Pensar Agir-produção Cultural

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  • Pensar e agir com a cultura: desaos da gesto cultural / Jos Mrcio Barros e Jos Oliveira Jnior, organizadores. Belo Horizonte: Observatrio da Diversidade Cultural, 2011. 156p.

    ISBN 978-85-65353-00-7 1.

    Gesto cultural. 2. Poltica cultural. 3. Difuso cultural. 4. Gestores culturais. 5. Projetos culturais. I. Barros, Jos Mrcio. II. Oliveira Jnior, Jos.

    P418

    CDD: 301.2 CDU: 398

  • Belo Horizonte

    Observatrio da Diversidade Cultural

    2011

    Jos Mrcio Barros e Jos Oliveira Junior (Orgs.)

  • Expediente

    Organizadores: Jos Mrcio Barros e Jos Oliveira Junior

    Reviso: Tailze Melo

    Capa, ilustraes e projeto grco: Ronei Sampaio

    Impresso e Acabamento: Grca Formato

    Execuo Oramentria: Via Social

    Equipe ODC

    Jos Mrcio Barros: Coordenao Geral

    Jos Oliveira Junior: Projetos e Articulao

    Priscilla D`Agostini: Produo e Comunicao Institucional

    Giselle Lucena: Portal de Contedo e Rede Colaborativa

    Warley Bombi: Portal de Contedo

    Ana Clara Buratto: Assistente de projetos e pesquisa

    Alcione Lana: Secretaria e Arquivo

    Sheilla Pianc: Assessoria Jurdica

    Viabilizado com recursos pblicos oriundos da lei estadual

    de incentivo Cultura. Parte integrante da suplementao

    do projeto Pensar e Agir com a Cultura: Capacitao em de-

    senvolvimento artstico-cultural 2008, CA 1292/001/2007,

    Empreendedor Jos Oliveira Junior.

  • Sum

    rio

    Apresentao

    O mundo misturado:

    imbricaes entre cultura e gesto cultural | Tailze Melo p. 9

    PARTE I - Desafios

    Gesto da cultura e a cultura da gesto | Enrique Saravia p. 15

    Diversidade cultural e gesto: sua extenso e complexidade

    Jos Mrcio Barros p. 20

    Gesto cultural: formao, colaborao e desenvolvimento local

    Jos Mrcio Barros e Jos Oliveira Junior p. 28

    Desafios de uma poltica pblica para a formao de gestores culturais

    Maria Helena Cunha p. 35

    A mudana da cultura e a cultura da mudana: cultura, desenvolvimento e

    transversalidade nas polticas culturais | Jos Mrcio Barros p.48

    Uma rpida reflexo sobre o MinC entre 2003 e 2011 | Isaura Botelho p.69

  • PARTE II - Competncias

    Trabalho Colaborativo e em Rede com a Cultura

    Fayga Moreira, Gustavo Jardim e Paula Ziviani p. 81

    Conhecer e Agir no campo da Cultura: diagnstico, informaes e indicadores

    Jos Marcio Barros e Paula Ziviani p. 100

    Fomento e financiamento: compartilhar responsabilidades para cidades melhores

    Jos Oliveira Junior p. 116

    Projetos Culturais para a diversidade: pensar e planejar para agir com a Cultura

    Jos Oliveira Junior e Luciana Caminha p. 133

  • 9Pensar e Agir com

    a Cultura: desafios da gesto cultural

    O mundo misturado: imbricaes entre cultura e gesto cultural

    Tailze Melo1

    A gente s sabe bem aquilo que no entende2. O narrador mais

    famoso de Guimares Rosa, Riobaldo, em suas reexes de jaguno, j

    sabia que somente sob o signo da neblina que podemos apreender o

    outro: Diadorim minha neblina3. Neste mundo misturado, para ain-

    da usar uma expresso do serto de Rosa, a nossa questo maior deve

    ser sempre a alteridade: o outro que se mostra com suas singularidades

    especcas.

    O exerccio da diversidade cultural apresenta-se, pois, alinhavado

    na complexa tarefa de entender que as diferenas devem ser pensadas

    como condio de originalidade e pluralidade do homem, portanto, como

    um elogio condio humana. A experincia com a diversidade exige um

    olhar que capta o outro na sua opacidade, ou seja, que no tenta impor

    a ordem do conhecimento completo sobre o outro. preciso a neblina

    para que, respeitado os mistrios do diferente, a diversidade possa surgir

    em toda a sua potncia.

    Os dez artigos que compem este livro apresentam olhares di-

    versos sobre a questo da gesto cultural, entendida como atividade que

    deve sempre ser pensada dentro da perspectiva da proteo e promo-

    o da diversidade cultural. Nesse sentido, como ressalta Jos Mrcio

    Barros, em um dos textos deste livro: diversidade cultural e gesto so

    1. Mestre em Literaturas de Lngua Portuguesa pela PUC Minas. Doutoranda em Literatura Comparada pela UFMG. Coordenadora do curso de ps-graduao lato sensu Processos Criativos em Palavra e Imagem no Instituto de Educao Continuada da PUC Minas. Professora dos departamentos de Comunicao Social e Design de Moda da Faculdade Estcio de S de Belo Horizonte.2. ROSA. Grande serto: veredas. p.394. 3. ROSA. Grande serto: veredas. p.40.

  • 10Apresentao

    expresses que, longe de revelarem consenso e homogeneidade, nos re-

    metem ao campo das ambiguidades e contradies com que pensamos e

    nomeamos nossas diferenas e nossos modos de geri-las.

    Ou seja, ao pensar em gesto cultural, tambm estamos reetindo

    sobre o jogo da alteridade. Isso porque o exerccio de prticas culturais

    instigantes e, de fato, signicativas para os envolvidos nelas, requer muito

    alm de sensibilidade e boas intenes. Tenses polticas de variados mo-

    delos de ordenamento e gesto tornam a diversidade cultural a prpria

    possibilidade de lidar com a realidade multifacetada por excelncia.

    Prticas de gesto resultantes da capacitao adequada de gestores

    culturais, bem como uma postura comprometida por parte das institui-

    es pblicas e privadas, diretamente relacionadas ao exerccio da vida

    cultural, possibilitam que ideias criativas saiam do estgio de projeto e se

    tornem realidade concreta para as comunidades envolvidas.

    Nessa linha de raciocnio, o primeiro texto desta publicao, de

    autoria de Enrique Saravia, problematiza a qualidade da formao, sen-

    sibilizao e capacitao de administradores culturais. Essa formao

    de inquestionvel importncia, uma vez que a cultura, conforme salien-

    ta o autor, fator decisivo para o desenvolvimento social de qualquer

    sociedade.

    Em perspectiva complementar, Jos Mrcio Barros discute a ques-

    to da pluralizao dos modelos de gesto como modo de garantir um

    dilogo, de fato, estreito entre a diversidade cultural e a gesto cultural.

    Para isso, Barros no prope respostas limitadoras, mas, ao longo do texto,

    pondera os meandros do intrincado jogo de relaes que faz parte desse

    debate.

    Ainda no mesmo mbito, Jos Mrcio Barros e Jos Oliveira Ju-

    nior, a partir da experincia de ambos no programa Pensar e Agir com a

    Cultura, curso de desenvolvimento e gesto cultural, desenvolvido desde

    2003, apresentam algumas habilidades que devem ser contempladas por

    gestores no intuito de aperfeioar a atuao de tais prossionais no campo

  • 11Pensar e Agir com

    a Cultura: desafios da gesto culturalda cultura. A instncia da criatividade pontuada como essencial para

    dar mais coerncia e eccia ao trabalho do gestor cultural.

    No artigo de Maria Helena Cunha, a experincia formativa do M-

    xico, a partir do seu Programa de Capacitao Cultural, e uma anlise

    sobre os dados da pesquisa realizada pelo IBGE, tendo como foco os re-

    cursos humanos do setor pblico municipal no Brasil, so tomadas como

    recorte analtico para pensar uma poltica de prossionalizao para

    gestores culturais.

    Para trabalhar o binmio a mudana da cultura e a cultura da

    mudana, Jos Mrcio Barros utiliza a lgica da inverso como um modo

    de olhar e sentir a realidade. A partir da inverso e seus desdobramentos

    perceptivos, surgem, em seu artigo, reexes que transitam pelo reverso,

    em uma sria brincadeira, como se referiu o autor ao propsito de seu

    texto.

    A primeira parte do livro encerrada por Isaura Botelho que re-

    aliza em seu artigo uma competente anlise do MinC, entre 2003 e 2011.

    Inaugurando a segunda parte, o texto Trabalho colaborativo e em rede

    com a cultura, dos autores Fayga Moreira, Gustavo Jardim e Paula Ziviani,

    toma o conceito de rede e a ideia de processos colaborativos para inves-

    tigar o campo da cultura e as prticas prossionais que o alimentam. O

    cenrio contemporneo e suas idiossincrasias so considerados para as

    reexes propostas pelos autores.

    Discutir a importncia da elaborao de indicadores e do diagns-

    tico na rea da cultura a motivao investigativa de Jos Mrcio Barros

    e Paula Ziviani no artigo Conhecer e Agir no campo da Cultura: diagnstico,

    informaes e indicadores. Com esse objetivo, os autores apresentam mo-

    delos de diagnstico que so aplicveis ao campo da cultura.

    Jos Oliveira Junior, no texto Financiamento: compartilhar respon-

    sabilidades para cidades melhores, discute a viabilidade de aes culturais

    para alm do nanciamento pblico. Tal possibilidade no implica, no

    entanto, desprezar esse tipo de recurso, mas ampliar a discusso sobre

  • 12Apresentao

    possibilidades de nanciamento da cultura.

    Para encerrar o livro, Jos Oliveira Junior e Luciana Caminha com-

    partilham com o leitor dicas prticas e muito teis de como elaborar um

    bom projeto cultural.

    Assim, nos textos que integram esta publicao, encontramos uma

    variedade de abordagens tericas e metodolgicas, formando um painel

    rico de percepes, pois calcado justamente no diverso. Para fechar com

    Rosa, vale lembrar que nesse grande serto que o mundo a opinio das

    outras pessoas vai se escorrendo delas, sorrateira, e se mescla aos tantos,

    mesmo sem a gente saber, com a maneira da idia da gente!4

    Referncia:

    ROSA, Guimares. Grande serto: veredas. 19 ed. Rio de Janeiro: Nova

    Fronteira, 2001.

    4. ROSA. Grande serto: veredas. p.478.

  • Parte I

    Desafios

  • 15Pensar e Agir com

    a Cultura: desafios da gesto cultural

    Gesto da cultura e a cultura da gesto: a importncia da capacitao de administradores culturais

    Por Enrique Saravia

    Gesto Cultural uma administrao rigorosa a servio da utopia

    Jacques Rigaud

    Falar em gesto cultural signica referir-se a um conjunto de aes

    de uma organizao pblica ou privada destinado a atingir determi-

    nados objetivos que foram planejados e supe-se so desejados pela

    organizao. Implica implementar normas, planos e projetos, estabelecer

    estruturas, alocar recursos humanos, nanceiros, fsicos e tecnolgicos

    e, principalmente, empenhar criatividade e capacidade de inovao para

    atingir esses objetivos da melhor forma possvel. A especicidade cultural

    est dada pelo fato de se tratar da implementao de polticas culturais

    ou de lidar com instituies culturais. Em outras palavras, de estar tra-

    balhando com um intangvel como a cultura nas suas mais diversas

    manifestaes.

    Se nos referirmos atividade do Estado, estaremos atuando no m-

    bito da poltica cultural. Ela, como toda poltica pblica, est integrada no

    conjunto das polticas governamentais e se constitui numa contribuio

    setorial busca do bem-estar coletivo. Obedece, portanto, a prioridades

    que so mais rigorosas quando os recursos so escassos. H um sistema

    de urgncias e relevncias tanto entre reas de poltica (econmicas e so-

    ciais) como dentro de cada poltica especca.

    A poltica cultural abrange uma gama imensa de atividades que

    vo desde a preservao de monumentos histricos at o nanciamen-

    to do cinema, passando pelas diversas atividades possveis no campo

    das artes plsticas, do teatro, da msica, etc. As aes pblicas em cada

    um desses setores se sujeitaro a prioridades determinadas, pela sua vez,

  • 16Parte I: Desafios

    por linhas polticas e ideolgicas: a ampla discusso sobre cultura eru-

    dita, cultura popular e cultura de massas; a questo do nacional versus

    o cosmopolita e a ao das indstrias culturais integram o conjunto de

    problemas a partir de cujas respostas sero feitas a alocao de recursos

    e as inverses. Acrescente-se o fato de que todas essas atividades so

    perpassadas pela necessidade de preservar a diversidade cultural e de

    assegurar, em primeiro lugar, o reconhecimento, respeito e garantia dos

    direitos culturais, isto , o direito prpria cultura, o direito produo

    cultural e o direito ao acesso cultura.

    A alocao de recursos e investimentos ser o resultado de coni-

    tos e lutas diversas. Nada melhor do que o conceito de campo, formulado

    por Bourdieu, e aplic-lo rea da gesto cultural. Nesse sentido, Jos

    Mrcio Barros (2007, p. 62) cita a reexo de Inesita Araujo acerca do con-

    ceito de campo:

    Campo diz Inesita Arajo um conceito que permite lidar ao mesmo tempo com estruturas materiais da sociedade as organizaes e com o conjunto de valores e regras que as sustentam as instituies. Permite perceber o modo como funcionam as homologias de posies (essenciais como fatores de mediao), as intersees e os antagonismos entre os vrios domnios. Permite, sobretudo, identicar novos campos transversais, processo que adquire cada vez mais relevncia nos estudos da sociedade. Favorece, ainda, uma construo terica e metodolgica transdisciplinar. um conceito operativo no mbito macro da metodologia. Lembro que campo em Bourdieu, uma noo que no descarta, nem oculta o conito; pelo contrrio, um campo denido por uma hegemonia, mas que se instala por uma luta de poder. A aparente homogeneidade de certos campos pode vir da doxa, senso comum compartilhado, mas que foi estabelecida a partir de disputas. Ou seja, uma hegemonia.

    Apliquemos, ento, esse conceito reexo sobre a formao de

    administradores culturais. Tudo parte da percepo nas ltimas dcadas

    das decincias dos modelos de desenvolvimento baseados em preo-

    cupaes e critrios puramente econmicos, o que levou revalorizao

    de outros aspectos da vida social e concluso de que era necessrio um

    desenvolvimento integral e harmnico de todos eles.

  • 17Pensar e Agir com

    a Cultura: desafios da gesto culturalRessurge assim a preocupao com a cultura considerada um m

    em si e no apenas um elemento acelerador ou, muitas vezes, retardador

    do desenvolvimento econmico. Se cultura um sistema de pensamen-

    to, valores, hbitos e crenas prprios de um grupo humano, seu modo

    de conceber a vida e o mundo, os meios de expresso desse sistema e os

    produtos que dele decorrem, ela a base essencial para a aplicao de

    qualquer critrio de governana e governabilidade.

    Vista assim, a cultura passa a ser um elemento fundamental da ati-

    vidade governamental e um fator decisivo de progresso social. Acentua-se

    destarte a necessidade de melhorar o desempenho das instituies pbli-

    cas e privadas diretamente relacionadas com a vida cultural. Verica-se,

    consequentemente, a necessidade de contar com administradores cultu-

    rais devidamente qualicados.

    Todas essas consideraes deveriam estar presentes na pro-

    gramao de atividades de formao, sensibilizao e capacitao de

    administradores culturais.

    Vrios dilemas devem ser resolvidos na etapa de programao. O

    primeiro sugerido pelas particularidades das pessoas que, na prtica,

    atuam como gestores culturais em rgos tais como arquivos, bibliotecas,

    museus, teatros, rdios e canais de TV, fundaes culturais, galerias de

    arte, instituies de preservao do patrimnio histrico, reas de difuso

    cultural das universidades, etc. Em geral, os que neles ocupam cargos so

    ou administradores tradicionais pouco sensveis s manifestaes cultu-

    rais que esto administrando, embora bons conhecedores dos labirintos

    da mquina governamental, ou, no outro extremo, pessoas sensveis ao

    fenmeno cultural, mas que no conhecem adequadamente os mtodos

    e tcnicas administrativas que lhes permitiriam um melhor desempe-

    nho. A melhor opo talvez seja orientar a programao para aqueles

    j sensibilizados pelo fator cultural, a m de dot-los do instrumental

    administrativo que facilitaria a realizao mais ecaz dos seus planos e

    programas. Sem prejuzo, claro, de tentar sensibilizar os administradores

  • 18Parte I: Desafios

    burocrticos sobre a importncia do fenmeno cultural e a necessidade de

    respeitar a criao, a diversidade e os direitos culturais.

    O segundo dilema estaria em saber se as atividades de formao

    e capacitao devem se orientar para a elaborao de polticas culturais

    ou se teriam por objeto a administrao cultural. Seria aconselhvel es-

    colher a segunda alternativa. Talvez seja mais conveniente capacitar o

    pessoal que tem a seu cargo a viabilizao das polticas adotadas pelo

    governo ou pela instituio cultural. Da a nfase em tcnicas de gesto,

    principalmente, aquelas que visam formas no tradicionais de nancia-

    mento destinadas a angariar os recursos indispensveis para manter as

    instituies culturais e desenvolver a sua programao. Uma boa base em

    matria de poltica pblica e, mais especicamente, de poltica cultural,

    seria indispensvel.

    Um terceiro dilema est referido a se a programao deve estudar

    e discutir o fenmeno cultural ou se deve se dedicar a analisar os fen-

    menos organizacionais. Coloca-se o problema de que se, por um lado,

    necessrio fornecer mtodos e tcnicas de gesto, por outro lado, tais

    conhecimentos de gesto sero aplicados a um determinado contexto

    cultural e que, portanto, os administradores devem ter conscincia da

    realidade sobre a qual atuam. Deve se levar em considerao que os ins-

    trumentos administrativos so, em todos os casos, oriundos de alguma

    cultura determinada e necessariamente inuem na realidade cultural

    qual se aplicam. mister, ento, que os administradores tenham a noo

    clara de que por meio desses instrumentos administrativos eles poderiam

    estar contrabandeando valores de outras culturas.

    A soluo talvez seja analisar paralelamente o fenmeno cultural

    e o fenmeno organizacional e procurar detectar as diversas formas de

    interao entre eles. Isso permitiria, ainda, determinar o substrato cultural

    de mtodos e tcnicas aparentemente neutras. No existe uma adminis-

    trao cultural unvoca. As instituies culturais adotam as formas mais

    variadas e se dedicam a objetivos mltiplos. Preservao e restaurao de

  • 19Pensar e Agir com

    a Cultura: desafios da gesto culturalprdios, monumentos e documentos histricos; levantamento, anlise e

    promoo de manifestaes populares dos mais diversos tipos; indstrias

    culturais tais como o cinema, a rdio, a televiso e a edio de livros;

    museus e colees, teatros, msica, artesanato, artes plsticas podem ser,

    permanentemente ou num momento determinado, objetivos da adminis-

    trao cultural. Supe-se que um administrador cultural passa, ao longo

    da sua carreira, por atividades ou projetos muito diversos. Seria, pois,

    mais conveniente proporcionar-lhe instrumentos que fossem aplicveis

    a toda essa enorme gama de possibilidades. Da a importncia de estudar

    os mtodos e tcnicas da administrao de projetos, que permitem ao ad-

    ministrador uma atuao polivalente, muito mais adequada s exigncias

    normais da sua funo.

    O importante tornar mais efetiva a atuao dos gestores culturais

    permitindo-lhes uma organizao mental que lhes permita enfrentar os

    desaos cotidianos que sua atividade lhes apresenta, com a possibilidade

    de conhecer e poder usar a linguagem explcita e tcita da burocracia

    e, sobretudo, com a vantagem de terem aprendido a operacionalizar as

    prprias ideias.

    Referncias

    BARROS, Jos Mrcio Barros. Observatrio da Cultura: Entre o bvio e o

    urgente. Revista Observatrio Ita Cultural n. 2, 2007, p.62.

    BORDIEU, P. O poder simblico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

  • 20Parte I: Desafios

    Diversidade cultural e gesto: sua extenso e complexidade

    Jos Mrcio Barros

    O que o debate sobre a proteo e promoo da diversidade cultu-

    ral tem a ver com a questo da gesto cultural? Se se dene o pluralismo

    cultural como a resposta poltica realidade da diversidade cultural,

    como pensar a gesto cultural no singular? Inseparvel de um contexto

    democrtico, o pluralismo cultural propcio aos intercmbios culturais e

    ao desenvolvimento das capacidades criadoras que alimentam a vida p-

    blica. Em que medida, pode-se falar de um pluralismo gerencial? Deve-se

    buscar uma gesto da diversidade cultural ou a pluralizao dos modelos

    de gesto?

    IDiversidade cultural e gesto so expresses que, longe de revela-

    rem consenso e homogeneidade, nos remetem ao campo das ambiguidades

    e contradies com que pensamos e nomeamos nossas diferenas e nossos

    modos de geri-las. H, portanto, a necessidade de, ao relacionar os dois

    termos, submet-los a uma espcie de ltro do pensamento complexo

    inaugurando a possibilidade efetiva de superao de abordagens norma-

    tivas e disciplinares. A articulao aqui proposta, mais que nos convocar

    a uma perspectiva interdisciplinar que festeja a possibilidade de comuni-

    cao e consenso entre aquilo que restava compartimentalizado, sugere

    um passo frente no sentido de se produzir uma tenso crtica entre

    modelos culturais e gerenciais. No se trata de pensar apenas o que a

    cultura, em suas mltiplas formas de expresso, tem a contribuir com os

    modelos normativos de gesto e nem to pouco, como tais modelos po-

    dem nos ajudar a compreender e domesticar a cultura.1 Trata-se de pensar

    1. A questo ainda ser discutida com mais detalhamento no texto.

  • 21Pensar e Agir com

    a Cultura: desafios da gesto culturalna imbricao entre os termos, ou seja, ao se falar de diversidade cultural

    nos referimos a modelos normativos diversos que ordenam no apenas a

    produo e as trocas simblicas no campo esttico, religioso e ldico, mas

    que se referem tambm s maneiras como se denem as formas de apren-

    dizagem, circulao, apropriao, distribuio, mercantilizao de bens e

    processos culturais. A diversidade cultural , forosamente, mais que um

    conjunto de diferenas de expresso, um campo de diferentes e, por vezes,

    divergentes modos de instituio. Chamo a isso, modos de instituir, de

    modelos de gesto. Para alm de reconhecer a necessidade de se construir

    competncias gerenciais nos diferentes campos culturais, o desao parece

    ser o de estar atento para os modos de gesto que se fazem presentes nos

    diferentes padres culturais. Reconhecer na diversidade cultural apenas a

    presena de diferenas estticas simplicar a questo. H sempre, e isso

    que torna a questo complexa, a tenso poltica e cognitiva de diferentes

    modelos de ordenamento e gesto. Diversidade cultural a diversidade de

    modos de se instituir e gerir a relao com a realidade.

    IIPassamos a uma segunda questo. Segundo Mattelart, o apelo

    diversidade cultural uma interpelao genrica, uma armadilha que

    abarca realidades e posies contraditrias, suscetvel a todos os com-

    prometimentos contextuais (MATTELART, 2005, p.13). Os deslocamentos

    conjunturais e contextuais dos sentidos a que a expresso se refere, as

    contradies no interior e entre as prticas abrigadas sob essa expres-

    so, mais que visveis, so constitutivas de sua realidade e, portanto, no

    podem ser desconsideradas. Como arma Franois de Bernard (2007), a

    diversidade cultural diversa, dinmica e no em nada natural. Nova-

    mente com Mattelart, isso nos remete necessidade de sempre escavar

    o subsolo das palavras instveis que compem o campo polissmico

    da diversidade cultural, e procurar compreender, nas prticas assimtri-

    cas que inauguram, os enfrentamentos e as lutas pela hegemonia. Desta

  • 22Parte I: Desafios

    forma, poder-se-ia desvelar como e em que medida ao se falar da gesto

    da diversidade cultural, estaramos nos referindo constituio de uma

    possvel rede solidria de articulao de diferentes modelos culturais, ou

    se estaramos, mesmo que armando o contrrio, recolonizando nossos

    bons selvagens. Identicar o campo da cultura popular e as prticas

    culturais perifricas como portadoras de uma incapacidade gerencial,

    normalmente traduzida como incompetncia em transformar contin-

    gncias em oportunidades, parece ser o bordo que alimenta a cadeia

    produtiva das consultorias culturais hoje no Brasil. A reduo de com-

    petncias gerenciais adoo de princpios do planejamento estratgico,

    bem como a denio da prtica do empreendedorismo restrita aos edi-

    tais de nanciamento pblico e privado so a face mais visvel dos novos

    colonizadores da gesto cultural. Tal e qual o campo das polticas sociais

    e das prticas assistencialistas, a cultura traduzida em oportunidade pa-

    rece movimentar um signicativo nicho de mercado. O trabalho com a

    pobreza, seja ela denida como material ou simblica, movimenta um

    signicativo mercado de trabalho, na maioria das vezes, para segmentos

    de classe mdia escolarizada e lideranas populares que assumem pros-

    sionalmente a funo de mediadores de inovaes. A despeito das crticas

    s metodologias de extensionismo e desenvolvimentismo, tpicas dos anos

    60 e 70, assiste-se hoje a um processo de reiterao do provisrio como

    modelo de permanncia, ou seja, uma complexa rede de projetos, editais

    e organizaes que alimentam a provisoriedade. Sob a batuta discursiva

    da participao democrtica, consolida-se a ideia e a prtica de que mais

    vale multiplicar os modelos provisrios de ateno diversidade cultural,

    atravs de projetos, ocinas, concursos e prmios, do que pluralizar, am-

    pliar e multiplicar as instituies permanentes de trabalho com a cultura.

    IIIUma terceira ordem de questes refere-se contraditria manei-

    ra como a articulao entre diversidade cultural e gesto pensada e

  • 23Pensar e Agir com

    a Cultura: desafios da gesto culturalpraticada no campo organizacional e no campo cultural. No ambiente

    organizacional e, por consequncia, no campo das cincias gerenciais, a

    preocupao com a articulao entre diversidade cultural e gesto est

    relacionada com a mudana no perl da fora de trabalho, especialmente

    no contexto norte-americano e europeu. Em decorrncia dos novos uxos

    migratrios que o processo de globalizao desencadeia, tais mudanas

    geram um singular paradoxo que ocupa especialistas e preocupa pol-

    ticos: o diferente, as minorias tnicas, o estrangeiro e seus descendentes

    passam a ocupar, cada vez mais, um lugar estratgico no mercado de tra-

    balho dos Estados Unidos e dos pases integrantes da Unio Europia. Para

    alm da extenso dos direitos civis aos imigrantes, a presena estrangeira

    nas sociedades de economia globalizada coloca em questo os direitos

    culturais, especialmente em sua perspectiva da multiculturalidade. Ser

    igual nos direitos e diferente na experincia cultural parece ser o centro

    desta perspectiva. Em pases como o Brasil, entretanto, apesar da presena

    crescente de trabalhadores estrangeiros, o conito e os enfrentamentos

    so menos com os nossos outros distantes e mais com aqueles que es-

    to do outro lado da sua casa. Mario Aquino Alves e Luis Guilherme

    Galeo-Silva (2004, p.21) armam que

    Em geral, a gesto da diversidade tem sido defendida com base em dois pontos. Primeiro, programas internos de empresas voltados diversidade seriam socialmente mais justos do que polticas de ao armativa impostas por uma legislao que remonta s lutas por direitos civis nos Estados Unidos durante as dcadas de 1960 e 1970 , uma vez que se baseiam na meritocracia e no no favorecimento. Segundo, um bom gerenciamento da diversidade de pessoas nas organizaes conduziria criao de vantagem competitiva, o que, em tese, elevaria o desempenho da organizao no mercado, tendo em vista a inuncia positiva de um ambiente interno multicultural, com membros de distintas experincias e habilidades.

    Aqui encontramos o centro da contradio e da complexidade da

    articulao proposta entre diversidade cultural e gesto. A perspectiva

    cultural da diversidade busca a realizao de um conjunto de posturas

    e aes marcadas pelo objetivo de promover a incluso pela superao

  • 24Parte I: Desafios

    da meritocracia, considerada historicamente provedora da discriminao.

    J para a rea gerencial, e utilizando-se R. Roosevelt Thomas (1990), que

    em artigo publicado na Harvard Business Review, defendeu pela primeira

    vez, no contexto dos Estados Unidos, a substituio das polticas compen-

    satrias por uma gesto da diversidade. Para ele

    [...] seria necessrio mudar a perspectiva da incluso de minorias, negros e mulheres nas empresas norte-americanas, uma vez que a ao armativa estaria contrariando o princpio da meritocracia e, dessa forma, no geraria exemplos para os jovens dos grupos discriminados se espelharem em sua carreira prossional as admisses ou promoes de membros desses grupos seriam percebidas como no merecidas por outros funcionrios e tambm por jovens desses grupos (THOMAS, 1990, p.23).

    Como se pode perceber, a crescente preocupao com a gesto da

    diversidade cultural no ambiente organizacional est relacionada com a

    crtica ao que institui e d sentido s polticas pblicas de promoo e

    proteo da diversidade: a discriminao positiva, para se utilizar uma

    designao prpria da sociedade francesa. No campo organizacional, uma

    poltica de gesto da diversidade cultural justamente a superao das

    polticas de ao armativa e incluso, substitudas por uma lgica da

    meritocracia e das vantagens competitivas. A gesto da diversidade cul-

    tural assim pensada como estratgia de negcios que transforma um

    problema, a presena dos diferentes desiguais, em oportunidades:

    A diversidade a palavra de ordem nos vrios fruns empresariais, polticos ou sociais realizados pelo pas. O momento vivido pela sociedade, em todo o mundo e no Brasil, coloca esse tema na agenda, seja por convico ou por convenincia. Sob a gide de oportunidades iguais, muitas vezes reforamos a diferena e tratamos o diferente de forma igual, o que to injusto quanto tratar o igual de forma diferente. O mais contemporneo paradigma nesse campo, surgido em meados da dcada de 90, integra a diversidade gesto. O foco principal incorporar no modelo de gesto a perspectiva dos diversos colaboradores contratados com a premissa da pluralidade, buscando assim melhorar o desempenho empresarial (BARROS,2003,p.40).

    Aqui, a diversidade tratada como uma situao onde os ato-

    res de interesse no so semelhantes em relao a algum atributo e tais

  • 25Pensar e Agir com

    a Cultura: desafios da gesto culturaldiferenas precisam ser transformadas de potenciais conitos em oportu-

    nidades produtivas (SCHMIDT,s.d). Se compararmos com as perspectivas

    com as quais a questo se apresenta nos fruns culturais, teremos uma

    viso da extenso do problema a que a relao proposta nos remete.

    Em 2007, na cerimnia de abertura do Seminrio Internacional so-

    bre a Diversidade Cultural, o ministro da cultura, Gilberto Gil, elencou dez

    prioridades para as polticas pblicas de cultura. Dentre elas uma incide

    diretamente contra essa perspectiva gerencial:

    [...] estabelecer polticas culturais armativas, para reverter as marcas e resduos sociais da escravido; relativizar a unilateralidade dos sistemas meritocrticos, que so feitos abstratamente, sem a devida considerao histrica, evitando mecanismos ps-coloniais de repor velhas excluses. Incorporar as milhes de pessoas aos programas de formao, aquisio cultural e educao de qualidade e de capacitao. Republicanizar o mrito, valorizando as vocaes e talentos, e democratizando os acmulos pelos pequenos e grandes acessos, dando garantias sociais ao patrimnio das famlias e das instituies. Promover a integridade e a transmisso do patrimnio acumulado de gerao a gerao, de pai para lho.2

    H, portanto, um outro enfrentamento, uma outra rea de ten-

    sionamento que complexica a relao aqui proposta. De um lado uma

    ideologia tecnocrtica e liberal que reconhece possibilidades mercadol-

    gicas atravs do disciplinamento da relao com as diferenas, de outro,

    uma ideologia se no assistencialista, no mnimo, protecionista, que reco-

    nhece que na luta pela igualdade no se pode ignorar as diferenas e as

    desiguais oportunidades de ser igual.

    IVPor m, a articulao entre diversidade cultural e gesto parece

    partir de um pressuposto muito em voga que articula a cultura com o

    desenvolvimento. Entretanto, alguns cuidados devem ser aqui tambm

    tomados, para que no se perca de vista o carter histrico da proposta e

    2. Disponvel em

  • 26Parte I: Desafios

    a falta de consenso sobre a que realidade o termo desenvolvimento deve

    nos remeter.

    Nesse sentido, Renato Ortiz nos lembra que

    A noo de desenvolvimento pertence ao domnio da racionalidade, ela implica uma dimenso da sociedade na qual possvel atuar, desta ou daquela maneira. Neste sentido, ela no constitutiva da sociedade. Trata-se de uma concepo datada historicamente. Nas sociedades passadas, tribais, cidade-Estado, imprios, ela no existia na forma como a conhecemos hoje. At mesmo nas sociedades europias do Antigo Regime, o ideal de belo nada tinha de progressivo, ele identicava-se a um modelo determinado na Antiguidade, e devia ser copiado para perpetuar-se. A mudana era muitas vezes vista com suspeio, pois valorizava-se a tradio e a memria coletiva em detrimento das transformaes. (ORTIZ, 2007, p.3)

    Desvelar os sentidos que atribumos perspectiva de desenvol-

    vimento na e atravs da cultura tarefa sempre necessria e oportuna

    para se compreender a questo da gesto. Traduzido como progresso e

    reduzido ao campo econmico, o termo desenvolvimento nos remeteria

    uma articulao de natureza ecientista e tecnocrtica da gesto. Por

    outro lado, se pensado criticamente e retraduzido como desenvolvimento

    humano, a relao aqui proposta deveria partir da negao do mito da

    linearidade crescente, e assumir de forma circular e dinmica a ideia da

    multilinearidade dos caminhos. Aqui, a gesto da diversidade consti-

    tuir-se-ia para alm da catalogao de curiosos modelos normativos, no

    difcil exerccio de troca e hibridizao dos mesmos. O reconhecimento da

    diversidade cultural poderia se transformar em experincia com as mes-

    mas, tanto no campo subjetivo esttico, quanto na dimenso normativa

    e racional. Em ambas, estaramos explorando a dimenso simblica da

    diversidade cultural, traduzindo-a como experincia de diversas ordens.

  • 27Pensar e Agir com

    a Cultura: desafios da gesto cultural

    Referncias:

    ALVES, Mario de Aquino, GALEO-SILVA, Luis Guilherme. A crtica da

    gesto da diversidade nas organizaes. ERA, vol.44, N.3, jul-set, 2004, p.20-29.

    BARROS, Betnia Tanire. O desao da gesto da diversidade. Revista Melhor

    gesto de pessoasn195novembro/2003.

    BERNARD, Franois de. A Conveno sobre a diversidade cultural espera para ser

    colocada em prtica! 4 tarefas prioritrias para a sociedade civil. Disponvel

    em:

    MATTELART, Armand. Diversidade Cultural e mundializao. So Paulo:

    Parbola, 2005.

    ORTIZ, Renato. Cultura e Desenvolvimento. v Campus Euro-americano de

    cooperao cultural, Almada, 2007.

    SCHMIDT, Flvia. A Diversidade nas Organizaes Contemporneas. Disponvel

    em:

  • 28Parte I: Desafios

    Gesto cultural: formao, colaborao e desenvolvimento local

    Jos Mrcio Barros e Jos Oliveira Junior

    A atualidade tem reservado especial ateno s discusses sobre

    gesto cultural e por consequncia aos desaos de se pensar a formao

    de gestores culturais a partir de necessidades conceituais e prticas. O que

    temos diante de ns parece ser a seguinte questo: quais capacidades es-

    peccas precisam ser desenvolvidas e aperfeioadas para que gestores da

    cultura consigam criativamente dar clareza, coerncia e eccia ao seu

    trabalho, mesmo quando imersos em contextos de escassez de recursos e

    insumos? Neste texto tentamos deixar claro quais so os aspectos que nos

    motivam a trabalhar com formao e qualicao de pessoal para a rea

    de cultura e quais as principais referncias que nos orientam.

    Uma breve introduo sobre o programa Pensar e Agir com a Cultura

    O curso Desenvolvimento e Gesto cultural teve incio a partir da cria-

    o do programa Pensar e agir com a cultura, em 2003. Desde sua criao, foi

    pensado como um programa de trabalho realizado por uma rede cola-

    borativa de professores, pesquisadores, gestores e consultores. Por meio

    de parcerias institucionais, organiza ocinas, cursos, seminrios e publi-

    caes, voltados para os diferentes segmentos sociais envolvidos com a

    gesto da cultura. Os objetivos principais do programa so ligados capa-

    citao para o trabalho efetivo, criativo e transformador com a cultura em

    sua diversidade e ao fomento s aes coletivas e de envolvimento com as

    realidades locais. Em sntese, podemos denir o programa Pensar e Agir

    com a Cultura como um conjunto de aes destinadas a formar gestores

    para a rea da cultura e suas interfaces, com especial nfase no trabalho

    colaborativo e em rede, no planejamento em mdio e longo prazo e na valo-

    rizao da diversidade e da sustentabilidade das aes no campo da cultura.

  • 29Pensar e Agir com

    a Cultura: desafios da gesto culturalNestes quase dez anos de atuao, mais de 2.300 pessoas de 233

    cidades foram beneciadas diretamente nas 53 turmas que o programa

    formou.

    Empoderamento, autonomia e desenvolvimento local

    Todos os processos sociais so determinados pelas percepes e representaes, bem como pelas atitudes e pelos sentimentos das comunidades. Assim, as transformaes sociais, a procura de uma sociedade sustentvel, dependem do empoderamento, ou seja, de mudanas cognitivas e volitivas operando junto ao acesso a recursos, oportunidades, capacidades e informao para que as pessoas possam tomar controle de suas prprias vidas, sejam cidados ativos, denir suas prprias agendas e inuir na tomada de decises. No estamos falando de poder como sujeio de outros... de poder para estabelecer e manter relacionamentos assimtricos, injustos e desiguais... Estamos falando de poder compartilhado (JARA, 1998, p.308-309).

    Duas questes foram centrais nesta trajetria: contribuir para

    prossionalizar a administrao da cultura e facilitar o processo de

    empoderamento de pessoas que atuam no campo cultural para desem-

    penharem sua gesto de forma fundamentada e criativa. Embasados em

    Cidades entre2003 e 2011

    Pensar e Agircom a

    Cultura VarginhaAlfenas BarbacenaCEMIG

    Juiz de Fora

    JooMonlevade

    Ipatinga

    GovernadorValadares

    Serro

    Diamantina

    Pirapora

    Montes Claros Araua

    Uberlndia

    Poos de Caldas

    So Joo Del ReiCEMIG

    ParacatuCEMIG

    Bom Despacho

    Divinpolis Ouro PretoCEMIG

    Sete Lagoas

    Matozinhos Lagoa Santa

    Vespasiano

    Sabar

    Belo Horizonte

    Contagem

    BrumadinhoItabiritoCEMIG

    reaCentral

    So Josdo Goiabal

    MinasGerais

    TefiloOtoni

    Itana

    Marliria

    Caratinga

    Dionsio S.P. Ferros

    MartinhoCampos

    Quartel GeralAbaet

    Doresdo Indai

  • 30Parte I: Desafios

    autores como Edgard Morin, Humberto Maturana, Paulo Freire e tantas

    outras referncias, buscamos fazer do pensar uma forma de agir e do agir

    uma possibilidade de ao transformadora. Pensar, antes de agir, preparar

    para ser e no apenas para intervir, baseados em trs aspectos: diver-

    sidade, criatividade e igualdade. Pensar para agir exige competncias

    que comportem a inveno e a experimentao. Acreditamos na formao

    para alm do treinamento de forma a mediar experincias que garantam

    percursos formativos coerentes com o novo lugar que a cultura ocupa na

    sociedade contempornea.

    Alm disso, tomamos o desao de pensar como em cada munic-

    pio, em cada territrio, as singularidades artsticas e culturais demandam

    do gestor ateno, capacidade de compreenso de seu contexto e aes

    efetivas, de modo a considerar os desaos de relacionar tradio e ino-

    vao, o local e o global, o especco e o transversal da cultura. Formar

    gestores vai alm do acesso a informaes, diz respeito produo de co-

    nhecimento e experincia e isso requer tempo de maturao de conceitos

    e inaugurao de novas prticas. O caminho escolhido sempre foi o mais

    demorado, mas acreditamos de resultados mais duradouros.

    Mas no bastam informao e conhecimento. preciso inaugurar

    novas atitudes. E isso requer novos sujeitos. No basta proclamar o cole-

    tivo e o colaborativo como modos de mudar o mundo. preciso formar

    sujeitos com convices e habilidades gregrias e solidrias. E isso signi-

    ca enfrentar a complexidade da diversidade cultural.

    Muitos especialistas consideram que vencer a desigualdade e a

    pobreza s ser possvel com cincia e tecnologia. Entretanto isso s se

    torna possvel se as pessoas engajadas neste esforo conhecerem de forma

    crtica sua prpria realidade. Levar os participantes a descobrir em si e na

    prpria comunidade solues ecientes e ecazes um dos desaos per-

    cebidos e assumidos ao longo dos anos. Como lidar criativamente com as

    decincias locais? Como conhecer aquela realidade povoada de gente

    real, em lugares reais? Como sair dos modelos ideais e abstratos e chegar

  • 31Pensar e Agir com

    a Cultura: desafios da gesto cultural capacidade de articular as informaes e, de modo singular, rearranjar a

    prpria realidade de forma que a convivncia e postura prossional pos-

    sam abrir espao para a realizao pessoal e comunitria?

    Mais que investir em aes pontuais, o programa Pensar e Agir com

    a Cultura vem investindo no surgimento de novas lideranas para o de-

    senvolvimento humano atravs da cultura. Isso signica capacitao e

    formao de lideranas que saibam envolver toda a comunidade na busca

    do desenvolvimento: fortalecer capacidades individuais voltadas para o

    coletivo. A qualicao de gestores culturais com um perl que vai alm

    das questes puramente gerenciais, mas sem deix-las de lado, algo que

    se faz urgente, se levarmos em conta o quanto as indstrias criativas po-

    dem representar para o crescimento sustentado e em longo prazo.

    No universo dinmico da cultura, Hannerz trata uma questo im-

    portante para pensarmos nas categorias de ao que so necessrias para

    a vitalidade da cultura:

    [...] apenas por estarem em constante movimento, sendo sempre recriados, que os signicados e as formas signicativas podiam tornar-se duradouros[...] para manter a cultura em movimento, as pessoas, enquanto atores e redes de atores, tm de inventar cultura, reetir sobre ela, fazer experincias com ela, record-la (ou armazen-la de alguma outra maneira), discuti-la e transmiti-la (HANNERZ, 1997, p.11-12).

    Tendo como referncia tais apontamentos, necessrio reetir

    sobre quais contedos tratar ou quais capacidades desenvolver em pro-

    cessos de formao de gestores culturais. Pela complexidade da rea e

    pelas particularidades acerca do objeto, preciso ampliar a percepo

    da questo puramente gerencial e abordar outros aspectos, como arma

    Durand:

    Seguramente muito mais fcil transmitir tcnicas de administrao a gestores culturais e ensin-los a formular, acompanhar e controlar a execuo de projetos do que conciliar os princpios que fundamentam uma poltica cultural: qualidade, diversidade, preservao de identidades e disseminao de valores positivos. Melhor dizendo, a questo-chave para a formao de agentes culturais capazes de denir e implantar diretrizes de poltica pblica est em sua

  • 32Parte I: Desafios

    formao terica. Cabe ento perguntar: de quais recursos tericos exatamente ele vai precisar para ter viso adequada desses princpios e, sobretudo, das condies para a converso desses princpios em programao? (DURAND, 1996, p. 9-11).

    Segundo o autor, so dois os eixos de formao do gestor cultu-

    ral, um de carter terico-conceitual e outro prtico e metodolgico. Tais

    eixos permitiriam a emergncia de capacidades que vo alm de habili-

    dades tcnicas e operacionais.

    Ao interferir em aspectos de difcil mensurao em curto prazo, o

    desao que assumimos contribuir para tornar palpvel para os alunos

    a necessidade concreta de mudar atitudes e repensar mtodos e modos

    de ser e fazer, atravs de um ambiente favorvel para a troca conceitual

    com os professores, o encontro entre as pessoas, tomando o aprendizado

    como processo.

    O desao o de estruturar e desenvolver processos formativos,

    simultaneamente consistentes, abertos, exveis e, principalmente, orien-

    tados para o fomento das capacidades locais e do trabalho coletivo e

    colaborativo.

    Atravs da troca com especialistas que atuam na rea da gesto

    cultural, o que se busca o desenvolvimento de uma perspectiva mais

    coletiva e solidria atravs de projetos que incidam sobre a realidade mu-

    nicipal e regional visando a consolidao da participao da cultura no

    desenvolvimento humano.

    Assim, mais que simplesmente ministrar cursos de gesto cultural,

    trata-se de se desenvolver um ambiente de fortalecimento de capacidades

    locais, capacitao para o trabalho em rede e para a interveno cultural

    microrregional. Garca, (citado por Atehorta 2001, p.62), menciona o po-

    der transformador que pode alcanar o gestor cultural e as implicaes

    positivas que isto pode ter para a comunidade como um todo:

    El gestor cultural es tal vez el mejor transformador con que pueda contar sociedad alguna. Alguien con capacidad de incidir en los rganos de toma de

  • 33Pensar e Agir com

    a Cultura: desafios da gesto culturaldecisiones, capaz de movilizar grandes grupos sociales y ser un agente para el desarrollo [...] es tambin un rearmador y codicador de la cotidianidad, que permite acciones y contribuye a los procesos de reconstruccin de la historia del entorno [...]. Es adems un transformador en tanto dinamiza, moviliza y agita la vida cotidiana, desarrollando en los grupos sociales sentido de pertenencia y protagonismo.

    Conciliando formao conceitual, preparao prtica para inter-

    veno e laboratrios de criatividade, o processo de formao marcado

    pela complexidade de referncias e por problematizar a questo da gesto

    da cultura, levando os participantes alm de modelos e formatos burocr-

    ticos, de quadros, editais e formulrios.

    Esta perspectiva se alinha a vrias das propostas consolidadas

    no documento Agenda 21 da Cultura, por descortinar a possibilidade de

    outro tipo de convivncia atravs de aes culturais sustentveis: o equi-

    lbrio entre interesse pblico e interesse privado na denio de polticas

    pblicas, a iniciativa autnoma individual e coletiva, o desenvolvimen-

    to de elementos conceituais e prticos destacando a cultura como fator

    de desenvolvimento local, de gerao de riquezas e justia social e, por

    ltimo, a criao e/ou fortalecimento de uma prtica de gesto cultural

    que tenha como centro motivador a qualidade de vida do ser humano e

    o seu efetivo engajamento na formulao, acompanhamento e avaliao

    das polticas pblicas.

    Ainda nesta leitura, o Estado tem vrios papis importantes e

    facilmente detectveis, mas o principal deles, para nossa anlise ligada

    cultura, o que diz respeito a criar oportunidades iguais para todos.

    Oportunidades iguais de acesso aos bens culturais diversicados e de

    acesso aos meios de produo destes bens culturais diversicados. A am-

    pliao das opes de escolha um dos resultados principais desta ao

    do Estado.

    O exerccio pleno das capacidades humanas constitui-se como um

    dos principais caminhos para a cidadania cultural. Este aspecto, como

    aponta Botelho (2001), fundamental como direcionamento das polticas

  • 34Parte I: Desafios

    pblicas, vinculando o aumento de opes de escolha como importan-

    te caminho para o desenvolvimento sustentado. Considerar os aspectos

    da sensibilidade, da criatividade e atividade cultural contnua um dos

    maiores motores para o empoderamento e promoo do direito cidada-

    nia aos mais pobres. Cidadania que deve ser plena, com opo de escolha,

    em todos os campos da vida: formao, aes culturais, trabalho digno e

    remunerao adequada, expresso de si mesmo, autoestima.

    Bibliografia

    ATEHORTA, Luis Alfredo Castro. El movimiento cultural del Municipio de

    Bello: una experiencia de ciudadana, 1989-1998. Dissertao (Mestrado

    em Cincia Poltica) - Instituto de Estudos Polticos, Universidade de

    Antioquia, Colombia, 2001.

    BARROS, Jos Mrcio. Diversidade cultural: sua extenso e complexidade.

    2008. Disponvel em .

    DURAND, Jos Carlos. Prossionalizar a administrao da Cultura.

    1996.Disponvel em

    JARA, Carlos Julio. A sustentabilidade do desenvolvimento local: Desaos de um

    processo em construo. Recife: Secretaria do Planejamento do Estado de

    Pernambuco-Seplan, 1998.

    Juan Jairo Garca G. Gestin Cultural, del concepto a lo urgente. Agenda

    Cultural, Medelln, U de A.N 43, Marzo, 1999, pp 4 5.

    LOPES, Carlos. Cooperao e desenvolvimento humano: a agenda emergente

    para o novo milnio. So Paulo: Editora UNESP, 2005.

  • 35Pensar e Agir com

    a Cultura: desafios da gesto cultural

    Desafios de uma poltica pblica para a formao de gestores culturais: experincias e pesquisas

    Maria Helena Cunha

    IntroduoFomos instigados a reetir sobre a seguinte questo: por que deve

    haver uma poltica de formao de gestores culturais? Em um primeiro momento,

    no considerei ser difcil respond-la por ser um tema que venho pes-

    quisando nos ltimos anos e, ao mesmo tempo, por ser o meu campo de

    atuao, o que me coloca diante de uma experincia cotidiana relacionada

    necessidade de prossionalizao do mercado de cultura.

    No entanto, quando aprofundamos no assunto - e no duvidamos

    mais da necessidade de formulao de uma poltica de formao para

    esses prossionais -, nos deparamos com o nosso maior desao: coloc-la

    em prtica, em mbito nacional, diante da grande extenso do territrio

    brasileiro e de sua diversidade cultural.

    Para tratar do tema que me foi proposto, trago a questo sob dois

    aspectos diferentes. Um deles sobre a experincia formativa do Mxico,

    a partir do seu Programa de Capacitao Cultural, e o outro uma anlise

    sobre os dados da pesquisa realizada pelo IBGE, tendo como recorte espe-

    cco os recursos humanos do setor pblico municipal no Brasil.

    Assim, gostaria de iniciar esta reexo considerando as condies

    que levaram necessidade de uma poltica de formao de gestores as-

    sociada diretamente ao processo de prossionalizao do setor cultural.

    Em primeiro lugar, temos que considerar o contexto sociocultural

    e econmico do qual estamos falando quando nos referimos prosso

    de gestores culturais. De forma mais geral, podemos identicar alguns

    fatores que contriburam para a necessidade de congurao ou reconhe-

    cimento da gesto cultural como um campo prossional de atuao.

  • 36Parte I: Desafios

    No caso especco brasileiro, as transformaes sociopolticas e

    histricas ocorridas, principalmente, a partir da dcada de 1980, quan-

    do a retomada da democracia poltica no Brasil (Diretas J) permitiu o

    redesenho da estrutura institucional pblica de cultura e foram criadas

    secretarias estaduais e municipais e o prprio Ministrio da Cultura, em

    1985. Isso signicou uma reordenao da lgica de funcionamento do

    setor, que iria inuenciar diretamente as atividades da classe artstica,

    da produo e, consequentemente, da prpria atuao do setor privado

    diante das iniciativas culturais.

    No se pode desconsiderar que as transformaes econmicas de

    mbito global e nacional contriburam para a intensicao dos inter-

    cmbios culturais mundiais, incentivando a ampliao do consumo e a

    circulao de bens e de produtos culturais. De certa forma, estrutura-se

    o mercado cultural que, cada vez mais, se torna mais complexo, forta-

    lecendo o campo cultural e provocando a expanso da capacidade de

    produo artstica. Todos esses elementos associados promovem a pros-

    sionalizao do setor e a qualicao da discusso sobre poltica pblica

    no pas, criando, assim, as condies para o surgimento de novos agentes

    que compem as categorias prossionais do campo da cultura e, neste

    caso, o do gestor cultural.

    Assim, podemos considerar que a gesto cultural uma prosso

    contempornea complexa que, alm de estabelecer um compromisso com

    a realidade de seu contexto sociocultural, poltico e econmico, tem ainda

    o desao de estruturar um processo formativo para esses prossionais,

    seja no ambiente no formal, seja na academia. A gesto cultural j

    reconhecida por seu papel na mediao entre as instncias polticas e a

    sociedade, tanto no meio empresarial quanto no meio artstico e no rela-

    cionamento com o pblico. E essas so aes cada vez mais especializadas.

    Nesse sentido, um dos pontos fundamentais na perspectiva de

    ampliar a discusso em torno da prossionalizao do gestor investir

    numa poltica de formao prossional do setor cultural que alcance o

  • 37Pensar e Agir com

    a Cultura: desafios da gesto culturalmaior nmero de pessoas. O nosso maior desao estarmos cientes de

    que ainda estamos lidando com uma prosso relativamente nova e com

    necessidades prementes de denio das suas competncias, dos seus sa-

    beres, das suas habilidades e do seu campo de atuao.

    Outro desao a prpria dimenso do territrio nacional, que

    exige uma poltica de investimento em formao que respeite as carac-

    tersticas locais, mas que tenha referenciais comuns e sucientemente

    coletivizados que possam construir uma base mais slida no que diz res-

    peito transmisso de conhecimentos especcos do campo da gesto

    cultural.

    Para trazer essa discusso mais terica para o campo da prtica,

    sero apresentadas duas anlises, embora no comparveis, mas que ilus-

    tram bem o questionamento inicial: por que deve haver uma poltica de formao

    de gestores culturais? Assim, abordaremos a experincia do Mxico que, des-

    de 2001, criou um Sistema Nacional de Capacitao e Prossionalizao

    de Promotores e Gestores Culturais. No caso brasileiro que ainda no

    possui uma poltica especca de formao para o setor , analisaremos

    uma pesquisa j realizada pelo IBGE, durante o ano de 2006, e publicada

    no Suplemento de Cultura da Pesquisa de Informaes Bsicas Municipais MUNIC,

    que nos permite identicar os recursos humanos disponveis na cultura,

    no mbito municipal, a partir dos seus resultados e que, em parte, nos

    ajuda a responder a nossa questo.

    Sistema Nacional de Capacitao do MxicoPara analisar o Sistema Nacional de Capacitao do Mxico (SNC),

    as fontes disponveis so o trabalho apresentado por Jos Antnio Mac

    Gregor, durante o 1 Seminrio Internacional de Gesto Cultural, realizado

    em 2008, em Belo Horizonte, pela DUO Informao e Cultura, e o relatrio

    de avaliao nal feito pelos coordenadores do programa mexicano1.

    1. Evaluacin Integral del Sistema Nacional de Capacitacin y Profesionalizacin de

  • 38Parte I: Desafios

    interessante que Mac Gregor tambm comece a sua abordagem

    pela questo que nos mobiliza neste momento Por que ns temos que

    prossionalizar os promotores culturais? E ele mesmo responde: Porque

    j no se pode fazer a gesto a partir do tradicional paternalismo autori-

    trio elitista. [...] Em muitos sentidos o processo de gesto cultural um

    processo educativo, um processo comunicativo. Continua: Porque h

    que se prossionalizar os gestores para criar vnculos, pontes e redes. O

    gestor um construtor de pontes com metodologia sustentada na prxis,

    prxis entendida na maneira freiriana como um processo de reexo e

    ao sobre o mundo para transform-lo, para reetir sobre o que ns

    vamos fazer e agir (ANAIS, p.91).

    Assim, ele arma que a gesto cultural capaz de construir uma

    comunidade, comunidades que ampliem sua capacidade de deciso e, ao

    mesmo tempo, capaz de construir a cidadania, o dilogo entre comu-

    nidades, portanto, entre criadores, pblicos e instituies (ANAIS, p.91).

    A seguir, algumas informaes bsicas a respeito do programa de

    formao do Mxico sero colocadas, por serem de fundamental impor-

    tncia para a compreenso de todo o Sistema, sua losoa e sua dinmica,

    bem como dos resultados de sua avaliao.

    O Sistema apresentou-se com a seguinte misso: Capacitar, atuali-

    zar e contribuir na prossionalizao de promotores e gestores culturais

    das instituies pblicas e privadas, educativas e culturais de organizaes

    no governamentais, comunitrias e grupos independentes, com o m de

    elevar o nvel e a qualidade dos projetos e servios culturais que ofere-

    cem populao. E tinham como viso que os promotores e gestores

    culturais encontrassem no sistema um espao de oportunidade para sua

    prossionalizao. [...] A reexo crtica e o intercmbio de experincias

    Promotores y Gestores Culturales - Impulsado por Direccin de Capacitacin Cultural de la Direccin General de Vinculacin Cultural de Conaculta, Informe Final, Mayo del 2007.

  • 39Pensar e Agir com

    a Cultura: desafios da gesto culturalde gesto foram formando uma rede (ANAIS, 92). Consequentemente,

    geraram entre esses prossionais um sentimento de pertencimento, pois

    reconheciam seus pares.

    Uma das principais estratgias para implantao do Sistema foi o

    processo de interiorizao participativa, o que signica que, mesmo sendo

    um programa do governo federal, no foi apenas levado para o interior

    dos estados como mais um programa pronto, mas tinha a perspectiva de

    construo conjunta e, desta forma, criaram-se responsabilidades mtuas

    e um alto grau de apropriao desse Sistema nos estados.

    Estabeleceram-se parcerias com o governo local, com a universi-

    dade e com ONGs que se tornaram as instncias organizadoras de cursos

    no formais ou formais, seminrios ou mestrados.

    Cada instncia organizadora, fossem elas instituies do Esta-

    do, universidades ou ONGs, tinha o seu coordenador, que se tornava o

    responsvel por convocar os promotores e gestores locais, bem como par-

    ticipava da elaborao da grade curricular que era estruturada a partir

    dos interesses de cada regio. No caso dos professores, chegaram a tra-

    balhar com quase 300 prossionais e todos foram avaliados com uma

    mdia de 9.3 (escala de 0 a 10), o que nos leva a constatar o alto nvel de

    excelncia acadmica.

    O programa funcionava a partir de trs subsistemas, descritos da

    seguinte forma:

    1) Capacitao modular estruturado por mdulos, possua um formato

    exvel;

    2) Formao contnua era realizada, com um tempo determinado, por

    meio de encontros quinzenais;

    3) Capacitao a distncia poderia ser modular ou contnua.

    Os cursos tinham certicao de validade ocial. Para tanto, -

    zeram parceria com a Secretaria de Educao, que certicava os estudos

    gerados por esse processo formativo. Assim, todos os promotores que

    queriam validar os seus diplomas tinham que elaborar um projeto, que

  • 40Parte I: Desafios

    era apresentado e avaliado por uma comisso. Em seguida, tais projetos

    passavam a fazer parte de um banco de dados na Internet.

    Uma outra estratgia para garantir a continuidade de formao

    prossional dos gestores culturais foi a busca de parceria com as univer-

    sidades, pblicas e privadas, pois estavam cientes de que precisavam da

    universidade para que criassem um novo campo prossional. Nessa po-

    ca, foram criados trs licenciaturas e trs mestrados, que ainda continuam

    em funcionamento.

    Esse reconhecimento foi fundamental para os gestores culturais,

    pois era o reconhecimento de uma capacidade prossional e de uma com-

    petncia para trabalhar na rea daqueles que, muitas vezes, j tinham 10,

    20 anos de atuao na prtica.

    importante ressaltar alguns nmeros signicativos do programa.

    No perodo de 2001 a 2007 foi realizado um nmero total de 21.789 capa-

    citaes de promotores culturais. Desse total, 13.176 concluram o plano

    de formao e 9.683 receberam o certicado ocial. Ou seja, para 60,47%

    das pessoas o diploma no era o mais importante, mas, sim, vivenciar o

    processo formativo proposto pelo programa.

    Para termos uma ideia de quem eram esses prossionais que

    procuraram o curso, apresentamos o perl dos egressos apontado em re-

    latrio: 41,4% esto na faixa etria entre 26 e 45 anos; 83,2% tm menos

    de 10 anos no mercado de trabalho (o que indica uma predominncia de

    jovens interessados na gesto cultural); 53,5% tm nvel de estudos de

    licenciatura no setor formal e 53,5% so mulheres.

    O Sistema Nacional de Capacitao do Mxico um exemplo de

    que, mesmo em um pas de grandes dimenses, possvel realizar um sis-

    tema integrado de avaliao, passando por todas as etapas: levantamento

    de demanda, construo de parcerias locais, realizao do programa com

    as especicidades locais e com um processo de acompanhamento e ava-

    liao. Como foi descrito em uma avaliao especca da UNESCO: A

    concluso do seu relatrio de que o sistema nacional de capacitao no

  • 41Pensar e Agir com

    a Cultura: desafios da gesto culturalMxico constitua uma boa prtica.

    No entanto, trazendo para a realidade brasileira, podemos conside-

    rar que, praticamente, no temos uma poltica clara e objetiva de poltica

    de formao de gesto cultural, seja pblica ou privada. Assistimos a aes

    espordicas e no sistemticas de iniciativas de formao local e regional

    e no uma poltica especca que direcione, minimamente, os parmetros

    formativos para o setor. Embora aes de formao para a rea venham

    sendo realizadas h mais de dez anos consecutivos, so experincias lo-

    calizadas e sem um formato sistmico de carter nacional.

    Uma questo que nos foi colocada durante os debates do V Semi-

    nrio foi: Ser que poderamos trazer essa experincia mexicana para o

    Brasil? Nossa reexo foi de que no se trata de transpor uma experin-

    cia para realidades to diversas, mas que possvel aprender com as boas

    prticas e partir para aes mais efetivas.

    Vamos abordar agora a outra anlise proposta e que se refere aos

    dados levantados pelo Suplemento de Cultura da Pesquisa de Informaes Bsicas

    Municipais MUNIC 2006/IBGE, aplicados em todos os municpios bra-

    sileiros, como forma de identicao do problema em questo, ou seja, a

    necessidade de um programa nacional de formao em gesto cultural no

    Brasil.

    O perfil, o nvel e a rea de formao dos funcionrios pblicos municipais brasileiros

    O resultado da pesquisa sobre o setor de cultura dos municpios

    brasileiros (IBGE) nos apresenta, entre outras variveis, uma radiograa

    sobre os pers dos recursos humanos do setor pblico municipal da cul-

    tura e nos coloca com um olhar de lupa para cada municpio brasileiro.

    Para tratar do tema relativo aos recursos humanos, o primei-

    ro ponto de anlise refere-se ao grau de instruo e escolaridade dos

    prossionais de cultura nos municpios. Constatou-se, a partir dos dados

    levantados, um elevado nvel de escolaridade dos titulares dos rgos de

  • 42Parte I: Desafios

    gesto cultural. Temos nmeros signicativos: 84,3% tm nvel superior e

    34,6% tm ps-graduao. A anlise apontada no relatrio da MUNIC foi

    que a maioria das estruturas organizacionais de gesto cultural se encon-

    tra entre as categorias: secretaria em conjunto com outras polticas ou

    setor subordinado a outra secretaria, o que apontaria uma elevao do

    nvel de escolaridade dos prossionais do setor cultural.

    Essa uma realidade das Secretarias Municipais, mas, ao mesmo

    tempo, no podemos deixar de levar em considerao as informaes de

    uma outra pesquisa tambm realizada em parceria por IBGE/MinC - Sis-

    tema de Informaes e Indicadores Culturais (2003-2005) - e divulgada

    em 2007. Essa pesquisa constatou que o setor cultural j ocupa 3,7 milhes

    de trabalhadores, prevalecendo o nvel de escolaridade mais elevado do

    que no mercado de trabalho em geral. Assim, o estudo demonstra a pre-

    dominncia na participao de prossionais no mercado cultural (46%

    do total) com 11 ou mais anos de estudo. Isso, de certa forma, conrma

    os resultados da MUNIC quanto ao nvel de escolaridade do prossio-

    nal da cultura, independentemente da estrutura organizacional pblica

    municipal.

    Em contraposio, deparamos com alguns resultados relativos ao

    grau de instruo dos funcionrios municipais e identicamos um alto

    ndice de funcionrios de ensino mdio em todas as regies do pas: Norte

    - 51,22%, Nordeste - 53,60%, Centro-oeste 43,53%, Sudeste 44,50%, Sul

    43,56%. Podemos concluir, a partir desses dados, que estamos diante de

    um perl naturalmente mais jovem de funcionrios vinculados ao setor

    pblico de cultura, o que refora ainda mais a importncia de programas

    de formao especca para prossionais que atuam nesse setor em m-

    bito nacional.

    Ao mesmo tempo, contrapondo s informaes anteriores, em que

    h um alto ndice de prossionais ainda de nvel mdio no setor pblico

    de cultura, temos duas regies que se destacam, comparativamente, pelo

    alto ndice de funcionrios com ps-graduao: a regio Centro-oeste,

  • 43Pensar e Agir com

    a Cultura: desafios da gesto culturalcom 14,0%, e a regio Sul, tambm com 14,0%; logo abaixo vem a regio

    Sudeste, com 5,18%. No caso especco das duas primeiras regies, pode-

    mos supor que os alunos dos cursos de ps-graduao existentes esto, de

    fato, sendo absorvidos como mo-de-obra especializada para ocuparem

    cargos nos rgos pblicos de cultura.

    Outro ponto a ser considerado refere-se aos cursos que predomi-

    nam na rea cultural. Foi identicada uma ampla diversicao relativa

    formao superior dos funcionrios municipais em nvel nacional. Veja-

    mos o quadro abaixo:

    O que podemos analisar a partir desses dados, do ponto de vista

    do campo da gesto cultural, que essa diversidade de reas de formao

    aponta para a prpria complexidade e riqueza do setor, que apresenta

    uma capacidade de absorver mo-de-obra qualicada, tendo em vista

    que um campo de trabalho aberto participao interprossional. Isso

    signica que seus participantes possuem uma formao bsica diferencia-

    da (CUNHA, 2007, p. 120).

    O resultado apresentado pela MUNIC nos revela trs dados que

    5,59

    10,90

    2,350,91

    2,77 3,08 1,780,26

    6,83

    25,12

    7,79

    1,47 0,80

    42,18

    Adm

    inis

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    tura

    l

    Outr

    os

    Formao Superior - Nvel Nacionalem %

  • 44Parte I: Desafios

    chamam a ateno: o percentual de 25,12% para pedagogos, que se explica

    pela vinculao, em grande parte, de secretarias de educao e cultura; e

    outro dado que se refere aos prossionais de produo cultural que re-

    presentam 0,80%, um baixo ndice compreendido por ser uma prosso

    ainda no atendida com cursos superiores de graduao, pelo menos em

    grande escala. So excees no pas. No entanto, aparece um dado, no

    mnimo, curioso: 42,18% dos funcionrios que responderam a questo

    colocam-se na categoria Outros. O que isso signica? Tudo o que colo-

    carmos como anlise no deixar de ser mera especulao, mas podem

    estar embutidas algumas reas de formao que no so, a princpio, con-

    sideradas do campo cultural ou mesmo como reexo do alto ndice de

    prossionais com curso mdio.

    Tais resultados nos levam a constatar a necessidade do desenvol-

    vimento de uma poltica de capacitao, com vrios nveis de formao,

    que atenda, de fato, a um maior nmero de prossionais da cultura, como

    j visto no programa exemplar de formao do Mxico.

    O terceiro ponto que poderamos destacar como anlise dos dados

    da pesquisa nos municpios refere-se ao investimento em formao por

    parte das instituies pblicas municipais de cultura. Os dados revelam

    os seguintes nmeros: 1/3 dos municpios brasileiros investem em curso

    de atualizao prossional para formao do gestor responsvel pelo r-

    go de cultura do municpio; 24,9% para a formao de responsveis por

    projetos ou programas culturais realizados pela prefeitura, e 21% para o

    pessoal envolvido em atividades culturais especcas.

    Esses programas pblicos de formao em cultura so direcio-

    nados, em grande parte, para o investimento nos prprios funcionrios

    vinculados aos rgos de cultura. No entanto, preciso observar a prio-

    ridade que deve ser dada aos funcionrios efetivos da instituio, o que

    no signica restringir apenas a eles, mas garantir sua formao a possi-

    bilidade mais concreta de dar continuidade implantao de polticas de

    cultura em mdio e longo prazo.

  • 45Pensar e Agir com

    a Cultura: desafios da gesto culturalTais iniciativas podem ser promoes diretas por meio de pro-

    gramas de formao cultural ou por meio de incentivos para que seus

    funcionrios busquem melhor qualicao prossional e acadmica.

    Ressalte-se que, de alguma forma, esse o caminho para a prossionali-

    zao e a institucionalizao do setor cultural, mas que ainda est restrito

    aos municpios com maior nmero de habitantes.

    Dando continuidade a este debate, no que se refere existncia

    de escola, ocina ou curso regular de atividades culturais nos munic-

    pios, chega-se a um nmero de 46,9%. Tendo como principais atividades

    as seguintes reas artsticas, j includa aqui a rea de gesto: msica

    33,8%; artesanato 32,8%; dana 30,8%; teatro 23,2 %; manifestaes

    tradicionais populares 19,4%; artes plsticas 18,0%; literatura 6,6%;

    patrimnio, conservao e restaurao- 5,4%; gesto cultural 3,3%; fo-

    tograa 2,4%; cinema - 2,3%; circo 2,3%; vdeo 2,1% e outras 4,6%.

    Observa-se que ainda permanecem em evidncia as reas arts-

    ticas mais tradicionais como a msica, o artesanato, a dana e o teatro.

    Destaca-se, tambm, o surgimento de ocinas ou cursos relativos ges-

    to cultural, ainda com um percentual pequeno (3,3%), proporcional ao

    nmero de municpios por regio. No entanto, essa uma rea que tem

    o maior investimento do setor pblico: 86,8%, exatamente por ser uma

    necessidade intrnseca ao prprio funcionamento e organizao das ins-

    tituies culturais.

    Levando em considerao as questes apresentadas ao longo desta

    discusso, e tentando responder questo inicial, evidente a tomada

    de conscincia a respeito da necessidade de formao desse prossional

    como investimento na organizao do setor cultural seja ele pblico ou

    privado. Assim, a importncia do papel do gestor cultural vem do prprio

    processo de prossionalizao da cultura e da reestruturao desse mer-

    cado e que devem ser tratados como fatores determinantes no processo

    inicial de reconhecimento deste prossional.

    Devemos considerar que a diversidade de formao acadmica,

  • 46Parte I: Desafios

    associada ao alto ndice de funcionrios de nvel mdio no mbito do

    setor pblico municipal, o que, de certa forma, reete como os demais

    setores da sociedade brasileira, aponta para a necessidade de formulao

    de um programa de formao em gesto cultural diferenciado em diver-

    sos nveis de aprofundamento, como vimos na experincia do Sistema

    Nacional de Capacitao do Mxico, para que possa atender aos pers de

    prossionais vinculados do setor de cultura.

    Diante da experincia mexicana e dos resultados do Suplemento de

    Cultura da Pesquisa de Informaes Bsicas Municipais MUNIC , que, ao radio-

    grafar os municpios brasileiros e, portanto, desnudar a sua fragilidade no

    que se refere ao setor cultural, deve-se ter conscincia de que preciso

    ampliar a discusso em mbito municipal, estadual e nacional na pers-

    pectiva de implementar polticas culturais integradas que vislumbrem

    um programa consistente de formao e descentralizao cultural.

    Por m, a disponibilizao de informaes sobre programas de

    formao j implantados e avaliados, a realizao da pesquisa e a cria-

    o de dados referenciais analisados por especialistas tm contribudo

    para munir o setor cultural de informaes objetivas e consistentes. No

    entanto, fundamental que todo esse material esteja disponvel e seja

    incentivada a sua consulta pelos dirigentes pblicos municipais, estaduais

    e federal para que sirva, de fato, como indicadores e parmetros para o

    desenvolvimento de polticas pblicas de formao e investimento, num

    mbito mais geral, no setor de cultura.

    Referncias:

    ANAIS do 1 Seminrio Internacional de Gesto Cultural. Palestra de Jos

    Antnio Mac Gregor. Belo Horizonte: DUO Informao e Cultura, 2008.

    CUNHA, Maria Helena. Gesto cultural: prosso em formao. Belo

    Horizonte: DUO Editorial, 2007.

  • 47Pensar e Agir com

    a Cultura: desafios da gesto culturalEvaluacin Integral del Sistema Nacional de Capacitacin y

    Profesionalizacin de Promotores y Gestores Culturales - Impulsado

    por Direccin de Capacitacin Cultural de la Direccin General de

    Vinculacin Cultural de Conaculta, Informe Final, Mayo del 2007

    IBGE, Instituto Brasileiro de Geograa e Estatstica. Perl dos municpios

    brasileiros: Pesquisa de Informaes Bsicas Municipais: Cultura. Rio de

    Janeiro, 2007.

    IBGE, Sistema de Informaes e Indicadores Culturais/ 2003-2005.

    Braslia, 2007.

  • 48Parte I: Desafios

    A mudana da cultura e a cultura da mudana: cultura, desenvolvimento e transversalidade nas polticas culturais

    Jos Mrcio Barros

    ...yo he preferido hablar de cosas imposibles porque de lo posible

    se sabe demasiado...(Silvio Rodriguez, poeta cubano)

    ISempre gostei de brincar com a ordem das coisas. Melhor ainda,

    sempre gostei de reinventar a ordem prevista das coisas. Comer o frio

    depois do quente, o doce junto ao salgado. Escrever com a mo esquerda

    quando se destro, priorizar o perifrico ao cntrico, ler jornais de trs

    para frente, preferir ouvir a ter que falar. L se vo dcadas de inverses.

    Inverter as coisas, as palavras, as pessoas foi se transformando em

    mecanismo de busca de sentidos. Modo atravs do qual fui procuran-

    do construir meu lugar no mundo, e o lugar do mundo em mim. De

    tanto brincar, inverter virou mania, e de mania, inverter as coisas virou

    identidade.

    Na verdade, fui compreendendo que inverter as coisas um modo

    de se ter acesso realidade. Um modo de realizar o conhecimento da rea-

    lidade pela negao de sua atraente e sedutora aparncia de permanncia

    e essencialidade. O jogo de inverses foi se transformando em estratgia

    de desdobramento, ampliao e abertura para os sentidos.

    Fui reconhecendo na inverso, recusa. Mas no uma recusa que

    se ausenta da coisa invertida. Mas a inverso como forma de habit-la.

    Inverso como forma de dobrar e desdobrar a realidade. Como forma de

    deixar verter o sentido da realidade como resultado de relaes que esta-

    belecemos e no como qualidade preexistente.

    No se trata, pois, de simples estilo discursivo, mas de estratgia de

  • 49Pensar e Agir com

    a Cultura: desafios da gesto culturalbusca de sentidos. Pensar em vrias direes, pelo verso e pelo reverso.

    Por tudo isso, que aqui tambm vou fazer uso dessa sria brincadeira.

    IISegundo Isabel Lara Oliveira (1999, p.16), congura-se como um

    tempo de particular complexidade:

    [...] que se abre para uma conscincia crescente da descontinuidade, da no-linearidade, da diferena, da necessidade do dilogo, da polifonia, da complexidade , do acaso, do desvio. Onde h uma avaliao ampla do papel construtivo da desordem, da auto-organizao e uma resignicao profunda das idias de crise e caos, compreendidas mais como informaes complexas, do que como simples ausncia de ordem.1

    Entretanto, neste tempo em que tudo pode oferecer sentido e sig-

    nicar algo, Oliveira nos remete a dois importantes autores que chamam

    a ateno para os limites e as possibilidades da atualidade. O primeiro,

    Edgard Morin, em seu livro Cultura de Massa no sculo XX, a partir do qual a

    autora aponta para o fato de que a atualidade se congura tambm como

    um tempo supercial, ftil, pico e ardente. Onde o cheio provoca o oco,

    a saciedade gera a angstia, o permanente trocado pelo atual, o mais

    novo, o mais moderno. Revelando a sua marca primordial: a paradoxa-

    lidade (OLIVEIRA, 1999, p.16).

    O segundo, o socilogo portugus Boaventura de Souza Santos, de

    onde Lara tece consideraes apontando que vivemos

    [...] um tempo de transio, de transformao, onde o projeto da modernidade parece ter se cumprido em excesso ou ser insuciente para solucionar os problemas que assolam a humanidade, vivemos uma condio de perplexidade diante de inmeros dilemas nos mais diversos campos do saber e do viver. Que, alm de serem fonte de angstia e desconforto, so tambm desaos imaginao, criatividade e ao pensamento (OLIVEIRA, 1999, p.17).

    , pois, neste contexto de paradoxalidade e perplexidade apontados

    1. Disponvel em: http://www.unb.br/fac/ncint/site/parte10.htm,

  • 50Parte I: Desafios

    por Lara, Morin e Boaventura que gostaria de tratar a relao aqui proposta.

    IIIA cultura e sua dinmicaComeo, ento, por diferenciar a mudana da cultura de uma cul-

    tura da mudana.2

    Por cultura penso, como a Antropologia o faz, um processo atravs

    do qual o homem atribui sentidos ao mundo. Cdigos atravs dos quais

    pessoas, grupos e sociedades classicam e ordenam a realidade. A cultura

    a instncia onde o homem realiza sua humanidade. Como fenmeno

    anterior e exterior ao indivduo, a cultura realiza-se quando incorporada

    e tornada identidade. Nesta linha de raciocnio, possvel armar que

    no existem culturas estticas, existem, sim, sociedades em que o lembrar

    ocupa uma centralidade estruturante e outras em que a memria possui

    menor pregnncia do passado, caracterizando-se pela multicentralidade.

    Lembrar e esquecer so, no entanto, dois momentos de toda e qualquer

    cultura.

    Quando o lembrar dene de forma hegemnica a organizao e

    as instituies sociais, e a memria e a identidade das pessoas e seus

    grupos, estamos diante de uma sociedade tradicional. Uma sociedade que

    elege, de forma exclusiva, o passado como centro congurador de senti-

    dos, uma sociedade que resiste mudana. Uma sociedade ancorada em

    permanncias.

    No sentido oposto, sujeitos e instituies que no elegem o passa-

    do como ordenador preferencial de sentidos, inauguram sociedades que

    fazem do presente e das representaes do futuro seu centro estruturador

    de identidades. , portanto, uma sociedade que institui a mudana como

    seu modo de existir.

    2. Algumas ideias aqui apresentadas foram originalmente organizadas para a Conferncia de Abertura do 5 Congresso Brasileiro de Ao Pedaggica, em 2005.

  • 51Pensar e Agir com

    a Cultura: desafios da gesto culturalEstamos falando de extremos e polaridades, aqueles que se recu-

    sam a mudar e outros que se recusam a permanecer, para deixar claro

    que no existem culturas estticas e que o debate sobre a relao entre

    o desenvolvimento e a diversidade cultural no pode se recusar a esta

    tenso. Toda cultura muda, mais ou menos lenta, de forma mais ou menos

    visvel, motivadas por trocas culturais desastrosas ou por sincretismos

    singulares. Por sutis processos histricos ou por avassaladores aconte-

    cimentos. como se a mudana e a permanncia, em estado de tenso

    contnua, zessem parte da natureza da cultura. O que diferente de

    cultura para cultura e tambm de instituio para instituio o tipo de

    movimento que resulta a mudana e as negociaes poltico-simblicas

    com a permanncia.

    Quando uma sociedade ou uma instituio protege-se atravs de

    biombos da tradio e faz das diferenas uma ameaa, estamos diante

    de uma sociedade ou instituio que se recusa histria, ou melhor, que

    faz de sua histria a nica histria. So exemplos da tradio exclusiva as

    sociedades e instituies tribais, ortodoxas, e totalitrias.

    Por outro lado, sociedades e instituies que vivem do culto mu-

    dana so sociedades e instituies aprisionadas incompetncia de lidar

    com a memria. So sociedades de mercado, onde o consumo que dene

    a produo e o mercado congura-se como a principal instituio.

    Como possvel perceber, possibilidades e limites esto presen-

    tes em ambos os modelos. No modelo da tradio, encontramos sujeitos,

    grupos, instituies e sociedades que sabem de onde vieram e o que de-

    vem fazer para manter suas pegadas, seus rastros. Organizam sua vida de

    tal forma a preservar sentidos originais e manter as razes que lhes do

    sustentao. Oferecem a seus integrantes o sentido necessrio de perten-

    cimento. Mas tais realidades sociais so tambm expresses de posturas

    exclusivas, que transformam diferenas em desigualdades. Transformam-

    -se em sociedades e instituies incapazes de compreender o diferente ou

    sociedades intolerantes com a diferena. Da a proximidade com o poder.

  • 52Parte I: Desafios

    Ora a tradio revela incapacidade cultural de conceber o Outro, ora a

    vontade de domin-lo.

    Por outro lado, contemporaneamente, emerge um novo modelo

    cultural, fruto de uma radical transformao na experincia com o tempo

    e com o espao, motivada pelo que os especialistas chamam de globaliza-

    o ou mundializao.

    Emergem sociedades e, por consequncia, instituies marcadas

    pela descontinuidade, pela fragmentao, pela pluralidade, pela simulta-

    neidade. Um mundo que, gradativamente, comprime o tempo e dissolve

    fronteiras, um mundo que inaugura o fenmeno das identidades mltiplas.

    Um mundo que produz em parte de seus integrantes outra experincia

    identitria, no mais ancorada no fechamento e acabamento iluminista,

    mas na abertura e inacabamento da ps-modernidade.

    Culturas, sociedades, instituies, grupos e indivduos contempo-

    rneos caracterizam-se pela possibilidade da abertura. Entretanto, grande

    parte desta abertura denida pelo mercado de consumo e no mais pelas

    instituies tradicionalmente responsveis pela formao dos sujeitos nas

    sociedades. Tal predominncia da instituio mercado vem instituindo o

    que Nestor Garcia Canclini chama da experincia da cultura do efem-

    ro: o consumo incessante, a ditadura da renovao, a transformao da

    experincia cultural em experincia do lazer e entretenimento. Socieda-

    des contemporneas so aquelas onde grande parte de nossa experincia

    identitria e de cidadania foi deslocada para as relaes de consumo.

    Nestas sociedades, e em suas instituies, as mudanas no geram

    necessariamente transformaes. So mudanas conservadoras, motiva-

    das por circunstncias e no por conceitos.

    Tudo isso nos sugere que, se todas as culturas mudam, preciso

    ter a capacidade de compreender seus sentidos, seja quando relacionada

    sociedade como um todo, seja quando relativa aos sujeitos e instituies.

    No difcil perceber que entre estes dois extremos aqui explora-

    dos, a recusa e a adeso total mudana, um outro caminho que equilibre

  • 53Pensar e Agir com

    a Cultura: desafios da gesto culturaltradio e traduo constitui-se no que h de mais rico na experincia

    cultural hoje.

    Neste ponto podemos introduzir a questo da cultura da mudana.

    A partir das questes aqui levantadas, pensar numa cultura da

    mudana signica pensar na maneira como sociedades, instituies e su-

    jeitos constroem sentidos para o mudar. Ou melhor, como a mudana

    pode assumir o sentido de uma busca, algo intencionado, uma disponi-

    bilidade para a transformao ou apenas um discurso evasivo atualizado

    pelas literaturas de autoajuda.

    A cultura da mudana que aqui nos interessa, imagino ser da pri-

    meira categoria, aquela que se interessa em forjar futuros e no apenas em

    reproduzir modismos. Mudana no sentido aqui proposto menos uma

    questo tcnica e mais um regime de sensibilidade que se desdobra em

    fazeres, um modelo de ao e representao.

    A cultura da mudana , portanto, resultado de uma disponibilida-

    de para o futuro, para o novo, para o desconhecido. Resulta da capacidade

    de abertura para o mundo. No se trata da armao da ditadura da mu-

    dana, do equvoco de se tomar a mudana como sinnimo de excelncia.

    Trata-se, sim, de se reconhecer que sociedades e instituies so desaa-

    das continuamente pela histria.

    Arthur da Tvola, em uma de suas inmeras crnicas, chama a

    ateno para o fato de que, no processo de construo de nossas iden-

    tidades, costumamos transformar nossas verdades em dogmas. E nesse

    processo, quanto mais temos a sensao de liberdade, de domnio sobre o

    mundo, mais nos escravizamos. Quanto mais experimentamos a liberda-

    de de saber quem somos, mais nos aprisionamos.

    Portanto, h mudanas e mudanas. Mudanas que produzem

    desenvolvimento e mudanas que consolidam a permanncia da desigual-

    dade, mudanas que produzem movimento e mudanas que paralisam.

    assim que penso a possi