Upload
toroca
View
37
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
UNIVERSIDADE DE UBERABA MESTRADO EM EDUCAO
ELISA MUNIZ BARRETTO DE CARVALHO
A PROPOSTA TRIANGULAR PARA O ENSINO DE ARTE: concepes e prticas de estudantes-professores/as
UBERABA MG
2007
UNIVERSIDADE DE UBERABA MESTRADO EM EDUCAO
ELISA MUNIZ BARRETTO DE CARVALHO
A PROPOSTA TRIANGULAR PARA O ENSINO DE ARTE: concepes e prticas de estudantes-professores/as
Dissertao apresentada ao Programa de Mestrado em Educao da Universidade de Uberaba como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Educao. Orientadora: Prof. Dr. Clia Maria de C. Almeida
UBERABA MG 2007
ELISA MUNIZ BARRETTO DE CARVALHO
A PROPOSTA TRIANGULAR PARA O ENSINO DE ARTE: concepes e prticas de estudantes-professores/as
Dissertao apresentada ao Programa de Mestrado em Educao da Universidade de Uberaba como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Educao. Orientadora: Prof. Dr. Clia Maria de C. Almeida
Aprovado em 18/04/2007.
BANCA EXAMINADORA _____________________________________ Prof. Dr. Clia Maria de C. Almeida Universidade de Uberaba UNIUBE _____________________________________ Prof. Dr. Eullia Henrique Maimoni Universidade de Uberaba UNIUBE ___________________________________ Prof Dr Sueli Ferreira Universidade Estadual de Campinas UNICAMP/Laborarte
Ao Guilherme dedico este trabalho, para que
saiba que crescemos muito quando estudamos.
AGRADECIMENTOS
Ao meu pai e minha me, que me guiaram no caminho da esperana. Ao meu companheiro, que compreendeu minhas ausncias. Aos meus alunos, que proporcionaram intensos momentos de ensinar e aprender, em
especial para Raquel, Clsia, Mizac e Tininha. Aos professores da equipe do Mestrado em Educao da Universidade de Uberaba,
que colaboraram com minhas reflexes. De modo especial, professora doutora Clia Maria de Castro Almeida, que com firmeza possibilitou meu crescimento.
A Ktia Cilene, amiga de todas as horas, que acompanhou minhas aflies e meus questionamentos na elaborao deste trabalho.
RESUMO A pesquisa enfoca concepes sobre a Proposta Triangular para o ensino de arte e como posta em prtica por estudantes do Curso de Educao Artstica/Artes Visuais, do Centro de Ensino Superior de Uberaba, que j atuam como professores/as, lecionando a disciplina Artes no ensino mdio ou fundamental. Teorizada por Ana Mae Barbosa, essa proposta preconiza um ensino de arte fundamentado em trs eixos de ao: fazer artstico, leitura (apreciao da obra de arte) e contextualizao da imagem (histria da arte). De natureza qualitativa, a pesquisa analisa dados obtidos em entrevistas com quatro estudantes-professores, materiais usados por eles em suas prticas educativas e bibliografia sobre a Proposta Triangular. Os resultados mostraram professores cuja maioria teve contato pela primeira vez com a Proposta Triangular na formao. Assim, no se pode dizer que a reproduzem mecanicamente; do contrrio, teriam concepes e prticas parecidas. Como estas se distinguem quanto proposta, traduzem-se em interpretaes que ora se aproximam da proposta, ora se afastam. Palavras-chave: formao de professores de arte; Proposta Triangular; educao em arte.
ABSTRACT This research deals with conceptions referring to the proposal for the art teaching Proposta Triangular and the way it is put into practice. Specifically, it focuses on Arts/Visual arts students from the Centro de Ensino Superior de Uberaba who are already Art teachers in the elementary and high school levels. Theorized by Ana Mae Barbosa, this proposal recommends an Art teaching based on three main points: artistic making, reading (appreciation of the work of art), and contextualization (art history). As a qualitative research, it analyzes data coming from interviews with four Art college students, material they use in their pedagogic activities, and bibliography dealing with the Proposta Triangular. Results have showed teachers whose majority was introduced to the Proposta Triangular during their professional education. Therefore, it can not be said they simply reproduce it without interpreting or working with it on their own. Otherwise, they would not mention diverse conceptions on the Proposta Triangular, which become evident in different interpretations of its guidelines and principles that sometimes converge to it, other times not. Key words: Art teachers education; Proposta Triangular; education en art.
LISTA DE GRFICOS
GRFICO 1. Distribuio percentual dos/as estudantes por sexo. . . . . . . . . . . . . . . . . 50
GRFICO 2. Distribuio percentual dos/as estudantes por faixa etria. . . . . . . . . . . . 50
GRFICO 3. Distribuio dos/as estudantes por situao conjugal/estado civil. . . . . . . 50
GRFICO 4. Distribuio percentual dos/as estudantes segundo moradia. . . . . . . . . . . 51
GRFICO 5. Distribuio dos/as estudantes por renda familiar. . . . . . . . . . . . . . . . . . 51
GRFICO 6. Distribuio de estudantes segundo outra formao no ensino superior. . . . . . . . 52
GRFICO 7. Distribuio percentual dos/as estudantes segundo ocupao. . . . . . . . . . 52
GRFICO 8. Distribuio percentual de estudantes segundo a profisso atual. . . . . . . . 53
GRFICO 9. Distribuio percentual dos/as estudantes segundo atuao na educao. . 53
GRFICO 10. Distribuio percentual dos/as estudantes segundo tempo de atuao com aulas de arte. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1. Campus do CESUBE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46
FIGURA 2. Eixos temticos do curso Educao artstica/Artes Visuais do CESUBE. 46
FIGURA 3. Galpo da Associao de Bairro Grupo Amigos da gua . . . . . . . . 66
FIGURA 4. Alunos de Clsia nas atividades de modelagem . . . . . . . . . . . . . . . . 66
FIGURA 5. Cermicas de Mestre Vitalino. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67
FIGURA 6. Vitalino Santos, o Mestre Vitalino. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68
FIGURA 7. Arte asteca. . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68
FIGURA 8. Cermica do uberabense Hlio Siqueira. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69
FIGURA 9. Aluna de Clsia exibe pea modelada por ela. . . . . . . . . . . . . . . . . . 70
FIGURA 10. Alunos de Clsia em visita Casa do Arteso. . . . . . . . . . . . . . . . . 71
FIGURA 11. Exposio de peas modeladas por alunos de Clsia. . . . . . . . . . . . 71
FIGURA 12. Reproduo de pgina do portflio de Raquel. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73
FIGURA 13. Reproduo de pgina do portflio de Raquel. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 74
FIGURA 14. Reproduo de pgina do portflio de Raquel. . . . . . . . . . . . . . . . 74 FIGURA 15. Esquema do planejamento circular de Raquel. . . . . . . . . . . . . . . . . . 75
FIGURA 16. Mizac e um aluno procura de imagens. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 78
FIGURA 17. Alunas de Mizac folheiam revistas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 78
FIGURA 18. Colagens/montagens com panfletos de propaganda eleitoral. . . . . . . 79
FIGURA 19. Ampliao feita por alunos de Mizac . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 80
FIGURA 20. Telas pintadas por alunos da educao infantil. . . . . . . . . . . . . . 82
FIGURA 21. Pinturas de alunos de Tininha sobre a obra A ponte de Monet. . . . . . . 82 FIGURA 22. Alunos da educao infantil de Tininha fazem colagens. . . . . . . . . . . 83
FIGURA 23. Reproduo de pgina do portfolio de Raquel. . . . . . . . . . . . . . . . . . 85 FIGURA 24. Reproduo de pgina do portfolio de Raquel. . . . . . . . . . . . . . . . . . 87 FIGURA 25. Almoo na relva (1863, leo/tela, 208 cm x 264,5 cm) de douard Manet . . 90 FIGURA 26. Almoo na relva - uma das releituras que Picasso fez. . . . . . . . . . . . . . 90 FIGURA 27. O julgamento de Pris (1520, leo sobre madeira 144,8 cm x 193,7 cm) 90
FIGURA 28. Sarcfago romano, mostrando deuses fluviais, sculo III d. C. 90
FIGURA 29. Alunos da educao infantil compondo uma produo plstica baseada em Sol Poente, de Tarsila do Amaral. . . . . . . . . . . . . . . . . 91
FIGURA 30. Alunos da educao infantil desenham com base em A cuca, Tarsila do Amaral. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91
FIGURA 31. Alunas da educao infantil compondo sua produo plstica, tambm, com base em obra de Tarsila Carto posta. . . . . . . . . . . . . . . . 92
FIGURA 32. Exposio, na Fundao Cultural de Uberaba, de trabalhos plsticos de alunos da educao infantil de Tininha. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92
FIGURA 33. Abaporu de Tarsila do Amaral . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93
FIGURA 34. Sol Poente de Tarsila do Amaral. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93
FIGURA 35. Exposio, na Fundao Cultural de Uberaba, de trabalhos plsticos de alunos da educao infantil de Tininha. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94
FIGURA 36. Alunos das primeiras sries do fundamental desenham observando uma cesta de frutas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94
FIGURA 37. Alunos das primeiras sries do fundamental desenham observando uma cesta de frutas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95
FIGURA 38. Alunos e alunas se concentram no desenho baseado na observao de uma cesta de frutas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95
FIGURA 39. Pintura resultante da observao de uma cesta de frutas. . . . . . . . . . . . 96
FIGURA 40. Pintura resultante da observao de uma cesta de frutas. . . . . . . . . . . . 96
FIGURA 41. O vendedor de frutas (1925, leo/tela 108 x 84cm) . . . . . . . . . . . . 96
LISTA DE QUADROS
QUADRO 1. Eixo Expresso em diferentes linguagens. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47
QUADRO 2. Eixo Fundamentos humano-cientficos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48
QUADRO 3. Eixo Prxis pedaggica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48
SUMRIO INTRODUO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12 1 CULTURA E EDUCAO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16 1.1 Estudos culturais: percurso histrico. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17 1.2 Educao, escola, cultura e currculo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19 2 ENSINO DE ARTE. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23 2.1 Concepes de ensino de arte. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23 2.2 Ensino de arte no Brasil: apontamentos histricos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30 2.3 A Proposta Triangular para o ensino de arte. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34 2.4 Eixos de aprendizagem da arte na Proposta Triangular. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40 3 ESTUDANTES-PROFESSORES E A PROPOSTA TRIANGULAR. . . . . . . . 44 3.1 Cenrio. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 44 3.2 Personagens. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49 3.2.1 Personagens principais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54 3.3 Construo da cena. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57 3.3.1 Escolha do curso e experincia docente anterior ao ingresso no curso. . . . . . . . . 57 3.3.2 Contribuio da licenciatura em Educao Artstica/Artes Visuais para a
prtica docente. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61 3.3.3 Concepes e prticas dos estudantes-professores/as sobre a Proposta Triangular. . 65 CONSIDERAES FINAIS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 98 REFERNCIAS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101 APNDICE A Roteiro para entrevista. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107 APNDICE B Questionrio de caracterizao dos estudantes do curso de
Educao Artstica/Artes Visuais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 108 APNDICE C Questionrio de caracterizao dos sujeitos da pesquisa . . . . . . . 109 APNDICE D Entrevistas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 110 ANEXO A Matriz curricular da licenciatura em Educao Artstica/Artes Visuais
do CESUBE. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133 ANEXO B Projeto de Msica e Artes 2005. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135 ANEXO C Projeto Meu Brasil brasileiro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137 ANEXO D Projeto: levante a sua bandeira!. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 145 ANEXO E Projeto Modelarte modelagem em argila com arte. . . . . . . . . . . 146
INTRODUO
Esta pesquisa constitui um estudo de caso desenvolvido com base em entrevistas semi-
estruturadas concedidas por estudantes-professores/as discentes do curso de Educao
Artstica/Artes Visuais do Centro de Ensino Superior de Uberaba (CESUBE). Foi desenvolvida
como subprojeto do projeto temtico Repercusses do repertrio cultural de professores/as
da educao bsica de Uberaba e Uberlndia (MG) na prtica pedaggica.1 Espera-se que
contribua para: enriquecer as discusses sobre as atuais metodologias propostas para o ensino
de arte; repensar a escola como espao de cruzamentos de culturas e estabelecer as bases de
uma poltica de atualizao e capacitao do pessoal docente que lida com ensino de arte.
Escolher um problema e defini-lo num projeto de pesquisa, a princpio, pareceu-me
algo estranho, externo minha pessoa. Mas, medida que o projeto se delineou, descobri-me
inteiramente dentro dele; em parte, porque me preocupar com concepes e prticas de
estudantes-professores/as de arte talvez fosse e foi uma forma de retomar meu percurso
como estudante e professora de arte: retomar a histria de minhas aes e meus pensamentos
sobre arte, palavras, formas e cores, que compuseram minha infncia, adolescncia e
juventude. Por isso, mudo um pouco o tom a partir de agora para retomar partes da minha
histria pessoal que ajudam a explicar como cheguei a esta dissertao: um trabalho sobre
outras pessoas aprendendo a ser professor/a de arte.
Formas e cores marcam minha vida. No sem nostalgia que me lembro de passeios
quando eu era ainda criana na chcara do artista plstico Hlvio Fantato.2 Aquele
homem de barbas brancas, a sorrir e nos mostrar suas telas, suas tintas, seus pincis, dizia-nos
com simplicidade que seus quadros eram apenas pesquisas, que pintava por prazer. Com cores
fortes e imagens expressionistas, suas telas ainda povoam minha memria. Tambm a palavra
se fez marcante em minha vida, por intermdio de meu pai. Sentado sua escrivaninha, ainda
hoje escreve, rabisca papis; vai ao computador, l e rel vrias vezes. Quando menina, essa
labuta me parecia enigmtica (que fazia debruado sobre aqueles papis?); hoje sei que
lapidava palavras.
1 Projeto coordenado pela professora doutora Clia Maria de Castro Almeida e financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq), processo 401693/040. 2 Pintor de Uberaba (MG), falecido em 1997.
13
Meu envolvimento com formas e cores foi estimulado, tambm, por minha me, com
seus tecidos e suas ls, assim como com os poemas e as histrias que dela ouvia atentamente e
que estimulavam imagens coloridas em minha mente. Dessas histrias, influenciaram-me, em
especial, aquelas sobre minha bisav tambm Elisa, tambm professora. H muito, no
interior de So Paulo, ela lecionou nas cidadezinhas que acompanhavam a linha do trem e,
quando chegava diz minha me , era saudada com banda, tambores, cornetas e tudo o
mais. Ressalto a importncia dessas histrias porque provvel que tenham me motivado a
rumar para So Paulo (1980) a fim de cursar licenciatura em Educao Artstica na Faculdade
de Belas Artes, cujo programa de formao era ligeiro e polivalente. Nos dois primeiros anos,
o aluno entrava em contato com variadas formas de expresso artstica: artes plsticas, msica
e teatro; nos anos seguintes, tinha de optar por uma linguagem especfica. Optei por desenho.
Finda a faculdade, iniciei-me na profisso e senti que a graduao no havia me
ensinado o fundamental: como ser professora. Questionei-me se na licenciatura a parte
pedaggica havia sido pouco explorada ou se eu no soubera aproveitar o curso nem seus
contedos. Afinal, ensinar se aprende na academia ou no dia-a-dia? Continuei a ler sobre arte
e sobre educao, mas sentia que meus estudos, embora constantes, eram incompletos: faltava
a reflexo em grupo. Em parte porque, dado o reduzido nmero de aulas em cada unidade
escolar, a realidade da capital paulista e do Brasil de distanciamento entre professores de
Arte. Acreditava eu ento que o desenvolvimento da criatividade fosse central no ensino de
arte; logo, como professora, o que eu poderia fazer para que meus alunos desenvolvessem
mais criatividade? O que outros profissionais faziam? Quais seriam suas dvidas em relao
prtica pedaggica?
Isolada, inquieta e insegura quanto melhor forma de ser professora, fui buscar
respostas na ps-graduao especializao feita na Escola de Comunicao e Artes (ECA)
da Universidade de So Paulo (USP), em 1990. Ali, meu horizonte se abriu: conheci a
produo sobre ensino de arte desenvolvida no fim da dcada de 1980 e difundida por um
movimento de arte-educadores que pleiteava o reconhecimento da arte como rea de
conhecimento. Conheci a ento Metodologia Triangular para o ensino de arte, de Ana Mae
Barbosa, que propunha um entrecruzamento de aes: fazer arte, ler arte e pensar em arte.
Em 1993, retornei a Uberaba e me deparei com uma realidade diferente da de So
Paulo: pouqussimos eram profissionais licenciados em arte; as disciplinas Arte e Educao
Artstica no currculo das escolas de educao bsica eram ministradas por professores sem
formao universitria ou licenciados noutras disciplinas. Nesse contexto, ingressei no Centro
de Formao de Professores (CEFOR), mantido pela Prefeitura de Uberaba, em 1997, como
14
professora de um projeto de capacitao para docentes de Educao Artstica3 das escolas
municipais. Os cursistas desse projeto eram professores licenciados em Letras.
Tomei como foco de meu trabalho no CEFOR a Proposta Triangular4 para o ensino de
arte, que enfatiza a arte como conhecimento, o que exige do professor conhecimentos da
histria e das teorias esta. Meus objetivos centravam-se no reconhecimento da arte como
forma de expresso e comunicao e na identificao do campo de abrangncia das artes
visuais. Minha metodologia era clara: Utilizar na prtica de sala de aula os trs eixos
norteadores do conhecimento artstico: a produo (fazer), fruio (apreciar) e a reflexo
(construo de conhecimento da arte como produto cultural e histrico). (CARVALHO,
1999, p. 1).
Em 2002, a Faculdade de Educao de Uberaba (FEU), mantida pela Fundao
Municipal de Ensino Superior (FUMESU), oferecia cursos de licenciatura em Cincias
Biolgicas, Geografia e Pedagogia.5 Cientes do meu projeto no CEFOR, as diretoras dessa
faculdade me convidaram para coordenar, na FEU, a recm-criada licenciatura em Educao
Artstica/Artes Visuais. No exerccio dessa funo, novas questes surgiram: como se d a
formao inicial dos professores de arte? Nessa formao, como ocorre a relao entre teoria
e prtica? Quais contedos so essenciais formao de um professor de arte?
A primeira turma do curso de Educao Artstica/Artes Visuais da FEU, ingressantes
em 2002, tinha 40 alunos, dos quais vrios j atuavam como professores na educao bsica.
Na ocasio, preocupava-me saber se e como os estudantes-professores interpretavam e
punham em prtica a Proposta Triangular para o ensino de arte. Tomaram eles conhecimento
da proposta formulada por Ana Mae Barbosa antes de ingressarem no curso? Suas vivncias
culturais interferiam na interpretao da proposta e em sua prtica educativa? Como? A
Proposta Triangular estaria configurando uma prtica hegemnica na educao bsica? Sua
disseminao estaria provocando a eliminao de diferentes metodologias empregadas no
ensino de arte?
De novo, senti necessidade de ampliar e aprofundar meus conhecimentos; e a
necessidade me levou a ingressar no mestrado em Educao da Universidade de Uberaba
(UNIUBE). As leituras, os estudos e os debates feitos nesse curso me conduziram a outras
reflexes base para os objetivos desta pesquisa: saber o que pensam alguns/mas
3 A disciplina passa a se chamar Artes em 2006. 4 De incio denominada Metodologia Triangular, passou a ser chamada Proposta Triangular; agora Ana Mae Barbosa se refere a ela como Abordagem Triangular (cf. BARBOSA, 2005). 5 No transcurso desta pesquisa, a FEU se transformou em Centro de Ensino Superior de Uberaba (CESUBE), mas continua a ser mantida pela FUMESU.
15
estudantes-professores/as da licenciatura em Educao Artstica/Artes Visuais do CESUBE
sobre o ensino da arte e sua prtica profissional; investigar o que conhecem da Proposta
Triangular e como a pem em prtica. Hoje reconheo que, quando conheci essa proposta,
fiquei fascinada e pus-me a reproduzir orientaes sobre como p-la em prtica. Assim, no
estariam os/as estudantes-professores/as apenas reproduzindo mecanicamente a Proposta
Triangular? Que interpretaes fazem dessa proposta para o ensino de arte? Como a
desenvolviam na prtica?
Responder a essas questes exigiu uma pesquisa que se materializa neste trabalho,
que se desdobra em trs captulos. Em um, discuto questes relativas a cultura e educao.
Noutro, apresento teorias do ensino de arte e contextualizo a Proposta Triangular. No ltimo,
descrevo os sujeitos da pesquisa estudantes-professores/as , caracterizo o contexto da
pesquisa e a metodologia empregada na investigao. Ainda discuto a formao de
professores/as, com base nos dados da pesquisa. No se pretendeu esgotar a anlise sobre a
Proposta Triangular como proposta de ensino de arte; mas se pretendeu colaborar com
reflexes sobre as concepes e prticas do ensino de arte e a formao de professores de Arte.
1 CULTURA E EDUCAO Neste captulo, exploro o conceito de cultura e seus vnculos com a educao tomada aqui
como algo que se processa no s na escola, mas tambm na comunidade e noutros espaos e
contextos. Por muito tempo, no conceito de cultura imperou a idia do determinismo
geogrfico: o ambiente fsico condiciona a diversidade cultural. Atribuam-se as diferenas
comportamentais observadas entre os povos a diferenas geogrficas: povos habitantes do
hemisfrio norte se comportam diferentemente de povos do hemisfrio sul em razo de
caractersticas regionais: um esquim capaz de distinguir tonalidades de branco que os
habitantes de uma regio das savanas africanas seriam incapazes de perceber.
Popularizadas por gegrafos, essas teorias comearam a ser refutadas nos anos de
1920. Antroplogos mostraram que havia limites influncia geogrfica sobre fatores
culturais. Roque de Barros Laraia afirma que [...] possvel e comum existir uma grande
diversidade cultural localizada em um mesmo tipo de ambiente fsico (2001, p. 21) e mostra
que, mesmo vivendo em ambientes semelhantes no norte do planeta, sob um rigoroso inverno,
esquims e lapes tm comportamentos culturais diferentes: aqueles constroem casas de gelo
(os iglus), estes constroem tendas com peles; quando querem se mudar, os primeiros
abandonam o iglu, os ltimos transportam sua moradia para o local a ser habitado.
Outra explicao para as diferenas culturais a que relaciona capacidades
especficas a certas raas ou certos grupos humanos. Fundado no determinismo biolgico,
tal entendimento atribui capacidades e habilidades prprias de alguns seres humanos sua
origem gentica. Nessa tica, acredita-se que os brasileiros herdaram a preguia dos ndios e a
esperteza dos negros. Pensamentos assim se traduzem em atitudes discriminatrias contra
certos grupos por causa de caractersticas tnicas. Pode-se pensar aqui no aumento da
xenofobia e na excluso social em algumas sociedades por causa das migraes
internacionais, que geraram o surgimento de minorias.
A antropologia atual explica as diferenas culturais com base no conceito de
endoculturao: processo de socializao e aprendizagem da cultura ao longo da vida. Nesses
termos, qualquer pessoa pode adquirir hbitos culturais prprios do grupo social a que
pertence; por exemplo, uma pessoa nascida no Brasil mas criada na Inglaterra assimilar
hbitos, linguagem, crenas e valores dos ingleses. Dito de outro modo, as pessoas se
comportam diferentemente no por causa de transmisso gentica ou do espao geogrfico
17
onde vivem, mas sim por terem tido diferentes condies de educao. Assim, educao e
cultura explicam, em grande parte, as diferenas comportamentais entre os humanos. Pela
educao, os indivduos assimilam diferentes elementos da cultura e passam a agir segundo
esta.
Como esclarece Laraia (2001), vem de Edward Burnett Tylor (18321917) a
primeira definio de cultura que se aproxima do conceito empregado hoje: cultura [...]
todo complexo que inclui conhecimentos, crenas, arte, moral, leis, costumes ou qualquer
outra capacidade ou hbitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade
(TYLOR, 1871 apud LARAIA, 2001, p. 25). Tylor enfatiza a idia de aprendizado na sua
definio de cultura, mostrando-a como todo comportamento aprendido, adquirido; tudo que
independe da transmisso hereditria.
1.1 Estudos culturais: percurso histrico
O debate sobre cultura ganha flego na segunda metade dos anos de 1950, quando o
crtico literrio e professor britnico Raymond Frank Leavis (18951978) props usar o
sistema educacional para distribuir mais o conhecimento da alta cultura. Contra essa concepo
elitista de cultura, insurgiram dois estudiosos provenientes da classe trabalhadora inglesa
Richard Hoggart e Raymond Williams que questionaram as idias de Leavis e combateram a
concepo de cultura como esprito cultivado, forma superior de arte, cincia e literatura.
A discusso se consolidaria nos anos de 1960, graas, sobretudo, ao trabalho de um
pequeno grupo de intelectuais reunidos na Universidade de Birmingham, Inglaterra. Ali, eles
criaram, em 1964, o Centre for Contemporary Cultural Studies/CCCS (Centro de Estudos
Culturais Contemporneos) origem dos estudos culturais (EC), que provocariam uma
reviravolta nas investigaes sobre a cultura. Nos EC, a cultura entendida como modo de
viver e entender o mundo; como criao e trabalho; como algo dinmico e instvel. Ao
combaterem a concepo de cultura como condio, os estudiosos dos EC defendem a no-
distino entre alta e baixa culturas, pois a cultura deve ser concebida como traos de
modos de vida, dinmica de relacionamento do indivduo com o real, com sua realidade, ou
luta entre modos de vida diferentes. Tal noo se difere da concepo de cultura como
patrimnio, monoplio de idias j prontas.
Em estudos de orientao marxista, os pesquisadores do CCCS exploraram as funes
polticas da cultura e se interessaram pelas manifestaes da cultura de massa. Para discutir
cultura popular, cultura de massa, indstria cultural e criao de uma cultura de resistncia, os
18
primeiros representantes dos EC recorreram a conceitos como hegemonia cultural (Gramsci) e
indstria cultural (Escola de Frankfurt), que os influenciaram. Partem do princpio
gramsciniano de que o capitalismo mantm o poder pela coero poltica ou econmica e,
sobretudo, pela coero ideolgica por meio de aparelhos privados de hegemonia.6
No fim da dcada de 1960, assumiu a direo do CCCS o socilogo jamaicano Stuart
Hall,7 divulgador dos EC como movimento acadmico intelectual internacional que discute os
conceitos de raa, etnia e os efeitos do colonialismo nas sociedades. Hall (1997) argumenta
em favor da necessidade de se compreender a cultura como algo fundamental e constitutivo
do mundo. A cultura diz ele tem assumido posio central na organizao da sociedade;
[...] penetra em cada recanto da vida social contempornea, fazendo proliferar ambientes
secundrios, mediando tudo (HALL, 1997, p. 22).
Nos anos seguintes, buscando entrecruzar diferentes tendncias tericas, os EC
dialogam com teorias francesas e absorvem idias de pensadores como Bourdieu, Certeau,
Derrida e Foucault.
[...] passam do estudo das comunidades articulados como classes ou subculturas para o estudo dos grupos tnicos, de mulheres, raciais e tornam-se a voz do outro na academia, absorvendo assim um contingente expressivo de antroplogos, sem, entretanto, abrir mo da criao de cruzamentos intelectuais e institucionais que produzam o efeito poltico de expandir a sociedade civil. (HOLLANDA, 1996).
As vrias faces contemporneas dos EC incluem discusses sobre ps-modernismo e
ps-estruturalismo. Mas foram as teorias ps-colonialista e crtica tratam de questes
relativas s minorias e micropolticas que criaram condies para haver, no mbito dos EC,
[...] o debate da identidade nacional, da representao, da etnicidade, da diferena e da
subalternidade no centro da histria da cultura mundial contempornea (PRYSTHON, 2003,
p. 138). Os EC nunca se vincularam a um campo disciplinar especfico; antes, buscaram
subsdios na antropologia, filosofia, histria, sociologia e teoria literria. Os estudos atuais
abordam as diferentes prticas culturais: preocupam-se em refletir sobre a mdia, sobre os
modos como o pblico se apropria dela e sobre como imagens e discursos miditicos
funcionam no interior da cultura geral. Para os EC, a mdia ocupa posio dominante e ajuda a
estabelecer e perpetuar a hegemonia de certos grupos e determinados projetos polticos.
No debate sobre escola e currculo, a discusso sobre a cultura entra num terreno
frtil, porque complexo. luz dos EC, a cultura e o conhecimento so entendidos como
6 Organismos relativamente autnomos em face do Estado em sentido estrito: associaes, escola privada, Igreja, imprensa, partidos polticos, sindicatos, universidades e outros. 7 Em 1979, Hall se transferiu para a Open University (Inglaterra), instituio de ensino superior onde adultos obtm diplomas universitrios resultante de educao a distncia e seminrios intensivos.
19
produto de relaes sociais hierrquicas e de poder; qualquer objeto cultural de anlise
pode ser tomado como artefato cultural e, assim, ser investigados pelos EC. Nesses termos,
educao e escola passam a ser interpretadas como pontos de encontro de culturas, que muitas
vezes provocam tenses, restries e contrastes na construo do significado. A cultura passa
a ser entendida como campo de luta: [...] campo onde se define no apenas a forma que o
mundo deve ter, mas tambm a forma que as pessoas e os grupos devem ter. A cultura um
jogo de poder (SILVA, 1999, p. 134).
Ainda no mbito escolar-curricular, os EC vo contribuir para haver ressignificao
de termos como cultura, educao, identidade e discurso; e mais: ao proporem uma discusso
sobre cultura, ampliam e estendem as noes de educao, pedagogia e currculo. Diversidade
tnica e nacionalidade; discriminao; relaes de poder entre culturas, naes, povos, etnias,
raas, orientaes sexuais e gneros passaram a ser assuntos tambm da educao e do
universo escolar. Para os EC, o currculo no pode mais ser encarado como algo neutro,
distante das questes sociais e polticas, porque a educao no neutra nem distante.
1.2 Educao, escola, cultura e currculo
No difcil perceber a relao entre educao e cultura. Em sentido amplo,
educao significa a constituio e socializao de algum; experincia bsica do ser humano
de aprender e entender a cultura. Implica sempre uma relao de algum com algum;
pressupe comunicao, transmisso e aquisio de conhecimentos, crenas, hbitos, valores,
contedos de uma cultura. Como diz Jean-Claude Forquin (1993, p. 14): [...] educao e
cultura aparecem como duas faces, rigorosamente recprocas e complementares, de uma
mesma realidade: uma no pode ser pensada sem a outra e toda reflexo sobre uma
desemboca imediatamente na considerao da outra. Noutros termos, a educao vital. No
mera adaptao do indivduo ao meio natural e cultural; porque uma atividade criadora.
Carlos Rodrigues Brando toma a educao como frao da experincia endoculturativa
prpria das relaes entre pessoas e nas intenes de ensinar e aprender. A educao ajuda
[...] a crescer, orientar a maturao, transformar em, tornar capaz, trabalhar sobre, domar,
polir, criar como um sujeito social, a obra, de que o homem natural a matria-prima
(BRANDO, 1989, p. 24).
Sobre os fins da educao, h idias diferentes: adaptao vida social;
aperfeioamento das faculdades humanas; possibilidade de o indivduo ascender socialmente;
processo de conscientizao e questionamento da realidade. Isso porque, educao,
20
convergem interesses econmicos e polticos. Brando (1989, p. 60) pode ser esclarecedor
aqui:
No raro que aqui, como em toda parte, a fala que idealiza a educao esconda, no silncio do que no diz, os interesses que pessoas e grupos tm para os seus usos. Pois, do ponto de vista de quem a controla, muitas vezes definir educao e legislar sobre ela implica justamente ocultar a parcialidade destes interesses, ou seja, a realidade de que eles servem a grupos, a classes sociais determinadas, e no tanto a todos, nao, aos brasileiros.
Pensar na educao pensar na escola como espao exclusivamente educativo,
destinado a integrar o indivduo em outros tipos de experincias e cdigos diferentes daqueles
apreendidos na famlia; escola,8 cabe transmitir a cultura cientfica, distinta do
conhecimento do homem comum. Todavia, ela se encontra em situao contraditria: se
prope a difundir conhecimentos, valores e hbitos definidos pelo sistema escolar, mas est
cercada pela cultura, difundida pelos meios de comunicao de massa. Hoje o universo
cultural e o acesso a ele se ampliaram a ponto de ser improvvel uma viso unitria de
mundo. As culturas se infiltram em todo e qualquer espao: sala de aula, tela do televisor,
websites, revistas e jornais; outras gramticas culturais chegam escola pela televiso
(propaganda, jogos e filmes) e via internet. Noutros termos, a escola perde sua hegemonia
como nica referncia cultural, por isso necessita aprender a lidar com a cultura ps-moderna.
Tida como patrimnio da escola, a cultura foi por sculos pensada como nica e
universal: tudo que a humanidade produziu de melhor material, cientfica, filosfica,
literria e artisticamente. Culto era quem tinha conhecimentos que permitiam ser superior
aos demais, e para s-lo haveria de se freqentar uma escola. Todavia, o presente exige mais.
No dizer da professora e pesquisadora brasileira Marisa Vorraber Costa (2005) a propsito
das relaes entre escola e cultura contempornea, neste incio de sculo XXI educar no quer
dizer apenas dar conta de novas competncias tcnicas, cientficas e pedaggicas. Na cultura
contempornea prossegue essa autora , educar requer sensibilidade.
Nesta delicada tarefa, uma conduta recomendvel, a meu ver, no diabolizar nem endeusar as culturas e o seu tempo. Todos os tempos tm os seus encantos e as suas mazelas, suas faces edificantes e outras tenebrosas e obscurantistas. Um no melhor do que o outro: so apenas diferentes. A valorizao daquilo que as culturas e seus tempos produzem uma questo de verificao histrica, mas nunca uma a priori. (COSTA, 2005, s. p.).
O presente exige, tambm, uma reflexo sobre o currculo escolar. Derivado da
palavra latina curriculum (curso, rumo, caminho da vida, dentre outros sentidos), em
educao currculo pode ser definido como conjunto dos contedos apresentados para estudo. 8 Embora j houvesse alguns estabelecimentos de ensino, a maioria religiosos, a escola se consolidou no sculo XVII; mas se tornou necessria para transmitir conhecimentos teis complexidade do trabalho nos sculos XVIII e XIX, com a industrializao (DUSSEL, 2003).
21
As discusses sobre currculo no mbito da educao comearam em 1918, nos Estados
Unidos (EUA), com Franklin Bobbitt, que entende o conhecimento como conjunto de fatos
objetivos, externos ao indivduo; dito de outro modo, o conhecimento no pode ser
questionado ou negociado. A escola estadunidense de ento tinha papel importante na
homogeneizao cultural, por isso buscava preservar e restaurar valores ameaados de se
perderem em razo da ordem social provocada pela chegada de imigrantes de diferentes
origens. Como a escola precisava formar pessoas para diferentes nveis de hierarquia, isso
exigia uma organizao eficiente do currculo, que se fundamentava nas idias de
padronizao e eficincia. De certa forma dando continuidade ao trabalho de Bobbitt, em
1949 Ralph Tyler publica um manual bastante tcnico sobre como selecionar e organizar
experincias de aprendizagens para tornar o currculo eficiente (SILVA, 1999).
Como se pode depreender, o currculo no terreno pacfico: sofre determinaes
polticas, econmicas, sociais e culturais. Nesse sentido, luz dos EC, a seleo do
conhecimento escolar seleo de disciplinas, campos de um currculo no ato
desinteressado e neutro: resulta de lutas, conflitos e negociaes. Se sofre determinao
cultural e historicamente situado, o currculo no pode se desvincular do todo social; logo,
pensar em seleo de contedos requer compreender que os conhecimentos implicam relaes
de poder.
As questes de tcnica so importantes e precisam ser feitas; mas, uma vez que a escola no est divorciada das relaes de explorao e dominao na sociedade e das lutas para super-la, devemos perguntar o que constitui um conhecimento poltica e eticamente justificvel, antes que nos lancemos a ensin-lo. (APPLE, 1989, p. 46).
Os EC nos permitem conceber o currculo como campo de luta em torno da
significao e da identidade. Conforme Silva (1999, p. 135), conhecimento e currculo so
[...] campos culturais, campos sujeitos disputa e interpretao, nos quais os diferentes
grupos tentam estabelecer sua hegemonia. Nessa tica, o currculo construo social
porque se vincula a um momento histrico, a uma sociedade e s relaes que esta estabelece
com o conhecimento. O currculo artefato cultural porque o conhecimento no uma
revelao ou reflexo da natureza ou da realidade, mas o resultado de um processo de criao e
interpretao social (SILVA, 1999, p. 135).
Se os contedos no so os mesmos afinal, so historicamente construdos ,
ensinar supe selecionar e questionar contedos e prticas pedaggicas segundo critrios
histrica e culturalmente definidos. No so escolhas neutras; deciso poltica. As escolhas
dos professores so baseadas em suas experincias como alunos e profissionais da educao,
22
mas refletem o universo em que esto, social, cultural e historicamente. Nesse sentido, deve-
se considerar o currculo como instrumento significativo para desenvolver processos de
conservao social em defesa de idias e comportamentos culturalmente aceitos e
estabilizados, assim como para transformar e renovar conhecimentos construdos (SILVA,
1999).
Como artefato cultural9 passvel de investigao, a Proposta Triangular para o ensino
de arte constitui aqui objeto de estudo, a ser desconstrudo e ter exposto o processo de sua
naturalizao. Conforme Silva (1999), a naturalizao provoca o esquecimento: apaga o
modo como o artefato cultural foi construdo, e isso ignorar sua origem social. Se o artefato
compreendido s na superfcie isto , se se aceita a representao que dele fazem , a
anlise culturalista procura investigar as foras sociais nele expressas e compreender o
conhecimento [...] como campo sujeito disputa e interpretao, nos quais diferentes grupos
tentam estabelecer sua hegemonia (SILVA, 1999, p. 135). Nesse contexto, convm descrever
algumas concepes de ensino de arte expressas no sculo XX e a Proposta Triangular.
9 Na acepo de Hall (1997), podemos considerar artefato cultural tudo que produzido socialmente.
2 ENSINO DE ARTE Acredito que as prticas educativas em arte surjam de mobilizaes sociais, filosficas,
artsticas, estticas e que, destas, tenham influncias; tambm acredito que as propostas
metodolgicas traduzem, obrigatoriamente, tais mobilizaes e influncias. No sculo XX,
vrias concepes pedaggicas coexistiram, a exemplo da livre expresso (modernista) e da
ps-modernista. Retomo-as aqui porque a Proposta Triangular de ensino de arte foi elaborada
como proposta metodolgica ps-modernista, em contraposio concepo modernista de
ento.
2.1 Concepes de ensino de arte
No sculo XX, o ensino de arte se transformou em razo de mudanas no ensino
escolar de arte. provvel que grande parte delas se associe ao fato de que, tambm, as
concepes de ensino de arte se vinculam ao entendimento que a sociedade tem dos artefatos
artsticos. Por exemplo, nas primeiras dcadas do sculo, estes eram considerados como
resultado da mxima expresso individual: priorizavam-se a originalidade e o total desapego
s regras acadmicas; eram, pois, concebidos apenas como expresso do indivduo, como se
pudessem ser desvinculados de um contexto, seja cultural, poltico ou social. Numa viso
prpria do Romantismo (movimento artstico do sculo XIX), supervalorizava-se a emoo e
enfatizava-se a sensibilidade inventiva, com predomnio do individualismo como expresso
subjetiva. Atitudes como a recusa influncia externa na produo artstica se tornaram
constantes, pois se acreditava que a criao original surge da fora interior. Como resultado,
produtor e expectador se eximiram de fazer uma leitura crtica das obras produzidas.
Nesse perodo, os estudos sobre a psicologia infantil avanaram, provocando uma
crescente valorizao da personalidade e criatividade infantis. A produo artstica da criana,
que at ento tinha suas especificidades ignoradas, passou a ser reconhecida pelas qualidades
estticas. A arte infantil passou a ser vista como passvel de apreciao, e alguns crticos
chegaram mesmo a considerar algumas produes artsticas infantis como obra de arte.10 Seja
pela livre explorao da cor, das formas e do espao, seja pela liberdade como expressa a
10 H museus de arte infantil na Noruega, Sucia e Espanha. No Brasil, h uma coleo de desenhos infantis coletados por Mrio de Andrade que est no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de So Paulo (USP).
24
fantasia, a produo artstica da criana influenciou a produo de artistas e movimentos
ligados s vanguardas artsticas. Franz Cizek ficou conhecido como o pai da arte infantil:
orientou a produo das crianas em seu curso de arte jovem em Viena, no incio do sculo
XX. Os trabalhos de seus alunos entusiasmaram alguns artistas, que [...] viam na arte infantil
a essncia do que vinham procurando para seu prprio trabalho (WILSON, 1990, p. 56).
Essa valorizao da arte infantil impulsionou o aparecimento de vrios atelis onde as
crianas ficavam livres para produzir sem interferncia do adulto. No Brasil, o Movimento das
Escolinhas de Arte11 influenciaria o ensino de arte nas escolas regulares. O mtodo tradicional de
cpia de modelos foi questionado: se como se acreditava a criana criativa por natureza, a
escola deveria ser local onde o aluno pudesse ser encorajado a se expressar com liberdade. Os
estudos sobre psicologia infantil suscitaram discusses acerca da necessidade de haver uma
educao mais criativa; defendia-se at o espontanesmo contrrio, portanto, a qualquer
intelectualismo na formao artstica da criana. O educador francs do sculo XX Arno Stern
defendia: o educador deve abster-se de pensar em tudo que o estudo terico lhe ensinou e ir
ao encontro da criana, com a sensibilidade e no com a sua cincia (1974, p. 16). Nesse
entendimento, o professor no poderia interferir no olhar infantil, mas deveria compreender o
que a criana pode produzir em seus diferentes estgios de desenvolvimento.
A idia de auto-expresso penetrou na educao artstica, e o emprego de imagens
produzidas por adultos obras de arte no ensino artstico foi considerado como nocivo:
acreditava-se que poderiam influenciar a criana e lhe inibir a criatividade:
[...] a apresentao de modelos deixou de ser considerada como educativa e, conseqentemente, a imagem foi banida do ensino da arte. [...] passou-se a zelar para que o aluno no fosse contaminado pela imagem. [...] Durante os anos do Modernismo, a no-interveno do professor e o rompimento com a imitao de modelos foram considerados como o mais profundo respeito natureza da criana, da criatividade e da produo artstica. (ROSSI, 2003, p. 14).
O ensino de arte baseado na expresso do eu, na liberao emocional foi a tnica de
muitos educadores na primeira metade do sculo XX. O filsofo e educador austraco Victor
Lowenfeld (19031960) enfatizou, em seu livro Desenvolvimento da capacidade criadora
(cuja primeira edio de 1947), a importncia da arte na educao para garantir o
desenvolvimento integral do indivduo nos aspectos social, emocional, perceptivo, fsico e
psicolgico (LOWENFELD; BRITTAIN, 1977). Lowenfeld props a valorizao da auto-
expresso e auto-identificao como forma de desenvolver a conscientizao dos sentidos
para uma aprendizagem integral. Noutro livro A criana e sua arte: um guia para os pais
11 Estiveram ligadas a esse movimento 32 escolinhas de arte (BARBOSA, 2003a).
25
(1977) , o autor recomenda a no-interferncia no trabalho artstico das crianas (o
subttulo deixa entrever como ele desenvolve suas idias). No captulo Convm ajudar a
criana em sua arte, Lowenfeld esclarece que:
Poderamos distinguir dois tipos de ajuda aos nossos filhos. Por exemplo, Maria diz: Mame, no sei como me desenhar, a mim mesma, colhendo flores. Se sua me lhe mostra como desenhar, estar impondo sua imaginao de adulto criana. Em outras palavras, estar expondo filha como colheria flores, ao passo que a criana poderia ter uma experincia muito diferente, relacionada com a coleta de flores. [...] Colher flores pode representar uma sensao diferente, tanto na me quanto na filha. Para a me pode representar uma sensao de cansao ou de dor nas costas [...] enquanto para a menina pode demonstrar esforo de seus braos ou de suas mos.[...] Maria no encontraria alvio ou escape por intermdio dos desenhos feitos por sua me. Tais desenhos no lhe transmitem sentido algum. (LOWENFELD, 1977, p. 29).
Influenciada pelo pensamento de Lowenfeld, a educao artstica passou a ser concebida
como desenvolvimento de habilidades motoras, domnio de tcnicas e, sobretudo,
desenvolvimento de habilidades criativas. O foco de ateno do ensino artstico deixou de ser o
produto final para se concentrar no processo, pois o que se considerava era a expresso da
criana e do jovem no percurso de seu desenvolvimento. O maestro e professor universitrio
Ricardo Tacuchian sintetiza esse pensamento: a educao artstica visa basicamente o homem e
no a arte. As diferentes linguagens artsticas so meras opes para a ativao dos mecanismos
de criao, reflexo e fruio (1981, p. 61). Como conseqncia desse entendimento, o ensino
artstico passou a enfatizar uma infinidade de tcnicas de materiais e aprendizagem.
O mtodo da livre expresso levou numerosos professores a considerarem o
desenvolvimento da criatividade como questo essencial no ensino de arte. Os objetivos da
aula se centravam no desenvolvimento do esprito de interrogao e na abertura a
experincias, assim como no desenvolvimento da autoconfiana para promover a criatividade
dos alunos. Com freqncia, usavam-se exerccios que se supunham teis ao aluno no que se
refere ao desenvolvimento de uma fluncia criativa. A livre expresso conduzida
(MARTINS, 1979, p. 28) era a proposta de atuao para o professor de arte, que deveria
incentivar, sem interferir, a produo artstica do aluno; tambm sua atuao pedaggica
deveria estimular a experimentao. As noes de certo ou errado foram avaliadas como algo
fora de propsito, pois o produto final dependeria do mtodo criador. Mais que o resultado
esttico, importava o percurso da criao: a livre expresso leva o indivduo auto-expresso
e, assim, cada vez mais profundamente, o indivduo ganha em liberdade, em flexibilidade,
fazendo da arte sua descarga emocional (MARTINS, 1979, p. 29).12
12 Martins no defende mais a livre expresso como mtodo de ensino artstico.
26
Contudo, se antes a educao se preocupava s com o produto final em consonncia
com os padres do adulto (antes do sculo XX), na livre expresso o descaso com o produto
final exagerado. Disso resultou uma concepo de que a produo artstica, de fato,
expressava o interior puro dos alunos, mas cuja qualidade esttica era discutvel, sobretudo
porque essa produo era vista como qualquer coisa, independentemente do aspecto esttico.
Ainda assim, a prtica educativa que propunha o desenvolvimento da criatividade passou a
dar o tom da educao. Vrias metodologias foram incrementadas para o cultivo do
pensamento criativo, e o mtodo da resoluo de problemas foi visto como meio para
desenvolver a originalidade. A fim de usar tcnicas que desafiassem o pensamento criativo, o
professor buscava aquelas que possibilitassem exploraes sensoriais e imaginativas. Feito
um animador, ele deveria formular perguntas que gerassem abundncia de idias pela
associao.
Essa concepo do artefato artstico como resultado da mxima expresso individual
seja oriundo da produo infantil ou no deixou marcas no ensino de arte: a baixa
qualidade das atividades pedaggicas em arte e o produto da resultante contriburam para que
a disciplina fosse encarada como mera atividade e vista com descrdito. Essa concepo
perdurou at segunda metade do sculo XX, quando o ensino de arte passa por outra mudana
conceitual motivada, dentre outros fatores, pela nova forma de conceber os artefatos artsticos,
agora influenciada pela antropologia, sociologia e pedagogia e pelo surgimento de teorias
sobre a inteligncia.
Na reestruturao e unificao do emocional com o racional, novas transformaes
conceituais modificam o pensamento sobre o ensino de arte. A produo artstica, os artefatos
de arte no so mais vistos separadamente da produo cultural de um povo, e sim como
constituinte de sua cultura. Na viso antropolgica, a produo artstica, encarada como fazer
especial (DISSANAYAKE 1988 apud RICHTER, 2003, p. 22), tambm pensada como
comportamento fundamental do ser humano. Tal viso amplia os horizontes de compreenso
da arte e permite, afinal, entender as atividades e os artefatos artsticos das pessoas como
expresso motivada esteticamente. A arte , tambm, forma de produo e reproduo cultural
passvel de uma compreenso mais clara e precisa luz de seu contexto de origem e recepo
Diz a autora, que nas artes, tem-se a representao simblica dos traos espirituais, materiais,
intelectuais e emocionais caractersticos de dado grupo social e de seu modo de vida; como
constituinte da cultura, a arte situa o indivduo em seu grupo social; pela arte, possvel
entender a cultura de um pas. Por isso, no estud-la como linguagem produtora de sentidos
ter um conhecimento parcial de um povo, de uma cultura.
27
Na educao, a arte se torna meio para a expresso pessoal e, como cultura,
importante instrumento de identificao. Na concepo de ensino de arte ps-modernista, a
arte no s expresso; tambm cultura e um importante instrumento para identificao
cultural. A concepo ps-modernista tem compromisso com a cultura e com a histria. No
se pretende desenvolver uma [...] vaga sensibilidade nos alunos por meio da arte, mas [...] se
aspira a influir positivamente no desenvolvimento cultural dos estudantes pelo
ensino/aprendizagem da arte (BARBOSA, 2002b, p. 17).
Na dcada de 1980, as metodologias que orientaram o ensino de arte comearam a
consider-la no apenas como expresso, mas tambm como cultura; apontaram a necessidade
de haver uma contextualizao histrica, assim como mudanas, para que esse ensino
desocupasse sua [...] posio marginal no currculo escolar (PILLAR; VIEIRA, 1992, p. 3).
A fim de se construir uma abordagem aprofundada e abrangente para elevar a qualidade do
ensino da arte nas escolas, muitas pesquisas comearam a ser desenvolvidas. Nos EUA,
liderado por Elliot Eisner (da Ohio State University), o grupo da Getty Center for Education
in Arts desenvolveu a proposta denominada Discipline-Based Art Education/DBAE (arte-
educao como disciplina); na Inglaterra, o artista educador Richard Hamilton (Newcastle
University) e os colegas Harry Thubron, Victor Pasmore, Richard Smith, Joe Tilson e
Eduardo Paolozzi associaram, ao ensino de arte, os princpios do design.
Seguiu-se que a criatividade bandeira da livre expresso deixou de ser
preocupao exclusiva da educao artstica para ser entendida como objetivo a ser atingido
em todas as disciplinas. A educao dos sentidos para a apreciao e leitura de trabalhos
artsticos passou a ser concebida, tambm, como forma de desenvolver a fluncia, a
flexibilidade e a originalidade; numa palavra, colabora para o desenvolvimento da
criatividade entendida como expresso que tem influncia das formas culturais, isto , baseia-
se na tradio. O ato criador no fortuito: requer relao, ordenao, configurao e
significao. Todo ato de criao um ato de compreenso que redimensiona o universo
humano. (OSTROWER, 1995, p. 217).
A compreenso de que a cultura influencia o processo criativo permitiu entender que
a criana poderia ser vista no apenas como produtor, espontneo, mas tambm como fruidor
em potencial. Mais que isso, permitiu ver o quanto o ensino de artes escolar estava defasado
em relao produo contempornea de arte. Enquanto nas escolas eram distribudas aos
alunos folhas com coraes a serem coloridas para o Dia das Mes ou folhas em branco para
28
um desenho livre,13 a produo contempornea de arte exigia reflexo e participao do
pblico e no era mais objeto de identificao passiva. Embora a arte seja produto da
expresso e imaginao humana, professores e pesquisadores argumentavam que ela no se
separa da economia, da poltica e da cultura.
O contexto favorecia o surgimento de outras concepes para o ensino da arte e sua
importncia na educao formal porque a arte passou a ser vista como algo
[...] no [...] apenas bsico, mas fundamental na educao de um pas que se desenvolve. Arte no enfeite. Arte cognio, profisso, uma forma diferente da palavra para interpretar o mundo, a realidade, o imaginrio e contedo. Como contedo, Arte representa o melhor trabalho do ser humano. (BARBOSA, 1996, p. 4).
Na concepo ps-moderna, o ensino da arte se compromete mais com a cultura e a
histria; e ensinar arte pressupe que o conhecimento em arte ocorra na interseco da
experimentao, decodificao e informao. Neste momento, busca-se superar a concepo
de que o uso de imagens na educao artstica danoso. refutada a crena de que a criana
tem uma virgindade expressiva (BARBOSA, 1997, p. 10), que obrigava os educadores a
evitarem o uso de imagens ou obras de arte na sala de aula; a imagem entra na aula para ser
lida e relida. Por isso, o ensino da arte agora tem a funo de preparar o aluno para entender o
discurso visual e compreender/avaliar todo tipo de imagem preparao improvvel no
ensino baseado no espontanesmo porque a prtica de ler imagens leva a uma leitura mais
ampla: social, cultural e esttica. Tambm neste momento uma variedade de conceitos sobre
arte apaga a separao entre arte maior e arte menor. Se nas escolas do passado s a cultura
erudita tinha lugar, nas de agora o compromisso com a diversidade cultural [...] enfatizado
pela arte-educao ps-moderna. No mais somente os cdigos europeus e norte-americanos
brancos, porm mais ateno diversidade de cdigos em funo de raas, etnias, gnero,
classe social, etc. (BARBOSA, 2002b, p. 19).
Dito isso, depreende-se a defesa de uma educao esttica, tica e cultural, porque
ela orienta uma educao ps-moderna para o ensino de arte; uma educao intelectual,
sobretudo humanizadora, em que a arte possibilite ao indivduo desenvolver a capacidade
criadora, a percepo e a imaginao para interferir na realidade. Cruciais para esse ensino da
arte ps-moderno so os encaminhamentos educativos das aulas de arte: entendidos como
metodologias de ensino e aprendizagem em arte, isto , um conjunto de idias e atos baseado
em tendncias pedaggicas e concretizadas em projetos ou no prprio desenvolvimento das
aulas. Na metodologia, muitos componentes se articulam: objetivos educacionais com
contedos escolares, funo do professor e forma de avaliao. Resumem idias de como 13 O que ainda persiste em muitas escolas do pas.
29
devem ou deveriam ser as prticas educativas em arte baseadas em propostas educativas e
tendncias pedaggicas. Tais encaminhamentos educativos visam ajudar os alunos a
compreenderem o objeto de ensino aqui, a arte.
Coexistem vrios mtodos: livre expresso, sugesto de tema, soluo de problemas,
e metodologia triangular. O mtodo da sugesto de tema ou assunto forte influncia da
obra de Lowenfeld a conduo de toda atividade de sala de aula partindo de um tema, na
maioria das vezes, escolhido pelo professor. Dominou a formao docente nos anos de 1970;
abarcava s o conceitual, outros componentes mentais, na maioria das vezes, no eram
desenvolvidos. A proposio temtica se limita ao desenvolvimento da memria perceptiva;
medida que se desvincula da presentificao do objeto tratado na obra.
Dar um tema para ser desenhado apelar para a memria perceptiva, conduzindo a uma
imagem preponderantemente conceitual, sobrepondo a viso corprea do fato ou objeto, e ocasionando
a dominncia do intelecto sobre o sensvel. (BARBOSA, 1978, p. 4748).
Desenvolvido por Robert Saunders (BARBOSA, 1978), o mtodo da soluo de
problemas ou Processos Mentais ainda se preocupava com desenvolver a criatividade
pela seleo de atividades que exercitem e mobilizem a parte cognitiva e a afetiva. A
atividade artstica selecionada pelo professor dever promover um processo mental especfico
desenvolvido por fases: anlise ou abstrao; habilidade para redefinir ou rearranjar;
flexibilidade e fluncia; coerncia de organizao; originalidade e sntese.
Nesse perodo (1975), Ana Mae Barbosa a princpio defensora do Mtodo dos
Processos Mentais dedicou-se construo de uma proposta terico-metodolgica que
integrasse o fazer artstico com a contextualizao e a apreciao artstica. A proposta revela
uma preocupao com um trabalho no centrado tanto no fazer artstico e que levasse
apreciao e ao conhecimento histrico-esttico das obras de arte (FOERSTE, 1996). A
preocupao era usar imagens na sala de aula. Seus esforos resultaram na Proposta
Triangular para o ensino da arte como metodologia. Para se compreender com mais preciso
uma proposta que defende a contextualizao como objeto de estudo no ensino de arte,
convm retomar eventos que contriburam para seu desenvolvimento no pas, a fim de se
contextualizar esse ensino.
2.2 Ensino de arte no Brasil: apontamentos histricos
Vrios acontecimentos influenciaram as prticas educativas em arte. Por exemplo:
Semana de Arte Moderna, em 1922; bienais internacionais de arte, a partir de 1950;
movimentos de cultura popular dos anos de 1960; contracultura na dcada de 1970;
30
surgimento dos cursos de ps-graduao em arte nos anos de 1980 e as experincias em arte-
educao em museus e centros culturais nos anos de 1980 (FERRAZ; FUSARI, 1993).
Contudo, destaco aqui as escolinhas de arte como influncia no mtodo da livre
expresso no contexto escolar. Elas comeam com a educao experimental do poeta,
chargista, desenhista, pintor, jornalista e educador Augusto Rodrigues (191393), na segunda
metade do sculo XX. Nascido no Recife (PE), Rodrigues fundou, em 1948, a primeira
Escolinha de Arte do Brasil (EAB) para crianas, difundiu a idia de liberdade de expresso e
valorizao da espontaneidade infantil, tambm, para o currculo do ensino normal. A
princpio, a EAB funcionou em um corredor da Biblioteca Castro Alves, no Rio de Janeiro.
Tinha como caracterstica ser uma experincia aberta, sem regras e horrios pr-definidos.
Nela, as prticas pedaggicas no diretivas foram incentivadas: as crianas eram livres para
experimentar todo material que estivesse disponvel, podiam desenhar em grandes papis,
cantar; colher flores no jardim e brincar (ITA CULTURAL, 2006).
Em 1961, para influenciar o sistema educacional oficial e disseminar idias
defendidas pelos professores integrantes da EAB, criou-se o Curso Intensivo de Arte-
educao: especializao para docentes do ensino de arte ministrada por artistas e crticos
como Ceclia Conde, Fayga Ostrower e Ferreira Gullar (FRANGE, 2001). At ento, no
havia curso universitrio que formasse professores de arte para atuarem na educao bsica. O
ensino escolar da arte obedecia orientao geral da educao escolar do pas, ento
preocupada com a preparao para o trabalho e a capacitao profissional de cidados, como
se fazia desde 1882. As atividades artsticas escolares se restringiam ao ensino de geometria,
prendas domsticas ou, nas escolas particulares, desenho, msica, canto orfenico e trabalhos
manuais (FERRAZ; FUSARI, 1993).
Em 1971, a Lei de Diretrizes e Bases da Educao/LDB (n. 5.692/71) foi
reformulada e modificou a estrutura do ensino. O ensino de arte foi includo no currculo
escolar como atividade educativa, e no como disciplina, sob a denominao Educao
Artstica, a ser desenvolvida por um professor polivalente (com formao geral nas
linguagens musical, plstica e teatral).
A indicao 36/73 afirma que o curso de Licenciatura em Educao Artstica proporcionar sempre a habilitao geral em Educao Artstica e habilitao especfica relacionada com as grandes divises da arte: no mais de uma de cada vez, ante a natureza e amplitude dos estudos a realizar. (FOERSTE, 1996, p. 40).
31
Em 1973, dada a falta de professores habilitados para aulas de Educao Artstica,
foram criados cursos de licenciatura curta (dois anos).14 O despreparo terico-metodolgico
dos educadores formados nessa licenciatura promoveu um aligeiramento do saber artstico e
um ensino de arte incuo, [...] uma educao esttica descartvel, um fazer artstico pouco
slido e um apreciador de arte despreparado (BARBOSA, 1984, p. 88). A prtica artstica nas
escolas foi dominada por desenhos alusivos a datas comemorativas, cvicas, religiosas e a
festas escolares. A licenciatura curta em Educao Artstica foi uma interpretao errnea do
princpio da interdisciplinaridade, porque superficial; o professor de arte tinha de dominar
contedos diversos e trs diferentes linguagens artsticas: artes plsticas, msica e teatro. O
uso de imagens nas salas de aula de ento era quase inexistente. Apreciao esttica de obras
de arte no era preocupao. Como esclarece Barbosa (1996, p 12):
Apreciao artstica e histria da arte no tm lugar na escola. As nicas imagens na sala de aula so imagens ruins dos livros didticos, as imagens das folhas de colorir e, no melhor dos casos, as imagens produzidas pelas prprias crianas. Mesmo os livros didticos so raramente oferecidos s crianas porque elas no tm dinheiro para comprar livros.
Por volta de 1980, a insatisfao gerada pela situao precria do ensino de arte no
Brasil mobilizou educadores brasileiros (espelhados em movimentos internacionais da
categoria) em prol de uma reorganizao desse ensino nas escolas.15 Atentos ao
empobrecimento do universo imagtico dos alunos reduzido a influncias da indstria
cultural , os arte-educadores brasileiros, organizados em associaes,16 reconheceram a
necessidade de haver novas concepes e prticas para o ensino de arte. nesse contexto que
Barbosa elabora a Proposta Triangular para o ensino de arte como abordagem que inclui a
prtica pedaggica das artes nas escolas no mais centrada no fazer artstico; agora, ela se
volta construo de conhecimentos sobre arte e apreciao artstica, com nfase no estudo
do contexto histrico de produo da obra.
Enquanto se aprofundava a luta pr-democracia no Brasil que conduziu
reconquista das eleies diretas para governador, em 1982, e para Presidncia da Repblica,
em 1984 , ampliava-se o conhecimento e as mobilizaes relativas situao educacional
do pas. Nessa conjuntura, promulga-se a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educao 14 O movimento das escolinhas de arte perdeu importncia e fora aps a criao de cursos universitrios de Educao Artstica e de mudanas na poltica interna (BARBOSA, 1996). 15 A politizao dos arte-educadores comeou em 1980, na Semana de Arte promovida pela Escola de Comunicao e Artes/ECA da USP, que reuniu 2,7 mil arte-educadores do pas (BARBOSA, 1996, p. 13). Os cursos de atualizao ou treinamento financiados para professores pelo governo comearam aps a ditadura militar. O programa pioneiro foi o festival de Campos de Jordo (SP), em 1983 primeiro a conectar anlise da obra de arte/da imagem com histria da arte e trabalho prtico (BARBOSA, 1996, p. 16). 16 A primeira associao foi a Sociedade Brasileira de Educao atravs da Arte (SOBREART), fundada no incio dos anos de 1970; a FAEB se inicia em 1987, quando j existiam 14 associaes estaduais de arte-educadores.
32
Nacional/LDBEN (n. 9.394/96);17 a promulgao traduzia princpios propostos pelo Banco
Mundial e sugeria uma sensao falsa de inovao. Professores e artistas organizados em
federao (Federao de Arte Educadores do Brasil/FAEB) foram decisivos quanto a
reivindicar e conseguir a obrigatoriedade do ensino da arte na educao bsica.18
A fim de normatizar os diferentes componentes curriculares, o ento Ministrio da
Educao e Cultura (MEC) lana, em 1997, os Parmetros Curriculares Nacionais (PCN).19
Definidos na sua apresentao como referenciais para a renovao e reelaborao da proposta
curricular brasileira (BRASIL, 1997),
Os PCN devem ser entendidos pelos professores como documentos norteadores de sua prtica pedaggica, no como proposies de carter impositivo, a serem seguidas categoricamente. Enquanto documentos norteadores precisam ser analisados, interpretados e criticados; precisam ser adaptados s necessidades decorrentes das diferenas tnicas, culturais, de gnero, etrias, religiosas etc., e das desigualdades socioeconmicas presentes nas multiplicidades das realidades brasileiras. (ALMEIDA; BARBOSA, 2004, s. p.).20
As diretrizes para o ensino de arte na educao bsica so apresentadas em trs
documentos: PCN/Arte para o ensino fundamental (BRASIL, 1997), Referencial Curricular
Nacional para a Educao Infantil (BRASIL, 1998) e PCN/Ensino mdio (BRASIL, 1999).
A proposta de um currculo nacional para a educao bsica os PCN recebeu
pesadas crticas de educadores, por diferentes motivos:
[...] os educadores sabem que nenhuma prtica pedaggica pode ser transformada por fora da lei ou de documentos escritos; transformaes desta ordem exigem mudanas nas condies concretas de trabalho, incluindo-se entre elas uma formao contnua dos professores/as, melhores salrios, modificaes na gesto escolar e infra-estrutura das escolas, entre outras. (ALMEIDA; BARBOSA, 2004, s. p.).
A pesquisadora brasileira Maura Penna deixa clara sua crtica poltica educacional
brasileira e aos parmetros: a poltica educacional brasileira est atrelada aos interesses dos
organismos internacionais que concebem a educao como bem de consumo e instrumento de
adestramento da mo-de-obra para o mercado de trabalho (PENNA, 1997, p. 19). Ainda 17 A proposta de elaborao tem origem na Conferncia Mundial de Educao para Todos, convocada pela Organizao das Naes Unidas para a Educao, Cincia e Cultura (UNESCO), pelo Fundo das Naes Unidas para a Infncia (UNICEF), pelo Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e pelo Banco Mundial. Foi realizada em 1990, em Jomtien, na Tailndia, onde nove pases chegaram a algumas posies sobre quais so as necessidades bsicas da aprendizagem para todos, para tornar universal a educao fundamental e ampliar as oportunidades de estudo para crianas, jovens e adultos. 18 Em 1988, quando a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educao comeou a ser discutida na Cmara e no Senado, trs projetos eliminavam a arte do currculo das escolas de ensino fundamental e mdio (BARBOSA, 1996, p. 6). 19 Embora os PCN tenham produzido uma reflexo sobre questes sociais que devem ser abordada em todos os componentes curriculares, no se pode esquecer que so consoantes com o projeto neoliberal de globalizao e a poltica de investimento do Banco Mundial, que financia o setor educacional como medida de alvio e reduo de pobreza no Terceiro Mundo e o considera um dos mais importantes. 20 O texto original se encontra em ingls; uso aqui verso em portugus indita cedida por uma das autoras.
33
conforme essa autora, os PCN foram organizados sem que houvesse ampla participao dos
professores; foram construdos com base no modelo espanhol de reforma curricular, orientado
por Csar Coll.21 Contratado como consultor do MEC para a elaborao dos PCN brasileiros,
Coll organizou uma equipe de pareceristas especialistas em suas disciplinas, porm sem
representao de entidades de classe ou movimentos docentes, pois no tencionava criar
um debate sobre o currculo nacional. A apropriao do modelo espanhol como referncia
tem dois grandes equvocos: implantao de um modelo formulado no contexto espanhol;
contratao de uma equipe sem respaldo de entidades de classe e que desconheciam a
realidade educacional das escolas de ensino fundamental e mdio.
Os PCN deixam entrever forte tendncia homogeneizao da educao, e isso no
garante a qualidade do ensino ante a variedade cultural do pas e ao pouco que se tem feito
para valorizar a expresso de grupos culturais minoritrio. Ao no incluir professores, alunos
e diferentes segmentos sociais na participao da construo de uma proposta curricular, de
modo a representar seus anseios e suas caractersticas culturais, os PCN configuram-se como
propostas fechadas e fadadas a no ser postas em prtica. Conforme Almeida e Barbosa
(2004), no processo que se constri um currculo, em funo de necessidades e problemas
prprios de cada escola, pois forjado em valores e conhecimentos, habilidades e afetos de
quem, com a escola, relaciona-se direta ou indiretamente.
Com grande nfase nas expresses artsticas eruditas e ocidentais, os PCN/Arte no
sensibilizam o professor quanto adoo de uma postura multiculturalista; no discute
questes como funo da arte em diferentes culturas ou o papel do artista nestas. Da se pode
supor uma viso elitista da arte. Isso curioso, visto que os PCN/Arte tm clara inspirao na
Proposta Triangular de Barbosa, que, no entanto, no mencionada. Diz ela:
Quando, em 1997, o governo federal, por presses externas, estabeleceu os Parmetros Curriculares Nacionais, a Proposta Triangular foi a agenda escondida da rea de Arte. Nesses Parmetros foi desconsiderado todo o trabalho de revoluo curricular que Paulo Freire desenvolveu quando secretrio municipal de Educao (8990) com vasta equipe de consultores e avaliao permanente. Os PCNs brasileiros dirigidos por um educador espanhol des-historicizam nossa experincia educacional para se apresentarem como novidade e receita para a salvao da Educao Nacional. A nomenclatura dos componentes da Aprendizagem Triangular designados como: Fazer Arte (ou Produo), Leitura da Obra de Arte e Contextualizao, foi trocada para Produo, Apreciao e Reflexo (da 1 4 sries) ou Produo, Apreciao e Contextualizao (5 8 sries). Infelizmente, os PCNs no esto surtindo efeito e a prova que o prprio Ministrio de Educao editou uma srie designada Parmetros em Ao, que uma espcie de cartilha para uso dos PCNs, determinando a imagem a
21 Professor e pesquisador espanhol da Universidad de Barcelona na rea de psicologia e educao.
34
ser apreciada e at o nmero de minutos para observao da imagem, alm do dilogo a ser seguido. (BARBOSA, 2003a, p. 51).
2.3 A Proposta Triangular para o ensino de arte
Originalmente denominada Metodologia Triangular para o ensino de arte, a Proposta
Triangular foi sistematizada por Barbosa, entre 1987 e 1993,22 e testada no Museu de Arte
Contempornea (MAC) da USP, por uma equipe de doze arte-educadores. A equipe explorava
a leitura de obras de arte do acervo do museu com crianas, adolescentes e adultos sem
conhecimentos de arte. Essa experimentao possibilitou sistematizar a metodologia,
apresentada como tal em 1991, na obra A imagem no ensino da arte (BARBOSA, 1996).
Segundo Barbosa (1998), a origem dessa proposta deriva de uma dupla triangulao:
de um lado, trs vertentes do ensino e da aprendizagem: fazer artstico, leitura da imagem
(obra de arte) e contextualizao (histria da arte); de outro, a trplice influncia que a
originou: os movimentos das Escuelas al Aire Libre do Mxico, os Critical Studies (estudos
crticos) da Inglaterra e a proposta da Disciplined-based Art Education (DBAE), dos EUA.
Segundo diz Barbosa (1998), para elaborar a Proposta Triangular, ela recorreu idia de
antropofagia23 cultural, aps analisar as diferentes propostas internacionais.
Experincia de ensino de arte surgida em 1913, as Escuelas pretendiam recuperar a
arte genuinamente mexicana, constituindo uma gramtica visual prpria de seu povo pelo
estmulo apreciao da arte local e expresso individual. A proposta pedaggica associava
a liberdade de expresso com algum tipo de conhecimento sistematizado, [...] sugestes de
exerccios a serem feitos a partir da sistematizao de formas e linhas dominantes na arte e no
artesanato mexicano (BARBOSA, 2003b, p. 102). Usava-se o livro didtico de Adolf Best
Maugard, que pretendia despertar na juventude o senso de apreciao da arte mexicana e,
22 Nesse perodo, Barbosa foi diretora do museu e deu consultoria ao projeto Arte na escola, da Fundao Iochpe. As professoras Denyse Vieira e Analice Dutra Pillar, sob orientao de Barbosa, desenvolveram e implantaram o projeto, no qual tambm foi desenvolvida a ento Metodologia Triangular. 23 Do francs anthropophagie (sculo XVI), derivada do grego anthropophaga, a palavra designa o ato de se alimentar de carne humana (ANTROPOFAGIA, 1999). Nas artes, refere-se manifestao artstica brasileira inaugurada pelo Manifesto antropofgico (1928), escrito por Oswald de Andrade. Segundo Ferreira Gullar (1998), o movimento se origina num quadro de Tarsila do Amaral com que ela presenteou Oswald. Entusiasmado com a originalidade do quadro, ele telefonou para Raul Bopp, que, ao ver a pintura, teria sugerido a criao de um movimento em torno desta. Num dicionrio de tupi-guarani, encontraram o nome que dariam obra: Abaporu isto , antropfago. Assim, a antropofagia significava deglutir da o tom metafrico da palavra a cultura do outro (das Amricas, da Europa, de amerndios e afro-descendentes, dentre outras) para inventar o olhar brasileiro. Como esclarece Nicolau Sevcenko (1998), Oswald, em suas idas Europa, conviveu com criadores da arte moderna e, com base em sua circunstncia pessoal, percebeu algo decisivo: no s a economia brasileira, mas tambm a cultura seguia uma pauta europia; e o Manifesto antropofgico prope inverter essa lgica colonial: usar a modernidade para sair da dependncia cultural.
35
assim, recuperar o orgulho nacional. Alm da educao formal e esttica, os objetivos
incluam a conscientizao social e poltica dos estudantes.
At a revoluo de 1910, a cultura mexicana, a arte e o artesanato eram desprezados por todas as classes sociais e apenas o que era produzido na Europa despertava a admirao dos mexicanos. Por outro lado, o livro de Best Maugard e as Escuelas al Aire Libre pretendiam educar o povo, especialmente o espoliado indgena. (BARBOSA, 2003b, p. 104).
As Escuelas conseguiram se multiplicar, e, no auge da realizao de seu projeto, 70%
dos alunos que as freqentavam eram de origem indgena. No entanto, em 1932, elas
passaram a ser controladas pelo Instituto de Belas Artes isto , passaram a se submeter ao
currculo vigente e perderam o carter experimental que lhes deu sucesso em anos anteriores.
Outra vertente que inspirou Barbosa foram os Critical Studies, que defenderam a
integrao do museu com a escola e a apreciao de obras de arte:
Estudos Crticos a esfera do ensino da arte que transforma os trabalhos de arte em percepo precisa e no casual, analisando sua presena esttica, seus processos formativos, suas causas espirituais, sociais, econmicas e polticas e seus efeitos culturais. [...] Se as obras de arte so apenas submetidas a uma anlise ingnua, elas podem ser bem conhecidas como combinaes de forma, cor, texturas e massa, mas pouco entendidas em relao aos motivos religiosos, histricos, sociais, polticos, econmicos e outros que as originaram. (THISTLEWOOD, 1997, p. 143).
Os Critical Studies reconhecem o potencial dos museus de arte como condensadores
culturais e defendem a idia de que a visita ao acervo de um museu deva ser acompanhada por
um profissional capaz de instruir o visitante. Segundo Thistlewood, esses estudos
Devem promover a completa compreenso da origem simblica, tratando as razes dos conceitos visuais e formais, comuns s suas origens nos movimentos e obras de arte. Uma compreenso crtica de como os conceitos visuais e formais aparecem na arte [...] significa estar questionando e trazendo arte e museus de arte da periferia para o foco da relevncia social. (1997, p. 155)
A terceira vertente terica que inspirou Barbosa fundamentou o programa de ensino
de arte denominado DBAE (arte-educao entendida como disciplina), elaborado pelos
pesquisadores Elliot Eisner, Brent Wilson, Ralph Smith e Marjorie Wilson, dentre outros, e
patrocinada pelo Getty Center for Education in the Arts, no fim da dcada de 1970. Esse
programa resultou de uma pesquisa encomendada pelo Getty Center, que apontou uma grande
queda na qualidade do ensino de arte nas escolas dos EUA, [...] seguida por uma perda de
status perante as outras reas de conhecimento contempladas no currculo escolar (RIZZI,
1999, p. 40). O DBAE pressupe que, para o ensino de arte ser eficiente e de qualidade,
necessria a interao de quatro campos de conhecimento distintos: produo artstica uso
de meios materiais pela criana para transmitir idias, imagens e sentimentos; histria da arte
compreenso das relaes entre arte e conceitos estticos das diferentes pocas; esttica
36
reflexo sobre a qualidade das obras de arte e do mundo visual, bem como a filosofia da arte;
e crtica24 julgamentos sobre a expresso artstica atravs do ato de ver e descrever o
mundo visual.
Essas quatro disciplinas aliceram a idia de que um bom programa de arte na escola
deve partir da convico de que a arte no apenas ornamento, e sim uma parte do patrimnio
cultural, por isso merece a mesma ateno que outras disciplinas no currculo escolar. Na sua
fundamentao, o DBAE questiona os mtodos de ensinar arte centrados na manipulao de
materiais e no ensino e na aprendizagem de tcnicas artsticas. Seus idealizadores afirmam
que o aprendizado artstico requer mais que conhecimentos e habilidades para se usarem
materiais de arte e que o professor deve assumir papel ativo e exigente: em vez de oferecer
aos alunos os materiais artsticos, deve apoiar e orientar a produo artstica dos materiais.
Partindo das discusses educacionais sobre experincia, sobretudo as fundamentadas
nas afirmaes do pensador John Dewey (primeira metade do sculo XX), os defensores do
DBAE acreditam que o professor de arte deve incentivar a realizao de experincias teis
reflexo das crianas acerca da arte objetivo central.
Para a experincia ter valor educacional, o indivduo deve experimentar desenvolvendo a habilidade de lidar inteligentemente com problemas que ele inevitavelmente encontrar no mundo. Para os arte-educadores, so as artes, e as artes visuais em particular, que fornecero isto. Programas de ensino de arte que so significativos para a criana capacitam-na a pensar mais inteligentemente sobre a arte e suas diversas manifestaes no mundo. [...] Existem quatro coisas principais que as pessoas fazem com a arte. Elas vem arte. Elas entendem o lugar da arte na cultura, atravs dos tempos. Elas fazem julgamentos sobre suas qualidades. Elas fazem arte. (EISNER, 1997, p. 82).
Arte como disciplina a ser includa no currculo para enriquecer a cultura escolar. Eis
o pensamento de Eisner; para ele, a arte no deve ser auxiliar nos estudos sociais ou das
lnguas. [...] [ preciso] um isolamento cada vez maior das artes, a fim de proteger suas
especificidades de disciplinas consideradas mais importantes (EISNER, 1997, p. 84). O
DBAE almeja contribuir para o desenvolvimento e as experincias humanas; eis por que o
aluno convidando a criar, improvisar, compor, executar, interpretar, discutir, escrever e
pensar, relatando e avaliando trabalhos de arte.
Embora sejam estas as trs experincias de ensino de arte a influncia e inspirao
para Barbosa elaborar sua Proposta Triangular, esta tem sido interpretada como adaptao,
24 Na dcada de 1960, o Central Midwestern Regional Laboratory se dedicou ao estudo da educao esttica e concluiu que a expresso apreciar arte era confusa ou imprecisa; para lhe dar mais clareza, resolveu dividi-la em duas categorias: esttica e crtica (SAUNDERS, 1990).
37
simples traduo da proposta do DBAE nos EUA. Em vrias publicaes, autores distintos25
reconhecem na Proposta Triangular uma fundamentao/adaptao do DBAE:
Vamos encontrar [...] no Brasil a evoluo das preocupaes encontradas em todo esse processo de questionamento sobre o ensino de arte, a partir das propostas do Getty Center sob o nome de Metodologia Triangular do Ensino de Arte. A proposta da Prof Dr Anna Mae Barbosa que optou por fundir a Crtica e a Esttica no que ela denominou Leitura da Obra de Arte. (SO PAULO, 1992, p. 10).
Preocupada com interpretaes equivocadas de sua proposta, Barbosa procura
dissip-las em Tpicos utpicos (1998). Argumenta ela: A Proposta Triangular no foi adaptada do DBAE, mas sistematizada a partir das condies estticas e culturais da ps-modernidade brasileira. A Proposta Triangular e o DBAE so interpretaes diferentes, no mximo paralelas. [...] a Proposta Triangular se ope ao DBAE, porque este disciplinariza os componentes da aprendizagem da arte, separando-os em fazer artstico, crtica de arte, esttica e Histria da Arte, revelando, inclusive, um vis modernista na defesa implcita de um currculo desenhado por disciplinas. (BARBOSA, 1998, p. 37).
Se a Proposta Triangular tem influncias das propostas relatadas por Barbosa,
tambm o tem do pensamento pedaggico do educador brasileiro Paulo Freire, conforme
relatou essa autora (BARBOSA, 2006a). Barbosa (1998) afirma que construiu suas
concepes terico-prticas de educao durante a carreira de arte-educadora; noutras
palavras, sua viso de homem e de mundo e o discurso pedaggico so influenciados pela
conjuntura sociopoltico-cultural-econmica. As palavras da educadora Gerda Margit Schutz
Foerste reiteram essa afirmao:
Sua produo [...] no pode ser compreendida como resultado de um processo lgico e linear, [...] so resultantes de uma intrincada relao de inmeros fatores, desde a ao dos mais diversos determinantes sociais at as influncias psicolgicas prprias a sua singularidade. (FOERSTE, 1996, p. 131).
Barbosa opta pela educao26 aps conhecer27 o pensamento pedaggico de Paulo
Freire. Mais que isso, o trabalho ps-exlio de Freire na Secretaria de Educao de So
Paulo (198991) que cria condies para ampliar as experincias de Barbosa concretizadas
na Proposta Triangular. Ela acredita que, na elaborao da proposta