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Pensar os direitos humanos LUC FERRY E ALAIN RENAUT Tradução por Mendo Castro Henriques In`Penser les droits de l'homme" in Esprit, Mars, 1983, pp. 70-79 de Marx, supostamente "desmistifi- cador", já não impede outras compreen- sões dos direitos humanos. O paradoxo surge, agora, no estabelecimento do homem enquanto tal como um valor; ao defender o homem enquanto tal contra a negação dos totalitarismos, o apelo actual aos direitos humanos pressupõe a ideia de uma natureza ou essência hu- mana e converte esta ideia em funda- mento dos valores jurídicos. Neste sen- tido, a referência aos direitos humanos 0 retorno recente da ideia de di- reitos é um paradoxo histórico. A análise marxista, na senda do artigo Sobre a Questão Judaica, descreveu tradicionalmente os direitos humanos como os da pessoa interessada em si mesma e isolada da colectividade - em resumo, como direitos de interesses particulares na sociedade burguesa e não como um modelo universal. Embora ainda significativo, o marxismo tem sido recentemente tão minado que o discurso mia, c anula, por questnos hn;.{ursticas relacionadas com a CUramatica e a l)r to ratr-.. ingressado era 1784 no Colégio das Necessidades, Pinheiro Ferreira concluiu e Curso de Humanidades em 1791. Verificadas ..inumas div e rpéncias com os ;eus Professores, abandona n Oratório o a carreira cclesiasl ie a, (;ornai.. a dar aulas de Filosofia ela Lisboa. Fins 1.79:1. e nomeado para leccionar Filosofia Racional u Alcral no Coleu rio das. Aries da Universidade de Coimbra. hm 1797parteparal~'ranta,refn i eiando-se üap.rseauiçü.o que sobre si recaia. ]lc,r suspeie,ti de . ']iicobuiis prid " , Nesse mesmo anu lei atracado 5ecrel rio da Embaixada Portu- que'sa cnl Paris. Em 1802, foi nonlc ' ado Oficial d a decretaria dos Nepoaios l',str angeuos na Corte de1-Urlna, permanecendo na Alemanha ate 1809, D1irantei este peando contactou com a filosofai aterrai dominante na época, mormente com e kt.n- tisnln,convivendocinl Fichlee^tielre llinq , acujascouh'rencias chegou mesmo a assistir, sem nunca. n.o erntanto, aderir aos pressupostos idealistas. Anás as Inv as p es F'r metias, Pinheiro Ferrei r a parte rira 1.809 para o Rio dc Jardeu. juntando-se ì F'amlii,a ii 'ra1. Per- manece no Brasil doze anos. período durante o qual cleseni- pelnhnu variara oinias funtncs, das quais ,silo de destacar: 1)epnttado da Junta do l onar e rcie e 1 `á11 ì; Professor de I'ilosol ía da Cortei] 81if cujas lrtrics foram denominadas "Prelecções Filoso[ieas', Oficial de Secretaria de Estado dos Negocioas Estrangeiros. 1,1815 , ); Ministro dos Neuotaos Estrangeiros e da Guerra (1.821. Neste ano, prnpue ta Farinha Real o rc gesso da corte a cidade de Lisboa, a fim de proceder a eltlbo- raçtui e' tio luramlento cio uma nova (dinstitllit io. ler essa altura, o seu ideal de Estado Constitucional tira o d.e uma 'Monarquia repre'scntativa ti limitada por uni Godigo undaruentais,que clev rar controruma "de.el ar aç uo dos direitos cio hon1crn e dn cidadão Jtí era Portugal, Pinheiro Ferreira ocupou o cargo de Ali.- nistru rios Estrangeiros ate 1822 Missao difícil, porque. ele vista elo reconhecimento internacional do novo regime imple- rne.ritadoeniRrtupalapósoregressodoReialusboae ojur'a- niento da Carta Constitucional de 1530, se deparou cum. ;n'an- des entraves 11i.s nopurlae OeS t1Um1 as petencias E 'ferir eiras. Em 182(1 partu para Franca, abandonando ti carreira política para se dedicar a especulattio filosófica, sendo 1gurameinte o seu períorln mais fecundo era publicações que versuvv nrn tenras que iam da Filosofia uo I)ireiito, passando por temia açeìe's sabre Admini:straeiuì Publica. ce Economia Política e tradução do meras de Aristuteles. Re, russa definitiv a anu ate a Portugal eni 18 , 12, altura tini que é q uito deputado péla provincial. do Minha, 1)e laia; sua omite L10(1H, redige e^ publica variadíssinle i ,s artigos em revistas ei jornais de caracter liteu'ario, politicu c rchgioso, dos quais devem ser salientados os que constara de O Penttigonu, A Aurora, ARestauraçao. i, o Jornal da Sociedade Católica, A partir desta breve e resumida. passagem pela vida dar filósofa e' político, ama primeira nota a reter e chie estamos tini presença de unia personuil idade pontacutada da vida. por tugue.sn oitocentista. lastimo que tenha ficado aguçada a curiosidade por 'afigura crunrënica, cuja actividade se disseminou por arcas uni a Iree^u^nae iolil^eseiflca, n desempenho de. carfns. publicoo e políticos. o exercício diplou]acia. e, sobretudo. cimo espirito deveras preocapado edil] ti complexidade da rabiça() enfiai vida intelectual r' vida publica. A perfin('ncia da mensagem é ainda mais evidente num quadro de urna democracia impdeita,cheia du.vícios, Injustiças, e nrxnipultae,ües. listamos. a "rir uni, demncracita incompleta Si'rllpre que a denlrlcracia fel]] su o r'edllzlda aci `outii Ne;se0 papelinho descansamos a nossa cunsciëncia. Uma via/cumprido odever„ .are,sidnacüotoaraconta das vontadese'oindividualismo cómoda apodera sc das. pessoas. 11á que reverter esta situação, A democracia e, hoje, nm v valor fnndame ' ntal da vida dos povos, nu, segundo ll r irrstunChurchill,`eopior dos regimes, mas n meras pior de todos.,. " . Para ser lnclhur, a' preciso dar a possibilidade a cada cidadoa de Intervir na viria dos organismos pulaiicos,das nssuciaçues,edos gruposintcrmtdios. Deve, por isso, estimular-se em todos a vontade de tomar parte nos empreendimentos comuns. E é de louvar o modo ele agir das nações em que amaior parte participa,comverdadeira liberdade, nos assuntos públicos Ii fundamental, pois. uma conversão do papel do cidadão, ou, st' quise'ruws, cima formação pauta a cidadania, nadeest i inipb'ci to ii e p 'ic'eno da rraessrna. E glltllquler fil'maçdo para a Cidadania anseia ' -sl, natnrtiiinente, num sistema educativo nacional, tiaduzindo-oc' numaFornlaçtio(finde.Penso que cstai"areflc.xao que importa faia- por parte das entidades e de todos aqueles que. si' onapenhaui nm]]aa estruturlç'ào social o política dos povos. VQtirYlne, 1[, (('nn;t11111C ie) "tiuudiu],r et Opr:s `.1

Pensar Os Direitos Humanos(Luc Ferry e Alain Renaut)

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Sobre os Direitos Humanos e outros assuntos.

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  • Pensar os direitos humanosLUC FERRY E ALAIN RENAUT

    Traduo porMendo Castro Henriques

    In`Penser les droits de l'homme" in Esprit, Mars, 1983, pp. 70-79

    de Marx, supostamente "desmistifi-cador", j no impede outras compreen-ses dos direitos humanos. O paradoxosurge, agora, no estabelecimento dohomem enquanto tal como um valor; aodefender o homem enquanto tal contraa negao dos totalitarismos, o apeloactual aos direitos humanos pressupea ideia de uma natureza ou essncia hu-mana e converte esta ideia em funda-mento dos valores jurdicos. Neste sen-tido, a referncia aos direitos humanos

    0 retorno recente da ideia de di-reitos um paradoxo histrico.A anlise marxista, na senda doartigo Sobre a Questo Judaica,descreveu tradicionalmente os direitoshumanos como os da pessoa interessada

    em si mesma e isolada da colectividade- em resumo, como direitos de interessesparticulares na sociedade burguesa eno como um modelo universal. Emboraainda significativo, o marxismo tem sidorecentemente to minado que o discurso

    mia, c anula, por questnos hn;.{ursticas relacionadas com aCUramatica e a l)r to ratr-.. ingressado era 1784 no Colgiodas Necessidades, Pinheiro Ferreira concluiu e Curso deHumanidades em 1791. Verificadas ..inumas div e rpnciascom os ;eus Professores, abandona n Oratrio o a carreiracclesiasl ie a, (;ornai.. a dar aulas de Filosofia ela Lisboa. Fins1.79:1. e nomeado para leccionar Filosofia Racional u Alcral noColeurio das. Aries da Universidade de Coimbra.

    hm 1797parteparal~'ranta,refn ieiando-se ap.rseaui.oque sobre si recaia. ]lc,r suspeie,ti de . ']iicobuiis prid " , Nessemesmo anu lei atracado 5ecrel rio da Embaixada Portu-que'sa cnl Paris. Em 1802, foi nonlc' ado Oficial d a decretariados Nepoaios l',str angeuos na Corte de1-Urlna, permanecendona Alemanha ate 1809, D1irantei este peando contactou coma filosofai aterrai dominante na poca, mormente com e kt.n-tisnln,convivendocinl Fichlee^tielre llinq , acujascouh'renciaschegou mesmo a assistir, sem nunca. n.o erntanto, aderir aospressupostos idealistas.

    Ans as Inv as p es F'r metias, Pinheiro Ferreir a parte rira1.809 para o Rio dc Jardeu. juntando-se F'amlii,a ii 'ra1. Per-manece no Brasil doze anos. perodo durante o qual cleseni-pelnhnu variara oinias funtncs, das quais ,silo de destacar:1)epnttado da Junta do l onar ercie e 1 `11 ; Professor de I'ilosol ada Cortei] 81if cujas lrtrics foram denominadas "PrelecesFiloso[ieas', Oficial de Secretaria de Estado dos NegocioasEstrangeiros. 1,1815 ,); Ministro dos Neuotaos Estrangeiros eda Guerra (1.821. Neste ano, prnpue ta Farinha Real o rcgesso da corte a cidade de Lisboa, a fim de proceder a eltlbo-ratui e' tio luramlento cio uma nova (dinstitllit io. ler essaaltura, o seu ideal de Estado Constitucional tira o d.e uma'Monarquia repre'scntativa ti limitada por uni Godigo

    undaruentais,que clev rar controruma "de.el ar a uo dos direitoscio hon1crn e dn cidado

    Jt era Portugal, Pinheiro Ferreira ocupou o cargo de Ali.-nistru rios Estrangeiros ate 1822 Missao difcil, porque. elevista elo reconhecimento internacional do novo regime imple-rne.ritadoeniRrtupalapsoregressodoReialusboae ojur'a-niento da Carta Constitucional de 1530, se deparou cum. ;n'an-des entraves 11i.s nopurlae OeS t1Um1 as petencias E 'ferir eiras.

    Em 182(1 partu para Franca, abandonando ti carreirapoltica para se dedicar a especulattio filosfica, sendo

    1gurameinte o seu perorln mais fecundo era publicaes que

    versuvv nrn tenras que iam da Filosofia uo I)ireiito, passando portemia aee's sabre Admini:straeiu Publica. ce Economia Poltica etraduo do meras de Aristuteles.

    Re, russa definitiva anu ate a Portugal eni 18 , 12, altura tini que quito deputado pla provincial. do Minha, 1)e laia; suaomite L10(1H, redige e^ publica variadssinle i ,s artigos em revistasei jornais de caracter liteu'ario, politicu c rchgioso, dos quaisdevem ser salientados os que constara de O Penttigonu, AAurora, ARestauraao. i, o Jornal da Sociedade Catlica,

    A partir desta breve e resumida. passagem pela vida darfilsofa e' poltico, ama primeira nota a reter e chie estamos tinipresena de unia personuil idade pontacutada da vida. por tugue.snoitocentista. lastimo que tenha ficado aguada a curiosidade por

    'afigura crunrnica, cuja actividade se disseminou por arcasuni a Iree^u^nae iolil^eseiflca, n desempenho de. carfns.publicoo e polticos. o exerccio diplou]acia. e, sobretudo. cimoespirito deveras preocapado edil] ti complexidade da rabia()enfiai vida intelectual r' vida publica.

    A perfin('ncia da mensagem ainda mais evidente numquadro de urna democracia impdeita,cheia du.vcios, Injustias,e nrxnipultae,es. listamos. a "rir uni, demncracita incompletaSi'rllpre que a denlrlcracia fel]] su o r'edllzlda aci `outii Ne;se0papelinho descansamos a nossa cunscincia. Uma via/cumpridoodever .are,sidnacotoaraconta das vontadese'oindividualismocmoda apodera sc das. pessoas. 11 que reverter esta situao,

    A democracia e, hoje, nm v valor fnndame' ntal da vida dospovos, nu, segundo llr irrstunChurchill,`eopior dos regimes, masn meras pior de todos.,. " . Para ser lnclhur, a' preciso dar apossibilidade a cada cidadoa de Intervir na viria dos organismospulaiicos,das nssuciaues,edos gruposintcrmtdios. Deve, porisso, estimular-se em todos a vontade de tomar parte nosempreendimentos comuns. E de louvar o modo ele agirdas naes em que amaior parte participa,comverdadeiraliberdade, nos assuntos pblicos

    Ii fundamental, pois. uma converso do papel do cidado, ou,st' quise'ruws, cima formao pauta a cidadania, nadeest i inipb'ci toii ep 'ic'eno da rraessrna. E glltllquler fil'mado para a Cidadaniaanseia' -sl, natnrtiiinente, num sistema educativo nacional,tiaduzindo-oc' numaFornlatio(finde.Penso que cstai"areflc.xaoque importa faia- por parte das entidades e de todos aqueles que.si' onapenhaui nm]]aa estruturl'o social o poltica dos povos.

    VQtirYlne, 1[, (('nn;t11111C ie) "tiuudiu],r et Opr:s

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  • boletim 1G E P O L I S

    implica claramente o que se deve de-signar "humanismo".'

    H duas razes para que o retornosimultneo dos direitos humanos e dohumanismo seja paradoxal. 0 primeiro que este conceito de homem cujos di-reitos esto agora a ser repensados, foiconsiderado envelhecido por muitosdesde h mais de duas dcadas. Nestascircunstncias, como deveremos com-preender este "retorno"? Em segundolugar, nas esferas polticas onde agorareina o discurso dos direitos humanos, omodo de pensamento predominante ainda muito historicista, mesmo que acomponente marxista seja menos im-portante do que outrora. Leo Straussdefiniu o historicismo como ume espciede relativismo, a recusa de admitir umcritrio que no seja uma conveno pu-ra, validada pela histria. Como pos-svel que uma tal rejeio das essncias,o desejo de tudo historicizar e "dia-lectizar", se enquadre num discurso queconverte o homem e os seus direitos co-mo uma espcie de universal atemporal,um valor suprahistrico que implica umlimite historicizao sistemtica detodas as noes?

    Para resumir o paradoxo, como pode-mos falar de direitos humanos com umpano de fundo de antihumanismo e his-toricismo? 0 realce deste paradoxo per-mite-nos iniciar uma investigao filo-sfica sobre o retorno contemporneoaos direitos. Porque se filosofar consisteem pensar o nosso prprio pensamento,em clarificar as condies tericas dapossibilidade das nossas asseres (comoFichte acreditava), a "filosofia do direito"consistir primordialmente em clarificaras condies teorticas de possibilidadedo discursos jurdicos particulares.Neste sentido, o retorno actual de umcerto tipo de discurso jurdico na poltica("rights talk") ganharia em clarificar assuas condies transcendentais depossibilidade, sujeitando-se a si mesmo interrogao filosfica. Isto . parti-cularmente verdade, caso se tratar dequestes acerca da compatibilidade des-te discurso com alguns dos mais desta-cados componentes do pensamento con-temporneo, em particular o anti-humanismo e o historicismo.

    Para esboar uma filosofia dos di-reitos humanos, temos primeiro queidentificar (sem analisar) as ontologiascom que o humanismo jurdico

    claramente incompatvel. Isso exigiriaum esboo dos enquadramentos tericosdentro dos quais se torna incoerentequalquer das concepes dos direitoshumanos. Deste ponto de' vista privile-giado, h dois modelos ontolgicos que necessrio excluir.

    O primeiro, que encontra a sua maiscompleta apresentao histrica emHegel, pode ser designado de teoria da"ironia da razo". Trata-se de uma bemconhecida tese de Hegel que tudo na his-tria se manifestou racionalmente,incluindo o que parece ser irracional ouinsensato (paixo, guerras, mal); na ver-dade, a racionalidade do processo his-trico mesmo efectivada atravs dessesaspectos. Mas se concebemos a histriagovernada por leis tais que nada sucedesem razo, se sujeitamos o histrico aoprincpio de razo, como que este his-toricismo se torna incompatvel com ohumanismo jurdico dos direitos huma-nos? Sem aqui analisar rigorosamente omodo como a incompatibilidade pers-pectivada na doutrina hegeliana do di-reito, salientaremos o significado neces-sariamente anti-jurdico desta concep-o da histria. Se uma racionalidadeest a operar no processo histrico, odecurso da histria claramente ne-cessrio, e assim o que aconteceu tinhaque acontecer quando aconteceu e comoaconteceu. Por outras palavras, a "ironiada razo" elimina toda a discrepnciaentre o ser e dever-ser, eliminando qual-quer distino entre o domnio dos factose o domnio dos valores. Tal como lemosem Hegel, o Ideal actualizado paratoda a eternidade atravs do processohistrico; e este processo tambm oBem a actualizar-se a si prprio.'

    Neste sentido, tal como a "ironia darazo" implica uma crtica da viso moraldo mundo, implica tambm uma crticado que poderia ser designado por visojurdica do mundo. Ou seja, elimina apossibilidade de debater os factos emnome do direito, de condenar uma rea-lidade poltica em nome dos valores jur-dicos pensados como transcendentes emrelao a essa realidade - em particularrelativos realidade histrica do Es-tado.' (E aqui o historicismo vai neces-sariamente a par com o positivismo jur-dico.) Em resumo, ressalta claramenteo significado que teria a ideia de direitonatural - a ideia do jusnaturalismo mo-derno - num contexto histrico em que a

    ideia de dever ser no tem sentido. Nafrmula clebre que Hegel adoptou deSchiller, a histria do mundo o tribu-nal do mundo" (Weltgeschichte istWeltgericht): o sucesso, ou eficcia, nahistria torna-se o critrio de justia. Oresultado inevitvel que, para qualquerhistoricismo ou teoria da "ironia darazo", a concepo do social como localdos direitos tende para ser apenas ummomento de um processo que culminaalm do direito. Tal como em Hegel, atransio da esfera do direito para a doEstado - o qual, ao actualizar as aspi-raes individuais encarna o direito -torna-se o que Michel Villey designou "odireito supremo contra os indivduos".4Torna-se uma Aufhebung da ideia tra-dicional de direito; pela qual o indivduopoderia ser defendido contra o Estado.Este aspecto igualmente patente emMarx e na tradio marxista, que tratao comunismo como a ultrapassagem dodireito.'

    bem conhecida esta relao entre a"ironia da razo" e a negao do direito.Mas existe um risco de extrair dela con-cluses apressadas, com a finalidade dedesenvolver um humanismo jurdicoconsequente. Se a sujeio historicistado destino ao poderoso princpio de razoimplica uma negao dos direitos, chega-se facilmente convico - alis correc-ta - de que um retomo aos direitos, funda-mentado filosoficamente, implica umacrtica das filosofias racionalistas dahistria. Mas existe aqui um risco decair num segundo modelo terico quetambm parece incompatvel com umaconcepo no-positivista do direito. Aofugir necessidade da "ironia da razo",pode-se ser conduzido a uma ideia dehistria que abandona completamenteo princpio de razo, Passa-se da rejeioda tese de que tudo na histria se ma-nifestou racionalmente ao pronuncia-mento de que o acontecimento na his-tria, tal como a rosa, " sem porqu".Estaramos, ento, em companhia deHeidegger. Se criticar a "razo na his-tria" significa excluir a histria da tira-nia metafsica da razo, a noo heideg-geriana de "uma histria do Ser" ummodelo antittico ao da "ironia da razo".'

    O modelo da "histria do Ser", con-tudo, tambm no parece mais compa-tvel como discurso dos direitos humanosdo que o hegeliano. Uma das razes o

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  • boletimG E P O L I S

    questionamento do humanismo por Hei-degger, que acredita ter o humanismonascido da metafsica da subjectividadecomo uma valorizao do homem ouapenas como uma valorizao, porque,como escreveu, "cada valorizao.., uma subjectivizao".' Uma outra razo que o modelo heideggeriano pareceapenas representar uma nova forma dehistoricismo.' No seu Princpio de Razo,por exemplo, Heidegger sublinha quecada poca da histria tem a "sua prprianecessidade". Decerto que, se trata deuma necessidade no dialctica e noimplica qualquer possvel deduo deuma poca com base em pocas pre-cedentes; antes, uma necessidade his-trica ou de destino em que cada pocapode ser pensada como um aspecto ou"abertura" do Ser.'

    0 indcio mais claro de historicismo,contudo, o facto de que a desconstruoheideggeriana da metafsica (tal como anietzscheana) implica uma crtica daciso entre o ideal e o real, entre o "" eo "deve ser". Podemos ver isto clara-mente na Introduo Metafsica, naqual, desde a meditao platnica sobrea ideia de bem at moderna ideia devalores, a distino entre o "" e o "deveser" apresentada como uma das facesdessa limitao do Ser", atravs do qualo prprio Ser se encontrou progres-sivamente esvaziado de tudo o que comele contrastava; ser e devir, ser e apa-recer, ser e pensar, ser e dever-ser. Estadistino diminui a questo do Ser, e fazparte da histria do esquecimento doSer; donde provm o "declnio do pensar".Atravs dele, o Ser distinto do "almser" que "assim atribudo a si prpriocomo uma referncia" e "j no o Serque confere a medida" . 1

    Por consequncia, se a distino entreo real e o ideal est inscrita na lgica doesquecimento metafsico do ser, claroque o pensamento que tenta permanecerfiel sua "questo fundamental" temque contornar este obstculo recolecodo Ser. Mas se este o caso, se no hou-ver meno da distino entre o real e oideal, encontramo-nos, certamente,dentro do espao do historicismo. 0 desa-parecimento de qualquer medida "almdo Ser" para julgar o Ser arrisca-se aesvaziar de todo o sentido a ideia do di-reito. isto que explica a severidadecom que Strauss, no seu esforo pararestaurar a dimenso do direito contra

    diferentes formas de historicismo, dis-cute o pensamento de Heidegger (em-

    bora em muitos pontos a sua descons-truo do pensamento moderno seja com-parvel s anlises heideggerianas).

    Contudo, se ambos os modelos - hege-liano e heideggeriano - cujas implicaeshistoricistas acabmos de esboar, soincompatveis com uma ideia autnticade direito, no basta uma crtica das "fi-losofias racionalistas da histria" paraconferir ao discurso dos direitos hu-manos a filosofia que merece. Um taldiscurso tem que estar filosoficamenteenraizado numa crtica da razo. Masnem toda a crtica da razo adequadapara fundamentar teoricamente um taldiscurso, uma vez que tambm a de-nncia heideggeriana da razo como "oinimigo do pensamento" ameaa roubarsentido a esse discurso. Por conseguinte,o pensamento filosfico sobre os direitoshumanos exige uma crtica da razoque no impea a possibilidade de referir"o homem tomado unicamente enquantotal" ou que condene o estabelecimento,para alm do ser, de uma medida do ser.Por outras palavras, uma filosofia dosdireitos humanos tem que ser um hu-manismo que no recaia numa meta-fsica ingnua da subjectividade. Comoo prprio Heidegger correctamente mos-trou, uma tal metafsica culmina no mo-delo hegeliano de um sistema em que o"prprio" toda a realidade, um sistemaque ao identificar o real com o racionaltambm proibe qualquer ideia do "deverser" - e por consequncia, qualquer ideiade direito.

    Estas formulaes dos requisitos filo -sficos de um discurso dos direitos huma-nos, definem, ainda que negativamente,um lugar para o criticismo filosfico.Um criticismo radical da razo, tal comomostra uma leitura da Crtica da Fa-culdade de Julgar, permite referir "valo-res" (estticos e ticos) em torno dosquais pode ser concebvel o "senso co-mum" ou "intersubjectividade". 11 No uma coincidncia que, mesmo antes deKant ter publicado a sua prpria Dou-trina do Direito em 1797 os seus pri-meiros discpulos indicassem a ferti-lidade do criticismo neste domnio,atravs da proliferao de escritos jur-dicos. Um dia ser necessrio assinalaras fases desta extraordinria histriada escola jurdica kantiana, atravs dasobras de Hufeland, Schmid, Maimon,

    Reinhard, Ehrard, Schelling, Feuer-bach, - e claro, Fichte, cujos Princpiosde Direito Natural (1796) so certamentea maior expresso da capacidade deuma certa crtica da razo em funda-mentar uma ideia "no-ingnua" dosvalores jurdicos (sem recair numa in-gnua metafsica da subjectividade).

    A existncia de uma tal escola nopode, por si mesma, assegurar que o cri-ticismo filosfico cumpra as condiestericas requeridas para fornecer umafundamentao coerente do discurso dosdireitos humanos. Para isso, seria neces-srio mostrar como a crtica criticistada razo preserva a noo de valor apso criticismo da metafsica.. Aqui apenasdiremos provisoriamente, que, se areferncia aos valores ainda possvelno quadro de uma tal crtica da razo, precisamente na medida em que a crticade Kant incompleta. Se, na verdade, avalorizao do Belo (e portanto do Bom) pensvel mediante a Crtica da Fa-culdade de Julgar, porque as ideiasmetafsicas, uma vez descnstruidas edes-objectivadas (no que se refere ssuas pretenses ontolgicas) preservamuma forma de legitimidade aps talcrtica. Embora criticadas no que se re-fere ao seu possvel valor de verdade, sua capacidade ilusria de constituiremo real, o seu significado mantm-se pre-servado em virtude das exigncias pura-mente subjectivas que so caracters-ticas de cada sujeito humano, e por con-sequncia na capacidade das suas ideiasde regularem a subjectividade efectiva,terica ou prtica.

    De modo algum estamos a exigir queestas sugestes necessariamente alu-sivas e incompletas sejam suficientespara garantir a possibilidade de esta-belecer o criticismo como a "filosofia dosdireitos humanos". Para isto, ter-se-iaque mostrar que as doutrinas do direitode Kant e de Fichte tambm conseguemreferir uma noo no ingnua de hu-manidade, uma noo do "homem en-quanto tal", de que, como vimos, o dis-curso dos direitos humanos carece paraexistir. Um tal exerccio teria que mos-trar, primeiro, que em Sobre aEducao,Kant pe de parte todas as concepesingnuas de homem, uma vez que explicaclaramente que no se pe a questo deuma natureza humana e, portanto, deuma essncia da humanidade, definida

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  • concptualmente. Em segundo lugar,ter-se-ia que mostrar que, apesar desta"desconceptualizao" do homem, anoo de humanidade retida comoideia reguladora, com um valor de sig-nificado, ou como Kant afirma, como umvalor simblico. E contudo o registo desteestatuto simblico da ideia de "huma-nidade" no discurso criticista no poderesolver todos os problemas porque issosignificaria entrar em detalhes (e di-ficuldades) sobre a teoria geral kantianado esquematismo [da razo], de que osimbolismo apenas um caso especial.Sobretudo, seria necessrio. deter-minar o impacte real desta deslocaode nvel da verdade ou conceito, para ode significado ou smbolo. Ser estadeslocao suficiente para garantir o"abandono" terico do discurso meta-fsico sobre o "homem enquanto tal"? E,em termos prticos, ser que este dis-curso preserva a possibilidade dereferncia a um "homem" cujos direitospossam ser concretamente defendi-dos?

    Estas so certamente as principaisquestes que mostram a carncia destetrabalho e que podem conduzir a inves-tigao para alm de um simples re-gresso letra dos textos kantianos oufichteanos. Parece-nos, contudo, quequem no fr inspirado pela crtica cri-ticista da razo, pela sua conservaodo que permanece da metafsica aps ocriticismo, expe-se a no conseguir fun-damentar as referncias aos valores e ideia de "homem". Sem isto, o apelo aosdireitos humanos permanece eterna-

    mente infundamentado e, literalmente,sem sentido.

    1.Referimo-nos definio de humanismopor Heidegger. Na sua Carta sobre o Hu-manismo, ele chama-a a concepo do real, por-quanto toma o homem enquanto tal como im-portante, e, ao tornar o eu humano fundante,implica a metafsica da subjectividade.

    2.Ver, por exemplo, Marcel Gauchet, "Lesdroits de l 'homme ne sont pas une politique",Le Dbat (Juillet -Aot 1980) e Claude Lefort,"Droits de l'homme en politique", Libre, 7(1980).

    Leo Strauss, Natural Right and History,Chicago, 1953.

    4. Aqui, o termo "historicismo" utilizadono sentido de Popper. (Ver Karl R. Popper, TheOpen Society and Its Enemies, London, 1945).Mas claro que o historicismo criticado porPopper tambm implica o historicismo no sen-tido atacado por Strauss. Se tudo na histriase manifestou historicamente, tudo necessriocomo momento do processo histrico, e assimno pode existir uma norma transcendentepara julgar o real: por consequncia, todas asnormas so em si mesmas para ser pensadascpmo histricas e o seu aparecimento apenasum mero momento do processo. Atingimos,assim, o conceito straussiano de historicismocomo relativismo.

    s. Leo Strauss analisou as vagas sucessivasatravs das quais o "dever-ser" foi eliminado nopensamento poltico moderno. Ver o seu "Astrs Vagas de Modernidade", emPolitical Phi-losophy: Six Essays by Leo Strauss, India-napolis, 1975.

    s Estamos, obviamente, cientes de obrasrecentes que procuraram - muitas vezes comxito - "revalorizar" o hegelianismo (tais comoJoachimRitter ouEric Weil), e que apresentamHegel a atacar as injustias de um modelo po-ltico ou jurdico particular, por exemplo, oDireito Romano ou o Terror. Tambm estamoscientes de passagens na obra de Hegel quecriticam o positivismo jurdico da Escola His-trica. bem conhecido que Hegel no se via asi mesmo nem como jusnaturalista nem comopositivista. Contudo, como Habemas mostrou

    em Theory and Practice, Boston, 1973, aindaverdade que, em Hegel, a denncia da injustia a substncia da histria, que a prpria his-tria que desempenha o papel de autoridadecrtica em relao positividade. Por outraspalavras, a histria que critica a histria, eno o direito que critica o direito.

    Michel Villey, Philosophie du droit, Paris,1975, vo1.I, p.177.

    8 Ver de Philippe Reynaud, "Le sociologuecontre le droit", Esprit, Mars, 1980, pp.83-93.

    9 . Sobre esta anttese entre Hegel eHeidegger no que se refere ideia de histria,ver O Princpio de Razo de Heidegger.

    10,Ver a Carta sobre Humanismo. Ver tam-bm, de Luc Ferry e Alain Renaut, "La dimen-sion thique dans la pense de Heidegger (deHeidegger Kant)," in Nachdenken berHeidegger, Hildesheim, 1980, pp.36-54; "Laquestion de 1'thique aprs Heidegger," in Lesfins de l'homme, Paris, 1981.

    11,Sobre este "historicismo existencialista"ver de Luc Ferry, "De la critique del 'historicisme la question du droit", in Rejouer le politique,Paris, 1982,

    12. Sobre o significado de Geschichte, Ges-chick e Schicksal, ver O Princpio de Razo. Aafirmao "cada poca tem a sua prpria ne-cessidade" vem na obra de Heidegger, Nietzsche,vol.2. Ia parte.

    1a . Martin Heidegger, Introduo Me-tafsica.

    14 . Sobre a articulao a desenvolver entreesttica e dialctica, ver de Luc Ferry e AlainRenaut, "D'un retour Kant, " Ornicar, 1980,reeditado no nosso Systme et critique, Bru-xelles, 1985.

    1s Ver o apndice dialctica transcenden-tal. Para um esboo um pouco menos esque-mtico deste argumento, ver a concluso donosso "La question de 1 'thique aprs Hei-degger."

    1s , Fichte repete este tema nos seus Prin-cpios do Direito Natural: "cada animal o que, apenas o homem nada originalmente". So-bre este ponto, vera introduo deAlexis Philo-nenko edio francesa deSobre a Educao,de Kant,(Rflexions sur l'ducation, Paris, 1970).

    GEPOLIS

    0 GEPOLIS est integrado no IIAIC (Instituto Integrado de Apoio Investigao Cientfica)e no Departamento de Filosofia da Faculdade de Cincias Humanas da UCP. coordenador eresponsvel pela rea da Filosofia da Poltica o Prof. Doutor Mendo Castro Henriques; pelaFilosofia da Religio o Prof. Doutor Manuel cia Costa Freitas e o Dr. Artur Pires Moro; pela

    Filosofia da tica o Prof. Doutor Joaquim de Sousa Teixeira; Secretrio o Dr. Amrico Pereira.O Gabinete integra ainda a colaborao cientfica dos mestrandos-bolseiros Antnio Campeio

    Amaral, Elsio Gala e Manuel Silvestre (Bolseiros JNICT), da mestranda Rosa Santos e dolicenciado-investigador Carlos Gomes

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