro" no

    sentido amplo) ligado leitura de arquivos, o aspecto matemtico e informtico

    ligado ao tratamento dos documentos textuais e o avano das pesquisas em

    lingstica formal.

    A evoluo, manifestamente bastante rpida, da pesquisa em lingstica

    sobre estas questes, assim como a retomada do interesse pelos problemas de

    tratamento de textos, em particular pelo vis culturalmente e politicamente

    problemtico dos "bancos de dados", esto na origem desta reflexo.

    As aporias de uma semntica puramente intralingstica (ou de uma

    pragmtica insensvel s particularidades da lngua), e as reflexes sobre a

    especificidade do arquivo textual, levam a pensar que uma pesquisa

    multidisciplinar indispensvel para um acesso realmente fecundo.

    * Este texto foi objeto de inmeras discusses com Bernard Conein, Jean Jacques Courtine, Franoise

    Gadet, Jacques Guilhaumou, Claudine Haroche, Paul Henry, Mireille Lagarrigue, Jacqueline Leon,

    Denise Maldidier e Jean-Marie Marandin.

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    O discursivo informaticamente marcado sob a forma dos "dados textuais"

    no tem, efetivamente, a mesma relao nos procedimentos lgico-matemticos

    que este outro tipo de dados, de natureza quantitativa, utilizados em economia,

    em demografia, em histria, etc.

    De forma que este domnio, o qual ser conveniente aqui chamarmos do

    discurso textual, o lugar em potencial de um confronto violentamente

    contraditrio: a figura de Blaise Pascal, refletindo ao mesmo tempo sobre

    questes filosficas e teolgicas e sobre os problemas fsico-matemticos de seu

    tempo, evocada de bom grado pelo humanismo contemporneo, mas a

    referncia a este ancestral de duplo rosto no basta para dissimular o abismo

    que se ampliou desde a Era Clssica entre estas duas culturas que a tradio

    escolar-universitria francesa designa respectivamente como a "literria" e a

    "cientfica".

    Ao longo de toda uma histria das idias que vai do sculo XVIII ao sculo

    XX (atravs de Auguste Comte A era da cincia e o positivismo lgico, face

    aos romantismos, s filosofias da histria e s disciplinas de interpretao) essas

    duas culturas no pararam de se distanciar uma da outra, veiculando, cada

    uma, no somente suas esperanas e iluses, como tambm suas manias e seus

    tabus, ignorando de uma maneira mais ou menos deliberada a prpria

    existncia da outra.

    Por tradio, os profissionais da leitura de arquivos so "literatos"

    (historiadores, filsofos, pessoas de letras) que tm o hbito de contornar a

    prpria questo da leitura regulando-a num mpeto1, porque praticam cada um

    deles sua prpria leitura (singular e solitria) construindo o seu mundo de

    arquivos.

    Alis, foi assim que freqentemente em torno de nomes prprios

    fundadores em torno dos arquivos textuais, surgiram posies implcitas (de

    grupos, de escolas, e at de "igrejinhas") que se acotovelam numa relao

    ambgua de concorrncia, de alianas parciais e de antagonismos disfarados.

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    Os grandes debates memorialistas, filosficos ou literrios (tal qual ressoam no

    espao ideolgico e cultural francs) so os mais freqentemente estruturados

    atravs dos confrontos sobre temas, posies ou, s vezes, sobre mtodos de

    trabalho. Mas, mesmo neste ltimo caso, a questo da leitura permaneceu quase

    sempre implcita: h, entretanto, fortes razes para se pensar que os conflitos

    explcitos remetem em surdina a clivagens subterrneas entre maneiras

    diferentes, ou mesmo contraditrias, de ler o arquivo (entendido no sentido

    amplo de "campo de documentos pertinentes e disponveis sobre uma

    questo").

    Seria do maior interesse reconstruir a histria deste sistema diferencial dos

    gestos de leitura subjacentes, na construo do arquivo, no acesso aos

    documentos e a maneira de apreend-los, nas prticas silenciosas da leitura

    "espontnea" reconstituveis a partir de seus efeitos na escritura: consistiria em

    marcar e reconhecer as evidncias prticas que organizam estas leituras,

    mergulhando a "leitura literal" (enquanto apreenso-do-documento) numa

    "leitura" interpretativa que j uma escritura. Assim comearia a se constituir

    um espao polmico das maneiras de ler, uma descrio do "trabalho do arquivo

    enquanto relao do arquivo com ele-mesmo, em uma srie de conjunturas,

    trabalho da memria histrica em perptuo confronto consigo mesma".

    A outra vertente da leitura de arquivo sem a qual a primeira no existiria

    provavelmente como tal tem aderncias histricas completamente diferentes:

    trata-se deste enorme trabalho annimo, fastidioso mas necessrio, atravs do

    qual os aparelhos do poder de nossas sociedades geram a memria coletiva.

    Desde a Idade Mdia a diviso comeou no meio dos clrigos, entre alguns

    deles, autorizados a ler, falar e escrever em seus nomes (logo, portadores de

    uma leitura e de uma obra prpria) e o conjunto de todos os outros, cujos gestos

    incansavelmente repetidos (de cpia, transcrio, extrao, classificao,

    indexao, codificao etc.) constituem tambm uma leitura, mas uma leitura

    impondo ao sujeito-leitor seu apagamento atrs da instituio que o emprega: o

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    grande nmero de escrivos, copistas e "contnuos", particulares e pblicos, se

    constituiu, atravs da Era Clssica e at nossos dias, sobre esta renncia a toda

    pretenso de "originalidade", sobre este apagamento de si na prtica silenciosa

    de uma leitura consagrada ao servio de uma Igreja, de um rei, de um Estado,

    ou de uma empresa.

    Desenvolver socialmente tais mtodos de tratamento em massa do arquivo

    textual, com fins estatais ou comerciais, supunha torn-los facilmente

    comunicveis, transmissveis e reproduzveis: as virtudes de ordem de

    seriedade, de limpeza e de bom carter, relaxados desde o sculo XIX pela

    democratizao do ensino (no nvel "primrio" e "primrio-superior")

    encontraram a um de seus empregos: a questo da "objetividade" dos

    procedimentos e dos resultados tornava-se, do mesmo modo, crucial, a ponto

    da referncia "cincia" (sob a forma das matemticas, especialmente das

    estatsticas como "cincia dos grandes nmeros" e da lgica matemtica como

    teoria das lnguas unvocas) se impor progressivamente como uma evidncia.

    As necessidades da gesto administrativa dos documentos textuais de

    todos os tipos fizeram, assim, na primeira metade do sculo XX, sua juno

    histrica com os projetos cientficos visando a construo de lnguas lgicas

    artificiais (a herana leibnetiziana do Crculo de Viena). A primeira onda do

    desenvolvimento informtico das dcadas de 1950 a 1970 veio confirmar esta

    unio.

    Os diferentes mtodos mais ou menos sofisticados de anlise textual

    (desde a anlise de contedo at aos atuais sistemas de interrogao de dados)

    resultam dessa convergncia, que no parou, desde ento, de despertar o

    interesse dos "cientistas" pelos materiais discursivos-textuais.

    Evidentemente, este divrcio cultural entre o "literrio" e o "cientfico" a

    respeito da leitura de arquivo no um simples acidente: esta oposio,

    bastante suspeita em si mesma por sua evidncia, recobre (mascarando esta

    leitura de arquivos) uma diviso social do trabalho de leitura, inscrevendo-se

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    numa relao de dominao poltica: a alguns, o direito de produzir leituras

    originais, logo "interpretaes", constituindo, ao mesmo tempo, atos polticos

    (sustentando ou afrontando o poder local); a outros, a tarefa subalterna de

    preparar e de sustentar, pelos gestos annimos do tratamento "literal" dos

    documentos, as ditas "interpretaes"...

    esta diviso social do trabalho da leitura que est atualmente se

    reorganizando totalmente, aprofundando-se: compreende-se que, de diversos

    lados, os poderes "interessem-se" pelas cincias do tratamento dos textos.

    Sublinhar at que ponto os procedimentos "objetivos" destas se inscrevem to

    facilmente numa srie de efeitos burocrticos no seno denegrir

    exageradamente a situao. A lgica das classificaes autoriza o desvio da

    atividade matemtica pela gesto administrativa, ou seja, pelo funcionamento

    de "mquinas" cuja memria constituda exclusivamente de lembranas, listas

    e quadros: a palavra "IBM" est a para nos lembrar que a informtica tem,

    espontaneamente, parte ligada burocracia administrativa. Isto no impede

    que pesquisas cientficas possam ser conduzidas com o auxlio do computador,

    mas em certas condies que se tentar explicitar mais tarde, interpretando-as no

    campo discursivo-textual que aqui nos concerne.

    Feita esta evocao, em considerao ao legtimo ponto de honra do

    "cientfico" (repugnando a idia de ser brutalmente comparado a um

    burocrata!), cabe constatar que a formao na dominante "literria" dos

    especialistas da leitura de arquivo forneceu muitas vezes pretexto aos

    "cientistas" para expandir um pouco mais o fosso de incompreenso que os

    separa. E h fortes razes que nos levam a pensar que, no contexto da Europa

    da dcada de 1980, a tradio dos grandes praticantes do arquivo vai se

    encontrar numa posio cada vez mais delicada, face proliferao previsvel

    dos "mtodos de tratamentos de textos" induzidos pela desordem informtica

    que se prepara em nossas sociedades. A arrogncia e a condescendncia fbicas

    dos "literatos" ameaa isol-los mais e mais (cultural e politicamente)2 face

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    paciente e mordaz modstia "utilitria" dos cientistas de arquivo, que tm o

    futuro diante deles.3

    Logo, nos encontramos diante de uma nova diviso do trabalho de leitura,

    uma verdadeira reorganizao social do trabalho intelectual, cujas

    conseqncias repercutiro diretamente sobre a relao de nossa sociedade com

    sua prpria memria histrica.

    No cerne da questo: a ambigidade fundamental da palavra de ordem

    mais que centenria "aprender a ler e a escrever", que visa ao mesmo tempo a

    apreenso de um sentido unvoco inscrito nas regras escolares de uma assepsia do

    pensamento (as famosas "leis" semntico-pragmticas da comunicao) e o

    trabalho sobre a plurivocidade do sentido como condio mesma de um

    desenvolvimento interpretativo do pensamento.4

    Atualmente, esta ambigidade est diretamente associada quela que diz

    respeito informtica.

    Certamente, a difuso macia desta abre sob certas condies que

    evocamos abaixo, concernentes anlise discursivo-textual a possibilidade de

    uma expanso dos privilgios "literrios" da leitura interpretativa em amplos

    setores onde (como, por exemplo, discursos polticos de uma parte,

    publicitrios de outra, o provam suficientemente) a prtica da "leitura literal" se

    mostra perfeitamente insuficiente.

    Mas tambm grande, pelo menos, a ameaa de assistir a uma restrio

    poltica dos privilgios da leitura interpretativa (no quadro da

    "reprofissionalizao" do trabalho intelectual e cultural), sobretudo se o

    essencial do debate informtico desse ponto de vista silenciado: no

    considerar os procedimentos de interrogao de arquivo como um instrumento

    neutro e independente (um aperfeioamento das tcnicas documentais) se

    iludir sobre o efeito poltico e cultural que no pode deixar de resultar de uma

    expanso da influncia das lnguas lgicas de referentes unvocos, inscritos em

    novas prticas intelectuais de massa. No faltam boas almas se dando como

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    misso livrar o discurso de suas ambigidades, por um tipo de "teraputica da

    linguagem" que fixaria enfim o sentido legtimo das palavras, das expresses e

    dos enunciados. uma das significaes polticas do desgnio neopositivista

    esta de visar construir logicamente, com a beno de certos lingistas, uma

    semntica universal suscetvel de regulamentar no somente a produo e a

    interpretao dos enunciados cientficos, tecnolgicos, administrativos... mas

    tambm (um dia, por que no?) dos enunciados polticos.

    Nesta medida, o risco simplesmente o de um policiamento dos enunciados,

    de uma normalizao assptica da leitura e do pensamento, e de um apagamento

    seletivo da memria histrica: "quando se quer liquidar os povos", escreve Milan

    Kundera, "se comea a lhes roubar a memria".

    Nesta inquietao ecoa a observao de Georges Canguilhem:

    Inmeros [...] so os que se interrogam sobre os manifestos de alguns

    crculos polticos, sobre certos mtodos de psicoterapia dita comportamental,

    sobre os balanos de certas sociedades de informtica. Eles acreditam

    discernir nisso a virtualidade de uma extenso programada de tcnicos

    visando, em ltima anlise, a normalizao do pensamento.5

    Falar hoje no interior desta situao, tomada nos qiproqus (prolongados

    e explorados politicamente) do divrcio cultural entre "literatos" e "cientistas", e

    levantar a questo da leitura do arquivo ento se dirigir, ao mesmo tempo, aos

    "literatos" e aos "cientistas".

    , em particular, dizer aos "literatos": vocs acreditam poder ficar assim

    distncia da adversidade que ameaa historicamente a memria e o

    pensamento? Acreditam poder ficar tanto tempo ainda protegidos, na casa de

    seu mundo de arquivo particular?

    E tambm dizer aos "cientistas": vocs, a quem chamam de fabricantes-

    utilizadores de instrumentos, vocs acreditam poder ainda por muito tempo

    escapar questo de saber para que vocs servem e quem os utiliza?

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    , portanto, buscar suscitar sobre este ponto as confrontaes e as

    discusses com conhecimento de causa. Isso mudaria em considerao

    prodigiosa ignorncia recproca na qual se protege cada um a respeito do outro

    aquilo de que os polticos tiram proveito to facilmente.

    Mas falar assim a uns e a outros, no entremeio, supe especificar a posio

    que ns mesmos pretendemos ocupar: a presente reflexo fundamenta-se sobre

    o fato terico que constitui a existncia da lngua como materialidade especfica,

    constantemente contornada, ignorada ou recusada pelas duas culturas em

    divrcio que (se) dividem assim o territrio.6

    Na realidade:

    A cultura "literria", por sua familiaridade mesmo com o escrito,

    transporta consigo evidncias de leitura que atravessam a materialidade do

    texto, sempre tido como lingisticamente transparente, sobretudo nos casos dos

    historiadores e filsofos. O caso dos poetas, romancistas, escritores etc.

    profissionalmente diferente, na medida em que, no tendo necessidade da pura

    narrao de um pensamento, estes ltimos so forados a "habitar" sua lngua

    sem se contentarem em marcar e reconhecer nela aparies/desaparecimentos

    de palavras, funcionando como menes, referncias ou designaes. De

    maneira que so, freqentemente, os poetas ou romancistas que "do idias" aos

    lingistas. Alm disso, a difuso das concepes psicanalticas, (em particular

    lacanianas), favorecem, pelo menos em certos casos, este reconhecimento da

    materialidade da lngua como constituindo o incontornvel do pensamento.

    Quanto cultura cientfica, ela finge por precauo "metodolgica"

    ignorar tudo do fato mesmo da lngua, e destina-se a trat-la como uma

    materialidade qualquer. Isto no significa entretanto que esta cultura no

    transporte, ela tambm suas prprias evidncias de leitura, mas ela as inscreve

    em outro lugar: no espao lgico-matemtico onde, outra vez, a materialidade

    da lngua denegada, atravs das iluses da metalinguagem universal.

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    O fato terico no qual se autoriza a posio aqui sustentada portanto a

    existncia da lingstica, como disciplina "de entremeio", incapaz de se dispor

    incondicionalmente, nem do lado dos "literatos" nem do lado dos "cientistas".

    A lingstica e antes de tudo a teoria sinttica em oposio semntica

    concebida como disciplina independente tem efetivamente a ver com uma

    materialidade especfica de natureza formal (e nisso, ela "ambiciona" o ideal das

    cincias), mas simultaneamente, esta materialidade resiste do interior s

    evidncias da lgica, seja ela dita "natural" ou "matemtica". A materialidade da

    sintaxe realmente o objeto possvel de um clculo e nesta medida os objetos

    lingsticos e discursivos se submetem a algoritmos eventualmente

    informatizveis mas simultaneamente ela escapa da, na medida em que, o

    deslize, a falha e a ambigidade so constitutivos da lngua, e por a que a

    questo do sentido surge do interior da sintaxe:

    O sentido, escreve G. Canguilhem, escapa a toda reduo que tenta aloj-lo numa configurao orgnica ou mecnica. As mquinas ditas inteligentes

    so mquinas de produzir relaes entre os dados que lhes so fornecidos

    mas elas no esto em relao ao que o utilizador se prope a partir das

    relaes que elas engendram para ele. Porque o sentido relao , o homem pode jogar com o sentido, desvi-lo, simul-lo, mentir, armar uma cilada (ibid., p. 16-17).

    E Canguilhem deixa entender que se o homem assim capaz de jogar

    sobre o sentido, porque, por essncia, a prpria lngua encobre esse "jogo",

    quer dizer, o impulso metafrico interno da discursividade, pelo qual a lngua

    se inscreve na histria.

    esta relao entre lngua como sistema sinttico intrinsecamente passvel

    de jogo, e a discursividade como inscrio de efeitos lingsticos materiais na

    histria, que constitui o n central de um trabalho de leitura de arquivo.

    Deste ponto de vista tudo, ou quase tudo, resta a ser explorado: o fato da

    lngua foi, e permanece, consideravelmente subestimado em todos os projetos

  • 10

    de leituras de arquivo. Seja porque as leituras de arquivo "literrias" tenham

    acreditado quitar sua dvida no que concerne lingstica, transportando em

    seu prprio campo tal e tal conceito lingstico (por exemplo o de "estrutura", o

    emprestado de Saussure, ou o de "transformao", emprestado de Chomsky).

    Seja por que, ao contrrio, os prticos "cientistas" do tratamento do texto

    tenham se contentado em introduzir pequenos fragmentos de anlise

    morfolgica (ou, mais raramente ainda, sinttica) em seus procedimentos; mas a

    obsesso explcita de transpor mais rpido os obstculos da "lngua natural",

    para se livrar disso em proveito de quadros estatsticos de resultados, ou de

    microuniversos lgicos aptos a acolher os cenrios conceptuais purificados da

    inteligncia artificial.

    Nestes dois casos e colocado de lado o efeito relativamente acidental da

    citao no caso das prticas "literrias" sobre o arquivo a materialidade da

    lngua desaparece. Esta materialidade no ter sido (na melhor das hipteses)

    seno um meio transparente, ou (na pior) a vidraa empoeirada atravs da qual

    se incita a espreitar "as prprias coisas".

    existncia desta materialidade da lngua na discursividade do arquivo que

    urgente se consagrar: o objetivo o de desenvolver prticas diversificadas de

    trabalhos sobre o arquivo textual, reconhecendo as preocupaes do historiador

    tanto quanto as do lingista ou do matemtico-tcnico em saber fazer valer, face

    aos riscos redutores do trabalho com a informtica e, logo, tambm nele os

    interesses histricos, polticos e culturais levados pelas prticas de leitura de

    arquivo.

    Logo: nem ceder s facilidades verbais da pura denncia humanista do

    "computador", nem se contra-identificar ao campo da informtica (o que

    tornaria a reforar o projeto desta), mas tomar concretamente partido, no nvel

    dos conceitos e dos procedimentos, por este trabalho do pensamento em combate

    com sua prpria memria, que caracteriza a leitura-escritura do arquivo, sob

    suas diferentes modalidades ideolgicas e culturais, contra tudo o que tende

  • 11

    hoje a apagar este trabalho. Isto supe tambm construir procedimentos

    algoritmos informatizados, traduzindo, to fielmente quanto possvel, a

    pluralidade dos gestos de leitura que possam ser marcados e reconhecidos no

    espao polmico das leituras de arquivo.

    a este preo que se poder evitar substituir questes difceis realmente,

    mas interessantes e promissoras por "objetivos operacionais", a curto prazo

    relativamente fceis de atingir mas de muito pouco interesse [...] pelo menos

    caso se trate de questionar os recursos da inteligncia humana em luta com o

    arquivo textual, e no de disciplinar o exerccio desta atravs de dispositivos (de

    classificaes, de indexao etc.), que derivam mais da gesto administrativa e

    do sonho logicista de lngua ideal que da pesquisa cientfica fundamental.

    Traduo: Maria das Graas Lopes Morin do Amaral.

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    NOTAS

    1 Cf. sobre este ponto as observaes da historiadora Rgine Robin: "Para os historiadores [...] o discurso no constitui um objeto. Os textos de arquivo so fontes que permitem, por uma organizao apropriada, o conhecimento do referente, das estruturas sociais. Nenhuma teoria do texto, da leitura. Sua decodificao repousa sobre o postulado da evidncia, da transparncia do sentido. O sentido j est l". ("Le hors-texte dans le discours politique", Recherches et Thories, n 19, p.78, Montral, 1979.) 2 Inmeros historiadores, filsofos e gente de letras experimentam esta sensao de impotncia. De diversos lados, apressa-se em declar-los "ilegveis", fechando um pouco rapidamente as questes que eles colocaram (j no sculo XVII, os jesutas se livraram dos jansenistas declarando-os "incompreensveis"). Mas esta ruptura no regime cultural dos "literatos" tambm a oportunidade de uma transformao de suas prticas, se eles no querem ser reduzidos poro congruente, espremidos entre a fabricao de "produtos de luxo" destinados exportao e celebrao vazia dos poderes organizados. 3 O setor literrio da Escola Normal Superior (Ulm) se comoveu (e tardiamente) com esta situao nestes termos, lcidos em seu "corporativismo": "Alm da funo geral de formao no rigor, a disciplina matemtica apresenta uma utilidade direta, a ttulo de instrumento, para toda uma gama de especialidades (lingstica, economia, sociologia, geografia, histria, etc.) e mais geralmente para todos os pesquisadores confrontados com os problemas de anlise de dados e com o tratamento informatizado de seus documentos. Mesmo se uma certa diviso de trabalho inevitvel, os pesquisadores devero entretanto, eles prprios, dominar suficientemente o instrumento matemtico para no serem totalmente submissos aos intermedirios matemticos ou aos tcnicos de informtica para o tratamento e organizao de seus dados. Seno, grande o risco de ver pesquisadores formados unicamente nas matemticas assegurarem-se uma posio dominante, inclusive nos campos de pesquisa ligados s humanidades clssicas, com todos os inconvenientes que isto poder comportar". (Bulletin de la Socit des Amis de L'ENS, n 147, abril 80, p.10.) 4 Certas tendncias atuais da psicolingstica, sustentadas sobre a interpretao dominante das teorias de Chomsky, j levantaram a ambigidade por sua prpria conta, considerando a linguagem como um "sistema de tratamento e de transformao da informao". 5 G. Canguilhem, Le cerveau et la pense, Cours Publics de MURS, 20 de fevereiro de 1990, p.1. 6 Esta posio desenvolvida e argumentada no texto recente de Franoise Gadet et Michel Pcheux, "La langue introuvable", Collection Thorie, Maspero, 1981.