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1
LITERATURA INDÍGENA: POSSIBILIDADES DE UMA PRÁTICA POLÍTICA
PEDAGÓGICA INTERCULTURAL
Simone. C. de Paula1
Valéria A. M. O. Calderoni2
Resumo
Neste artigo busca-se analisar a aplicabilidade da literatura indígena em sala de aula de uma
escola de ensino regular da educação básica, tendo o sujeito índio como escritor. Objetiva-se
construir reflexões sobre como a temática indígena pode contribuir para uma educação que
contemple a discussão e o respeito das diferenças étnicas culturais entre os povos.
Problematizamos se houveram mudanças nas práticas pedagógicas, pois o campo educacional
passa a ter a obrigatoriedade de se trabalhar a temática indígena após a implantação da
LDBEN/1996, e posteriormente com a Lei nº 11645/2008, que versa sobre a inclusão no
currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-
Brasileira e Indígena”. Ancoramos em autores pós-colonialistas como: Bonin (2007); Brand,
Calderoni (2010); Aguilera Urquiza (2010) e Munduruku (2006). Apresentamos alguns
apontamentos sobre como se deu o trabalho com a temática indígena em sala de aula, visando
uma ação de caráter constitutivo para a linguagem e cultura. Como indicação conclusiva e
epistemológica aponta a literatura indígena visando uma possibilidade de um ensino
intercultural educacional.
Palavras-chaves: práticas pedagógicas; literatura indígena; ensino intercultural.
1 Graduada em Letras pela Universidade Católica Dom Bosco - UCDB. Especialista em Cultura História dos
Povos Indígenas, atualmente professora da rede estadual de educação de Mato Grosso do Sul. 2 Doutora do Programa de Mestrado e Doutorado em Educação da Universidade Católica Dom Bosco- UCDB,
linha 3 – Diversidade Cultural e Educação Indígena. Pesquisadora do Projeto Observatório de Educação Escolar
Indígena/MEC/CAPES, pesquisadora no grupo de pesquisa Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação,
Relações étnico-raciais e Formação de professores - GEPRAFE, do(a) Universidade Federal da Grande
Dourados, também membro do grupo de pesquisa Interculturalidade e Educação (UCDB.)
2
Introdução
A Literatura Indígena se manifesta nas diversas formas de transmissão do saber, ela
é a reverberação do que mora dentro do corpo de nossa gente (...) nos completa
enquanto pessoas, porque nos lembra de sempre de onde viemos, para onde vamos e
qual o sentido de nossa pertença a esse planeta‖
(Munduruku, 2009, p. 9-10).
O objetivo deste artigo é apresentar práticas pedagógicas que contemplem a literatura
indígena de autores indígenas, verificando também sua aplicabilidade em sala de aula.
Problematizamos o fazer pedagógico de uma professora do anos iniciais e finais do ensino
fundamental I e II, observando se este está pautado na Lei nº 11.645/2008, legislação esta que
insere nos currículos da Educação Básica, a proposta de temas referentes à História e Cultura
Afro-brasileira e dos Povos Indígenas. Lei que altera o artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases
da Educação3 (BRASIL, 2008). Esta referida lei teve como objetivo maior, fortalecer e
estimular o estudo sobre os povos indígenas e africanos em sala de aula de toda rede oficial de
ensino do nosso país, tanto pública quanto privada.
Para atingirmos nosso objetivo, observamos uma metodologia que tem como
intencionalidade tratar de maneira diferenciada a temática “Povos Indígenas,” visando ampliar
o entendimento e aguçar a sensibilidade do educando para o tema em questão, bem como
desconstruir discursos preconceituosos, estereotipados, sendo os mesmos retratados de forma
distante, tanto no espaço, como no tempo. De acordo com Mussi e Calderoni (2014, p.21).
Para que um olhar “outro” sobre os povos indígenas seja construído é
preciso problematizar como são e/ou foram construídas historicamente as
representações e/ou apropriações estereotipadas que geram tantos
preconceitos sobre as populações indígenas no Brasil. Esse índio conectado
ao passado, ou quando muito com alguma presença pouco significativa na
formação da colônia e na constituição do “povo brasileiro” é uma estratégia
colonizadora que se mantem viva, como afirmamos, pela colonialidade.
Entendemos que há necessidade de se pensar em um fazer pedagógico que contemple
um outro olhar para a diversidade e diferença dos povos que outrora era vista em temáticas
3 A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDBEN, nº 9394/1996) é a legislação que regulamenta o
sistema educacional (público ou privado) do Brasil (da educação básica ao ensino superior).
3
escolares apenas em calendários de datas comemorativas, políticas, ações, entre outras
pontuais ações.
Neste texto, a literatura indígena de autores indígenas, é entendida como artefato
cultural4, produto de uma cultura, que retrata o pensamento e o modo de vida do índio, estes
constituem alternativas que possibilitam reflexões profundas sobre a identidade cultural dos
povos indígenas. Bonin (2007, p.189), corrobora ao afirmar que [...] não há narrativas
situadas fora de regimes de verdades, ou que produzam sem articulação de conjuntos de
saberes tido como válidos em certa cultura, em certo tempo histórico.
Ao analisar a temática indígena dentro de uma prática pedagógica, apontamos que esta
tem caráter constitutivo para a linguagem e cultura, pois entendemos que ao traçarmos novas
metodologias é possível enriquecê-las com diferentes autores, contextos, artefatos culturais
(textos escritos, discursivos e imagéticos). E esse é um exercício, uma possibilidade de
diálogo intercultural. A interculturalidade é uma ferramenta pedagógica importante na busca
pela descolonização, e, parece-nos que ela, a interculturalidade possibilita-nos desconstruir
representações e estereótipos que geram preconceitos que acabam excluindo os povos
indígenas do nosso sistema social e cultural (CALDERONI, 2016).
Neste artigo apontamos as obras infantis e infanto-juvenis escritas por Daniel
Munduruku5, autor indígena, como uma das estratégias e recursos pedagógicos para buscar o
diálogo intercultural. Para Brand, Calderoni (2010, p.35).
[...] Percebemos que as mudanças na legislação sozinhas não bastam para
que as práticas pedagógicas desenvolvidas em sala de aula mudem, passando
a contribuir com o processo de desconstrução de nossas aprendizagens
apoiadas em representações coloniais.
4 [...] Ao entendê-los, ao percebê-los como artefatos culturais que informam e formam culturalmente, como
portador de estratégias discursivas passou a estarem mais atentos aos seus conhecimentos, passamos a perceber
que estes constroem conhecimentos e que fixam as identidades indígenas. (Mussi, Calderoni, 2014, p. 42). 5 Autor indígena, graduado em Filosofia; Licenciatura em História e Psicologia. Doutor em Educação pela USP.
Pós-doutor em Literatura pela Universidade Federal de São Carlos - UFSCar. Diretor presidente do Instituto
UKA - Casa dos Saberes Ancestral. Comendador da Ordem do Mérito Cultural da Presidência da República
desde 2008. Membro Fundador da Academia de Letras de Lorena.
4
Ao apresentar esta análise, recorremos ao aporte teórico de autores como: Bonin
(2007), Brand, Calderoni (2010), Aguilera Urquiza (2010), Munduruku (2006). Ao
orientarmos por esses teóricos, percebemos que existem modos de ensinar e possibilidades de
aprender, nos mais diferentes artefatos culturais que se multiplicaram por nossa sociedade.
O trabalho está estruturado em vários momentos. No primeiro momento apresentamos
uma breve introdução, contextualizamos a importância da aplicação da Lei nº 11.645/2008.
Em outro momento, discutimos as produções culturais indígenas como práticas pedagógicas
importantes para a formação dos estudantes de uma escola, assim, chamamos a atenção sobre
a importância da temática indígena na literatura como ferramenta didática sobre práticas
pedagógicas. E, ao colocar essa discussão, o artigo sugere que ao planejar aulas envolvendo a
temática indígena, utilizando como ferramenta pedagógica as obras de autores indígenas,
permite que (re) conheçamos a historicidade e a cultura indígena, como também possibilita o
respeito às várias faces de suas manifestações culturais.
Aplicação da Lei nº 11.645/2008: uma proposta inovadora para práticas políticas
pedagógicas
A lei nº11.645/2008 veio fortalecer positivamente as discussões sobre nossas relações
com os povos indígenas, apresentando diferentes olhares para a cultura e história dos povos
indígenas, permitindo fomentar formas diferenciadas de abordagem (conhecer, dialogar) sobre
o modo de vida dos povos indígenas. Bem como, a valorização, o respeito em suas crenças,
lutas, territorialidades, tempos, entre outros. Nesse contexto observa-se um amplo respaldo e
detalhamento na legislação brasileira, o que possibilita ações pedagógicas e um currículo que
promova uma educação diferenciada e intercultural.
Segundo Bonin (2009, p. 97), nos textos legais anteriores à Constituição Federal de
1988 podemos constatar a perspectiva integracionista contida no texto constitucional, assim
afirma a autora:
Código Civil de 1916 considerava os índios relativamente incapazes, sujeitos
ao regime tutelar enquanto não forem adaptados à civilização do país, as
Constituições Federais de 1943, 1946 e 1967 previam a incorporação dos
5
silvícolas à comunhão nacional; a Lei 6001 de 1973, Estatuto do Índio,
afirmava a necessidade de integra-los progressivamente e harmoniosamente
à comunhão nacional, estendendo a eles o sistema de ensino e a criação de
escolas orientadas para esse fim.
A Constituição Federal de 1988, ao excluir de sua estrutura legal toda referência à
integração, criou-se a possibilidade de um processo reversão sobre a história e relações dos
povos indígenas, proporcionando também a afirmação étnica e cultural desses povos, sendo
um dos principais veículos assimiladores de suas culturas e tradições, admitindo de certa
forma um aprofundamento e um melhor conhecimento da condição atual dos povos indígenas
no Brasil, alterando significadamente as relações dos povos indígenas com a sociedade
nacional, embora a luta hoje, seja que esse deslocamento epistemológico contido na CF/1988
salte do papel para as políticas, ações e relações cotidianas e que os direitos legais nela
explicitados cheguem a ser cumpridos. Neste sentido, Nascimento e Aguilera Urquiza (2010,
p. 118), afirmam:
Pode-se dizer que na atualidade, estamos passando por uma quarta fase no
processo histórico que envolve os povos indígenas no Brasil e a educação
escolar, aquela marcada pelas conquistas políticas pós Constituição Federal
de 1988, quando constatamos uma verdadeira “guinada epistemológica” dos
conceitos e práticas da educação escolar indígena no país [...].
É importante salientar que a Constituição Federal de 1988 trouxe uma série de
inovações sobre a questão indígena, dentre eles, reconhece em capítulo próprio à proteção dos
seus direitos indígenas e o reconhecimento da diferença destes povos. No campo da
educação, LDBEN nº 9394/1996 reafirmou os preceitos constitucionais regulamentando e
dando corpo às determinações mais gerais para a educação nacional. Tal lei evidenciava
claramente a inclusão de conteúdos referentes à cultura e história dos povos indígenas,
Art. 26º. Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base
nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e
estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas
características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da
clientela.
§ 4º O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das
diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro,
especialmente das matrizes indígena, africana e europeia (LDBEN, 1996).
6
De acordo com Souza (2013, p.311):
[...] em todos os estados, o estudo sobre a história e a cultura dos povos
indígenas já deveria estar ocorrendo e resultados já poderiam apontar para
alguns avanços, principalmente no que diz respeito aos conceitos e ideias
equivocadas sobre os índios, os estereótipos e a discriminação.
Em 2008, com o tensionamento dos movimentos indígenas, promulga-se a Lei nº
11.645/2008, constituindo uma nova redação a LDBEN nº9394/1996, no que diz respeito à
diversidade cultural brasileira. O artigo 26-A, passa a vigorar com a seguinte redação:
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio,
públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-
brasileira e indígena.
§ 1º. O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos
aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população
brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história
da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil,
a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da
sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social,
econômica e política, pertinentes à história do Brasil.
§ 2º. Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos
indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo
escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história
brasileira.
Com a implantação da Lei nº 11.645/2008 em questão, abre espaço para uma
perspectiva menos homogeneizadora, pois indica uma articulação entre legislação, currículo,
educação diferenciada, políticas públicas e cidadania que constitui e estabelece conteúdos
inovadores. Absorvemos estes dizeres como benéficos para a “revisão” da imagem dos povos
indígenas no contexto brasileiro por meio da contribuição escolar. “[...] consideramos a escola
espaço estratégico para inserir o tema da alteridade, da prática da interculturalidade, na
tentativa de ampliar horizontes e favorecer a convivência respeitosa entre os diferentes (...)”
(SOUZA. 2013, p.317).
Sobre o espaço escolar, Mussi e Calderoni (2014, p.13), consideram:
[...] A escola é uma instituição formadora e, por isso, precisa elaborar
discursos outros, pois ainda temos nas escolas um currículo eurocêntrico,
falocêntrico, heterossexual e cristão que segue ensinando indígenas, negros,
7
mulheres, homossexuais, eliminando suas diferenças e impondo-lhes um
modelo cultural diferente ao seu.
Dessa forma, fomenta-se a necessidade de discussões reflexivas, que possibilitem um
diálogo étnico-cultural dentro das salas de aula, problematizando e enfatizando nossas
relações com os povos indígenas na contemporaneidade.
Daniel Munduruku (2010, p.67), relata:
[...] povos indígenas inteiros têm sofrido as consequências de viver em
contato permanente com uma sociedade que lhes prendem em conceitos que
os tornam menores e marginalizados. A isso se inclui a negação da
identidade cultural. Se, por um lado, manter-se indígena é condição
fundamental para o reconhecimento étnico – pois assim a sociedade
complexa pode manipulá-lo – aprender e conviver com a sociedade em igual
condição é considerado um abandono de identidade. Em outras palavras: se
vou para a universidade e compreendo a lógica do ocidente, acabo
desqualificado como membro de uma sociedade indígena. Ser indígena, na
lógica ocidental, é manter-se no atraso cultural. Ao pertencer ao mundo
globalizado, perco minha afirmação étnica. Essa forma de pensar tem
ocasionado sérias crises de identidade em nosso meio (...). As consequências
disso são o sofrimento, a dor, o suicídio.
A Lei nº 11.645/2008, se posta em prática metodologicamente, contribuirá
positivamente em um contexto de autoafirmação para os povos indígenas, como um elo de
imagens mais condizentes com as suas realidades, de forma a quebrar preconceitos.
Produções culturais indígenas como práticas escolares: autores e obras literárias
As obras literárias indígenas, assim como o livro didático precisam ser vistos como
artefatos culturais, instrumentos pedagógicos importantes para construção dos saberes,
transmissão de valores culturais e sociais. O escritor indígena, Daniel Munduruku, em uma
entrevista6 ressalta a importância dos indígenas frequentarem a universidade e aprenderem os
elementos da cultura ocidental e fazer aquilo que a cultura tem que fazer, se atualizar e criar
6 Publicado em ter, 13/01/2015 - 12h46min /Atualizado em quarta-feira, 24/06/2015 - 11h26min /Acessado em
terça-feira, 14/07/2015 – 08h30min/ Temas: Filosofia, Filosofia da Educação.
http://www.namu.com.br/?q=materias/daniel-munduruku-e-educacao.
8
respostas para as relações entre índios e não índios na contemporaneidade, e, uma das
respostas apresentada pelo autor é a literatura.
Munduruku (2015) argumenta ainda em sua entrevista que “A literatura não é só um
instrumento de escrita, mas faz parte da essência e adquirir essa técnica foi importante para
que os indígenas fossem capazes de escrever a própria história”. Enfatiza que usar os
conhecimentos acumulados na cidade, aliados aos saberes que traz de seu povo para a
literatura indígena é uma maneira de educar a sociedade brasileira para que a mesma possa
olhar para os povos indígenas não com o olhar do colonizador, mas com o olhar das próprias
comunidades.
Esta afirmação vem ao encontro das reflexões de Mussi e Calderoni (2014, p. 42)
quando essas afirmam que:
[...] ao refletirmos sobre temática indígena e os efeitos pedagógicos na
educação, mais precisamente na educação escolar formal, entendemos que
este movimento implica em um processo de desconstrução, num exercício de
descolonização dos equívocos geradores de preconceitos que seguem sendo
reproduzidos historicamente em diversos espaços educativos, incluindo-se os
artefatos culturais que transitam na escola.
As reflexões supracitadas e o fazer pedagógico em sala de aula podem ser uma
possibilidade para que educadores reflitam e construam deslocamentos epistêmicos sobre os
povos indígenas. Ressalta-se aqui alguns nomes de autores indígenas reconhecidos
nacionalmente e internacionalmente que deveriam juntamente com outras obras ocupar as
prateleiras das bibliotecas das escolas, sendo eles: Daniel Munduruku, Potiguara Graça
Graúna, Yaguarê Yamã, Olívio Jekupé, Kaká Werá, Kanátyo Pataxó, Ailton Krenak, entre
outros.
Enfatizamos a importância deste fazer pedagógico, ressaltando que as histórias
narradas por autores indígenas, na perspectiva das diversas etnias nos faz pensar em uma
aprendizagem que permite (re)conhecer a importância das diferenças entre os povos, sem
hierarquizá-las.
9
As obras (infantil e juvenil) de autores indígenas têm registrado por meio da escrita, a
cultura ancestral do seu povo, talvez, com isso, rompendo o paradigma de um indianismo
romântico7. Neste entendimento, ressalta-se não necessariamente, a análise das obras literárias
de autores indígenas, objetiva-se problematizar as práticas pedagógicas docentes no sentido
de ter um olhar problematizador para as produções literárias que abordam a temática indígena,
entendendo a necessidade de serem incluídas nos acervos das escolas para leitura, análise e
compreensão de nossas relações com os indígenas. Unindo-se ao pensamento do escritor
Daniel Munduruku (2010): “Pensar a Literatura Indígena é pensar no movimento que a
memória faz para apreender as possibilidades de mover-se num tempo que a nega e que nega
os povos que a afirmam. A escrita indígena é a afirmação da oralidade8”
A temática indígena na Literatura: Orientações sobre práticas pedagógicas
Considerando como apontamentos para práticas pedagógicas os paradidáticos de
autores indígenas, discute-se a necessidade de uma estratégia de representação do cotidiano
indígena, que possa através da escrita (discurso/linguagens), contrapor suas identidades aos
modelos estáticos vigentes na sociedade atual.
Seguindo a linha de pensamento de Munduruku (2015) que diz: “O autor indígena cria
novos olhares sobre o índio brasileiro, em que não vigora os estereótipos da barbárie, da
preguiça e do atraso cultural9”, incentivamos a leitura de livros indígenas como fonte de
prazer e conhecimento, onde leitores sejam capazes de conhecer quem são os povos
indígenas10 na realidade, afirmam o autor. Bonin (2012, p.03), corrobora ao afirmar:
7 Tendência literária em que eram convenientemente localizados autores como o poeta Gonçalves Dias e o
romancista José de Alencar. Os clássicos indianistas de José de Alencar – Iracema e O Guarani –, escritos na
segunda metade do século XIX, integram ainda hoje as referências de leitura escolar, especialmente no Ensino
Médio. Educação, Porto Alegre, v. 35, n. 3, p. 329-339, set./dez. 2012. 8 Literatura indígena e o tênue fio entre escrita e oralidade Por Daniel Munduruku
http://www.overmundo.com.br/overblog/literatura-indigena acesso: 15/07/2015 – 10h 9 Grifos do autor. 10 Esta pode ser uma possibilidade de desconstruir “[...] a visão de povos bárbaros, sem cultura, que levavam
uma vida próxima a dos bichos, construída pelos colonizadores, que acaba sedimentada nas representações e no
imaginário de amplos setores da população regional até o presente” (BRAND; CALDERONI, 2010, p. 64).
10
(...) Tomando a literatura indígena como parte de uma política
representacional, interessa analisar também quais significados, constantes
em variadas produções culturais, são referendados e quais são replicados nas
obras de autoria indígena, e a partir de quais estratégias estes autores dão a
conhecer uma realidade diversa daquela vivida pelos pequenos leitores.
Considerar as criações literárias indígenas dentro das práticas docentes e trabalhá-las
em sala de aula em um espaço não índio de forma dinâmica, prazerosa e reflexiva, pode
contribuir para rever as relações de colonialidade11 ainda presentes. Mussi e Calderoni (2014,
p.41) comentam:
Quando vamos falar de povos indígenas, as imagens que nos vêm à mente
estão primeiramente relacionadas à visão construída pelos colonizadores em
outros séculos, e que ainda tendem a associar as imagens de índios que
vivem nus com corpos pintados e com paus introduzidos em lábios e orelhas,
em comunhão com a natureza. Essas imagens estereotipadas são mostradas
através de ampla variedade de artefatos culturais, constituídas por jornais
impressos ou on-line, revistas, livros didáticos, programas de televisão, selos
e cartões postais, entre tantas outras. As imagens e os discursos circulam
nessas produções, e se tramam num discurso silencioso, preconceituoso.
Esses acabam inventando conceitos, produzindo identidades e de certa
forma, contribuem para a representação da identidade cultural não atualizada
desses povos.
Nota-se que são vários os artefatos utilizados para fins ilustrativos de discursos
colonizadores. Entre eles se incluem as ferramentas (não formais) de trabalho como: sites,
blogs, facebook, web rádio, livros online, entre outros. Esses potencializam o índio como
protagonista e vale insistir na ideia de favorecimento às discussões em favor das diferenças
abrindo espaço para um debate inovador de valorização indígena, da pluralidade cultural e
desconstrução de preconceitos.
Apresentamos um breve relato de uma aula de Linguagens vinculada ao Projeto
Leitura: Encontros de Leitores de uma escola da rede estadual de ensino em MS, onde a
professora utilizou como ferramenta pedagógica o blog do autor indígena Daniel Munduruku
11 Colonialismo denota uma relação política e econômica, na qual a soberania de um povo reside no poder de
outro povo. Diferente desta ideia, a colonialidade para o autor se refere a um padrão de poder que emergiu como
resultado do colonialismo porém, ao invés de estar limitado a uma relação formal de poder os povos ou nações,
refere-se à forma epistêmica como o trabalho, o conhecimento, a autoridade e as relações intersubjetivas se
articulam entre si (QUIJANO, 2007).
11
e os livros: Kabá Darebu; Vó Coruja; O Menino e o Pardal para trabalhar a temática “Povos
Indígenas”, com duas turmas de 5º ano do ensino fundamental.
As obras escolhidas desse autor mostram-nos lições sobre a vida indígena. O autor nos
aponta que essas não se restringem exclusivamente a do povo “Munduruku”, nelas expressam
a cosmovisão da maioria dos povos indígenas que se diferem da lógica ocidental, como
também, apresentam a dinamicidade de sua cultura e ao mesmo tempo reafirmam a identidade
do povo indígena.
Nos primeiros momentos dessa aula foi solicitado aos alunos que registrassem e
falassem para a turma o que conheciam sobre os índios, ou seja, uma inferência do tema a ser
abordado. No segundo momento os alunos foram levados à sala de tecnologia para que
explorassem o blog do escritor Daniel Munduruku.
Realizada a leitura (pesquisa) envolvendo biografia, entrevistas, obras publicadas,
depoimentos, registros informativos de eventos, entre outras. A professora organizou um
momento de reflexão e discussão partindo das informações obtidas no blog12, acrescentada
pela roda de leitura (obras literárias já citadas) do referido autor. Impressionante foi observar
na fala dos alunos o novo “olhar” para a atualidade de maneira comparativa. Como forma
ilustrativa do relato segue trechos da produção escrita13 de três alunos:
Aluno 1
12 http://danielmunduruku.blogspot.com.br/p/daniel-munduruku.html. 13 A produção escrita dos alunos, como exemplo ilustrativo neste artigo está apresentada na primeira versão de
produção sem passar por reescrita (revisão), com a finalidade de apontar a veracidade do registro.
12
Aluno 2
Aluno 3:
13
Para compartilhar com a comunidade escolar o assunto, “Povos Indígenas”, tema da
aula, os alunos se organizaram para uma apresentação teatral e escolheram a história: “O
Menino e o Pardal”. Nesta obra, o escritor indígena, Daniel Munduruku, traz os ensinamentos
e a sabedoria de seu povo para falar sobre o amor e a liberdade, buscando por meio da
literatura, de seu próprio discurso incluir e representar no outro (branco ocidental) essa
relação de ancestralidade do homem com a natureza.
Segundo Bonin (2008, p.15), “[...] é preciso considerar que as experiências que ouvimos e
narramos sobre diferenças têm o potencial de reafirmar representações correntes, ou
desestabilizar, atualizar e fazer emergir outras formas de pensar e de narrar os outros,
diferentes de nós.”. Hessel (2008, p.130), também argumenta que:
Na trama dessas narrativas os autores ensinam coisas do cotidiano indígena,
conhecimentos, linguagens da natureza que podem ser observadas e que são
apresentadas como parte da sabedoria dos mais velhos, afirmações que
operam uma articulação entre povos indígenas e natureza. No entanto, eles
ensinam também sobre outra possibilidade de viver identidades indígenas
nas cidades, que essas obras descrevem, nas relações comerciais vivenciadas
pelas comunidades indígenas e recordadas nas narrativas, nas situações de
conflito e violência que marcam o cotidiano de muitos desses povos, nas
lutas atuais pela reconquista de seus territórios, nos direitos pleiteados, que
evidenciam outros modos de exercer a cidadania. São narrativas que, de
muitas maneiras, multiplicam sentidos e pluralizam olhares sobre a temática
indígena.
Dessa forma, ressalta-se que cabe ao professor utilizar outros recursos metodológicos,
e/ou inovar as práticas educativas favorecendo um ambiente de aprendizagem significativo
para a construção, compreensão, representação e resolução de uma “situação-problema”, em
fim, criar possibilidades outras, propiciando o aprender a aprender. De acordo com as
reflexões de Hessel (2008):
É importante, prestar atenção às mensagens que estas histórias põem em
movimento, ao modo como elas posicionam os personagens em tramas que
parecem naturais e que produzem, como efeito de poder, lugares sociais com
os quais nos identificamos e outros que delegamos àqueles que
consideramos diferentes de nós (HESSEL, 2008, p. 131).
Este dizer nos permite enfatizar e apostar na inserção de temas sobre diversidade e
diferença, especificamente dos povos indígenas que como nos ocidentais encontram-se em um
14
processo dinâmico – pedagógico com possibilidades de contribuição para que mudanças se
concretizem.
Considerações possíveis para terminar este agora
O indígena precisa sair das paredes, dos museus,
das salas de exposição!
(Potiguara, 2004).
Fechamos provisoriamente este artigo, entendendo que os estudos oferecidos pelo
curso de especialização – Cultura História dos Povos Indígenas – CHPI, estimularam olhares
outros para os índios no Brasil, permitindo também a ousadia de um fazer pedagógico outro.
E nestes víeis de reflexões, surgiram os apontamentos epistêmicos para a aplicabilidade da
literatura de autores indígenas em sala de aula, visto que esta pode permitir uma prática
intercultural, pode também permitir novas possibilidades de transformação, interpretação,
compreensão e interação entre as diferentes culturas.
A escritora indígena Maria das Graças Ferreira14 afirma que, ter a oralidade e a escrita
juntas são importantes para o fortalecimento e não esquecimento da história que permeia os
povos indígenas. Tal pensamento nos direciona a proporcionar um debate construtivo e
reflexivo, o que no caso desta atividade pedagógica levou à práticas problematizadora.
Este dizer nos convida a pensar sobre a prática pedagógica apresentada neste artigo,
indicando-nos que a leitura de paradidáticos oriundos de autores indígenas contribui para
compreendermos as relações entre índios e não índios e as relações coloniais vigentes.
Permite-nos também, analisar como se deu a colonização de nosso país, entendendo assim
como e por que as relações entre culturas diferentes estão permeadas de relação de poder que
as hierarquizam.
Com esta reflexão pudemos perceber que ao utilizar esta prática de leitura, estaremos
convidando nossos alunos a refletirem por meio da literatura os aspectos culturais indígenas
14 Também conhecida como Graça Graúna, descendente do povo Potiguara.
15
presentes em nosso cotidiano tais como: objetos, palavras, nomes de ruas, alimentos, entre
outros e assim construir um respeito a alteridade desses povos. Esta prática propiciará
momentos de interação entre os alunos no que diz respeito à convivência entre as culturas.
Comungamos com Hessel (2008, p.21), quando esta afirma que as obras narradas por
indígenas ampliam o leque de significados e nos convida a pensar quem são e como são os
povos indígenas.
Ao trabalharmos com a literatura de autores indígenas criamos a possibilidade de uma
prática pedagógica intercultural, assim sugerimos a incorporação desse artefato nos acervos
escolares. E, ao problematizá-la com os nossos alunos estaremos também inserindo a escrita
literária indígena como a arte de escrever a própria representação indígena, ou seja, a sua
identidade.
Consideramos os apontamentos aqui abordados como uma perspectiva de proposta
para que as práticas pedagógicas sejam gradativamente contempladas no que se refere a
aplicação da Lei nº 11.645/2008. É neste sentido que a literatura indígena escrita por autores
indígenas proporciona ao aluno leitor um conhecimento da diversidade e diferença cultural
existente em nosso país, o que permite ao aluno o distanciamento das visões estereotipadas e
representações pejorativas da história e cultura indígena.
16
Referências bibliográficas
BERGAMACHI, Maria Aparecida. Povos indígenas & educação/organização de Maria
Aparecida Bergamachi. – Porto Alegre: Mediação, 2008.
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