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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA CURSO DE MESTRADO PEDRO PINHEIRO BORGES NETO FAMÍLIA E HOMOPARENTALIDADE: O QUE PENSAM AS CRIANÇAS? RECIFE 2016

PEDRO PINHEIRO BORGES NETO PINHEIRO BORGES NETO FAMÍLIA E HOMOPARENTALIDADE: O QUE PENSAM AS CRIANÇAS! Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

CURSO DE MESTRADO

PEDRO PINHEIRO BORGES NETO

FAMÍLIA E HOMOPARENTALIDADE: O QUE PENSAM AS CRIANÇAS?

RECIFE

2016

PEDRO PINHEIRO BORGES NETO

FAMÍLIA E HOMOPARENTALIDADE: O QUE PENSAM AS CRIANÇAS?

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Psicologia da Universidade

Federal de Pernambuco, como requisito parcial

para a obtenção do grau de Mestre em Psicologia.

Orientadora: Profª. Drª. Maria Isabel Patrício de Carvalho Pedrosa

RECIFE

2016

PEDRO PINHEIRO BORGES NETO

FAMÍLIA E HOMOPARENTALIDADE: O QUE PENSAM AS

CRIANÇAS!

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Psicologia da

Universidade Federal de Pernambuco,

como requisito parcial para a obtenção do

título de Mestre em Psicologia.

Aprovada em: 26/02/2016

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________

Profª. Drª. Maria Isabel Patrício de Carvalho Pedrosa

(Orientador)

Universidade Federal de Pernambuco

______________________________________________

Profª. Drª. Renata Lira dos Santos Aléssio

(Examinador Interno)

Universidade Federal de Pernambuco

______________________________________________

Profª. Drª. Maria de Fátima Vasconcelos da Costa

(Examinador Externo)

Universidade Federal do Ceará

AGRADECIMENTOS

Mas do que um sentimento de “dívida”, a gratidão tem se mostrado como algo que me

revela o que o cotidiano, por vezes, nos rouba: a percepção do quão intimamente somos

ligados uns aos outros; o quanto pequenos atos são, na verdade, gigantescos. Ser grato é ter a

percepção de forma clara e profunda que somos pessoas (mais a frente, leitor, você

compreenderá o sentido desta palavra). Também aprendi que, para mim, as palavras são

sempre insuficientes para demonstrar a real dimensão dos afetos. Apesar de tocantes, as

palavras, por vezes, não conseguem transmitir o calor dos afetos. Assim, espero que cada um

que agradecerei, por meio destas palavras, sinta-se abraçado e reconhecido por um olhar cheio

de gratidão.

Ao Bom Pastor, por sua presença e cuidado; pelo dom da Esperança.

A meus pais, Naire e Soares, aqueles que mesmo em suas fragilidades se dispuseram a

acolher-me. Quanto mais me descobri humano, mais os descobri humanos; mais nos

encontramos. E como foi e é bom poder encontrá-los!

Sobre meu pai, em especial, gostaria de deixar registrada a minha gratidão por sua

vida. No momento da ausência, tomamos real consciência da importância que certas pessoas

têm em nossa vida. Comigo, a respeito dele, não foi diferente. Sua morte revelou-me algo

importante: ele permanece vivo no amor que sinto. Enquanto eu viver, ele permanecerá vivo,

em mim. Afinal: “Eternidade é, na verdade, o amor vivendo sempre em nós...”.

À minha mãe, pequena apenas na estatura. Grande na força e no silêncio da

compreensão. Ainda tenho muito que aprender com você!

À minha irmã, Lorena, prova viva de que as diferenças não afastam, mas criam uma

relação autêntica de fraternidade. Alegria de menina e força de mulher: orgulho em perceber a

mulher forte que se tornou!

Às amigas, Jéssica, Monique e Priscila, pelos risos e alegrias, por reconhecer em vocês

parte feliz da minha história.

Às integrantes do grupo de estudo W10: Patrícia, Babi, Pri, Nick, Nanci, Milla, Rai.

Cada encontro nosso reacendia meu desejo pela Psicologia, vendo em vocês a simplicidade e

responsabilidade de grandes profissionais. Muito obrigado pela acolhida e pela amizade

construída!

À Professora Maria Isabel Pedrosa (prefiro Bel), orientadora de sempre, que me

auxiliou desde os primeiros passos na Psicologia: grato pelo olhar delicado, pelas orientações

precisas e pelas palavras incentivadoras. Grande inspiração para o modo de compreender as

crianças.

A todos os integrantes do Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI) participante

da pesquisa, que me acolheram tão bem e tornaram nosso trabalho possível. Em especial, às

crianças que participaram da pesquisa, meu muito obrigado, por confiarem em mim e

compartilharem comigo um pouco do seu modo de ver a vida. No inicio de minha a formação

acadêmica, me perguntava por que achava as crianças tão interessantes. Hoje, começo a ter

um pouco de clareza a esse respeito: cada vez mais aumenta minha certeza de que tenho

muito a aprender com elas, com sua simplicidade, autenticidade, criatividade e uma boa dose

de paciência para aturar um “tio chato” que só ficava fazendo um monte de pergunta (risos).

Espero que meu trabalho faça jus aos participantes dele.

Às equipes de profissionais e estagiários: (1) do Núcleo de Adoção e Estudos da

Família (NAEF) do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco (TJ-PE), onde o interesse

pela homoparentalidade nasceu; (2) do Núcleo de Apoio Psicossocial (NAP), do TJ-PE, onde

minhas ideias amadureceram, bem como meu senso de Ética; e, finalmente, (3) da Casa de

Passagem Diagnóstica de Olinda (CPD), onde tive o privilégio de ouvir às crianças mais de

perto.

Aos colegas de turma e professores do mestrado, pelos ricos momentos de

aprendizagem!

Às professoras Renata Lira e Fátima Vasconcelos, por disporem seu tempo na leitura

de meu trabalho.

Aos funcionários do Departamento de Psicologia, Bruno, André e João, pelo auxilio

nas tarefas burocráticas e pela gentileza e presteza com que sempre me trataram.

À Facepe, por auxiliar-me desde o inicio de minha formação como pesquisador.

E a pergunta roda

E a cabeça agita

Eu fico com a pureza

Da resposta das crianças (...)

(Gonzaguinha)

RESUMO

As crianças têm sido postas no centro do debate sobre a homoparentalidade, porém não lhes é

dada a possibilidade de expor o que pensam. Surge o interesse de investigá-las, pressupondo

que elas produzem significados acerca da realidade e que suas construções se dão na interação

social, em contexto cultural. Assim, propomo-nos a ouvi-las. Participaram da pesquisa 32

crianças (17 meninos e 15 meninas) na faixa etária de 4 a 6 anos que frequentavam um Centro

Municipal de Educação Infantil (CMEI) na cidade de Recife-PE, as quais formaram grupos de

conversa, utilizando-se como “gatilho” a realização de um desenho de família, a apresentação

da imagem de uma família homoparental, bem como a história infantil “And Tango makes

three”, que fala sobre dois pinguins machos que adotam Tango, um pinguim neném. Os

grupos de conversa (dez trios e uma dupla) foram videogravadas, totalizando 6 horas, 12

minutos e 23 segundos de registro, tendo cada grupo média de duração de 28 minutos e 36

segundos. Os resultados apontam que as principais significações definidoras de família para

as crianças são a afetividade, a universalidade (todos têm família), as relações de parentesco, a

flexibilidade dos papéis familiares (diferentes pessoas podem ocupar um mesmo papel), o

encontro e a proximidade. Em princípio, nenhuma dessas significações colocaria em xeque o

status de família da configuração homoparental; duas outras, entretanto, colocariam-no: o

gênero, como regra delimitadora do exercício de determinados papéis familiares; e a

compreensão da família, como modelo específico a ser seguido (“pai, mãe e filhos”). Em sua

maioria, as crianças percebiam o ambiente formado por um casal homoafetivo como feliz e

seguro para o desenvolvimento de um filho. Porém, seu status de família e, até mesmo, de

parentalidade eram questionados pelas crianças.

Palavras-Chave: Família. Homoparentalidade. Crianças. Processos de Significação

ABSTRACT

Children have been put at the center of the debate on homoparenthood, but they are not given

the opportunity to explain what they think. Then it is relevant to investigate them, assuming

that they produce meanings about reality and that their constructions take place in social

interaction culturally contextualized. Thus, we were open to hear them. The participants were

32 children (17 boys and 15 girls) aged 4-6 years attending a Municipal Center for Early

Childhood Education (CMEI) in the city of Recife-PE, who formed talking groups, using as

"triggers" their family designs, the image of a homoparental family, as well as the children's

story "And Tango makes three", which is about two male penguins who adopt Tango, a baby

penguin. The talking groups (ten triples and a double) were videotaped, totaling 6 hours, 12

minutes and 23 seconds of registration, each group with an average of 28 minutes and 36

seconds. The results show that the main defining meanings of family for children are

affection, universality (all have family), kinship relations, the flexibility of family roles

(different people can play the same role), the meeting and the proximity. In principle, none of

these meanings would put into question the family status to the homoparental configuration;

two others, however, would: the gender, as a limiting rule to the performance of certain

family roles; and the family conception as a specific model to be followed ("father, mother

and children"). Most of the children perceived the atmosphere involving a homoaffetive

couple as happy and secure for the development of a child. Nevertheless, the family status and

even parenting conditions were questioned by the children.

Keywords: Family; Homoparenthood; Children; Meaning-making process

LISTA DE QUADRO E FIGURAS

Quadro 1: Dados gerais e distribuição dos participantes por trio.............................................37

Figura 1 - Momento do desenho de uma família......................................................................40

Figura 2 - Contação da História “And Tango makes three”.....................................................42

Figura 3 - A menina e suas duas mães......................................................................................44

Figura 4 - Desenho de Nick sobre família................................................................................53

Figura 5 - Desenho de Maju sobre Família...............................................................................56

Figura 6 - Desenho de Nanda sobre Família.............................................................................57

Figura 7 - Desenho de Bia sobre Família..................................................................................58

Figura 8 - Desenho de Eva sobre Família.................................................................................61

Figura 9 - Desenho de Cadu sobre Família...............................................................................69

Figura 10 - Desenho de Gui sobre Família...............................................................................70

Figura 11 - Imagem inicial da História.....................................................................................81

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO................................................................................................................... 10

2 HOMOPARENTALIDADE E CRIANÇAS: QUAL O PROBLEMA?!.............................18

2.1 Estudos sobre Homoparentalidade: Onde estão as crianças?!.......................................18

2.2 Família: O que as crianças nos tem dito?.......................................................................21

3 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA: EM BUCA DE UM SENTIDO....................................27

4 MÉTODO..............................................................................................................................35

4.1 Participantes e contexto.................................................................................................35

4.2 Material e procedimentos de coleta...............................................................................38

4.3 Procedimentos de análise....................................................................................................44

5 RESULTADOS E DISCUSSÃO..........................................................................................46

5.1 Família: “Tá dentro dum coração... E o papai, a mamãe e os irmãos!”.........................46

5.1.1 O Desvelamento da Família..................................................................................46

5.1.2 Todo mundo tem família! Família é tudo igual!..................................................53

5.1.3 Família: Enlaces, Desenlaces e Reenlaces...........................................................58

5. 1.4 Para além do amor: O que é mesmo família?.....................................................64

5.1.5 Família é com quem a gente mora?....................................................................66

5.2 Homoparentalidade: com a palavra, as crianças!............................................................71

5.2.1 Homoafetividade? Só em sonho!..........................................................................71

5.2.2 O Modelo Pai-Mãe-Filhos....................................................................................79

5.2.3 Como nascem os bebês?.......................................................................................87

5.2.4 Como é a vida do bebê pinguim?..........................................................................91

5.2.5 Isso também pode acontecer com gente?..............................................................95

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................................................101

7 REFERÊNCIAS...................................................................................................................105

APÊNDICES...........................................................................................................................111

APÊNDICE A – SÍNTESE DAS PRINCIPAIS IMAGENS DA HISTÓRIA “AND TANGO

MAKES THREE”...................................................................................................................112

ANEXOS................................................................................................................................117

ANEXO A – PARECER DO COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA...................................118

ANEXO B – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO.......................120

10

1 INTRODUÇÃO

Tradicional ou moderna, nuclear ou extensa, estruturada ou desestruturada, funcional

ou disfuncional, “base da sociedade” ou “instituição falida”, “de sangue” ou “do coração”,

reconstituída ou original, a família parece não sair de nossas discussões, seja no senso comum

ou no campo científico. Talvez sejam os paradoxos entre relevância/indefinição e

experiência/representação que tanto nos instigam a uma compreensão do lugar ocupado pela

noção de família no mundo atual.

Fontes interessantes para a compreensão do lugar ocupado por um determinado

fenômeno dentro de uma sociedade são os documentos legais por ela produzidos, haja vista

que eles têm por objetivo a regulação das instituições e, em última análise, do comportamento

dos indivíduos; são frutos dos constantes conflitos e jogo de forças inerentes a uma sociedade.

Nesse sentido, a Constituição Brasileira (BRASIL, 1988) dedica um capítulo para tratar do

tema família. Nele, a família é concebida como instância fundamental da sociedade, devendo,

portanto, ser alvo de cuidados especiais por parte do Estado: “Art. 226. A família, base da

sociedade, tem especial proteção do Estado.” (grifo nosso). Em seus quatro primeiros

parágrafos, o artigo 226 versa sobre casamento e apresenta uma definição de família:

§ 1º O casamento é civil e gratuita a celebração.

§ 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.

§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o

homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua

conversão em casamento.”

§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por

qualquer dos pais e seus descendentes.

Não só como protegida, a família também é concebida, pela mesma Constituição,

como protetora:

Art. 227 É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança,

ao adolescente

e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação,

à

educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à

liberdade e

à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda

forma de negligência,discriminação, exploração, violência, crueldade e

opressão.

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A partir destes pequenos trechos, algumas questões começam a emergir: O que faria

da família merecedora de especial proteção por parte do Estado? Por que seria ela a base da

sociedade? Qual o papel social da família? Seria o casamento o início da família? Seria o

casamento necessariamente entre homem e mulher? Para ser família tem que ter filhos? Seria

a família sempre uma instância protetora de seus membros, em especial crianças e jovens?

Todas essas questões, apesar de instigadoras tornam-se secundárias, pois uma questão

permanece em aberto: afinal, o que é família? Dada sua relevância, a definição apresentada

pela Constituição contempla a realidade das famílias de nosso país? Quem é a família

brasileira?

Segundo dados do Censo Demográfico de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística (IBGE, 2012), somam-se no Brasil 54,3 milhões de famílias1 – das

mais diferentes configurações –, as quais têm sofrido modificações objetivas e significativas

em decorrência de fatores como a diminuição da taxa de fecundidade, o adiamento da

parentalidade, o envelhecimento da população, a flexibilização dos laços matrimonias, entre

outros. Dentre estas modificações destacam-se o aumento de casais sem filhos (5,3% em dez

anos) e o aumento das famílias monoparentais femininas (mulheres sem cônjuge com filhos),

que há época representavam 12,2% das famílias brasileiras. Destaca-se ainda a redução, entre

2000 e 2010 de famílias compostas por casais com filhos (de 56,4% para 49,4%). Os dados

acima apresentados ajudam-nos a desenhar, ainda que grosseiramente, o atual estado das

famílias brasileiras: transformação e pluralidade parecem ser as fortes marcas do atual

momento da família. São esses mesmos dados que nos permitem perceber um descompasso

1 Lembremos-nos de que, a partir do censo de 2010, o IBGE passou a utilizar a noção de unidade doméstica, a

saber,“conjunto de pessoas que vive em um domicílio particular, cuja constituição se baseia em arranjos feitos

pela pessoa, individualmente ou em grupos, para garantir alimentação e outros bens essenciais para sua

existência. Sua formação se dá a partir da relação de parentesco ou convivência com o responsável pela unidade

doméstica, assim indicado e reconhecido pelos demais membros da referida unidade como tal.” (IBGE, 2012, p.

64-65). O referido Instituto reconhece que mais de uma família possa viver em uma mesma unidade doméstica,

lançando mão de uma serie de variáveis para identificar o número de famílias por unidade doméstica. No site do

IBGE encontra-se a seguinte definição de família: “conjunto de pessoas ligadas por laços de parentesco,

dependência doméstica ou normas de convivência, residente na mesma unidade domiciliar, ou pessoa que mora

só em uma unidade domiciliar. Entende-se por dependência doméstica a relação estabelecida entre a pessoa de

referência e os empregados domésticos e agregados da família, e por normas de convivência as regras

estabelecidas para o convívio de pessoas que moram juntas, sem estarem ligadas por laços de parentesco ou

dependência doméstica.” Apesar de definições bastante amplas, em dados momentos, no documento “Censo

Demográfico 2010: Famílias e Domicílios”, o referido Instituto exclui do número de famílias aquelas unidades

domésticas formadas por pessoas que moram sozinhas. No mesmo documento, nos é informado que, em

decorrência dos procedimentos estatísticos adotados para a definição do numero de famílias por unidade

doméstica, acabam por ser excluídas experiências como a “paternidade solteira de membro familiar não

responsável pelo domicílio, cujo núcleo permaneceu integrado de modo subordinado à família ampliada” (p. 51).

Esta extensa digressão possui dois objetivos importantes: (1) informar o leitor sobre as limitações dos dados aqui

apresentados, bem como, desde já, (2) apontar-lhe a complexidade do fenômeno “família” e dos desafios que

impõe ao seu estudo.

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entre a definição de família apresentada pela Constituição e a realidade concreta das famílias

brasileiras; descompasso esse oriundo das recentes e intensas transformações sociais nos

campos dos projetos de filiação e casamento.

E o que dizer de nossas representações sobre família? Estariam nossos significados

acerca da família acompanhando a velocidade das transformações das famílias enquanto

realidade objetiva? Ou ainda estaríamos presos em um “modelo ultrapassado” e idealizado de

família que, talvez, nunca tenha realmente existido?

É neste cenário de transformações e indefinições, em que a realidade transforma-se

mais rapidamente do que nossas representações sobre ela, que observamos o surgimento de

forças sociais em dois sentidos: (1) aquelas que buscam a mudança e ampliação dos conceitos

de família a fim de abarcar as “novas realidades”; e (2) aquelas que buscam uma reafirmação

dos conceitos já existentes, numa tentativa de refrear as transformações sociais no âmbito

familiar. A noção de família, portanto, tem se mostrado alvo de especial reflexão nos últimos

tempos, nos campos social, político e religioso.

As recentes manifestações contrárias ao casamento por pessoas do mesmo sexo

ocorridas em Paris, em reação à aprovação da lei, pelo parlamento nacional, que garante o

casamento entre iguais, são exemplos disso. Os manifestantes, em grande parte compostos por

diferentes grupos sociais, como cristãos (católicos e protestantes), e setores conservadores da

sociedade, mostravam-se contrários ao casamento homoafetivo, bem como à adoção de

crianças e adolescentes por parte desses, alegando que essa modalidade de união "perturba

totalmente a sociedade, negando o parentesco e a filiação natural" e isso teria "consequências

econômicas, sociais e étnicas incalculáveis” (PROTESTO..., 2013).

Ainda segundo a matéria supracitada, manifestantes revelam sua preocupação em

relação às crianças: "Viemos defender o fato de que a família composta por um pai e uma mãe

é o melhor para as crianças" (PROTESTO..., 2013). Faixas e bandeirolas carregadas pelos

manifestantes (alguns deles, crianças acompanhadas por seus familiares) continham os

dizeres: “1 pai e 1 mãe para todas as crianças”. Evidencia-se assim que, a princípio, um dos

pontos de maior preocupação com relação ao casamento homoafetivo diz respeito à criança e

possíveis repercussões negativas que o convívio nessa configuração familiar possa trazer a

ela. Nesse sentido, o receio parece calcar-se na ideia de uma única configuração familiar

como sendo propícia ao desenvolvimento psíquico saudável de uma criança: aquela

constituída por casal heterossexual.

No campo religioso, a família foi motivo para a reunião dos mais altos cargos, de uma

das maiores instituições ocidentais: a Igreja Católica. Em outubro de 2015, realizou-se o

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Sínodo da família. Reunião de bispos (alto posto da Igreja), o Sínodo teve por objetivo

discutir as questões que têm perpassado o debate da família na contemporaneidade, a fim de

dar resposta aos fiéis católicos e a sociedade de modo mais amplo. Dentre os temas mais

polêmico do Sínodo destacam-se a questão do divórcio e as tecnologias reprodutivas. De

modo geral, apesar do reconhecimento das intensas transformações pelas quais a família tem

passado e a consequente diversidade de realidades familiares, as conclusões expressas no

relatório final do evento ratificam os posicionamentos mais conservadores dentro da

Instituição. (SÍNODO DOS BISPOS, 2015)

No campo político brasileiro, damos destaque ao projeto de lei PL6583/2013, o

Estatuto da Família, de autoria do deputado federal, pelo estado de Pernambuco, Anderson

Ferreira. O projeto tem por objetivo a criação de políticas públicas “voltadas para a

valorização e apoiamento da entidade familiar”. A princípio, o projeto mostra-se consonante

com a Constituição Federal, inclusive na definição. Todavia, um de seus pontos tem gerado

grande polêmica, a saber, a definição de entidade familiar:

Art. 2º Para os fins desta Lei, define-se entidade familiar como o núcleo

social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio

de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por

qualquer dos pais e seus descendentes. (BRASIL, 2013)

Apesar de não destoar da definição constitucional, o projeto tem sido alvo de críticas e

gerado grande comoção social, possivelmente em decorrência do atual momento da sociedade

brasileira, em especial as recentes conquistas, no campo jurídico2, dos sujeitos LGBTTT

3.

Assim, o projeto parece ser interpretado como uma reação conservadora ao reconhecimento

do status de família a união homoafetiva.

Por meio dos exemplos acima apresentados, nota-se que o tema família tem ganhado

notoriedade, recentemente, a partir de discussões das ditas “famílias modernas” ou “novas

configurações familiares”4. Segundo Uziel (2002), tais famílias caracterizar-se-iam por

diferenciar-se do modelo hegemônico de família nuclear (pai, mãe e filhos) – ainda que este

2 É importante enfatizar que as recentes coquistas dos sujeitos LGBT, como, o reconhecimento da união estável

homoafetiva, ocorreram a partir do Poder Judiciário e não do Poder Legislativo.

3 Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis e Transgêneros (LGBTTT) 4 Ceccarelli (2007) propõe que algumas das ditas “novas configurações familiares”, na verdade, podem não ser

tão novas assim, tendo apenas ganhado notoriedade recentemente “a partir do momento em que os protagonistas

desses arranjos passaram a exigir seus direitos de cidadãos provocando visibilidade, começaram a surgir

questões que interpelam todo o tecido social.” (p. 92).

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esteja, cada vez mais, distante da realidade – surgido, a partir de determinada conjuntura

social, política e econômica.

Dentre os diferentes modelos familiares, um, em especial, tem gerado grande

polêmica: aquele formado por casal homoafetivo (UZIEL, 2002). A essa relação, o próprio

estatuto de família é, por vezes, posto em dúvida ou negado. Contudo, a situação gera ainda

maior discussão quando se considera a possibilidade da existência de filhos. Como indicado

por diferentes estudos (FARIAS; MAIA, 2009), de modo geral, este parece ser o ponto central

da discussão: as possíveis repercussões negativas para a criança filha de casal homoafetivo.

Sobre isto, pesquisa realizada por Araújo e Oliveira (2008), com estudantes em fase final dos

cursos de Direito e de Psicologia, revela que estes, quando perguntados sobre adoção de

crianças por casais homoafetivos, demonstram preocupação quanto à possível sofrimento por

parte da criança, bem como sobre possíveis dificuldades quanto à sua orientação sexual e

identidade de gênero.

Tal modo de pensar, ao contrário do que se possa supor, não se restringe a

determinados grupos sociais conservadores – em especial os religiosos – envereda-se também

gerando grandes debates no meio acadêmico, em especial em certas correntes psicanalíticas.

Tratando-se especificamente do contexto francês, onde a psicanálise possui grande

popularidade e força, tem-se posto a questão: a criança criada em família homoparental

possuiria um modo de subjetivação/constituição psíquica diferente e perigoso se comparado a

crianças criadas em família heterossexual? Tal questão tem origem, segundo Perelson (2006)

em certa interpretação do modo como determinada corrente psicanalítica propõe a

constituição do sujeito. Segundo essa interpretação, baseando-se nos conceitos de “função

paterna” e “ordem simbólica”, a percepção da diferença sexual e posterior identificação da

criança com uma das figuras parentais ficaria comprometida, implicando, possivelmente,

naquilo que denominam de “dessimbolização”, a saber, o não ingresso da criança na ordem

simbólica. Ainda segundo Perelson, psicanalistas que se filiam a tal compreensão parecem

atrelar a percepção da diferença sexual ao ingresso no mundo simbólico e, portanto, da

cultura. Assim, imputar à criança o convívio com duas pessoas do mesmo sexo dificultaria ou

até mesmo impossibilitaria seu ingresso na ordem do simbólico.

Todavia, tal posicionamento não é unânime: alguns psicanalistas compreendem que a

percepção da diferença sexual não é, ao menos desse modo, a condição fundante da

subjetividade. O ingresso no simbólico dar-se-ia a partir de encontrar e reconhecer um Outro,

um agente de interdição da relação simbiótica entre a criança e seu cuidador (“função

materna”), transformando aquela em ser desejante. Ceccarelli (2007) aponta que, a seu ver, o

15

que por vezes ocorre é a utilização de alguns conceitos psicanalíticos a serviço da manutenção

de uma heteronormatividade.

Para além do campo da Psicanálise, as famílias homoparentais também trazem

questões e revelam concepções sobre aquilo que entendemos e construímos como relações

familiares e de parentesco. Podendo constituir-se de diferentes maneiras, as famílias

homoparentais parecem por em cheque, radicalmente, a noção de família necessariamente

calcada na reprodução e nos vínculos consanguíneos, a qual, por muito tempo, e ainda hoje,

prevalece em nossa sociedade, ao menos no universo do adulto.

Em artigo intitulado “Homoparentalidade: novas luzes sobre o parentesco” a

antropóloga Claudia Fonseca (2008) diz ver na homoparentalidade uma rica oportunidade de

vermos revelado nosso atual estado de concepção das relações familiares, por intermédio do

estranhamento que esse modelo familiar pode causar, bem como das transformações de tais

concepções. Em sua reflexão sobre as ditas “famílias modernas” Hintz (2001) conclui que as

famílias homoparentais são apenas mais um dos modos de ser família na contemporaneidade,

modos esses caracterizados pela notoriedade e relevância que os laços recíprocos de

afetividade ganham.

Assim, surge uma possibilidade de compreensão da razão pela qual as famílias

homoparentais podem causar tanto estranhamento a ponto de mobilizar fortemente diferentes

grupos sociais: tais famílias põem em cheque concepções que nos são centrais em nosso atual

modo de compreender e organizar a vida em sociedade, a saber, as noções de família e nossos

conhecimentos acerca da própria constituição da subjetividade humana – de acordo com uma

corrente de pensamento tão difundida e cara a cultura ocidental, a Psicanálise. A esse respeito,

como nos propõe Ceccarelli (2007):

[...] estamos de tal forma impregnados pelas associações sintagmáticas que

utilizamos para decompor o mundo e, em seguida, recompô-lo que, muitas

vezes, o novo é sentido como uma ameaça, pois nos obriga a reavaliar as

representações que confortavam nossas angústias. É com dificuldade que

abrimos mão de valores e teorias que nos têm sido tão caras para ler o real

(p. 90).

Fato curioso é que, apesar de ser a criança posta como principal alvo de preocupação

em questões controversas (como o caso de mudanças na estrutura familiar), raramente busca-

se ouvi-la, permitindo-lhe expor o que pensa acerca da temática, como bem nos aponta o

sociólogo William Corsaro (2011). Este certo silêncio imputado às crianças também se fez

presente, e ainda se faz, no reduzido número de pesquisas científicas que se propõe a escutar a

16

criança, tornando-a não só objeto de conhecimento, mas também colaboradora e coconstrutora

do conhecimento. Segundo Cruz (2008), a não escuta das crianças deve-se a alguns fatores,

dentre eles a percepção da criança enquanto ser incompleto, pouco competente socialmente e

dependente do desejo do adulto. Nesse sentido, no tocante a pesquisas realizadas no Brasil

acerca de famílias homoparentais, em busca realizada no banco de produções científicas do

Portal da CAPES e em outras bases de dados, como o Banco Nacional de Teses e

Dissertações, utilizando-se o descritor homoparentalidade, obteve-se como resultado uma

escassez de trabalhos, corroborando, no campo da homoparentalidade, a afirmação de

Corsaro.

Cruz (2008), porém, afirma que tais concepções têm sofrido modificações nas últimas

décadas, passando a criança a ser compreendida como alguém que, desde a mais tenra idade,

possui suas percepções, sentimentos, gostos e desejos frente aos diferentes fenômenos da

realidade, construindo significações a partir de suas interações sociais. Quando se afirma que

a criança é produtora de significados próprios acerca da realidade, compreende-se que a

construção de tais significados se dá na interação com o outro e a partir dela e,

consequentemente, em um determinado contexto cultural (ROSSETTI-FERREIRA,

AMORIM e SILVA, 2004). Por outro lado, no que diz respeito à criança, enfatizamos que ela

não é meramente reprodutora dos sentidos culturalmente partilhados, mas sim co-construtora

por meio de uma reprodução interpretativa. Por oportuno, trazemos a concepção de

reprodução interpretativa do já citado William Corsaro (2011, p. 53): “as crianças apropriam-

se criativamente de informações do mundo adulto para produzir suas próprias culturas de

pares. (...) as crianças transformam as informações do mundo adulto a fim de responder às

preocupações de seu mundo.”

Assim sendo, como nos indica Cruz (2008), em virtude da multiplicidade de contextos

culturais nos quais as crianças estão inseridas, bem como das peculiaridades e criatividade na

apropriação que fazem das informações do mundo adulto para a produção de suas próprias

significações, a investigação dos significados produzidos pelas crianças pode revelar aspectos

inusitados e surpreendentes da realidade social, tornando possível uma maior compreensão de

seus processos de construção e transformação.

A esse respeito, trabalhos acerca da percepção de crianças sobre a noção de família

(LIRA, 2012; RIBEIRO, 2011) tem indicado fato bastante interessante: as concepções de

crianças encontram-se situadas em dois planos (por vezes, conflitantes), o da experiência

vivida e do modelo idealizado.

17

No que tange em específico à família homoparental na perspectiva de crianças em

situação de acolhimento institucional, recente trabalho tem demonstrado também a forte

presença do modelo “pai-mãe-filhos” como ideal de família, ainda que este, por vezes, não

corresponda à realidade vivida (BORGES NETO; PEDROSA 2016, artigo submetido).

Contudo, noções como a de formação da família a partir da filiação adotiva, a dimensão do

cuidado como elemento fundante da parentalidade e o não atrelamento das funções parentais à

questão de gênero presentes nos discursos das crianças entrevistadas, parecem indicar a

capacidade de elas apreenderem as diferentes nuances e complexidades do fenômeno social

“família”. Ademais, as crianças posicionaram-se de maneira favorável a homoparentalidade,

porém, não à homoafetividade. Nitidamente, conjugalidade e parentalidade encontram-se

separadas: “(a criança) pode ter dois pais ou duas mães, eles ou elas (os pais) só não podem

namorar, senão vai ser frango e sapatão.” afirmou uma das crianças participantes do estudo.

Tais posicionamentos por parte dessas crianças nos levam a questionar acerca do

processo de construção de significados sobre família homoparental: em sendo o modelo “pai-

mãe-filhos” ainda compartilhado (por crianças e adultos) como ideal de família; e

simultaneamente vivermos (crianças e adultos) experiências familiares tão diversas e distantes

do modelo supracitado, como se relacionam os modelos ideais de uma cultura (família nuclear

heterossexual) e a experiência particular vivida pelos indivíduos em seus contextos de

realidade para a construção de significados acerca de um determinado objeto social (família

homoparental)?

Pelo acima exposto, torna-se relevante ouvir as crianças buscando compreender de que

forma elas têm se apropriado dos sentidos e significados culturalmente produzidos acerca da

família homoparental, a partir dos quais produzem seus próprios significados. Assim, propõe-

se, no presente trabalho, compreender os sentidos de família produzidos por crianças, com

especial enfoque para a configuração homoparental. Dada a escassez de estudos brasileiros

sobre homoparentalidade na perspectiva de crianças, resta-nos, ao menos por hora, saber o

que as crianças têm nos dito sobre família.

18

2 HOMOPARENTALIDADE E CRIANÇAS: QUAL O PROBLEMA?

Em países, como nos Estados Unidos, o estudo da homoparentalidade não é uma

novidade. Lá, desde a década de 1970, são realizados estudos a respeito dos integrantes deste

agrupamento familiar, especialmente com as crianças. Muitos desses estudos, vinculados à

Psicologia do Desenvolvimento, objetivam o acompanhamento longitudinal do

desenvolvimento de diferentes dimensões psicológicas das crianças filhas de casais

homoafetivos, como a dimensão social, afetiva, cognitiva, processo de formação de identidade

de gênero e orientação/condição sexual. Em sua maioria, os estudos revelaram não haver

diferença significativa entre as crianças filhas de casais homoafetivos e aquelas educadas em

outros contextos familiares, nem mesmo no que se refere a possíveis danos psicossociais por

causa de preconceito (FARIAS; MAIA, 2009).

No Brasil, entretanto, os estudos sobre a homoparentalidade ganharam expressividade

apenas no inicio dos anos 2000, possivelmente em decorrência da ampliação do debate e

conquistas de direitos civis dos sujeitos LGBTTT. Deste modo, a produção cientifica sobre a

homoparentalidade parece acompanhar (por vezes, adiantando-se) o debate social sobre o

tema. Todavia, poucos estudos foram publicados sobre homoparentalidade nas principais

bases de dados científicos do Brasil. Segundo Cecílio, Scorsolini-Comin e Santos (2013),

entre 2000 e 2010, totalizaram-se apenas dez. Grande parte dos trabalhos encontra-se ainda

sob a forma de teses e dissertações.

2.1 Estudos sobre homoparentalidade: onde estão as crianças?

Não por acaso, a maior parte dos trabalhos sobre homoparentalidade encontra-se

inserida dentro dos campos da Antropologia, Direito e Psicologia, com especial enfoque, à

Psicanálise. Estas disciplinas são instigadas pela homoparentalidade, como dito

anteriormente, na medida em que tangencia noções centrais a esses campos do saber:

parentesco, unidade familiar e seus direitos de sucessão, herança e reprodução, bem como a

relação sexualidade-família-subjetivação.

Podemos ainda observar que as pesquisas brasileiras sobre homoparentalidade

dividem-se em três grandes grupos: (1) aquele formado por um conjunto de reflexões teóricas

sobre o tema; (2) as pesquisas que se dedicam a ouvir casais homoafetivos; e, por fim, (3) as

que se propõem a escutar profissionais (ou estudantes em formação profissional) ligados a

área jurídica (especificamente aqueles que trabalham em processos de adoção de crianças e

adolescentes) ou de educação.

19

Em estudo realizado com 132 estudantes dos cursos de Serviço Social e Direito de

universidade publica do estado de Sergipe, Cerqueira-Santos e Santana (2015), por meio de

escalas padronizadas sobre preconceito contra homossexualidade e crenças relacionadas a

adoção homoparental, revelam que 64,6% dos estudantes de Direito e 55,5% do estudantes de

Serviço social acreditam que crianças filhas de casais homoafetivos serão humilhadas por

outras crianças e 40% dos estudantes do curso de Direito acreditam que a criança filha de

casal homoafetivo apresentará “comportamentos homossexuais” desde pequena.

Em estudo similar, Araújo e colaboradores (2007) encontraram como maior

justificativa, por parte dos estudantes de Direito, de sua rejeição à ideia de adoção de crianças

por casais homoafetivos o argumento de que isto traria prejuízos à criança. Outras crenças

encontradas eram de que a criança sofreria pela falta de referencial dos dois sexos, seria

socialmente desajustada, também seria homossexual e sofreria abuso por parte dos pais.

Em estudo com psicólogos jurídicos da cidade do Recife, Correia (2011) questionava-

se acerca do posicionamento destes profissionais diante da adoção de crianças por casais

homoafetivos. Por meio de entrevistas semiestrututadas e estudo de casos fictícios, a autora

observou que costumeiramente os posicionamentos eram favoráveis à adoção. Contudo, os

relatórios elaborados pelas profissionais colocavam em ênfase a orientação/condição sexual

do adotante, construindo proposições calcadas na divisão do trabalho parental por meio do

gênero, implicando a necessidade de dois adultos de sexos diferentes serem os responsáveis

pela criação do adotado.

No que se refere aos estudos com famílias homoparentais, deparamo-nos com

abordagens a casais homoafetivos com filhos, mas em nenhum dos estudos encontrados, as

crianças eram ouvidas. Com suporte teórico psicanalítico, os estudos buscavam compreender

o aspecto psicodinâmico do exercício da parentalidade homossexual, e as relações entre

prática da parentalidade (formas de cuidado dos filhos) e parentalidade vivenciada (remetendo

aos afetos e desejos envolvidos no processo de filiação) (ALMEIDA, 2012; MARTINEZ,

2011). Os dados encontrados por Almeida sugerem que a família homoparental, apesar de

singular, retoma aspectos da família tradicional, não se diferenciando significativa de outros

agrupamentos familiares.

Em pesquisa com dez homens membros de famílias homoparentais, da cidade de

Ribeirão Preto-SP e arredores, em busca da compreensão de seus sentidos de família, Toledo

(2008) afirma que encontrou discursos bastante divergentes quando eles se referem a sua

família de origem (afetos negativos, medo e rejeição) ou a sua atual família (sentimentos de

amor e companheirismo). Todos afirmam ter medo da rejeição por parte de familiares,

20

amigos, colegas de trabalho, porém afirmam o desejo que tiveram pela filiação, a qual seria

calcada no amor.

Curiosamente, dentre todos esses trabalhos, uma voz parece não ter visibilidade: a das

crianças, filhas, ou não, de casais homoafetivos. Afinal, se as crianças são postas como centro

do debate da homoparentalidade, qual seria a razão de sua ausência nas pesquisas brasileiras?

Não seria interessante ouvir o que elas teriam a nos dizer? Seria difícil ter acesso a elas? Ou

será que acreditamos que as crianças não têm nada de relevante a nos dizer sobre o tema?

Nesse sentido, apesar de considerarmos que estas questões mereçam ser mais bem

investigadas, reafirmamos a ideia de que, possivelmente, as crianças não são ouvidas em

decorrência de crenças socialmente compartilhadas de que elas são totalmente dependentes do

desejo do adulto, meras reprodutoras dos valores sociais, privada de certa autonomia na

construção de suas próprias significações sobre os objetos sociais (CRUZ, 2008).

Outra possibilidade, complementar a esta, poderia responder à quase absoluta ausência

das crianças nas pesquisas. A partir de dados de investigação realizada com profissionais de

uma instituição de acolhimento de crianças e adolescentes da Região Metropolitana do Recife

(RMR), Borges Neto (2014) afirma que os adultos alimentam o discurso de que o tema

homoparentalidade seria demasiadamente complexo para as crianças, que elas não

compreenderiam o tema e ficariam confusas. Como evidenciado neste mesmo estudo, tal

discurso sustentado pelos adultos alinhava-se às suas próprias concepções e dificuldade de

compreensão da homoparentalidade, bem como de suas percepções sobre o funcionamento do

psiquismo infantil, o qual é visto como, ingênuo (bobo) e imaturo.

Assim, resta-nos a questão: onde estão as crianças? Filhas de casais homoafetivos ou

não, o que elas têm a nos dizer sobre a homoparentalidade? Em pesquisa, realizada por

Borges Neto e Pedrosa (2016, artigo submetido) com crianças (6-9 anos de idade) em situação

de acolhimento institucional sobre o tema família homoparental, foi observada uma atitude de

aceitação em relação à homoparentalidade, entendo este contexto como afetivamente positivo

e cercado de cuidados para o filho do casal. Todavia, a homoafetividade era marcada pelo selo

da proibição ainda que não apresentassem justificativas que fundamentassem este

posicionamento. Alguns questionamentos decorreram desses achados: as crianças teriam

aceitado a homoparentalidade em face de seu contexto de inserção (acolhimento

institucional)? Crianças inseridas em outros contextos teriam outros posicionamentos? A

concepção de família das crianças teria relação com o modo como elas compreendem a

homoparentalidade?

21

2.2 Família: o que as crianças nos têm dito?

A relação entre família e crianças é, sem dúvida, um campo de estudos já bastante

explorado dentro da Psicologia. Em diferentes disciplinas psicológicas, estes estudos

assumem perspectivas diferentes em relação à família, a qual poderá ser abordada enquanto

instituição responsável pela socialização primária (BERGER; LUCKMANN, 1966/2007), ou

mesmo enquanto núcleo essencial de constituição subjetiva, grupo primário, constituído a

partir de laços libidinais (BARROS, 2011). Em todas elas, porém, a família ocupa lugar de

relevância, sendo a grande responsável pela constituição e bem-estar de seus membros.

Neste sentido, outra característica comum aos estudos sobre família é o foco dado a

famílias que “destoam do padrão”, “a famílias que fracassam” ou ainda a “famílias que se

transformam” – e que por isso, trazem preocupações. Isto se evidencia mais fortemente

quando se aborda o tema família associado às crianças. Neste caso, a busca por saber de que

modo elas têm compreendido suas próprias famílias parece ser motivada (ainda que não

conscientemente) pelo intento de descobrir em que medida as transformações na sociedade e

na família têm alcançado às novas gerações, tendo, portanto, maiores chances de perpetuação

e sedimentação de novos valores e crenças. A presente pesquisa não constitui exceção, na

medida em que aborda junto às crianças o tema homoparentalidade, o qual ainda é

socialmente gerador de polêmicas. Este movimento, sem dúvida, revela o quanto nossas

pesquisas encontram-se vinculadas aos questionamentos e demandas sociais.

Dada a grande quantidade de estudos, optamos por apresentar aqui uma seleção de

trabalhos recentes e que se aproximam do contexto cultural das crianças participantes desta

pesquisa, a saber, a região nordeste do Brasil5. Dois trabalhos, realizados no sul do país,

apesar da distância, apresentaram resultados interessantes e similares aos encontrados na

região Nordeste.

Segundo Muller (2010), a partir de pesquisa realizada com nove famílias moradoras de

Porto Alegre-RS – por meio de fotografias tiradas pelas próprias crianças participantes, bem

como por meio de entrevistas semiestruturadas com elas e seus familiares – as crianças

mostram-se ousadas e criativas quanto a definirem a família, incluindo nela amigos, vizinhos

queridos, parentes dos parentes e animais de estimação, podendo, porém, excluir de seu relato

de família parentes com quem não mantém relação afetiva positiva. A autora ainda afirma que

as respostas dadas pelas crianças são bastante diversas, sendo perpassadas por uma série de

5 Temos clareza de que a escolha de uma mesma região sociogeográfica está longe de igualar os contextos e a

multiplicidade de experiências possíveis nela. Sabemos que o Nordeste abarca realidades cultural, educacional,

econômica, etc. das mais variadas. Todavia, ainda sim, adotamos esta circunscrição por motivos de ordem

prática.

22

possíveis critérios de definição da família. Corroborando esta ideia, Moreira, Rabinovich e

Silva (2009) afirmam que para as 60 crianças baianas, na faixa etária de 6-12 e de diferentes

contextos socioeducacionais, a família não se resume apenas àquelas pessoas com quem

residem, sendo também compreendida a partir do afeto, do cuidado e de sua estrutura

(existência de determinados papéis familiares), destacando-se a importância da geração como

elemento mais importante na organização da dinâmica familiar, em detrimento, por exemplo,

do gênero.

Um ponto, porém, torna-se especialmente relevante para que tenhamos clareza do que

as crianças têm dito sobre família6, a saber, a variedade metodológica adotada pelas

pesquisas, que geram dados bastante diversos. Esta multiplicidade de dados encontrados nas

pesquisas com crianças pode ser interpretada de diferentes maneiras, entre elas: (1) a própria

complexidade do fenômeno em questão (família); (2) seu caráter sócio-histórico, que implica

em constantes transformações, tanto objetivas, quanto no modo como é percebida pelos

sujeitos.

Todavia, no que tange em específico às pesquisas realizadas com crianças, destacamos

a importância do método adotado, uma vez que percursos metodológicos diversos produzem

dados e interpretações diferentes sobre a compreensão das crianças.

Assim, observamos que trabalhos que buscam apreender a compreensão de crianças

sobre família a partir de procedimentos de coleta e de análise únicos e mais focados no

conteúdo de suas falas e expressões, sem levar em conta o processo pelo qual ocorre esta

compreensão, revelam certa dificuldade em encontrar sentido nos dados coletados. As

respostas das crianças são mais padronizadas, e alinham-se a modelos familiares mais

amplamente compartilhados, a saber, o modelo de família nuclear “pai-mãe-filhos” (SILVA;

AVELAR, 2014; DESSEN; RAMOS, 2010; VENTURINI; BAZON; BIASOLI-ALVES,

2012).

Em contrapartida, estudos que têm se utilizado de abordagens plurimetodológicas e

focalizadas também no processo mediante o qual as crianças compreendem o mundo, têm

encontrado dados bastante interessantes acerca de suas compreensões de família. De modo

sintético, algumas destas pesquisadas realizadas com crianças de diferentes idades, níveis

socioeducacionais, naturalidades, contextos de inserção (instituição educacional, instituição

de acolhimento, etc.) e configurações familiares parecem indicar que, em grande medida, as

crianças compreendem família em dois planos distintos que se articulam de diferentes

6 Evidentemente, a própria natureza do objeto social família já é complexa em decorrência de seu caráter

histórico e cultural.

23

maneiras, podendo, inclusive, gerar conflitos e sofrimento. São eles: o individual versus o

coletivo, ou, em outras palavras, as suas experiências de família versus o modelo de família

nuclear, amplamente compartilhado em nossa sociedade. Vejamos alguns desses trabalhos.

Partindo do aporte teórico da Teoria das Representações Sociais, Ribeiro (2011)

propôs-se a investigar as representações sociais de família por crianças da cidade do Recife-

PE. Em sua investigação, a autora contou com a participação de 69 crianças, de ambos os

sexos, na faixa etária de 09 a 10 anos, estudantes da rede pública e privada de ensino, o que

segundo a autora, possibilitou-lhe abranger uma maior diversidade de realidades

socioeconômicas e culturais. Utilizando-se de abordagem plurimetodológica, composta por

questionários, técnica de associação livre, desenhos e grupos focais, Ribeiro investigou o

núcleo central das representações de família, bem como a percepção das relações entre tais

representações e o contexto familiar e social nos quais as crianças estavam inseridas.

Os resultados apresentados pela autora são bastante interessantes. A partir da palavra

indutora ‘família’, os dois grupos, o da escola privada e o da escola pública, obtiveram

frequências de palavras bastante distintas: enquanto para as crianças de escola privada as

palavras mais frequentes estavam relacionadas a afetos positivados (‘amor’, ‘união’, ‘afeto’,

‘carinho’, ‘amizade’); nas respostas das crianças de escola pública predominaram (76,66%),

em frequência, palavras relativas a parentesco (‘avó’, ‘mãe’, ‘tia’, ‘irmão’, etc.). Neste

sentido, é interessante ressaltar que, em frequência, em ambos os grupos, no que tange à

palavra relacionada a parentesco, os ‘avós’ (e termos correlatos) ficaram em primeiro lugar,

seguidos da palavra ‘mãe’ (e termos correlatos).

No entanto, quando solicitadas a hierarquizar as palavras por ordem de importância, a

palavra ‘mãe’ figura em primeiro lugar, seguida da palavra ‘amor’, entre os estudantes de

escola pública. Ainda sobre este, percebe-se que ele apresentou uma maior variedade de tipos

de parentesco, o que, segundo a autora, pode estar relacionado ao fato de estas crianças

possuírem um maior convívio com sua família extensa, do que as crianças de escola privada

(tais dados foram obtidos pela pesquisadora através de questionário previamente preenchido

pelas crianças, os quais apontaram uma diversidade de configurações familiares vividas,

principalmente as crianças da escola pública). Tal achado parece-nos indicar certa relação

entre o contexto vivido e as significações produzidas pelas crianças. Todavia, como veremos

mais à frente, o contexto no qual vive a criança e suas experiências não são determinantes de

suas percepções de família.

A partir dos dados supracitados, Ribeiro (op. cit.) indica-nos que o núcleo central das

representações sociais de família das crianças pesquisadas é composto pelos termos: ‘mãe’,

24

‘pai’, ‘amor’, ‘carinho’ e ‘união’, o que parece ser indicativo da importância do modelo de

família nuclear na construção do ideal de família das crianças. Assim, Ribeiro, de modo geral,

aponta-nos que as crianças apresentariam uma visão idealizada de família, calcada em afetos

positivados e no modelo de família nuclear, o que nem sempre coincide com as experiências

por elas vividas em suas famílias, o que pode ser evidenciado em etapas posteriores da

pesquisa, na realização dos grupos focais e desenhos. Nesses momentos, as crianças puderam

expor de maneira mais detalhada suas concepções e vivências de família, revelando, por

vezes, certas situações de sofrimento e configurações familiares que escapavam ao modelo de

família nuclear. Todavia, ainda assim, a família é apresentada como um lugar de experiências

positivas.

Fato bastante curioso relatado por Ribeiro (op.cit.) é que, durante a etapa de desenho,

onde se solicitava às crianças que desenhassem “a família” e posteriormente “sua família”,

pôde-se perceber o emergir de um conflito entre o retrato do que deve ser uma família

(modelo ideal) e o desenho de sua própria família (família vivida). O conflito foi apresentado

por uma menina que perguntava a pesquisadora se deveria ou não incluir a figura de seu pai

no desenho (que residia com ela e sua mãe), acreditando que o ‘certo’ deveria ser incluí-lo

uma vez que estava desenhando a família e, nas palavras da menina: “porque ‘a família’,

naturalmente, é a família assim né?!”, referindo-se ao modelo de família nuclear (pai, mãe e

filhos). Na etapa referente aos grupos focais realizados com as crianças, destacamos

novamente o surgimento do conflito família idealizada x família vivida. Nas palavras de

Ribeiro:

As situações expostas pelas crianças e suas falas sugerem conflitos entre a

realidade vivida e o discurso idealizado de família. As questões foram quase

sempre seguidas de pausas/silêncio, expressões de que precisavam elaborar,

sobretudo, quando se deparavam com a falta do pai nas palavras

hierarquizadas e nos desenhos. O sentimento expresso foi de incompletude,

pois segundo eles próprios, “família não é só isso”. (p. 89)

Assim, ao se depararem com suas realidades familiares divergentes do modelo nuclear

de família, expresso, entre outros, pela “falta da figura do pai”, as crianças dão indícios de que

vivenciam certo conflito. Por fim, contudo, parecem ater-se ao modelo nuclear, vendo seus

familiares, de certo modo, incompletos, afinal “família não é só isso”. Tal posicionamento

por parte das crianças nos leva a questionar: se no que tange a sua própria experiência

familiar, as crianças tendem a vê-la como incompleta frente ao modelo idealizado, de que

maneira reagiriam frente a um modelo de família homoparental, cercado por polêmicas, já que

além de fugir do formato “pai-mãe-filhos”, caracteriza-se por existirem “dois pais” ou “duas

25

mães”, podendo, inclusive, distanciar-se do conceito de família pautado nos laços

consanguíneos? De que maneira se posicionariam frente ao novo? Considerá-lo-iam como

sendo uma família? Também o veriam como incompleto?

Em recente dissertação de mestrado, Lira (2012) propôs-se também a investigar a

significação de crianças sobre família. A partir deste trabalho, realizado por meio de oficinas

de brincadeira – propunha a um conjunto de crianças que brincassem de família, bem como,

em momentos posteriores com as mesmas crianças, propunha conversarem sobre as oficinas –

o autor encontra achados interessantes, não só sobre o objeto família na perspectiva das

crianças em situação de acolhimento institucional, mas sobre o próprio processo de

construção das significações.

Feitas as ressalvas necessárias quanto aos limitadores da escolha por parte da criança

do ‘personagem’ por ela escolhido a ser desempenhado na ‘brincadeira de família’ (número

de crianças, negociação com os parceiros, etc.), os personagens mais frequentemente

escolhidos são aqueles pertencentes ao modelo de família nuclear (pai, mãe e filhos), ainda

que o ‘personagem’ escolhido não tenha sido, necessariamente, o ‘personagem’ brincado.

Nesse sentido, ressalta-se que foram ‘brincadas’ diferentes configurações familiares, com

destaque para as famílias monoparentais. Ainda que de maneira cautelosa, poderíamos dizer

que os dados parecem estar em consonância com os de Ribeiro (2011), na medida em que

apresentam o modelo de família nuclear (quando da escolha dos personagens) e diferentes

vivências e personagens da família (quando da brincadeira propriamente dita).

De modo geral, Lira (op. cit.) conclui que as significações produzidas pelas crianças

são “construções microgenéticas no aqui e agora das interações, as quais se apresentam

imprevisíveis enquanto recombinação de significados advindos dos distintos parceiros

interacionais imersos em um contexto sócio-histórico.” (p. 144). Assim sendo, tal afirmativa

indica-nos que os sentidos produzidos pelas crianças, circunscritos ao contexto interacional,

estão fundamentalmente sujeitos a constantes transformações, caracterizando o espaço

interacional como local propício ao estudo da construção e mudança dos significados e

sentidos culturalmente compartilhados. Tal característica dos processos de significação (a

saber, o caráter interacional e calcado no aqui-agora) torna-se importante na medida em que

contribuirá para formulação do método da presente pesquisa, como será visto mais a frente.

Lauz e Borges (2013), em pesquisa com crianças de nove e dez anos de idade, também

em situação de acolhimento institucional, porém no Rio Grande do Sul, encontram resultados

similares ao de Lira, apontando-nos a tensão existente nas significações de família, entre a

experiência familiar prévia ao acolhimento institucional e o modelo de família nuclear. Esta

26

tensão, segundo os autores, revelava-se também no momento de brincadeira de faz de conta,

quando as participantes oscilavam suas atuações entre uma família composta apenas por mães

e seus filhos (configuração de origem das crianças participantes da pesquisa) e modelo

nuclear “pai-mãe-filhos”.

Conclusões similares são apontadas por Santos (2015). Em seu trabalho, a autora

investigara a ontogênese das representações sociais de família em crianças na faixa etária de 4

a 6. Participaram de sua pesquisa 28 crianças que frequentavam instituição pública de

educação infantil da cidade do Recife-PE, localizada em bairro da periferia da cidade. O

procedimento empregado fundamentava-se em um planejamento de uma peça teatral, por

parte das crianças, a respeito de família. Como resultados, a autora afirma que a família é

percebida em suas dimensões afetivas, educacionais e de sustento, sendo perpassada por

conflitos e tensões entre individualidade versus coletividade, experiência familiar versus

modelos culturalmente partilhados, família extensa versus família nuclear, parentalidade

versus vinculação.

As pesquisas apresentadas trazem informações com implicações teórico-

metodológicas para a escuta de crianças sobre família: (1) a necessidade de abordagens

plurimetodológicas (com diferentes instrumentos ou meios de expressão para as crianças); (2)

o fenômeno família aparece na compreensão das crianças a partir de articulações, conflitos e

diferentes planos de inserção, especialmente entre individual e coletivo. Deste modo, temos

pistas interessantes para a elaboração do método que será apresentada mais à frente. Antes,

contudo, são estas mesmas pistas que, juntamente com a escassez de pesquisas que tratem o

tem homoparentalidade na perspectiva das crianças, nos permitem formular o problema que

nos norteará na pesquisa: qual a relação entre os modelos ideais de uma cultura sobre o objeto

social família (nuclear e heterossexual) e experiências particulares vividas pelas crianças em

seus contextos de construção de significados acerca do mesmo objeto, em especial, a família

homoparental? Na tentativa de responder a esta pergunta, propomo-nos a seguir os seguintes

objetivos:

Objetivo Geral: compreender as significações de família produzidas por crianças, com

especial enfoque para a configuração homoparental;

Objetivos Específicos: (a) Identificar as concepções das crianças acerca da noção de

família, buscando seus elementos definidores e articulações entre eles.(b) Identificar possíveis

articulações entre seus sentidos de família e a compreensão que têm sobre homoparentalidade.

Antes, contudo, faz-se necessário expormos nossa compreensão acerca dos processos

de significação.

27

3 PERSPECTIVA TEÓRICA: EM BUCA DE UM SENTIDO

O estudo dos processos de significação desde sua origem tem sido alvo de interesse de

diversas áreas do conhecimento, como a Filosofia, a Linguística, a Semiótica e a Psicologia,

caracterizando-se, portanto, como um campo multidisciplinar e, talvez por isso, com grande

número de teorias, proposições, indefinições e contradições.

De fato, para alguns autores, como Bruner (1997), o estudo do significado e seus

processos de construção ganham lugar de destaque dentro de uma psicologia de caráter

cultural. No célebre livro intitulado Atos de Significação, Bruner chega mesmo a dizer que o

estudo adequado do homem passa, necessariamente, pela compreensão dos processos de

significação, sendo o conceito de significado central à Psicologia. O autor vê no estudo dos

significados uma possibilidade de lidarmos com alguns pontos tensos desta disciplina7.

Em primeiro lugar, o estudo dos significados nos possibilitaria uma compreensão

menos individualista do psiquismo humano, haja vista que o ato de significar só se tornaria

possível mediante o encontro do indivíduo com os sistemas simbólicos de sua comunidade.

Nesse sentido, afirma Bruner (op. cit.), os significados funcionariam como uma espécie de

caixa de ferramentas comunitária que permitiria ao individuo interpretar o mundo e a si

mesmo. Ora, é esta mesma noção de sistemas simbólicos, e de um psiquismo articulado com

seu contexto sociocultural, que nos possibilitaria uma aproximação com outros campos das

ciências humanas, como a História, a Antropologia e a Sociologia.

Como conceito articulador desta aproximação, e típico deste modo de concepção da

Psicologia, Bruner (1997) propõe a cultura, concebida na mesma perspectiva do antropólogo

Clifford Geertz (1978), o qual enfatiza o caráter semiótico da cultura, bem como sua forma de

teias tecidas pelo humano, nas quais ele próprio encontra-se amarrado (lógica de mútua

constituição cultura-humano); uma espécie de rede de significações. Assim, em Bruner, os

conceitos de significado e cultura mostram-se intimamente relacionados, uma vez que a

própria cultura é concebida como uma teia se significados.

Todavia, conforme nos aponta Correia (2009), apesar de frequentemente utilizado no

campo da Psicologia e da importância a ele atribuída, o termo “processos de significação” não

7 É importante destacar que Bruner escreve o livro Atos de significação no contexto pós-revolução cognitivista,

apresentando uma série de desafios que, à época, a Psicologia enfrentava enquanto disciplina. Apesar do tempo

transcorrido, acreditamos que muitos destes desafios se fazem presentes ainda hoje na Psicologia, a saber: a

tendência a uma interpretação individualista do humano e o isolamento em relação a outras disciplinas, entre

outros.

28

parece possuir uma definição clara. Nesta direção, Smolka8 (2004) afirma que ao nos

depararmos com a questão da significação encontramos uma série de termos postos, por

vezes, como sinônimos, o que acabam contribuindo para a indefinição do que entendemos

pelo termo. Ao falarmos em significado, costumamos também pensar em “sinal, signo,

símbolo, significante, imagem, ideia, noção, concepção, conteúdo, conceito, palavra,

referente...” (SMOLKA, 2004, p. 36). E, continua a autora, muitos são os que reconhecem as

dificuldades conceituais e terminológicas do termo signo (e, portanto, dentro de sua

perspectiva, de significação), que se encontra em um constante jogo de identificação e

distinção com os termos citados.

Ante este emaranhado de noções e conceitos, que se sustenta a partir de diferentes e

conflitantes posicionamentos teóricos e filosóficos no que se refere à linguagem e seu lugar na

experiência e constituição do humano, a autora propõe-nos abandonarmos uma ontologia do

signo (entendida como busca de sua natureza) sendo-nos possível tão somente uma

historiografia, ou seja, uma tentativa de apreendermos a noção de signo a partir dos diferentes

quadros referenciais no qual ela se encontra inserida, nos diferentes momentos históricos do

conhecimento humano.

Apesar de a noção de signo está implicada com processos de significação, construímos

nossas reflexões a partir deste segundo termo, por ser mais abrangente, uma vez que o signo

dele faz parte. Assim, ao falarmos em significação, referimo-nos, aqui, à possibilidade de o

sujeito dar sentido a objetos, físicos ou sociais, incluindo seu próprio corpo, suas experiências

sensoriais/motoras, e suas experiências subjetivas, desde a mais tenra idade, ou seja, bem

antes de se configurar, explicitamente, uma capacidade cognitiva de representação ou de

mediação na relação sujeito-objeto. Nesse sentido, aproximamo-nos de Furlan (2004), quando

afirma que a significação extrapola o campo da linguagem, considerando que linguagem é

signo.

Por sua vez, Correia (2009) propõe que, apesar da multiplicidade de abordagens, é

possível depreender-se três componentes fundamentais aos processos de significação: (1) a

interação, na medida em que sempre haverá um outro que instigue a produção de significados;

(2) o objeto, sobre o qual os significados são construídos; (3) e a atenção dirigida, pois

haveria a necessidade de uma intencionalidade em dar significado ao objeto. A respeito da

intencionalidade do processo de significação, possuímos certa ressalva, haja vista que, como

8 Destaca-se que a autora parte de uma perspectiva socioculturalista, tendo sua base nos trabalhos de Lev

Vigotsky (1896-1934), que concebe a linguagem e, consequentemente, a noção signo fundamentais ao processo

de significação.

29

afirma Furlan (2004) a rede de significações mais nos possui do que nós a ela. Nesse sentido,

nem sempre temos consciência dos significados nos quais estamos imersos. Entretanto, vale

ressaltar que há diferentes acepções para o termo intencionalidade, dentre os quais a não

obrigatoriedade de uma tomada de consciência no sentido de consciousness

(reflexão/comunicação), mas no sentido de awareness (dar-se-conta de eventos no ambiente e

de seus afetos) (ADES, 1997).

Até o presente momento, expusemos argumentos em favor, simultaneamente, da

relevância e das dificuldades do estudo dos processos de significação. De modo similar ao

objeto social família, conforme apresentamos na introdução deste trabalho, o estudo dos

processos de significação é marcado pelo aparente paradoxo da relevância/indefinição. De

fato, é possível entendermos que esta indefinição, na verdade, seja fruto da multiplicidade de

perspectivas sobre esse fenômeno, que, por sua vez, deriva da própria relevância dele.

Também em conformidade com o conteúdo acima apresentado, depreende-se que, apesar da

multiplicidade de perspectivas, uma dimensão das significações tem merecido destaque: a

interacional. Assim, a partir de agora apresentaremos, tendo por aporte maior o

sociointeracionismo, os conceitos que norteiam nossa compreensão e análise dos processos de

significação.

O conceito de interação social, e seus desdobramentos, mostram-se frutíferos na

análise dos processos de significação na medida em que concebemos que esses têm por base a

sociabilidade humana, ocorrendo dentro do campo interacional. Carvalho, Império-

Hamburger e Pedrosa (1996) concebem o ser humano como ser social, ou seja, ele afeta e é

afetado pelo coespecífico e sua ontogênese só ocorre em um meio social – e, em decorrência,

em um ambiente cultural e historicamente estruturado. Neste sentido, consideramos o

processo de significação enquanto fenômeno interacional, não destoando da noção trazida por

Bruner (1997), citada anteriormente, de ver nos estudos da significação a possibilidade de

escaparmos de uma noção individualista do humano. Contudo, resta-nos saber sobre que

bases se sustenta a sociabilidade humana. Quais os seus princípios ou condições de

existência?

Carvalho et al. (op cit.) propõem a existência de princípios para a sociabilidade

humana, quais sejam: (1) a orientação da atenção; (2) atribuição ou compartilhamento de

significados e (3) persistência de significados. O principio de orientação da atenção informa-

nos que, dentro do campo interacional social, a atenção dos indivíduos volta-se

prioritariamente para seus coespecíficos, regulando as ações de um pelos outros. Em outras

palavras, podemos entender que dentre um conjunto variado de informações ambientais, o

30

humano, inserido que está em um campo interacional social, tende a recortar e ressaltar outro

humano como estimulo privilegiado, sendo, potencialmente, regulado por este.

O fenômeno interacional humano complexifica-se na medida em que o estimulo

ambiental preferencialmente recortado (o coespecífico), em decorrência de sua ambiguidade e

complexidade contextual, gera a possibilidade de interpretação da informação, sendo esta

interpretação o que instigaria, segundo as autoras, a atribuição de significados que, por sua

vez, abrem espaço para um amplo número de desenlaces possíveis aos episódios interacionais,

dificultando o estabelecimento de relações de causa e efeito.

Deste modo, compreender o processo de significação a partir desta perspectiva possui

sérias implicações na forma de pensar e fazer pesquisa, sendo a principal delas a

impossibilidade de estabelecer relações deterministas entre as significações e seus contextos

de produção, e consequentemente fazer previsões, restando-nos a compreensão do fenômeno

por meio de interpretações plausíveis e producentes.

Compreendendo que os processos de significação ocorrem em contexto de interação

social, faz-se necessário informar aquilo que reconhecemos como sendo os conceitos que

relevam as dimensões do processo de significação. Para tal, tomaremos por base a perspectiva

teórico-metodológica da Rede de Significações (RedSig), a qual, por sua vez, tem se ancorado

em autores da perspectiva histórico-cultural e social da Psicologia (ROSSETTI-FERREIRA,

AMORIM e SILVA, 2004).

A RedSig surge como uma proposta teórico-metodológica para compreensão do

desenvolvimento humano, construída pelos integrantes do Centro de Investigações sobre

Desenvolvimento Humano e Educação Infantil (CINDEDI), vinculado à Universidade de São

Paulo. Com a RedSig os pesquisadores buscavam por um “paradigma mais adequado para a

análise da complexidade de elementos de ordem pessoal, relacional e contextual que

interagiam no processo de desenvolvimento de bebês, de seus familiares e das educadoras” no

contextos de creches (ROSSETTI-FERREIRA, 2004, p.16).

Com esta motivação, o grupo do CINDEDI passou a debruçar-se sobre os mais

diferentes autores e suas contribuições a fim de alcançarem o objetivo de melhor

compreenderem o desenvolvimento humano, a partir de seus trabalhos empíricos

desenvolvidos majoritariamente no contexto de educação infantil. Neste debruçar-se, o grupo

aproximou-se daquilo que se tem denominado, em Psicologia, de uma visão sistêmica, com a

qual se busca compreender fenômenos complexos (como o desenvolvimento humano) em

suas múltiplas dimensões, e de maneira integrada e inclusiva, ampliando o foco do indivíduo

31

para as pessoas em interação e abandonando perspectivas unidirecionalistas acerca da relação

pessoa-ambiente. (ROSSETTI-FERREIRA, 2004).

É a partir da análise de dados empíricos, utilizando-se da perspectiva sistêmica, que os

participantes do CINDEDI depararam-se com o fato de que será central na estruturação da

proposta da RedSig, a saber, que mais relevante do reconhecer os diferentes fatores

envolvidos nos processos investigados, seria investigar as múltiplas articulações que esses

fatores estabelecem, as quais, por sua vez, permitiriam diversas significa-ações. A partir daí,

os atos de significação, tais quais concebidos por Bruner (1997), passam a ser compreendidos

como centrais no processo de desenvolvimento humano. Assim, entendemos estarem lançadas

as bases da RedSig: a investigação das diversas articulações (rede) de significações

envolvidas no processo de desenvolvimento humano.

Mas, afinal, de que maneira uma perspectiva teórica acerca do desenvolvimento

humano poderia contribuir para a compreensão dos processos de significação? Como

explicitado anteriormente, os atos ou processo de significação ocupam lugar de destaque

dentro da RedSig. Ocorre que, como bem observado por Spink (2004), por vezes, parece

ocorrer dentro da proposta da RedSig certa confusão ou aproximação excessiva, enquanto

objeto de estudo, entre as interações sociais em ambientes de creche e o estudo do

desenvolvimento humano. Em outras palavras, os conceitos apresentados na RedSig prestam-

se tanto à análise de situações interativas (e as significações delas decorrentes), como do

desenvolvimento humano em si. Muito possivelmente, isto decorre da concepção adotada de

que o desenvolvimento humano se dá por meio de e nas interações sociais. (ROSSETTI-

FERREIRA, AMORIM e SILVA, 2004).

Deste modo, isto torna plausível que, neste trabalho, realizemos uma apropriação dos

conceitos da RedSig (utilizados originalmente para descrever o desenvolvimento humano) na

tentativa de compreensão dos processos de significação. Outro fator importante que precisa

ser destacado, e que também possibilita esse “trânsito” de conceitos, é que ambos os

fenômenos (desenvolvimento humano e processos de significação) são tomados como

inseridos no campo dos fenômenos interacionais, a partir de uma perspectiva

sociointeracionista. Assim, esperamos estar justificada aplicação dos conceitos da RedSig ao

estudos dos processos de significação.

Dentre os conceitos apresentados pela RedSig, quatro deles mostram-se frutíferos

instrumentos para a análise dos processos de significação. São eles matriz sócio-histórica,

pessoa, múltiplas dimensões temporais e, em especial, a metáfora de rede.

32

Tal qual proposta por Rossetti-Ferreira et al. (op cit.), a matriz sócio-histórica

caracterizar-se-ia como sendo “de natureza semiótica, composta por elementos sociais,

econômicos, políticos, históricos e culturais” (p. 26), mantendo uma inter-relação dialética

entre elementos discursivos e condições socioeconômicas. Diferentemente da ideia tida por

muitos, a matriz sócio-histórica não possui caráter homogêneo, nem tão pouco determinístico.

Pelo contrário: os discursos dela constituintes são polifônicos e polissêmicos, e as condições

socioeconômicas as mais diversas. As autoras apresentam ainda outra característica da matriz

que possibilita articular as dimensões macro e micro, indivíduo e contexto sócio-histórico: a

sua materialidade e concretude. A matriz sócio-histórica faz-se presente e se atualiza nas

interações cotidianas das pessoas, podendo ser observada na organização de espaços,

discursos e por meio do próprio corpo. Assim sendo, torna-se clara a articulação e relação de

mútua constituição entre o contexto sócio-histórico e as pessoas, outro conceito da RedSig.

Na tentativa de distanciarem-se de conceitos como o de indivíduo e de sujeito, que,

por vezes, podem dar a ilusão de um humano descontextualizado, as autoras propõem o termo

pessoa, a fim de garantir a noção de um ser humano fundamentalmente relacional. Além da

ideia de relação, o conceito de pessoa traz a concepção de humano múltiplo, no qual

convivem diferentes vozes, uma vez que por diversas vozes este foi constituído – noção de

inspiração bakitiniana. Nas palavras das autoras (op cit., p. 25):

A pessoa é múltipla porque são múltiplos e heterogêneos os vários outros

com quem interage. A pessoa é múltipla porque são múltiplas as vozes que

compõem o mundo social e os espaços e as posições que vai ocupando nas

práticas discursivas. Essa multiplicidade de vozes e posições que dialogam

entre si submetem a pessoa, mas, ao mesmo tempo, preservam a abertura

para a inovação e para a construção de novos posicionamentos e processos

de significação acerca do mundo, do outro e de si mesma.

Ainda em sua argumentação sobre a noção de pessoa, as autoras propõem algo

considerado fundamental: mesmo que constituído dentro de uma matriz sócio-histórica, e em

diferentes contextos, em virtude da polissemia das significações e da particularidade do lugar

espaço temporal e discursivo por ela ocupado, a pessoa mantém sua singularidade,

possibilitando realizar sua própria interpretação da realidade vivida.

No que tange em especial às crianças, esta noção de não passividade é merecedora de

estaque, tendo em vista que, culturalmente, a criança é tida enquanto ser incompleto, pouco

competente socialmente e dependente do desejo do adulto (CRUZ, 2008). Assim, longe de um

mecanismo de simples adaptação ou internalização por parte da criança, a apropriação de

33

significados dá-se de maneira ativa por parte dela, tornando-se a criança, “inescapavelmente”

coprodutora dessas significações (SMOLKA, 2004; ROSSETTI-FERREIRA, AMORIM e

SILVA, 2004). Tal concepção nos remete, de certo modo, ao já citado conceito de reprodução

interpretativa de Corsaro (2011), na medida em que ele traz, para além de uma reprodução do

já instituído, uma interpretação do vivido, garantindo particularidades a cada criança.

As significações, assim como todo acontecimento, estão situadas em contexto espaço-

temporal. Ao falarem do papel do tempo nos processos de desenvolvimento (em nosso caso,

nos referimos aos processos de significação), Rossetti-Ferreira et al. (2004) postulam a

existência de quatro dimensões temporais que se encontram superpostas e inscritas nos

diferentes contextos e espaços, atualizando-se continuamente no aqui-agora, conferindo ao

presente uma plenitude temporal.

A primeira destas dimensões é o tempo histórico, locus do imaginário social,

construído durante períodos relativamente longos de uma sociedade, sendo responsável pelas

formações discursivas e ideológicas, compondo o interdiscurso ou rede coletiva de

significações. Em nosso trabalho, esta dimensão temporal apresenta-se por meio da noção do

modelo de família “pai-mãe-filhos”, sendo percebido na fala das crianças (como veremos

mais adiante) justamente por seu amplo grau de compartilhamento e compreensão

(interdiscurso e rede coletiva de significações), bem como por seu caráter normativo.

Temos ainda o tempo vivido, o qual se refere às experiências e práticas discursivas

construídas ao longo de nosso processo de socialização, compartilhadas por amigos, parentes

e pessoas próximas. Aqui, damos ênfase à ideia de experiências familiares vividas pelas

crianças, a qual permitiu a formulação da pergunta norteadora da presente pesquisa e mostrou

importante atravessamento das significações de família.

Em terceiro lugar, o tempo prospectivo ou de orientação para o futuro, referindo-se às

expectativas, desejos e metas pessoais e coletivas, planos ou antecipações que delimitam ou

impulsionam as significações.

A análise destas três dimensões temporais, contudo, só se torna possível a partir de

suas articulações no tempo presente ou microgenético, caracterizado pelas trocas discursivas

interpessoais no aqui-agora. Faz-se necessário destacar, que esta dimensão temporal não é

simplesmente o cenário de articulação das anteriores, possuindo existência própria e forte

influência sobre os processos de significação. Salientamos também que as significações em

suas dimensões temporais possuem caráter dinâmico, sofrendo transformações e alternância

de destaques em um constante jogo de figura-fundo. Em outras palavras, as dimensões

34

temporais permanecem em um constante jogo de articulações, sobreposições, justaposição e

prevalência.

Ora, tais dimensões, como dito anteriormente, encontram-se, atualizam-se e perpassam

os contextos e campos de interação, delimitando e possibilitando a construção dos

significados. É por essa razão que a compreensão dessas diferentes dimensões temporais

torna-se não só pertinente, mas relevante no estudo dos processos de significação e, portanto,

para a presente pesquisa.

Por fim, apresentamos aquilo que consideramos a mais interessante contribuição da

RedSig no estudo dos processos de significação, a saber, a metáfora da rede e suas

implicações. A metáfora da rede é incorporada pelas autoras da RedSig com o propósito de

dar conta da complexidade do desenvolvimento humano, decorrente da multiplicidade de

articulações entre os elementos que se relacionam ao processo. No estudo dos processos de

significação, acreditamos deparar-nos com a mesma complexidade. Decorrente de sua

estrutura em rede, as significações podem assumir diferentes configurações ao longo do

tempo, transformando-se num constante jogo de figura-fundo, onde os significados alternam-

se em relevo. Assim, um mesmo conjunto de significados pode organizar-se em diferentes

arranjos, a depender dos aspectos presentes na situação onde as significações se atualizam e

do fluxo interacional. Nesse sentido, a rede pode possuir momentos e pontos de maior

flexibilidade e polissemia, bem como momentos e pontos mais rígidos e estritos.

Outra característica fundamental da rede (que se articula com o conceito de pessoas) é

a presença de confrontos e conflitos entre as significações. A rede de significações parece

configurar-se de maneira especifica para cada pessoa, haja vista que cada uma ocupa um

ponto singular na rede, em decorrência da impossibilidade de duas pessoas ocuparem a

mesma posição espaço-temporal e discursivo (HARRÉ, apud ROSSETTI-FERREIRA,

AMORIM e SILVA, 2004). Deste modo, a pessoa é simultaneamente múltipla e singular.

Todavia esta multiplicidade, que gera a singularidade, decorre das inúmeras vozes que a

compõem, as quais nem sempre são consonantes, o que acaba por fazer dos embates, crises e

conflitos uma realidade constitutiva da rede de significações.

A partir do tema de interesse deste trabalho (família e homoparentalidade) e da

apresentação, que acabamos de fazer, do modo como concebemos nosso objeto de estudo (as

significações e seu processo de construção), resta-nos traçar os objetivos e delinear o método

a ser seguido a fim de que respondamos a pergunta norteadora desta pesquisa. Deste modo,

adotadas as concepções teóricas acima descritas, lancemo-nos no desafio de elaboração

metodológica que dê conta das significações em sua complexidade.

35

4 MÉTODO

A elaboração do método é, em nosso entender, o momento mais criativo de uma

pesquisa. É nele que o pesquisador encontra a possibilidade de, articulando seus objetivos de

pesquisa e sua perspectiva teórica, desenvolver estratégias de aproximação ao objeto de

estudo, as quais devem ocorrer de maneira precisa e refinada, caso contrário, correremos o

risco de que o material coletado incorra em um grande conjunto de informações pouco

significativas (MINAYO, 2009). Porém, nem só de criatividade vive o método. Lembremos

que a ciência surge enquanto uma busca por conhecimentos confiáveis e plausíveis que

aumentem nossa compreensão sobre o mundo.

Para muitos, esta confiabilidade das informações é obtida por meio da padronização

absoluta dos instrumentos e procedimentos de coleta, aliadas com a ideia de neutralidade do

pesquisador. Nós, porém, adotamos uma perspectiva de que a confiabilidade dos dados

encontra-se no rigor da descrição de seus modos de produção. É esta descrição rigorosa que

nos permitirá compreender e levantar questionamentos sobre as conclusões da pesquisa.

Ademais, no que tange a neutralidade, pensamos que o próprio dado é construído por meio da

observação e mediante um processo de interação entre o pesquisador (e sua perspectiva

teórica) e o material coletado (CARVALHO, IMÉRIO-HAMBURGER & PEDROSA, 1999),

sendo, portanto, impossível um olhar neutro diante do fenômeno estudado.

Assim, passemos a descrição dos procedimentos adotados na realização desta

pesquisa.

4.1. Participantes e contexto

Participaram da pesquisa 32 crianças (17 meninos e 15 meninas) com idades variando

entre quatro anos e cinco meses (4;5) 9

e seis anos e quatro meses (6;4), com média de idade

igual a cinco anos e quatro meses (5;4), moradoras da Região Metropolitana do Recife (RMR)

e que frequentavam um dos Centros Municipais de Educação Infantil (CMEI) ligado à

Secretaria de Educação da Prefeitura do Recife. Um destes CMEI, localizado em bairro da

periferia da cidade do Recife, foi o local de realização da coleta de dados. O CMEI em

questão atende a população do bairro onde se localiza, acolhendo crianças desde o berçário

até o grupo 5, portanto, com idades variando entre três primeiros meses de vida até seis anos e

quatro meses, quando da realização da coleta de dados. A instituição conta com equipe

9 Desde já, informamos que adotamos a convenção (anos;meses) para representarmos as idades das crianças. Em

outros momentos, quando da descrição de episódios interativos, acrescentamos ainda a informação do gênero

socialmente atribuído à criança: (gênero socialmente atribuído/anos;meses).

36

formada por professores, auxiliares de desenvolvimento infantil (ADIs) e estagiários, além da

equipe de gestão e profissionais terceirizados de limpeza. Este CMEI, à época da pesquisa,

tinha sido inaugurado há pouco mais de um ano. Ele dispõe de estrutura física ampla e em

excelente estado de conservação e possui ambientes específicos para as atividades ligadas a

habilidades e temas a serem trabalhados com as crianças: leitura multimídia, faz de conta,

corpo e movimento, etc. Dois desses ambientes foram utilizados para a realização da

pesquisa: a sala multimídia e a biblioteca. A esse respeito falaremos adiante.

Faz-se necessário informar que o presente projeto de pesquisa encontra-se inserido em

um projeto mais amplo, coordenado professora Maria Isabel Pedrosa, intitulado “Práticas

sociais e cultura do grupo de brinquedo: concepções de adultos e perspectivas de crianças”

que objetiva investigar o desenvolvimento de crianças pequenas (9 meses a 6 anos de idade)

por meio de observação e videogravação em creches ou pré-escolas para poder compreender

como elas, em suas brincadeiras, atribuem significados a experiências e a vários objetos com

os quais convivem (PEDROSA, 2015). A partir de sua aprovação pelo Comitê de Ética em

Pesquisa da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) (ver ANEXO A), iniciou-se o

trabalho de campo por meio da aproximação às instituições educacionais (incluindo o CMEI

aqui mencionado) e aos familiares e/ou responsáveis legais pelas crianças a fim de obter seu

consentimento para realização da pesquisa (ver ANEXO B). Só então, iniciou-se a coleta de

dados junto às crianças.

Além da autorização dos responsáveis, necessitávamos do consentimento das próprias

crianças. Assim, em contexto mais amplo, dirigíamo-nos às crianças informando-lhes sobre

do que se tratava a pesquisa em questão, bem como das atividades envolvidas, deixando-lhes

livres para participarem, ou não, quando convidadas. Na presente pesquisa, foram convidadas

apenas as crianças do grupo 4 (idades aproximadas entre 4 e 5 anos) e do grupo 5 (idades

aproximadas entre 5 e 6 anos). Tal escolha ocorreu em virtude de que, em sua maioria, as

crianças desta idade já dominam a fala enquanto importante meio de expressão, o que era

fundamental para proposta da pesquisa: pequenos grupos de conversa, instados com material e

procedimentos específicos.

Assim, após a apresentação do pesquisador e da proposta de pesquisa de modo mais

amplo, as crianças foram agrupadas, aleatoriamente, em trios, respeitando-se apenas sua

pertença ao grupo dentro do CMEI (ver quadro abaixo). Em outras palavras, crianças do

grupo 4 comporiam trios apenas com crianças deste grupo, o mesmo ocorrendo com o grupo

cinco. Esta forma de organização em trios possui três justificativas: (1) em nossa cultura, não

é comum que um adulto converse sozinho com uma criança, assim a conversa em grupo

37

favoreceria um clima mais descontraído, possibilitando que as crianças se sentissem mais

confortáveis; (2) na mesma direção, optou-se pelo respeito ao pertencimento da criança ao seu

grupo no CMEI, uma vez que estariam mais familiarizadas do que com crianças de outro

grupo; (3) por fim, o exame das interações sociais e dos processos de significação se

enriquece numa situação de grupo haja vista uma maior variedade de posicionamentos diante

do mesmo tema, bem como as próprias interações sociais de coetâneos introduzem relações

horizontais no grupo (criança-criança), além da relação vertical-existente (pesquisador-

criança) proporcionando, por exemplo, uma maior possibilidade de questionamento e

oposições. Neste sentido, por mais permissiva, acolhedora, compreensiva e ética que seja a

postura adotada pelo pesquisador, devemos reconhecer a existência de uma desigualdade de

poder na relação adulto-criança. Resta-nos, portanto, tomar consciência desta desigualdade e

tentar minimizá-la por meio das atitudes acima descritas.

Quadro 1: Dados gerais e distribuição dos participantes por trio

Grupos do

CMEI

Trios Nomes10

dos

componentes

dos trios

Idade

(anos;meses)

Gênero

atribuído (F:

Feminino/ M:

Masculino)

Grupo 4

Trio 1 Lara 5;3 F

Eva 5;1 F

Guga 5;1 M

Trio 2 Mel 4;9 F

Mia 4;8 F

Cássio 5;3 M

Trio 3 Milla 4;7 F

Tito 5;3 M

Júlio 5;1 M

Trio 4 Joca 4;10 M

Malu 4;8 M

Rick 5;1 M

Trio 5 Luci11

4;9 F

10

Todos os nomes das crianças, bem como de seus familiares, são fictícios, a fim de garantir seu anonimato.

38

Vic 4;10 M

Teo 4;5 M

Grupo 5

Tri 6 Fabi 6;2 F

Nick 5;8 F

Nino 5;11 M

Trio 7 Babi 5;8 F

Dani 5;1 F

Leo 5;9 M

Trio 8 Bia 6;4 F

Joel 6;1 M

Nanda 5;11 F

Trio 9 Cris 5;11 F

Luca 5;7 M

Maju 6;4 F

Trio 10 Gui 5;7 M

Lia 4;10 F

Cadu 5;11 M

Trio 11 Edu 6;0 M

Juca 5;9 M

Guto 5;7 M

Fonte: O Autor, 2016.

4.2. Material e procedimentos de coleta

Concebendo a criança enquanto sujeito ativo na apropriação e construção de

significados, propomo-nos a escutá-la. Mas, como fazê-lo? Almeida et al. (2011), a partir de

revisão da literatura, afirmam que grande parte dos estudos tem apontado que, quando no

estudo com crianças, faz-se necessária flexibilidade, tanto por parte do pesquisador, quanto do

método por ele utilizado. Assim, afirmam ser interessante que os pesquisadores utilizem-se de

metodologias variadas, lúdicas, que despertem o interesse da criança e que sejam adequadas a

sua faixa etária e contexto sociocultural, oferecendo-lhes assim diferentes meios de expressão,

11

Momentos antes de iniciarmos a roda de conversa, Luci informou-nos seu desejo de não mais participar da

pesquisa, no que foi respeitada, retornado para a sala de aula.

39

dentro de um contexto que lhes seja familiar. Tais procedimentos visam basicamente a

promover o engajamento da criança na atividade de pesquisa, o que se origina de uma

preocupação com o bem-estar da criança (atividades agradáveis a ela) e com a própria

qualidade dos dados produzidos, já que esta está fortemente atrelada à relação da criança com

o pesquisador e com a atividade a ser desempenhada.

A partir dos objetivos da presente pesquisa, e das considerações acima citadas,

propusemo-nos a conversar com as crianças sobre famílias homoparentais. Por conversa,

entendemos estar embarcando numa relação dialógica entre pesquisador e crianças, sendo

possível a estas posicionarem-se e também questionarem, caracterizando-se o corpus da

pesquisa como uma construção do grupo (SOLON; COSTA; ROSSETTI-FERREIRA, 2011).

Para além de um jogo automatizado de perguntas e respostas, busca-se estabelecer com as

crianças uma relação de confiança que nos permita acessar os significados por elas

compartilhados, por meio de um modo de expressão autêntico.

Em síntese, grande parte do esforço desprendido na criação do presente método girou

em torno de dois pontos: (1) encontrar um modo interessante, para as crianças, de

apresentação do tema “família homoparental” como mote para nossa conversa; (2) propiciar

um clima favorável para que as crianças pudessem conversar entre si e com o pesquisador de

maneira sincera e sem constrangimentos. Deste modo, procedeu-se à proposta metodológica

abaixo descrita.

Após a formação dos grupos, dava-se inicio a coleta propriamente dita, que foi

realizada em duas diferentes salas da instituição: a sala multimídia e a biblioteca12

. As

atividades eram divididas em três momentos: no primeiro momento, foi proposto às crianças

que fizessem, individualmente, o desenho de “uma família”, oferecendo-lhes papel, giz de

cera e lápis de cor, e solicitando-se a elas que falassem, enquanto desenhavam, respondendo à

pergunta: o que é uma família? (ver figura abaixo). De fato, essa era apenas a pergunta inicial:

durante todo o processo de execução do desenho, o pesquisador realizava uma série de

questões em torno do objeto família, afinal, o desenho tinha, por função principal, servir como

uma forma de instigar e tornar o diálogo mais interessante.

12

Em decorrência das diferenças entre as duas salas do CMEI utilizadas para a realização da pesquisa, em uma

delas (Sala Multimídia) fez-se necessária a presença de auxiliar de pesquisa, para que realizasse a filmagem,

gerando, portanto, diferentes proporções adulto/criança nos encontros de conversa. Apesar de reconhecermos

que a simples presença já é um fator a influenciar as crianças, percebemos também que a presença do auxiliar

(talvez por ser estagiário do CMEI) não despertava a curiosidade das crianças, sendo praticamente ausente o

direcionamento do olhar para ele ou mesmo menção a sua figura. De qualquer forma, informamos que as sessões

geradas com os trios 6, 8, 9, 10 e 11 contaram com a colaboração do estagiário, a quem agradecemos.

40

Figura 1 - Momento do desenho de uma família.

Fonte: Arquivos da Pesquisa.

Nesse sentido, é valido destacar que o desenho de família é um clássico recurso de

exame psicológico, sendo costumeiramente analisado como um recurso projetivo a partir do

qual seria possível obter informações da personalidade (bem como de suas relações

familiares) de quem desenha a partir de elementos estruturais do desenho, como pressão e

espessura do traço, presença ou ausência de cores, figuras presentes e sua disposição no papel,

etc. Em nosso caso além de instigar o diálogo, o desenho teve papel secundário na análise,

pois investigávamos tão somente como a família era representada, principalmente as figuras

desenhadas. Tal utilização do desenho tem sido utilizada em trabalhos anteriores de nosso

grupo de pesquisa, gerando resultados interessantes (LIRA, 2012; INTERAMINENSE, 2015).

No que tange às perguntas realizadas durante a feitura do desenho, elas não eram

absolutamente padronizadas, emergindo e sendo formuladas pelo pesquisador, em sua

maioria, a partir do conteúdo trazido pelas crianças durante a conversa. Evidentemente, havia

perguntas norteadoras da conversa, as quais estavam atreladas aos objetivos da pesquisa e

possíveis de atrito com a compreensão da homoparentalidade enquanto família: o que é uma

família? Família faz o quê? Quem faz parte da família? Toda família é igual? Uma criança

pode ter dois pais? Este tipo de procedimento, em que as perguntas não são padronizadas e,

em sua maioria, emergem a partir do contexto interacional da conversa pode parecer estranho

e pouco científico, ou, ainda, que a proposta de uma conversa com crianças possa ser algo

novo ou inovador. Nada, porém, é mais ilusório, haja vista que autores da Psicologia já se

utilizaram e ainda se utilizam deste modo de fazer pesquisa. Um exemplo foi Jean Piaget, que

denominou seu procedimento de método crítico, desde o início do século XX, mas que vem

sendo chamado por outros de método clínico.

41

O método piagetiano é clínico no sentido de ir além do óbvio, da resposta

estereotipada, buscando compreender o ponto de vista da análise do sujeito.

As características gerais das explicações, a maneira como o indivíduo

resolve os problemas apresentados, como chega às suas explicações,

buscando também perceber se guarda coerência, se manifesta contradições, e

também, de forma mais peculiar, o que há de criatividade nas respostas [...]

(QUEIROZ & LIMA, 2010, p. 111).

Do método clínico piagetiano, inspiramo-nos em sua busca pela compreensão do

processo, e não só da resposta; os modos e justificativas apresentadas pela criança, suas

contradições e inventividade das respostas. Ademais, Piaget é conhecido pela apresentação de

situações de conflito às crianças, entendendo que por meio deles, será instigada a explicitar e

elaborar seu modo de pensar. Neste sentido, como o leitor verá mais a frente, em não raros

momentos, o pesquisador assume diante das crianças um papel instigador, apresentando

contradições e conflitos de suas significações, bem como, por vezes, colocando-se como um

“obstáculo” a ser superado, assumindo postura contrária às apresentadas pela criança. De fato,

este tipo de postura deve ser cuidadosa, a fim de que não se torne intimidadora, mas, sim,

estimuladora; bem como que não se torne demasiadamente cansativa para a criança (haja vista

o grande número de questões formuladas) o que desestimularia sua participação na pesquisa,

comprometendo a qualidade dos dados. Neste sentido, o pesquisador assume a postura de

quem não sabia a respeito do tema, daí o grande número de perguntas, precisando da ajuda

das crianças para compreender o que é uma família. Acreditamos ter alcançado o equilíbrio

entre o acolhimento e a apresentação de conflitos, uma vez que as crianças não demonstravam

sentirem-se intimidadas pelo pesquisador, sempre enfrentando os desafios (conflitos) por ele

propostos.

Ao final deste primeiro momento, o pesquisador solicitava às crianças que falassem

um pouco acerca do desenho que acabaram de fazer, aproveitando para tirar eventuais

dúvidas. Neste momento, era comum que as crianças falassem dos personagens que

compunham o desenho de família, os quais o pesquisador costuma anotar no próprio desenho.

Deste modo, qualquer palavra presente nas imagens dos desenhos aqui apresentadas são de

autoria do pesquisador.

O segundo momento da coleta (ver figura 2) objetivava engendrar um diálogo sobre a

homoparentalidade propriamente dita. Assim, o pesquisador apresentava às crianças uma

história infantil no formato de e-book, utilizando-se para tal de um notebook. A história “And

Tango Makes Three”13

(E com Tango somos três), de autoria de Peter Parnell e Justin

13

Para uma síntese com as principais imagens da história, ver Apêndice A

42

Richardson (2005), relata a vida de dois pinguins machos que adotam Tango, um pinguim

neném. Baseada em fatos reais, a história trata de Roy e Silo, dois pinguins machos de um

zoológico na cidade de Nova Iorque (EUA) que se apaixonam um pelo outro. Assim, como os

demais casais de pinguins, Roy e Silo constroem seu ninho à espera de um filhote, porém,

logo percebem que diferentemente dos demais casais não podem colocar ovos e, por isso, não

teriam o filho tão desejado. Contudo, graças ao cuidador do zoológico, o desejo da

parentalidade se torna possível aos dois, uma vez que o funcionário coloca em seu ninho um

ovo que precisava de cuidados. Após certo tempo, nasce Tango, uma pinguim bebê que será

motivo de grande alegria para Roy e Silo e de grande interesse por parte dos visitantes do

zoológico, afinal é a primeira a ter dois pais.

O diálogo implementado com as crianças teve as seguintes perguntas norteadoras: 1)

É ou não uma família? 2) Como seria viver nesse tipo de família? 3) Existem diferenças em

relação a outras famílias? 4) Quais diferenças? 5) O que acham dessas diferenças? 6) Já

conheceram uma família assim?

Figura 2 - Contação da História “And Tango makes three”

Fonte: Arquivos da Pesquisa.

A escolha por esta história deu-se após leitura e avaliação de um total de 12 sinopses

de livros infantis, tendo sido essa a eleita em função de apresentar de maneira mais clara e

central a constituição de uma família homoparental por via da adoção, diferentemente de

outros livros, onde a temática é tratada de forma secundária. A história encontra-se disponível

apenas em inglês, cabendo ao pesquisador a narrativa da história, em português, para as

crianças.

43

Esta narrativa dava-se sempre de modo parcial: muito mais do que contar a história

plenamente em seus detalhes, buscávamos apresentar os pontos centrais da história a fim de

que o curso do enredo fosse sugerido pelas crianças. Para tanto, a história era contada com

uma série de lacunas, logo em seguida aos momentos críticos da história. Conjuntamente,

buscava-se descrever as situações trazidas pela história (ex.: dois pinguins meninos começam

a fazer tudo juntos; o ninho deles continuava vazio; nasceu um pinguim bebê; muitas pessoas

iam ao zoológico ver o pinguim que havia nascido), deixando em aberto os posicionamentos,

pensamentos e afetos dos personagens principais (ex.: o que será que o cuidador pensou ao

ver os dois pinguins meninos fazendo tudo juntos? Por que os dois pinguins meninos queriam

ter um bebê? O que o pinguim bebê achava de ter dois pais?) A ideia aqui é que as crianças

pudessem dar vida aos personagens por meio de suas significações. Nesse sentido, também

com o intuito de favorecer o engajamento das crianças na atividade, propunha-se a elas que

dessem nomes aos pinguins, tanto ao casal de pinguins machos, (originalmente Roy e Silo),

quanto a pinguim fêmea14

(originalmente Tango), filha deste casal. Assim, nos diferentes

episódios que serão descritos, diferentes foram os nomes dos personagens, conforme o grupo

de crianças.

Ao final da história, introduzia-se o terceiro e último momento dos encontros de

conversa, questionado as crianças: E isso (família homoparental) pode acontecer com gente?

Assim, se fez uso de uma imagem de vídeo disponível na Internet, onde aparecem uma

menina e suas duas mães (ver imagem abaixo). Diferentemente dos demais instrumentos

utilizados, o uso da imagem de uma família homoparental real buscava ser o contraponto da

ludicidade com que o tema família e homoparentalidade tinha sido, até então, tratado pelo

pesquisador. Esta passagem da homoparentalidade do campo da fantasia para o real mostrou-

se um fecundo procedimento metodológico, dando origem a um dos subtópicos de análise.

14

O gênero atribuído ao pinguim-bebê também varia: ora masculino, ora feminino.

44

Figura 3 - A menina e suas duas mães.

O material construído a partir das conversas com os diferentes grupos de crianças foi

registrado por meio de videogravação. A escolha pela videogravação, e não apenas por

registros de audiogravação, deveu-se ao fato de que, por meio daquela forma de registro ser-

nos possível revisitar o momento das conversas, repetida e exaustivamente, a fim de acessar

possíveis comportamentos dos participantes, tal como posturas corporais, expressões faciais e

entonações vocais, que podem constituir-se como importantes elementos de análise para a

compreensão dos significados construídos e compartilhados no grupo. (CARVALHO, et al,

1996). A base de dados gerou um total de 06h12min23s de videogravação, tendo cada sessão

(encontro de conversa), em média, a duração de 28min36s.

4.3. Procedimentos de análise

A partir da base de dados, composta, fundamentalmente, pelas videogravações,

procedeu-se a análise do material coletado, tomando por referência os procedimentos de

seleção, recorte, transcrição e análise qualitativa de episódios interativos, tal qual propostos

por Pedrosa e Carvalho (2005). Assim, o processo de análise consistiu na seleção de trechos

das videogravações pertinentes aos objetivos traçados, resultando em 54 episódios

interacionais. Utilizamos como critério para a seleção dos episódios as respostas ou

posicionamentos adotados pelas crianças diante dos pontos centrais da narrativa (quando da

contação da história) ou suas respostas diante das perguntas norteadoras da pesquisa (quando

da feitura do desenho de família ou da apresentação da imagem de uma família homoparental

de humanos). Fato curioso, é que, costumeiramente, uma pergunta ou informação era

selecionada por um dos interagentes do grupo de conversa mobilizando o grupo como um

45

todo em torno do tema, o qual, com o tempo, tendia a esgotar-se, terminando com o silêncio

por parte das crianças ou ainda com o recorte de nova informação que movimentava o grupo

em direção a um novo tema. Assim, os episódios possuem duração (e tamanho de descrição)

bastante variada.

Após a seleção, ocorreu a transcrição e a interpretação dos dados. Cada trecho de

filmagem selecionado consistiu num episódio, que, no presente trabalho, caracterizou-se

como sendo sequências interativas de crianças e pesquisador, com o intuito de identificar os

significados por elas atribuídos à família, especialmente às famílias homoparentais. A

transcrição de tais episódios deu-se de maneira tal que, não só por meio da fala, mas também

de posturas corporais, expressões faciais e entonações vocais fosse possível ressaltar os

aspectos relevantes para a presente pesquisa. A respeito da noção de interpretação, devemos

deixar claro que partimos de uma perspectiva qualitativa para formulação da pesquisa e

análise do material coletado. A escolha desta abordagem dá-se em decorrência do problema

de pesquisa, a saber, daqueles problemas que se referem a objetos que, em princípio, não

podem ser quantificados ou são de difícil quantificação: significados, processos de

pensamento, emoções, valores, etc. (MINAYO, 2009; STRAUSS & CORBIN, 2008). Dentro

do estudo dos significados, como defendem Bruner (1997) e Geertz (2012) torna-se adequada

uma abordagem interpretativa, tendo em vista a dificuldade do estabelecimento de leis de

causa e efeito, sendo-nos possível, contudo, interpretações plausíveis e contextualizadas.

46

5. RESULTADOS E DISCUSSÃO

Ao iniciar a análise dos dados, deparamo-nos com uma complexidade de difícil

compreensão: de tão denso, o material coletado, por vezes, torna-se opaco, dificultando-nos

encontrar nele as respostas que procuramos. Assim, é necessário lembrarmos que os próprios

dados não estão prontos (não são “dados”), mas que são construídos a partir da relação entre o

pesquisador e o material coletado (CARVALHO; IMPÉRIO-HAMBURGER & PEDROSA,

1999). Nesse sentido, é preciso ter em mente durante o processo de análise a pergunta

norteadora da pesquisa e os objetivos a serem alcançados para respondê-la. São eles que

juntamente com a perspectiva teórica adotada irão permitir alçar do material coletado os

elementos que se transformarão nos dados.

Portanto, lembramos o leitor de que nosso objetivo é compreender as significações de

família produzidas por crianças, com especial enfoque para a configuração homoparental

partindo do pressuposto de que estas significações constroem-se e/ou atualizam-se no campo

interacional social da pesquisa, constituído, resumidamente, pelo pesquisador e os

participantes da pesquisa. Por isso, não alimentemos a ideia de que as significações são um

fenômeno estático, o qual será encontrado pelo pesquisador, tal qual uma pedra preciosa por

um minerador. Como nos informam Rossetti-Ferreira, Amorim e Silva (2004), as

significações encontram-se articuladas em rede e em um continuo fluxo (mais rápido ou mais

lento) atualizando-se a partir das relações. Assim, os episódios a serem analisados consistem

em recortes do fluxo interativo da situação de pesquisa, sendo, portanto, fragmentos e pistas

por meio dos quais tentaremos compor um quadro plausível acerca das significações sobre

família, identificando possíveis elementos definidores. Em seguida, tentaremos articular as

significações de família e a compreensão que as crianças têm sobre a homoparentalidade.

5.1 Família: “Tá dentro dum coração... E o papai, a mamãe e os irmãos!”

Neste primeiro momento de análise buscaremos compreender o que as crianças

participantes da pesquisa têm a nos dizer sobre o objeto social família, para só então,

adentrarmos no tema homoparentalidade propriamente dito. Ao empreender a análise e

interpretação dos dados, tentaremos alçar elementos gerais, comuns ao diferentes episódios,

sem, contudo, efetuarmos uma simplificação excessiva que acabe por esconder a

complexidade das nuances inerentes ao próprio fenômeno da significação.

47

5.1.1 O Desvelamento da Família

Mas afinal, o que é família? Ou melhor, o que desejamos saber acerca dela? Um

primeiro movimento de análise impulsiona-nos a perguntar sobre sua composição: quem faz

parte da família? Esta pergunta aparentemente simples, quando feita às crianças, revela-nos a

complexidade não só das significações, mas também de seu estudo.

Investigar significações é estar, a todo momento, abrindo e fechando caminhos de

reflexões, uma vez que cada atitude tomada pelo pesquisador (mas não só por ele) torna-se

um circunscritor da ação dos participantes da pesquisa: as significações são instigadas pela

interação sendo inevitável a mútua afetação entre pesquisador e participantes. Portanto, o

receio de “contaminar” os dados ou direcioná-los é algo que permanece constante na mente

do pesquisador. Por outro lado, a mesma noção de circunscrição revela-nos que cada ação do

pesquisador não só limita, mas abre possibilidades de novos rumos ao processo de

significação. Ao longo de uma sessão com um mesmo grupo de crianças, suas falas vão

trazendo novas informações, por vezes contraditórias, acerca do que consideram ser uma

família, quem deve compô-la e até mesmo da composição da sua própria família. Assim, as

significações revelam empiricamente sua dimensão processual, seu caráter fenomênico, a

saber, daquilo que, ao longo do tempo, revela-se e se oculta aos olhos do investigador.

O primeiro episódio a ser apresentado ilustra um momento inicial de conversa com as

crianças. Após aproximação e instrução acerca do funcionamento das atividades propostas, o

pesquisador indagava-lhes: O que é família, hein? Geralmente, como se verá, o conteúdo das

respostas era valorativamente positivo, atribuindo a afetos positivos a definição de família.

Simultaneamente, as primeiras respostas eram dadas rapidamente e por meio de formulações

impessoais, generalizadas, não vinculadas às narrativas de suas próprias vidas. Tais

características podem ser indicativas de que as repostas dadas estão de acordo com um

modelo pré-estabelecido e aprendido previamente do que é família. Vejamos os episódios.

Episódio # 1: Família tá dentro do coração!

Babi (F/5;8); Dani (F/5;1); Leo (M/5;9)

Pesquisador: E o que é família, hein?

Leo: Tá dentro dum coração... E o papai, a mamãe e os irmãos!

Pesquisador: E por que coração?

Babi: Porque representa o amor (sorrindo)

Pesquisador: E família é amor, é?

Babi, Leo: É!

Pesquisador: Mas toda família é amor?

Babi, Leo e Dani: Não!

Babi: Quaaase todas....

Pesquisador: E as que não são amor, são o que?

48

Leo: São adultos...

Pesquisador: São adultos?

Babi e Leo: É....

Pesquisador: Entendi....

Torna-se interessante perceber que a resposta dada por Leo possui um caráter

imagético. O menino fala da família não como uma experiência, ou por meio de ações

demonstrações de afeto, mas sim como uma espécie de representação idealizada onde os

membros da família encontram-se inseridos dentro de um coração. A ideia de que a família

citada por Leo está atrelada a um modelo ganha força a partir da interferência de Babi, pois a

menina rapidamente responde a pergunta dirigida a Leo, o que seria um possível indicativo do

amplo grau de compartilhamento do significado de família enquanto ambiente amoroso.

Evidentemente, não queremos, nem podemos afirmar que toda e qualquer significação

de família perpassada por afetos positivos seja tão somente atrelada a um modelo idealizado

de família e inexistente na realidade. O que queremos é destacar a forma como a significação

é enunciada pelo menino, forma esta que pode dar indício de uma significação fortemente

atrelada a representações (inclusive imagéticas), amplamente compartilhadas em nossa

sociedade da família ideal. Em última instância, objetivamos evidenciar o quanto nossas

significações sobre um determinado objeto social são perpassadas pela matriz sócio-histórica

na qual estamos inseridos. Em pesquisa realizada por Borges Neto e Pedrosa (2016, artigo

submetido), encontramos também indícios desse atravessamento das significações pela matriz

sócio-histórica: aponta-se a mesma conclusão a partir da inserção da significação, a saber,

cantigas infantis e letras de música, as quais são meios eficientes de resistência e transmissão

geracional de valores e significações historicamente construídos.

Como dito anteriormente, as significações vão revelando-se ao longo da conversa.

Ainda neste primeiro episódio, após o questionamento do pesquisador, Leo informa que nem

toda família é amor. Aliás, uma parte específica da família não é amor: os adultos! Foi a partir

de um questionamento, que Leo começa a revelar as nuances das significações que possui de

família. Curiosamente, após esse momento inicial da entrevista, as crianças passam a falar

sobre o tema utilizando-se de suas próprias experiências familiares ou de outras experiências

do cotidiano. Só então a noção de família passa a ganhar maior complexidade. Leo, por

exemplo, que havia descrito a família enquanto “amor”, conta-nos situação de agressão por

parte dos pais:

Episódio # 2: Família é fogo!

Babi (F/5;8); Dani (F/5;1); Leo (M/5;9)

49

Pesquisador: Vê: Leo falou que o pai dele trabalha com cavalo, e Babi disse que o pai dela era

pedreiro. E a mãe de vocês? Faz o que?

Babi: Minha mãe trabalha no laboratório

Leo: E minha mãe trabalha no Rio de Janeiro

Dani: E a minha avó foi pro Rio de Janeiro

Leo (irritado, dirigindo-se a Dani): Tá bom de ser tudo igual!

Pesquisador: E tu mora com quem?

Leo: Com a minha avó. Minha vó é boazinha. Mas meu pai e minha mãe são ruins: eles me colocam

no fogo...

Pesquisador: No fogo?

Babi: Mentira!

Leo: Aí queimou minhas orelhas (risos)

De modo ainda mais claro do que Leo, Bia evidencia o processo de transformação ou

desvelamento das significações. Aos poucos, durante a conversa, a menina nos mostra como

experiência familiar cotidiana flexibiliza ou dá novas dimensões a um sentido de família que,

a princípio, pode parecer-nos simples ou monolítico.

Episódio # 3: Família não pode brigar!

Bia (F/6;4); Joel (M/6;1); Nanda (F/5;11)

Pesquisador: E família faz o que?

Bia: Aí eu não sei

Nanda: Nem eu

Pesquisador: Precisa saber não... Basta dizer o que vocês acham

Bia (reticente): Eu acho que família faz carinho

Pesquisador: E tu, o que acha Nanda?

Nanda: Acho que faz carinho

Pesquisador: E família é legal?

Bia: Eu acho

Pesquisador: Mas, toda família é legal?

Bia: Minha mãe é um pouquinho brava

Pesquisador: Ela faz o que quando fica brava?

Bia: Ela me coloca de castigo, dá em mim (bate)

(...)

Pesquisador: E família briga?

Bia e Nanda: Nããão!

Bia: Eu nunca vi confusão nenhuma (como se fosse proibido falar sobre o assunto)

Pesquisador: Não?

Bia e Nanda: Não

Pesquisador: Mas, toda família não briga ou só a de vocês?

Bia ergue o olhar (como se estivesse desconfiada)

Bia: Eu já vi uma....

(...)

Pesquisador: Me fala do teu desenho. Quem tu desenhou.

Bia: Minha mãe, eu, meu irmão, minha irmã, meu outro irmão e uma flor

Pesquisador: E irmão faz o que, hein?

Bia (tom de voz alto): Meu irmão arenga comigo, me belisca...

Nanda: E o meu sobrinho me morde

Bia: Ah! Eu esqueci: ele também me morde e me bate e fica brincando (debochando) comigo

Nanda: E puxa o cabelo e fica dando em mim

50

Os trechos acima estão apresentados do mesmo modo que sua ocorrência durante a

sessão. Isso possui um sentido: desejamos mostra que este processo de desvelamento das

significações se dá de maneira não linear. Ao contrário, é marcado por descontinuidade e

rupturas que ocorrem mediante os acontecimentos no grupo. No primeiro trecho, Bia

apresenta a família enquanto instância de carinho, logo em seguida, reconhece-a também

como um possível ambiente de afetos negativos, punição e agressão (Bia: Minha mãe é um

pouquinho brava/Pesquisador: Ela faz o que quando fica brava?/Bia: Ela me coloca de

castigo, dá em mim (bate)).

Interessante notar o movimento de transição de uma concepção mais generalizada de

família (inclusive em decorrência da própria pergunta formulada pelo pesquisador, que

questiona sobre “família” e não sobre uma ou várias famílias em específico), para uma

dimensão mais específica. Para realizar esta transição, Bia recorre a sua própria experiência

familiar (Bia: Minha mãe é um pouquinho brava). Ora, isto pode nos parecer óbvio, mas não o

é, na medida em que Bia poderia, por exemplo, ter citado a história de outras famílias com

quem convive ou mesmo filmes, telenovelas, etc. Destacamos este movimento na medida em

que se repete com frequência durante os diferentes momentos, com diferentes crianças nos

grupos de conversa. Acreditamos que isso possa ocorrer em decorrência do que Bruner (1997)

afirma em seu livro intitulado ‘Atos de significação’: a narrativa é o modo preponderante pelo

qual significamos o mundo, principalmente quando ocorre a quebra do canônico, ou seja, a

quebra do habitual. Nestes momentos nos quais nos sentimos convocados a dar sentido a algo

não familiar, recorremos à narrativa; no caso de Bia, a narrativa de sua própria experiência

familiar.

Ainda a respeito da não linearidade do processo de significação (afinal ele ocorre em

rede), pontuamos o segundo trecho deste episódio, no qual Bia (juntamente com Nanda)

afirma que família não briga, logo após, contudo, confirma já ter visto uma “confusão de

família”. Ora, o que mais nos chama a atenção é o receio que Bia demonstra em afirmar que

famílias brigam. Ao fazê-lo, o faz de modo desconfiado, como se infringisse uma regra

(família não pode brigar ou não se pode falar que família briga). Nesse sentido estaríamos

diante de um ponto inflexível da rede de significações entorno do objeto família, funcionando,

de certo modo, coercitivamente, na medida em que se impõe de maneira forte. É válido

lembrar que tanto no trecho anterior, quanto no trecho posterior a este, Bia narra episódios

agonisticos dentro de sua família, mais detalhadamente com seu irmão (Bia (tom de voz alto):

Meu irmão arenga comigo, me belisca/... Bia: Ah! Eu esqueci: ele também me morde e me

51

bate e fica brincando (debochando) comigo). Todavia, no segundo trecho, ao falar já ter visto

uma confusão em família, o fala como se fora um evento raro e distante de si (Bia: Eu já vi

uma...).

Ainda no que tange a uma concepção de família calcada no afeto, apresentamos o

episódio a seguir, onde Júlio revela uma das significações que definem família: o gostar.

Aliás, apesar de parecer “proibido” ou não ocupar lugar de destaque nos significados

amplamente compartilhados em nossa sociedade, família enquanto local de conflitos também

possui representativa na fala das crianças. Tanto brigas em relações horizontais (esposo-

esposa; irmãos) quanto verticais (pais-filhos)

Episódio # 4: Família é um mói de gente!

Milla (F/4;7); Júlio (M/5;1); Tito (M/5;3)

Pesquisador: O que tem na família, hein?

Júlio: Um mói (monte) de pessoa... que quer ficar..... que a pessoa gosta da pessoa

Pesquisador: Ah! ‘Um mói de pessoa que gosta da pessoa’

Júlio: É

Pesquisador: E se não gostar? É da família?

Júlio: Não!

Tito: A minha só fica dando em mim, e eu não faço nada!

Pesquisador: Quem?

Tito: A minha irmã... A Júlia não: ela tá machucada

Pesquisador: Ah! Ela tá machucada. E tu tem quantas irmãs?

Tito: Um bebê, que é meu irmão que nasceu... A minha mãe, a minha irmã e a Júlia

Pesquisador: E a Júlia é o que? Ela é tua irmã?

Tito: sinal positivo com a cabeça

Episódio # 5? Que nem um galo e uma galinha

Edu (M/6;0); Juca (M/5;9); Guto (M/5;7)

Pesquisador: O que é uma família? O que vocês vão desenhar, hein?

Juca: Esse aqui é eu e aqui é meu pai (apontando para o desenho)

Pesquisador: E pai é da família, é?

Juca: É, ele fica brigando com mainha, feito um galo beliscando a galinha

Retomemos agora a pergunta que inicia este capítulo e boa parte de nossos atuais

questionamentos sobre a família: Afinal, quem é da família e de que forma ela se compõe?

Como dito anteriormente, esta pergunta pode parecer simples, mas não é. Por meio dela

descobrimos dois aspectos bastante interessantes acerca do processo de significação. Um

deles, já trabalhado, diz respeito ao caráter processual das significações, seu desvelamento ao

longo do tempo. O segundo diz respeito ao fato de que diferentes meios de expressão irão

exprimir diferentes significados acerca do objeto em estudo. Assim, justifica-se o uso de

diferentes vias de acesso (instrumentos e técnicas) às significações, quando de seu estudo. No

52

episódio # 6, Eva, aos poucos, revela-nos sua real configuração familiar, tal revelação mostra-

se fruto da regulação dentro do espaço interacional.

Episódio # 6: Família em mudança

Lara (F/5;3); Eva (F/5;1); Guga (M/5;1)

Pesquisador: O que é uma família, mesmo?

(Silêncio)

Pesquisador: Vocês moram com quem?

Eva: Com minha mãe e meu pai

Guga: Eu moro com meu padrasto e com a minha mãe e minha irmã

Pesquisador: Tua irmã é maior ou menor que tu?

Guga: Menor de que eu

Pesquisador: Menor do que tu. Ela é bebezinha ainda?

Guga: Sinal negativo com a cabeça

Eva: A minha é... (irmã)

Pesquisador: E tu, Lara?

Lara permanece em silêncio e Eva prossegue falando

Eva: Mas a minha mãe fica trabalhando aí meu tio fica com ela (irmã bebezinha). Aí meu tio fica

cuidando da minha irmã. Aí, depois, tio vai trabalhar e eu fico com mainha. Aí quando mainha tá de

folga eu fico com ela

Pesquisador: Teu tio mora contigo?

Eva: Sinal positivo com a cabeça.... Meu pai não mora comigo não

Guga: Nem meu pai

Eva: Meu pai mora com “tia” Alessandra

Guga: Meu pai mora com minha avó. Só que minha avó é mãe dele

Eva: Só que meu pai mora muito longe....

Guga: Eu tenho duas vó... uma pertinho da minha casa a outra em Jaboatão

Eva: E o meu pai mora em duas casas: uma que é numa praia, e uma que..... E a cachorra dele

sumiu.... E morreu, porque painho não deu remédio a ela

Inicialmente, as crianças mostram-se um pouco resistentes a falar sobre suas famílias,

o que evidenciado por seu silêncio. A partir da persistência do pesquisador, Eva lhe dá uma

resposta bastante padrão (meu pai e minha mãe). A partir da explicitação de Guga, Eva

informa também possuir uma irmã, bem como um tio que mora com ela, dizendo, por último,

não morar na mesma casa que seu pai. Do início ao fim do episódio, as respostas acerca de

sua realidade familiar mudaram bastante, seja por acréscimo de parentes, seja por informações

sobre a dinâmica familiar (rotina de trabalho da mãe, cuidado do tio, não compartilhamento

de domicilio com o pai). Se bem observarmos, principalmente ao final do episódio, notaremos

que existe entre Guga e Eva um mecanismo de corregulação (CARVALHO; IMPÉRIO-

HAMBURGER & PEDROSA, 1996), onde as informações que cada um dá acerca de sua

família enriquecem-se e aprofundam-se simultaneamente.

Esta dinâmica de revelação progressiva das significações também é evidenciada pela

ocultação de certos aspectos da família. O não falar deles, deliberadamente, nos mostra o

53

quanto nossas significações são perpassadas, não só pelo que vemos e vivemos, mas também

pelo que desejamos.

Episódio# 7: Quem omite também revela

Fabi (F/6;2); Nick (F/5;8); Nino (M/5;11)

Pesquisador: Vocês estão lembrados que é pra desenhar o que?

Nick (larga sobre a mesa o lápis com que estava desenhando): Esse eu não vou falar não. (apontando

para uma das figuras de seu desenho).

Pesquisador: Não? Porque que tu não vai falar? Do que tu não vai falar

Nick: Fica em silêncio e risca a figura do desenho.

(...)

Nick: Agora eu vou falar do meu

Pesquisador: Vamos prestar atenção no que Nick vai falar

Nick (apontando no desenho): Aqui é minha casa, aqui é minha mãe e aqui sou eu (Nick omite a

figura que anteriormente havia riscado)

Pesquisador: E essa parte que tu riscou aqui (apontando no desenho)

Nick (acenando com a cabeça em sinal negativo): Nada...

Pesquisador: Mas porque tu riscou ela?

Nick (parece reticente): Porque eu não queria assim

Pesquisador: Tá certo... E tem mais alguém na tua família?

Nick (direciona o olhar para baixo, parece pensativa): Não

Figura 4 - Desenho de Nick sobre família15

Fonte: Arquivos da Pesquisa.

Em síntese, até o presente momento, as significações das crianças sobre família têm

sido marcadas por dimensões afetivas (amar, fazer carinho, brigar, arengar, etc.). Mas será

que apenas a dimensão afetiva define o que é família para as crianças?

15

Da esquerda para a direita: a casa, a figura sobre a qual não quis falar, ela e a mãe.

54

5.1.2. Todo mundo tem família! Família é tudo igual!

Para as crianças entrevistadas, a família apresenta-se também como um fato universal,

bem como alguns membros que a compõe. Desse modo, em um primeiro momento as

significações de família apresentadas pelas crianças não estariam somente vinculadas à

dimensão afetiva entre pessoas, mas também a existência de papéis específicos e sempre

presentes, ou seja, uma configuração específica.

Episódio # 8: Todo mundo tem mãe! Babi (F/5;8); Dani (F/5;1); Leo (M/5;9)

Dani: O senhor tem família?

Pesquisador: Não sei... O que tu acha?

Leo: O senhor tem mãe? (dirigindo-se ao pesquisador)

Pesquisador: Eu tenho mãe....

Babi: É claro que todo mundo tem mãe, né! Como é que ia nascer?! Como é que ia nascer?!(em tom

de repreensão a Leo, como se a pergunta feita ao pesquisador fosse boba/inadequada)

Dani: E também tem família! (balançando a cabeça em sinal positivo)

Pesquisador: E é? Todo mundo tem mãe?

Babi e Dani: Tem!

Dani (complementando e voltando-se para Babi): Mas umas mãe morreram....

Babi (em tom de voz mais baixo): É... e alguns pais morreu

Leo: Mas eu tenho medo de minha mãe morrer...

Babi: Eu também. Eu não quero perder minha família todinha não. Eu já perdi meu pai, meu primo e

meu tio Chico.

Dani: Chico?

Babi: É meu tio irmão do meu pai e filho da minha avó Y.

Leo: Tu tem tua avó? (dirigindo-se a Babi)

Dani (respondendo a pergunta feita por Leo): Tenho..... Claro!

Babi: Claro! Todo mundo tem vó! Tu não tem vó não, é? (em tom de repreensão a Leo, como se a

pergunta feita ao pesquisador fosse boba/inadequada)

Leo (em tom baixo de voz): Não ela já morreu. (Elevando-se e dirigindo-se a Babi): Minha avó, ela já

tá velha.

Dani: Mas, pelo menos, tu tem vó.

Pesquisador: E vó é da família?

Leo: É

Dani: Você disse que não (dirigindo-se a Leo)

Pesquisador: E como é vó?

Babi: Vó é bom.

Pesquisador: E o que vó faz que é bom?

Babi: Dá presente

Leo: Faz comida

Salta aos olhos a forma imperativa como a necessidade da existência de uma mãe se

apresenta na fala de Babi. Novamente, pela forma como o enunciado é proferido, percebemos

a existência de uma norma social sustentada por um fato biológico: “É claro que todo mundo

tem mãe, né! Como é que ia nascer?! Como é que ia nascer?!” Ora, para a menina o papel

social de mãe identifica-se com a figura da genitora, ou seja, mãe é aquela que,

55

biologicamente, gera o filho. Daí a necessidade de sua existência. Se esta conclusão parece

óbvia para Babi, haja vista a maneira como repreende Leo, como se todos soubessem que

todos têm mãe; para Leo, não ter mãe é uma possibilidade que existe (“O senhor tem mãe?”

(dirigindo-se ao pesquisador)).

Porém, o que era óbvio para Babi, transforma-se, ou refina-se, a partir do contato com

o conteúdo de um dos interagentes do campo interacional (Dani) que nos traz a possibilidade

da morte como modificador da configuração usual da família. Mais uma vez, percebemos o

quanto nossas significações constroem-se por meio das relações que estabelecemos. Indo

além, o contato com as significações do outro (diferentes da minha) podem ser um meio

(cenário e instrumento) de apropriação da própria experiência familiar vivida (a morte de seu

pai). A esse respeito, é interessante notar o modo como Babi está constantemente regulando-

se a partir das falas de seus colegas. Quando Dani fala que alguns pais morreram, Babi

modifica seu tom de voz, como se estivesse dando conta da morte do próprio pai, contudo,

emite uma frase generalizada, repetindo o que Dani disse (É... alguns pais morreram).

Todavia será a partir da fala de Leo, expressando o medo de perder seus familiares, que Babi

falará da morte de modo mais pessoal, trazendo sua própria experiência do medo da morte de

seus familiares, haja vista já ter perdido três (o pai, o tio e um primo).

Babi regula-se por seus parceiros interacionais, os quais, por sua vez, também são

regulados por ela. Neste episódio, ao novamente ser repreendido por Babi em uma de suas

perguntas (Leo: Tu tem tua avó? (dirigindo-se a Babi)), Leo mostra-se tímido em expor o fato

de não ter uma avó em decorrência de seu falecimento, afinal “Todo mundo tem vó!” Assim,

o menino fala em tom de voz baixo que sua avó morreu, mas dirige-se a Babi dizendo que sua

avó esta velha.

A fim de dar força a ideia de que as significações sobre família das crianças

entrevistadas é também perpassada pela noção de uma configuração familiar específica (pai,

mãe e filhos), fruto de um modelo cultural fortemente compartilhado, trazemos o episódio a

seguir.

Episódio # 9: Cadê o pai?

Cris (F/5;11); Maju (F/6;4); Luca (M/5;7)

Pesquisador: Vocês falaram que família é amar, fazer carinho, joga bola... O que família é mais?

Maju: Família é passear com o papai, com a mamãe

Pesquisador: E toda família tem mamãe e papai?

Luca e Maju: Tem!

Luca: Eu tenho primo, irmão...

Maju: Eu tenho mamãe, papai... do Céu, porque eu não tenho o outro pai não. Meu pai morreu...

56

(...)

Pesquisador: Me fala do teu desenho.

Maju: Essa aqui é minha irmã Mayara (apontando para o desenho)

Pesquisador: E aqui?

Maju: Eu e aqui meu irmão e aqui minha mãe.

Pesquisador: E mãe faz o que?

Silêncio

Pesquisador: E tu não dissesse que toda família tem pai e mãe?

Maju: Tem

Pesquisador: E cadê? Aqui no desenho não tem pai.

Maju: Ah! É! Eu vou fazer... (parece surpresa com a pergunta do pesquisador)

Pesquisador: Não precisa desenhar. Mas, porque você não desenhou antes?

Maju fica em silêncio (parece ponderar)

Pesquisador: Você só desenha se quiser.

Maju opta por desenhar.

Figura 5 - Desenho de Maju sobre Família16

Fonte: Arquivos da Pesquisa.

No momento inicial do episódio, Maju remete-nos, com convicção, a noção de que

toda família tem pai e mãe. Todavia, por tratar-se de um modelo idealizado, rapidamente esta

ideia perde força ao entrar diante das reais possibilidades de ser família. Assim, Maju nos

informa não ter pai, pois o mesmo havia falecido. Contudo, é num segundo momento da

sessão, quando as crianças eram convidadas a falar sobre os desenhos de família que fizeram,

que Maju acaba por revelar que, ao que tudo indica, suas significações de família oscilam ou

são simultaneamente perpassadas pelo modelo culturalmente idealizado de família e por suas

próprias experiências familiares. Maju fala-nos de sua própria realidade familiar, composta,

ao menos no desenho, por sua mãe e irmãos. Ao ser questionada pelo pesquisador, Maju

mostra-se surpresa com a ausência de um pai no seu desenho e prontamente diz que irá

16

Da esquerda para a direita: sua irmã, ela, seu irmão, sua mãe, e a figura do pai (desenhada por último, nas

circunstancias acima descritas).

57

desenhá-lo, como se estivesse sendo pressionada pelo pesquisador. Todavia, ao ser informada

da não obrigatoriedade, Maju opta por desenhar a figura do pai, possivelmente na tentativa de

adequar-se ao modelo familiar que ela própria havia sugerido no inicio da sessão (papai e

mamãe).

De modo similar ocorre com Bia, que também se mostra surpresa ao ser confrontada

com a possibilidade de diferentes configurações familiares (seu desenho e o de Nanda), e se

apropria da disparidade entre sua configuração familiar e aquilo que “deve ser” uma família.

Episódio # 10: Toda família é igual?

Bia (F/6;4); Joel (M/6;1); Nanda (F/5;11)

Pesquisador: Terminasse teu desenho, Nanda?

Nanda: Sinal positivo com a cabeça.

Pesquisador: Então fala dele pra mim

Nanda: Minha mãe, meu pai, eu, meu avô e meu tio

Pesquisador: Engraçado! Vê só: nesse desenho aqui (mostrando o desenho de Nanda) tem pai, nesse

aqui (mostrando o desenho de Bia) tem não.

Nanda ri e Bia parece surpresa (olhos e boca aberta)

Pesquisador: Então, toda família é igual?

Bia: Quase igual.. Porque eu tenho avô, tio... mas alguns dos meus avós morreram

Pesquisador: Mas eles continuam sendo da família mesmo depois de morrer?

Bia: Balança a cabeça em sinal positivo.

Figura 6 - Desenho de Nanda sobre Família17

Fonte: Arquivos da Pesquisa.

17

Da esquerda para a direita: sua mãe, seu pai, ela, seu avô e seu tio.

58

Figura 7 - Desenho de Bia sobre Família18

Fonte: Arquivos da Pesquisa.

Acreditamos que o leitor deva ter percebido que, até o presente momento, a morte tem

figurado nas falas das crianças como o principal modo, aceitável ou compreensível, de escape

do modelo familiar pai-mãe-filhos. Assim, todos têm pai, mãe e avós, exceto aqueles cujo um

desses familiares tenha falecido. Assim, surge-nos a questão: será a morte o único modo de

transformação aceitável da configuração familiar? E ainda: será a morte ou outros eventos

capazes de romper os vínculos familiares, segundo as significações das crianças? As crianças

estariam de acordo com Bia quando ela afirma que as pessoas continuam a fazer parte da

família mesmo após a morte?

5.1.3. Família: Enlaces, Desenlaces e Reenlaces

A morte aparece como dentro das significações das crianças como a primeira

possibilidade de transformação de mudança do arranjo familiar tido como universal: pai, mãe

e filhos. Todavia, ela não é a única. A separação conjugal ou o afastamento de uma criança de

seu núcleo familiar original para o encaminhamento à adoção também o são. Estas três

possibilidades tem em comum a marca da separação e/ou distanciamento. Esta separação,

porém, não significa o fim das relações familiares. Ao contrario, pode significar a

permanência dos vínculos, sua transformação ou mesmo ampliação. No que se refere

especificamente o estudo dos processos de significação, percebemos que o fenômeno da

morte revela outra dimensão da compreensão das crianças sobre a família (além da

afetividade ou universalidade), a saber, a família enquanto conjunto de papéis que podem ser

18

Da esquerda para a direita: uma flor, seu irmão, sua irmão, seu outro irmão, ela e sua mãe.

59

desempenhados por diferentes atores, ou um mesmo papel sendo exercido por mais de um

ator social, ou figura mística.

Episódio # 11: Pai é uma função!

Babi (F/5;8); Dani (F/5;1); Leo (M/5;9)

Pesquisador (dirigindo-se a Babi): Agora, tu dissesses que todo mundo tem mãe... (interrompido por

Babi)

Babi: e todo mundo tem pai...

Pesquisador: E todo mundo tem pai.... Só não os que morreram, né?

Crianças em silêncio

Pesquisador: E só pode ter um pai e uma mãe?

Dani: Não.

Pesquisador: E pode ter mais?

Dani: Pode

Babi: Vó como minha mãe; vô como meu pai; tia como minha mãe; tio como meu pai.

Pesquisador: Não entendi. Repete para eu entender.

Babi: Vovô como pai

Pesquisador: Ah! Vovô como pai? Como se o avô... (interrompido por Babi )

Babi: Como se fosse o pai

Pesquisador: Ah! Entendi! Como se o avô fosse o pai

Dani: E a tia como se fosse a mãe.... Porque quando minha mãe for embora, se separar do meu pai...

Eu vou chamar minha avó de mãe

Pesquisador: Mas, a tua mãe, que é tua mãe hoje, vai deixar de ser se ela se separar do teu pai?

Dani: Não sei

(...)

Babi: Meu pai é pedreiro... Um dia ele foi se abaixar pra pegar o tijolo. Aí quando ele se levantou o

choque bateu nele, ele caiu da escada e morreu.

Leo: Aonde? Um cavalo?

Babi: Não. Meu pai

Pesquisador: Agora me diga uma coisa. Seu pai morreu, ele deixou de ser seu pai?

Babi: Não! Ele vai continuar sendo meu pai

Dani: È! E o pai de Babi vai ficar do lado de Babi (apontando para o lado de Babi)

Babi: É! Olha ele aqui do meu lado

De maneira bastante clara, Babi demonstra compreender os papéis familiares, de fato,

como papéis e que podem ser exercidos por diferentes pessoas não estando fixos a uma só.

Ora, esta mesma concepção compõe a rede de significações sobre família da qual Babi

compartilha juntamente com a compreensão da mãe como sendo a genitora. Assim, os papéis

familiares são lugares a serem ocupados e também laços biológicos. Todavia, esses lugares

não podem ser ocupados ou essas funções não podem ser exercidas indiscriminadamente.

Observe que no “jogo das cadeiras” dos lugares familiares, descrito por Babi, só participam

pessoas que já são membros da família: “Babi: Vó como minha mãe; Vô como meu pai; tia

como minha mãe; tio como meu pai...”. Outro elemento é bastante relevante para a ocupação

dos diferentes lugares na família, mas sobre ele falaremos mais adiante.

60

Ainda nesse episódio gostaríamos de destacar um excelente exemplo da dimensão

temporal prospectiva das significações (ROSSETTI-FERREIRA; AMORIM; SILVA, 2004).

Referimo-nos à fala de Dani acerca da futura separação de seus pais. Ora, é a partir da

expectativa de um possível evento futuro de sua vida (separação dos pais) que Dani

compreende a família enquanto lugares que podem ser ocupados por diferentes atores. Em seu

caso, quando sua mãe “for embora”, sua avó será por ela colocada no lugar mãe (“Eu vou

chamar minha avó de mãe”). A ênfase aqui recai sobre o fato de que os papéis sociais devem

ser reciprocamente reconhecidos (BERGER; LUCKMANN, 1966/2007). Assim sendo, Dani

reconhecerá na avó o lugar de mãe, ainda que não saibamos se a avó reconhecerá a menina

como filha. Todavia, é importante ressaltarmos o lugar ativo da criança neste processo. Mais à

frente, ao falarmos de adoção, perceberemos a relevância do reconhecimento, por parte da

criança, da legitimidade da ocupação de um lugar dentro família por uma pessoa.

Por último, questionamo-nos acerca do que seria capaz de romper os vínculos

familiares e encontramos uma situação bastante interessante. Para Babi e Dani, a morte não

destituiria uma pessoa do lugar por ela ocupado dentro da família: mesmo depois de morto, o

pai de Babi continua sendo seu pai, ainda que outra pessoa possa também ocupá-lo. Só deste

modo, seria possível ter dois pais, como nos informam as meninas. Porém, a mesma clareza e

convicção não parecem ocorrer em caso de separação dos pais, haja vista a resposta de Dani

(“Pesquisador: Mas, a tua mãe, que é tua mãe hoje, vai deixar de ser se ela se separar do teu

pai?/Dani: Não sei”).

A possibilidade de um membro da família ocupar o lugar de outro, “acumulando

papéis”, por assim dizer, não se apresenta apenas na fala das crianças, mas também em seus

desenhos, ainda que a nomeação dos papéis possa confundi-las um pouco, ou gerar incerteza

quanto a essa possibilidade.

Episódio # 12: O tio que virou pai

Lara (F/5;3); Eva (F/5;1); Guga (M/5;1)

Pesquisador: E o que tu desenhasse, Eva?

Eva: Um sol, uma família e uma florzinha

Pesquisador: E quem é a família que tu desenhasse aí?

Eva: Mainha, painho, eu e minha tia....

Pesquisador: E quem é teu pai aí?

Eva: Meu pai?

Pesquisador: É! Tu dissesse “meu pai”

Eva: Meu tio. É que meu tio agora é meu pai

Pesquisador: E tio pode virar pai?

Guga: Não...

Eva: Mas eu não sei se ele pode virar...

61

Pesquisador: Mas ele é (teu pai)?

Eva (apontando para o desenho): É. Aqui tá minha mãe, aqui meu pai, aqui eu e aqui minha tia.

Pesquisador: E teu tio que é teu pai, não tá aí não?

Eva: Tá! (apontando para afigura do pai)

Figura 8 - Desenho de Eva sobre Família19

Fonte: Arquivos da Pesquisa.

Evidentemente, nem todas as crianças participantes da pesquisa compartilhavam, ou

demonstravam convicção quanto à concepção de que os laços familiares preservam-se após a

morte. Porém, a possibilidade de alguém ocupar o lugar do familiar falecido é bastante

frequente.

Episódio # 13: Papai... do Céu

Cris (F/5;11); Maju (F/6;4); Luca (M/5;7)

Maju: Eu tenho mamãe, papai... do Céu, porque eu não tenho o outro pai não. Meu pai morreu...

Pesquisador: Ah! Teu pai morreu

Luca: Eu tenho avô, meu avô morreu...

Pesquisador: E depois que morre continua sendo da família?

Maju (pensativa, parece não ter resposta): Acho que... acho que deixa de ser

(...)

Maju: Mas, mas, mas isso a gente não fala não... Oxi deixa pra lá

Pesquisador: Deixa pra lá o que? Pode falar...

Maju: Eu ia falar besteira... Deixa pra lá

Pesquisador: Que besteira tua ia falar?

Maju: Que ele (Luca) não tem avô. Que o avô dele morreu... Mas Deus pode ser o avô dele. Se o pai

ou a mãe ou avô morrer... pode ser Deus... qualquer um pode ser. Pode doar também, se quiser.

Curioso perceber, neste episódio, o que pode ser compreendido como uma exceção.

Nos episódios anteriormente apresentados, a ocupação do lugar de um familiar falecido só

19

Da esquerda pra a direita: sua tia, ela, seu pai e sua mãe.

62

poderia ocorrer por outro membro da família (avô, tio, etc.). Neste episódio, a figura do Papai

do Céu/Deus mostra-se polivalente, podendo ocupar o lugar de qualquer familiar falecido,

inclusive lugares tradicionalmente tidos como femininos (mãe). Deste modo revelamos o

segundo elemento norteador da organização da “dança das cadeiras”, da troca e/ou

acumulação de papéis dentro da família, o qual anunciamos anteriormente, quando da análise

do episódio # 11: o gênero. Excetuando-se a figura de Deus, somente mulheres poderiam

exercer papéis tidos como femininos e, consequentemente, só homens poderiam exercer

papéis masculinos. Nas palavras de Babi (episódio # 11): “Vó como minha mãe; Vô como

meu pai; tia como minha mãe; tio como meu pai”. Esta proposição confirma-se a partir dos

episódios a seguir.

Episódio # 14: Só se colar vestidinho...

Babi (F/5;8); Dani (F/5;1); Leo (M/5;9)

Pesquisador: Agora, um pai pode ser uma mãe? Pai pode ser mãe?

Dani, Leo e Babi: Não!

Pesquisador: Por quê?

Dani: Porque... Só se colocar peruca, e o sapato, batom... E sabe o quê?

Pesquisador: Não...

Dani: Vestido... um vestidinho

Dani e Babi riem

Pesquisador: E qual a diferença entre pai e mãe, hein? Tem diferença?

Dani e Babi: Tem!

Pesquisador: Qual a diferença?

Babi: É porque pai tem muito pelo (apontando para o próprio braço). Aí, não parece com mãe...

Pesquisador: Ah! Entendi! “É porque pai tem muito pelo. Aí, não parece com mãe...”

(...)

Babi: Eu ia fazer meu pai aqui, mas não dá pra fazer um homem

Pesquisador: E por que não dá pra fazer?

Dani: Ela fez cabelo

Pesquisador: Oxente! E homem não tem cabelo, não?

Leo: Tem (apontando para o próprio cabelo)

Babi: Homem não tem cabelo assim (comprido), tem assim (curto e espetado). Babi desenha no papel

Como fica claro, a questão de gênero mostra-se como uma norma social bastante forte

no que se refere à definição dos papéis familiares. Todavia, o mais interessante de ser

percebido é que, apesar da pergunta do pesquisador quanto à diferença entre pais e mães

ocorrer dentro do âmbito familiar, as respostas das crianças referiram-se não a tarefas do

cotidiano ou comportamentos, mas a características físicas ligadas à estética e vestuário

(comprimento do cabelo; quantidade de pelos corporais, uso de maquiagem e vestuário). E o

status dado a essas características é bastante elevado, haja vista, caso um homem os adote

pode até mesmo tornar-se mãe, como nos disse Dani. Ou ainda, como pode ser visto no

63

episódio a seguir, tais características se tornam quase que necessárias ao papel familiar (no

caso a seguir, o de mãe).

Episódio # 15: Cadê o cabelo?

Edu (M/6;0); Juca (M/5;9); Guto (M/5;7)

Edu: Minha mãe tá segurando a pipa (mostrando o desenho)

Juca (em tom de repreensão): E tua mãe não tem cabelo não, menino?! (simulando desenhar um

cabelo longo na figura da mãe de Victor)

Pesquisador: E tem que ter cabelo?

Juca e Guto: Tem.

Além da morte, outro acontecimento aparece como possibilidade de mudança da

configuração familiar, permitindo a existência de dois pais ou duas mães na família: a adoção,

ou “doação” nas palavras de Maju.

Episódio # 16: É filho da minha mãe, mas não é meu irmão...

Cris (F/5;11); Maju (F/6;4); Luca (M/5;7)

Pesquisador: Que besteira tu ia falar?

Maju: Que ele (Luca) não tem avô. Que o avô dele morreu... Mas Deus pode ser o avô dele. Se o pai

ou a mãe ou avô morrer... pode ser Deus... qualquer um pode ser. Pode doar também, se quiser.

Pesquisador: Doar? Como é que é isso “doar”?

Luca: Doar, doar

Maju: Veja: o filho da pessoa tá num abrigo. Aí, tá perto de dar para outra pessoa. Aí a pessoa tem

pena e diz “Não passe não que eu quero”. Isso é que é doar.

Pesquisador: Mas, quem é que doa?

Maju: A mulher do abrigo... Ia doar meu primo só que não doou. Minha mãe quis ele

Pesquisador: E tua mãe é o que dele?

Maju: Mãe! Porque a mãe dele morreu

Pesquisador: E tua mãe pode virar mãe dele?

Maju: Não! Porque ela já tá enterrada (parece ter entendido o termo “virar” literalmente)

Pesquisador: Não. Vê: tu dissesse que tua mãe virou mãe do teu primo?

Maju: Foi! Porque a mãe dele morreu. Aí ele chama minha mãe de mãe.

Pesquisador: Mas ela é mãe dele?

Maju: Não, a mãe dele morreu. Mas é que minha mãe considera ele como filho e ele chama ela de mãe

Pesquisador: E o que ele é pra tu?

Maju: Eu acho que pra mim... ele parece um primo pra mim. Ele era meu primo, mas agora...

Por meio da adoção, o primo de Maju, no seu entender, torna-se filho de sua mãe, já

que esta assim o considera. Todavia, este reconhecimento, apesar de importante, não é por si

só suficiente para que o menino tenha tornado-se filho da mãe de Maju. Por vezes, a menina

justifica/legitima a adoção por meio da morte da mãe (genitora) de seu primo. Novamente, a

morte aparece como grande possibilidade legítima de mudança da configuração familiar, mas,

desta vez, indiretamente, já que a ela (morte) apenas abre espaço para que a adoção ocorra. O

que este episódio traz de novo, para nossa compreensão das significações de família, por parte

64

da criança, é a necessidade do reconhecimento de um determinado laço de parentesco: no caso

de Maju, o fato de sua mãe reconhecer o menino como filho torna-o filho. Entretanto, isso não

implica que ele se torne seu irmão; Maju permanece reconhecendo-o como primo, ainda que

pareça estar havendo um processo de acomodação a uma nova realidade: “Ele era meu primo,

mas agora...”. Ou seja, os laços familiares constroem-se e transformam-se por meio do

reconhecimento processual.

5. 1.4. Para além do amor: O que é mesmo família?

Além da dimensão afetiva e da universalidade, outros significados articulam-se na

compreensão das crianças sobre família. Um deles é a família como encontro de pessoas (e

animais também?).

Episódio # 17: Encontro gera família

Babi (F/5;8); Dani (F/5;1); Leo (M/5;9)

Leo começa a desenhar um cavalo

Pesquisador: E cavalo tem família?

Leo: Não

Dani: Tem! Tem! Cavalo tem família sim: cavalo com outro cavalo.

Leo: Tem não, porque cavalo é animal. Pessoa é que tem (responde de maneira um pouco agressiva)

Pesquisador: Ah! Pessoa é que tem família, animal não...

Dani: Tem sim! Sabe por quê? Um cavalo se encontra com outro cavalo. Então, é família. Boi se

encontra com boi,

Babi: É, né tio?

Pesquisador: Como assim, “se encontra”?

Babi (cruzando os braços como se a pergunta feita pelo pesquisador fosse boba): O senhor não sabe

o que é se encontrar? Uma mulé com um homem?

Dani: Não, assim: o pessoal tinha o boi. O boi foge correndo. Aí o outro boi que tiver correndo por

perto fica amigo.

Leo interrompe Dani: Meu pai tá cheio de cavalo. Muito cavalo, muito cavalo. Aí eu monto neles pra

aprender. Lá é massa!

As significações coexistem em multiplicidade, todavia, este convívio não se dá sem

conflitos. No episódio descrito percebemos o emergir de uma questão polêmica para o grupo:

família é um fenômeno unicamente humano, ou os animais também dele participam? É

evidente que para essas crianças o ser humano não está sendo considerado animal, daí a

discussão realizada entre elas! Dani mostra-se favorável a ideia de famílias formadas por

animais. Leo, por sua vez, se posiciona (vigorosamente) de maneira contrária a esta ideia de

família. Mas, qual a razão do conflito? Ora, é justamente em decorrência do confronto entre

dois significados importantes acerca do objeto família. Interessante recordar que Leo

(episódio # 1) define família a partir de um conjunto de pessoas unidas pelo afeto (“Tá dentro

dum coração... E o papai, a mamãe e os irmãos!”), possivelmente, a partir de nossa

65

interpretação, calcado em um modelo idealizado de família. Dani, não obstante, durante a

sessão, ponderava afirmações taxativas e simplistas acerca da família, trazendo elementos

cotidianos, que revelassem as “exceções” dos modos de ser família (episódio # 8): “Dani

(complementando e voltando-se para Babi): Mas umas mãe morreram....”. Agora, Dani

apresenta um significado de família enquanto encontro de pessoas ou animais.

É interessante percebermos não só a multiplicidade dos significados, mas também a

polissemia das palavras. Babi, possivelmente, entende o termo encontro com características

afetivas/românticas/sexuais. No entanto, Dani explica o sentido da palavra, contando-nos uma

breve situação onde um boi torna-se amigo do outro em uma situação de fuga. Deste modo,

para Dani, o encontro que possibilita o surgimento de uma família não é o afetivo/romântico,

mas sim aquele decorrente da proximidade e amizade, bem como de agrupamento de

semelhantes, afinal unem-se “cavalo com cavalo e boi com boi” Em consonância a essa ideia,

temos a fala de Lia.

Episódio # 18: Família é ficar junto

Gui (M/5;7); Lia (F/4;10); Cadu (M/5;11)

Pesquisador: O que é uma família mesmo?

Lia: É quando a pessoa fica junto

Pesquisador: Então a gente aqui é uma família? Porque a gente tá junto...

Lia: Balança a cabeça em sinal positivo.

A noção de família enquanto agrupamento, também nos é revelada por Guto. De

maneira particular, podemos ver na fala dele a apropriação peculiar que as crianças fazem dos

significados do mundo adulto, trazendo-os de modo para atender as suas próprias

necessidades interacionais com seus parceiros, remetendo-nos ao conceito de reprodução

interpretativa de Corsaro (2011). A palavra família circula no mundo adulto, muitas vezes,

como sinônimo de grupo de pessoas fortemente ligadas por uma característica em comum que

constitui as identidades dos indivíduos. Assim, nações, times de futebol e empresas podem

autodesignar-se como família. E as crianças apropriam-se também destes significados.

Episódio # 19: A grande família brasileira...

Guto (5;7); Juca (5;9); Edu (6;0)

Pesquisador: E tu,Juca? Ta desenhando o que?

Juca: Meu primo

Pesquisador: E família tem mais quem?

Guto: Meu irmão

Pesquisador: E irmão é família?

Guto: sinal positivo com a cabeça... Os tios... Os tios também é família... o senhor também é família,

né? (dirigindo-se ao Pesquisador)

Pesquisador: Eu sou da sua família? Por quê?

66

Guto: É! Porque o senhor é do Brasil. Eu sou do Brasil e toda família é do Brasil

Juca: Eu sou do Sport, eu sou do Sport! (time de futebol pernambucano)

Pesquisador: E o Sport é família?

Juca: Eu sou jogador do Sport...

Apesar de mais abrangente do que a noção de família enquanto uma configuração

específica (pai, mãe e filhos), a noção de encontro e proximidade também abarca o

polimorfismo do fenômeno familiar. Deixa ainda em aberto a questão do que é a família e

abre-os uma nova inquietação: Família é só quem está próximo?

5.1.5. Família é com quem a gente mora?20

O binômio proximidade-separação parece estar intimamente relacionado às

significações de família das crianças participantes dessa pesquisa, perpassando os

acontecimentos de morte e separação conjugal (ver tópico 5.1.3), bem como noção de

encontro (5.1.4). Paralelamente, temos a concepção de família a partir de relações de

parentesco. Ambos os elementos articulam-se, ora sobrepondo-se, ora justaponde-se.

Ilustremos essa ideia com o episódio a seguir.

Episódio # 20: Todo mundo lá de casa...

Joca (M/4;10); Malu (F/4;8); Rick (M/5;1)

Malu: Meu pai é meio doidinho....

Pesquisador: Doidinho? Como assim doidinho?

Malu: Porque ele fica bebendo na rua

Pesquisador: Entendi...

Malu: Ele só não gosta de beber na casa da minha madrasta

Pesquisador: Tu tem madrasta?

Malu: Sinal positivo com a cabeça

Pesquisador: E madrasta faz parte da família

Malu (expressão de obviedade) sinal positivo com a cabeça

Pesquisador: E quem mais faz parte da família?

Malu: Minha mãe, meu tio... todo mundo lá de casa...

Pesquisador: Mas, todo mundo mora junto na mesma casa?

Malu: Só que meu pai mora em outra casa, e meus tios novos moram na mesma casa que meu pai

mora. Que são os irmãos do meu pai. Ele tem um mói de irmão

Pesquisador: Malu já falou quem faz parte da família dela. Falta vocês (orientando-se para as outras

crianças).

Rick: A minha avó Suely, minha mãe Laís, meu avô Henrique, meu tio Marcelo... Eu tenho um bocado

de família, só que eu não sei o nome...

Pesquisador: Um bocado de família? E tu não conhece tua família toda, não?

20

Neste tópico, realçamos, como importante elemento das significações de família das crianças, o espaço de

moradia (casa). Para alguns leitores, é possível pensar que o elemento “casa” vincula-se à noção de convivência,

daí, para as crianças, família seria aqueles seres com os quais convivemos. Contudo, conforme demonstrarão os

dados a serem apresentados, para além da convivência, a casa enquanto o próprio espaço físico de coabitação mostra-se também como importante elemento na definição de quem faz e de quem não faz parte da família.

67

Rick: Não

Pesquisador: Vê! Malu falou que a família dela mora com ela e Rick falou que nem toda família dele

mora com ele. Pra ser família tem que morar junto?

Malu: Sim

Rick: Sinal negativo com a cabeça e com o dedo

Pesquisador: Tem alguém da tua família que não mora contigo, Malu?

Malu (sinal negativo com a cabeça): Meu pai, meus tios

A fala de Malu revela-nos, de outro modo, a relação de proximidade como importante

na construção dos significados sobre família. Referimo-nos à figura da casa: local de moradia

e convivência da família. A própria expressão utilizada por Malu para referir-se a sua família

já é bastante sugestiva: “...todo mundo lá de casa...”. Ora, parece haver uma relação de forte

identidade entre família e moradia, a ponto de Malu responder afirmativamente quando

questionada se, para ser família, tem que morar junto. Nesse momento o elemento

proximidade parece sobrepor-se ao laço de parentesco na significação sobre família. Todavia,

já anteriormente a esta afirmação, Malu informava-nos de membros de sua família que não

moram na mesma casa que a sua. Neste momento, o elemento parentesco parece sobrepor-se

ao elemento proximidade. Por fim, esses elementos justapõem-se quando Malu é indagada

sobre a existência de familiares que não morassem com ela: a menina responde negativamente

por meio de um gesto e afirmativamente por meio da fala. Em outros momentos ainda, os

laços de parentesco parecem ser os únicos elementos considerados para a definição da família,

haja vista que Rick informa-nos não conhecer sua família em totalidade, não tendo, portanto,

proximidade com seus parentes. Evidenciamos assim o constante movimento de figura-fundo

na articulação dos diferentes elementos que compõem a rede de significação (ROSSETTI-

FERREIRA; AMORIM; SILVA, 2004).

Se o posicionamento de Malu nos permite pensar que nem todos que são da família

convivem em uma mesma moradia, Bia, no episódio a seguir, evidencia que o inverso

também é verdadeiro: nem todos que moram na mesma casa são considerados da família.

Episódio # 21: Cadê a avó?

Bia (F/6;4); Joel (M/6;1); Nanda (F/5;11)

Pesquisador: E o que é uma família, hein?

Bia: To desenhando eu, minha mãe e meu pai

Pesquisador: E tu Nanda?

Nanda: Minha família

Pesquisador: E quem é tua família?

Nanda: Meu avô, minha avó, minha tia, meu pai, minha mãe e eu... E meu irmão

(...)

Pesquisador: Vocês moram com quem?

Bia: Eu moro com minha avó.

Nanda: Eu moro com meu irmão, minha irmã e minha mãe

68

Pesquisador: E tu Joel?

Joel: Eu moro com a minha mãe e com meu pai

Pesquisador: E tu vai desenhar quem?

Joel: Um monte de família

Pesquisador: E como é um monte de família?

Joel: Meu avô, tia...

Observemos que ao ser perguntada sobre o que seria uma família, Bia diz estar

desenhando, a si, seu pai e sua mãe. Ao ser questionada sobre com quem mora, a menina

prontamente responde que mora com sua avó. Curiosamente, a figura da avó não aparece no

desenho de Bia. Deste modo, nos deparamos com algo surpreendente: apesar de conviver na

mesma casa (proximidade) e possuir laços de parentesco, a avó não se insere nem no discurso,

nem na representação gráfica de família concebida por Bia. Nesse caso, nem um dos dois

elementos até agora apresentados como fortes definidores de família foram suficientes para

que a avó fosse incluída.

Uma situação concreta onde podemos enxergar o conflito existente entre proximidade

e parentesco no processo de significação de família é a separação dos pais. Vejamos o

episódio a seguir, focalizando, a princípio, a figura de Cadu.

Episódio # 22: Porque eu não tenho família.

Gui (M/5;7); Lia (F/4;10); Cadu (M/5;11)

Pesquisador: E a professora de vocês é da família de vocês?

Cadu: É não... ela não é mãe da gente?

Lia: Nem mora com a gente

Pesquisador: E pra ser da família tem que morar junto?

Lia e Cadu: Tem.

Pesquisador: E se não morar junto?

Cadu: Aí vai ficar numa briga (olhar distante, parece pensativo)

Pesquisador: Briga de quem?

Cadu: Da mãe com a família... Da mãe com o pai

Pesquisador: E por que eles tão brigando?

Cadu: Porque eu não tenho família

(...)

Cadu: Já desenhei

Pesquisador: Já desenhasse? Então me diz o que tu desenhasse?

Cadu: Minha família

Pesquisador: E quem é tua família?

Cadu: Meu pai e eu. O nome do meu pai é Cadu também

Pesquisador: E toda família tem pai?

Lia, Cadu e Gui: Tem!

Lia (dirigindo-se a Cadu olhando para o desenho dele): E tua mãe, menino?

Pesquisador: E mãe é da família?

Lia, Cadu e Gui: É!

Pesquisador: E toda família tem mãe?

Lia, Cadu e Gui: Tem!

Pesquisador: Eu já ouvi falar de família que não tem mãe...

69

Lia: Até meu cachorrinho que é pequeninho é da família. Eu tenho dois cachorros.

Cadu: A minha mãe é.... O nome da minha mãe é Juliana.

Pesquisador: E ela faz parte da tua família?

Cadu: Faz

Figura 9 - Desenho de Cadu sobre Família21

Fonte: Arquivos da Pesquisa.

No início do episódio, Cadu afirma juntamente com Lia, a necessidade de morar junto

para ser família. Questionado sobre o que ocorreria casa isso não fosse possível, o menino

narra uma situação de conflito familiar entre um pai e uma mãe. Ainda que não tenhamos

indícios suficientes, cogitamos a possibilidade de Cadu estar narrando sua própria experiência

familiar, em decorrência da mudança de sua postura, direção do olhar e mudança no tom de

voz. Além disso, quando questionado porque o pai e a mãe brigavam, o menino responde

referindo-se a si próprio: “Porque eu não tenho família”. Deste modo, a situação de conflito

entre os pais e consequente mudança de domicilio de um deles faz o menino ter seu sentido de

família abalado.

Ao final do episódio, Cadu diz o nome de sua mãe e afirma que ela faz parte de sua

família. Contudo, curiosamente, ao ser questionado quem era sua família, Cadu refere-se

apenas a si e ao pai, únicas figuras também a constarem eu seu desenho. Nesse sentido, em

diferentes momentos interacionais e por diferentes meios de acesso (fala e desenho)

obtivemos significações aparentemente contraditórias, o que pode refletir o atual estado de

questionamento e revisão da noção de família do menino, em decorrência de uma possível

separação dos pais. Com isso, porém, não afirmamos que a experiência vivida por Cadu seja

21

Da esquerda para a direita: seu pai, ele e seu primo.

70

igual para todas as crianças: que a separação dos pais gere questionamentos sobre a noção de

família. Estudo recente demonstra que as crianças não possuem alteração significativa em sua

percepção de família após a separação dos pais (INTERAMINENSE, 2015). Ademais, Gui,

que faz parte do grupo de Cadu, também relata viver a experiência de separação dos pais,

sem, contudo, apresentar dentro da sessão de videogravação qualquer indício de

questionamento sobre seu significado de família, representando, inclusive seu pai no seu

desenho de família.

Episódio # 23: Pai separado...

Gui (M/5;7); Lia (F/4;10); Cadu (M/5;11)

Pesquisador: E família faz o que?

Cadu: Brinca, joga com a pessoa...

Lia: E tem o cachorro...

Pesquisador; E o cachorro é da família?

Lia: É. Ele mora comigo

Pesquisador: E tem alguém da tua família que não mora contigo

Lia: Tem! Meu tio

Cadu: Meu primo também não mora comigo. Ele gosta muito de computador

Gui: Meu pai tá separado da minha mãe

Pesquisador: Mas, ele é da tua família?

Gui: É...

Pesquisador: Mas ele mora contigo?

Gui: Não

Figura 10 - Desenho de Gui sobre Família22

Fonte: Arquivos da Pesquisa.

Por meio destes tópicos, buscávamos compreender a rede de significações em torno do

objeto social família, tal qual apreendido pelas crianças. Todavia, esta compreensão é apenas

o primeiro passo para entendermos de que forma as crianças concebem uma configuração

22

Da esquerda para a direita: seu pai, ele e sua mãe.

71

familiar específica, a saber, a família homoparental. De modo sintético, podemos firmar que

as principais significações definidoras de família para as crianças são a afetividade, a

universalidade (todos tem família), as relações de parentesco, a flexibilidade dos papéis

familiares (diferente pessoas podem ocupar um mesmo papel), o encontro e a proximidade.

Em princípio, nenhuma dessas significações colocaria em xeque o status de família da

configuração homoparental; duas outras, entretanto, colocariam-no: o gênero, como regra

delimitadora do exercício de determinados papéis familiares; e a compreensão da família,

como modelo específico a ser seguido (“pai, mãe e filhos”). Resta-nos agora aproximarmo-

nos do modo como esses diferentes elementos de significação irão articular-se na

compreensão da homoparentalidade por parte das crianças.

5.2. Homoparentalidade: com a palavra, as crianças!

Chegamos ao ponto central deste trabalho, a saber, a análise a respeito da

compreensão que as crianças têm acerca da homoparentalidade. Antes, contudo, faz-se

necessário uma informação que perpassará toda a análise: a homoparentalidade é um objeto

social não familiar às crianças participantes da pesquisa. Deste modo, as significações acerca

da homoparentalidade (propriamente dita) vão se construindo durante as conversas com elas.

Evidentemente, a homoparentalidade não se encontra desarticulada de outros objetos sociais

como a família, sexualidade, gênero, reprodução humana entre outros. Aliás, compreender os

significados acerca de um objeto social consiste, no nosso entender, revelarmos as

articulações que essas significações estabelecem com as significações de outros objetos

sociais. Não à toa, utilizamo-nos da metáfora da rede para nos referirmos ao modo como

ocorrem os processos de significação. Assim, será por meio das significações que

compartilham sobre família, gênero, sexualidade e reprodução humana que as crianças darão

significado à homoparentalidade.

Ao falarmos em homoparentalidade em nosso cotidiano, implicitamente, qualificamos

o modo ser pai ou mãe (parentalidade) a partir da orientação/condição sexual-afetiva

(homoafetividade) da pessoa. Admitimos, portanto, que a sexualidade pode interferir na

parentalidade. Assim sendo, coerentemente, iniciamos nossa análise buscando desvelar a

compreensão que as crianças têm sobre a homoafetividade.

5.2.1: Homoafetividade? Só em sonho!

72

Como dissemos anteriormente, uma das grandes questões dentro dos estudos sobe os

processos de significação refere-se a suas relações com a linguagem. Algumas correntes de

pensamento tendem ao que muitos chamam de uma supervalorização da linguagem,

entendendo que somente por meio dela torna-se possível o ato de significar. Outros defendem

a ideia de que os processos de significação transcenderiam o campo da linguagem,

encontrando no corpo e nas emoções um meio de conferirmos significado a nós mesmos, ao

outro e ao mundo (FURLAN, 2004).

Episódio # 24: Tô com vergonha de dizer...

Fabi (F/6;2); Nick (F/5;8); Nino (M/5;11)

Pesquisador: Ta vendo esse homem aqui? Ele é cuidador dos pinguins e ele começou a perceber que

Mateus e Victor estavam fazendo tudo juntos. O que será que ele pensou que estava acontecendo?

Fabi e Nick permanecem em silêncio.

Nino: Que eles eram amigos?

Nick dá um leve sorriso abaixando a cabeça demonstrando certa timidez.

Pesquisador: Vocês concordam? Querem falar alguma coisa (dirigindo-se a Fabi e Nick)

Nick: Não... (riso tímido) Eu to com vergonha de dizer

Pesquisador (Aproximando-se de Nick): Fala bem baixinho pra mim.

Nick (ainda rindo timidamente): Não

Nick permanece pensativa

Pesquisador: Conta aqui, só pra mim. O que você estava com vergonha de dizer?

Nick: Que eles fossem irmãos (como uma forma de escapar da insistência do pesquisador)

Pesquisador: Sabe o que o cuidador pensou? Que eles estavam apaixonados! Que Mateus e Victor

estavam namorando.

Todos riem timidamente. Nino leva as duas mãos à boca na tentativa de esconder o riso.

Pesquisador? E o que vocês acham disso? Acham que eles estavam namorando mesmo?

Nick (lança constantemente olhares fugidios e rápidos em direção do pesquisador, parecendo

monitorar sua reação): Não.

Durante toda a sessão, Nick concentra seu olhar nas imagens com expressão de certo espanto: olhos

bem abertos e boca levemente aberta.

Para além das polêmicas, é interessante perceber como, no que se refere à

homoafetividade, o primeiro dado que ganha relevância e do qual depreendemos importante

informação sobre como as crianças a concebem, provém não de palavras, mas de uma

expressão emocional: o riso.

Associado a uma série de posturas corporais, fisionômicas e ações (abaixar a cabeça,

franzir a testa, levar as mãos à boca escondendo o sorriso), o riso expressa um conjunto de

comportamentos característicos ao sentimento de vergonha. É este sentimento a primeira

reação das crianças diante da homoafetividade, como pode ser percebido a partir de Nick.

Posteriormente, as palavras vêm a confirmar o que já era notório: “Nick: Não... (riso tímido)

Eu tô com vergonha de dizer”. Ora, a vergonha origina-se da noção de proibição, ou seja, de

estar diante de algo que não poderia ocorrer, a homoafetividade. Em nosso caso, a proibição é

73

tamanha que não se pode sequer falar sobre o assunto. Apesar de não termos neste episódio

pistas suficientes para afirmarmos categoricamente que a vergonha refere-se à

homoafetividade (e não ao namoro em si), acreditamos que esta interpretação ganha força a

partir de perguntas feitas por Nick, em momento posterior da conversa, questionando o

pesquisador acerca da ausência de uma pinguim menina no namoro dos pinguins meninos.

Além disso, reações de vergonha similares diante da homoafetividade foram encontradas em

pesquisa recente com crianças na faixa etária de 6 a 9 anos na cidade do Recife-PE (BORGES

NETO; PEDROSA, 2016, artigo submetido).

Um detalhe ao final do episódio também nos traz uma informação relevante para

pensarmos a investigação dos processos de significação, ratificando sua dimensão interativa e

a regulação inerente ao campo social (CARVALHO; IMPÉRIO-HAMBURGER; PEDROSA

1996). Nick lança constantemente olhares fugidios e rápidos em direção do pesquisador. Tais

olhares são característicos de um comportamento de monitoramente da reação do outro

(CARVALHO, 1993), base para a regulação do comportamento. Deste modo, Nick parece

desejar entender a resposta esperada pelo pesquisador.

Continuando nossa reflexão a partir das expressões emocionais, é possível

depreendermos informações importantes também a partir da associação entre palavra e

emoção, corpo e linguagem.

Episódio # 25: Um pouquinho frango23

...

Bia (F/6;4); Joel (M/6;1); Nanda (F/5;11)

Pesquisador: E sabe o que acontece? Todo ano os pinguins meninos começam a namorar as pinguins

meninas... e vão formando casais. Sabe aqueles dois pinguins meninos? Peixe-boi e Robson...

Bia balança a cabeça em sinal positivo

Pesquisador: Eles começaram a fazer tudo juntos: eles estavam nadando junto, eles estavam

cantando, passeando.... Por que será que eles estavam tão juntos?

Bia: Tavam, tavam, tavam sendo amigos? (hesitante)

Nanda: Eu acho que não...

Bia: Tava sendo irmão!

Pesquisador: Vê: lá no zoológico tem um homem pra cuidar dos pinguins, um cuidador. Que nem a

tia de vocês. E sabe o que ele pensou quando viu eles dois juntos?

(Silencio)

Pesquisador: ‘Eles devem estar namorando. Peixe-boi e Robson devem ser namorados.’

Bia (olhos bem abertos, levando as duas mãos a boca aberta, em sinal de surpresa): Meu Deus!

Pesquisador: Que foi?

Bia: Nunca percebi que dois homens...

Nanda: Namoram

Bia: ...namoram

Pesquisador: É! Pelo menos era o que o cuidador tava achando... E parece que era verdade mesmo:

Robson e Peixe-boi estavam namorando... E o que vocês acham disso?

23

Termo popular pernambucano, potencialmente pejorativo, para designar homens homossexuais.

74

Bia: Eu acho um pouquinho assim (fazendo gesto com a mão) frango

Pesquisador: E o que é frango?

Bia: Frango, frango, frango (em tom de obviedade, como se todos soubessem). Assim...

Pesquisador: Assim....?

Bia: Assim, menino, dois juntos

Pesquisador: E se fossem duas meninas?

Bia: Parece sapatão

Nanda: Sapatão, sapatão (leve riso)

Bia: Frango parece comida... sapatão parece sapato

Pesquisador: Huhumm (em sinal de compreensão)

Ao ser comunicada da relação de namoro existente entre os dois pinguins meninos da

história, Bia reage com surpresa, a qual está inscrita em dois planos: (1) o corpo, por meio dos

olhos bem abertos e das mãos e levadas em direção da boca (também aberta) ; (2) da fala, ao

dizer “Meu Deus!” interjeição costumeira em nossa cultura, utilizada em situações

inesperadas. Este comentário pode parecer, a princípio, um pouco óbvio, afinal, é de esperar

certa consonância entre o conteúdo da fala, sua forma e as ações corporais associadas.

Todavia, isto deixa de ser óbvio ao relermos o episódio # 20 no tópico anterior. Lá, Malu, ao

responder se haveria alguém de sua família com quem ela não morava junto, reponde: “Malu

(sinal negativo com a cabeça): Meu pai, meus tios”. Ora, nesta situação, notamos uma

dissonância (na verdade, uma oposição) entre os sentidos apreendidos pelo corpo e pela fala,

levando-nos a cogitar a possibilidade de que corpo e linguagem consistem em diferentes

campos de inscrição dos significados. Evidentemente, até aqui, referimo-nos ao processo de

apreensão de significados por parte do pesquisador e/ou sua expressão por parte da criança.

Porém, não seria possível pensar que estas duas diferentes vias também mantivessem certa

autonomia no processo de construção de significados?

Ainda do episódio acima, é possível percebermos aspecto importante sobre a

homoafetividade: o amplo grau de compartilhamento social a respeito do tema. Ao ser

perguntado: “O que é ser frango?” Bia responde a pergunta como se a resposta fosse óbvia e

como se o pesquisador já o soubesse, bastando repetir a palavra algumas vezes para que ele

(pesquisador) recordasse o significado da palavra. Daí, entendemos que, para Bia, o

significado de “frango” (homossexual) é algo que todos conhecem, a saber, dois meninos que

namoram; sendo o mesmo verdadeiro para o termo “sapatão”, duas mulheres que namoram. É

curioso perceber que, para Bia e demais crianças participantes dessa pesquisa, a

homossexualidade não é percebida a partir de traços de uma performance de gênero

(vestimentas, tipo de cabelo, etc.), mas sim a partir de uma relação afetiva (“dois meninos

juntos”).

75

Dizemos isto, pois, em trabalho anterior sobre o tema, com crianças também da cidade

do Recife-PE (BORGES NETO; PEDROSA, 2016, artigo submetido), a homossexualidade

era percebida, ao menos inicialmente, a partir da performance de gênero e não da relação

afetiva. Por exemplo, Lucay, uma das crianças participantes da pesquisa citada, comenta

acerca do cabelo do cantor canadense Justin Bieber (atualmente bastante reconhecido,

principalmente entre o público infanto-juvenil), não sendo sua relação com outro homem que

primariamente a fez caracterizá-lo como “frango”, mas sim o seu cabelo. Possivelmente, para

a menina, o cabelo utilizado pelo cantor canadense não estaria adequado a alguém do gênero

masculino, sendo um indicativo, portanto, de sua possível homossexualidade.

Contudo, este alto grau de compartilhamento dos significados acerca da

homoafetividade não implica uma ampla convivência com ela. Assim, significação e

experiência mantém certa distância, o que não é estranho, se levarmos em consideração que o

primeiro significado que depreendemos acerca da homoafetividade, conversando com as

crianças, é o de proibição (vergonha). Ou seja, todos compartilham o que seja a

homoafetividade (frango), mas parece que ela não existe (proibição/vergonha). Vejamos o

episódio a seguir, que ilustra a invisibilidade das relações homoafetivas.

Episódio # 26: Nunca vi dois meninos namorando...

Gui (M/5;7); Lia (F/4;10); Cadu (M/5;11)

Pesquisador: Uma vez por ano os pinguins meninos começam a namorar as pinguins meninas. Só que

esse ano aconteceu uma coisa diferente. Tão vendo esses dois pinguins meninos? Eles começaram a

fazer tudo juntos. O que eles estão fazendo?

Gui: Eles tão se beijando

Pesquisador: Eles tão se beijando?

Gui: Eles queriam se beijar (apontando para a tela)

Pesquisador: Tá certo. Se vocês tão dizendo... Aí, acontece que eles tinham um “tio” que nem a “tia”

(professora) que cuidava deles. Esse tio viu que eles estavam muito tempo juntos e pensou: ‘Eles

devem estar namorando’...

Lia (interrompendo a fala do pesquisador): Namorando?

Pesquisador: É!

Lia: Nunca vi dois meninos namorando.... (em tom de repreensão)

A frase de Lia (“Nunca vi dois meninos namorando...”) traz em si uma complexidade

bastante interessante. Simultaneamente, traz expressos a “causa” e o “efeito” do mecanismo

de perpetuação do preconceito contra a homoafetividade. Como "causa” referimo-nos a

repressão da homoafetividade, dita em tom de repreensão de Bia: ‘Não é possível dois

meninos namorarem’; por efeito referimo-nos ao sentido mais superficial da frase, a saber, a

convivência com uma relação de namoro entre dois meninos: ‘Nunca vi (presenciei) dois

meninos namorando’. Neste sentido, a invisibilidade parece estar na base de um ciclo vicioso,

76

que opera nos discursos socialmente produzidos sobre a homoafetividade, travestidos de

aceitação: a homoafetividade pode existir desde que não seja vivenciada/demonstrada em

espaços públicos, pois pode causar certo estranhamento e desconforto (especialmente nas

crianças); esta invisibilidade, por sua vez, gera estranhamento diante do desconhecido,

alimentando o preconceito e reforçando a norma proibitiva que incide sobre a

homoafetividade (BORGES NETO, 2014). Evidentemente, está na base da invisibilidade da

homoafetividade e consequente estranhamento diante dela, a noção heteronormativa das

relações afetivo-sexuais. Em outras palavras, só é considerado legitimo o relacionamento

entre homem e mulher.

Episódio # 27: Namoro é sempre heterossexual

Milla (F/4;7); Júlio (M/5;1); Tito (M/5;3)

Pesquisador: Aqueles dois pinguins meninos e aquele pinguim bebê são uma família?

Milla e Júlio: São!

Pesquisador: E pode uma família com dois pais?

Milla, Tito e Júlio: Nããão!

Milla (apontando para a imagem): O filho, a mãe e o pai.

Pesquisador: Não tem mãe aí não. Só pai... E se fossem duas mulheres e elas fossem mãe do

pinguinzinho, elas poderiam namorar?

Júlio: Não. Porque se fosse um homem e uma mulher, aí namorava

Ora, uma das possíveis expressões do estranhamento é a rejeição a homoafetividade:

Episódio #28: Acho que vou vomitar...

Babi (F/5;8); Dani (F/5;1); Leo (M/5;9)

Pesquisador: Chega uma época do ano em que os pinguins homens começam a namorar pinguins.....

(incitando as crianças a completarem a frase)

Dani: Mulher

Pesquisador: Mulheres. E aí vão formando casais. Sendo que aconteceu uma coisa diferente nesse

ano: João e José começaram a passar muito tempo juntos. Vê: o que eles estão fazendo aqui

(mostrando as imagens no computador).

Leo: Nadando, brincando

Pesquisador: E sabe quem é esse aqui? Esse aqui é o cuidador dos pinguins, que nem a professora de

vocês cuida de vocês. Esse tio (cuidador) começou a ver João e José o tempo todo juntos, fazendo

tudo juntos. O que será que ele pensou?

(Silêncio)

Pesquisador: Ele começou a achar que João e José estavam namorando...

Todos começam a rir. Babi e Dani riem mais intensamente, levando as duas mãos a boca, como

possível sinal de vergonha.

Babi: Acho que eu vou vomitar

Dani: Eu também acho que estou com vontade de vomitar

Pesquisador: Por quê?

Dani: Porque....

Após as reações de vergonha e surpresa, Babi e Dani demonstram uma rejeição

extremada ao fato dos dois pinguins meninos namorarem, a ponto de afirmarem o desejo de

77

vomitar. É como não fosse possível “engolir” o fato narrado pelo pesquisador. Ademais, é

curioso perceber como esta rejeição revela um preconceito “sem explicações”. Em nenhum

momento as crianças justificam o motivo pelo qual estranham o fato dos dois pinguins

meninos namorarem. Ainda que ensaiem uma justificativa: “Dani: Porque....”. Deste modo, a

regra de proibição é aprendida sem estar necessariamente atrelada a uma justificativa. Talvez,

isso nos aponte um possível mecanismo de apreensão das regras sociais pelas crianças:

primeiro aprendem a regra, para, posteriormente assimilarem seus discursos legitimadores.

Outra possível reação associada ao estranhamento é a aceitação:

Episódio # 29: Oxi! Namorando?!

Edu (M/6;0); Juca (M/5;9); Guto (M/5;7)

Pesquisador: Uma vez no ano, os pinguins meninos, os pinguins homens começam a namorar as

pinguins meninas.

Juca: Meninas?

Pesquisador: É! Mas esse ano aconteceu um negócio diferente. Aqueles dois pinguins do começo da

história, Estevão e Carlos, começaram a fazer tudo juntos...

Juca (vendo a imagem): Eles tavam cantando, andando....

Pesquisador: Huhumm. E quando dois pinguins meninos começam a fazer tudo juntos, eles são o que?

Silêncio

Pesquisador: Vê! Aqui tem gente pra cuidar de vocês, né? Lá no zoológico também tem gente pra

cuidar dos pinguins. Esse tio aqui, olha (mostrando a imagem). Ele viu que Estevão e Carlos estavam

juntos, e pensou: ‘Eu acho que eles estão namorando!’

Juca: Oxi! Namorando?!

Pesquisador: É! Pelo menos é o que tá dizendo a história. E por que tu dissesse ‘Oxi!’ quando eu

disse que Estevão e Carlos estavam namorando?

Juca: leve sorriso

Pesquisador: Quando dois meninos namoram, eles são o que?

Juca: Namorados...

De modo similar a Babi, Juca parece estranhar o fato do namoro. Mais uma vez, não

temos pistas suficientes que nos permitam distinguir se o estranhamento se dá por conta do

namoro simplesmente ou pelo fato de os namorados serem dois pinguins meninos. De

qualquer forma, é interessante perceber que Juca, tanto neste episódio, como ao longo de toda

a conversa, apesar do estranhamento inicial e do reconhecimento da relação de namoro entre

os dois pinguins meninos, não utiliza de termos populares (frango, gay, etc.), ou quaisquer

outros, para classificar esta relação como de um tipo diferente. Mesmo após o estranhamento

a respeito do namoro, Juca se refere aos dois pinguins meninos como, simplesmente,

namorados. Por algum motivo, Juca parece não ter se apropriado nem do vocabulário nem dos

discursos hegemônicos e posicionamentos sociais a eles atrelados a respeito da

homoafetividade. Talvez seja justamente esta inapropriação que tenha possibilitado a Juca um

posicionamento de naturalidade após o estranhamento inicial. Como veremos mais adiante, o

78

trio composto por Juca, Guto e Edu (três meninos) apresenta outro aspecto bastante

interessante: foi o único que, ao ser informado que a história a ser contada era de uma família,

nomeou a todos os personagens com nomes tidos como masculinos. Em outras palavras, uma

família apenas com seres do sexo masculino.

O estranhamento em relação à homoafetividade pode ainda se apresentar por meio de

uma resistência, seguida pela tentativa de modificação do novo conteúdo a fim de que ele se

adeque (articule-se) ao conhecimento (rede de significações) pré-existente.

Episódio # 30: Gay? Só em sonho

Milla (F/4;7); Júlio (M/5;1); Tito (M/5;3)

Pesquisador: Mas eles começaram a andar tão juntos que o cuidador dos pinguins, tipo um

fazendeiro de pinguins, começou a pensar que esses dois pinguins meninos estavam namorando. O

que vocês acham? Eles tão namorando ou não?

Milla e Júlio: Não!

Júlio: Eles tão brincando assim pra dizer que são os patos

Pesquisador: Mas vamos dizer que eles tão namorando. Faz de conta que eles tão namorando

Júlio: Bora. Aí eles foi por traz do outro, encostando a cabeça assim. Aí parece que eles estão

namorando

Pesquisador: E o nome desses dois pinguins, vocês sabem?

Júlio (apontando para a imagem): Um menino, outro menino... E as meninas tão aonde?

Pesquisador: Não tem menina. São só esses dois pinguins meninos que namoram...

Júlio: Eles tão namorando com as meninas

Pesquisador: Não... os dois meninos tão namorando

Júlio: E porque o senhor disse que tinha umas meninas?

Pesquisador: Então: É porque tem pinguim menino, na história, que namora pinguim menin-A e tem

pinguim menino que namora outro pinguim menin-O. Como se fossem dois homens namorando.

Entendeu?

Júlio (fazendo sinal positivo com a cabeça): Não! É porque eles tão pensando que são as meninas!

Pesquisador: É porque eles tão pensando que são as meninas? Como assim?

Júlio: Assim! Porque menina não tem cabelo aí na história. Só ela que tem (apontando para Milla).

Pinguins meninas não tem cabelo. Porque isso aí (a história) não é de verdade. É de mentirinha. Só

pra pessoa vê.

Pesquisador: Huhumm. Mas na história tá dizendo que esses dois pinguins, tipo dois homens, tão

namorando.

Júlio: É . Mas é porque eles tão sonhando... eles tão sonhando

Neste episódio, o mais interessante é notar o movimento contínuo e progressivo de

Júlio em realizar alterações criativas na história a fim de que o casal principal adeque-se ao

modelo heterossexual. Dizemos contínuo, pois Júlio demonstra-se persistente no

empreendimento de tonar o casal de pinguins meninos em um casal heterossexual. E

progressivo, pois o menino parte da negação do namoro, passando pela ideia de um simples

engano interpretativo por parte da história, até chegar à negação da realidade da relação

homoafetiva narrada. A homoafetividade dos pinguins começa sendo considerada apenas

como uma brincadeira. Em seguida, curiosamente o único momento em que Júlio não se opõe

79

à fala do pesquisador é quando ele diz: “Faz de conta que eles estão namorando”, ao que o

menino responde positivamente e ainda imita os personagens (ver a imagem abaixo). Ou seja,

no campo da fantasia, torna-se possível a assimilação de uma relação homoafetiva. Esta ideia

ganhará força mais adiante quando dedicaremos um subtópico exclusivo sobre a reação das

crianças à apresentação de uma família homoparental de humanos. Nele, não só a

homossexualidade, mas também a homoparentalidade são, a principio, vistas como

impossíveis.

Retornando a Júlio, apesar da aparente aceitação do casal no campo da fantasia,

rapidamente o menino se dá conta da ausência de meninas na história, “Cadê as meninas?” Ao

ser explicado acerca da diversidade de casais, Júlio não concorda. Dessa vez, o engano não é

da parte da história ou do pesquisador que a conta, mas sim dos próprios pinguins: “É porque

eles tão pensando que são as meninas!” E ainda justifica o engano dos pinguins meninos a

partir de uma análise comparada entre o dimorfismo24

sexual entre humanos e pinguins,

reconhecendo a ausência, na espécie dos pinguins, de uma característica bastante importante

(na sua compreensão) para a diferenciação de gênero na espécie humana: o cabelo. Milla, a

menina apontada por Júlio, tem cabelo comprido, já as pinguins meninas não (“Pinguins

meninas não têm cabelo”). Justificada está, portanto, a confusão por parte dos pinguins

meninos. Novamente, estamos diante da compreensão de gênero das crianças calcada em

aspectos físicos/estéticos da performance de gênero (ver análise do episódio # 14). De

qualquer forma, isto não é tão importante, afinal: “Porque isso aí (a história) não é de verdade.

É de mentirinha. Só pra pessoa vê.”

Por fim, Júlio, deparando-se novamente com a persistência do pesquisador em afirmar

a realidade do casal homoafetivo, lança mão de um recurso aparentemente novo, mas de

mesma base que o anterior. Agora, a homoafetividade não é (1) um engano (nem da

interpretação dos outros, nem dos próprios pinguins); (2) apenas algo do pensamento (“Eles

pensam...”); (3) nem “é só de mentirinha”, mas sim o fruto de um sonho (“... eles tão

sonhando”).

Ora, a homoafetividade, para Júlio, não parece ser da ordem do real. Curiosamente, ela

só pode existir no campo da fantasia. Todavia, neste campo, ela não só pode existir, como

também pode ganhar vida no corpo do menino, que imita a postura corporal dos dois pinguins

machos que leva a crer que estão namorando. Evidentemente que com isso, não estamos

afirmando que Júlio seja homossexual, ou que se dê conta de que está representando a

24

Em biologia, o dimorfismo sexual é considerado quando há ocorrência de indivíduos do sexo masculino e

feminino de uma espécie com características físicas não sexuais marcadamente diferentes.

80

homoafetividade com seu corpo. Queremos apenas evidenciar que no campo da fantasia, por

uma articulação menos rígida de significações, o inaceitável torna-se possível. Em outras

palavras, a fantasia é um campo legítimo de experimento e elaboração de significações,

inclusive aquelas cujo real, por suas regras, não comporta (SANTOS, 2015).

Além do estranhamento em relação à homoafetividade, outro elemento parece

articular-se e dificultar a compreensão da possibilidade de existência da homoparentalidade,

por parte das crianças: o modelo familiar pai-mãe-filhos.

5.2.2. O Modelo Pai-Mãe-Filhos

Ao final da primeira parte deste capítulo, citamos alguns dos principais elementos que

perpassam e constituem as significações de família das crianças participantes da pesquisa.

Dentre eles, destacamos a noção de família calcada em uma configuração específica, a saber,

aquela formada por casal heterossexual e seus filhos, a qual será por vezes referida neste

trabalho como “modelo pai-mãe-filhos”. É justamente esta noção de família como um modelo

configuracional a ser seguido, um dos entraves para a compreensão da homoparentalidade

como um modo possível de ser família, por parte das crianças.

Episódio # 31: Sempre teve dois pais?

Babi (F/5;8); Dani (F/5;1); Leo (M/5;9)

Pesquisador: Me disseram que é a história de uma família. Bora dar nome para esses pinguins?

Leo: Geldo, Leo (o pequeno), e a mãe... Jonilda

Pesquisador: Mãe? Onde é que tem mãe aí?

Leo e Dani: Aqui! (apontando para o pinguim com a cabeça recostada no colo do outro pinguim

maior).

Após uma longa discussão sobre os nomes a serem dados...

Pesquisador: Tá bom! Então eu posso dar os nomes?

Todos respondem: Sim!

Pesquisador: José, João e Priscila... São dois homens. E na história tá dizendo que eles dois são pais

de Priscila: ela tem dois pais.

Silêncio de todos

Dani: Mas, por quê?

Pesquisador: Na história é que tá dizendo

Dani: Já sei! É porque a mãe morreu!

Pesquisador: “Porque a mãe morreu”?... Na história não tá dizendo que a mãe morreu não. Diz que

ela (Priscila) sempre teve dois pais.

81

Figura 11 - Imagem inicial da História

Fonte: Richardson e Parnell, 2005.

Algo bastante recorrente durante os diferentes encontros de conversas realizadas na

pesquisa refere-se ao momento da contação da história. O pesquisador costumava iniciar este

momento apenas informando tratar-se de uma história sobre uma família, ou ainda, apenas

uma história sobre pinguins. Quase que invariavelmente, com exceção de um trio (a ser

descrito mais adiante), a simples menção à ideia de família ou a apresentação da imagem

inicial da história (ver imagem acima) remetia as crianças ao modelo pai-mãe-filhos, o qual

era expresso por meio do reconhecimento e apontamento na imagem destes três papéis

familiares, ou ainda, no ato de nome aos pinguins, onde, um dos pinguins adultos sempre era

nomeado com nome feminino e o outro com nome masculino.

No episódio acima, ocorre um misto dessas duas possibilidades, como é percebido na

fala de Leo, ao nomear os pinguins: “Geldo, Leo (o pequeno), e a mãe... Jonilda.

Imediatamente, uma questão deve vir à mente do leitor: como as crianças identificam essas

três figuras se, no caso dos pinguins, não encontramos dimorfismo sexual acentuado? A

resposta simples nos é dada, em conjunto unânime, pelas crianças: a altura do pinguim,

associada a sua postura corporal. Nesse caso, será identificado como a mãe aquele pinguim de

menor estatura e com a cabeça levemente inclinada sobre o colo do pinguim de maior

82

estatura, que, por sua vez, será indicado como pai. Como pode ser melhor ilustrado pelo

episódio a seguir.

Episódio # 32: A mãe é pequenininha...

Cris (F/5;11); Maju (F/6;4); Luca (M/5;7)

Pesquisador: A história é sobre esses pinguins aí....

Luca: Tem a mãe, tem o pai e tem o filho (apontando para a imagem)

Pesquisador: Aonde que tem a mãe, o pai e o filho?

Luca e Maju apontam na tela: Mãe, filho e pai (a mãe é o pinguim com a cabeça recostada sobre o

colo do pinguim maior)

Pesquisador: Por que essa é a mãe?

Maju: Porque essa é a pequenininha...

Pesquisador: Quando me contaram essa história, me disseram que não tinha mãe não. Que eram dois

pais e a filha

Luca: Não! É uma mãe, um pai, e um filho

De ambos os episódios é possível depararmo-nos novamente com identificação de

gênero a partir de características físicas e ou posturais. Ora, a pronta identificação das figuras

de pai, mãe e filhos na imagem mostrada, bem como sua incidência em quase a totalidade dos

dados, faz-nos conceber este significado de família como amplamente compartilhado em

nossa sociedade. Todavia, é por meio da reação das crianças à informação de que, de fato, a

história trata de uma família com dois pais e um filho/filha, que depreendermos o caráter

modelar ou normativo desta configuração familiar. As crianças afirmavam convictamente que

a história estava errada, e que se tratava de “uma mãe, um pai, e um filho”, só sendo possível

a ausência da mãe em uma família por meio de sua morte: “Dani: Já sei! É porque a mãe

morreu!”

Ainda nesse aspecto, é interessante notar que a norma deriva e incide precisamente

sobre a configuração familiar, não se tratando, neste momento, de um preconceito relativo à

orientação/condição afetivo-sexual dos pais-pinguins, ou também da orientação/condição

afetivo-sexual de humanos. Vejamos o próximo episódio.

Episódio # 33: Sapatão pode ter filho?

Babi (F/5;8); Dani (F/5;1); Leo (M/5;9)

Pesquisador: E se fossem duas mulheres? E se ela (Priscila) tivesse duas mães, podia?

Dani: Podia! Sabe por quê? Porque elas eram sapatona.

Pesquisador: E se são dois homens não pode ser sapatão não?

Dani: Sapatão

83

Pesquisador: Sapatão? Quando dois homens namoram é sapatão?

Dani: rindo, faz sinal positivo com a cabeça.

Babi: Quando dois homens namoram é sapatão. Quando duas mulheres namoram é sapatona.

Pesquisador: E sapatão pode ter filho?

Babi: Pode...

Pesquisador: E sapatona pode?

Babi: Pode

Fica claro neste episódio que é o modelo pai-mãe-filhos que impede a aceitação de

dois pais em uma família, e não orientação sexual dos mesmos. Afinal, segundo Dani e Babi,

tanto “sapatonas” quanto “sapatões” podem ter filhos.

Para algumas das crianças, o modelo pai-mãe-filhos parece ser o elemento

preponderante em suas significações de família, a tal ponto de reconhecerem a parentalidade

dos dois pinguins machos da história, mas não seu status de família.

Episódio # 34: Pra ser família, tem que ter fêmea!

Bia (F/6;4); Joel (M/6;1); Nanda (F/5;11)

Pesquisador: O pinguinzinho nasceu e os dois pinguins macho começaram a tomar conta dele, Peixe-

boi e Robson...

Nanda: E ficou feliz

Pesquisador: E ficou feliz? Por que ficou feliz? Como é que tu sabe que ficou feliz?

Nanda: Porque nasceu... Porque eles conseguiu .... Porque o dono (cuidador) veio e colocou o ovo e

ele nasceu

Bia (interrompendo Nanda): Eu já sei! Eu já sei! Eu já sei! Aí eles ficaram família e foram felizes

Pesquisador: E como é que faz para ficar família?

Bia: Pra ficar família? Pra ficar família tem que ter fêmea e macho e irmão e tia e avó e avô...

Pesquisador: mas aqui não tem fêmea não (apontando para a história). Aqui só tem dois machos e um

bebezinho. Então, é família ou não é?

Bia: É (reticente)

Nanda: Não!

Bia: É... não. É não! Porque tem que ter fêmea

Nanda: É! Tem que ter fêmea!

Pesquisador: Mas, eles dois são pais do pinguinzinho?

Bia e Nanda: São!

Pesquisador: São pais e não são família?

Bia: Não!

Pesquisador: Ah, tá! (em sinal de compreensão). Mas vocês acham que a pinguinzinha gostava deles?

Bia e Nanda: Gostava!

A centralidade deste episódio encontra-se precisamente no processo para que um

conjunto de seres (em nosso caso, pinguins) ganhe o status de família. É interessante notar

que não só as figuras de pai e mãe são necessárias, mas também a dos filhos. Curiosamente,

Bia só refere-se à família de pinguins após o nascimento do bebê pinguim, informando-nos,

por meio de suas palavras, a mudança de status: “Aí eles ficaram família”. Ora, o termo

ficaram parece indicar uma passagem de um estado de não família para o de família. A

necessidade da presença de filhos para ser família fica mais bem ilustrada no trecho a seguir:

84

Episódio # 35: Pra ser família, tem que ter filho!

Bia (F/6;4); Joel (M/6;1); Nanda (F/5;11)

Pesquisador: Construir um ninho. Pra que construir um ninho?

Bia: Eu acho que é pra...... esqueci o nome (pensativa)

Pesquisador: Olha aqui essa figura

Bia: Ah! Pra nascer um pintinho

Nanda: Um pintinho....

Pesquisador: Pra nascer um pintinho! Eles queriam um bebê. Os dois pinguins homens, Peixe-boi e

Robson, queriam um bebê. Eles viam que todos os outros casais tinham um bebê e eles queriam ter um

bebê também. E porque eles queriam um bebê?

Bia: Eu acho que... porque eles queriam formar uma família

Pesquisador: E pra ser família tem que ter bebê?

Nanda: Não

Bia: Tem

Pesquisador: Tem?

Bia: Tem que ter!

Associado ao nascimento do filho e a passagem do status de família está o sentimento

de felicidade que, por fim, parece também fazer parte do modelo pai-mãe-filhos. Neste

sentido parecemos estar diante do que Júnior, Moraes e Coimbra (2015) denominam de

família “margarina”, aquela formada por casal heterossexual e filhos e que compartilham de

um sentimento de felicidade contínuo, sem espaços para conflitos, Aliás, a não permissão de

conflitos nas significações de família também se fez presente em nossa pesquisa (ver episódio

# 3).

Tendo suas significações de família questionadas pelo pesquisador, precisamente em

suas articulações como o modelo tradicional de família, Bia e Nanda se veem em dúvida.

Pesquisador: E como é que faz para ficar família?

Bia: Pra ficar família? Pra ficar família tem que ter fêmea e macho e irmão e tia e avó e avô...

Pesquisador: mas aqui não tem fêmea não (apontando para a história). Aqui só tem dois machos e um

bebezinho. Então, é família ou não é?

Bia: É (reticente)

Todavia, rapidamente, as meninas optam por reafirmar a necessidade de enquadre no

modelo, cumprindo suas exigências: “Bia: É... não. É não! Porque tem que ter fêmea /Nanda:

É! Tem que ter fêmea!”. Curiosamente, a fim de darem conta de dois fatos aparentemente

contraditórios (a parentalidade dos dois pinguins machos e a necessidade de uma fêmea para

compor uma família) as meninas distinguem os dois fenômenos. Assim, é possível ao

pinguim bebê ter dois pais, mas não que esse dois pais sejam sua família.

Pesquisador: Mas, eles dois são pais do pinguinzinho?

85

Bia e Nanda: São!

Pesquisador: São pais e não são família?

Bia: Não!

No episódio # 34 nos é possível ainda observar o modo como a afetividade é colocada

em segundo plano em relação ao modelo pai-mãe-filhos no que se refere à construção das

significações de família. Segundo Bia e Nanda, a pinguinzinha bebê gostava de seus dois pais,

porém, isto não foi o suficiente para torná-los, na compreensão das meninas, sua família.

Lembremos, portanto, que as significações articulam-se em um constante movimento de

figura-fundo. Um único elemento, além da morte, contudo, pode emergir e permitir o

descumprimento do modelo/norma familiar, segundo o qual só poderia haver um pai e uma

mãe, a saber, papai do Céu.

Episódio # 36: Tem a mãe, o pai e o filho... e o papai do Céu

Cris (F/5;11); Maju (F/6;4); Luca (M/5;7)

Pesquisador: E bicho tem família?

Maju: Não

Luca: Tem sim! Tem sim

Maju: Tem sim... ursos

Luca: Dois pais (voz baixa)

Maju: Dois pais (em tom de estranhamento)?! Que eu saiba é uma mãe, um pai e um filho...

Pesquisador: Por que não dois pais?

Maju: Só se for papai do céu e outro pai

Como muito anunciado, apenas em uma das conversas, as crianças se referiram a uma

família apenas com pinguins do sexo masculino, como vemos abaixo.

Episódio # 37: Três meninos!

Edu (M/6;0); Juca (M/5;9); Guto (F/5;7)

Pesquisador: É a história de uma família de pinguim. Vamos dar um nome pra eles? Cada um diz um

nome

Juca: O nome desse vai ser Carlos

Edu: E o nome desse daqui vai ser Estevão

Guto: Steve (o bebê)

Pesquisador: Ok, então! Estevão, Carlos e Steve

Curiosamente, é este mesmo grupo que não se posiciona com resistência ou rejeição

ao fato dos dois pinguins machos namorarem. Logo após reação de estranhamento, seguiu-se

uma reação de naturalidade diante do namoro, demonstrando o não compartilhamento de

qualquer tipo de preconceito em relação à homoafetividade. Isto poderia levar-nos a crer que

os meninos também apresentariam uma maior flexibilidade de compreensão quanto à

composição familiar. Todavia, isto não ocorre: o modelo pai-mãe-filhos permanece sendo um

importante elemento em suas formas de significar a família.

86

Episódio # 38: A mãe foi para o trabalho

Edu (M/6;0); Juca (M/5;9); Guto (F/5;7)

Pesquisador: Agora. Me tira uma duvida: Steve tem família?

Juca: Tem!

Pesquisador: Quem é a família dele?

Juca: O Pai

Pesquisador: O pai?

Juca: A mãe...? (hesitante)

Guto: Os dois

Pesquisador: Os dois quem?

Guto: A mãe e o pai

Juca: É

Pesquisador: Mas na história tá dizendo que ele não tem mãe não. Só tem dois pais: o Carlos e o

Estevão

Silêncio, parecem pensativos

Juca: Ele tem mãe, só que a mãe dele foi embora para o trabalho

Pesquisador: Bem, na história tá dizendo que o Steve tem dois pais e nenhuma mãe. E que os dois

pais dele são o Carlos e o Estevão

Juca: Ele tem dois pais e duas mães!

Pesquisador (apontando a imagem): Aqui, ó: O Carlos, o Estevam e o Steve

Juca (apontando na imagem): É a mãe, né?

Pesquisador: Não. É o pai, os dois pais. Pelo menos é o que tá dizendo na história. Porque não tem

menina na história. Só tem menino: Carlos, Estevão e Steve

Juca: Mas ele só gostou de Estevão

Guto: Ele só gostou de um, de Estevão

Pesquisador: Por que ele só gostou de Estevão?

Juca: Porque ele não queria ser amigo do outro não. Ele só queria brincar com esse (Estevão)

Pesquisador: Por que?

(Silêncio)

Mais uma vez, recorremos à noção de regulação do comportamento dentro do campo

interacional para compreendermos a produção de significados por parte das crianças. A

princípio, quando perguntado a respeito da família do pinguim bebê (Steve), Juca não só

afirma que ele a tem, como afirma também que ela é composta por um pai. A partir do

questionamento do pesquisador, o menino muda de resposta, referindo-se à figura de uma

mãe. A resposta na forma de questionamento e em tom hesitante permite-nos cogitar que Juca

tenha entendido a pergunta do pesquisador (“O pai?”) como uma correção à sua resposta

anterior. Assim, o menino parece querer “acertar” a resposta à pergunta feita, ou seja, adequá-

la a um suposto desejo do pesquisador.

Ademais, os posicionamentos seguintes de Juca são apenas de concordância com o

colega de grupo Guto ou postura pensativa, como se a fala do pesquisador (“Mas na história tá

dizendo que ele não tem mãe não. Só tem dois pais: o Carlos e o Estevão”) associada à fala de

Guto (“A mãe e o pai”) gerasse nele algum tipo de conflito. Após o silêncio, Juca responde

com uma proposição que contemplaria ambas as afirmativas anteriores: “Ele tem mãe, só que

87

a mãe dele foi embora para o trabalho”. Juca realiza novo ajustamento em sua fala após o

pesquisador, mais uma vez, reafirmar a inexistência de uma mãe. Agora, o pinguim bebê teria

duas mães e dois pais, o que equilibraria a equação do modelo familiar pai-mãe-filhos. Em

nossas palavras: um bebê não pode ter dois pais e nenhuma mãe, mas pode ter dois pais e duas

mães. Pela última vez neste episódio, o pesquisador reafirma a existência de dois pais e

nenhuma mãe. Dessa vez, Juca responde com uma proposição bastante interessante: o

pinguim bebê pode até ter dois pais, mas só gosta e quer brincar com um deles. Assim, só

haveria um pai afetivamente significativo.

Em síntese, durante todo este episódio nos deparamos com a constante regulação das

significações expressas por Juca, dentro do campo interacional social. Nesse sentido, é válido

lembrarmos que esta regulação não ocorre somente em relação ao interagentes presentes

fisicamente na situação (sentido interpessoal do termo social), mas também, como é

característico à espécie humana, àqueles elementos sócio-históricos de caráter semiótico

(CARVALHO; IMPÉRIO-HAMBURGER; PEDROSA 1996). Por isso, Miguel tentava

ajustar sua resposta a um suposto desejo do pesquisador e às proposições por ele trazidas, bem

como ao modelo de família pai-mãe-filhos, sócio-historicamente construído. Assim,

evidencia-se a articulação entre a temporalidade histórica das significações (que é locus do

imaginário social, construído durante períodos relativamente longos de uma sociedade sendo

responsável pelas formações discursivas e ideológicas) e o tempo presente ou microgenético,

caracterizado pelas trocas discursivas interpessoais no aqui-agora (ROSSETTI-FERREIRA,

AMORIM; SILVA, 2004).

5.2.3. Como nascem os bebês?

Aprendemos no tópico anterior, que, para as crianças, um grupo de animais só será

considerado família se for composto por pai-mãe-filhos. Ao falarmos em filhos, podemos nos

remeter quase que imediatamente a questões relativas à reprodução. Será que as crianças

também pensam assim? Se sim, como concebem o processo reprodutivo? E ainda mais, como

se daria o processo de reprodução e/ou filiação em uma família com dois pais?

Episódio #39: Ter bebê é legal!

Babi (F/5;8); Dani (F/5;1); Leo (M/5;9)

Pesquisador: Toda vez que se formava um casal de pinguins eles construíam um ninho. Pra que um

ninho?

Babi: Para os filhos

88

Pesquisador: É! Aí João e José começaram a construir um ninho pra ter bebê. Eles viram que todos

os outros pinguins estavam fazendo isso e estavam tendo bebê. Então eles decidiram também fazer.

Agora, porque será que eles queriam ter um bebê?

Babi: Pra cuidar.... Pra brincar com eles

Pesquisador: Será que é legal ter bebê?

Babi e Dani: É! (em forte tom afirmativo)

Babi: Ter um irmãozinho é legal!

Além de obrigatório para a formação de uma família, ter filhos também figura na fala

das crianças como um acontecimento desejável. Relacionam ao filho eventos de prazer como

brincar e ser cuidado. Curiosamente, em sua fala, Bia confere um sentido positivo ao ato de

ter bebê, mas não a partir da perspectiva dos pais, e sim de outra criança, ou filho pré-

existente, que com a chegada de um bebê ganharia um irmãozinho. Deste modo, é a partir de

uma perspectiva próxima a sua que Bia confere valoração positiva ao nascimento de um bebê.

Passemos agora a investigação do modo como as crianças concebem o processo de

reprodução e/ou filiação propriamente dito.

Episódio # 40: Galo é homem, não bota ovo...

Bia (F/6;4); Joel (M/6;1); Nanda (F/5;11)

Pesquisador: Mas aconteceu um negócio estranho: o ninho deles continuava vazio. Por que será que

o ninho deles tava vazio?

Bia: Porque eles não fizeram direito?

Pesquisador: E como é que “faz direito” pra ter um bebê?

Bia: Eu acho que tem que chocar um ovo

Pesquisador: E por que não tem ovo no ninho deles? Na história ta dizendo que eles tentaram colocar

um ovo, tentearam, tentaram, mas não conseguiram. Por que será?

Bia: É porque os dois eram homem! Se fosse fêmea, botava ovo

Pesquisador: E macho não bota ovo não?

Bia: Não

Nanda: Bota

Bia: Bota não! Quem já viu? O galo é homem, não bota ovo; a galinha é mulher, bota ovo...

Pesquisador: É verdade... (pensativo)... E agora?! Como é que eles vão fazer pra ter bebê se eles dois

são macho e não bota ovo? Eles querem ser pais

Bia: Agora, é Nanda que conta (esquivando-se de dar uma resposta)

Pesquisador: Nããão... É todo mundo junto. Como é que eles vão fazer pra ter bebê se eles não botam

ovo?

Bia: Eu acho que é pra arrumar uma fêmea

Nanda: Eu acho que eles têm que sentar

Bia: Não... Eu acho que ele tem que sentar pra chocar o ovo

Pesquisador: Mas se eles não têm ovo ainda....

Bia e Nanda riem

Pesquisador: Como é que vai fazer?

Bia (fazendo expressão como se estivesse fazendo força): Tem que fazer força assim... E “coisar” o

ovo.

Pesquisador: Mas tu dissesse que eles são dois machos e que macho não bota ovo.

Bia: Mas tem que arrumar uma fêmea

89

A compreensão do processo reprodutivo biológico dos seres, por parte das crianças,

parece também ser um dificultador à assimilação da homoparentalidade enquanto família, ao

menos indiretamente. Neste caso, a necessidade de seres de sexos diferentes (macho e fêmea)

não aparece na fala das crianças como uma tentativa de atender a um modelo socialmente

construído de pai-mãe-filhos, mas sim como um imperativo de ordem prática para aqueles que

concebem a reprodução como elas.

Menino e Correia (2001), a partir de vários estudos, apontam que o processo de

apropriação por parte das crianças acerca do processo reprodutivo humano se dá ao longo de

cinco grandes estágios (não estanques). No primeiro deles (anterior aos 5 anos de idade), a

criança encontrar-se-ia centrada em descobrir como ocorre a passagem da inexistência para a

existência, haja vista que concebe o bebê como se sempre tivesse existido em algum lugar

previamente ao nascimento. No segundo estágio, as crianças tenderiam a pensar que os bebês

são “fabricados” assim como as coisas. Só no terceiro estágio, as crianças passariam a

reconhecer a necessidade da existência de dois progenitores, focando-se, contudo, na relação

desses com o bebê e não nos processos fisiológicos em si. No quarto estágio, as crianças

aprenderiam sobre a existência de gametas, por meio de metáforas como a do “ovo” e da

“semente”. No quinto estágio, por volta dos onze anos, as crianças teriam uma compreensão

do processo de fertilização e dos demais elementos que o compõem. Juntamente como os

próprios autores, gostaríamos de salientar que este processo é fortemente influenciado por

fatores socioculturais e que, portanto, podem variar bastante.

De qualquer forma, acreditamos interessante pensar que Bia e Nanda já reconhecem

claramente a necessidade da existência de dois progenitores para que ocorra a reprodução

humana25

. Daí, a persistência em afirmar a necessidade de uma fêmea. Todavia, o que mais

nos chama a atenção neste episódio e em outros ainda a serem descritos, refere-se à ausência

preliminar da adoção como possibilidade de filiação. Lembremos que o pesquisador incitava

as meninas a criarem alternativas à reprodução e que pudessem também formar laços filiais (E

agora?! Como é que eles vão fazer pra ter bebê se eles dois são macho e não bota ovo? Eles

querem ser pais!) Reconhecemos que a expressão “ter bebê” possa ser indutiva de respostas

ligadas exclusivamente a reprodução e não a filiação. Todavia, em outros episódios, como o

abaixo descrito, perguntava-se as crianças se não haveria outro modo de ser pai sem ter que

“botar ovo” (referência à reprodução biológica), ao que se obtinha como resposta o silêncio.

25

Com as tecnologias reprodutivas é difícil, cada vez mais, afirmarmos a necessidade de dois progenitores, mais

ainda de uma relação afetiva entre os dois, para que ocorra a reprodução humana. Acreditamos que o mais

adequado seja nos referirmos à ideia de dois gametas, óvulo e espermatozoide.

90

Episódio #41: Pra ser pai, tem que botar ovo!

Edu (M/6;0); Juca (M/5;9); Guto (M/5;7)

Pesquisador: E aí, quando dois pinguins começam a namorar, eles....

Juca e Edu (vendo a imagem): Eles tavam comendo ovo de pinguim

Pesquisador: Não... sabe o que eles estavam fazendo? Eles queriam ser pai. Aí para ser pai tem que

construir um ninho e eles começaram a fazer. Só que todos os outros casais começavam a ter filhos,

mas o ninho do Estevão e do Carlos continuava vazio. Por que não tinha bebê no ninho deles?

Guto: Porque eles não botavam ovo

Pesquisador: E porque eles não botavam ovo?

Guto: Porque eles é homem

Pesquisador: E homem não bota ovo não?

Guto: balança a cabeça em sinal negativo

Edu: Quem bota ovo é galinha

Pesquisador: E como é que faz pra ser pai se eles não botam ovo?

Juca: Sei lá. Diz aí! (dirigindo-se a Edu)

Guto: Tem que comer bastante pra ter ovo

Pesquisador: Tem que comer bastante pra ter ovo?

Juca: Não... Tem que botar ovo para nascer um pinguinzinho

Pesquisador: Mas... olha: eles tão tentando, tentando, tentando botar ovo. Mas o ninho continua

vazio. E aí como eles vão ser pai sem botar ovo? Pode ser pai sem botar ovo?

(silêncio)

Este silêncio por parte das crianças participantes da pesquisa, possivelmente em

decorrência de repertórios acerca de outros modos de filiação, parece apontar-nos dois

caminhos interpretativos: (1) a prevalência do significado de família enquanto laços

biológicos, ao menos neste momento; (2) a não experiência das crianças, em seus contextos

de realidade, com outras formas de filiação, por exemplo, a adoção. Este segundo caminho

ganha força tendo em vista estudo anteriormente realizado com crianças em situação de

acolhimento institucional, que apontam adoção como uma das formas possíveis de se ter filho

em uma relação homoafetiva (BORGES NETO; PEDROSA, 2016, artigo submetido). Neste

caso, a significação de família enquanto cuidado parece sobrepor-se aos laços biológicos.

A articulação entre as significações de família enquanto lugar de convívio e laços

biológicos também se faz presente no trecho abaixo descrito. Nele, Bia informa-nos que o

pinguim bebê deseja retornar para sua família, referindo-se a uma configuração com macho e

fêmea, que teria sido responsável pelo período de encubação do ovo: “Então... A fêmea

chocou o ovo e o macho estava vendo o ovo”. De fato, na história narrada, são os dois

pinguins machos que se revezam nos cuidados com o ovo. Apesar do cuidado, os dois

pinguins machos não são reconhecidos (nem por Bia, nem pelo pinguim bebê) como sendo

família: eles apenas criaram o filhote. Assim, a família original do pinguim bebê, tal qual

imaginada por Bia, articula dois importantes sentidos de família, talvez por isso,

91

sobreponham-se aos dois pais: família enquanto laço biológico e família enquanto

configuração baseada na diferença de gênero (no caso dos pinguins, macho e fêmea).

Episódio # 42: Eles (só) criou....

Bia (F/6;4); Joel (M/6;1); Nanda (F/5;11)

Pesquisador: Vocês acham que esse pinguinzinho acha que os dois são pais dele?

Bia: Eu acho que não!

Pesquisador: O que será que ele acha?

Bia: Eu acho que ele pensa que é pa, pa , pa ir pra família dele

Pesquisador: E eles não são a família dele não?

Bia: Não... Eles “criou”

Pesquisador: Ah! Eles “criou”

Pesquisador: E quem é a família desse pinguinzinho?

Bia: tem uma fêmea e um macho, não tem?

Pesquisador: Não sei...Tu que tá dizendo...

Bia: Então... A fêmea chocou o ovo e o macho estava vendo o ovo

Nanda ri

Mas lembremo-nos de que Bia, como todos nós, é uma pessoa, portanto, múltipla,

“porque são múltiplos e heterogêneos os vários outros com quem interage (...) porque são

múltiplas as vozes que compõem o mundo social e os espaços e as posições que vão ocupando

nas práticas discursivas. Essa multiplicidade de vozes e posições que dialogam entre si

submetem a pessoa, mas, ao mesmo tempo, preservam a abertura para a inovação e para a

construção de novos posicionamentos e processos de significação acerca do mundo, do outro

e de si mesma.” (ROSSETTI-FERREIRA; AMORIM ; SILVA, 2004, p. 25). Assim, Bia que

afirma que os dois pinguins machos não são família do pinguim bebê, afirmara em momentos

anteriores da mesma sessão de videogravação a legitimidade da paternidade dos dois pinguins

machos.

Episódio # 43: Pai é quem cuida!

Bia (F/6;4); Joel (M/6;1); Nanda (F/5;11)

Pesquisador: Sabe aquele cuidador? Sabe o que ele fez?

Nanda: Um ovo!

Bia: Um pintinho!

Pesquisador: Ele arrumou um ovo que precisava ser cuidado e botou no ninho deles pra eles

cuidarem. Será que isso é um jeito de ser pai!

Nanda e Bia (em tom de obviedade): É!

Pesquisador: Mas se eles não botaram o ovo, como é que eles vão ser pai do pintinho?

Bia: Mas não tinha ninguém pra cuidar do bichinho...

Pesquisador: Mas eles vão virar pai por cuidar?

Bia fica pensativa

Bia: Aí, o ovo se quebrou e nasceu o pintinho

Pesquisador: Aí eles ficaram chocando o ovo; depois de certo tempo... O que começou a acontecer?

Bia: O pintinho saindo do ovo...

Pesquisador: Nasceu

92

Bia: Porque eles chocaram o ovo

Pesquisador: Mas, vê: eles são pais desse pinguim que nasceu?

Bia: É!

Pesquisador: Mas eles não botaram o ovo....

Bia: E o que é que tem?! Os bichinhos não tinham nada pra fazer! Os bichinhos tavam sozinhos!

5.2.4. Como é a vida do bebê pinguim?

Desde o inicio deste trabalho, afirmamos que, dentro do debate sobre a

homoparentalidade, a questão central diz respeito às crianças, em especial a criança filha de

casal homoafetiva. Em relação a ela, teme-se que crescer em um lar homoafetivo pode lhe

causar problemas de identidade de gênero, ou, até mesmo problemas mais estruturais de

formação da personalidade (PERELSON, 2006), ainda que diferentes pesquisas, realizadas

em países onde o debate sobre homoparentalidade encontra-se mais avançado, não tenham

demonstrando qualquer diferença significativa entre essas crianças e aquelas que vivem em

famílias chefiadas por casais heterossexuais (FARIAS; MAIA, 2009).

Porém, uma série de perguntas persiste no imaginário social: o que pesam e sentem

crianças filhas de casais homoafetivos? Também elas têm o modelo de família nuclear

heterossexual como ideal a ser atingido? Percebem sua própria família como diferente e/ou

incompleta? Perceber-se-iam como alvos de preconceitos? Se sim, de que maneira lidariam

com eles? Por meio da história “And Tango makes three” lançamos esses questionamentos às

crianças participantes da pesquisa. Vejamos o que elas têm a nos dizer.

Episódio #44: Amar e ser amada

Bia (F/6;4); Joel (M/6;1); Nanda (F/5;11)

Bia e Nanda: Gostava!

Pesquisador: E tu acha que eles gostavam da pinguinzinha?

Bia (pensativa): Acho que sim... ou não?

Pesquisador: Não sei....

Bia: Ou não, Nanda? (dirigindo-se a Nanda); Ou não? (dirigindo-se a Gabriel)

Pesquisador: Como vocês acham que era a vida dessa pinguinzinha? Era boa ou era ruim?

Bia: Era boa....

Pesquisador: Por quê?

Bia: Porque a pinguinzinha gostava deles e eles da pinguinzinha

Episódio # 45: Ele confiava nos pais

Milla (F/4;7); Júlio (M/5;1); Tito (M/5;3)

Pesquisador: Aí nasceu esse pinguinzinho aqui (mostrando a imagem). O que esse pinguinzinho é

daqueles outros dois pinguins meninos.

Milla: Ele cresceu

93

Júlio: Ele cresceu porque ele gostou dos pais, senão ele ficava com medo dentro do ovo

Pesquisador: Mas eles são o que do pinguinzinho?

Júlio: Ele gosta dos dois meninos

Pesquisador: Deixa eu entender uma coisa: esse pinguinzinho que nasceu é filho de quem?

Júlio e Tito: Dos pais

Milla: Dos pais

Pesquisador: Quantos pais?

Tito e Júlio: Dois

Pesquisador: E o que vocês acham disso? Um pinguinzinho pode ter dois pais?

Júlio: Pode!

De modo geral, as crianças consideraram a família homoparental uma situação feliz,

cercada por afetos recíprocos entre os pais ou mães e o/a filho/a, tanto na família de pinguins,

quanto na família de humanos (a esse respeito trataremos no tópico a seguir). Dentre os afetos

positivos, o sentimento de confiança (ausência de medo, como na fala de Júlio) mostra-se

como sendo a base para o estabelecimento da relação filial entre os dois pinguins machos e o

pinguim bebê, haja vista que este último só nasceu porque não tinha medo dos pais, caso

contrário teria ficado dentro do ovo.

Tivemos, contudo, duas exceções que merecem destaque. A primeira é o desejo

atribuído por Miguel a pinguinzinnha de estar com a mãe, ainda que esta figura não faça parte

da história. Neste sentido, parece-nos que a noção de universalidade – não só da família mais

de seus papéis (“todas as famílias são iguais”) – que perpassa as significações de família se

faz presente. Afinal, mesmo sem ser citada como personagem da história, a mãe aparece como

um personagem importante, na medida em que o pinguim bebê entristeceu-se por não estar

perto dela.

Episódio # 46: Ele queria ficar com a mãe

Edu (M/6;0); Juca (M/5;9); Guto (M/5;7)

Pesquisador: Aí, sabe o que o Estevão e o Carlos começaram fazer pra nascer filhotinho?

Juca (vendo a imagem): Ficaram cochando

Pesquisador: Isso mesmo! Chocando... Aí de repente.... O que começou acontecer com o ovo?

Juca: Abrir

Pesquisador: E quem nasceu?

Juca: O pinguim

Pesquisador: E como é o nome desse pinguim? A gente deu lá no começo da história...

Juca: Steve

Guto: Steve nasceu

Juca: Mas ele ficou triste... ele (Steve) não queria ficar com o pai... Queria ficar com a mãe, a

namorada...

Pesquisador: Por que ele ficou triste?

Juca: Por que ele (Steve) queria ficar com a namorada

Pesquisador: Namorada? Mas o Estevão não tem namorada. Ele tem namorado, que é o Carlos

Juca: É...

Pesquisador: Então. Não tem namorada na história.

94

A segunda exceção refere-se a Malu que, claramente, afirma que o bebê pinguim não

gosta de seus dois pais, ou melhor, dos dois pinguins meninos que cuidaram do ovo.

Episódio # 47: Só gosta de pai e mãe!

Joca (M/4;10); Malu (F/4;8); Rick (M/5;1)

Pesquisador: E o que tu acha que esse pinguinzinho pensa de ter dois pais? Tu acha que ela gosta?

Que ela não gosta?

Malu: Ela não gosta não

Pesquisador? Por que ela não gosta?

Malu: Só gosta de mãe e de pai

Pesquisador: Entendi... Mas esse pinguinzinho tem família?

Malu faz sinal positivo com a cabeça

Pesquisador: Quem é a família dele?

Malu: Madrinha, madrasta, vó...

Pesquisador: E os dois pais não são da família dela não?

Malu: Não são dois pais! É um tio e um pai!

Pesquisador: Entendi...

Malu: E tem duas mães

Pesquisador: Cadê as duas mães que não aprarecem na história?

Malu pede que mude a imagem e aponta a figura em segundo plano de um outro pinguim que compõe

o cenário da história como sendo a mãe.

Pesquisador: Mas, não foram os dois pais que cuidaram do ovo?

Malu: Não foi dois pais. Foi dois meninos. Só que o ovo era da mamãe e do papai

Pesquisador: E por que não pode ter dois pais?

Malu: Porque o bebê não gosta de dois pais

Pesquisador: Como é que tu sabe que ela não gosta de dois pais? O que tu acha que tem de ruim em

ter dois pais.

Malu: Meu pai disse que namorava com um homem...

Pesquisador: Teu pai namorava um homem? Quem disse que teu pai namorava um homem?

Malu: Meu pai... (olha para o lado, parece desconfiada)

Pesquisador: E o que tu acha disso?

Malu: Quando ele era novo... Agora ele não namora mais. Agora ele namora minha mãe

Pesquisador: Entendi.... Mas tu gosta do teu pai?

Malu: Gosto... Só que ele é um chato

Mas em que significações se sustentariam a suposição de Malu de que o pinguim bebê

não gosta de seus dois pais? Percebemos que a primeira delas é de que apenas pai e mãe

(modelo pai-mãe-filhos) são dignos de afeto, e não dois pais. Aliás, Malu não só não

considera os dois pinguins como sendo família, mas também não os considera pais, tratando

um de tio e um de pai. Em outras palavras, a noção de dois pais sequer parece ser cogitada por

Malu. O ovo que deu origem ao bebê pertencia a uma mãe e um pai. Curiosamente, ao ser

questionada sobre quem seria a família do bebê, Malu cita personagens da família extensa,

mas apenas do gênero feminino. O mesmo movimento é percebido quando Malu diz da

existência de duas mães na história, tentado buscá-las em figuras secundarias na narrativa.

95

Todavia, o ponto que mais nos chama atenção é que Malu afirma que os dois pinguins

não são pais do bebê pelos simples fato de ele (bebê) não os reconhecer assim, por não gostar

deles. A justificativa do não gostar é ainda mais surpreendente: Malu narra um fato relativo a

ela própria. Ora, a pergunta feita era a respeito dos motivos do bebê pinguim e não dos dela.

Este fato pode nos sugerir certa identificação entre a menina e o personagem da história.

A experiência que Malu narra é de seu pai ter namorado um homem quando jovem e

agora namorar sua mãe, podendo ser indicativo de certa rejeição da menina frente à

homoafetividade.

Se para Malu, dois pais não podem ser alvos de afeto, pois “Só gosta de mãe e de pai,”

e a homoafetividade parece não ser bem vista, para outras crianças a orientação/condição

afetivo-sexual dos pinguins meninos parece ser indiferente na constituição de laços filiais.

Episódio #48: Pai é pai!

Cris (F/5;11); Maju (F/6;4); Luca (M/5;7)

Pesquisador: Aí nasceu um pinguim. Na história tá dizendo que é uma menina. Dá um nome pra ela.

Cris: Poli

Maju: Posso dar um nome?

Pesquisador: Pode

Maju: Alessandra

Pesquisador: Então, Poli Alessandra tem família?

Maju: Tem... O pai e o pai

Luca: Um bando de frango

Pesquisador: Mas, esse bando de frango é a família dela?

Luca: sinal positivo com a cabeça

Pesquisador: Vocês acham que a família dela era legal?

Maju: Eu acho que é

Pesquisador: E tu acha que ela gosta dos pais dela?

Maju: Gosta

Pesquisador: Mesmo sendo frango?

Maju: Acho que sim. Pai é pai

Por fim, tentávamos, por meio dos personagens que representavam o público que

visitava o zoológico onde se passa história, acessar a percepção que as crianças têm sobre o

que a sociedade de modo mais amplo pensa a respeito da homoparentalidade.

Episódio # 49: Achavam ela bonitinha

Cris (F/5;11); Maju (F/6;4); Luca (M/5;7)

Pesquisador: Sabe aquela pinguinzinha que nasceu? Ela cresceu e ficou grande que nem os dois pais

dela

Luca: Um bando de frango e os filhos

Pesquisador: Um monte de gente ia no zoológico ver Poli Alesandra. Por que será que essa gente

todinha queria ver ela?

Maju: Achavam ela bonitinha

Pesquisador: Será que eles eram felizes?

96

Maju: Acho que sim

Pesquisador: Por que?

Maju: Eles eram bonzinhos

Pesquisador: Bonzinhos? Por que bonzinhos?

Maju: Por que eu acho que eles cuidam bem do filho

Pesquisador: E como é que tu sabe?

Maju: Eu sei porque eu sou muito inteligente

Para Maju, a pinguim bebê era visitada pelo público, pois a consideravam “bonitinha”.

Em momento algum, a menina menciona que a pinguim seja diferente por ter dois pais ou que

o público assim a conceba, mantendo algum tipo de reação hostil em relação a ela. Outras

respostas frequentes por parte das crianças eram que a pinguim era visitada pelo simples fato

de ter nascido. Tais respostas parecem indicar que as crianças não se apropriaram, ainda, de

conteúdos sociais que se oponham diretamente a homoparentalidade, ou a encarem como algo

diferente, em especial a criança filha de casal homoafetivo. O que não é de se estranhar, uma

vez que a homoparentalidade em si tem tornado-se alvo de reflexão na sociedade mais ampla

há pouco tempo.

5.2.5. Isso também pode acontecer com gente?

Concebemos que a fantasia e a ludicidade são campos de apropriação e elaboração de

significados (SANTOS, 2015). Por isso, todo o método do presente trabalho buscou utilizar-

se de instrumentos inseridos nesse campo (o desenho e a contação de história) o que se

mostrou bastante produtivo, dada a qualidade e densidade do material coletado. Todavia, o

último procedimento adotado visava a uma confrontação entre fantasia e realidade. Para tanto

utilizamo-nos de uma imagem que aparece uma menina com suas duas mães (ver figura 3).

Poderia as significações construídas no campo da fantasia passar para o campo do real? Caso

não, que alterações elas sofreriam nessa passagem? Já no tópico 5.2.1 obtivemos indícios de

que a homoafetividade só poderia ocorrer e ser aceita fora do campo do real. Aconteceria o

mesmo com a homoparentalidade? Vejamos o que dizem as crianças.

Episódio # 50: Se namorar vai ser gay

Lara (F/5;3); Eva (F/5;1); Guga (M/5;1)

Pesquisador: Vê só! Gente pode ter dois pais

Eva e Guga: Nããããããão!

Guga: Só pode ter um

Pesquisador: Por quê?

Silêncio

Pesquisador: E esses pais podem namorar?

Eva e Guga: Nããão!

97

Pesquisador: Por que não pode namorar?

Lara: Porque é homem

Pesquisador: E homem não pode namorar com homem, não?

Guga (balançando o dedo em sinal negativo): Nããão! Se não vai ser gay!

Pesquisador: E se for gay?

Guga: Pode

Pesquisador: Mas se eles não namorassem, eles podiam ser pais dela?

Guga: Nãão!

Lara: Sim

Pesquisador: E se fossem duas pinguins mulheres, mães da pinguinzinha bebê... elas podiam

namorar?

Eva e Guga: Nãão!

Guga: Porque só pode um homem, uma mulher e um filho

Pesquisador: Entendi... Dois homens e um filho não pode não?

Eva e Guga: Nãão!

Neste episódio, encontramos condensadas as reações das crianças tanto à

homoafetividade como à homoparentalidade; tanto no campo da fantasia (pinguins), quanto

da realidade (humanos). Diante da homoafetividade expressa na história dos pinguins

(fantasia) a primeira reação por parte das crianças era o estranhamento que poderia ser

seguido tanto por uma forte rejeição como por uma aceitação. No caso da homoafetividade

entre humanos, a proibição, na perspectiva das crianças, torna-se mais rápida, clara e forte:

“Guga (balançando o dedo em sinal negativo): Nããão! Se não vai ser gay!” Curiosamente,

para Guga, a proibição não é persistente. Ao menor questionamento do pesquisador, o menino

afirma a possibilidade do namoro homoafetivo. Em outras palavras, para o menino, o grande

problema em dois homens namorarem é que eles serão gays, não sabendo, porém, qual o

grande problema em ser gay. Mais uma vez destacamos a ausência de discursos legitimadores

da regra de proibição da homoafetividade.

Com a homoparentalidade não é diferente. Mesmo que os dois pais não namorassem,

não seria possível a existência de dois pais, “Porque só pode um homem, uma mulher e um

filho”. Sem dúvida estamos diante de forte evidência de que o modelo pai-mãe-filhos é um

elemento importante na compreensão e no posicionamento das crianças diante da

homoparentalidade

O modelo de família com pai-mãe-filho é um modelo idealizado, não abarcando a

multiplicidade de realidades familiares. Assim, dizer que as crianças compartilham o

significado de família enquanto a configuração pai-mãe-filhos, não implica dizer que suas

experiências familiares correspondam a ele.

Episódio # 51: Eu tenho dois pais!

Bia (F/6;4); Joel (M/6;1); Nanda (F/5;11)

98

Pesquisador: E vocês acha que isso pode acontecer com gente?

Bia e Nanda: Não!

Pesquisador: Tá vendo essa menina aqui (mostrando imagem)? Ela tem duas mães. Essas duas

mulheres são mães dela e elas namoram.

Bia (leve surpresa): É?!

Pesquisador: Como será que é a vida dessa menina?

Bia: Eu não sabia!

Bia: Eu acho que a vida dessa menina é feliz!

Pesquisador: Mesmo com duas mães?

Bia balança a cabeça em sinal positivo

Nanda: Sim

Pesquisador: Por quê? O que será que tem de bom na vida dessa menina?

Bia: Porque ela queria ter duas mães!

Pesquisador: Mas ela não tem nenhum pai... Ela tem duas mães que namoram. São duas.... Como é

que tu dissesse quando duas mulheres namoram?

Bia: Sapatão

Pesquisador: Ser sapatão é legal ou é ruim?

Bia: É um pouquinho ruim...

Pesquisador: Por quê?

Bia: Deixa eu dizer uma coisa: tem meu pai e meu outro pai só que eles moram muito distante

Pesquisador: E eles namoram?

Bia: Não! Mainha disse que um é Junior e o outro é Robson...

Para além da inicial, e já esperada, proibição mais rápida e clara da homoafetividade

em humanos (campo da realidade) do que em pinguins (campo da fantasia), salta aos olhos o

trecho final do episódio. Após discutir-se como era a vida da menina que tem duas mães, Bia,

ativamente (“deixa eu dizer uma coisa...”), refere-se ao fato de ela própria ter dois pais. Nesse

sentido parece ocorrer, por parte da menina, uma tentativa de apropriação do novo conteúdo, a

homoparentalidade em humanos, (Bia revela, no início do episódio, que “Eu não sabia!” –

referindo-se à informação de que é possível a menina ter duas mães) a partir de uma

aproximação com sua própria experiência familiar. Ou seja, Bia compartilha a experiência de

ter dois pais, ainda que eles não namorem. Assim, a homoparentalidade, por meio da

experiência e não do modelo idealizado, deixa de ser algo distante do cotidiano.

Em outros casos, contudo, as crianças ainda atribuem à família significado

proeminente de um modelo pai-mãe-filhos. Assim, ainda que não mencionado ou ausente, o

pai é uma figura que sempre existe (seja morto ou ausente por conta do trabalho), afinal esta é

uma exigência do modelo. Reconhecemos, porém, que a obrigatoriedade da existência de um

pai na fala das crianças também se relaciona a questões relativas à reprodução humana, afinal,

costumeiramente, para que ocorra o nascimento de uma criança faz-se necessária a existência

de dois genitores de sexos distintos (ou pelo menos de gametas distintos). Em outras palavras,

o modelo pai-mãe-filhos não se constrói apenas sobre elementos culturais, mas também

biológicos.

99

Episódio # 52: Tem pai!

José Victor (M/6;0); José Miguel (M/5;9); Guto (M/5;7)

Pesquisador: E vocês acham que isso pode acontecer com gente? Uma menina pode ter duas mães?

Miguel e Guto: Pode

Pesquisador: Eu conheço uma menina que tem duas mães e as mães dela namoram. Aqui, olha!

(mostrando a imagem)

Todos aproximam-se curiosos da tela do computador

Miguel (apontando): Essa e essa namoram?

Pesquisador (apontando): É! E elas duas são mães dela

(silêncio)

Pesquisador: E como vocês acham que é a vida dessa menina que tem duas mães que namoram?

Miguel: Tem pai

Pesquisador: Tem pai não...

Miguel: Mas o pai dela morreu

Pesquisador: Não. Ela nunca teve pai. Só as duas mães.

Miguel: O pai dela foi trabalhar ou morreu. O pai dela morreu, não foi? (dirigindo-se ao

Pesquisador)

Pesquisador: Nãoo sei... Mas na história tá dizendo que ela nunca teve pai

Miguel: Ela teve! Ela teve! Ela teve pai

Pesquisador: Tá bom.... se tu tá dizendo....

Apesar de preliminarmente não ser considerada possível/permitida, ou ainda que seu

status de família seja duvidoso, a homoparentalidade em humanos é compreendida pelas

crianças como um ambiente feliz para a criança filha do casal, apresentando algumas

vantagens.

Episódio # 53: Mãe reserva

Babi (F/5;8); Dani (F/5;1); Leo (M/5;9)

Pesquisador: Me diz uma coisa: isso pode acontecer com gente?

Bia: Pode não!

Pesquisador: Por quê?

Bia: Porque homem que namora com homem vira sapatão e mulher com mulher sapatona

Pesquisador: Mas eu conheço a história de uma menina que tem duas mães sapatão.

Bia olha com espanto

Pesquisador: Tu quer ver a foto dela?

Bia: Huhum

Pesquisador: Essas duas aqui são mães dessa menina e elas namoram (mostrando a foto)

Bia aproxima o rosto da tela do computador e franze a testa. Parece estranhar. Em seguida, grita,

chamando Leo e Dani (que haviam se dispersado e brincavam em um canto da sala, um pouco

afastados): Vem ver! Ela tem duas mães! Vem ver!

Leo e Dani aproximam-se, mas, rapidamente, se dispersam.

Pesquisador: Como tu acha que é a vida dessa menina que tem duas mães

Bia: Legal

Pesquisador: Por quê?

Bia: Porque se uma mãe dela morrer, ela tem a outra; e se a outra morrer ela tem outra.

Pesquisador: Entendi... e se fossem dois pais

Bia: Se um pai morrer, ela tem o outro!

A vantagem a que nos referimos anteriormente é apontada por Bia: “Porque se uma

mãe dela morrer, ela tem a outra; e se a outra morrer ela tem outra.” Assim, a

100

homoparentalidade, a seu ver, permitiria a existência de uma espécie de “mãe ou pai reserva”.

Lembremos que Bia, conforme nos contou no episódio # 9, perdeu seu pai que morreu,

fazendo com que sinta medo de perder outros membros de sua família: “Eu não quero perder

minha família todinha não. Eu já perdi meu pai, meu primo e meu tio Chico.” Deste modo,

sua significação da homoparentalidade mostra-se fortemente constituída por duas dimensões

temporais, a saber, o tempo vivido e o tempo prospectivo. (ROSSETTI-FERREIRA,

AMORIM; SILVA, 2004). O tempo vivido abarcaria nossa experiência de vida (as mortes do

pai, primo e tio de Bia), já o tempo prospectivo daria conta de nossas expectativas e metas (no

caso de Bia, a expectativa tem caráter negativo, apresentando-se sob a forma de medo de

perder outros familiares).

Ao iniciarmos a análise dos dados, destacamos que as significações são desveladas ao

longo do fluxo interacional, em um constante movimento de ocultar-se e revelar-se. E isto se

fez realidade até o último episódio de nossa análise.

Episódio # 54: Minha mãe também é sapatão

Cris (F/5;11); Maju (F/6;4); Luca (M/5;7)

Pesquisador: Agora, eu quero fazer uma última pergunta. Vocês acham que isso pode acontecer com

gente?

(Silêncio)

Pesquisador: Eu conheço uma menina que tem duas mães

Maju: Duas mães? E elas são sapatão? (parece interessada)

Pesquisador: São sapatão. Quer que eu mostre a foto?

Maju: Mostra, mostra, mostra (interessada)

Pesquisador: Aqui, olha... Agora, como será a vida dessa menina?

Maju: Muito legal... mas as mães não

Luca (apontando para a imagem): Essas duas são sapatão?

Pesquisador: Elas duas namoram. Quando duas mulheres namoram é o que?

Luca: Sapatão

Pesquisador: Mas a vida delas é legal ou não?

Maju: É. Vê só: Minha mãe, ela também é sapatão. Ela namorava outra mulher. Só que ela não era

minha mãe, ela era minha tia. Eu considerava ela como tia, mas ela não era minha tia. Aí minha mãe

esqueceu ela. Agora ela não é mais não.

Pesquisador: Hummm Agora ela não é mais tua tia não. Mas tua mãe namorava ela?

Maju: sinal positivo com a cabeça

Pesquisador: E ela era legal?

Maju: Era. Mas minha mãe disse que ela só queria dinheiro... (fisionomia de desagrado em relação

ao fato)

Em nenhum momento durante toda a roda de conversa, Maju relatara a

orientação/condição afetivo-sexual de sua mãe. Todavia, quando o pesquisador afirmou

conhecer uma menina que tem duas mães, ela mostra-se interessada, buscando, inclusive,

saber se as duas mães eram “sapatão”. Perguntada sobre como seria a vida da menina filha de

101

duas mães, Maju afirma ser “muito legal”, não podendo dizer o mesmo das mães. A partir daí,

Maju relata a convivência de sua mãe com outra mulher, a quem Maju considerava “tia”. O

relacionamento, contudo teria chegado ao fim, pois, segundo sua mãe, a então “tia” de Maju,

“só queria dinheiro”. O final do relacionamento parece ter sido desagradável para Maju,

talvez daí, sua resposta de que as mães da menina não eram legais. Novamente, deparamo-nos

com o que parece ser um fenômeno de identificação entre uma participante da conversa com

um dos personagens presentes nos instrumentos de coleta de dados. Deste modo, acreditamos

ficar evidente que as crianças não só reproduzem significações socialmente construídas, mas

também se utilizam de suas próprias experiências de vida para dar sentido ao mundo.

102

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar do grande número de estudos nas mais diversas áreas do conhecimento, de

tudo o que já foi dito e escrito e das constantes transformações que ocorrem em nossa

sociedade, a família persiste enquanto realidade social e objeto de estudo relevante. Parece

existir nela um sem fim de possibilidades que se desdobram atraindo a atenção da ciência, da

política e da religião. Como se fosse um tesouro de grande valor, a família é alvo da atenção

de diferentes setores da sociedade, fazendo das significações a seu respeito um campo

contínuo de debates, enfretamentos e crises.

Polissêmica e polimorfa, a família se nos tem revelado como um intricado sistema de

relações constituída sócio historicamente – e em constante interação com outras instituições

sociais –, berço da subjetividade humana (com seus prazeres e mazelas) formada por um

grupo de sujeitos que se constituem mutuamente, trazendo consigo a história de uma

linhagem, que é atualizada no aqui-agora da experiência cotidiana (SANTOS, 2002).

Por isso, as transformações sociais acabam por reverberar nas famílias, obrigando-as

também a transformarem-se. Assim ocorreu com a emancipação feminina, a popularização

do divórcio, etc. Todavia, ao que parece, as mudanças na realidade objetiva das famílias

ocorrem em ritmo mais acelerado que as mudanças nas significações que produzimos sobre

ela. Este descompasso acaba por gerar certo desconforto decorrente da incompreensão das

“novas” realidades familiares. Por conseguinte, a partir do conflito e da incompreensão somos

levados inevitavelmente a revermos nossas significações acerca da família, o que pode, num

primeiro momento, permitir o surgimento de movimentos sociais de reafirmação das

significações existentes sobre família (conservadores), bem como de forças a favor da

ressignificação deste objeto social, a fim de abarcá-lo em sua multiplicidade.

No atual momento de nossa sociedade, a família assume lugar central de debate a

partir das ditas “novas configurações familiares”, em especial, aquela formada por casal

homoafetivo e seus filhos. Por sua vez, como é de costume ocorrer quando falamos de

mudanças na estrutura familiar, as crianças são colocadas como grande alvo de preocupação,

sem contudo serem ouvidas, afinal, para muitos, elas não teriam muito a dizer. É a partir da

discordância desse ponto de vista que nos propusemos a ouvi-las.

Ouvir o que as crianças tinham a dizer sobre o tema família e homoparentalidade se

mostrou uma jornada desafiante e instigante de descobertas. Em primeiro lugar, destacamos

que as crianças são múltiplas e criativas; ao mesmo tempo simples, autênticas, complexas e

misteriosas. Assim, o método a ser desenvolvido deveria dar conta, simultaneamente, de dois

103

pontos: (1) pertinência em relação ao tema e perspectiva teórica adotada; (2) ser adequado e

atrativo às crianças participantes da pesquisa. Daí, a opção pelo uso de instrumentos

potencialmente lúdicos e familiares às crianças (desenho e contação de história) como

mobilizadores do diálogo entre os membros do grupo (pesquisador e crianças). Fazia-se

necessária ainda a adoção, por parte do pesquisador, de uma postura simultaneamente

acolhedora, compreensiva e questionadora a fim de favorecer a expressão autêntica das

crianças, o que, no nosso entender tem repercussão direta na qualidade dos dados a serem

construídos. Neste ponto, acreditamos que o método adotado mostrou-se profícuo em

permitir-nos o acesso as nuances das significações, principalmente, em decorrência de sua

variedade (diferentes meios de expressão das significações), flexibilidade e ludicidade.

Ademais, o campo do lúdico e da fantasia (nos quais os instrumentos utilizados

estavam potencialmente inseridos) evidenciou-se como locus legítimo e privilegiado de

experimento e elaboração de significações, inclusive daquelas cujo real, por suas regras, não

comportam. Portanto, ratificamos a importância do uso de procedimentos com essas

características para a investigação dos processos de significação, principalmente com

crianças.

As significações sobre família construídas pelas crianças se apresentaram como um

verdadeiro fenômeno: revelavam-se e ocultavam-se alternadamente aos olhos do pesquisador,

em constantes movimentos de sobreposição, justaposição, conflitos e articulações,

característicos de um fenômeno que se dá em rede.

A respeito da família muito foi dito. Para elas, família é algo universal (todos temos), é

lugar de afetos positivos (amor, carinho), de encontro, de proximidade, mas também de brigas

e conflitos. A família possui ainda uma modelo configuracional específico (pai-mãe-filhos)

que deve ser seguido a todo custo, sendo somente possível de ser “descumprido” em

decorrência de acontecimentos que envolvam separação, em especial, a morte. Porém, longe

de por fim a família, a morte e outros fenômenos de separação dos familiares (separação do

par conjugal, encaminhamento de uma criança para adoção) podem ser a oportunidade,

segundo elas, de transformação e ampliação dos laços familiares. Esses laços se constituem

tanto por vias biológicas, quanto por ações de cuidado e reconhecimento (recíproco ou não)

da ocupação dos papéis que compõem a família. Assim, é possível que, em casos de

separação, um familiar ocupe a posição de outro falecido (por exemplo, uma avó que se torna

mãe), sem, contudo, destituir o antecessor do papel que ocupara.

Uma grande regra, contudo, deve ser respeitada na ocupação destes papéis familiares:

o gênero. Nesse sentido, um avô ou tio pode tornar-se pai, mas jamais um pai se tornará mãe,

104

a menos que ele “coloque vestidinho” e tenha “cabelo cumprido”. Em outras palavras, para as

crianças, o gênero está intimamente relacionado a características físicas, em sua maioria, fruto

de estereótipos.

No tocante à homoparentalidade, percebemos que essas significações de família

atualizam-se e reconfiguram-se a fim de dar conta deste objeto social novo para as crianças,

afinal, para elas, a homoparentalidade propriamente dita era uma novidade. Assim, em sua

maioria, as crianças percebiam o ambiente formado por um casal homoafetivo como feliz e

seguro para o desenvolvimento de um filho. Porém, quanto ao seu status de família, e até

mesmo de parentalidade, restavam-lhes dúvidas, afinal, segundo o modelo “pai-mãe-filhos”,

só seria possível a existência de um pai e uma mãe26

para cada filho. Portanto, a obediência a

um modelo pré-estabelecido de configuração familiar parece ser mais importante nas

significações construídas pelas crianças a respeito da homoparentalidade do que qualquer tipo

de preconceito em relação à homoafetividade em si – ainda que suas reações diante deste tipo

de relação afetivo-sexual sejam das mais variadas, oscilando da aparentemente forte rejeição

(“Eu acho que vou vomitar”), até o estranhamento seguido pela aceitação (“Pesquisador:

Quando dois pinguins meninos namoram eles são o que?/Miguel: namorados...).

Um ponto, contudo, merece ser destacado: as significações de família compartilhadas

pelas crianças não são perpassadas somente por um modelo culturalmente construído, nem

somente por suas experiências familiares singulares. Suas significações originam-se de uma

articulação entre estas duas dimensões, conforme propúnhamos já no inicio deste trabalho,

quando da apresentação da pergunta norteadora da pesquisa. Nesse sentido, capturamos do

material empírico construído que as significações mais rígidas acerca de família relacionam-

se justamente ao modelo pai-mãe-filhos, o qual, curiosamente, é uma configuração familiar

não vivida pela maior parte das crianças participantes da pesquisa, tal qual informado por elas

próprias. Utilizamos o termo rígido sem intenção valorativa. Com ele, queremos descrever o

caráter persistente e resistente deste modelo frente a qualquer situação que se apresentasse

contrária a ele.

Por outro lado, as significações de família oriundas das próprias experiências

familiares das crianças tendem a complexificar a noção de família, revelando nuances e

facilitando a compreensão da homoparentalidade, haja vista que, de algum modo, as crianças

têm em suas realidades familiares aproximações com aspectos da homoparentalidade. Por

exemplo, algumas crianças relatam ter dois pais (um pai e um padrasto; um pai e um tio que

26

Qualquer semelhança com as placas dos manifestantes franceses contra o casamento civil igualitário “1 pai e 1

mãe para todas as crianças” não parece ser mera coincidência.

105

também ocupa o lugar de pai; um “pai da terra” e um “pai do céu”) ou ainda terem vivido a

homoparentalidade em si, haja vista que a mãe de uma delas era homossexual. Deste modo,

acreditamos ficar evidente que as crianças não só reproduzem significações socialmente

construídas, mas também se utilizam de suas próprias experiências de vida para dar sentido ao

mundo.

Apesar das descobertas, e talvez por causa delas, o tema “família e

homoparentalidade”, especialmente a partir da perspectiva das crianças, continua a trazer

inquietações e questionamentos. Neste trabalho, dispomo-nos a ouvir crianças que, em

principio, não se encontram inseridas em famílias homoparentais, todavia, o que teriam a nos

dizer crianças filhas de casais homoafetivos? Em sendo o modelo “pai-mãe-filhos” ainda

compartilhado (por crianças e adultos) como ideal de família, o que pensam e sentem crianças

filhas de casais homoafetivos? Também elas têm o modelo de família nuclear heterossexual

como ideal a ser atingido? Percebem sua própria família como diferente e/ou incompleta?

Perceber-se-iam como alvos de preconceitos? Se sim, de que maneira lidariam com eles? Suas

concepções acerca do que é família difeririam das concepções de família apresentadas neste

trabalho? Enfim, muitas são as questões por serem ainda investigadas. Resta-nos, contudo,

uma certeza. Parafraseando o poeta Gonzaguinha: enquanto a pergunta rodar e a cabeça

agitar, “eu fico com a pureza das respostas das crianças”.

106

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112

APÊNDICES

113

APÊNDICE A – SÍNTESE DAS PRINCIPAIS IMAGENS DA HISTÓRIA “AND

TANGO MAKES THREE”

1. Imagem Inicial da História (Capa do Livro)

2. Os pinguins-meninos começam a namorar as pinguins-meninas

3. Algo diferente acontece: dois pinguins-meninos começam a fazer tudo juntos.

114

4. Os pinguins-meninos cantam, nadam, cumprimentam-se e caminham juntos

5. O cuidador pensa: “Eles devem estar apaixonados!”

6. Assim como os outros casais, eles também queriam um bebê

115

7. Mas, seu ninho continuava vazio.

8. Então, o cuidador colocou um ovo em seu ninho.

9. Eles começaram a chocar o ovo

116

10. E, de repente, algo começa a acontecer.

11. E o bebê nasceu!

12. Os dois pinguins-meninos ficaram felizes e começaram a cuidar do bebê.

117

13. O pinguin-bebê cresceu e muitas pessoas iam ao zoológico vê-lo.

14. E então é o fim!

118

ANEXOS

119

ANEXO A – PARECER DO COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA

120

121

ANEXO B – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO PARA PARTICIPAÇÃO EM

PROJETO DE PESQUISA

(PARA RESPONSÁVEL LEGAL PELA CRIANÇA COM MENOS DE 18 ANOS)

Projeto: "Práticas sociais e cultura do grupo de brinquedo: concepções de adultos e

perspectivas de crianças”

Pesquisadora responsável: Profª. Maria Isabel Patrício de Carvalho Pedrosa

Equipe de Pesquisadores: Doutoranda Carina Pessoa Santos; Doutorando Pedro Paulo Bezerra

de Lira; Doutoranda Juliana Maria Ferreira de Lucena

Instituição: Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)

Convite aos pais ou responsáveis

Gostaria de sua autorização para que a criança sob sua responsabilidade possa participar como

voluntário da pesquisa Práticas sociais e cultura do grupo de brinquedo: concepções de

adultos e perspectivas de crianças. Este Termo de Consentimento pode conter informações

que o/a senhor/a não entenda. Caso haja dúvida, pergunte à pessoa que está lhe entrevistando

para que o/a senhor/a esteja bem esclarecido/a sobre a sua participação na pesquisa. No caso

de aceitar que a criança sob sua responsabilidade faça parte do estudo, rubrique as folhas e

assine ao final deste documento, que está em duas vias. Uma delas é sua e a outra é do

pesquisador responsável. Em caso de recusa nem o/a Sr./a nem o/a voluntário/a que está sob

sua responsabilidade serão penalizados/as de forma alguma. O/A Senhor/a tem o direito de

retirar o consentimento da participação da criança a qualquer tempo, sem qualquer

penalidade.

Informações sobre a pesquisa

Essa pesquisa tem como objetivo investigar o desenvolvimento de crianças pequenas (9 meses

a 6 anos de idade) e gostaríamos de observá-las e filmá-las na creche ou pré-escola para poder

compreender como elas, em suas brincadeiras, atribuem significados a experiências e a vários

objetos com os quais convivem. Mesmo bem pequenas as crianças aprendem a lidar com o

outro, conhecem o modo como eles pensam e adquirem várias informações sobre objetos e

situações que fazem parte de seu convívio. Também elas pensam e interpretam tudo que

aprendem em situações formais ou informais (em casa, com os amiguinhos, com parentes e

vizinhos etc.). É preciso conhecer o modo como elas pensam e se comportam, conhecer os

122

seus interesses e motivações para que o adulto possa melhor ajustar suas ações às crianças e

assim elas se desenvolvam mais e melhor.

Existirão três tipos de observação da criança: (1ª) ao brincar em pequenos grupos, em uma

sala preparada com brinquedos, escolhendo do que brincar; (2ª) em situação cotidiana da

creche ou pré-escola; (3ª) em oficinas de brincar; nestas o pesquisador sugerirá uma

brincadeira para ser realizada e discutida pelas crianças.

As informações desta pesquisa serão confidenciais e serão divulgadas apenas em eventos ou

publicações científicas, não havendo identificação dos voluntários, a não ser entre os

responsáveis pelo estudo, sendo assegurado o sigilo sobre a sua participação. Os dados

coletados nesta pesquisa sob a forma de videogravações e audiogravações ficarão

armazenadas em DVD ou CD, pelo período mínimo de 5 anos, sob a responsabilidade da

pesquisadora Maria Isabel Pedrosa, no Laboratório de Interação Social Humana (LabInt),

Departamento de Psicologia, 9º andar do CFCH, UFPE. Tel.: 2126-8270.

Não haverá pagamento para participar desta pesquisa. Se houver necessidade, as despesas

para a sua participação serão assumidas pelos pesquisadores (ressarcimento de transporte e de

alimentação). Fica também garantida indenização em caso de danos, comprovadamente

decorrentes da participação na pesquisa.

Em caso de dúvidas relacionadas aos aspectos éticos deste estudo, você poderá consultar o

Comitê de Ética em pesquisa envolvendo seres humanos da UFPE, no endereço: Avenida da

Engenharia s/n – 1º andar, sala 4 – Cidade Universitária, Recife-PE, CEP: 50740-600, tel.:

(81)2126-8588. E-mail: [email protected]).

Contato com a pesquisadora responsável: Fone 9242-5789. Endereço profissional: Avenida da

Arquitetura, s/n, Deptº. de Psicologia, 9º andar do CFCH, UFPE. CEP: 50740-550 Tel.: 2126-

8270. E-mail: [email protected]

Benefícios esperados

Os resultados da pesquisa poderão contribuir para um melhor conhecimento da criança, suas

habilidades sociais, seu modo de reagir afetivamente e sua competência social e cognitiva. Os

diferentes profissionais (técnicos, educadores e auxiliares de instituições educacionais e de

instituições de acolhimento) direta e/ou indiretamente envolvidos com o percurso infantil na

instituição poderão, então, melhor ajustar suas atuações às reais necessidades e possibilidades

da criança.

Riscos possíveis

Uma situação de avaliação é frequentemente constrangedora para as crianças envolvidas, pois

elas, muitas vezes, têm dificuldade de lidar com uma situação nova, quando desconhecem o

parceiro adulto (o observador ou articulador das oficinas), ou mesmo têm medo de falhar, não

demonstrando uma boa competência. Esse risco de constrangimento será minimizado,

estabelecendo-se, de início, um bom relacionamento com as crianças. Somente diante de uma

sinalização de que elas estão à vontade (não demonstrando receio da câmara ou do

pesquisador, com uma atitude de cooperação ou interesse) é que a coleta será iniciada.

123

Identificação do participante

Nome da criança:

_________________________________________________________________

Nome do responsável pela criança:

___________________________________________________

Data de nascimento da criança: ____/____/____

Sim. Aceito que a criança sob minha responsabilidade seja filmada para esse estudo.

Sim. Aceito que as filmagens sirvam de ilustração para trabalhos de pesquisa e para

formação de

adultos profissionais.

Estando assim de acordo, assinam o presente termo de consentimento em duas vias.

__________________________________________ ___________________

Pai, mãe ou responsável pela criança. Responsável pelo projeto.

__________________________________________ ____________________

Primeira testemunha Segunda testemunha

Recife, ____ de ________________ de 2015.