Pedro Eiras Por Um a e Tica 000114330

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  • T~TULO Cadernos de Literatura Comparada - zo Artes da Perverso Junho 2009 PUBLICaO Instituto de Literatura Compurada Margarida Losa da Faculdadede Letras dauniversidade do Porto COIiSeLHO EDITOiIaL Anna Klobueka Biapo D'Angelo Citherine Dumas Helena Carvalho Buescu Manfred Schmeiing Maria Irene Ramalho Paulo de Medeiros orcanrzanores DO P r e s e n T e nmero Joana Matas Frias Pedro Eiras A s s I s T e n T e E D I T O ~ I ~ L Lurdes Gonpalves D e s r c n G ~ ~ F I C O Nunes e P Ldz [email protected]

    FOTOGrZIa D a Capa Nunes e P Lda. EDITOR Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa DIST~IBUI~O Edies Afrontamento. Lda. RuaCosta Cibral. 859 - .+zoo-z25 Porto imw.edieaesafrontamento.pt [email protected] O~PSITO LecaLn.O 205806/04 ISSN: ,645-nxz r m p r e s s o Rninho & Neves Lda. / Santa Maria da Feira

    Comercep@o dos cartazes doa filmes de Sayenril. gentilmcnti ccdidospelo pr6prio. r repiadupSo de imrgcnsbda inteira res- ponsabilidade dasrutoies dasrriisor.

  • Por uma T I C ~ ~a su~verso:~ I P e d r o Eiras

    Universidade d o Porto

    Resumo: Este ensaia pretende reflectir a partir de uma frase de \Valter Benjamin, em ,936: "O contador a forma na qual o justa se encontra a si prprio". Interroga as reia- es entre narrativa e tica. a justia. a perverso. e a subverso. Ou entre a certeza do contador de histrias e a dvidado justo, figura emdevir. ABSTrCT: This essay intends to reflect on a sentence from Walter Benjamin. dated ~ 9 3 6 : "The storpeller is the figure in ivhich the righteaus man encounters himself". It interrogates the relatians behveen narrative. ethics, justiee, perversion. and subversion. Or it interrogates the relation behveen the certainty of the stoqteller and the doubt of the righteous man. figure in transit.

    ~a~avras -c~ave : >> subverso, perverso. narrativa, tica, a contador de histrias, JValter Benjamin

    KeYworDs: subversion. perversion, nariative, ethics, storyteller.Walter Benjamin

    Intrito

    Em jeito de intrito, e pedindo desculpa, comeo por dizer que, num Colquio com o ttulo Artes da Perverso, no vou realmente falar de perverso. E no porque no quisesse, mas porque esse tema, entre a inveno precoce do titulo "Por uma tica da perverso" e a escrita do ensaio, se foi transfor-

  • mando muito para l do que eu podia prever. Como Lord Chandos, segundo Hofmannsthal, tambm eu senti que os conceitos - perverso, justia, tica, narrativa - se iam tor- nando intratveis ou at indizveis. Isto acontece de cada vez que contemplo muito tempo o olhar de medusa de um concei- to: e ningum pode saber quando deve deixar de fixar um con- ceito e simplesmente us-lo.

    No falarei de perverso, mas estou j a falar, em jeito de intrito, daquilo que me traz aqui: o frgil elo entre tica e

    iqb>iq? narrativa, entre perverso, subverso e ensaio. O no-falar no uma verdadeira aporia. Mesmo Lord

    Chandos, para dizer que incapaz de escrever, escreve uma carta. Ainda assim, confesso que atravessei o pnico, conforme os conceitos se transformavam, as palavras perdiam o sentido, a escrita gerava apenas fragmentos contraditrios, e o prprio titulo, entre vrias verses, se ia quase transformando, do ori- ginal: "Por uma tica da perverso", em: "Como o ensaio enga- na o prprio ensasta".

    Se, apesar disso, estou aqui, porque aceitei que os conceitos se transformassem, que a escrita do ensaio rever- tesse contra o ttulo, que o ensaio no seja forosamente o desdobrar de uma verdade mas a experincia de verses e tentativas a vrias vozes. O ensaio no a exposio de um saber j dominado, mas o desdomnio de quem procura e encontra o que no sabia. Afinal, comecei a planear um texto sobre perverso, mas penso que escrevi um ensaio sobre sub- verso. E terminei o meu texto acrescentando esta primeira pgina, em jeito de intrito, mas que j parte do prprio ensaio, por esta ordem desordenada, a ltima pgina como primeira, e alterando o prprio ttulo, que s agora, in medias res, digo corrigido, assim:

  • Por uma tica da subverso

    E agora posso finalmente comear.

    5 Em 1936, Walter Benjamin termina o seu ensaio sobre o contador de histrias com esta frase: "O contador a forma na qual o justo se encontra a si prprio".

    5 Conio sempre, a exactido cristalina de Benjamin fica a ecoar muito tempo. Gostaria de interrogar esta frase notvel, a sua intensa velocidade, o seu grau de resoluo, uma vontade de >> sobriedade que descreve o prprio Benjamin, autor de ensaios, mas tambm de pequenos contos, apontamentos, aforismos. Como se Benjamin fosse tambm contador de histrias, como se esta frase apontasse para a sua prpria vontade de preservar o segredo de uma sageza em tempos de indigncia.

    Interrogo a frase "O contador a forma na qual o justo se encontra a si prprio". Frase estranha, elptica, crptica, que une, a grande velocidade, o fazer da narrativa e a avaliao da justia. Ora, que ligaes existem, podem existir entre narrativa e tica? Uma primeira audio de Benjamin deve dissociar os dois gestos e estranhar a economia da frase. Nada deve garantir, sem dvida e sem perigo, que contador e justo sejam sinnimos. Pelo contrrio, preciso comear por ouvir, com ouvidos agrestes, a diferena das palavras. E esta audio j uma narrativa, e j uma tica.

    5 Benjamin no procura uma arte desinteressada, kantiana. O contador de histrias tem um interesse, conhece e transmite a experincia, sugerindo aos ouvintes caminhos at a inadivinhados. Nesse sentido, ele tem um interesse, funo. Mais: ele inter-esse, estar entre, a sua funo ser ligao entre perguntas de hoje e res- postas de ontem, numa peculiar inverso da cronologia. Ele esgo- ta-se nessa serventia, e deixa de servir se no houver ouvintes com necessidade de histrias, ou de memria.

  • Benjamin no escreve simplesmente que o contador o justo, na equao simples de umverbo copulativo. Nada est- tico nesta frase que repito, repetirei muito: "O contador a forma na qual o justo se encontra a si prprio".

    Na aparente horizontalidade da frase, h um fazer. H o contador, a forma, o justo, e o "si prprio". Que no so forosa- mente quatro maneiras tautolgicas de dizer a mesma coisa. H tambm o verbo "encontrar-se". Quando Benjamin diz que o justo se encontra a si prprio na forma do contador. devo entender que o justo no existia antes de contar, e suspeito j que encontrar-se a

    '98>399 si prprio , mais do que reconhecer-se, estranhar-se.Afrase no progride, ento, numa equivalncia que se explica, mas na forma- o do contador, que no se conhece e que se inventa. Do mesmo modo que Marcel nasce porque escreveProcura do Tempo Perdido, e s ganha o seu nome quando o assina.

    Que quer ento dizer Benjamin? Saberemos ler esta frase no fim do ensaio de 1936, lugar de smula e fecho - ou apenas relanamento de uma pergunta? Naverdade, no sabemos se esse ensaio tambm uma histria dita por um narrador. No sabemos se o ensaio ensaia, experimenta, ou afirma; no sabemos se a sua ltima frase uma tese ou uma dvida. Simplesmente porque no sabemos o que um ensaio, nem como deve ser lido.

    Quando Benjamin diz "O contador a forma na qual o justo se encontra a si prprio", estamos perante uma descrio de um estado de coisas actual ou uma utopia por realizar? Um constativo ou um performativo?

    Mais cedo no mesmo texto, Benjamin enfatiza que o contador est a morrer, enquanto o romancista prospera: contra a experin- cia transmitida entre ouvintes, reina em i936 a meravivncia rela- tada por jornais e romances a leitores solitrios. Mas se o contador est a morrer, como funciona o presente do verbo em "O contador a forma na qual.. ."? Naverdade, o contadorfoi; porventura, o con- tadorser. Mas Benjamin sabe que jno e aindano verdade.

  • Ou ser que s se tornou verdade precisamente porque se tornou to improvvel? No ser s nos tempos de indigncia que o contador de histrias se revela necessrio? Mesmo a aura da obra de arte talvez s comece a existir no instante em que a obra tecnicamente reprodutvel: s quando a aura se perde, ela comea a acontecer, outrora agora. Talvez o justo enquanto contador de histrias s possa existir ao preo da sua no-exis- tncia. E este limiar entre presena e ausncia do justo talvez seja outro nome para o messianismo.

    Talvez nunca tenha havido o contador de histrias. Tal- >> vez no haja em 1936, como diagnostica Benjamin, ou em zoio. Por isso, i936 e 2010 so momentos em que o contador recor- dvel ou espervel. O passado e o futuro inventados na porta estreita do instante.

    5 O justo inventa-se pela narrativa. No sei se isto que Benjamin quer dizer. Receio estar a afastar-me progressiva- mente do ensaio sobre o contador de histrias.

    No sei se o justo se ajusta com justeza a si prprio. Talvez a sua justia dependa de um desajuste que o desloca para fora de si. Se h inter-esse, justo s pode ser o que est em torno desse entre: o justo encontra-se, mas ao perder-se naqueles que o ouvem.

    Portanto, no sei ao certo se o justo se encontra e no sei se ele se encontra numa forma, mas antes: na transitorieda- de, no xodo, no exlio, na perigosa reinveno de si. Lugar de runas. Mas arrisco agora dizer assim: o justo aquele est em runas. cuja narrativa desmoronou.

    Aser assim, o justo no se pode reconhecer a si mesmo.

    5 Se "o contador a forma na qual o justo se encontra a si prprio", fica tambm por dizer se possvel ser justo fora da narrativa. Muitas vezes a vtima no tem narrativa. Precisa-

  • mente, a possibilidade de uma narrativa a primeira coisa que lhe retirada, para que ela no se possa reinventar. O silncio depois de Auschwitz. O intestemunhvel como condio do tes- temunho, conforme Giorgio Agamben o entende.

    Mas como testemunhar sem narrativa?

    Decerto j no sei sequer o que uma narrativa. Para sab-lo, era precisauma narrativa que definisse as narrativas, e a si mesma. Um sistema tautolgico, em que o justo se encon- trasse e confirmasse a si mesmo. Um sistema que funcionaria

    200>201 por excluso, definindo o que no narrativa. Prefiro pensar que a narrativa indefinvel. Sobretudo se

    dela depender a justia do justo. Isto : onde o justo se encontrar a si prprio, isso uma narrativa? Ento narrativa poderia ser um gaguejo, uma dvida, um aforismo obscuro, um suspiro, um olhar. Mas at esse quase nada demasiado slido. Naverdade, Kafka narrativa? E Clarice? E Brodsky? E Sebald? E Easton Ellis?

    Como reconhecer uma narrativa, se ela no se definir por uma teoria de gneros, no por caractersticas formais, mas por uma vivncia tica?

    Podemos at supor, temerariamente, uma inverso da frase de Benjamin, algo como: "o contador a forma na qual o justo no se encontra a si prprio", o contador a forma na qual o justo se perde, ou na qual o justo se encontra como injusto. No sentido benjami- niano, pode haver narrativas injustas? No basta chamar-lhes "romance": Benjamin sabe que o romance nem sequer chega a criar a imoralidade, mas um simples, neutro e mortfero desinte- resse, ou des-inter-esse, aperda da comunidade.

    Problema maior: Benjamin descreve o contador a partir da experincia acumulada, disponvel, aplicvel aqui e agora: mas podemos dizer outro tanto de Sade. mesnio quando Sade escreve na solido do crcere. Sade tem conscincia de escrever

  • para a humanidade, esse conceito iluminista, depois romnti- co, e emergente em novas formas polticas. Nos intervalos de utopias concentracionrias aristocrticas (castelos de Silling), Sade considera-se porta-voz de uma humanidade sem frontei- ras. Claro que no se encontra, como o contador ideal de Ben- jamin. na presena fsica dos seus ouvintes - et pour cause.. . Ainda assim, uSio lhe falta a convico do contador, a conscin- cia pragmtica de solues absolutas.

    Que esses manuais prticos sejam perversos nada altera estrutura de um saber que se capitaliza e aplica. A perverso to afirmativa quando o modus faciendi legitimado na socieda- H de. Sade to didctico quando o contador de Benjamin. Mesmo a retrica dos contos populares, alis, onde falham um ou dois anti-heris (maus) para que um heri (bom) acerte na resposta, glosada por Sade na dupla histria de Justine e de Julietre. A nica diferena que Justine boa, mas falha, enquanto Juliette m, mas acerta. E contudo, por estranho que parea, esta inverso no muda o elo profundo entre narra- tiva e tica. E apenas uma nova glosa.

    5 Resistncia compacta dos romances de Sade, esses contos morais exaustivos: eles nunca hesitam. Justine no hesita no bem como Juliette no hesita no mal: ou, se Juliette hesita uma vez, para cabal demonstrao lgica de todas as hipteses, pagar caro. O romance prope modelos de aco rigidamente coerentes.

    .4ssim, o contador pode tambm ser a forma na qual o injusto se encontra a si prprio. Verso e perverso, ambas so encontros narrativos de formas fixas.

    5 A fixidez das personagens de Sade no forosamente rica. Ser espectacular, claro, mas montona. Cada libertino protege a sua perverso pessoal como monomania. Nesse sen- tido, a perverso pode ser to montona quanto o mais estrito puritanismo.

  • 5 Devo lembrar que giz0 aqui uma Icihira artificialmente ingnua de Sade como mquina perversa monoltica. Isto , como a sociedade decidiu rotul-lo. Mas esse modelo interes- sa-me precisamente enquanto modelo -talvez at menos de Sade do que do sadismo. Quanto ao lugar complexo onde a sim- ples perverso sadiana se transfigura no mais indecidvel dos jogos de antteses, entre afirmaes morais e imorais, isso - ter de ficar para outro ensaio.. .

    Pois no seguro que Sade sirva aqui como simples voz perversa. De resto, os modelos sadianos de conduta imoral for-

    202>?03 necem mesmo uma tica aplicvel? Algures, Jean Paulhan fala de uma jovem que entrou num convento por ter lido Sade (que essa jovem tenha alguma vez existido, ou no, pormenor sem importncia). O texto perverso pode levar a consequncias morais; tal como o mais moral dos textos pode conduzir ao crime.

    5 Benjamin lembra, com rigor, que o contador de hist- rias aconselha. No ordena. O ouvinte pode no acatar o conse- lho; pode segui-lo, neg-lo, at ignor-lo; e qualquer destas respostas est prevista na liberdade do prprio conselho. O conselho admite, precisamente, que pode no ser seguido.

    Anarrativa justa inclui em si a possibilidade da sua resciso.

    5 Mas ento, o que cria o contador justo j no a sua experincia, a sua certeza, a transmisso lmpida de um saber - mas sim a experincia, a hiptese, o risco. Talvez ele seja tanto melhor contador quanto mais dominar a retrica da narrativa; mas doravante s o posso compreender como justo enquanto ele no dominar a lgica da sua verdade.

    5 Na verdade, prefiro pensar que todas as narrativas falham eticamente. Pensar que no h, nunca houve uma idade do ouro da narrativa em que o contador ou o justo disseminasse a sua experincia pura entre puros ouvintes. Mesmo o conto popular tradicional, com os seus concertos e desconcertos do

  • mundo, com a sua iniciao cifrada, tambm humano, dema- siado humano. Tambm o conto popular segrega e discrimina, normaliza e exclui, cede vingana e ao ressentimento. Outra frase de Benjamin, nas teses sobre a filosofia da Histria, deve ser levada letra: todo o monumento da cultura um documen- to de barbrie. Assim, nunca houve o simples contador, a sim- ples narrativa tica, o simples justo. Tambm no h o simples romance de leihira silenciosa como forma injusta.

    5 Como reconhecer uma narrativa justa seno por outra narrativa? Como assegurar a justia dessa outra narrativa, ,> seno por uma terceira narrativa? Encontramo-nos em plena ordem do discurso, foucaldiana; talvez essa ordem j seja uma violncia e mesmo uma injustia, porque os discursos so-nos conferidos e negados numa distribuio que s parcamente podemos questionar. O prprio questionamento apenas mais um discurso conferido sob regras vigilantes.

    Se no h cultura sem barbrie, que pode fazer o justo sua prpria narrativa? Como pode assegurar-se da sua justia, ele, que se encontra perigosamente dentro dela? O justo teria de abandonar a sua prpria poca, cindir a sua actualidade, ser no-contemporneo de s i mesmo, perder a sua lngua. Para preservar a justia, o contador deve perder a sua narrativa.

    No podemos realizar esse salto transcendental. Dentro da densidade do tempo, o contador s pode ouvir, contra a sua narrativa, as contra-narrativas de quem o ouve. Porque o puro silncio no nos concedido, o contador de narrativas s pode deixar-se tomar pela lngua alheia e estranha. Nenhuma pura justia que se apresenta a si prpria, nenhuma experincia a transmitir, s o risco de uma dissoluo. O justo aquele que nunca sabe, que treme sempre.

    Talvez a prpria justia seja inapreensvel. Talvez no seja possvel escrever um ensaio sobre a justia ou o contador de histrias.

  • No se pode transcender simplesmente a ordem do dis- curso. Mas pode-se reverter discursos contra a identidade dos discursos. Desafiar a identidade do contador. Num ensaio, enfrentar a frase, que tambm um ensaio, "O contador a forma na qual o justo se encontra a si prprio".

    5 Na verdade, j no sei bem se o contador conta seja o que for. O que contam Cervantes, Kleist, Dostoievsla, Virginia Woolf, Celine? Merecem o nome de contadores? Encontro neles menos a partilha de uma experincia do que a glossolalia sem centro e sem

    ?o,,>?o~ transcendente. O contador cede lugar s vozes dissonantes. Modelo dialgico da narrativa, afirma Bakhtine. E talvez

    de toda a linguagem, incluindo at a linguagem do meu ensaio. Na verdade, o dialogismo nem sequer uma escolha: toda a voz cindida, porque eu um outro. Nem isso: eu no sou eu nem sou O outro.. .

    Neste jogo entre Benjamin e Bakhtine, preciso pensar que a dissonncia talvez seja mais tica do que o concerto das vozes ou o recitativo do solista. O solista pode ser moralista ou perverso, no importa. Procuro o justo naquele que duvida de si, naquele que ouve e diz em diversas lnguas, naquele que no tem terra nem identidade.

    A narrativa justa, hoje, sempre, desafia a prpria justi- a. Porque "justia" no deve ser imperativo categrico: injusto confiar, como Creonte, na certeza da justia. S justa a narrativa que, na sua borda, admite a sua dvida. O contador deve inventar a justia de raiz, no ordenada pelos cus de uma lei ou divindade, no ordenada pelo abismo insondvel de uma subjectividade, mas pedida pela exterioridade do outro que rei- vindica outra lei. A narrativa justa - oral ou escrita, no dilogo da comunidade ou no silncio do leitor - apenas pode respon- der por uma tica da reinveno absoluta do mundo, na releitt- ra de todos os monumentos e documentos, a narrativa justa s pode responder por uma tica da subverso.

  • "Este ensaio foi elaborado no mbito do Projecto "Interidentidades" da Instituto de Literatura Comparada Margarida Loa da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Unidade I&D financiada pela Fundaqo para a Cincia e Tecnologia. in teaada no Programa Opeiacional CiCncia e Inova30 2010 (POCI 2010). do Quadro Comunkrio de Apoio I11 (POCI 3010-SFA-18-500).

    Agamben, Giorgio ZOO^), Ce qui Reste d'Auschwitz, trad. Pierre Alfe- ri, Paris, Payot & Rivages 119981. Bakhtine, Mikhail (1998), La Potique de Dostozevstci, trad. Isabelle Kolitcheff, Paris, Seuil [igzgl. Benjamin, Walter (iggza), "O narrador", i n Sobre Arte, Tcnica, Lin- guagem e Poltica, trad. Maria Arnlia Cruz, Lisboa, Relgio d'gua 119361. -- (iggzb), "Teses sobre a filosofia da Histria", ibidem, trad. Manuel Alberto [19401. - - (zooo), "Le conteur", in Euvres, tomo 111, trad. Pierre Rusch, Paris, Gallimard [iq361. Kant, Immanuel (19981, Ciitica da Faculdade do Juizo, trad. Antnio Marques eValrio Rohden, Lisboa, INCM [17gol. Hofmannsthal, Hugo von ( 1 ~ ~ 0 ) . A Carta de Lord Chandos, trad. Car- 10s Leite, Lisboa, Hiena [igozl. Paulhan, Jean (iggz), "O depoimento de Jean Paulhan em 15 de Dezembro de 1956, na Cmara Correccional de Paris", in O Mar- qus de Sade e a sua Cmplice, trad. Alberto Nunes Sampaio, Lisboa, Hiena Iig561.

    Sade, Donatien Alphonse Franois, Marqus de ZOO^), Histria de Juliette ou As prosperidades do vcio, trad. Rui Santana Brito, Lisboa, Guerra & Paz [i7971.