Pena E Garantias (Portuguese Edition)

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  • PENA E GARANTIAS

  • SALO DE CARVALHOAdvogado

    Mestre (UFSC) e Doutor (UFPR) em Direito Professor Titular de Direito Penal e Criminologia da PUCRS

    Professor Convidado do Doutorado Derechos Humanosy Desarrollo da UPO (Sevilha)

    Coordenador de Pesquisa do Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais

    PENA E GARANTIAS

    3a edio, revista e atualizada

    A CRISE DO DIREITO E DO PROCESSO PENALO GARANTISMO JURDICO

    AS TEORIAS DA PENAOS SISTEMAS DE EXECUOA LEI DE EXECUO PENAL

    OS CONFLITOS CARCERRIOSOS DIREITOS (DE RESISTNCIA) DOS PRESOS

    EDITORA LUMEN JURISRio de Janeiro

    2008

    www.lumenjuris.com.br

    EDITORESJoo de Almeida

    Joo Luiz da Silva Almeida

    CONSELHO EDITORIALAlexandre Freitas CmaraAmilton Bueno de CarvalhoCezar Roberto BitencourtCesar FloresCristiano Chaves de FariasCarlos Eduardo Adriano JapiassElpdio DonizettiFauzi Hassan ChoukrFirly Nascimento FilhoFrancisco de Assis M. TavaresGeraldo L. M. PradoGuilherme Pea de MoraesGustavo Snchal de GoffredoJ. M. Leoni Lopes de OliveiraJos dos Santos Carvalho FilhoLcio Antnio Chamon JuniorManoel Messias PeixinhoMarcellus Polastri LimaMarcos Juruena Villela SoutoNelson RosenvaldPaulo de Bessa AntunesPaulo RangelRicardo Mximo Gomes FerrazSalo de CarvalhoVictor Gameiro Drummond Trsis Nametala Sarlo Jorge

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  • Mas, quando os prncipes, por se tornarem soberanos,espezinham, sem remorso ou vergonha, os mais sagradosdireitos do povo, a ateno desperta pelo menor dos obje-tos, e mesmo a voz de um homem to isolado como eu podeproduzir algum efeito sobre os pensamentos do pblico. Seao reunir num s ponto de vista, sob vossos olhos, as medi-das perversas preparadas pelo Prncipe para alcanar oimprio absoluto, e as cenas lgubres sempre associadasao despotismo, puder vos inspirar o horror da tirania e rea-vivar em vossos peitos a chama sagrada da liberdade quequeimava em vossos antepassados, poderei considerar-meo mais feliz dos homens.

    Jean Paul MaratChains of Slavery

    Copyright 2008 by Salo de Carvalho

    Categoria: Processo Penal

    1a edio: 2001

    Esta edio tem o apoio doInstituto Transdisciplinar de Estudos Criminais (!TEC)

    PRODUO EDITORIALLivraria e Editora Lumen Juris Ltda.

    A LIVRARIA E EDITORA LUMEN JURIS LTDA.no se responsabiliza pelas opinies emitidas nesta obra.

    proibida a reproduo total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto s caractersticas

    grficas e/ou editoriais. A violao de direitos autorais constitui crime (Cdigo Penal, art. 184 e , e Lei no 6.895,

    de 17/12/1980), sujeitando-se a busca e apreenso e indenizaes diversas (Lei no 9.610/98).

    Todos os direitos desta edio reservados Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

    Impresso no BrasilPrinted in Brazil

  • Nota do Autor 1a Edio

    O presente trabalho fruto de pesquisa realizada entre os anos de1995 e 1999, antes e durante a realizao de curso de Ps-Graduao.A tese foi defendida no Doutorado em Direito da Universidade Federaldo Paran, em maro de 2000. Intitulado originariamente Garantismo eSistema Carcerrio: crtica aos fundamentos e execuo da pena pri-vativa de liberdade no Brasil, foi apresentado banca examinadoracomposta pelos Professores Dr. Jacinto Coutinho (UFPR), Dr. LuizAlberto Machado (UFPR), Dr. Lenio Streck (UNISINOS/RS), Dr. SrgioSalomo Schecaira (USP) e Dr. Nilo Batista (UERJ), sendo aprovado comnota mxima e, ainda, atribudo voto de louvor ao signatrio e tese.

    Em decorrncia do volume, inmeros cortes foram realizados, semdescaracterizar, contudo, a essncia do trabalho.

    Importante ressaltar, de imediato, a profunda colaborao doProfessor Dr. Jacinto Coutinho (orientador), bem como da ProfessoraDra. Aldacy Coutinho, no resultado final ora apresentado ao pblico. Noentanto, outras vozes silenciosas devem ter aqui a devida, e justa,meno. Contriburam de forma substancial ao trabalho os ProfessoresDrs. Lenio Streck e Geraldo Prado, os Mestres Alexandre Wunderlich eNey Fayet Jr. e o Desembargador Amilton Bueno de Carvalho. Registre-se, pois, meu profundo agradecimento e gratido.

    O problema abordado na tese pode ser expressado na afirmaode que o debate atual sobre o sistema carcerrio no Brasil consensua-liza uma falsa idia. corrente, nos meios acadmicos e profissionais,ouvir que o grande n existente na execuo penal decorrente da ina-dimplncia do Poder Executivo, ou seja, de que a violao aos direitosfundamentais dos presos decorre, exclusivamente, da incompetnciada administrao pblica em cumprir sua legalidade. Parte-se do pres-suposto de que, se o Estado prestasse seus servios (infra-estruturamaterial), os direitos dos apenados estariam plenamente garantidos.

    O objetivo da tese desmistificar tal afirmao, procurando perce-ber o nvel de (co)responsabilidade do jurista na barbarizao da exe-cuo da pena, viabilizando mecanismos prtico-tericos que justifi-quem as aes de resistncia dos presos no resgate de seus direitos.

    vii

  • Nota do Autor 2a Edio

    Aprendi com Ruth Gauer que todo texto datado.Desta forma, me senti legitimado a efetuar inmeras alteraes no

    livro apresentado em 2001.Em realidade, procurei, com a nova verso, deixar a redao

    menos tese (acadmica) e mais livro, suavizando a leitura de umatemtica em si extremamente desgastante.

    Todavia, as alteraes no foram apenas de cunho formal, mas,sobretudo, no contedo.

    As (inmeras) modificaes que o leitor encontrar foram fruto deum processo de amadurecimento que me obrigou a reler meu prpriopensamento. Este processo, sempre doloroso e fatigante, decorrnciade inmeras causas. Uma delas foi a militncia, nos ltimos quatroanos, na advocacia criminal, com o precioso compaero de lutaAlexandre Wunderlich. Aliou-se ao cotidiano da advocacia o perodo napresidncia do Conselho Penitencirio do Estado do Rio Grande do Sule os profundos debates realizados nos Programas de Ps-graduao daPUCRS, UNISINOS e UPO (Universidad Pablo de Olavide Sevilha).

    Neste perodo, foi possvel visualizar o impacto da tese na realida-de, verificando ingenuidades e defeitos, bem como algumas virtudesque possui.

    O leitor encontrar, portanto, um texto relativamente novo, diver-so daquele publicado na primeira edio e, esta a minha esperana,mais consciente de seus limites e possibilidades.

    A trajetria que finda nesta segunda edio teve inmeros interlo-cutores que merecem a devida homenagem e o imenso agradecimento.

    Antes de tudo, fundamental para concluso das revises o apoiodo pessoal do escritrio. Assim, meus agradecimentos aosWunderlichs, e tolerante e paciente equipe de trabalho formada porRogrio Maia Garcia, Camile Eltz, Rita de Cssia Branco Silveira, LizeteFlores e Eduardo Sanz de Oliveira e Silva.

    Natalie R. Pletsch e Liliana Carrard, muito embora componham ogrupo do escritrio, merecem uma referncia diferenciada, no apenaspela constante cobrana na finalizao desta edio, mas pelo primo-roso trabalho de reviso e crtica do rascunho.

    ix

    Os argumentos que compem o trabalho pendem entre a deslegiti-mao do modelo ressocializador e a incapacidade garantidora do pro-cesso de execuo moldado pela Lei de Execuo Penal (LEP). So obje-tivados, assim, em trs hipteses: (1a) a ideologia do tratamento (discur-so que perpassa a LEP) no apresenta contedo mnimo que possa afir-mar sua harmonia com os valores e princpios constitucionais; (2a) o pro-cesso de execuo penal no possui instrumentalidade adequada paraefetivar os direitos dos apenados; e (3a) da falta de instrumentalidadeprocessual para assegurar os direitos exsurge, quando da constataode situaes de violncia institucional, o direito de resistncia comomanifestao legtima de desagravo pela massa carcerria.

    A opo cientfica pela teoria do garantismo jurdico-penal.Procurou-se, desde esse marco doutrinrio, construir um discursocoeso, revificando os princpios ilustrados da secularizao e da tole-rncia concebidos como justificao antropolgica e racionalista interveno estatal , e negando o falso humanismo que recobre omito da recuperao. Assim, o instrumental adotado encontra-se emperspectiva diametralmente oposta ao modelo ressocializador, inten-tando deslegitimar os fundamentos jurdicos da pena para, num segun-do momento, direcion-la ao seu local de origem: a esfera poltica,como ensinava Tobias Barreto.

    Aps conjugar os argumentos apresentados, conclui-se que aestrutura da execuo da pena privativa de liberdade em regime fecha-do no Brasil inquisitorial, visto que impe ideologicamente ao conde-nado tratamento ressocializador; impede a massa carcerria usufruirdireitos primrios; e criminaliza qualquer manifestao contrria a esseestado de coisas.

    O discurso garantista proporciona desconstituir o fundamentoteraputico, diagnosticar as falhas de instrumentalidade processual e,ao relocar o problema da pena esfera poltica, legitimar atos de rebel-dia dos presos quando da reivindicao de seus direitos sonegados.

    Dessa forma, a inteno do trabalho possibilitar, ao jurista com-prometido com os direitos humanos e com a radicalizao da democra-cia, uma nova viso sobre o fenmeno da sano penal, intentando, naesteira waratiana, desvendar as falcias que encobrem o visvel apa-rente.

    Porto Alegre, vero de 2001.

    viii

  • Nota do Autor 3a Edio

    A presente edio lanada aps modificaes significativas nalegislao punitiva brasileira. O diagnstico, infelizmente, o do brutalenrijecimento das modalidades de sano, demonstrando a adequaodo Brasil ao que a literatura social denominou Estado penal.

    A institucionalizao do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD)pela Lei 10.792/03 poderia, portanto, exigir mudanas no texto da 2a

    edio do livro. Contudo, o que foi possvel constatar desde 2003 foi apotencializao da idia de disciplina prevista na Lei de ExecuoPenal com a adoo explcita do sentido retributivo e neutralizador dapena, tpico do pensamento penal autoritrio contemporneo refletidonas teorias funcionalistas do direito penal do inimigo.

    De outra parte, a Lei 10.792/03 revogou a necessidade do examecriminolgico para que o apenado alcanasse os direitos previstos nosincidentes de execuo, notadamente progresso de regime e livra-mento condicional. Contudo, apesar de revogado o requisito subjetivo,a jurisprudncia amparada por parte substancial da doutrina , a par-tir de interpretao nitidamente inconstitucional, reviveu o texto, res-tabelecendo o antigo critrio.

    Assim, so mantidas na integralidade as crticas direcionadasaos fundamentos e execuo das sanes judiciais e administrati-vas, ao trabalho do corpo tcnico criminolgico na legitimao dosistema punitivo e ao suplcio gtico que constitui o universo carce-rrio nacional.

    Neste quadro, entende-se que a manuteno do contedo da 2a

    edio justificada. Todavia, para que o leitor possa ter compreenso detalhada do

    entendimento do autor sobre as recentes alteraes no quadro puniti-vo, fato que atinge os principais problemas tratados no livro, foi acres-cido, em posfcio, artigo especfico sobre o tema.

    Importante referir, ainda, o apoio da Pr-reitoria de Pesquisa e Ps-graduao, da Faculdade de Direito, do Departamento de Direito Penale do Programa de Ps-graduao em Cincias Criminais da Pontifcia

    xi

    Amilton Bueno de Carvalho, Jacinto Coutinho, David SnchezRubio, Lenio Streck, Geraldo Prado, Ruth Gauer, Aury Lopes Jr., MariaPalma Wolff e Miriam Guindani continuam sendo minha referncia pri-meira, meu socorro nos momentos em que teoria e prtica pareceminconciliveis.

    Imprescindvel, tambm, o apoio de Paula Gil Larruscahin, NatliaGimenez, Lenora Oliveira, Rainer Hillmann, Mariana de Assis Brasil eWeigert, Rafael Rodrigues da Silva Pinheiro Machado, Roberta Longonide Vasconcellos, Renata Jardim da Cunha, Raffaella Pallamolla,Eduardo Rauber, Roberto Rocha Rodrigues, Fernanda Juliano Pasqualie Caroline Eskenazi, integrantes do grupo de pesquisa emCriminologia e Execuo Penal da PUCRS, que realizaram inestimveltrabalho de investigao, o qual, aliado aos frteis debates, deu consis-tncia a inmeras mudanas presentes nesta edio.

    Alexandre Wunderlich, Felipe Cardoso Moreira de Oliveira, Gus-tavo de Moraes Trindade, Daniel Gerber e Jos Carlos Moreira da SilvaFilho, amigos valiosssimos que, pela proximidade e intenso convvio,sempre auxiliam de forma pertinente com crticas e sugestes. De igualmodo Gabriela Koetz da Fonseca, que acompanhou este processo.

    Liane Pessin continua fornecendo o necessrio apoio psicanaltico. Por fim, Gabriela de Carvalho, Amilton Bueno de Carvalho, Nder

    Lopes da Rosa e Diego de Carvalho continuam sendo elementos desustentao do meu cotidiano, auferindo sentido caminhada.

    Porto Alegre, outono de 2003.

    x

  • Universidade Catlica do Rio Grande do Sul no financiamento e noestabelecimento das condies materiais que possibilitaram o prosse-guimento da investigao.

    Porto Alegre, agosto de 2007.Salo de Carvalho

    xii

    Sumrio

    Prefcio....................................................................................................... xvii

    Introduo.................................................................................................. xxiii

    Captulo I A Constituio do Paradigma Garantista.......................... 11.1. Garantismo e inquisitorialismo: modelos paradigmticos em

    tenso .................................................................................................. 11.2. O paradigma da intolerncia: o modelo jurdico inquisitorial...... 4

    1.2.1. Esclarecimento necessrio: o porqu do medievo ............... 41.2.2. Antecedentes histricos do modelo inquisitorial ................. 61.2.3. A instrumentalizao dos Tribunais ...................................... 101.2.4. A estrutura jurdico-penal ....................................................... 141.2.5. A barbrie jurdica: os mecanismos do mtodo inquisitorial . 19

    1.3. O processo de secularizao e a inveno da tolerncia .............. 221.3.1. A conquista do homem e do mundo ...................................... 221.3.2. A natureza liberta: oposio servido................................ 241.3.3. O pacto e os direitos do homem............................................. 281.3.4. O direito perversidade.......................................................... 331.3.5. Os fundamentos do direito de resistncia............................. 36

    Captulo II O Garantismo Jurdico-Penal: Gnese e Crise(s) ............ 392.1. Recepo do contratualismo pelo direito penal.............................. 39

    2.1.1. Unidade e existncia da Escola Clssica ............................ 392.1.2. A Accademia dei Pugni ........................................................... 422.1.3. A verso revolucionria do contratualismo........................... 452.1.4. O contratualismo no direito penal brasileiro......................... 50

    2.2. O refluxo do pensamento garantista................................................ 542.2.1. O paradigma etiolgico e a esttica do mal ......................... 562.2.2. A matriz etiolgica no direito penal brasileiro e o saber de-

    fensivista colonizado(r)............................................................ 622.2.3. O defensivismo contemporneo: a Nova Defesa Social ....... 68

    Captulo III As Razes do Garantismo ................................................ 773.1. O Programa poltico-criminal garantista ......................................... 77

    3.1.1. Garantismo: reivindicao ou superao do iluminismo ju-rdico-penal? ............................................................................. 77

    3.1.2. Regresso irracionalista: desregulamentao dos procedi-mentos, pluralismo de fontes e inflao legislativa ............. 79

    xiii

  • 5.3.1. Fundamentos ideolgicos da LEP e suas conseqnciasnormativas ................................................................................ 176

    5.3.2. A retrica disciplinar ............................................................... 1795.3.3. O controle da identidade do preso: laudos e percias crimi-

    nolgicas: discurso oficial ....................................................... 1825.3.4. O controle da identidade do preso: laudos e percias crimi-

    nolgicas: funes reais .......................................................... 1845.3.5. O controle da massa carcerria: regime meritocrtico ...... 189

    5.4. Garantismo e execuo penal: proposies .................................... 1925.4.1. A volatilidade da pena ............................................................ 1935.4.2. As relaes entre os discursos disciplinar e jurdico: pro-

    cesso penal e procedimentos executivos .............................. 1975.4.3. A funo dos tcnicos (criminlogos) .................................... 2015.4.4. O controle do tempo das decises judiciais: resoluo ficta. 2045.4.5. Da necessidade de recodificao ........................................... 2055.4.6. A cominao penal em abstrato............................................. 2075.4.7. A responsabilizao dos agentes pblicos pela violao

    dos direitos fundamentais dos apenados.............................. 209

    Captulo VI Garantismo e Conflitos Carcerrios: Fugas, Rebeliese Motins............................................................................................... 213

    6.1. As novas funes da pena ................................................................ 2136.1.1. A crise do Estado social e a emergncia do Estado peni-

    tncia: mirada ao centro.......................................................... 2136.1.2. O carcerrio: perspectiva perifrica ....................................... 218

    6.2. A ilicitude dos conflitos carcerrios................................................. 2206.2.1. A admistrativizao dos conflitos carcerrios ...................... 224

    6.2.1.1. Falta grave: previso legal......................................... 2246.2.1.2. Falta grave: sano..................................................... 225

    6.2.2. A criminalizao dos conflitos carcerrios............................ 2276.2.2.1. Evaso violenta........................................................... 2276.2.2.2. Motim........................................................................... 2296.2.2.3. Fuga e motim: anlise crtica .................................... 231

    6.2.2.3.1. Crtica de lege lata .................................... 2316.2.2.3.2. Crtica de lege ferenda.............................. 234

    6.3. Conflitos carcerrios e direito de resistncia.................................. 2356.3.1. A ineficcia do modelo liberal-legal para resoluo dos

    conflitos contemporneos ....................................................... 2356.3.2. Direito de resistncia: notas conceituais............................... 2396.3.3. Direito de resistncia, legtima defesa e estado de necessi-

    dade: aproximaes e diferenas ........................................... 2426.3.4. Direito de resistncia: condies de possibilidade da des-

    criminante supralegal .............................................................. 248

    xv

    3.1.3. Direito penal mnimo e direito penal mximo....................... 823.1.4. Direito penal mnimo e princpio da legalidade.................... 843.1.5. Teoria garantista da lei penal: critrios de deflao legis-

    lativa .......................................................................................... 893.1.6. O Projeto Minimalista: A Lei do Mais Fraco.......................... 93

    3.2. A teoria geral do garantismo ............................................................ 953.2.1. Garantismo e teoria crtica do direito: a validade das nor-

    mas e o papel do jurista .......................................................... 983.2.2. Garantismo e Estado de direito: as vises da democracia . 1043.2.3. Garantismo e filosofia poltica: teoria heteropoitica: tole-

    rncia e resistncia opresso .............................................. 108

    Captulo IV O Modelo Garantista de Limitao do Poder Punitivo.. 1154.1. A pena nas sociedades modernas: introduo............................... 1154.2. Esboo dos modelos justificacionistas da ilustrao.................... 117

    4.2.1. As justificaes retributivistas ............................................... 1184.2.2. O modelo intimidatrio ............................................................ 1224.2.3. A perspectiva poltica de preveno social .......................... 126

    4.3. A justificativa etiolgica de preveno especial: fundamentos eprograma poltico-criminal ................................................................ 128

    4.4. A crtica garantista ao modelo periculosista e subjetivaoprocessual ........................................................................................... 137

    4.5. O garantismo e a negao da legitimidade jurdica da pena ...... 1404.5.1. Da necessidade de uma teoria da pena ................................ 1404.5.2. A proposta garantista de limitao do poder punitivo........ 145

    Captulo V Os Sistemas de Execuo e o Garantismo Penal............ 1515.1. Valores e princpios penalgico-constitucionais............................. 151

    5.1.1. O condenado e o status aptrida ......................................... 1515.1.2. As instituies totais e a Constituio de 1988 ................... 1535.1.3. Valores constitucionais informadores .................................... 1555.1.4. Princpios constitucionais informadores................................ 1575.1.5. Princpios penalgico-constitucionais ................................... 1595.1.6. A Constituio penal e a restrio de direitos fundamen-

    tais do preso ............................................................................. 1605.2. Sistemas de execuo penal ............................................................. 162

    5.2.1. Sistemas de execuo penal: escoro histrico.................... 1625.2.2. O sistema de execuo institudo pela LEP.......................... 1665.2.3. Os princpios relativos aos sistemas processuais e o diag-

    nstico do processo de execuo penal brasileiro ............... 1705.3. Direitos versus Disciplina(s): o controle do indivduo e da massa

    carcerria............................................................................................ 175

    xiv

  • Prefcio

    A estrutura da Ps-graduao no Brasil ganhou um grande alentonos ltimos anos. A criao de um sistema sofisticado e bastante rigo-roso de avaliao de Cursos e Programas, em um primeiro momento,assim como, depois, a exigncia de um certo percentual de professorestitulados compondo o corpo docente dos Cursos de Graduao e a insu-portvel ampliao do nmero deles levou, entre outros motivos, aoglamour em que se encontra. Surgiu, como era sintomtico, a corridapelos ttulos. Quem no tem um deles, hoje, da Ps-graduao strictosensu (mestre ou doutor), tem sido objeto de discriminao, porque ostatus ganhou a ordem do dia, o patamar de regra do jogo. Certo ouerrado ( despicienda a discusso), a verdade que se tem grandesprofessores sem qualquer ttulo, mas no menos verdade que eles,salvo excees, so autodidatas, no raro dotados de um dom que seno pode obter por estudo ou treinamento, ou seja, algo incompatvelcom as exigncias de um pas carente, muito carente, de bons profes-sores. Prepar-los, ento, satisfatoriamente, uma das misses da Ps-graduao, o que tem sido obtido com um sucesso surpreendente, emface das parcas condies, materiais e pessoais, com as quais tem-seoperado. Tem o pas, assim, um bom motivo para orgulhar-se, mormen-te porque o modelo segue um tanto quanto na contramo da histriarecente, marcada pela impiedosa destruio neoliberal de uma certainteligncia nacional muito propcia a tudo questionar, dado ser neces-srio, que siga lutando pelo espao democrtico de todos, no s dosincludos. Alm do mais, o modelo tem sido referncia internacional(so poucos os pases com uma estrutura semelhante e em alguns temservido de suporte a mudanas), inclusive pela sua produo, emborauma avaliao mais segura e sem muitos riscos de erro s se vai poderter em um lapso temporal mais longo, quando os egressos dos Cursose Programas comecem, em larga escala, a fazer eco na vida, por seusalunos. A produo jurdica, sem um p na realidade, feu follet.

    A questo, agora, passa do bnus ao nus, projetando o calcanhar-de-aquiles da estrutura. No basta, sabe-se bem, produzir; precisoque seja com qualidade. Para t-la, faz-se mister um apurado sistemade orientao, ainda no alcanado no pas. Em primeiro lugar, os pro-

    xviixvi

    6.3.5. Direito de resistncia: efeitos jurdicos ......................................... 251

    Concluses ................................................................................................. 257

    Referncias Bibliogrficas ....................................................................... 265

    Posfcio Tntalo no Div ......................................................................... 285

  • atual: resistncia globalizao; as reformas penais atuais e a desca-racterizao do garantismo penal: a falcia das penas alternativas ea continuidade do projeto defensivista; a crtica do abolicionismo aosistema de penas: resposta negativa ao ius puniendi, entre outros demuita importncia, mas que cabem perfeitamente em textos isolados),aterra, pela primeira vez no mundo jurdico-criminal brasileiro de formasistemtica, o pensamento de Luigi Ferrajoli, tomado como marco te-rico. Por evidente, no se pode desconhecer a primorosa tese de douto-ramento do Prof. Sergio Cadermatori, apresentada e aprovada, em1998, na Universidade Federal de Santa Catarina, com o ttulo Estadode Direito e legitimidade: uma abordagem garantista, entre outros tra-balhos qui de menor flego. Faltava, porm, pouco mais de dez anosaps a primeira edio de Diritto e Ragione: teoria del garantismo pena-le (Laterza, Roma-Bari, 1989, 1034p.), que algum tivesse a ousadia dedestrinchar o garantismo de Ferrajoli e ler a pena e sua execuo, noBrasil, a partir daquele lugar. Pois foi o que fez Salo de Carvalho; e deforma primorosa.

    Est o texto estruturado em duas partes, respondendo a primeirapelas fontes e razes da teoria garantista. Tem-se, a, o necessrio paraentender-se o que Ferrajoli quis dizer quando afirmou que il modellopenale garantista, bench recepito nella Costituzione italiana come inaltre Costituzioni quale parametro di razionalit, di giustizia e di legiti-mit dellintervento punitivo, para concluir que Lorientamento che daqualche anno va sotto il nome di garantismo nato in campo penalecome una replica allo sviluppo crescente di tale divario [refere-se divergncia entre a normatividade do modelo em nvel constitucional esua ausncia de efetividade nos nveis inferiores] nonch alle culturegiuridiche e politiche che lhanno avallato, occultato e alimentato, quasesempre in nome della difesa dello stato di diritto e dellordinamentodemocrativo (Diritto..., p. 891).

    No que toca com as fontes, em um primeiro momento estuda asecularizao (j observada de modo brilhante em outro livro, recm-lanado em conjunto com Amilton Bueno de Carvalho sob o ttuloAplicao de pena e garantismo, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001,onde escreve sobre a Aplicao da pena no Estado Democrtico deDireito e garantismo: consideraes a partir do princpio da seculariza-o) e a tolerncia, ambas tomadas como valores estruturais do para-digma garantista. Em seguida, mergulha na recepo da teoria contra-tual pela nascente cincia penal, onde o resgate de Jean Paul Maratparece ser o ponto alto, mormente por seu Disegno di legislazione cri-

    Pena e Garantias

    xix

    fessores mais antigos, que no vieram dos Cursos e Programas de Ps-graduao, tm visvel dificuldade na conduo da operacionalizaodas dissertaes (de mestrado) e das teses de doutorado. difcil,reconhea-se, ensinar, o que se no teve a possibilidade de aprender.Depois, pela falta de um corpo docente mais amplo, no se tem umamaior especializao, o que obriga a um esforo muito maior, com fre-qncia fazendo do orientador um cmplice do orientando nas desco-bertas e decepes. Alm do mais, o sistema, por vrios motivos, ummais absurdo que o outro, transformou o mestrado em passagem obri-gatria para o doutorado, confundindo conceitos de um modo inaceit-vel; e o reflexo disto projeta-se como um raio na produo.

    Afinal, tem-se pleno domnio do sentido de recapitulao e emque pese a originalidade de muitas delas ensejado pela dissertao,fato de extrema relevncia quando em questo est a formao de umprofessor. tese, porm, no se reserva, nem se pode reservar, umahiptese do gnero, porque seria a sua banalizao, desde que seuescopo um texto originrio, inovador, calcado na alterao da baseprincipiolgica e, portanto, voltado, pelo menos no seu ponto de parti-da, s causas. Em suma, no se trata de produzir uma monografia oumanual qualquer, desses que tiranizam o saber dos alunos daGraduao, robotizando-os sem d, mas um trabalho marcado peloconhecimento mais amplo e lastreado nas disciplinas fundamentais ebsicas desde o ponto de partida para, paulatinamente, seguindo-seum fio condutor e em constante afunilamento, chegar-se a um marcoespecfico, por certo inovador. Se no se levar a srio tais premissas,aqui alinhavadas de modo primrio, logo ter-se-, pelas dificuldadesindividuais (para no radicalizar e dizer mediocridade, porque seriainjusto dado no ser geral), doutores sem vio, massificados pela pro-duo em srie, just-in-time.

    A tese de doutoramento do Salo de Carvalho no Programa de Ps-graduao em Direito da Universidade Federal do Paran que agora,seguindo a recomendao da Banca Examinadora (ProfessoresDoutores Nilo Batista, Srgio Salomo Schecaira, Lenio Luiz Streck,Luiz Alberto Machado e Jacinto Nelson de Miranda Coutinho), chegas livrarias com o ttulo Pena e garantias: uma leitura do garantismode Luigi Ferrajoli no Brasil, no s um motivo de orgulho para oPrograma como, tambm, h de servir de exemplo do que , em verda-de, uma tese; e de inestimvel valor.

    Nela, expurgada de alguns excessos quando em questo est apublicao de um livro (garantismo e conjuntura poltico-econmica

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  • perdoa o status alienado do jurista, atribuindo-lhe parcela de responsa-bilidade com toda razo pela barbarizao da execuo da pena.

    Por outro lado, refinada a interpretao que d o Salo ao utilita-rismo penal reformado de Ferrajoli, argutamente percebido porNorberto Bobbio: Le proposte di riforma avanzate, particolarmenteinnovative quelle riguardanti la pena, sono una diretta conseguenzadella teoria liberale dei rapporti fra individuo e stato, e lo stato non maiun fine in se stesso perch , o deve essere, soltanto un mezzo che ha perfine la tutela della persona umana, dei suoi diritti fondamentali di liber-ta e di sicurezza sociale (Prefcio de Diritto e ragione..., cit., p. XIII).Com isto, torna-se possvel, na tese, um retorno da pena ao espao pol-tico para, a partir dele, reconhecer direitos dos presos que esto esca-moteados na verborria jurdica, sem dvida ideolgica.

    Em suma, tem muito claro o Salo, mais que ningum, ser o garan-tismo de Ferrajoli e sua proposta de direito penal mnimo no uma teo-ria da pena mas, sobretudo, uma doutrina normativa sobre os limitesda pena. Deste patamar, a tese de uma coragem mpar, na melhor tra-dio de um bom gacho, justo porque, ao invs de transitar por umtema docilizado pelo senso comum, a comear por aqueles que levamo de acordo do egrgio Supremo Tribunal Federal, vai ao cerne dotumor do direito penal, ou seja, a pena e sua execuo. Para quem noabre mo dos direitos humanos e da radicalizao democrtica, imprescindvel, como faz o Salo, pensar nas estruturas no por aquiloque elas tm de mera maquilagem. Vai da que, a partir do modelo-limi-te garantista, chega, entre outras coisas, concluso de que Emmatria penal/penitenciria, o legado ainda presente da concepoadministrativista de execuo na qual o detento visto como meroobjeto e no cidado, aliado dificuldade de percepo dos direitostransindividuais, inviabiliza soluo pacfica dos conflitos. A conse-qncia desta miopia da dogmtica brasileira, cuja estrutura tericano permite conceber os detentos como sujeitos de direitos, o resga-te crtico do direito de resistncia como possibilidade estratgica decurto e mdio prazo para o resgate de sua cidadania.

    Com esta tese e seu livro o Salo insere-se, em definitivo, na his-tria dos grandes nomes do direito penal do Rio Grande do Sul, tradi-o de ponta no Brasil que passa por Salgado Martins, Alberto Rufino,entre tantos outros. Com ele impressionante h um grupo dejovens penalistas gachos de extrema qualidade e um futuro que vaidar ainda muitos frutos e orgulho ao mundo jurdico-penal brasileiro.Em larga escala vinculados ao !TEC (Instituto Transdisciplinar de

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    minale. Trad. de Marco Antonio Aimo, Milano-Varese: Cisalpino, 1971,184p.), talvez propositadamente esquecido, como forma de combatede suas idias pelo ostracismo, como sustenta a tese. Depois, os fun-damentos da teoria garantista ganham espao; e se compreende o por-qu da formulao de Ferrajoli.

    Desde essa base, parte o autor crtica aos fundamentos e exe-cuo da pena privativa de liberdade no Brasil; e o garantismo assumeum sabor verde e amarelo. Primeiro, pela avaliao crtica do modelopenalgico. Segundo, pela execuo penal brasileira enquanto sistema,diante do modelo garantista. Por fim, o encontro com a realidade nacio-nal onde, como no podia deixar de ser, eclode a tese, com respostasfortes, porque no poderia ser diferente.

    Soube o Salo, de maneira privilegiada, ler o garantismo deFerrajoli, tornando-o palatvel racionalidade jurdico-penal brasileiraque se no seduz com espelhinhos tericos. A questo, neste aspecto, simples: ou se trata de domesticar o pensamento eurocentrista ou aigreja no se faz povo, como disse Boff. Assim, a tese percebe a reco-mendao que Roberto Bergalli havia feito em um texto precioso,Fallacia garantista nella cultura giuridico penale di lngua ispanica,publicado qui no melhor trabalho sobre a teoria de Ferrajoli, Leragioni del garantismo: discutendo con Luigi Ferrajoli (LetiziaGianformaggio (Org.). Torino: Giappichelli, 1993): Cos lesame chedovr compiersi nellambito giuridico ispanico-latino-americano perverificare se le tesi di Ferrajoli sono trasferibili alla critica dei sistemipenali di queste culture, consister nel constatare se i principi costitu-zionali, le tradizioni legislative e la prassi applicativa che li caratterizza-no contengano quei tratti che Ferrajoli indica come propi dei sistemi diStato di diritto... Ma alcuni dei lavori che ho citato sopra hanno avuto ilmrito di abbraciare se non tutti almeno una buona parte degli aspettidel sistema penale spagnolo e di altri paesi latino-americani; e sulla basedi questi lavori possibile dubitare della capacita di quegli Stati di assi-curare ai loro cittadini un diritto penale conforme al modelo normativogarantista (p. 197). No cabe, todavia, uma postura maniquestaembora, em tempos de globalizao, mais do que nunca o escopo seja,como no poderia ser diferente diante da sua lgica, um pensamentonico, segundo Ignacio Ramonet, que parte do axioma de PaulWatzlawick: De todas as iluses, a mais perigosa consiste em pensarque no existe seno uma s realidade. No h espao, portanto, paradeslizar no imaginrio. Nesta dimenso, a tese agiganta-se, porque no

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  • Introduo

    ...no pensem que, s porque estou em silncio, fuisuprimido. Estou bem vivo e atento a tudo que se passa.No se iludam nem por um momento. No porque pareoindiferente que meus sofrimentos cessaram. No.

    Samuel BecketAll That Fall

    01. No prefcio da obra Fundamentos da Sociologia do Direito,publicada em 1912, Eugen Ehrlich afirma que deve ser possvel resumiro sentido de um livro em uma nica frase.1

    Ao enfrentar a difcil tarefa proposta pelo autor, tem-se que o con-tedo do presente trabalho pode ser sintetizado no seguinte enuncia-do: a inquisitorialidade (ftica e normativa) do processo de execuopenal estabelece uma relao perversa, na qual os direitos e as garantiasdos apenados acabam refns dos discursos clnico-criminolgico e admi-nistrativo-disciplinar.

    02. Antes, porm, de iniciar a abordagem central, algumas obser-vaes so importantes.

    Se fosse possvel mensurar o grau de civilidade de determinadacomunidade, tarefa irrealizvel empiricamente e inconcebvel cientifi-camente, um dos principais critrios utilizados seria a avaliao do sis-tema penal em sentido amplo. A pauta de pesquisa poderia ser defini-da a partir do processo de seleo legal de condutas (criminalizaoprimria), passando pelo ndice de incidncia do sistema nos desvian-tes e no decorrente processo de rotulao (criminalizao secundria)para, finalmente, direcionar o estudo ao ponto culminante do controlesocial formal: o sistema penitencirio.

    Todavia, alm do mecanismo formal de controle, sua relao como senso comum do homem da rua seria fundamental, especialmenteporque o processo de criminalizao primria inexoravelmente advmdas representaes deste pblico consumidor em relao simbitica

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    1 Ehrlich, Fundamentos da Sociologia do Direito, p. 07.

    Estudos Criminais), tm no Salo um pouco a figura do Captain, e no desmerecido, embora ele nunca tenha sonhado em admitir tal hipte-se, pelo respeito incondicionado que tem pela diferena e pelos amigosda chusma. Lugar do gnero, sabe-se pela psicanlise, conquista-se,domando-se, no que for possvel, o Nome do Pai de Lacan, com muitasublimao, ou seja, o preo a pagar.

    Para produzir trabalho de tamanha qualidade foi necessria umapesquisa imensa (incluindo nela um estgio entre Roma e Camerino,nos rastros de Ferrajoli, que se mostrou sempre muito solcito, bomreconhecer), com muita meditao e a imprescindvel humildade paraescutar as vozes discordantes, ou seja, o passaporte necessrio para aentrada no rol daqueles que se quer ouvir. Veio luz, assim, um livroque um primor, do qual a leitura tarefa inarredvel.

    Quem conheceu o Salo na aborrescncia sabe existir Algo maisa mexer no destino, mormente quando a encruzilhada se apresenta.Poderia ter pensando nele Helena Kolody, nossa grande poeta, quandoescreveu Gestao:

    Do longo sono secretona entranha escura da terra,o carbono acorda diamante.

    Prof. Dr. Jacinto Nelson de Miranda CoutinhoCoordenador eleito do Programa de Ps-graduao

    em Direito da UFPR

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  • cesso pblico de racionalizao dos conflitos, invadindo, inclusive, oimaginrio dos operadores do direito. Estes, formados para solucionarrazoavelmente os litgios, neutralizar o mpeto de vendeta e sublimar aretaliao, acabam por internalizar e intermediar o dio comunitrio,sendo cooptados por disciplina social extremamente autoritria, legiti-madora de verdadeira poltica criminal do terror.

    O jurista, neste cenrio, transforma-se cada vez mais em vingadorprivado, negando seu papel de prestador pblico de justia.

    A afirmao transparece no principal momento da intervenoestatal na sociedade: o processo de execuo penal. Se o operador dodireito, narcotizado pelo discurso defensivista, exigiu o mximo dalegalidade at a sentena condenatria, neste momento crucial se cala,esquece o direito positivo como se acometido de terrvel amnsia tc-nica. E, assim, por ignorncia, ingenuidade ou m-f, torna-se (co)res-ponsvel pelo genocdio em massa produzido nas instituies carcer-rias; transforma-se em agente legitimante e (re)produtor da selvageriagtica que assola a execuo da pena privativa de liberdade, principal-mente aquela cumprida em regime fechado.

    A tese obtm comprovao no tratamento acadmico da ExecuoPenal. Ao avaliar os programas das Faculdades de Direito, nota-se quesequer existe previso da disciplina no currculo mnimo da grandemaioria dos cursos jurdicos do pas. Logo, se a tendncia na esfera daexecuo da pena a invaso de inmeras cincias diversas, cada umacom seus signos e linguagens prprias, consolidando verdadeira torrede Babel, aos juristas a tarefa passa a ser extremamente rdua, vistoque sequer conhecem razoavelmente o tema. Como conseqncia, aprtica jurdica passa a ser superficial pois, ao ignorar a matria, osproblemas so mal colocados e as respostas, logicamente, inexisten-tes, irrisrias ou ineficazes.

    A ingenuidade do operador do direito em sede de execuo penaldeterminou premissas que impedem a efetiva busca de solues. Aprincipal a afirmao de que o problema da execuo reside exclusi-vamente no Estado-administrao, ou seja, de que a violao aos direi-tos dos presos decorre da incompetncia do Estado ao no cumprir aLei de Execuo Penal. Sustenta-se que, se o Executivo prestasse seusservios, os direitos dos apenados estariam plenamente garantidos.

    Entende-se, porm, que a utilizao deste recurso retrico servepara neutralizar omisses. Direcionando toda responsabilidade aoEstado-administrao, o operador do direto redime sua (enorme) parce-la de responsabilidade.

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    com a imprensa (marrom). Umberto Eco, ao problematizar sobre asnovas maneiras de formao do consenso, bem como sua relao como pblico espectador, adverte que, cada vez mais, so produzidos anal-fabetos lobotomizados pelo mass media.2

    Ensina Gizlene Neder que, muito alm de deflagrar processos for-mais de controle (criminalizao), o mass media vincula procedimentosinformais: esta imprensa sensacionalista est a cumprir um papel inibi-dor-repressivo, exibindo um horror cotidiano. Com a produo imagti-ca do terror apresentando diariamente mutilaes e com a presena deum discurso minudente, detalhista, das atrocidades sofridas pelo con-denado, a banca de jornal como a praa oferece s classes subalternas,comprovadamente consumidoras preferenciais desta imprensa sensacio-nalista (de mau gosto para as elites), elementos de controle social infor-mal, de alguma forma eficaz.3

    No Brasil, possvel afirmar que ambos nveis de resposta (contro-le formal e informal) aos fenmenos crime e violncia esto envoltospor atmosfera doentia.

    As respostas poltico-criminais violncia tm sua gnese invaria-velmente ligada a fatos e situaes-limite, contingenciais. A discussosobre a realidade carcerria freqentemente precedida de situaesde enorme violncia nas instituies v.g. fugas, rebelies e motins.Propagados e explorados fervorosamente pelos meios de comunicaode massa, tais fatos pulverizam discursos estruturados em pressupos-tos maniquestas e segregadores, quando no belicistas.

    O debate, inequivocamente, povoado pelo trivial: da banalizaofestiva da violncia decorre a vulgarizao rstica da resposta estatal.Observe-se que, em ltima instncia, sob o argumento dos altos custosde manuteno do presidirio, da descrena em sua recuperao, apia-se veladamente o extermnio.4

    O efeito da miserabilizao do tema violncia, ofuscando as possi-bilidades de seu controle pacfico, a barbarizao do cotidiano, a con-fuso entre poltica pblica de segurana e vingana privada, obtendo-se, como subproduto trgico, o vilipndio do ncleo rgido daConstituio que so os direitos e garantias fundamentais.

    A proliferao desses desejos brios de vingana, do sadismocoletivo mascarado, sobrepe o sentimento individual emotivo ao pro-

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    2 Eco, Postile a Il nome della rosa, p. 537.3 Neder, Em Nome de Tnatos, p. 20.4 Neder, ob. cit., p. 14.

  • constitucionais, idneo para conter o poder e pr os direitos funda-mentais a salvo dos desvios.

    Frise-se, pois, que os sistemas jurdico e poltico no podem, por sis, garantir absolutamente nada. Lembra Ferrajoli que a experinciaensina que nenhuma garantia jurdica pode sustentar-se somente sobrenormas; que nenhum direito fundamental pode concretamente sobrevi-ver se no sustentado por uma atuao por parte de quem seu titular,e pela solidariedade das foras polticas e sociais para com essa atuao.6

    03. Para fundamentar uma prtica emancipatria, que compreen-da o apenado como sujeito de direitos, optou-se pela matriz terica dogarantismo jurdico-penal.

    O discurso garantista tem sua gnese no movimento do uso alter-nativo del diritto, surgido na dcada de sessenta/setenta no interior daAssociao da Magistratura Italiana. desenvolvido a partir da crticaao direito penal, adquirindo atualmente pretenses generalistas, isto ,nasce como discurso de deslegitimao do sistema penal e ala seupotencial estruturao de nova concepo sobre a teoria geral dodireito e do Estado (teoria poltica).

    O primeiro e mais sensvel efeito da adoo do modelo penal degarantias a negao, a priori, das teorias de preveno especial posi-tiva (ressocializadoras) como argumento justificacionista da pena, e,posteriormente, das prprias justificaes jurdicas s sanes.

    A legitimidade da pena o epicentro do problema jurdico-penale, por que no dizer, da fundamentao poltica do Estado moderno. Noentanto, se em seu nascedouro a sano penal obteve justificativa uti-litarista, desde as teorias retributivas e os modelos de preveno geralnegativa sob a gide do discurso contratualista, com o advento daEscola Positiva italiana passa a ser moldada pela ideologia do trata-mento. A concepo profiltica da pena perpassou todo o sculo XX eainda demonstra fortes sinais de manuteno, principalmente pelarelegitimao operada pelo neo-positivismo criminolgico da correntepoltico-criminal da (Nova) Defesa Social.

    O discurso garantista, porm, encontra-se em perspectiva diame-tralmente oposta ao modelo ressocializador, procurando deslegitimaros fundamentos jurdicos da pena, direcionando-a ao seu local de ori-gem: a esfera poltica. Constri seu arcabouo terico a partir dos prin-cpios ilustrados da secularizao e da tolerncia, concebendo justifi-

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    6 Ferrajoli, ob. cit., p. 986.

    Evidente que a afirmao vlida quanto ao aspecto material(infra-estrutural), isto , efetivamente a Administrao Pblica colocaos apenados em situao de violncia permanente ao no cumprir como dever de assegurar o mnimo de dignidade durante o perodo deexpiao da pena. Alerta-se, contudo, que os direitos do apenado vomuito alm dessa proclamada qualidade de vida domstica consigna-da no Estatuto Social do preso (normas de execuo que regulam seubem-estar).

    No momento da condenao de uma pessoa ao sistema peniten-cirio exsurge uma srie de direitos e garantias processuais que permi-tem a diminuio do perodo de cumprimento da pena e, por bvio, depermanncia no sistema: so os chamados incidentes da execuo. Huma srie de direitos primrios, exclusivos da condio de apenado,que devem ser respeitados pelo Poder Pblico, principalmente peloJudicirio (v.g. remio, progresso de regime, substituio de pena,detrao, livramento condicional, comutao, indulto et coetera).

    No entanto, a efetividade desses direitos somente possvel sehouver instrumentalidade processual (garantista), se o arteso dodireito possuir conhecimento mnimo para exigir a prestao jurisdicio-nal. O dficit de saber tcnico-dogmtico, porm, predomina, e as cr-ticas acerca da inefetividade dos direitos so, invariavelmente, direcio-nadas ao Poder Executivo.

    A postura do jurista identificado com a perspectiva crtica, entre-tanto, no pode ser de ocultao dessa cruel realidade; pelo contrrio,sua funo denunciar as ilegalidades do sistema, sejam normativasou referentes prtica cotidiana.

    Nesse sentido, imprescindvel desenvolver severa crtica falciapoliticista, pensamento predominante na esfera da execuo penalbaseado na idia de que suficiente a ao do Poder Pblico, ou seja,de que basta um poder bom para satisfao dos direitos. Como adver-te Ferrajoli,5 ilusrio pensar que pode existir um bom poder capaz detutelar direitos sem a mediao de complexos sistemas normativos degarantias com capacidade de limit-lo, vincul-lo, instrumentalizando-o e, se necessrio, deslegitim-lo e neutraliz-lo. No obstante, alertaimportante no incorrer-se em uma falcia garantista, ou seja, naconstruo de um discurso baseado na idia de que a existncia de umbom direito, dotado de sistemas avanados e atualizados de garantias

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    5 Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 985.

  • ao relocar o problema da pena esfera poltica, legitimar atos de resis-tncia dos apenados (se presentes requisitos mnimos), visto que,como afirma Gizlene Neder, as prises (em todo o pas) escancaram umapodrido que ressalta a arrogncia e o descaso das elites e dos gover-nantes em relao aos direitos (em geral), mas, sobretudo, aos direitoshumanos das classes subalternas.7

    04. A constante publicizao do abuso do poder pblico nas insti-tuies penitencirias permite a visualizao das hiptese elencadas.

    Eduardo Galeano, observando a realidade de um mundo aoavesso, percebe nele a existncia de crceres imundos, nos quais osprisioneiros, em sua grande maioria pobres e sem condenao, somantidos como sardinha em lata se se comparasse, o inferno deDante pareceria algo de Disney. Continuamente estalam motins nessasprises que fervem. As foras da ordem liquidam a balaos os desordei-ros e, de quebra, matam todos que encontram pela frente, atenuando oproblema da falta de espao.8

    O jornalista uruguaio abdica, contudo, de escrever sobre o irreal econstata que, em 1992, houve mais de cinqenta motins (segundocifras oficiais extremamente otimistas) nos presdios latino-america-nos, cujo saldo foi de, no mnimo, novecentos mortos, quase todos exe-cutados a sangue-frio. Todos estes presdios padeciam de graves pro-blemas de superlotao.

    Segundo a Secretaria de Segurana Pblica do Estado de SoPaulo, s no ano de 1997 ocorreram 195 rebelies nas instituies car-cerrias. No ano anterior, tinham sido constatadas 71. Em 1996, houve589 evases, com 3.957 foragidos; em 1997, 3.663 pessoas deixaram ascadeias em 638 fugas; foram registrados, em 1996, 341 casos de tenta-tiva de fuga contra 417 em 1997.

    O advento de fugas, rebelies e motins (conflitos carcerrios), alia-do ampla cobertura da imprensa, transforma o tema em pauta diriade discusso. , pois, nas significaes dos conflitos na esfera do direi-to que se procurar comprovar a tese de que, tanto em nvel normativoquanto executivo, o universo da execuo da pena privativa de liberda-de no Brasil regido por modelo inquisitorial.

    A partir dos discursos (sobretudo jurdicos) sobre a maior violaoaos direitos humanos em casas prisionais no pas, o massacre do

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    7 Neder, ob. cit., p. 12.8 Galeano, De pernas pro ar, p. 94.

    cao antropolgica interveno estatal, desmistificando o falsohumanismo que recobre o mito da recuperao.

    Assim, o garantismo apresenta-se como modelo interpretativo dosistema penal, como recurso heurstico de legitimao e/ou deslegiti-mao das normas e prticas do controle social formal.

    Ao fundar sua doutrina na secularizao e na tolerncia, e des-construir o argumento ressocializador da resposta penal ao desviopunvel, a teoria do garantismo impe uma srie de condies necess-rias ao discurso jurdico, isto , deriva inmeras implicaes tericasque devem ser respeitadas.

    Assumindo, pois, a perspectiva garantista, procurou-se tensionarseu discurso ao mximo, utilizando como objeto de anlise a execuoda pena privativa de liberdade cumprida em regime fechado no Brasil.O trabalho no recai, pois, somente sobre as teorias da pena mas, esobretudo, sobre a estrutura normativa e a realidade da execuo penal.

    Trabalhou-se com a hiptese de que o modelo de execuo da penaconfigura um sistema totalitrio inquisitivo, devido ao fato de, na esfe-ra pblica, reduzir o acesso jurisdio, e, na esfera privada, impor umpadro moral como forma de justificar um sistema meritocrtico.

    Portanto, os argumentos que perpassam o trabalho oscilam entrea deslegitimao do modelo ressocializador e a incapacidade garanti-dora do processo de execuo penal. So objetivados em trs premis-sas: (1a) o modelo da ressocializao, alm de inviabilizar no cotidianoda execuo o gozo pleno dos direitos pelos apenados, no apresentacontedo mnimo que possa afirmar sua harmonia com os valores cons-titucionais da secularizao e da tolerncia; (2a) o processo de execu-o penal, muito longe de estar preparado para garantir os direitos dosapenados, no possui instrumentalidade mnima em decorrncia desua subordinao estrutura do direito penitencirio; e (3a) da falta decapacidade processual do direito em assegurar os direitos, quando daconstatao de situaes de violncia institucional (leso aos direitosfundamentais), exsurge o ius resistentiae como manifestao legtimade desagravo pela massa carcerria. Agregando os argumentos, advo-ga-se que a estrutura da execuo da pena no Brasil adquire feiesinquisitoriais, visto que impe aos apenados reforma moral, impede amassa carcerria de usufruir direitos primrios positivados no ordena-mento jurdico e, finalmente, sanciona (administrativa ou penalmente)qualquer manifestao contrria a este estado de coisas.

    O discurso garantista proporciona desconstituir o fundamentoteraputico, diagnosticar as falhas de instrumentalidade processual e,

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  • o inferno carcerrio como o que persiste no Brasil, uma das nossas tan-tas emergncias sem soluo.11

    Procurou-se, pois, construir possibilidades de resgate dos direitosdos apenados neste cenrio no qual a fatalidade, que tambm invadeo discurso jurdico, tudo explica e justifica. Buscou-se resgatar, namedida das limitaes, tanto pessoais como impostas pelo muro da pri-so, a fala destes sujeitos esquecidos; a preocupao dar voz aos dife-rentes sujeitos que fazem parte desse espao prisional.12

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    11 Verssimo, Os Usos da Fatalidade, p. 03.12 Guindani, Violncia e Priso, p. 147.

    Carandiru, surgem algumas indagaes, pois o massacre do Carandiru uma forma figurada de se falar sobre outras coisas: uma metfora dequestes candentes, e no resolvidas, na construo truncada de umEstado Democrtico de Direito que formalizou-se juridicamente semassegurar cidadania efetiva. A intensa cobertura jornalstica ressaltouos conflitos humanos e os terrores mal articulados no imaginrio dasociedade: das mulheres que junto ao porto do presdio gritavamnomes dos presidirios na esperana de uma resposta dos internos sobresua vida ou morte de seus filhos e parentes at o terror de contaminaodos policiais pelo sangue que jorrava de presos supostamente aidticos.No centro da discusso da imprensa permanecia latente a questo: justo se exterminar excludos que foram tidos como perigosos ou rebel-des? Ou o Estado se torna delinqente quando policiais militares massa-cram presos?9

    A grande questo oculta que permeia o debate jurdico sobre oscasos de conflito carcerrio no Brasil relaciona-se ao fato de ser ou noo Estado responsvel pelo zelo da integridade fsica e moral do apena-do e de, ao descumprir esta obrigao constitucional, dever ou noarcar com as responsabilidades decorrentes.

    Muito mais que um motivo para debate, os conflitos carcerriosrefletem o sentir (sentido/sentimento) sobre a pessoa presa, sobre seusdireitos e, principalmente, sobre a forma de exerc-los. Mais, se sepode conceber e garantir aos detentos, no caso de violao sistemti-ca aos seus direitos fundamentais (casos emergenciais), mecanismosde (re)ao legtima.

    Infelizmente, a concluso que sobressalta no universo jurdico-poltico negativa, pois parece que suas vidas no importam; seusdireitos (humanos) tambm no. O Massacre do Carandiru a provaeloqente disto.10

    Luis Fernando Verssimo, notvel crtico do cotidiano, percebe quea situao carcerria no Brasil um teatro de permanente purgao,uma realidade construda aos poucos por homens conscientes obrade geraes , resultado de anos e anos de decises adiadas, de omis-ses e desconversas. Cenrio de martirizao na carne cuja fatalidade o libi; a fatalidade a desculpa; a fatalidade, no fim, a explicaode tudo s um fatalismo congnito, ou uma cultura fatalista, justifica

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    9 Caldeira, Caso Carandiru, p. 55.10 Neder, ob. cit., p. 23.

  • Captulo IA Constituio do Paradigma Garantista

    1.1. Garantismo e inquisitorialismo: modelos paradigmticos em tenso

    Para realizar uma digresso histrica com intuito de fundar os pres-supostos do modelo jurdico-penal de tutela dos direitos fundamentais, mister preocupar-se com a afirmao de alguns valores e categoriasque sero lapidares no processo de construo dos direitos humanos,entendidos estes, desde uma perspectiva garantista, como elementosde legitimao externa dos Estados democrticos de direito.

    Os valores elencados para o estudo ora proposto so a seculariza-o e a tolerncia, frutos da concepo ilustrada do direito e do Estadoa partir da laicizao do saber filosfico e jurdico.

    necessrio ressalvar, todavia, que tal eleio fornecer elemen-tos justificadores de um modelo jurdico-penal contratualista e liberal,tendo em vista que a especificidade histrica da ilustrao caracteri-zada pela intensa busca de limites ao Estado frente liberdade indivi-dual, bem como pela elaborao de critrios de participao do cida-do no espao pblico. Assim, pode-se afirmar que as principais mani-festaes do direito no cmbio do Ancien Rgime modernidadeencontram-se no direito e processo penal e nos direitos polticos.

    Nesse contexto, o direito penal e o direito processual penal atua-riam como parmetros de tutela liberdade, sendo que os direitos pol-ticos possibilitariam os canais de acesso do cidado s decises sobreas regras do jogo. Este rol de direitos e garantias asseguradas pelopensamento ilustrado propiciou a noo contempornea de direitos deprimeira gerao (direitos individuais), estruturando a base de legiti-midade do garantismo jurdico.1

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    1 Registre-se, de imediato, que, muito embora seja utilizado em alguns momentos do textoa diviso Direitos Humanos em geraes (eras), compartilha-se da Teoria Crtica dosDireitos Humanos, principalmente da perspectiva desenvolvida nas investigaes doPrograma de Doutorado Derechos Humanos y Desarrollo, da Universidad Pablo de Olavide

  • Ferrajoli ope o Estado democrtico de direito ao Estado autorit-rio e, como conseqncia, o modelo jurdico garantista ao modelo inqui-sitorial. O autor cria, a partir da terminologia weberiana, tipos ideais deEstado e de direito, ou seja, recursos heursticos tendenciais e irreali-zveis, que servem de parmetros (des)legitimao e/ou (des)cons-truo de sistemas de saber/poder.3

    Tomar-se-o, pois, as categorias fornecidas por Ferrajoli para cons-truir um modelo paradigmtico de direito cuja denominao ser direi-to de garantias ou simplesmente garantismo.

    A nfase no penal no decorre unicamente do interesse acadmi-co na disciplina mas, e sobretudo, devido s manifestaes de van-guarda que este ramo jurdico proporcionou no perodo da ilustrao.

    Leciona Carnelutti que el primado histrico pertenece al derechopenal. Cuando el derecho nace, nace como derecho penal.4 Pode-se afir-mar, portanto, que um dos principais motivos da racionalizao ehumanizao do direito foi a resistncia imposta pelo pensamento filo-sfico-jurdico s manifestaes de barbrie dos Tribunais do SantoOfcio da Inquisio.

    Neste processo de (re)construo do garantismo como possibilida-de de fundar um modelo de tutela dos direitos fundamentais, a avalia-o da matriz iluminista por demais importante, visto que la crtica alderecho penal y processal en el siglo XVIII, que ocupa una buena partede los esfuerzos de la filosofia ilustrada, puede hoy presentarse como unde los captulos principales de la gnesis ideolgica de los derechos fun-damentales.5 Dessa forma, a apario do penal/carcerrio no corpodeste texto viabiliza manifestaes paradoxais de paradigmas emconstruo e em crise.

    Pena e Garantias

    3

    as crticas no apenas so possveis como necessrias. Neste sentido, importantes ascolocaes de Sousa Santos, Um Discurso sobre as Cincias, pp. 36-58.

    3 Importante lembrar o ambicioso processo de poder inserido nesta disputa pelo locus dafala cientfica. Para Foucault, a imposio de um saber delega s demais anlises sobreo mesmo fenmeno o posto de saberes dominados, saberes desqualificados como nocompetentes ou insuficientemente elaborados: saberes ingnuos, hierarquicamente infe-riores, saberes abaixo do nvel requerido de conhecimento ou cientificidade (Foucault,Genealogia e Poder, p. 170). A propsito, reitera Foucault que temos que admitir que opoder produz saber (e no simplesmente favorecendo-o porque o serve ou aplicando-o por-que til); que poder e saber esto diretamente implicados; que no h relao de podersem constituio correlata de um campo de saber, nem saber que no suponha e no cons-titua ao mesmo tempo relaes de poder (Foucault, Vigiar e Punir, p. 30).

    4 Carnelutti, Cuestiones sobre el Processo Penal, p. 45.5 Sanchs, La Filosofia Penal de la Ilustracin, p. 288.

    Para caracterizar os fundamentos destes direitos incipientes, co-mungou-se da tipologia proposta por Luigi Ferrajoli em sua obra Dirittoe Ragione: Teoria del Garantismo Penale, a qual fornece dois modelosdicotmicos de Estado e de direito, por meio dos quais formular-se-oestruturas paradigmticas de direito e processo penal.2

    Salo de Carvalho

    2

    (Sevilha/ES) coordenado por Joaqun Herrera Flores e David Snchez Rbio. Neste senti-do, conferir Snchez Rbio, Acerca de la Democracia y los Derechos Humanos, pp. 63-99;Herrera Flores, Hacia una visin compleja de los Derechos Humanos, pp. 19-78; e Senentde Frutos, Notas sobre una Teora Crtica de los Derechos Humanos, pp. 117-129. Sobre ainterseco da matriz garantista com a perspectiva crtica dos Direitos Humanos, confe-rir Wunderlich, Sociedade de Consumo e Globalizao, pp. 41-61.

    2 A opo pela teoria dos paradigmas advm do fato de entender inexistir a cincia comoatividade unvoca e homognea para todas as pocas e sociedades. Partilhou-se do ensi-namento de Thomas Khun no qual a realizao, produo e reproduo da cincia estsempre restrita ao consenso ou conjunto de compromissos tericos bsicos existentesnuma comunidade cientfica. H cincia apenas quando um pesquisador (sujeito com-prometido com um paradigma) utiliza os instrumentos de pesquisa oferecidos pelomodelo vigente, compartilhando de seu objeto, mtodos e fins: um paradigma aquiloque os membros de uma comunidade cientfica partilham. E, inversamente, uma comuni-dade cientfica consiste em homens que compartilham de um paradigma... Um paradigmagoverna, em primeiro lugar, no um objeto de estudo, mas um grupo de praticantes dacincia (Khun, A Estrutura das Revolues cientficas, pp. 219-224).Ao estar consolidado no universo da comunidade, o paradigma passa a ser irrefletida-mente repassado aos demais pesquisadores por meio de um especfico modo de produ-o do saber. Essa cincia normal acaba por determinar o que lcito ou ilcito, o que ou no admissvel em determinada disciplina, dirigindo e impondo os resultados finais,bem como constituindo as formas e os campos possveis do conhecimento (Foucault,Vigiar e Punir, p. 30). Todavia, a partir do momento em que a comunidade cientfica iden-tifica objetos estranhos que no deveriam ali estar sendo estudados ou que suas respos-tas no correspondem s expectativas do grupo, estamos diante de uma criseparadigmtica. A crise se processa no interior do universo de anlise pr-constitudo,pois se percebe que elementos que deveriam ser objeto de pesquisa esto fora da lupadeste parmetro oficial de realizao de cincia que no mais consegue responder satis-fatoriamente aos interesses da comunidade (cientfica). H crise paradigmtica nestemomento intermedirio em que o paradigma vigente no consensualiza mais a comuni-dade cientfica e o novo modelo instrumental ainda no logrou plena aceitao (ou noatingiu aceitvel maturidade). A atividade de identificao dos elementos externos noabsorvidos, ou internos desconfortantes, no paradigma vigente fruto de verdadeira ati-vidade subversiva, marginal e sediciosa desde a perspectiva da cincia normal, configu-rando, pois, uma cincia extraordinria, alternativa.Logicamente, o objetivo da cincia extraordinria impor novos limites, mtodos e fins cincia, isto , instaurar-se como o novo paradigma dominante. Tal processo definidopor Khun como revoluo cientfica e o que permite a eterna modificao e o constan-te aperfeioamento da humanidade em uma verdadeira ciranda da cincia. Ressalve-se,porm, que da crise no resulta necessariamente a substituio de um paradigma poroutro, podendo ocorrer redimensionamentos e relegitimaes do modelo que anunciavasinais de enfermidade.Registre-se ainda que, muito embora a estrutura khuneana seja pensada para as cin-cias naturais, existem possibilidades de sua apropriao pelas cincias sociais. Assim,

  • cada estrutura de pensamento poltico elabora formas de compreensosobre o desvio, o delito, o juzo e a pena. Percebe Zaffaroni que cada -jusnaturalismo histrico tuvo su criminologa, o sea, su sistema de ideasacerca de lo que se debe ser el delito y la pena; toda sociedad tuvo su dis-curso criminolgico que explicaba el poder y el delito.8

    Todavia, o complexo de idias nascidas a partir do modelo contra-tualista do iluminismo funda a estrutura do direito penal moderno, dapoltica criminal contempornea e da atual criminologia, estruturandoos pressupostos cientficos e ideolgicos conformadores do saber oci-dental sobre a criminalidade, transnacionalizados historicamentedesde o centro periferia. Logo, lo que surge con el Iluminismo no es lacriminologia misma, sino la criminologia europea moderna, es decir, lapresentacin de la criminologia en la forma que los europeos la concibeny a partir de entonces la difundem por el mundo.9

    A afirmao de fundamental importncia, pois revela a estrutu-ra do saber-poder eurocentrista imposta ao Novo Mundo desde a des-coberta, matriz cuja base permanece inabalada, ainda que modificadaem alguns aspectos de sua apresentao ao pblico consumidor do sis-tema penal.

    A tradio acadmica, diversamente, reconhece o estudo do ilumi-nismo penal to-somente a partir das promessas de racionalidade(legalidade e certeza) e proporcionalidade das penas, conformando osideais de segurana jurdica.

    Agora, se decisivo o pleno entendimento da estrutura penal e filo-sfica do iluminismo sob pena de incompreenso das funes do siste-ma jurdico-penal da modernidade, a excluso do status quo ante impos-sibilita a avaliao das conseqncias dos discursos jurdicos fragmen-tadores do modelo clssico. Olvidar o modelo jurdico do medievo signi-fica, fundamentalmente, ignorar as possibilidades e as armadilhas gera-das pela assuno de saberes opostos e conflitantes ao garantista.

    Existe um saber construdo e consolidado no perodo da BaixaIdade Mdia cujas caractersticas indicam a formao de um ncleomnimo de elaborao paradigmtica. Este saber no ingnuo nemaparente, mas real e coeso, fundado em pressupostos lgicos e coeren-tes, nos quais grande parte dos modelos jurdicos autoritrios contem-porneos, alguns ainda em vigor, busca(ra)m inspirao. Mais, em

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    8 Zaffaroni, Criminologa, p. 101.9 Zaffaroni, ob. cit., p. 101.

    A partir destas consideraes, o trabalho desenvolvido na confi-gurao do saber (paradigma) inquisitorial e do saber (paradigma)garantista, identificando suas caractersticas, princpios e valores fun-damentais, o processo de crise e substituio paradigmtica, bemcomo seu legado teoria do direito e s relaes de poder existentesem sua conformao e declnio. Paralelamente, procurou-se demonstrarque esta mudana de paradigmas na esfera jurdica correspondeu tam-bm a uma mudana paradigmtica nas cincias em geral, especifica-mente na filosofia e na poltica, j que a substituio do paradigma teo-lgico pelo paradigma antropolgico descentralizou, descobriu, con-quistou e humanizou o homem.

    1.2. O paradigma da intolerncia: o modelo jurdico inquisitorial

    1.2.1. Esclarecimento necessrio: o porqu do medievo

    Sabe-se que inmeras leituras so possveis da estrutura jurdico-poltica do medievo. A complexidade desse perodo histrico indica ariqueza e a pluralidade da matria. Segundo Francisco Bethencourt,6 asInquisies so estudadas, geralmente, no como um problema, mascomo tema consagrado de pesquisa, permitindo todos os cortes espa-o-temporais e todas as apropriaes discursivas. Por isso UmbertoEco, antes de tematizar as inmeras formas de conceber o medievo,ensina que como todos os sonhos, tambm o da Idade Mdia corre orisco de ser ilgico, e fonte de admirveis deformidades. Muitos no-lo dis-seram, e talvez isto bastasse para no induzir-nos a tratar de modohomogneo o que no homogneo.7

    No direito, a doutrina tradicional limita as questes do modeloinquisitorial s (importantes) modificaes processuais (do modeloacusatrio-ordlio privado ao modelo inquisitivo) ou criao da primascuola, a denominada Escola Clssica do direito penal, marco genea-lgico da cincia criminal moderna (direito penal, processo penal, cri-minologia e poltica criminal).

    No entanto, fundamental observar que sempre houve, e semprehaver, um determinado saber sobre o crime e a criminalidade, ou seja,

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    6 Bethencourt, Histria das Inquisies, p. 09.7 Eco, Dez Modos de Sonhar a Idade Mdia, p. 74.

  • penal material. Segundo o processualista argentino, tal constataopode ser observada plenamente no processo histrico de construodo modelo processual inquisitivo. Apesar de ser um sistema processualcujos primeiros vestgios apareceram no Imprio Romano, posterior-mente desenvolvido pelo Direito cannico e recebido na legislaolaica da Europa continental atravs do fenmeno conhecido comorecepo do Direito romano-cannico, verifica-se que su nacimiento,desarrollo y recepcin fueron el resultado de la necessidad poltica con-creta de apoyar un poder poltico central y vigoroso, cuya autoridad yfundamento no poda discutirse (autoritarismo). Para ello result nece-sario postergar los intereses individuales y elevar a principio el aforismosalus publica suprema lex est.15

    As primeiras manifestaes do processo inquisitorial ocorreram naRoma Imperial, aps a introduo dos delitos de laesae maiestatis (sub-verso e conjura), nos quais o ofendido era o soberano.

    Na Grcia e na Roma republicana, porm, o processo era fundamen-talmente acusatrio, dado o carter privado da acusao (nos delitos nosquais o Estado no era ofendido/interessado) e a natureza arbitral dojuzo.16 Esclarece Tornaghi que na Antiguidade a forma de processoconhecida foi a acusatria, cujo princpio orientador pode ser observadono fato de que ningum poderia ser levado a juzo sem acusao.17

    No sistema da Repblica romana, o processo iniciava com a accu-satio do ofendido ou do seu representante. Aps a accusatio havia oprocedimento de pesquisa da materialidade e autoria pelo acusador napresena do acusado. A legitimidade da investigao era fornecidapelo magistrado atravs de uma lex que delegava poderes para proce-

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    15 Maier, Derecho Procesal Penal, p. 261.16 Segundo Geraldo Prado, o prestgio do modelo ateniense de persecuo penal derivou

    exatamente do sistema de acusao popular, em relao aos crimes pblicos, faculdadedeferida a qualquer cidado, de um modo geral pela Assemblia do Povo, para em nomedo prprio povo sustentar a acusao. Assim, o ofendido ou qualquer cidado apresenta-va e sustentava a acusao perante o Arconte e este, conforme se cuidasse de delitopblico, convocava o Tribunal, cabendo ao acusado defender-se por si mesmo (em algu-mas ocasies era auxiliado por certas pessoas). As partes apresentavam suas provas eformulavam suas alegaes, no incumbindo ao Tribunal a pesquisa ou aquisio de ele-mentos de convico. Ao final a sentena era ditada na presena do povo (Prado, SistemaAcusatrio, p. 79). A forma acusatria adotada na poca era dominada integralmente pelocontraditrio, cumprindo s partes pesquisarem e produzirem as provas de suas alega-es. Tratava-se de um modelo de processo pblico e oral, cujos debates formavam o eixocentral, dos quais derivava o fundamento da deciso. Neste paradigma processual as par-tes tinham, via de regra, a disponibilidade do contedo do processo (Prado, ob. cit., p. 82).

    17 Tornaghi, Instituies de Processo Penal, pp. 470-471.

    matria penal e processual penal, a elaborao desta matriz foi togenial que permanece vigente nos tempos atuais.10

    Assim, caracterizar o paradigma inquisitorial no representamero exerccio ldico de academia, mas sim identificar possibilidadesconcretas de sistemas jurdicos desvirtuados (autoritrios) mudam ossinais, mas no a lgica de um sistema totalitrio e por isso repressivode toda e qualquer diferena.11 Para tanto, prope-se a (re)construogenealgica do modelo para, em momento posterior, caracteriz-lo emsua principiologia, pois na Inquisio est o modelo ideal da implanta-o de regimes totalitrios, dos seus mtodos de tortura, de como sotratados dissidentes polticos e sociais, de como isolar milhares de pes-soas proibidas de conhecer suas origens culturais, da misria dos conde-nados ao silncio e incomunicabilidade, do racismo mascarado emnovas ideologias e da apropriao de bens como fiana desses crimes.12

    O medievo representa, pois, segundo Umberto Eco, a infncia dacivilizao, qual necessrio sempre retornar para fazer anamnese.13Dito de outro modo, a Idade Mdia representa o crisol da Europa e dacivilizao moderna. A Idade Mdia inventa todas as coisas com asquais ainda estamos ajustando as contas.14

    Se a afirmao verdica, ou seja, de que o olhar sobre o medievopossibilita aos europeus diagnstico de problemas atuais em decorrn-cia das constantes tendncias de retorno infncia civilizatria pelaretomada de prticas brbaras, na realidade perifrico-marginal latino-americana tal anlise, mais que diagnstico de possibilidades de retor-no histrico, afirma e desnuda relaes vivas e pulsantes, caracteriza-doras de uma sociedade na qual coabitam prticas sociais e institucio-nais pr e ps modernas (trans-modernidade).

    1.2.2. Antecedentes histricos do modelo inquisitorial

    Julio Maier, ao avaliar o processo penal como fenmeno da cultu-ra, afirma que entre o sistema poltico imperante e o contedo do direi-to processual penal existe uma direta e imediata relao, de visibilida-de mais intensa, inclusive, que o nexo entre histria poltica e direito

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    10 Nesse sentido, conferir Coutinho, Jurisdio, Psicanlise e Mundo Neoliberal, p. 47.11 Boff, Inquisio: um esprito que continua a existir, p. 20.12 Novinsky, Inquisio: Rol dos Culpados, p. XI.13 Eco, Postile a Il nome della rosa, p. 537.14 Eco, Dez modos de sonhar a Idade Mdia, p. 78.

  • ordlias, praticadas nos baixos nveis sociais, eram presentes os due-los, procedimentos tpicos para resoluo dos conflitos com e contra anobreza. Todavia, como nota acuradamente Franco Cordero, o sculoXII um sculo burgus, aberto a desencantados interesses intelectuais,sendo intolerveis mquinas judicirias to rudimentares.23

    A modificao do ambiente do sculo XIII provoca uma profundaalterao na conscincia social e na estrutura organizacional: tudo erarelativamente fcil (aos que faziam parte da elite, claro); cada pessoaera um ser segundo sua classe e seu sobrenome, uma virtus medidapelas aes hericas; a economia monetria desorganizou os valoresintroduzindo uma varivel insensata; o ser constitua um dado estvel; ohaver flutua; agora, cada um aquilo que possui... Estamos em um scu-lo de alto nvel cultural: no mais o tempo do xtase fantstico; pesqui-sadores indagavam sobre os mecanismos causais; muito teis os conta-tos com o mundo rabe, evoludo em relao Europa feudal; da alqui-mia psicologia, florescem interesses experimentais; Aristteles oferecemapas enciclopdicos. Esse gosto sofisticado rejeita os processos-espe-tculo onde um nico e agonstico ato liquida todo o jogo: duelos, jura-mentos, ordlia, no dizem o que aconteceu; muito menos respondem aum conhecimento histrico adequado os vereditos emitidos pelo pettyjury, como vox patriae ou voix du pays. O saber tcnico imposto pelasfontes romanas exige novas mquinas instrutrias; se algum deve ouno ser punido assunto cientificamente regulvel; em primeiro lugar,devem ser reexaminados os fatos, com mtodos adequados culturadominante; depois conhecedores do Corpus Iuris ou dos cnones diroquanto vale in iure o acontecido. Os antigos rituais no distinguiam asduas questes, facti e iuris.24

    Durante o Conclio de Verona (1184), a Igreja conclui necessriasprovidncias contra qualquer manifestao cismtica, sendo gestado odiscurso de fundamentao dos futuros tribunais repressivos do clero(Tribunais do Santo Ofcio da Inquisio). Em Verona, o Papa Lcio III eo Imperador Frederico Barbaroxa, impressionados com os crimes dosctaros no sul da Frana (onde eram conhecidos como albigenses) e naItlia setentrional, decidiram ordenar aos bispos que visitassem uma ouduas vezes por ano as parquias de sua diocese, pessoalmente ou por

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    tendores a uma espcie de jogo, atravs do qual se manifestava a interferncia divina nasoluo do conflito (Gomes Filho, Direito Prova no Processo Penal, p. 20).

    23 Cordero, Guida alla Procedura Penale, p. 40.24 Cordero, ob. cit., pp. 43-44.

    der busca das provas (inquirio de testemunhas, exame de docu-mentos et coetera). O acusado, ou seu comesmis, podia fiscalizar osatos do acusador de modo que este no podia sequer pensar coisa algu-ma que ao outro no fsse conhecida.18 Logo, o processo acusatriocaracterizou-se, desde o princpio, como actus trium personarum,pblico, oral e contraditrio, no qual o juiz no tomava a iniciativa deapurar coisa alguma, e onde o ru aguardava, em regra, a sentena emliberdade. Importante lembrar que a ao popular (pblica) nasceuposteriormente, com a introduo dos delitos contra a coletividade.

    O processo inquisitrio foi subsidirio ao acusatrio, coexistindodurante muitos sculos com este e tomando gradualmente as feiesatualmente conhecidas. Ressalta Julio Maier que a mudana da estru-tura acusatria para a inquisitiva se oper gradualmente, penetrandosiempre al antiguo sistema a las instituciones posteriores y adquiriendoel nuevo sistema, al comienzo, carcter de excepcin frente al anterior,como intento natural de subsanar deficiencias de la antigua frmula enla prctica o segn las necesidades proprias de la nueva organizacinpoltica, que termina por imponerse y ordinarizarse.19

    Em sua instrumentalizao, a inquisitio se dividia em duas fases. Naprimeira, chamada de inquisitio generalis, o fato era pesquisado em suamaterialidade, sem atentar autoria. Apurada a existncia do fato, pas-sava-se investigao da culpa, perquirindo-se sobre o autor. Estesegundo momento era denominado de inquisitio specialis.20 Nasceuassim afirma Ferrajoli , com a cognitio extra ordinem, o processo inqui-sitrio, realizado e decidido ex officio, em segredo e com documentos escri-tos por magistrados estatais delegados pelos prncipes (os irenarchi, oscuriosi, os stationanii), baseado na deteno do acusado e na sua utiliza-o como fonte de prova, e acompanhada imediatamente pela tortura.21

    Durante a Alta Idade Mdia, o processo retomou sua caractersti-ca acusatria de natureza privada, sendo que o sistema inquisitivo rea-parece na Baixa Idade Mdia, mais precisamente no sculo XII.

    As prticas acusatrias medievais (iudicium Dei), fundamentadasem procedimentos ordlios como o iudicium ferri candentis, eram dire-cionadas contra a constncia dos procedimentos causais.22 Junto s

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    18 Tornaghi, ob. cit, pp. 470-471.19 Maier, ob. cit., p. 273.20 Tornaghi, ob. cit., pp. 474-475.21 Ferrajoli, Diritto e Ragione, p. 577.22 Leciona Magalhes Gomes Filho que os mecanismos de prova utilizados (duelos, jura-

    mentos, ordlias etc.), herdados dos costumes judicirios germnicos, submetiam os con-

  • fora no final do sculo XII e incio do XIII, fundamentalmente com a eclo-so dos movimentos dos ctaros e valdenses.30 Mas a partir de 1232que se inicia o processo formal de controle do pensamento hertico,sobretudo com a legitimao fornecida pelos consigli da Igreja Catlica.

    As verses otimizadas do modelo inquisitorial ocorreram princi-palmente na Pennsula Ibrica no final do sculo XV, quando da forma-o do Imprio de Espanha sob o reinado de Fernando de Arago eIsabel de Castela, sendo que as ltimas manifestaes de processosinquisitoriais puros, no sentido de sua relao primria com osanseios eclesisticos, ocorrero somente do sculo XIX Portugal(1821) e Espanha (1834).

    Na verso espanhola, destina-se aos procedimentos de limpieza,nome que utilizaram para justificar as perseguies contra mouros ejudeus.31 O Tribunal Inquisitorial de Castela e Arago, representadopelas figuras clssicas de Antnio de Torquemada e Bernardo Guido, foiinstrumentalizado pelo Directorium Inquisitorum (1376), redigido peloinquisidor-geral, o dominicano Nicolau Eymerich sua edio foi revisa-da e ampliada, em 1578, por Francisco de La Pea o qual, agregado aoMalleus Maleficarum (1489), representou uma verdadeira diretriz doutri-nria de aplicao do Corpus Iuris Canonici.32 A importncia destes doismanuais clericais imensurvel. O Directorium Inquisitorum foi, duran-

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    30 Como atacavam dogmas muito respeitados, a primeira resposta que lhes deram foi jog-los na fogueira... Os habitantes de Mrindol e Cabrires, at ento desconhecidos, eramculpados, certamente, por terem nascidos valdenses; era sua nica iniqidade(Voltaire,Tratado sobre a Tolerncia, pp. 20- 21).

    31 Blaya Prez, O Castigo do Crime versus o Crime do Castigo, p. 53.32 Leciona Nilo Batista que, at a reforma gregoriana, a estrutura descentralizada da Igreja

    produzia um direito eclesistico inorgnico, pois as compilaes de leis eclesisticas doperodo consistem em justaposies de materiais normativos. O Corpus Iuris Canonicicomea a ser composto no sculo XII, em Bologna. A aluso obra de Justiniano umadas simbolizaes do processo histrico de recepo do direito romano, dada a (re)des-coberta dos livros do Imperador. O Corpus Iuris Canonici , pois, integrado pelas seguin-tes colees: (1) Decretum Gratiani (1140); (2) Decretais de Gergrio IX ou Liber Extra(1234); (3) Liber Sextus (1298); (4) Constitutiones Clementinae (1317); (5) Extravagantesde Joo XXII (1325); (6) Extravagantes Comuns (1484). Lembra Nilo Batista que as pri-meiras edies privadas do Corpus Iuris Canonici so do incio do sculo XIV, porm averso impressa oficial data de 1582, vigorando at o sculo XX, com sua substituio,por Pio X, em 1917, pelo Codex Iuris Canonici (Batista, Matrizes Ibricas do Sistema Penalbrasileiro, pp. 189-193. Michel Foucault demonstra que a reativao do Direito Romanono sculo XII foi o grande fenmeno em torno e a partir do qual reconstruiu-se o edifciojurdico desagregado aps a queda do Imprio. A ressurreio do Direito Romano forne-ceu um dos instrumentos tcnicos e constitutivos do poder monrquico autoritrio, admi-nistrativo e, finalmente, absolutista (Foucault, Soberania e Disciplina, pp. 179-191).

    intermdio de legados, e investigassem quando houvesse suspeitas demalefcios ou conspiraes e punissem os culpados.25

    A Bula Vergentis in senium (1199), de Inocncio III, propicia o in-cio das modificaes processuais. Seu papado (1198-1216) marcadopelo militarismo e dedicao s Cruzadas, sendo durante seu mandatoque a represso cannica prepara a equiparao das heresias aos crimesde lesa majestade,26 visto o fracasso das medidas repressivas contra osalbigenses.

    No ano de 1215, as deliberaes do Conclio de Verona so reafirma-das pelo Conclio de Latro, o qual estabelece a obrigatoriedade da con-fisso privada, o carter suprfluo da acusao formal e a supervaloriza-o das suspeitas e dos indcios. Em 1231, o Imperador Frederico II pro-mulga editos de perseguio aos ctaros, receando divises no reinado.Em resposta ao do Imperador, o Papa Gregrio IX nomeia inquisido-res e reivindica a tarefa repressiva. Neste ano institudo, sob o cuidadoda recm-criada ordem dos Dominicanos, o Tribunal da Inquisio,exsurgindo como modelo refinado e severo de controle social. Aps, oTribunal obtm novos impulsos e legitimaes em diversos documentospontifcios, para ter sua consolidao na Bula Ad Extirpanda, deInocncio IV as estruturas emergem lentamente: no princpio so osdelegados do Papa que inquirem; depois entram em cena os dominicanos;primeira apario em Firenze, 20 de junho de 1227; quando Inocncio IVemite a bula Ad extirpanda, 25 de maio de 1252, o aparato assume figu-ras definitivas.27 Com a Bula de Inocncio IV institucionaliza-se a arte datortura como mecanismo de prova. Desta forma, adquirida ao arsenaljudicirio, a tortura a permanece durante cinco sculos.28

    Assim, a estrutura inquisitorial origina-se no seio da IgrejaCatlica, como uma resposta defensiva contra o desenvolvimento daqui-lo que se convencionou chamar de doutrinas herticas. Trata-se, semdvida do maior engenho jurdico que o mundo conheceu, e conhece.29

    1.2.3. A instrumentalizao dos Tribunais

    Mister lembrar que mesmo antes da edio das Bulas Papais exis-tiam esforos no incremento da represso s doutrinas que ganhavam

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    25 Tornaghi, ob. cit., p. 487.26 Coutinho, O Papel do Novo Juiz no Processo Penal, p. 37.27 Cordero, ob. cit., p. 46.28 Idem, p. 50.29 Coutinho, ob. cit., p. 36.

  • lo inquisitorial nas terras lusitanas culmina com a insurreio do Portode 1820 e o incio do processo codificador.

    Com o achamento37 e a colonizao, nota-se claramente a trans-posio desta mquina judiciria para o Brasil, a qual possibilitou noapenas a represso poltica dos hereges, mas o controle dos dissiden-tes polticos e das classes subalternas,38 inclusive com o genocdio dospovos nativos.39

    Se as Ordenaes Afonsinas (1446) e Manuelinas (1521) no tive-ram ampla aplicao na terra brasilis, as Ordenaes Filipinas (1603)representaram o complexo legislativo do modelo jurdico-penal daInquisio. No Livro V das Ordenaes Filipinas encontra-se a codifica-o penal e processual penal da Colnia, que refletia o esprito pr-secular de ausncia de distino entre direito, moral e religio.40 Apalavra pecado abunda nos tipos penais e os crimes contra a f catli-ca eram penalizados pelo Estado sem ter uma separao efetiva entre asatribuies de um ou de outro no que diz respeito ao ato de punir.41

    Mister notar a fora do estatuto repressivo inquisitorial que perdu-ra, mesmo aps a proclamao da Independncia (1822) e a outorga daConstituio de 1824, at o Cdigo Penal de 1830 e o Cdigo deProcesso Criminal de Primeira Instncia de 1832 em 1823 foi editadaLei que mantinha a vigncia das Ordenaes Filipinas. A ruptura como jusnaturalismo teolgico, que ocorreu em 1830 com a publicao doestatuto liberal, representa o amadurecimento do processo de reformapenal que o sculo XIX vai dinamizar no Ocidente.42-43

    Fundamental frisar que as fragmentaes histricas aqui realiza-das sobre a Inquisio, o inquisitorialismo e os Tribunais do SantoOfcio tm como nica funo a elaborao de um motivo histrico-con-

    Pena e Garantias

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    37 O termo utilizado por Bornheim, A Descoberta do Homem e do Mundo, p. 18.38 Nesse sentido, conferir Novinsky, Inquisio: rol dos culpados, pp. VII-XIX; e Novinsky &

    Carneiro (orgs.), Inquisio: Ensaios sobre Mentalidades, Heresias e Arte, pp. 03-10, 97-159, 337-439.

    39 Ver Silva Filho, Da Invaso da Amrica aos Sistemas Penais de Hoje, pp. 279-329.40 Toledo, Princpios Bsicos de Direito Penal, p. 56.41 Silva, Do imprio da Lei s Grades da Cidade, p. 82.42 Silva, ob. cit., p. 85.43 Sobre a evoluo histrica do direito penal e processual penal brasileiro, seu vnculo com

    a estrutura inquisitiva, bem como a influncia do pensamento liberal lusitano nas refor-mas, conferir Pierangelli, Processo Penal: evoluo histrica e fontes legislativas, pp. 21-212; Pierangelli, Cdigos Penais do Brasil: evoluo histrica, pp. 41-93; Thompson,Escoro histrico do Direito Criminal Luso-brasileiro, pp. 77-132; Batista, ob. cit., pp. 163-270; Neder, Iluminismo Jurdico-penal Luso-brasi