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Pense no Garfo! Uma História da Cozinha e de como Comemos - Bee Wilson.pdf

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Uma viagem pela cozinha ao longo dos tempos, revelando a história oculta de objetos cotidianos sobre os quais raramente pensamos – e sua influência sobre o que, e como, comemos! Recebida com entusiasmo pela crítica especializada inglesa e americana, essa é uma irresistível história cultural das nossas cozinhas unindo história, ciência, antropologia e gastronomia. Os primeiros potes de barro, por exemplo, possibilitaram a invenção da sopa, permitindo que mais indivíduos, mesmo sem dentes, chegassem à idade adulta. A escassez de lenha fez com que as refeições orientais viessem a ser preparadas em pequenos pedaços, que cozinham mais rapidamente, demandando menos combustível para o fogo. O hoje prosaico garfo, usado desde tempos remotos no preparo das refeições, só na era moderna passou à mesa – e modificou os dentes da aristocracia. A premiada jornalista de culinária Bee Wilson nos oferece um texto fluente e apetitoso e nos mostra que os utensílios usados para cozinhar moldam o que comemos (e vice-versa), mas também transformam a maneira como consumimos nossos alimentos e como pensamos sobre eles.

Introdução

UMACOLHERDE PAU–umdosmaisconfiáveisequeridosutensíliosdecozinha–pareceoopostode“tecnologia”,nosentidoemqueapalavracostumaserentendida.Nãoligaedesliganemfazbarulhosengraçados.Nãotemmarcaregistrada nem garantia. Não há nada futurista nem reluzente nem bemboladonela.No entanto, olhemais atentamente para uma de suas colheres de pau

(presumoquevocê tenhapelomenosuma,porquenuncaviumacozinhaquenãoastivesse).Sintaatextura.Éumacolherprofissionalproduzidaemsérie numa fábrica, ou uma peçamais densa, entalhada por um artesão?Agora observe o formato. É oval ou redonda? Vazada ou compacta?Côncavaouachatada?Talveztenhaumpedacinhopontudonumdoslados,paraalcançaroscantosdapanela.Podeserqueocabosejaextracurto,paraserusadoporumacriança,ouextralongo,paradarmaissegurançaàmãoacima da panela quente. Inúmeras decisões – econômicas e sociais, bemcomo relativas ao formato e à engenharia aplicada – terão entrado nacriaçãodesseobjetoeafetarão,porsuavez,amaneiracomooutensílionospermite cozinhar. A colher de pau é uma parceira silenciosa em tantasrefeiçõesquenãolhedamosojustovalor.Nãolhereconhecemosoméritopelosovosquemexeu, o chocolatequeajudouaderreter, as cebolasqueimpediudequeimarcomumaviradarápida.

A colher de pau não tem uma aparência de especial sofisticação –tradicionalmente,eraoferecidacomoprêmiodeconsolaçãoemconcursos–,mastemaciênciaaseulado.Amadeiranãoéabrasivae,porisso,égentilcom as panelas – você pode raspá-las semmedo de ferir a superfície demetal.Nãoéreagente:vocênãoprecisasepreocuparcomapossibilidadedequeeladeixeumsabormetálicooudequesuasuperfíciesedegradeemcontato com a acidez de frutas cítricas ou tomates. Também é mácondutoradecalor,razãopelaqualvocêpodemexerumapaneladesopaferventecomumacolherdepausemqueimarasmãos.Noentanto,maisdoque por sua funcionalidade, cozinhamos com colheres de pau porquesempre o fizemos. Elas são parte de nossa civilização. Os utensílios sãoinicialmente adotados por atenderem a uma dada necessidade ouresolverem um problema particular, mas, com o tempo, aqueles quesentimosprazeremusarsãodeterminadossobretudopelacultura.Naeradas panelas de aço inoxidável, podemos usar uma colher de metal paramexer a comida sem destruir os recipientes,mas por algummotivo issopareceerrado.Osângulosrígidosdometalamassamoslegumespicadoseocabonãoficatãojeitosonamãoenquantoosmexemos.Acolherdemetalproduzumtilintardesagradável,emcontrastecomasbatidinhassuavesdamadeira.Na atual era do plástico, seria de se esperar que já tivéssemos nos

habituado a mexer as panelas com espátulas sintéticas, especialmenteconsiderandoqueascolheresdepaunãosedãobemcomlava-louças(apósmuitaslavagens,tendemaamolecerearachar),masemgeralnãoéoqueacontece.Recentemente,viumprodutobizarronumalojadeutensíliosdecozinha:uma“colherdepaudesilicone”,àvendaporoitovezesopreçodeuma colher de pau comum. Eram colheres de cozinha de coresespalhafatosas,feitasdeplásticopesadoecomformatodecolheresdepau.Exceto pela forma, não havia nada “de pau” nelas. Mas os fabricantesintuíramqueprecisavamaludiràmadeirapara conquistarumespaçononossocoraçãoenasnossascozinhas.São inúmeras as coisas que presumimos como dados corriqueiros ao

cozinhar:mexemososalimentoscomcolheresdepau,mascomemoscomcolheres demetal (antigamente, também comíamos com as demadeira);temossólidasopiniõessobreosalimentosquedevemserservidosquenteseosquedevempermanecercrus.Uns ingredientesnós fervemos;outros,congelamos,fritamosoumoemos.Praticamosmuitosdessesatosdeformainstintiva,ouobedecendoareceitas.Paraquempreparacomidaitaliana,é

claroqueorisotodevesercozidocomumaadiçãogradativadelíquidos,aopassoqueomacarrãoérapidamente fervidonumexcessodeágua–masporquê?aAmaioriadosaspectosdaculináriaémuitomenosóbviadoquepareceaprincípio,equasesempreexisteoutramaneiradefazerascoisas,como ocorre com os utensílios que não foram adotados, qualquer quetenhasidoarazão–obatedordeovosmovidoaágua,oespetomagnéticopara assar. Foram necessárias inúmeras invenções, grandes e pequenas,para chegarmos às cozinhas bem-equipadas que temos hoje, nas quaisnossa velha amiga de tecnologia atrasada, a colher de pau, junta-se abatedeiras, freezers e fornos de micro-ondas; mas essa história é quaseinteiramentedesconhecidaedesprezada.As histórias tradicionais da tecnologia não prestam muita atenção à

comida. Tendem a se concentrar nos grandes avanços industriais emilitares: rodas e navios, a pólvora e o telégrafo, os aviões e o rádio.Quando se menciona a comida, em geral é no contexto da agricultura –sistemasdecultivoe irrigaçãodaterra–,enãodotrabalhodomésticodacozinha. Mas há tanta inventividade num quebra-nozes quanto numprojétil.Muitas vezes, os inventores estão trabalhando em algo para usomilitaredescobremquesuamelhorserventiaénacozinha.HarryBrearleyfoiuminglêsque,em1913, inventouoaço inoxidávelcomoummododeaperfeiçoar o cano de armas de fogo – e, sem querer, aperfeiçoou ostalheresdomundo;onorte-americanoPercySpencer,criadordofornodemicro-ondas, estava fazendoum trabalho sobre sistemasnavais de radarquandotopou,poracaso,comummétodointeiramentenovodecozinhar.Nossas cozinhasdevemmuito aobrilhantismoda ciência, emuitas vezesquemexperimentamisturasnachapadofogãonãoestálongedoquímicono laboratório: pomos vinagre no repolho roxo para fixar a cor ebicarbonatodesódionoboloparacontrabalançaraacidezdolimão.Éumerro,porém,suporqueatecnologiasejaapenasaaplicaçãodopensamentocientífico. Ela é algo mais básico e mais antigo. Nem todas as culturasdispuseramdeumaciênciaformal–essetipodeconhecimentoorganizadosobreouniversoquecomeçoucomAristótelesnoséculoIVa.C.Omodernométodo científico, no qual os experimentos fazem parte de um sistemaestruturado de observação, previsão e hipótese, data do século XVII; atecnologiaculináriaparasolucionarproblemasremontaamilharesdeanosatrás. Desde os primeiros seres humanos da Idade da Pedra, cortandogrosseiramente os alimentos crus com lascas de pedra afiadas, sempreusamos a inventividade para conceber maneiras melhores de nos

alimentarmos.Apalavra“tecnologia”vemdogrego.Tékhnésignificaarte,habilidadeou

artemanual,e logia éoestudodealgo.A tecnologianãoéuma formaderobótica,masalgomuitohumano:acriaçãodeferramentasetécnicasqueatendam a certas necessidades na nossa vida. Ora o termo “tecnologia”significaaspróprias ferramentas,ora se refereao saber inventivoqueaspossibilitou,ouaofatodeaspessoasusaremessasferramentasespecíficas,enãooutras.Adescobertacientíficanãodependedousoparatervalidade;atecnologia,sim.Quandoumequipamentodeixadeserusado,eleperdeavalidade. Por mais bem-pensada que tenha sido a sua concepção, umbatedordeovossóatingeplenamenteoseuobjetivoquandoalguémopegaebateovos.Estelivroexploracomoosimplementosqueusamosnacozinhaafetam

aquiloquecomemos,amaneiradecomermoseoquesentimosarespeitodoqueingerimos.Acomidaéograndeuniversalhumano.Aúnicacertezaquetemosnavidaéamorte,dizoprovérbio.Naverdade,eledeveriadizeramorteeacomida.Nãohácomofugirdacomida,queéumcombustível,um prazer superior e uma necessidade básica – aquilo que confere umpadrãoaosnossosdiasounoscorróicomsuafalta.Osanoréxicospodemtentar escapardela,mas, enquanto vivemos, a fome é inescapável. Todosnóscomemos.Noentanto,asmaneirasdeatendermosaessanecessidadevitalhumanatêmvariadodrasticamenteemdiferentesépocaselugares.Eas coisas que fazem a diferença mais significativa são os utensílios queusamos.Quase todos os dias, o meu desjejum consiste em café, torradas,

manteiga,geleiadelaranjaesucodelaranja,quandoascriançasaindanãobeberam tudo. Descrita assim, comomeros ingredientes, é uma refeiçãoquepoderiafazerpartedequalquerépocanosúltimos350anos.OcafééconsumidonaInglaterradesdemeadosdoséculoXVII;aslaranjasdosucoe da geleia, desde 1290. Tanto o pão torrado quanto a manteiga sãoantiquíssimos.Masoproblemaestánosdetalhes.Parafazerocafé,nãoofervoporvinteminutosedepoisoclarificocom

ictiocola(umaformadecolágenoextraídadabexiganatatóriadospeixes),como faria em 1810; não o passo num “filtro científico Rumford”, comofaziamalgunsem1850;nãoopreparonumajarracomumacolherdepau,vertendoáguafriasobreosgrãosmoídoseestalandodequentes,parafazê-los caíremno fundo, àmaneira eduardiana; nemnuma cafeteira elétrica,como talvez ainda fizesse, semorasse nos Estados Unidos; não derramo

águafervendosobreumacolheradaamargadecaféinstantâneo,comonostempos de estudante; e não costumo usar a prensa francesa, embora otenha feito na década de 1990. Sou uma fanática por café do início doséculoXXI(emboraaindanãotãofanáticaapontodejáterinvestidonumasofisticadíssima cafeteira japonesa a vácuo). Moo meus grãos (comcertificação Fairtrade) num moedor elétrico, até ficarem finíssimos, epreparoumflatwhite(caféexpressocomumacamadadeleitevaporizadopor cima) usando uma máquina de cappuccino e toda uma gama deutensílios(medidordecafé,socadorparamáquinadecafé,leiteiradeinox).Nasboasmanhãs,apósunsdezminutosdeesforço,atecnologiafuncionaeocaféeo leitese fundemnumadeliciosabebidaespumante.Nasmanhãsruins,elesexplodemportodoopiso.As torradas, a manteiga e a geleia de laranja eram conhecidas e

apreciadas pelos elisabetanos. Mas Shakespeare nunca provou torradasiguaisàsminhas,cortadasdeumpãodetrigointegralfeitoemcasanumamáquina de pão elétrica, tostadas numa torradeira elétrica para quatrofatiaseservidasnumpratodeporcelanabrancaquepode irà lava-louça.Tambémnãoconheceuosprazeresdaspreadablebutterbedasgeleiascomaltoteordefrutas,ambasindicadorasdapresençadeumageladeiragrandee funcional em minha casa. Além disso, a geleia de Shakespeareprovavelmente seria feita demarmelo, e não de laranja.Minhamanteiganãoérançosanemdurademais–comomelembrodeseremquasetodasasmanteigas quando eu era criança, nas décadas de 1970 e 1980. Eu aespalhocomumafacadeaçoinoxidável,quenãodeixaqualquervestígiodesabor metálico nem reage quimicamente com os açúcares das frutas dageleia.Quantoaosuco,atecnologiaportrásdelepareceseramaissimplesde

todas–pegaraslaranjaseespremerosuco–,masé,provavelmente,amaiscomplicada. Ao contrário da dona de casa eduardiana, que espremia aslaranjasnumespremedorcônicodevidro,costumoservirmeusucodiretode uma embalagem Tetra Pak. Embora os ingredientes listem apenaslaranjas, o suco terá sido feito por meio de um conjunto espantoso detécnicas industriais, no qual as frutas são comprimidas com enzimasocultas, filtradas com clarificantes ocultos, depois pasteurizadas eresfriadas e transportadas de umpaís para outro, tudo para o prazer domeucafédamanhã.Ofatodeeunãofranzirabocacomoamargordosucose deve, em parte, a uma inventora chamada Linda C. Brewster, que, nadécadade1970,registrouquatropatentesdeummodode“desamargar”o

sucodelaranja,reduzindoapresençadaácidalimonina.

Essa refeição específica só poderá ser consumida dessa maneiraespecíficaduranteumbrevíssimomomentodahistória.Osalimentosqueingerimos revelam a época e o lugar em que vivemos. Emmedida aindamaior,porém,omesmofazemosutensíliosqueempregamosparaprepará-los e consumi-los. Dizem-nos com frequência que vivemos numa “eratecnológica”. Em geral, isso é um modo de dizer que temos muitoscomputadores. Mas toda época tem sua tecnologia, que não precisa serfuturista. Pode tratar-se de um garfo, uma panela ou uma simples xícaramedidora.Àsvezes,osutensíliosde cozinha sãoapenasummododeaumentaro

prazer de comer. Mas também podem ser uma questão urgente desobrevivência. Os dados revelados por esqueletos sugerem que antes daadoçãode recipientes para cozimento, há cerca de 10mil anos, ninguémchegariaàidadeadultasehouvesseperdidotodososdentes.Amastigaçãoera uma habilidade necessária. Quem não pudessemastigarmorreria defome. Os recipientes de cerâmica permitiram que nossos ancestraispreparassemalimentosdeconsistênciabebível,comosopasemingaus,quepodem ser ingeridos semmastigar. Pela primeira vez, começamos a veresqueletosdeadultossemumúnicodente.Apanelasalvouessaspessoas.Écomumastecnologiasmaisversáteisseremasmaisbásicas.Algumas,

comoopilãoeosocador,perduramhámilharesdeanos.Opilãocomeçoucomoumaantigaferramentaparamoergrãos,masseadaptoucomsucessoàtrituraçãodequalquercoisa,desdeomolhopistou,naFrança,atéapastade curry, na Tailândia. Outros utensílios são menos flexíveis, como orefratário de argila para assar frango da década de 1970,c que esteve namoda por um breve período e foi acabar no lixo quando as pessoas se

cansaramdacomidaemquestão.Algunsutensílioseequipamentos,comocolheresefornosdemicro-ondas,sãousadosnomundointeiro.Outrossãomuitoespecíficosdedeterminados lugares, comoodolsot,umapaneladepedra, estalando de quente, na qual os coreanos servem um prato emparticular:obibimbap–umamisturadearrozpegajoso,legumescortadosemfatiasfinaseovocruoufrito;acamadainferiordearrozficacrocantecomocalordadolsot.Este livro trata de aparelhos de alta tecnologia, mas também de

utensíliosetécnicasnosquaistendemosanãopensarmuito.Atecnologiadosalimentoséimportante,mesmoquandomalnotamosqueelaexiste.Dofogoemdiante,háumatecnologiaportrásdetudoqueingerimos,querareconheçamos, quer não. Por trás de cada pão há um forno. Por trás datigeladesopaháumapanelaeumacolherdepau(amenosqueasopasaiadeumalata,casoemquehaveráumatecnologiacompletamentediferente).Portrásdecadaespumarequintadahaveráumsifãocarregadocomóxidonitroso.OelBulli,deFerranAdrià,naEspanha,queatéseufechamentoem2011foiorestaurantemaisfamosodomundo,nãopoderiaterproduzidoseu cardápio sem panelas de cozimento a vácuo e centrífugas,desidratadores e aparelhos Pacojet. Muita gente acha esses novosequipamentos assustadores. À medida que foram surgindo novastecnologiasculinárias,semprehouvevozesparasugerirqueasformasdepreparoàmodaantigaerammelhores.Cozinheiras e cozinheiros são seres conservadores, mestres de atos

silenciososerepetitivosquepoucosealteramdeumdiaparaoutro,oudeano para ano. Culturas inteiras se constroem em torno desta ou daquelaforma de cozinhar. Uma verdadeira refeição chinesa, por exemplo, nãopodeserpreparadasemadao, a facaem formatodecuteloquereduzosingredientesapedacinhospequenoseuniformes,esemawok,queservepara saltear os alimentos. O que veio primeiro: o salteado ou a wok?Nenhum dos dois. Para chegar à lógica da culinária chinesa, temos deretroceder ainda mais e pensar no combustível usado para cozinhar: arefeição preparada rapidamente na wok foi produto, de início, da lenhaescassa.Comotempo,entretanto,osutensílioseacomidauniram-seatalpontoqueéimpossíveldizerondecomeçaumeterminaooutro.É natural que os cozinheiros vejam as inovações da cozinha como um

ataquepessoal.Aqueixaésempreamesma:comosseusmodismos,vocêsestão destruindo os pratos que conhecemos e apreciamos. Quando arefrigeraçãocomercialtornou-sepossível,nofimdoséculoXIX,elatrouxe

grandesvantagensparaosconsumidoreseaindústria.Asgeladeiraseramespecialmenteúteisparaguardarsubstânciasperecíveis,comooleite,queantes tinham sido a causa de milhares de mortes anuais nas grandescidades do mundo. A refrigeração também beneficiou os comerciantes,criando intervalos mais longos para eles venderem seus alimentos. Noentanto,houveumpavorgeneralizadodessanovatecnologia,porpartedevendedoresecompradores.Osconsumidoresdesconfiavamdosalimentosque tinham sido guardados sob refrigeração. Os feirantes também nãosabiamoquefazercomessenovotipodefrio.NaParisdadécadade1890,no mercado de Les Halles, os vendedores achavam que a refrigeraçãoestragaria seus legumes e verduras. E, em certa medida, tinham razão,como sabe qualquer pessoa que tenha comparado um tomate àtemperatura ambiente com outro tirado da geladeira: o primeiro(presumindo-se que seja de boa qualidade) é suculento e de fragrânciaadocicada; o outro é seco, metálico e sem sabor. Toda nova tecnologiarepresentaumatroca:algoseganha,masalgotambémseperde.Muitasvezes,oqueseperdeéoconhecimento.Nãoéprecisotergrande

habilidadenomanejodafacaquandosetemumprocessadordealimentos.Os fogões a gás e elétricos e o forno demicro-ondas significam que nãoprecisamossabercomoprepararofogoemantê-loaceso.Atécercadecemanosatrás,cuidardofogoeraumadasprincipaisatividadeshumanas.Issoacabou (e é bomque tenha acabado, se pensarmos em todas as tediosashoras que consumia, diariamente, e em todas as outras atividades queimpedia).Aquestãomaioré seaexistênciade tecnologias culináriasquerequerem apenas um mínimo de contribuição humana têm levado àextinção de habilidades culinárias. Em 2011, uma pesquisa com 2 milingleses de 18 a 25 anos constatou quemais da metade declarou haversaídodecasasemsaberprepararnemmesmoumareceitasimples,comoum espaguete à bolonhesa. Os micro-ondas, somados aos alimentossemiprontos,oferecemaoindivíduoaliberdadedepodersealimentarcommeiadúziadetoquesnumbotão.Masissonãoéumavançotãobomassimseeleperder todaacompreensãodoquesignificaprepararumarefeiçãoparasi.Àsvezes,noentanto,éprecisohaverumanovatecnologiaparanosfazerapreciaraantiga.Saberquepossoprepararummolhoholandêsemtrinta segundos, no liquidificador, aumenta o prazer de fazê-lo à modaantiga, numa vasilha em banho-maria e uma colher de pau, juntando amanteigaàsgemaspedacinhoporpedacinho.Oequipamentodecozinhapodeparecersemimportância,comparadoà

história dos próprios alimentos. Muito bem que façamos questão dassutilezas dos arranjos de mesa e das formas para gelatina, mas o queimportaissodiantedafomebásicadepão?Talvezissoexpliqueporqueosutensílios de cozinha têm sido tão negligenciados nas histórias daalimentação. A história da culinária tornou-se um assunto badalado nasduas últimas décadas; mas o foco dessas novas histórias, com algumasexceções notáveis, tem incidido muito mais nos ingredientes do que natécnica:aquilo quepreparamos, emvezdecomo o preparamos. Já houvelivros sobre as batatas, o bacalhau e o chocolate, bem como histórias delivros de cozinha, restaurantes e cozinheiros. A cozinha e seus utensíliosficammaisoumenosausentes–e,comoresultado,faltametadedahistória.Ela é importante: alteramos a textura, o sabor, o teor nutritivo e asassociações culturais dos ingredientes pelo simples uso de utensílios etécnicasdiferentesemseupreparo.Além disso, nós, seres humanos, fomos modificados pela tecnologia

culinária –pelocomo dos alimentos, assim como peloquê. Não digo issoapenasnosentidodeque“acozinhadosmeussonhosmudouminhavida”,embora seja verdade que certas mudanças nos utensílios de cozinhacaminharam de mãos dadas com vastas mudanças sociais. Pensemos narelação entre os aparelhos que economizam trabalho e os empregadosdomésticos. O que temos aí é uma história de estagnação tecnológica.Houve pouquíssimo interesse em eliminar a rotina extenuante do ato decozinharduranteosmuitosséculosemqueosricosdispuseramdemãodeobraabundanteparaarcarcomofardodesuascozinhas.Osprocessadoreselétricoseosliquidificadoressãoutensíliosverdadeiramentelibertários.JánãoéprecisoficarcomosbraçosdoendoparafazerquibesnoLíbano,oupurêdealhocomgengibrenaÍndia.Inúmerasrefeiçõesantestemperadaspeladorestãohojelivresdeproblemas.Osutensíliosdecozinhanosmodificaramnumsentidomaisfísico.Háum

bom número de indícios sugestivos de que a atual crise de obesidade écausada,emparte,nãopeloquecomemos(emboraissotambémsejavital,éclaro),maspelograudeprocessamentopréviodenossosalimentos,antesde os ingerirmos. Às vezes, isso é designado pela expressão “ilusão dascalorias”. Em 2003, cientistas da Universidade de Kyushu, no Japão,alimentaramumgrupoderatoscombolinhasderaçãoduraseoutrogrupocom bolinhasmaismacias. Em todos os outros aspectos, as rações eramidênticas:osmesmosnutrientes,asmesmascalorias.Após22semanas,osratos com a dietamacia tinham se tornado obesos, o quemostrou que a

textura é um fator importante no aumento do peso. Outros estudos,envolvendo pítons (que comiam carnemoída e cozida versus carne cruaintacta), confirmaram esses resultados. Ao ingerirmos alimentos maisduros de mastigar e menos processados, gastamos mais energia paradigeri-los,demodoqueonúmerodecaloriasrecebidaspelocorpodiminui.Vocêabsorverámaiscaloriasdeumpurêdemaçãcozido lentamentequede uma maçã crua e crocante, ainda que, no papel, as calorias sejamidênticas.Osrótulosdosalimentos,quecontinuamaexibirasinformaçõesnutricionais em termos rudimentares de calorias (de acordo com aConvençãoAtwatersobrenutrição,elaboradanofimdoséculoXIX),aindanãoregistraramisso,mastemosaíumexemploclarodecomoatecnologiadaculináriaéimportante.Emmuitossentidos,ahistóriadosalimentosé ahistóriada tecnologia.

Não há culinária sem fogo. A descoberta de como controlar o fogo e aconsequenteartedaculináriapermitiramqueevoluíssemosdesímiosparao Homo erectus. Os primeiros caçadores-coletores podiam não possuireletrodomésticos e grelhas sensacionais que reduzissem a gordura, mas,ainda assim, tinham sua versãoda tecnologiade cozinha.Tinhampedrascom que bater e pedras afiadas com que cortar. Dotados de mãoshabilidosas, deviam saber colher frutas secas e frutas silvestrescomestíveis,semseenvenenaremnemserempicados.Iambuscaromelemfendaselevadasnasrochaseusavamconchasdemoluscospararecolheragorduraquepingavadafocaaoassar.Podiamcarecerdeoutrascoisas,masnãodeengenhosidade.Estelivrocontaahistóriadecomodominamosofogoeogelo,decomo

manejamos batedores, colheres, raladores e espremedores, pilões esocadores,de comousamosasmãoseosdentes, tudoemnomede levarcomidaàboca.Háumainteligênciaocultaemnossascozinhas,eela afetanossomododecozinharedecomer.Estenãoéumlivrosobreatecnologiadaagricultura(háoutrosestudosaesserespeito).Tambémnãotemmuitoavercomatecnologiadacomidadosrestaurantes,quetemseusprópriosimperativos.Concerneaosustentocotidianodonossoambientedoméstico:aosbenefíciosqueosdiferentesutensíliostrouxeramparanossaculinária–eaosriscos.Éfácilesquecermosqueatecnologiadacozinhaaindaéumaquestãode

vida ou morte. Os dois mecanismos primários da culinária – cortar eaquecer – são repletos de perigos. Durante a maior parte da históriahumana, cozinhar foi uma tarefa eminentemente sinistra, um modo de

brincar com o perigo num espaço confinado, enfumaçado e suarento – eaindaéassim,emgrandepartedomundo.Afumaça,sobretudoaquevemdefogõesalenhaemrecintosfechados,mataummilhãoemeiodepessoastodos os anos no mundo em desenvolvimento, segundo a OrganizaçãoMundial da Saúde. As lareiras abertas para cozinhar foram uma grandecausa de mortalidade na Europa, também, durante séculos. As mulherescorriamumriscoadicional,dadaacombinaçãoprecáriadesaiasrodadas,mangas compridas e fogos sobre os quais eram pendurados caldeirõesfervilhantes. Nas casas ricas, até o século XVII, os mestre-cucasprofissionaiseramhomens,quasesempre,enãorarotrabalhavamnusouapenascomaroupadebaixo,porcausadocalorescaldante.Asmulheresficavamrestritasàleiteriaeàcopa,ondesuassaiasnãocriavamomesmoproblema.Umadasmaioresrevoluçõesnacozinhabritânicaveiocomaadoçãode

chaminés fechadas, feitas de tijolos, e de grades de ferro fundido para ofogo, no decorrer dos séculos XVI e XVII. Todo um novo conjunto deimplementossurgiuparalelamenteaessenovocontroledafontedecalor:derepente,acozinhadeixoudeserumlugartãosujoeengordurado,easpanelas reluzentes de latão e estanho assumiram o lugar do velho ferrofundido e negro. As consequências sociais também foram enormes. Asmulherespuderamfinalmenteprepararcomidasematearfogoaoprópriocorpo.Nãofoiporcoincidênciaque,maisoumenosumageraçãodepoisdeos fogões com forno se tornarem a norma, publicaram-se os primeiroslivrosdecozinhaescritospormulhereseparamulheresnoReinoUnido.Osutensíliosdecozinhanãosurgemisolados,masemgrupos.Inventa-se

umimplementoeoutrossefazemnecessáriosparaousoeamanutençãodoprimeiro.Onascimentodofornodemicro-ondasdeuorigemà louçaeao papel-filme próprios para micro-ondas. As geladeiras criaram anecessidadesúbitadebandejasdecubosdegelo.Asfrigideirasdematerialantiaderente exigem espátulas que não arranhem. A antiga culináriapreparadaemlareirasvinhacomumaprofusãodetecnologiascorrelatas:trempes ou suportes metálicos para impedir que as toras de lenharolassem para a frente; grelhas para tostar o pão; aceleradores (grandescoifasdemetalcolocadasdiantedofogoparaapressarocozimento);váriostipos de espetos e assadores, para girar a carne ao assar; e conchas,escumadeiras e garfos de cabos extremamente compridos. Com o fim dacozinha baseada na lareira, todos esses utensílios associados tambémdesapareceram.

Paracadaformadetecnologiaculináriaqueperdurou–comoopilãoeosocador–inúmerasoutrasdesapareceram.Jánãosentimosnecessidadedebilhasparasidraoudearmaçõescomganchosparapendurarosassados,garfosdecabolongoparaiçaracarneepanelasdecabotambémcomprido;nem de ganchos para pendurar panelas sobre o fogo ou pequenosrecipientes para salpicar açúcar ou canela em brioches, chamadosmuffineers, embora, em sua época, todos se afigurassem não maissupérfluos do que nossos galheteiros para azeite, nossos trituradoreselétricos de ervas e temperos ou nossas colheres para sorvete. Asengenhocas da cozinha proporcionam um fascinante vislumbre daspreocupações de qualquer sociedade que se examine. Os georgianosadoravamtutanoassado,e inventaramumacolherespecialparacomê-lo.Osmaiasesbanjavamtalentoartísticonascuiasemquesebebiachocolate.Sevocêderumavoltapornossaslojasdeartigosdecozinha,talvezconcluaque as coisas com que somos realmente obcecados no Ocidente, nestemomento,sãocaféexpresso,paninisecupcakes.Atecnologiaéaartedopossível.Émovidapelodesejohumano–sejao

defazerumcupcakemelhor,sejaosimplesdesejodepermanecervivo–,mas também pelos materiais e conhecimentos disponíveis numa dadaépoca.Acomidaenlatadafoiinventadamuitoantesquesepudesseusá-lacomfacilidade.NicolasAppertpatenteouseunovoprocessorevolucionáriodeenlatamentoem1812,eaprimeirafábricadeenlatadosfoiinauguradano bairro de Bermondsey, em Londres, em 1813. No entanto, seriamnecessáriosmaiscinquentaanosparaquealguémconseguisseinventarumabridordelatas.Écomumonascimentodeumanovaengenhocadarorigemaumacerta

maniaexagerada,atéanovidadeperderagraça.AbrahamMaslow,umgurudaadministraçãonoséculoXX,certavezdisseque,paraohomemquetemapenasummartelo,omundointeiropareceumprego.Omesmoacontecena cozinha. Para quem acabou de comprar um liquidificador, o mundointeiroparecesopa.Nemtodainvençãoculináriaéumaperfeiçoamentoóbviodoqueexistia

antes.Meusarmáriosdecozinhasãoumcemitériodepaixõespassadas:oespremedor de frutas elétrico que achei que mudaria minha vida, atédescobrir que não suportava limpá-lo; a panela elétrica de arroz quefuncionou perfeitamente por um ano e, de repente, começou a queimartudoquefazia;omaçaricocomque(assimimaginei)eucriariaumasériede crèmes brûlées elegantérrimos para jantares que nunca cheguei a

oferecer. Todos podemos pensar em exemplos de equipamentosmais oumenosinúteisdaculinária:acolherparafazerbolasdemelão,ofatiadordeabacate, o descascador de alho. Ao que só podemos responder: qual oproblemaemusaruma colher, uma facaouosdedos?Nossa culinária sebeneficiademuitaengenharianãoreconhecida,mas tambémhá inventosquemaiscriamdoqueresolvemproblemas,eoutrosquefuncionambem,masaumcustoparaoserhumano.É comum os historiadores da tecnologia citarem a primeira lei de

Kranzberg (formulada por Melvin Kranzberg num influente ensaio de1986): “A tecnologia não é boa nem má, e também não é neutra.” Issodecerto se aplica à cozinha. Os utensílios não são objetos neutros.Modificam-se coma evoluçãodo contexto social. Para o escravo romano,forçadoapassarhorasa fiomoendomisturasmuitoamalgamadasparaodeleitedoseusenhor,opilãoeosocadoreramumutensíliodiferentedoque é para mim: um objeto simpático com que faço molho pesto pordiversão,quandomedávontade.Emqualquerépoca,nãonecessariamenteobtemososutensíliosque–em

termosabsolutos–tornariamanossacomidamelhoreanossavidamaisfácil.Obtemosaquelespelosquaispodemospagareosquenossasociedadeaceita. Da década de 1960 emdiante,muitos historiadores destacaram aironia de o tempo gasto pelas norte-americanas no trabalho doméstico,inclusiveodecozinhar, tersemantidoconstantedesdemeadosdosanos1920, apesar de todos os aperfeiçoamentos tecnológicos lançados nomercado nessas quatro décadas. A despeito de todas as lava-louças,batedeiras elétricas e trituradores de lixo, as mulheres continuavam atrabalhar tanto quanto antes. Por quê? A historiadora Ruth SchwartzCowan,numlivroengajado,intituladoMoreWorkforMother(1983),notouque,emtermospuramentetécnicos,nãohaviaporqueosEstadosUnidosnão teremsistemasdecozinhascomunitárias, compartilhandoo trabalhode cozinhar entre várias famílias. Mas essa tecnologia nunca foi muitoexplorada, porque a ideiade cozinhaspúblicas é socialmente inaceitável:emgeral,osnorte-americanos–comoorestodenós–gostamdeviveremunidadesfamiliaresmenores,pormaisirracionalqueissopossaser.Osutensíliosde cozinha– sobretudoos sofisticadose carosoferecidos

noscanaisdevendasnatelevisão–prometemmodificarnossavida.Muitasvezes,porém,avidasemodificadeummodoquenãoesperávamos.Vocêcompraumabatedeiraelétricaquetornaincrivelmenterápidoefácilfazerbolos.Eassimachaquetemdefazerbolos,aopassoque,antesdecomprar

abatedeira,fazê-loseratãotrabalhosoquevocêsecontentavaemcomprá-los.Naverdade,portanto,abatedeiralhecustoutempo,emvezdepoupá-lo.Hátambémoefeitocolateraldeque,aoabrirespaçoparaabatedeira,você perdemais alguns preciosos centímetros da área livre que tinhanasuabancada,semfalarnashorasquegastarálavandoatigelaeaspeçaselimpando a farinha espirrada para todo lado enquanto a batedeirafunciona.Osimples fatodeumatecnologiaexistirnãosignificaquetenhamosde

usá-la. Não há quase nenhum utensílio tão fundamental que alguém, emalgumlugar,nãootenharejeitadocomoalgoque“nãovaleotrabalho”.Maséverdadequeamaioriadenossascozinhascontémmuitomaiscoisasdoque precisamos. Quando você atinge aquele ponto em que não consegueabrir a gaveta de utensílios, de tão abarrotada que ela está de rolos depastel, raladores e espátulas de peixe, é hora de descartar algumastecnologias. In extremis, um cozinheiro habilidoso consegue se arranjarmuitobemsemnadaalémdeumafacaafiada,umatábuademadeira,umafrigideira,umacolherealgumtipodefontedecalor.Mas você gostaria disso? Parte do que torna empolgante cozinhar é o

modo como essa eterna história de pôr comida na boca altera-sesutilmente, década após década. Daqui a uns dez ou vinte anos, tenhocertezadequeomeudesjejum terámudado, aindaqueeumeatenhaaomesmocafé com torradas,manteiga, geleia e sucode frutas.Comoantes,algumadastécnicasqueumdiapareceuperfeitaderepentepareceránãofuncionar.Jáestoucomeçandoamearrependerdamáquinadefazerpão–umobjetomuitofeio,queaindaporcimasemprecriaumburaconomeiodopão,deixadopelapá–evoltandoàpráticalow-techdecomprarumbompãode fermentaçãonaturalnapadaria,ou fazê-loàmão.Minhacafeteiraexpresso enfim quebrou, enquanto eu escrevia este livro, e acabei dedescobriraAeroPress,umacafeteiraincrível,manualebarata,quefazumcafé preto como tinta, usando a pressão do ar. Quanto à geleia, estoutentada a partir para a eletricidade e comprar umamáquina automáticaparafazê-las.Nomais,quemécapazdedizerquecafésdamanhãtãocômodosquanto

omeuaindaexistirãodaquiaalgunsanos?Talvezas laranjasatinjamumpreço impossível de pagar, à medida que as usinas eólicas foremsubstituindoasfazendasdecultivodecítricos,paraenfrentarascrescentesnecessidadesdeenergia.Talvezamanteigatomeomesmorumo(rezoparaque isso nunca aconteça), à medida que as terras da produção leiteira

forem desviadas para um uso mais eficiente, cultivando alimentosorgânicos. Ou talvez, na cozinha-tecno do futuro, todos consumamos“bacon cafeinado” e “toranja sabor bacon” no café da manhã, comoimaginouMattGroeningnumepisódiodeFuturama.

Uma coisa é certa: jamais dispensaremos a tecnologia culinária em si.Talheres comoos Sporkspodemaparecer e desaparecer, osmicro-ondaspodemganhareperderterreno,masaraçahumanasempreteráutensíliosdecozinha.Fogo,mãosefacas:essesnóssempreteremos.

aTalvezvocêresponda:porqueorisotoprecisa ficarencorpadoecremoso,aopassoqueamassaescorregadiasaiganhandoaoterpartedasuagomaretiradapelaágua.Masissoaindanãorespondeàpergunta.Amassapodeficarumadelíciaquandopreparadaàmodadorisoto,emparticularoorzo[ourisone], em formato de grãos de arroz, incrementado com o acréscimo de vinho e caldos. Domesmomodo,oarroznoestilorisotopodeficarótimocomumgrandeeúnicoacréscimodelíquidonocomeço,comonapaella.

bLiteralmente“manteigaquepodeserespalhada”:manteigaàqual foiadicionadoóleoouágua,oquefazcomqueelapermaneçacremosaemtemperaturasbaixas.(N.R.T.)c Conhecido como chicken brick, esse utensílio inglês é uma forma fechada de cerâmica nãoesmaltada,divididaempartessuperioreinferior,ovaladaealta,quecomportaumagalinhainteiraepermiteassá-laemaltatemperatura,semadiçãodegorduraouqualquerlíquido.(N.T.)

1.Panelas,frigideiraseafins

“Cozinha,panelinha,cozinha.”

IRMÃOSGRIMM,“Omingaudoce”,1819

“Oalimentofervidoévida,oalimentoassadoémorte.”

CLAUDELÉVI-STRAUSS,Aorigemdosmodosàmesa,1978a

APANELAQUEMAISUSOnãotemnadadeespecial.Compreinumapromoçãodeumjornal de domingo e recebi pelo correio, como parte de um jogo de dezpeças,nosprimórdiosdaminhavidadecasada,quandoteronossopróprioconjunto de panelas reluzentes, todas combinando – em contraste comojogo sortido de panelas lascadas de esmalte dos tempos de estudante –pareciamisteriosamenteadulto.Oconjuntoeradeaçoinoxidável.“Compreagora e economize X libras, e receba ainda uma leiteira grátis!”, dizia oanúncio. Foi o que fiz. E elas nos foram muito úteis, essas panelas.Chegamos até a usar a leiteira grátis pormuito tempo, para esquentar oleitedocerealmatinaldaminhafilha,apesardoinconvenientedelhefaltarum bico, o que às vezes fazia com que escorresse um pouco de leite nabancada. E então, umbelo dia, a alça caiu.Mesmo assim, demodo geral,foram panelas confiáveis. Passados treze anos, não consegui destruirnenhuma por completo. Elas resistiram a risotos queimados, ensopadosesquecidos e caramelos pegajosos.O aço inoxidável podenão conduzir ocalor tão bem quanto o cobre, pode não retê-lo tão bem quanto o ferrofundidoouobarroepodenãoser tãobonitoquantoo ferroesmaltado–maspreservasuacondiçãocomumasimpleslavagem.Fomosmuitobem-servidosporumapanela emparticular, de tamanho

médio, com tampa e duas alcinhas curvas. Sua denominação técnica écaçarola, creio, mas um termo melhor para designá-la seria o francêsfaittout,porqueelarealmentefaztudo.Vaiaofogoparaomingaudocafé

damanhãeparaoarrozdojantar.Jáconheceuamaciezdelicadadecremesearroz-doce,ocalorpicantedocurryeinúmerassopas,desdeocremedeagrião até um minestrone apimentado. É a minha panela do dia a dia.Pequena demais para fazer macarrão ou caldos, ela se encarrega dastarefasdefervuraemquenãopensoduasvezes.Ligarachaleiraelétrica;colocar a água na panela; acrescentar sal; adicionarbrócolis/vagens/espigasdemilho; tampar ounão, dependendodaminhadisposição;ferverporalgunsminutos;drenarnumescorredor–prontinho.Não há nada de desafiador nem inovador no processo. Os francesescostumam zombar dessa forma de preparo, chamando-a de método “àl’anglaise”,oquesabemosseruminsulto,dadooqueosfrancesespensamda comida inglesa. Um cientista francês, Hervé This, chegou a acusar ométodode“pobrezaintelectual”.Oscozinheirosfrancesespreferemrefogarlegumescomoacenouranumapequenaquantidadedeáguaemanteiga,ouguisá-los como para uma ratatouille, ou assá-los em um gratinado comcremeoucaldoparaconcentrarsuadoçura:fervê-losévisto–talvezcomrazão–comoaformamaissemgraça.Comoformadetecnologia,entretanto, ferverestá longedeseróbvio.A

panela transformou as possibilidades da culinária. Poder ferver umalimento–numlíquidoquepodeounãotrazerumsaboradicional–foiumgrandepasso,depoisdousosimplesdofogo.Édifícilimaginarumacozinhasempanelas,portantoédifícilreconhecerquantospratosdevemosaessaformabásicadeequipamento.Aspanelaspermitiramquesecomesseumagama muito mais ampla de alimentos: muitas plantas que antes eramtóxicas, ou pelo menos indigestas, tornaram-se comestíveis quandopassaramapoderser fervidasporváriashoras.Aspanelasassinalaramosaltodomeroaquecimentoparaaculinária–paraacombinaçãoserenaerefletida de ingredientes num recipiente feito pelo homem. As primeirasformasdepreparoconsistiamemassarouchurrasquear.Osindíciosdequese assavam alimentos remontam a centenas de milhares de anos. Já aspanelasdebarrodatamapenasdeuns9ou10milanosatrás.Aspanelasdepedra do vale do Tehuacán, na América Central, também datam deaproximadamente7000a.C.Assaréumaformadiretaeinequívocadecozinhar:acomidacruaentra

em contato com a chama e se transforma. Ferver e fritar são formasindiretas.Alémdofogo,exigemumrecipienteàprovad’águaeàprovadefogo.Oalimentosórecebeocalordofogoatravésdeumintermediário,sejaeleoóleoparafritarouaáguaparaferver.Issoéumavançoemrelaçãoao

fogo direto, sobretudo ao cozinhar uma coisa delicada como um ovo.Quando cozinhamos um ovo, ele é protegido do ataque do fogo por trêscoisas: sua própria casca, ometal da panela e a água fervente.Mas águaferventenãoéalgoqueseencontrecomfrequênciananatureza.ÉpossívelencontrarfontesgeotérmicasnaIslândia,noJapãoenaNova

Zelândia.Massãorarasobastanteparaconservarostatusdemaravilhadanatureza.Nos tempos pré-industriais,morar perto de fontes geotérmicasdeviasercomopossuirumsamovardotamanhodeumlagonoquintal:umluxo improvável. Os maoris da Nova Zelândia, quando viviam perto doslagos de água quente deWhakarewarewa, usavam-nos tradicionalmentepara cozinhar. Alimentos de vários tipos – raízes leguminosas, carnes –eramcolocadosemsacosdelinhoependuradosdentrod’água,atéficaremcozidos. Uma técnica similar foi praticada nas regiões geotérmicasislandesasporcentenasdeanos.NaIslândia,atéhojesefazumtipodepãode centeio escuro cujamassa é posta dentro de uma lata e enterrada naterraquentepróximadas fontes, até ficar totalmente assadono vapor (oquecostumalevarcercade24horas).Os dados arqueológicos não são claros, mas é razoável supor que os

povos antigos que viviam perto de gêiseres tenham experimentado, pormuitosmilharesdeanos,imergiralimentoscrusnaespiraldevapor,presosaumgravetoouumacordaque,idealmente,puxariaoalimentoparaforaquando estivesse pronto. Idealmente. A menos que nossos ancestraistenhamsidomuitomaishabilidososquenós,muitacomidaboadeveterseperdidonaságuasvulcânicas,comopedaçosdepãocaindonumapaneladefondue.Ainda assim, cozinhar num gêiser temmuitas vantagens em relação a

cozinharnofogo.Émenostrabalhoso–evita-setodoofardodecriarumafontedecalor.Tambémémaisdelicadocomosingredientesemsi.Quandosecozinhadiretamenteno fogo, édifícil evitaroproblemado “queimadopor foraecrupordentro”.Oalimento imersoemáguaquente,poroutrolado,podecozinharnoseudevidotempo;unsminutosamaisouamenosnãoimportamtanto.

Sóqueamaioriadaspessoasnãomorapertodefontesgeotérmicas.Sevocêencontrasseapenaságuafria,comolheocorreriaaideiadeaquecê-laparacozinhar?Aáguaeofogosãoopostos–inimigos,até.Sevocêtivessepassado horas preparando uma fogueira – colhendo lenha, esfregandopedras,empilhandogravetos–,porqueporiatudoemriscoaproximandoáguadoseupreciosofogo?Paranós,comnossasbocasdefogãofáceisdereacender e nossas chaleiras elétricas, ferver é uma atividade muitoprosaica.Estamosacostumadoscomaspanelas.Mascozernaáguaquentenão devia parecer um próximo passo evidente para quem nunca o tinhafeito.Portanto,osprimeirosatosconscientesdeferveráguaexigiramumsalto

deinventividade.Criarumrecipienteparacozinhar,ondeantesnãohavianenhum, é uma proeza de enorme criatividade. Ao cozinhar em fontesgeotérmicas, embora se possam usar vários sacos e cordas, eles não sãoessenciais:aprópriaterraquecontémaáguafervilhantetransforma-senapanela.Na faltade fontes termais,porém, ferverexigeumrecipientequesejaforteobastantepararesistiraocaloredoqualacomidanãovaze.

ANTES QUE O PRIMEIRO OLEIRO fizesse a primeira panela, alguns alimentos vinhamprontospara serem cozidos em seuspróprios recipientes.Osmoluscos ediversos répteis, em especial as tartarugas, têm seu próprio envoltório,comosefosseumapeçadecerâmica.Atéhojeaindaseusamconchascomoutensílios e para servir. Ao comer uma tigela fumegante de moulesmarinière,primeirovocêescolheumdosmexilhõescomoumapinçajeitosaparatiraracarnedosoutros.Similarmente,oantigopovoindígenayahgan,da Terra do Fogo, usava conchas de mexilhões como pingadeira, paracolher a gordura que escorria das focas ao assar. Vários antropólogossugeriram que passar desse uso de conchas de moluscos para osrecipientes para cozinhar teria sido um pequeno passo. Falou-se muitasvezes nas conchas como uma etapa na transição para as panelas defabricaçãohumana.Masseráqueelasoforam?

Ummexilhãoestá longede ter tamanhosuficientepara ferverou fritarqualquercoisaalémdelemesmo.Colherpingosdegorduraestámaisparaa ação de uma colher que de uma panela. Os índios norte-americanosincluíam-se entre os que usavam conchas de mariscos como colheres econchasafiadasdemexilhãocomofacasparacortarpeixe,mas,aoquesesaiba,nãoosusavamcomopanelas.Umapanelaperoladademolusco–queé uma ideia atraente – só comportaria uma quantidade de comida paraalimentarumcamundongo.Mas,equantoamoluscosmaiores,earépteis?Afirmou-sequeoexemplodaculináriacomousodetartarugas–talcomoapraticadaporvárias tribosamazônicas–provaquea fervuraera “viável”muitoantesdainvençãodacerâmica.Nãohádúvidadequecozinharnumcascodetartarugaéumaideiaromântica.Sealgomais,alémdasprópriastartarugas,erapreparadonessescascoséoutrahistória.Alémdasconchas,háalgunscandidatosmaisplausíveiscomoprimeiros

recipientesparacozinhar.Váriostiposdecabaçasvegetaisdurasserviramde tigelas, garrafase cuiaspré-históricasmuitopráticas.Outra famíliaderecipientes de cozinha baseados em plantas era a dos talos côncavos debambu, usados em toda a Ásia. Mas o bambu e as cabaças só eramencontradosemalgumaspartesdomundo.Umrecipientemaisuniversal,depoisdadescobertadequeerapossívelcozinharacarne,foioestômagodos animais: um recipiente pré-fabricado que era, ao mesmo tempo,impermeávelàáguae–atécertoponto–resistenteaocalor.Ohaggis,tãoquerido dos escoceses e cozido no bucho do carneiro, é um retrocesso àantiga tradiçãode ferveroconteúdodoventredoanimalemseupróprioestômago.bNoséculoVa.C.,ohistoriadorHeródotorelatouqueosnômadescitas usavam essa técnica, cozendo a carne do animal em seu própriobucho: “Assim, um boi ou qualquer outro animal sacrificial éengenhosamente levadoa ferverasimesmo.” “Engenhoso”éapalavra.Atradiçãodoalimentocozidonoestômagomostracomoossereshumanoseram perspicazes na busca de melhores métodos para cozinhar seusalimentos quando não possuíam panelas e frigideiras, grelhasantiaderentes, revestidas de Teflon, nem reluzentes batteries de cuisinefeitasdecobre,penduradasemganchoscomtodocapricho.Nenhummétodo era tão engenhoso quanto a tecnologia do cozimento

compedrasquentes,praticadoemtodooplaneta,acontardepelomenos30milanosatrás.Apósmilharesdeanosassandoosalimentosdiretamentesobreofogo,aspessoasenfimdescobriramummododeusarocalorparacozinhar as coisas demaneiramais indireta, no vapor ou na água. Já se

disse que essa transformação na possibilidade de cozinhar foi a maiorinovaçãotecnológicanopreparodacomidaatéostemposmodernos.

VEJAMOSCOMOSEFAZumfornosubterrâneo.Primeiro,caveumburacograndenochão e revista-o de pedras, para torná-lo ligeiramente impermeável.Depois,enchaoburacodeágua.Vocêpodepularessaparte,setivercavadoo fosso abaixo do nível freático, pois, nesse caso, ele se encheráautomaticamente. (Existem na Irlanda milhares de vestígios de buracosparapedrasquentes,escavadosnasturfeirasúmidas.)Em seguida, pegue mais algumas pedras – de preferência, aquelas

grandes e arredondadas de rio – e aqueça-as no fogo até atingirem umatemperaturamuitoelevada.Aspedrasparacozinhareramaquecidasaaté500°C,maisquentesqueumfornodepizza.Transfira-asparaoburacodoforno,usandoferramentascomopegadoresdemadeira,paranãoqueimarasmãos, e coloque-asna água.Quandohouverpedras suficientes, a águacomeçará a “chiar”, ou ferver, e será possível acrescentar a comida. Porúltimo,ponhaumacoberturaisolante,feitadeturfa,folhas,pelesdeanimalouterra.Àmedidaqueatemperaturadaáguacair,continueaacrescentarmaispedrasquentes, paramanter a fervura constante até a comida ficarpronta.Houvemuitasvariaçõesnocozimentocompedras.Àsvezes,estaseram

aquecidas dentro do próprio poço escavado, e não em outro fogo; haviaduaspartesadjacentes,umaparaaágua,outraparaofogoeaspedras.Àsvezes,oalimentoeracozidonovapor,enãofervido.Asraízesleguminosasou os pedaços de carne podiam ser embrulhados em folhas de plantas edeitadosnofornoemcamadas,comaspedrasquentesesemoacréscimodeágua,casoemqueofornosubterrâneoassemelhava-semaisaumfornocomumqueaumacaldeira.Cozinhar compedras quentes é algo que ainda se faz nos piqueniques

litorâneosdefrutosdomarnaNovaInglaterra,EstadosUnidos,nosquaismariscos recém-colhidos são cozidos alimesmo, na praia, dispostos numpoço de pedras quentes, madeira trazida pela ressaca do mar e algasmarinhas,oquemantémasuculênciadosmexilhões.Ométodotambéméusadonos luaushavaianos,nosquaisumporcoéenvolvidoem folhasdebananeira ou de taioba e enterrado num forno quente (o imu) durantequase um dia inteiro, e depois desenterrado com grande cerimônia ealegria. No VelhoMundo, entretanto, o cozimento com pedras aquecidasnãoduroumuitotempodepoisdosurgimentodascerâmicas.

Assim, é fácil presumir que cozinhar compedras sejameramente umatecnologia inferior a ferver algo numapanela.Mas será verdade?Nãohádúvidadequesetratadeumaformainconvenienteetortuosadeprepararuma refeição quente. A fervura num forno subterrâneo seria ummétodoinviávelparafazerotipodecozimentocomáguaquentequeamaioriadenós faznodia-a-dia:macarrão, batatas ou arroz seperderiamna lama, eseriaummodoabsurdamenteineficientedecozinharcoisascomoovosouaspargos,oquelevaapenasalgunsminutos.Entretanto,cozinharcompedrasquentesfoiumatecnologiaesplêndida

paramuitosusosqueoscozinheirosdopassadolhedavam.Eraótimaparacozinhar alimentos em grande quantidade, como mostra o exemplo doporcodoluau.Aoutracoisanotáveleraqueofornosubterrâneopermitiaquesecomessemdiversasplantassilvestresque,deoutromodo,nãoerammuitocomestíveis.Osalimentostradicionalmentecozidosnocalorbrandoe úmido do forno subterrâneo tendiam a ser bulbos e raízes tuberosas,ricos em inulina, umcarboidratonãodigerívelpelo estômagohumano (epresente no girassol-batateiro, razão dos seus notórios efeitos deflatulência). O cozimento nas pedras quentes transformava essas plantaspor meio da hidrólise, um processo que libera a frutose digerível docarboidrato. Em alguns casos, as plantas precisavam ser cozidas por atésessenta horas para que ocorresse a hidrólise. Um agradável efeitocolateraleraqueocozimentoprolongadoeúmidodavaabulbossilvestrespoucopromissoresumsaborfantasticamentedoce.Algumaspessoastinhamtantoapegoaosfornossubterrâneoseàfervura

compedrasquentesqueachavamos recipientespara cozinhar inferioresoumesmodesnecessários.Ospolinésiosdosprimórdiosdaeracristã–aspessoasqueviajaramparaasilhasdoPacíficoorientalnoprimeiromilêniod.C., indo de Samoa e Tonga para o Havaí, a Nova Zelândia e a Ilha dePáscoa–sãoumfascinantecasodeumpovoqueconheceuaspanelaspormil anos, e depois as abandonaram. Desde 800 a.C, mais ou menos, ospolinésios fabricavam toda uma gama de peças – tipicamente, cerâmicacozida em fogo brando,misturada com conchas ou areia. No entanto, aochegarem às ilhas Marquesas, por volta do ano 100, abandonaramabruptamenteaproduçãodecerâmicaeoptaramporvoltaracozinharsempanelas.Havia uma hipótese de que os polinésios teriam parado de fazer

recipientes de cerâmica por não haver argila em suas novas pátriasinsulares.Mas não era verdade; havia argila nas ilhas, embora em locais

bastanteremotoseelevados.Trintaanosatrás,aantropóloganeozelandesaHelenM.Leachsugeriuumaexplicaçãonovaeradicalparaoenigmadospolinésios: eles cozinhavam sempanelas porque não viam a necessidadedelas. Talvez tivesse sido diferente se comessem arroz. Mas a dietapolinésiaeraricaemvegetaisamiláceos,comoinhame,batata-doceefruta-pão, todososquaiscozinhavammelhorusando-sepedrasquentesdoquepanelas.Portanto, sim, é possível ferver alimentos sem panelas. A rejeição da

cerâmica pelos polinésios é um lembrete útil de que nem mesmo astecnologias culinárias que parecem mais vitais são universalmenteadotadas.Algunscozinheirosrecusam-seaterfrigideirasemcasa(comosesuasimplespresençapudesselevaraoconsumodequantidadesdegorduranocivasàsaúde);osadeptosdealimentoscrusrejeitamousodofogo,eéprovávelqueexistaalguém,emalgumlugar,queprefiracozinharsemfacas– com certeza, há livros infantis de culinária que defendem o uso datesoura, em vez de facas. Pessoalmente, sou o oposto dos polinésios.Consideroaspanelaseasfrigideiraspeçasessenciaisnacozinha,discretosdeuses domésticos. Poucos momentos do dia são mais alegres do queaquele emque ponho uma panela na boca do fogão, sabendo que logo ojantar estará fervilhando, enchendo a casa de aromas agradáveis. Nempossoimaginaravidasemelas.

DEPOIS QUE OS RECIPIENTES de barro foram incorporados como tecnologia,desenvolvemos opiniões sólidas sobre eles. A cerâmica é algo muitopessoal. A língua inglesa ainda hoje descreve vasos e panelas comcaracterísticashumanas:elespodemterbocae lábios,pescoçoeombros,barriga e traseiro. Os dowayos, um povo de Camarões, na África, têmformasespeciaisdetigelasdecerâmicaparapessoasdiferentes(umatigeladecriançaseriadiferentedapertencenteaumaviúva),ehátabusquantoacomernatigeladestinadaaoutrapessoa.Muitosdenósnosapegamosacertosrecipientes,fetichizandotalouqual

caneca ou prato. Não me importa o garfo com que como nem se outrapessoa comeu com ele antes de mim (desde que esteja razoavelmentelimpo). A louça ou a cerâmica são diferentes. Eu tinha um canecão comtodosospresidentesnorte-americanos,quemeumaridotrouxeparamimdeumaviagemaWashington.Eranessacanecaqueeutomavameuchá,demanhãcedo.Usarqualqueroutracanecanãoteriaomesmoefeito;elaeraparte crucial do ritual matutino. Aos poucos, os rostos dos presidentes

foram desbotando, e era difícil distinguir Chester Arthur de GroverCleveland. Passei a gostar ainda mais da caneca. Se via outra pessoabebendo alguma coisa nela, tinha a sensação secreta de que essa pessoaestavapisandonomeutúmulo.Acanecaporfimseespatifounalava-louça,oquefoiumalívio,decertomodo.Nãoasubstituí.Os fragmentosou “cacos”de cerâmica são frequentementeos vestígios

maisduradourosdeixadosporumacivilização,eamelhorportadeacessopara conhecermos os valores dos indivíduos que os usaram. Por isso, osarqueólogosgostamdedenominarospovosdeacordocomosobjetosdecerâmicadeixadosporeles.HouveaCulturadosVasosCampaniformes,doterceiromilênioantesdaeracristã,queatravessoutodaaEuropa,desdeapenínsula Ibérica e da região central da Alemanha, até chegar às ilhasbritânicas,porvoltade2000a.C.EssapopulaçãoveiodepoisdaCulturadosVasosemFormadeFuniledaCulturadaCerâmicaCordada.Emtodososlugares onde esteve, a Cultura Campaniforme deixou vestígios derecipientesparabebida,feitosdeargilacastanho-avermelhada,emformatodesino.ElepoderiatersidochamadodePovodaAdagadeSílexouPovodoMachado de Pedra (já que também os usava), mas, por alguma razão, acerâmicaémaisevocativadeculturasinteiras.SabemosqueosintegrantesdaCulturadosVasosCampaniformesgostavamdesersepultadoscomumvasocerâmicoaseuspés–presume-sequeparaoalimentoeabebidadeque necessitariam na vida após a morte. Nossa própria cultura possuitantas coisas que a cerâmica perdeu grande parte de sua importânciaanterior,mas ainda é uma das poucas posses universais. Talvez, daqui amuitas centenas de anos, quando nossa cultura tiver sido enterrada poresteouaqueleapocalipse,osarqueólogoscomecemaescavarnossosrestosenoschamemdeComunidadedasTaças:fomosumpovoquegostavaquesua cerâmica tivesse cores vivas, fosse grande o bastante para contervolumes consideráveis de bebidas cafeinadas reconfortantes e, acima detudo,pudesseiràlava-louça.Aprópriaexistênciadacerâmicamarcouumaetapatecnológicadesuma

importâncianodesenvolvimentodaculturahumana.Ooleiropegaaargilagrosseiraeamorfaeaumedece,tempera,moldaequeima,dando-lheumaforma duradoura: trata-se de uma ordem de criação diferente de tirarlascas de pedras,madeira ou ossos. Os vasos de argila trazem asmarcasdasmãoshumanas.Háalgodemágiconoprocessodaolariae,comefeito,eracomumosprimeirosoleirosteremnacomunidadeumsegundopapel,como xamãs. A arqueóloga Kathleen Kenyon, que desenterrou em Jericó

muitos fragmentos de cerâmica datados de 7000 a.C., descreveu osprimórdiosdaolariacomouma“revoluçãoindustrial”:

O ser humano, em vez de apenas moldar um artefato a partir de um material natural,descobriuqueeracapazdealteraralgunsdessesmateriais.Ao fazerumamisturadeargila,cascalhoepalhaesubmetê-laaumatemperaturaelevada,eleefetivamentealterouanaturezadeseumaterialelhedeunovaspropriedades.

Fazerumrecipienteutilizávelnãoéapenasumaquestãodemoldarummontedeargilano formatopertinente, comoumbolode lama.Aprópriaargila tem que ser escolhida com cuidado (havendo cascalho demais, elanão é fácil demoldar; com cascalho demenos, não resiste à queima). Ooleiro de 7000 a.C. (que não raro era uma mulher) devia saber aquantidade exata de água para tornar o barro escorregadio, mas não apontodeamassamolhadadesmanchar-seemsuasmãosouracharnofogo.Porsuavez,o fogotinhaqueestarnumatemperaturaescaldante–talvezde900a1.000°C–,oquesósepodeconseguirnumfornofeitoparaessefimexclusivo.Quantoaproduzirrecipientesespecificamentedestinadosàculinária,istoéaindamaisdifícil,porqueelesprecisamserimpermeáveisefortes o bastante para suportar o choque térmico: à medida que umrecipiente malfeito aquece, seus diversos materiais se expandem emvelocidadesdiferentes,eatensãoofazestilhaçar-se.Quasetodososcozinheirosjátiveramalgumaexperiênciacomochoque

térmico,numaounoutraocasião:atravessadelasanhaqueestalanofornoquente,estragandoosplanosparaojantar;otachodebarro,supostamente“resistenteaofogo”,queseestilhaçasobreumabocadofogãoedespejaseuconteúdonopiso.NigelSlater,autordelivrosdeculinária,observouqueépreferívelumrecipiente“espatifar-seemmilpedaçosdoqueficarcomumarachadura funda.O recipiente rachadopode continuar a ser um favorito,masintroduzumcomponentedeperigoqueeupreferiadispensar…aquelasensaçãoincômodadeque,aoabriraportadoforno,depararemoscomorecipiente partido aomeio e omacarrão com queijo chiando na base doforno.”Nuncasaberemosaocertocomofoifeitooprimeirovasodecerâmica.A

olaria é um desses avanços brilhantes que, curiosamente, ocorreram aomesmo tempo com pessoas diferentes, em lugares muito distantes. Osvasos de repente se tornaram comuns por volta de 10000 a.C., ou umpouquinho antes, na América do Sul, na África setentrional e entre osjomons,noJapão.Apalavra“jomon”vemdo japonêsesignifica“marcadopor cordas”. A cerâmica jomonmostra o talento artístico empregadonos

artefatosdecerâmicadesdemuitocedo.Nãobastava fazerumbomvaso;ele tinhaqueserbelo.Depoisdedarem formaa seusvasosepanelas,osoleirosdoperíodo Jomondecoravama argilamolhada comcordas enós,talos de bambu e conchas. Amaioria dos recipientesmais antigos desseperíodo parece ter sido usada para cozinhar: os fragmentos encontradosindicam vasos fundos, de base redonda, em formato de flor, ideais paraprepararensopados.Estranhamente,aadoçãoderecipientesparacozinharpelosjomonsnão

foi copiada em todos os lugares. Costumava-se presumir que as pessoascomeçaram a fazer vasos de cerâmica para o fim específico de cozinhar,mashojeháalgumasdúvidas.Comopodemossaberseelascozinhavamounãocompanelas?Osfragmentosdosvasosusadosnacozinhadevemtrazersinaisdechamuscamentooumanchas,pelaexposiçãoao fogo;podematéconter vestígios de comida; e é provável que sejam feitos de argilamaciçamente temperada ou misturada com cascalho, cozida em fornobrandoparaeliminarochoquetérmico.No Peloponeso, na Grécia, há uma caverna chamada Franchti, na qual

foramrecuperadosmaisdeummilhãodefragmentosdecerâmicadatadosde6000a3000a.C.Trata-sedeumadasregiõesagrícolasmaisantigasdaGrécia.Ali se cultivavam lentilha, amêndoaepistache, aveia e cevada.Oshabitantestambémsealimentavamdepeixes.Emoutraspalavras,eraumpovoquede fatosebeneficiariade recipientesparacozinhar.Seriadesesupor que os fragmentos de cerâmica houvessem um dia pertencido apanelasevasosparaarmazenarmantimentos,mas,quandoosarqueólogosexaminaram os fragmentos mais antigos, constataram que estes nãoexibiam nenhum dos sinais reveladores de algo que houvesse ficadosuspenso acima do fogo. Não tinham fuligem nemmanchas enegrecidas,sendo, antes, uma cerâmica polida com esmero e brilhosa, moldada emformasangulosasquenão seacomodariambemsobreumachama.Haviatodosossinaisdequetaisrecipientesnãotinhamsidousadosnaculinária,mas em algum tipo de ritual religioso. Isso constitui um enigma. Esseshabitantes gregos dispunham de toda a tecnologia necessária para fazerpanelasdecozinha,masoptarampornãoproduzi-las,preferindodaràsuaargila um uso simbólico. Por quê? Provavelmente, porque até entãoninguémhaviautilizadopotesdecerâmicaparacozinhar,demodoqueissosimplesmentenãolhesocorreu.Ousode recipientespara cozinhar representouumaenorme inovação.

Foramnecessáriasmuitascentenasdeanosdeusodosvasoscomoobjetos

decorativos ou simbólicosparaqueos gregosdeFranchti pensassememusá-losparacozinhar.Apenasentreosfragmentosmaisrecentes,datadosdec.3000a.C.,équeacerâmicadecozinhatornou-seanorma.OsvasosdeFranchtitornaram-searredondados,detexturamaisgrossa,efeitosnumavariedadedeformatospráticos,paratarefasdiferentes:caçarolasdeváriostamanhos,panelasparaqueijo,peneirasdebarroerecipientesmaiores,deformatosemelhanteaodeumforno.Apopulaçãohaviaenfimdescobertoasalegriasdecozinharempanelas.Osgregos talvezsejamosmaiscélebresde todososoleiros.É fácilnos

atermosaosarquetípicosvasosdecorativos,emcorvermelhasobrefundopreto, ou preta sobre fundo vermelho, que retratam cenas de batalhas emitos,cavaleiros,dançarinosebanquetes.Mastambémpodemosaprendercom seus artefatos mais simples de cozinha, cuja história é menosdramática,porémnãomenosinteressante.Aspanelasgregasnosdizemoqueeles comiamedequemodoo comiam;quais eramos alimentosquevalorizavameoquefaziamcomeles.Osgregosdeixaraminúmerosvasosdearmazenamento–paraqueijoeazeitonas,vinho,azeitee,acimadetudo,para cereais, muito provavelmente cevada: eram robustos vasos deterracota, comtampaparamanteros insetosafastados.Osoleirosgregosfaziamfrigideiras,caldeirõesecaçarolascomumaargilagrossa,arenosa;oformato básico era o da chytra, redonda e parecida com a ânfora. Elesfaziampanelinhascomtrêspernasepráticosjogoscombinadosdecaçarolae braseiro, nos quais o recipiente e o aquecedor eram desenhados emconjunto.Esseeraumpovoquedispunhademaisdeumaestratégiaparacozinhar.Acerâmicamodificouradicalmenteanaturezadaculinária.Aocontrário

dos cestos, cabaças e cascas de coco – ou de qualquer dos outrosrecipientespara comidausadosantesdisso–,obarropodia sermoldadoemqualquer tamanho ou formato desejado, e os recipientes de cerâmicaexpandiram muito o leque de alimentos que podiam ser ingeridos.Resumindo numa palavra: mingau. As panelas funcionaram em conjuntocomanovaciênciadaagricultura(quetambémsurgiuhácercade10milanos), alterandopara sempre a nossa dieta. Comas panelas de barro, oscozinheirospodiamferversemdificuldadegrãosmiúdos,comotrigo,milhoe arroz, os amiláceos essenciais que logo viriam a se tornar o esteio dadietahumanaemtodoomundo.Passamosdadietadecarne,frutossecosesementes, própria dos coletores-caçadores, para a dieta dos camponeses,feita de cereais pastosos, acompanhados pormais alguma coisa. Foi uma

revoluçãocomcujosefeitos convivemosatéhoje.Quandopegamosnossamaiorpanelaefervemosumpacotedeespagueteescorregadio,ouligamospreguiçosamente a panela elétrica de arroz, ou mexemos uma polentafervilhantecommanteigaequeijoparmesão,estamosemcomunhãocomaqueles primeiros agricultores que aprenderam a encher a pança comalgumacoisamaciaericaemamido,deliberadamentecultivadanocampoecozidanumapanela.Emmuitoscasos,apaneladebarropermitiuqueaspessoascomessem

plantas que, de outro modo, seriam tóxicas. Um exemplo é a mandioca(também conhecida como aipim), um tubérculo amiláceo nativo daAméricadoSulqueéhojeaterceiramaiorfontedecarboidratocomestívelno mundo. Em sua forma natural, a mandioca contém pequenasquantidades de cianeto. Quando mal cozida, ou ingerida crua, podeocasionar uma doença chamada konzo, que causa paralisia. A partir domomentoemquefoipossívelcozinharamandiocanumapanela,elapassoude toxina inútilavaliosoprodutoessencial,uma fontepolpudaedocedecálcio, fósforo e vitamina C (embora tenha poucas proteínas). O aipimcozidoéumafontefundamentaldeenergianaNigéria,emSerraLeoaeemGana, entre outros países, habitualmente ingerido depois de apenas seamassar o tubérculo fervido até formar um purê saboroso, talvez comalguns temperos. Esse é o clássico alimento cozido na panela: o tipo queaqueceoestômagoeacalmaocoração.Os guisados são um prazer para o paladar, sobretudo por causa dos

sumos:aquelapoderosamisturadeervas,vinhoecaldos.Desdeoinício,aspanelaspermitiramqueoscozinheiroscaptassemcaldosque,semelas,seperderiam nas chamas. As panelas parecem ter sido particularmentevalorizadas entre os povos que comiammuitos frutos domar, porque obarro retinhao saboroso sumodosmoluscos.A cerâmica foi umenormeavançopormaisoutrarazão:eramuitomaisdifícilqueimaroalimentodoquequandoeleerapreparadodiretamenteno fogo(embora tambémnãoseja impossível, comomuitos podem atestar). Desde que não se deixe apanelasecar,acomidanãoqueima.As primeiras receitas de que se tem registro vieram da Mesopotâmia

(região dos atuais Iraque, Irã e Síria). Foram grafadas em escritacuneiformeemtrêstabuletasdepedra,hácercade4milanos,eoferecemum vislumbre instigante de como os mesopotâmios deviam cozinhar. Avastamaioriadasreceitaséparacozimentoempanelas,quasetodasparacaldos. “Coloque todos os ingredientes na panela” é uma instrução

frequente. Pela primeira vez, as panelas fizeramdo ato de cozinhar umapráticarefinadaesutil;masprepararosalimentosnelastambémeramaisfácildoqueassá-losdiretamentenofogo.Nãodavamuitotrabalhoferveracarne de carneiro com água, acrescentar um pouco de alho-poró, alho eervas amassados, e deixar tudo fervilhando em fogo brando. O padrãoelementardessasreceitasdaMesopotâmiaeraoseguinte:prepareaáguacomgorduraesalagosto;acrescentecarne,alho-poróealho;cozinhenapanela;acrescentetalvezcoentroouhortelãfrescos,esirva.Todaumagamadetécnicasinaugurou-secomaolaria.Ferveralimentos

foiamaisimportantedelas,mastambémsetornoupossívelusargrelhasdecerâmica para assar bolos finos de milho, bolos de aipim e pães semlevedura;usargrandesvasosparafermentaredestilarbebidasalcoólicas;eusarumapanelasecacomtampapara tostargrãos,sendoomaisnotávelexemplodissoomilhotostadodaMesoamérica–apipoca!As pessoas também gostaramdas panelas de barro por outra razão: o

sabor que elas davam aos alimentos. Nos tempos modernos, em geraldescartamosa ideiadequea superfíciedeumrecipientesemisturecomseuconteúdo.Queremosqueaspanelas tenhamsuperfíciesquereajamomínimopossívelcomoquehouverdentrodelas–oqueéumadasmuitasvirtudes do aço inoxidável. Com umas poucas exceções teatrais – orefratáriodeargilaparaassarfrangosdadécadade1970,opotedebarrotailandês –, não consideramos a possibilidade de que a superfície decozimento possa reagir com a comida de maneiras benéficas.Tradicionalmente, no entanto, as culturas que cozinham em panelas debarro poroso apreciam o sabor que elas conferem à comida, comoresultado dos sais solúveis que são liberados pelo barro. No vale deKatmandu, na cordilheira do Himalaia, o pote de barro é consideradoessencial para as conservas, acrescentando um algo amais às demanga,limãoepepino.As propriedades especiais do barro talvez expliquem por que muitos

cozinheirosresistiramaograndeavançoseguinte:apassagemdaspanelasdebarroparaasdemetal.OscaldeirõesdemetalforamprodutodaIdadedo Bronze (de c.3000 a.C. em diante), um período de rápidas mudançastecnológicas. Pertenceram mais ou menos à mesma era dos primeirossistemas de escrita (hieroglífica e cuneiforme), do papiro, dosencanamentoshidráulicos,dafabricaçãodovidroedaroda.Oscaldeirõescomeçaram a ser usados por egípcios, mesopotâmicos e chineses pelomenos desde 2000 a.C. O custo de sua fabricação significou que, no

princípio,seuusoficoulimitadoabanquetesespeciais,rituaisreligiososouaosalimentosenterradoscomosmortos,paraseremlevadoscomelesparaavidaapósamorte.Oscaldeirõesdemetaltêmdiversasvantagensmuitopráticasemrelação

àcerâmica.Pode-selimparumcaldeirãoesfregando-ocomareiaoucinza,aocontráriodacerâmicanãoesmaltada,quetendeareterosresíduosdarefeiçãoanterioremseusporos.Ometalémelhorcondutordecalorqueacerâmica, de modo que o alimento cozinha com mais eficiência. E,sobretudo, o caldeirão pode ser colocado diretamente sobre o fogo, semmedodequeseestilhacecomochoquetérmicooufiquelascado.Podeatésobreviveraquedas.Osarqueólogostendemaencontrarvasosdecerâmicasob a forma de fragmentos, mas eles às vezes desenterram caldeirõesintactos,comoocaldeirãodeBattersea,umesplêndidoexemplardaIdadedo Ferro, datado de 800-700 a.C., que foi retirado do rio Tâmisa, emLondres,noséculoXIX.Trata-sedeumrecipientemagnífico,emformatodeabóbora,feitodeseteplacasdebronzeunidasportachas,comoumescudo,que sobreviveu inteiro, em toda a sua glória. É um equipamentoassombroso. Ao vê-lo, compreendemos por que era tão comum oscaldeirões serem legados em testamento. Esse é uma grande obra deengenharia.

Quando se tornarampossíveisosutensíliosde cozinha feitosdemetal,nãodemorouparaquesecriassemtodososprincipaismodelosdepanelase frigideiras.Osromanostinhamapatella –uma frigideirademetalpara

saltear rapidamente o peixe em pouca gordura, que deu nome à paellaespanhola e à padella italiana, e que pouco diferia de nossas frigideirasatuais.Apossibilidadedefervercoisasnoazeite–queé,naverdade,aquiloem que consiste a fritura – acrescentou mais uma dimensão à vida dacozinha.Asgordurasatingemtemperaturasmuitomaisaltasqueaágua,eo alimento cozinha mais depressa, ficando deliciosamente tostado nasbordas.IssodecorredareaçãodeMaillard,umainteraçãoentreproteínaseaçúcares a altas temperaturas, responsável por muitos dos sabores quemaisnosseduzem:acrostadouradadabatatafrita,umacolheradaescurademaplesyrup,ouxaropedebordo.Umafrigideiraéumacoisaboadeseterporperto.Os romanos também tinham lindos escorredores demetal e rechôs de

bronze,pratosmeiorasosdemetalchamadospatinae,enormescaldeirõesde latão e bronze, formas paramassas em formatos decorativos, panelaspara assar peixes inteiros, frigideiras com bicos especiais para verter omolhoealçasquesedobravam.Grandepartedoquechegouaténósparecedesconcertantemente moderno. A diversidade dos utensílios de cozinharomanosdemetalaindaeracapazdeimpressionarochefAlexisSoyerem1853. Soyer encantou-se em especial com um utensílio de ar muitosofisticado, uma panela de fundo duplo chamada autepsa (nome quesignifica“autofervente”).Comoumapanelamodernadecozimentoavapor,ela possuía dois compartimentos, ambos de latão de Corinto. A parte decima,nodizerdeSoyer,podiaserusadaparacozinharaospoucos“iguariasleves, destinadas à sobremesa”. Tratava-se de um utensílio muitovalorizado.Cícerodescreveuumaautepsa leiloada por umpreço tão altoqueos espectadorespresumiramqueoque se estava vendendo eraumafazendainteira.Emtermostecnológicos,osutensíliosdemetalromanostiverampoucos

rivais até o fim do século XX e o advento de panelas feitas demúltiplascamadas de metal. Eles abordaram até mesmo o problema de evitar asáreas de calor intenso ao cozinhar, que continuama ser umbicho-papãoparaquemdesenhapanelas.DaBritâniaromanasobreviveuumafrigideirade metal com anéis concêntricos na base, cujo propósito parecia ser acriaçãodeumadistribuição lentaeuniformedocalor.Experimentoscompanelas corrugadas, em contraste com as lisas, mostraram que atexturização de seu fundo reduz as tensões térmicas (os anéis tornam apanelamenossuscetívelasedeformaremcontatocomocalorelevado,oque fortalece sua estrutura) e também dá maior controle sobre o

cozimento:atransferênciadecaloracontecemaislentamentecomapanelatexturizada,demodoquediminui aprobabilidadedos transbordamentosincômodos.Umpadrãosemelhantedeanéisconcêntricosaparecenabasedas panelas Circulon, lançadas em 1985, cujos “singulares sulcos Alto-Baixo”, como dizia a propaganda, reduziriam o atrito da superfície eaumentariamadurabilidadeeasqualidadesantiaderentesdaspeças.Talcomo os aquedutos, as ruas retas, as pontes em arco e os livros, essatecnologiaexemplificacomoosromanoschegaramàfrentedosdemais.

APESARDAENGENHOSIDADEDOSROMANOS,amaioriadoscozinheirosdomésticos,desdeaIdade do Bronze até o século XVIII, teve de se arranjar com um sórecipiente grande: o caldeirão. Esse era, de longe, o maior utensílio dacozinhadaEuropasetentrional,eeranelequeseconcentravaaatividadeculinária.DepoisdaquedadoImpérioRomano,agamadeutensíliosparacozimentoreduziu-seaobásico.Emvezdeumapanelaparacadaocasião,arefeiçãodeumapanelasóvoltouasera formadominantedecozinhar.Ocaldeirão tendia a decidir pelo indivíduo como ele poderia comer.Alimentos fervidos,guisadosourefogados:essacostumavaseraresposta(embora a panela com tampa tambémpudesse ser usadapara fazer pão,queassavaoucozinhavanovaporsobatampa).Oconteúdodocaldeirãopodia ser bastante repetitivo. A típica família medieval modesta possuíaumafaca,umaconcha,umapaneladebarro,talvezalgumtipodeespetoeum caldeirão. A faca cortava os ingredientes que iam para a panela comágua.Horasdepois,aconchaserviaasopaou“caldeirada”.Osrecipientescomplementaresassumiamaformadealgumaspanelasbaratasdebarro,etalvezumafrigideiraeumapaneladecabocomprido,muitomenorqueocaldeirão,usadaparaaquecerleiteoucremedeleite.Quando a família possuía outros utensílios de cozinha, o provável era

quefossemacessóriosdocaldeirão.Suportesoubalançosdeferro,algunslindamente decorados, destinavam-se a fazer a panela pesada e seuconteúdo balançarem sobre o fogo, afastando-se dele e voltando, numaforma de controle de temperatura tão instantâneo quanto acender umfósforo, ainda que bem mais perigosa. Quem não podia bancar essesmecanismos complexos possuía uma ou duas trempes – engenhosossuportezinhos de três pernas, feitos para manter o caldeirão levantadoacimado calordiretodo fogo.Os ganchose garfosde carneeramoutrosacessórios do caldeirão, usados para suspender a carne acimado líquidoborbulhante,ouparapescarcoisasdesuasprofundezas.

Havia muitas formas e tamanhos de caldeirões. Na Inglaterra, elescostumavamserdefundo“arriado”oucôncavo(emoposiçãoaosbojudos)efeitosdebronzeouferro,parapoderemsuportarocalordofogo.Quandotinham três pernas, era sinal de que se destinavam a se erguer sobre asbrasas. As panelas de ferro, que tendiam a ser menores, tinham o bojoarredondado e alças, para ficarempenduradas acimado fogo.Usavam-sevaras ou pegadores para manipular as alças, que se aqueciam a umatemperatura insuportável. Cozinhar com uma única panela podia darorigemaestranhascombinaçõesdeingredientes,todosmisturados.Nãosesabeaocertocomquefrequênciaera lavadoocaldeirão,na faltadeáguacorrente e de detergentes. As sobras da refeição anterior quase sempreficavamnofundo,paratemperaraseguinte.O folclore europeu é assombradopelo fantasmado caldeirão vazio – o

equivalenteantigodageladeiravazia–,umsímboloda fomeabsoluta.Namitologiacelta,oscaldeirõessãocapazesdeevocaraeternaabundânciaeoconhecimentoabsoluto.Terumcaldeirãoenadaparapôrdentrodeleeraamaisprofundamiséria.Naconhecidahistóriada“Sopadepedras”(quetemmuitas variações), alguns viajantes chegam a uma aldeia, carregando umcaldeirãovazio,e imploramporcomida.Osaldeõesrecusam.Osviajantespegamumapedraeumpoucod’águaedizemestarfazendouma“sopadepedras”. Os aldeões ficam tão fascinados que cada um contribui comalgumacoisinhaparaapanela–unslegumes,unstemperos–,atéque,porfim,a“sopadepedras”torna-seumensopadosaboroso,parecidocomumcassoulet,etodospodemsebanquetear.Comprar um caldeirão era uma despesa de monta. Em 1412, os bens

terrenos dos londrinos John Cole e sua mulher, Juliana, incluíam umcaldeirãode7,5quilos,novalorde4xelins(naépoca,umapaneladebarrocustavacercadeumpenny,quecorrespondiaa1⁄12doxelim).Umavezcomprada ou obtida por meio de troca, uma panela de metal podia serconsertada muitas vezes, para ter sua vida prolongada; quando surgiamburacos, pagava-se a um profissional para soldá-los. Um caldeirão debronzedesenterradodeumcharcodeCountyDown,naIrlandadoNorte,em1857exibiaseispontosdeconsertos:osburacospequenostinhamsidotapados com rebites; os maiores, remendados com bronze derretido,derramadosobreaabertura.O caldeirão podia não ser o recipiente ideal para todos os pratos. No

entanto, uma vez adquirido, praticamente ditava o padrão de todas asrefeições(complementado,quandomuito,porumaouduaspanelinhasde

barro).Todasasculturastinhamsuavariaçãodopratofeitonumapanelaúnica,bemcomovariaçõesdapanelaespecíficausadaparafazê-lo:potaufeu,guisadoirlandês,dobradinha,cocido.Acozinhadeumapanelasóéumaculinária da escassez: combustível escasso, utensílios escassos,ingredientes escassos. Nada se desperdiça. Não é à toa que a comidaoferecidaparaamparoàpobrezaassumequase semprea formada sopa.Quandonãoháumaquantidadesuficienteparadistribuir,sempresepodeacrescentarumpoucod’águaetornarapô-laparaferver.Oscozinheirosinventavammaneirassagazesdecontornaralimitaçãoda

panela única. Pondo legumes, batatas e a sobremesa em saquinhos demusselinaseparadosnaáguafervendo,erapossívelcozinharmaisdeumacoisaaomesmotemponumaúnicapanela.Asobremesapodiaacabarcomcerto gosto de repolho – e o repolho, um tanto adocicado –, porém aomenos era umamudança em relação à sopa. Em Lark Rise to Candleford(1945),FloraThompsondescreveucomoerafeitoojantardoshomensqueregressavamdocampo:

Tudoera cozidonomesmoutensílio: uma fatiade toucinho, que equivalia apoucomaisdeumaprovinhapara cadaum; repolhoououtras verdurasnuma rede, batatas emoutra, e oroly-poly, um rocambole de geleia embrulhado num pedaço de pano. Parece um métodocaótico, nestes dias de fogões a gás e elétricos, mas cumpria a sua finalidade, porque,controlandocomcuidadoomomentodecolocarcadaalimentoemantendobem-reguladaacocçãoemfogobrando,todososalimentossemantinhamintactoseseproduziaumarefeiçãoapetitosa.

Na década de 1930, os nazistas se apoderaram da imagem frugal darefeição de uma panela só e lhe deram um uso ideológico. Em 1933, ogoverno de Hitler anunciou que os alemães deveriam reservar umdomingo,deoutubroamarço,parafazerumarefeiçãodeumapanelasó:oEintopf [cozido ou guisado; literalmente “uma panela”]. A ideia era que,com isso, as pessoas economizariamdinheiro suficienteparapoder fazerdoaçõesaospobres.Oslivrosdecozinhaforamreescritosàspressasparaincorporaranovapolítica.Umacoleçãodereceitaslistounadamenosque69tiposdeEintopf,incluindomacarrão,gulache,guisadoirlandês,sopadearroz sérvia, inúmeras variações com repolho e a tradicional sopa debatatasalemã.ApromoçãonazistadoEintopffoiumapropagandaastuta.NaAlemanha,

muitos jáviamoEintopfcomoosuprassumodarefeiçãofrugal,umpratoque simbolizava o sacrifício e o sofrimento. Dizia-se que a Alemanhaconseguiraderrotarosfrancesesem1871,emparte,porqueseusexércitos

haviam enchido a barriga de Erbswurst, um creme grosso de ervilha egordura bovina feito numa panela só. O Eintopf veio com um mar delembrançassaudosas.AcelebraçãodoEintopfpelosnazistasfoiumsinal,naverdade,dequea

maioria das cozinhas – tanto na Alemanha quanto em outros lugares –havia ultrapassado a culinária de uma panela só. Como muitos outrossímbolos fascistas, esse prato remontava ao passado. Só se poderia vê-locomo economia numa sociedade em que a maioria das refeições fossepreparada com o uso de mais de uma panela. Ao ressuscitarem o idealcamponêsdoscontosdefadas,deumsócaldeirãopenduradonumganchoúnico sobre o fogo, os nazistas mostraram, sem querer, que a época docaldeirão havia passado. Embora os tempos fossem difíceis para aAlemanhadadécadade1930,amaioriadascozinheiras–oquesignificavaamaioriadasdonasdecasa–esperavadispordeumsortimentodepanelasefrigideirascomquecozinhar,enãodeapenasuma.

A PETWORTH HOUSE, em Sussex, é uma das residências mais grandiosas daInglaterra. Atravessou gerações da mesma família aristocrática, osEgremont,desde1150,emboraaconstruçãoatualdatedoséculoXVII.Essamansão magnífica, situada num parque de caça ao cervo com área desetecentos acres, é hoje administrada pelo National Trust.c Os visitantespodemdeslumbrar-secomareluzentebatteriedecuisinedecobreexibidana cozinha, que conta comum total demais demil utensílios: fileiras decaçarolasde caboepanelasdeensopado, alémdemúltiplas tampasparacombinar, todas imaculadamente alinhadas, da maior para a menor, daesquerdaparaadireita,emdiversosaparadoresenormes.OscozinheirosdePetworthdeviamterapanelaexataparacadaprato.OequipamentodePetworth incluipanelõescomumatorneiranabase,

para liberar água quente (como um samovar); panelas múltiplas paraguisar, saltear e preparar omeletes, em todos os tamanhos que se possadesejar;umapanelagrandepararefogareassaremfogobrando,comumatampafundadebordasaltas,concebidaparaconterbrasasepermitirqueoalimento fosse cozinhado por cima e por baixo ao mesmo tempo. Aspanelas reservadas para o preparo de peixes são um mundo à parte.Naqueles esplêndidos velhos tempos, haveria peixes excelentesno litoralde Sussex, e era provável que os cozinheiros de Petworth lhes fizessemjustiça.As cozinhasdamansãocontêmnãoapenaspanelas compridasdepeixe(comumsuportevazadoparaescoamentonaparteinterna,paraque

opeixepudesseserretiradodocaldoqueoescalfousemsedesintegrar)euma frigideira para peixes (redonda e aberta, com um escorredor dearame),mastambémumaassadeiraespecialparalinguado(emformatodelosango, imitando a forma do peixe) e diversas panelas menores,especificamentecriadasparaprepararcavalas.

AcozinhadePetworthnemsemprefoitãobem-equipada.PeterBrears,historiador dos alimentos, estudou seus inventários, que documentavam“todos os objetos móveis” usados pelos cozinheiros: cada panela, cadafrigideira.Oprimeiro inventário foi feito em1632,depois vieramoutros,em 1764 e em 1869. Esses documentos proporcionam um instantâneo,século a século, do equipamento de culinária disponível nas mais ricascozinhasbritânicas.Odetalhemais revelador é este: em1632,duranteoreinado dos Stuart, Petworth não possuía, apesar de toda a sua riqueza,umaúnicapanelaparaguisados,tampoucoumacaçarola.Nesseperíodo,osutensílios para ensopar ou ferver eram uma grande caldeira fixa (umgigantescotoneldeáguafervente,usadoparaforneceráguaquenteàcasainteira,nãoapenasàcozinha);novepanelas(oucaldeirões)parasopasoucaldos;umapaneladeferroparaopreparodemariscosealgumaspanelasde peixe; e cinco panelinhas de latão para frituras, providas de três pés,para serem colocadas sobre o fogo.Não se trata de uma cozinha emquepudéssemosprepararummolhoholandêsoumolhoespanhol.Erapossívelensopar, escaldar ou ferver, mas sem grande refinamento. O foco dessacozinhaestavaemassar,nãoemcozer:havia21espetos,seispingadeiras,trêsconchasparamolhoecincogrelhas.Em1764, tudo isso haviamudado. Petworth se desfizera de alguns de

seusespetos(restavamapenasnove)eadquirira24panelasgrandesparaguisados, doze pequenas e nove caçarolas e panelas para banho-maria.Esse aumento enorme do número e da variedade das panelas refletia osnovos estilos na culinária. Os velhos métodos medievais, pesados eapimentados,estavamdepartida,substituídosporumacomidamaislevee

amanteigada. Em 1764, o aristocrata estava familiarizado com muitosalimentos que sequer eram conhecidos em 1632: chocolate espumante ebiscoitoscrocantes;molhoscítricosdesaborpicanteeosragustrufadosdanouvelle cuisine francesa. Os novos pratos pediam novos equipamentos.Hannah Glasse, uma das mais famosas autoras de livros de cozinha doséculoXVIII,consideravaimportantedispordapanelacertaparaderreteramanteiga(umtipodemolhoencorpadodemanteigaderretidacomeçavaaseruniversalmenteservidocomoacompanhamentodacarneoudopeixe):afrigideiradeprataerasempreamelhor,recomendou.Em1869, as cozinhasdePetworthpossuíamumabateria aindamaior.

Peter Brears sugeriu que os cozinheiros vitorianos julgariam o vastoequipamentode1764“totalmente insuficiente”.O focodaculináriavinhase desviando, enfim, dos assados no espeto. Agora, a verdadeira açãoocorrianaspanelasdecobre,apoiadassobrechapasaquecidaspelovapor.Havia também três panelas de banho-maria, para alimentos que exigiamumacocçãomaisdelicadapelaáguadoqueafervura.Onúmerodepanelaspara guisados e caçarolas havia passado de 45 para 96, num sinal dosimples volume e variedade dos diferentes molhos, glacês e guarniçõesexigidospelaculináriavitoriana.Apropósito, qual é a diferença entre umapanela para guisados e uma

caçarola?Nãomuita,éaresposta.NoséculoXVIII,ascaçarolastendiamasermenores,mais apropriadas para asmexidas furiosas das emulsões edas caldas. Não necessariamente tinham tampa, pois muitas vezes eramusadas apenas para aquecer molhos e caldos de carne ou legumespreviamentepreparadosnumapaneladeguisarecoadosnumapeneira.Aspanelas para guisados erammaiores e tinham tampa; podiam comportarvárias perdizes e um sortimento de bochechas de boi, vinho tinto ecenouras;um fricassêde frangoouumacombinaçãodelicadade timodecordeiroeaspargos.Eraapaneladeguisadosquepunhaacomidanamesa.Com o tempo, entretanto, a caçarola ganhou terreno. Em 1844, ThomasWebster,autordeAnEncyclopaediaofDomesticEconomy,escreveuqueascaçarolas eram “recipientes redondos menores, para ferver o alimento,feitascomumcabosó”,aopassoqueaspanelasparaguisadoseramfeitascomalçasduplas,umanatampaeumanapanela.Websteracrescentouqueaspanelasparaguisadoseramfeitasdemetalmaisgrossoetendiamaterabasearredondadaemenosangulosa,oqueastornavamaisfáceisdelavar.Hoje em dia, já não falamos em panelas para guisados, usamos o termogenérico“caçarola”ou“panela”,comousemtampa,paradesignartodosos

nossos recipientes de cozimento do cotidiano, mesmo quando não osusamosparanadamaissublimedoqueesquentarfeijãoenlatado.Muitascozinhasaindaaludem,modestamente,àbateriadecozinha.Ela

pode consistirnum triodepanelas esmaltadas, empilhadasnumsuporte,ounumafileirabem-arrumadadepeçasda linhaLeCreuset,dispostasdamenorparaamaior.AbateriadecozinhafoiumadasmuitasideiasabrotardaeradeesclarecimentoerevoluçãodoséculoXVIII.Oraciocínioportrásda batterie era o oposto diametral das limitações da culinária de umapanela só.A ideia,queainda temdefensores fiéis entreospraticantesdahaute cuisine, é a seguinte: cada componentedeuma refeição requer seurecipiente especial. Não se pode saltear um alimento numa frigideira delateraiscurvas,nemfritaroutronumafrigideirasautédelateraisretas.Nãosepodeescalfarumlinguadosemaassadeiraparalinguado.Vocêprecisado utensílio certo para trabalhar. Em parte, isso reflete o novoprofissionalismo surgido na culinária no século XVIII e a influência daFrança.Na E. Dehillerin, amais antiga loja de artigos de cozinha existente em

Paris,aindaépossívellouvarosutensíliosdecobre.Alojadefachadaverdeé repleta de recipientes dos quais você nunca soube que precisava: umaescargoteira para assar escargots commanteiga de ervas e alho, formaspara os tipos mais sofisticados de bolos e tortas, minúsculas caçarolasapenasparamolhos,umaprensaparafazerumpratomuitoespecíficodepatoprensado(noqualacarcaçaéespremidaatéquesedesprendamtodosos sumos dos órgãos), panelas com tampa para ragu, panelas de sopa e,sim,atéumaassadeiradecobrepara linguadomuitoparecidacomaqueexistenaPetworthHouse.OlugarpareceimpregnadopeloespíritodeJuliaChild,queabriuseuMasteringtheArtofFrenchCooking (1961)comumasevera recomendação: não economize panelas. “O cozinheiro queeconomiza panelas prejudica a simesmo. Use todas as panelas, tigelas eutensíliosdequeprecisar.”William Verrall foi um mestre-cuca setecentista e dono da pousada

WhiteHart,emLewes,nocondadodeSussex,naInglaterra,queem1759publicouumlivrodereceitas.Verrallnãotinhaamenorpaciênciacomascozinhas que tentavamarranjar-se com “umapobre e solitária panela deguisados”eumaúnicafrigideira,“negracomoomeuchapéu”.Paraele,eraóbvio que “não se pode dar a um bom jantar uma aparência bonita earrumadasemosutensíliosadequadosparaprepará-lo,taiscomopanelasperfeitas de vários tamanhos”, omeleteiras e caldeirões. Verrall conta a

história de “metade de um jantar de alto luxo” que foi inteiramenteestragada“pelousoequivocadodeapenasumapanela”.Essenovoalvoroçoarespeitodaspanelas,doséculoXVIIIemdiante,foi

alimentadopeloressurgimentodaindústria inglesadecobre.Antesdisso,osestoquesdecobreeram importadosdaSuécia.Em1689,entretanto,omonopólio sueco tinha chegado ao fim e o cobre inglês começara a serproduzido–grandepartedeleemBristol–emquantidadesmaioreseporumcustomuitomenor.Issopreparouoterrenoparaqueasprateleirasseenchessemdepanelas de cobre.A expressão francesabatteriede cuisine,que se tornou a forma universal de denominação do equipamento decozinha a partir do início do século XIX, remonta às panelas de cobre. Abatterieeraocobreliteralmentebatidoatéassumiraformadesejada.A bateria de cobre vitoriana foi, a seu modo, o ponto alto da longa

história das panelas, frigideiras e recipientes similares. A combinação dehabilidade artesanal, qualidade dometal em si, disposição de adequar oequipamento às exigências da culinária e existência de cozinhas ricas,equipadas com o batalhão de cozinheiros necessários para controlar emanipular os diversos recipientes, jamais seria igualada, a não ser nascozinhas dahaute cuisine francesa do século XX. Por isso, é interessanteque,apesardesuascozinhasequipadíssimas,osvitorianostenhamafamadehaver destruído a culinária britânica, reduzindo tudo a um lodaçal desopaWindsormarrom.dAlgunshistoriadoresafirmaramqueessafamanãosejustifica.Masnãohácomofugirdaquestãodoslegumeseverduras.Asreceitas vitorianas e do período da Regência nos instruem,sistematicamente,aferveroslegumespormuitos,muitosmaisminutosdoquesabemosqueelesnecessitam.Brócolis:vinteminutos.Aspargo:quinzeadezoitominutos.Cenoura(estaéumcrime):45minutosaumahora.Dequeadiantateraúltimapalavraempanelas,senãoseelaborouométodobásicoparacozinharlegumeseverduras?Mas é possível que os vitorianos não maltratassem tanto os legumes

quantosupomos.Apresunçãogeraléqueelesoscozinhavamdemaispornão darem atenção suficiente ao assunto. No entanto, talvez a verdadefosse o contrário: eles pensavam demais nisso. Os autores de livros dereceitasoitocentistaserambastantesensíveisàtexturadoquepreparavam–comonós,procuravamcozinharoslegumesatéqueficassem“macios”–eao vigor comque ferviamos alimentos. É verdade que temiamo caráterindigestodosvegetaismalcozidos,comooscozinheirosvinhamfazendoháséculos: legumes e verduras crus eram considerados nocivos desde os

temposdamedicinahumoraldosgregos.Contudo,omedoquesentiamdeexagerarnacocçãonãoeramenor.WilliamKitchiner,autordeTheCook’sOracle (1829),assinalouque,aocozeraspargos, “háquese tomargrandecuidadoparaobservarotempoexatoemqueeles ficammacios;retire-osdo fogonesse instanteeelespreservarão sua core sabor característicos;deixe-osferverpormaisumoudoisminutoseafervuradestruiráambos”.Não são as palavras de alguém que tencionasse produzir uma pasta deprodutosvegetais.Tambémsoamcomoumaafirmaçãoestranha,umavezqueKitchinerhaviaacabadoderecomendarquesefervessemosaspargosporvinteatrintaminutos.Poroutrolado,eleosatavanumfeixe,eassimeles levam muito mais tempo para cozinhar do que quandoindividualmentecozidos.Não foi sempensarquesechegouaesses temposde fervura.Àsvezes

nosesquecemosdequesempreserefletiumuitosobreamelhormaneiradecozinhar.Amaioriadosautoresoitocentistasdelivrosdeculináriafaziaquestão de oferecer conselhos baseados em provas “científicas”, ou, pelomenos, “racionais”. O dadomais importante sobre a fervura, no que lhesdizia respeito, eraque a temperaturada água ferventenuncapassavade212°F(100°C,paranós)–númeroapartirdoqualaáguasetransformavaem vapor, sem jamais vir a ficar mais quente. Cientistas como o condeRumfordlamentavamaineficiênciadacocçãodosalimentosnumafervuragalopante:dequeadiantava,seissonãoaumentavaatemperaturadaágua?Eraapenasumdesperdíciodeenergia.Em1815,RobertsonBuchanan,umespecialistaemeconomiadecombustíveis,observouque,depoisdeatingiropontodeebulição, “aáguapermanecenomesmonívelde temperatura,pormaisvigorosamentequeferva”;osautoresdelivrosdereceitassemprecitavam Buchanan a esse respeito. William Kitchiner disse ter feito aexperiênciadeintroduzirumtermômetronaágua“duranteoestadoqueoscozinheiros chamamde fogobrando; a temperatura estava em212°F, ouseja,osmesmosgrausdamaisintensafervura”.Alógicaportrásdissoeraqueomelhoreraferverosalimentosemfogobrando.Em1868,PierreBlot,professordegastronomiadaAcademiadeCozinha

de Nova York, lançou um ataque contra as pessoas – donas de casa ecozinheirosprofissionais–que“maltratavam”aartedacocção,fervendoosalimentos “depressa, e não devagar”: “Coloquem um pequeno oceano deágua sobreum fogovivoenele fervamalgumacoisa, com todaa rapidezque puderem, e os senhores produzirão a mesma quantidade de vapor,porémnãocozinharãomaisdepressa;ograudecalorseráomesmoquese

cozinhassem lentamente.” Quando se tratava do preparo de carnes, ocozimentolento,emvezdafervurarápida, foiumbomconselho(“quantomaisdevagaracarnecozer”,disseKitchiner,“maistenra,maissubstanciale mais clara ficará”). Todavia, no caso dos legumes (afora a batata), acocção lenta não era tão benéfica. Alongava demais o tempo de preparo,sobretudo porque os cozinheiros com uma bela batterie de cuisineinclinavam-se a ferver os alimentos na menor panela possível. VejamosnovamenteoquedizKitchiner:

Otamanhodaspanelasdefervuradeveadaptar-seaseuconteúdo:quantomaiorapanela,maioroespaçoqueocupanofogo,eaquantidademaiordeáguarequerumaumentoproporcionaldofogoparafervê-la.

PanelapequenacomoessaEsquentadepressa.

É verdade. Mas a panelinha com uma pequena quantidade de água,fervendoem fogobrando,demoramuitomaisparacozinharcenourasdoque uma panela maiorzinha, com água fervendo na quantidade certa. Avantagem de ter apenas uma ou duas panelas grandes, em vez de umapanópliadetodosostamanhos,équevocênãotemaopçãodeadaptaroalimentoàpanela.Etemquelhedaramploespaçonorecipiente.Apiordetodas as situações é a das cozinhas que têm apenas um punhado depanelas, todasmuito pequenas, demodo que, quando se põe o alimentonumadelas,levaumséculoparaqueaáguachegueaopontodeebulição.Os legumes e as verduras do século XIX eram muito menos

excessivamente cozidos do que se poderia supor pelosmeros tempos decozimento, sobretudo levando em conta que os próprios vegetais eramdiferentes: as modernas variedades de sementes e métodos de cultivotendemaproduzirplantasmaistenras.Oaspargovitorianodeviasermaistaludo, de modo geral, e a cenoura devia ser mais dura. Mesmo usandonossos legumes e verduras tenros da atualidade, o método de fervuravitorianonãoresultanumapapacompleta.Jáexperimenteicozinharfatiasdecenouraapertadasnumapanelinhapor45minutos.Incrivelmente,elasaindasaírammeiocrocantes,emboranão tantoquantoaoserem jogadasnumagrandepanelade inox comágua fervilhantepor cincominutos,ou,melhorainda,quandocozidasnovapor.No entanto, o domínio vitoriano da tecnologia da fervura era falho. É

absolutamente correto que, com uma pressão normal, nunca podemosaquecer a água a mais de 212°F/100°C (em pressões superiores, ela

esquentamuitomais, razão por que as panelas de pressão cozinham tãodepressa os alimentos). Mas esse não é o único fator determinante darapidez com que o alimento ferve. A ebulição também é importante – amedida na qual a água fervente borbulha. Em termos básicos, atransferência de calor na cocção é determinada pela diferença detemperatura entre o alimento e a fonte de calor. Em teoria, portanto, alógica vitoriana parece sensata: uma vez que a água do cozimento tenhachegadoa212°F/100°Coupertodisso,nãodevefazergrandediferençasea água borbulha vigorosamente ou apenas fervilha. Mas nossos olhos enossaspapilasgustativasnosdizemquesim.Arazãoéqueaáguaqueferveadequadamentemovimenta-sedemaneiracaótica,etransferecalorparaoalimentováriasvezesmaisdepressadoqueaáguaqueapenas começaafervilhar.A transferênciadecalor tambémémais rápidaquandohámaiságuanapanelaemrelaçãoaoalimento.Umapanelagrande,comáguaemabundânciaesemumexcessodelegumeseverduras,cozinhamuitomaisdepressa do que uma panelinha perfeita de cobre, feita sob medida eabarrotadaatéaborda.Issoexplicaporque,mesmoquandoosvitorianosrecomendam uma fervura “enérgica” desses alimentos, os tempos decozimentocontinuamlongos.Nós, da geração dasmassas, sabemos disso por instinto. Podemos não

saber reduzir um molho de carne até engrossá-lo nem preparar umacharloterussa.Senosdessemumaassadeiradecobreparalinguados,nãoteríamos ideia do que fazer com ela – não que isso tenha grandeimportância, já que os filés de peixe que costumamos consumir ficamótimos preparados numa assadeira normal. Mas sabemos fazer umafervura rápida muito melhor que os vitorianos: pegamos um pacote defusilli,preparamosnossamaiorpanelaefervemosamassaomaisdepressapossível, numa profusão de água, durante dezminutos, até que ela fiqueperfeitamentealdente, e então a misturamos commanteiga ou com umbommolho de tomate. A única coisa que procuramos numa panela paramacarrão é o volume grande. Depois de dominar essa técnica, podemosfacilmentetransferi-laparaoslegumeseasverduras:quatrominutosparaosbrócolis,seisparaavagem,esfregarcomsalmarinhoealgumasgotasdelimão e comer. Os cozinheiros vitorianos realizavam inúmeras proezasmuito mais assustadoras: gelatinas em forma de castelo, bolosarquitetônicos. Mas a simplicidade dos legumes e das verduras cozidosestavaforadoseualcance.Os alimentos fervidos vitorianos tinham outro problema: as próprias

panelas. O cobre é um excelente condutor de calor; o único metal maiscondutivoqueelenaspanelaséaprata.Mas,aoentraremcontatocomosalimentos, sobretudo os ácidos, o cobre puro é venenoso. As panelas decobre tinhamumrevestimento finodeestanho,queéneutro,mas,comotempo, a superfíciedeestanhosedesgastava, expondoo cobrequehaviapor baixo. “Refaça com frequência o revestimento de estanho de suaspanelas”:eisumarecomendaçãocomumnoslivrosdereceitasdosséculosXVIII eXIX. Seos sereshumanosdaquela épocaassemelhavam-seaosdeagora,oscozinheirosdeviamadiarcomfrequênciaessanovaaplicaçãodeestanho às panelas, e acabavam envenenando aqueles para quemcozinhavam. Na verdade, os cozinheiros que desconheciam os efeitosnocivosdocobrebuscavamseuspoderesreverdejanteseusavampanelasde cobre sem revestimento para fazer conservas de nozes verdes e depepinos. Em suma, aspanelasde cobre são encantadoras, excetopor seupotencialdedarumgostoruimaosalimentosedeenvenenaraspessoas.Derepente,aquelasreluzentesbatteriesdecuisinevitorianasnãoparecemtãodesejáveis.

ABUSCADAPANELAIDEALdecozinhanãoéfácil.Hásempreumganhoeumaperda.Como disse certa vez James Beard, o grande autor norte-americano delivrosdereceitas:“Nemmesmonomelhordosmundosexistealgoquesepossachamardeummetalperfeitoparaaspanelas.”Esperamos muitas coisas de uma boa panela, e nem todas são

encontradasnumúnicomaterial.Paracomeçar,eladeveserumaexcelentecondutora de calor, para aquecer o alimento com rapidez e distribuiruniformemente o calor pela base (nada de pontos quentes!). Deveequilibrar-sebemnamãoeserleveefácildemanusearnofogão,comumcaboqueapessoapossasegurarsemsequeimar.Mastambémqueremosque sejadensae sólidao suficientepara suportaro calor intenso semsedeformar, lascar ou rachar. A panela ideal deve ter uma superfície nãoreagente,nãoaderente,nãocorrosiva,fácildelimpareduradoura.Deveterumformatobonitoeseassentarbemsobreabocaouachapadofogão.Ah,enãodevecustarumafortuna.Maisdoquetudoisso,apanelarealmenteboa tem uma qualidade – impossível de quantificar – que a torna nãoapenas funcional,mas querida: “Olá,minha velha amiga”, pensa você, aoapanhá-lamaisumavez.Tradicionalmente, os livros de receitas começam por uma lista dos

utensíliosnecessários.Enquantooautorpercorreagamademateriaisde

que pode ser feita uma panela, há um ar constante de ambivalência, um“Sim, mas…”. A cerâmica, por exemplo, é ótima, até o momento em queracha.Omesmoseaplicaaosrecipientesdevidrorefratário,oupirex,quesãoótimosnoforno,porémfrágeissobreachama.Oalumínioébomparafritaromeletes,masnelenãopodemospôralimentosácidos.Dizemqueaprataéexcelente,excetopelopreçodealto luxo(epeladorsubsequente,quandoela é perdidaou furtada);masos alimentospreparadosnapratatêm gosto de ferrugem, a menos que as panelas se mantenhamescrupulosamente limpas. As panelas pesadas de ferro fundido são asfavoritas de muitos cozinheiros. Os recipientes de ferro são usados hácentenas de anos e continuam a ser os preferidos para pratos caseiros,comoatartetatinnaFrançaeopãodemilhonosEstadosUnidos.Setiverboatêmpera,afrigideiradeferrofundidotemexcelentespropriedadesnãoaderentes e, por sermuitopesada, consegue suportar a alta temperaturanecessáriaparagratinar.Oinconvenienteéqueenferrujamuito,senãoforcuidadosamente enxugada e besuntada de óleo depois do uso. Tambémlibera pequenas quantidades de ferro nos alimentos (embora isso sejabenéfico,sevocêestivercomanemia).Asoluçãoparamuitosdessessenõesfoioferrofundidoesmaltado:ferro

fundido revestido de uma camada de esmalte vitrificado, cujo exemplomaisfamosoéa linhadepanelase frigideirasLeCreuset®.Oprincípiodaesmaltagem é muito antigo: egípcios e gregos faziam joias esmaltadas,fundindo vidro em pó com contas de cerâmica através da queima atemperaturas muito elevadas (750 a 850°C). O esmalte começou a seraplicado ao ferro e ao aço por volta de 1850.Mais tarde, em 1925, doisindustriaisbelgasquetrabalhavamnonortedaFrançativerama ideiadeaplicá-lo a utensílios de cozinha de ferro fundido, alicerce da cozinha detoda vovó francesa.ArmandDesaegher era especialista emmoldagemdemetais. Octave Aubecq entendia de esmaltagem. Juntos, produziram umadaslinhasdefinitivasdeutensíliosdecozinhadoséculoXX,começandoporumacocotteredonda(quechamaríamosdecaçarola)e,nocorrerdosanos,passandoparaosramequinseasassadeiras,panelascomtampaparafornoe fogão epanelas tipo tajine, tostadeiras ewoks, formasparaquiches outortas, e também grelhas. Parte do atrativo das peças Le Creuset são ascores, quemarcam amudança das preferências no design para cozinha:laranjanadécadade1930;amareloElyséenade1950;azulnade1960(acorfoisugeridaporElizabethDavid, inspirando-senummaçodecigarrosGauloises); e azul-cobalto, cereja e granito, atualmente.Tenhoumparde

peçasdecoramêndoa(umnomechiqueparacreme),enãohánadamelhorparaumguisadodemorado,cozidolentamente,porqueoferrofundidoseaquece por igual e retém magnificamente o calor, enquanto o esmalteimpedequeacomidaadquiraqualquersabormetálico.E, sobretudo,elassãocampeãsdeencanto;avisãodeumanofogãofazocoraçãotransbordardealegria.Umadasmelhorescozinheirasqueconheço(minhasogra)faztodaasua

comida em panelas azuis da Le Creuset. Ela se formou na escola deculinária Cordon Bleu, antes de se casar, e suas refeições têm um toqueanglo-francês. Em suaspanelas tratadas com todoo cuidado, ela preparacremes bechamel oníricos, ervilhas na manteiga e sopa cremosa debeterraba. As panelas parecemperfeitamente compatíveis com seu estiloculinário.Elajamaispensariaemserviracomidaempratosfriosoucomostalheres errados. Seu ferro fundido esmaltado combina bem com ela. Sóquandoumdenós,osmenosdisciplinados, seaventuranacozinhaéqueaparecemossenões.Paracomeçar,sãopanelaspesadas,esempreficocommedodeperdera forçadospulsosedeixarumadelascair.Há tambémaquestãodequenenhumatemtamanhosuficienteparacozermassas.Masoverdadeiroproblemaé a superfície. Se você temohábitode cozinharnoaçoinoxidável,queémais indulgente,éumchoquedescobrira facilidadecom que as coisas agarram no fundo das panelas Le Creuset, atemperaturas elevadas. Em várias ocasiões, deixei uma das panelas daminha sogra ultrapassar umpouquinho o tempo certo no fogo e quase adestruí (é nessas horas que ela aparece para salvar a pátria, com águasanitária).Quandoaspanelasantiaderentesentraramemcenapelaprimeiravez–

foram lançadasnaFrança, pelaTefal, em1956–, pareceramummilagre.“Tefal, a panelaque realmentenão agarra”: esse era obordãooriginal.Arazãoporqueacomidaagarranapanelaéareaçãodasproteínascomosíonsmetálicosdasuperfície.Para impedirqueacomidaagarre,éprecisoimpedir que as moléculas de proteína reajam dessa maneira com asuperfície–oumexendooalimentocomtantavigilânciaqueelenãotenhachancedepegarnofundo,ouintroduzindoumacamadaprotetoraentreacomida e a panela. Tradicionalmente, essa camada é fornecida“temperando-se”apanela.Naspanelasdeferronãoesmaltadas–sejaumawok chinesa, seja uma frigideira norte-americana de ferro fundido –, atêmperaéumpassocrucial;sevocêopular,suacomidasairáprejudicada(e a panela vai enferrujar). Primeiro,mergulhe a panela em água quente

comsabão,enxaguando-aeemseguidasecando-a.Depois,espalheóleooubanhanasuperfícieedeixeapanelaou frigideiraaquecendono fogoporvárias horas. Algumas moléculas de gordura se “polimerizam”, deixandouma superfície lisa e brilhante. Cada prato que você prepara acrescentamais uma camada de gordura polimerizada. Com o tempo, a panela oufrigideira fica escorregadia como goma de cabelo. Numa wok bemenegrecida,oalimentodeslizaesalta.Vocêpodeprepararumabateladadepãodemilho numa frigideira bem-temperada e, quando ficar pronto, elesimplesmentesesoltarácomoumcomprimidodeumaembalagem.Masháquetercertadisciplinaparamanterorecipientebem-temperado.Nuncasedeve areá-lo. A superfície também pode ser destruída por ingredientesácidos, como tomate ou vinagre. Quando a têmpera de um recipiente deferrofundidosedesgasta,éprecisorecomeçartodooprocesso.Em1954,MarcGrégoire,umengenheirofrancês,veiocomoutrasolução.

OPTFE,oupolitetrafluoretileno,eraconhecidopelosquímicosdesde1938.Essasubstânciaescorregadiaerausadapararevestirválvulasindustriaiseequipamentodepesca.Segundoconsta,amulherdeGrégoirefoiaprimeiraasugerirqueeletentasseusaroPTFEquevinhaaplicandoaosapetrechosdepescaparasolucionaroproblemadesuaspanelas,quefaziamacomidaagarrar.EledescobriuummododeligaroPTFEaumapaneladealumínio.Como funciona isso? A comida gruda quando se liga à superfície da

panela;masasmoléculasdoPTFEnãoseligamanenhumaoutramolécula.Nonívelmicroscópico,oPTFEcompõe-sedequatroátomosdeflúoredoisátomos de carbono, que se repetemmuitas vezes numamolécula muitomaior.Depoisqueseligaaocarbono,oflúornãoquerseligaramaisnada,nemmesmoaosmalfeitoresdesempre,comoovosmexidosoubifes.Vistaao microscópio, diz o cientista Robert L. Wolke, uma molécula de PTFEassemelha-semuitoaumalagartaespinhosa,eessa“armaduradelagarta”impede que o carbono grude nasmoléculas da comida. Daí aquele efeitoteatral de quando pingamos um tantinho de azeite numa panelaantiaderentenovaeelaparecerepelirasgotas.O mundo ficou louco pelo Teflon. A DuPont lançou seu primeiro

recipiente antiaderente nos Estados Unidos em 1961, chamando-o de “Apanelafeliz”.Noprimeiroano,asvendasatingiramummilhãodeunidadespormês.Talcomoacuradacalvície,umapanelaquecozinhaosalimentossemgrudaréumainvençãouniversalmentedesejada.Jáem2006,70%dosutensílios de cozinha vendidos nos Estados Unidos tinham umrevestimentoantiaderente;elesetornaraaregra,emvezdaexceção.

Mas, com o passar dos anos, tornou-se óbvio que os produtos nãoaderentes não eram impecáveis. Nunca faria um guisado nem um pratosauténumapanelaTeflon,porque,quandooantiaderentefunciona,nãoseconseguem aqueles irresistíveis pedacinhos dourados e pegajosos paradissolvernummolho.Nãoraro,entretanto,tem-seoproblemainverso:asadmiráveispropriedadesantiaderentesnãoduram.Comotempo,pormaisqueatratemoscomcuidado–evitandoosutensíliosdemetal,protegendo-adastemperaturasaltíssimas–,asuperfícieantiaderentesdeumapanelaou frigideira tratada com PTFE simplesmente se desgasta, deixando-noscomometalqueháporbaixo,oqueafazperdertodaafinalidade.Depoisdeumexcessoderecipientesantiaderentesdecurtaduração, resolviqueelesnãovalemapena:émuitomelhorcomprarumapanelatradicionaldemetal,comoalumínioouaço,oudeferrofundido,etratá-lacomóleo;dessemodo, apanelamelhora comouso, emvezdepiorar.Cadavezquevocêazeitaecozinhacomumapaneladeferrofundido,elaganhaumapátinaamais, ao passo que, cada vez que você cozinha com uma antiaderente, orevestimentoficaumpoucomenosescorregadio.Háoutrasrazõesparapensarantesdecomprarpanelasantiaderentes.O

PTFE é uma substância atóxica, mas, quando aquecido a temperaturasmuito elevadas (250°C ou mais), emite vários subprodutos gasosos(fluorocarbonos)quepodemsernocivos,causandosintomassemelhantesaos da gripe (“febre dos vapores de polímeros”). Quando surgiram asprimeirasdúvidassobreasegurançadaspanelasantiaderentes,aindústriaretrucouqueelasnuncaseriamaquecidasatemperaturastãoelevadasnousonormal–mas,naverdade,sedeixarmosumadelaspreaquecendosemóleo, é perfeitamente possível que essas temperaturas sejam atingidas.Alémdisso,em2005,aAgênciadeProteçãoAmbientaldosEstadosUnidosprocurouverificarseoPFOA(ácidoperfluoro-octanoico),substânciausadana fabricação do PTFE, era carcinogênico. A DuPont, principal fabricantenorte-americana, assinalou que a quantidade de PFOA que permanecenumapanelaacabadanãoémensurável,mas,comousemmotivo,muitaspessoasficaraminquietascomomilagredosprodutosantiaderentes.Frenteatodosessesriscos,comoescolherapanelacerta?Em1988,um

engenheironorte-americanochamadoChuckLemme,reconhecidocomooinventorde27produtospatenteados,desdeahidráulica até conversorescatalíticos,resolveuabordarsistematicamenteaquestão.Examinoutodososmateriaisdisponíveiseosavaliouemnovecategorias:

1. Uniformidade da temperatura (Na minha língua: o material vaiuniformizarospontosquentesdapanela?)

2. Reatividadeetoxicidade(Vaimeenvenenar?)3. Dureza(Orecipientevaisedeformar?)4. Simplesforça(Sobreviveráaumaqueda?)5. Baixograudeaderência(Minhacomidavaiagarrarnapanela?)6. Facilidadedemanutenção(Éfácildelavar?)7. Eficiência(Conduzbemocalordabaseparacima?)8. Peso(Consigolevantarapanela?)9. Custounitário(Possopagarseupreço?)

Em cada categoria, Lemme atribuiu notas aos materiais, num total dedez. Em seguida, classificou seus resultados, criando um “grau deidealidade”cujanotamáximaseria1.000.OsresultadosdeLemmeconfirmaramcomoédifícil chegaraprodutos

perfeitos de cozinha. O alumínio obteve uma notamuito alta no quesitouniformidadedatemperatura(8,9numtotalpossívelde10),oqueébompara dourar uniformemente uma omelete, mas a nota para a dureza foimuitobaixa(2em10):muitaspanelasdealumínioacabamdeformadas.Ocobredemonstroueficiência(10em10),masédemanutençãodifícil(1em10).Demodo geral, Lemme constatou que nenhumadas “panelas de umúnicomaterial”ultrapassava500pontosnograudeidealidade–emoutraspalavras,metadedanota.Asmelhores foramasde ferro fundido(544,4).Aquelesdentrenósquecontinuamausarpanelasdeferrofundidoestãonapistacerta.Mas544continuaaserumanotabaixa.A única maneira de chegar mais perto dos 1.000 da nota ideal foi

combinarmetais,juntando-osfeitoumsanduíche.Naépocadainvestigaçãode Lemme, o consenso entre os peritos em utensílios de cozinha de altonívelfoiqueasúnicaspanelasdecobrequevaliaapenacomprareramasfeitas de blocos inteiriços de cobre, em contraste com as de fina camadacosmética. No entanto, Lemme constatou que mesmo uma camadafiníssima de cobre, “recobrindo a base principalmente à guisa dedecoração”, podia aumentar em nível drástico a condutividade dorecipiente.Umapaneladeaçoinoxidávelcomespessurade1,4milímetroeumacamadadecobrede0,1milímetroaumentavaacapacidadedeigualarospontosquentes(uniformidadedatemperatura)em160%.Háummodomuito simples de verificar os pontos quentes nas suas panelas. Polvilhefarinha de trigo pura sobre a superfície da panela e coloque-a no fogo a

uma temperatura média. Você verá um padrão castanho começar a seformaràmedidaqueafarinhaqueimar.Seessafaixamarromseespalharportodaasuperfíciedabase,vocêveráqueapanelatemboauniformidadede temperatura. O mais provável, porém, é que apareça um pontinhomarrommais ou menos no centro: um ponto quente. Agora, imagine-setentando saltear uma boa porção de batatas nessa panela: a menos quevocê as mexa com frequência, as que estiverem no centro ficarão meiotostadas, exatamente nesse ponto, enquanto as da beirada continuarãobrancas. As panelas melhores realmente fazem diferença para a suacomida.A sugestão do próprio Lemme para a panela “quase ideal” foi um

compósito. O núcleo interno seria uma liga de aço inoxidável e níquel. Asuperfície interna seria coberta por um dos revestimentos antiaderentesmais duráveis, como níquel tratado por aspersão térmica à chama. Acamada externa da base seria laminada com alumínio, com quatromilímetrosdeespessuranofundoedoismilímetrosnaslaterais.NaépocaemqueLemmeescreveu,essapanelanãoexistia:eraumutensíliodaesferadaficçãocientífica.Lemmenuncaproduziunemcomercializousuapanelaideal; ela só existia em sua mente e, depois de concebê-la, ele voltou aoutros tipos de engenharia.Mas até sua panela imaginária e quase idealtiravaapenasnota734emsuaescala.Aconteceque algumasdasmuitas coisasquequeremosdeumapanela

sãosimplesmenteincompatíveis.Porexemplo,abasefinatornaaspanelasmais eficientes em termos de energia – elas respondemmais depressa adiferentes regulagens da temperatura da chapa elétrica ou da boca dofogão.Issopodeserútilnopreparodemolhosounafrituraquenteerápidadepanquecas,porexemplo,eresultaemcontasmenoresdeenergiaougás.Noentanto,paraacabarcomospontosquentes,abasegrossademetalémelhor. A espessura garante temperaturas mais uniformes no fundo dapanelaeótimaretençãodecalor.Oferrofundidoespessolevaséculosparaaquecer,porcausadesuadensidade,mas,depoisdeaquecido,permanecequente, de modo que não há nada melhor para tostar algo como umacosteleta carnuda, porque a frigideiramantém amaior parte do calor aoreceberacarnefria.Portanto,aspanelasfinaseasgrossassãodesejáveis,masnãosepodefazerumapanelaquesejagrossaefina,aomesmotempo,semviolaras leisdafísica.OestudodeLemmemostraque,pormaisqueequilibremos os diversos fatores, sempre haverá ganhos e perdas. Éprovávelquenuncavenhaaexistirumapanelaquecheguenempertoda

nota1.000naescaladeLemme.Apesardisso,nasduasúltimasdécadas,maisoumenos,atecnologiadas

bateriasdecozinhaavançoumaisumpouco.ComopreviuLemme,adicamais importante está toda na junção de múltiplos materiais. A All-Clad,uma das principais marcas norte-americanas de produtos para cozinha,criou uma fórmula patenteada, composta de cinco camadas demateriaisdiferentes, que alternam metais altamente condutores com outros demenor condução, para “promover o fluxo lateral da energia da cocção eeliminarospontosquentes”,dizapáginadaempresanainternet,comumnúcleo de aço inoxidável para promover a estabilidade. Essas panelasforam especialmente projetadas para trabalhar com “a novíssimatecnologiadasplacasde indução eletromagnética”. Tenho certezadequeumapanelaAll-CladtirariaumanotaaltanaescaladeLemmeemtodososquesitos,comexceçãodeum:opreço,quechegaacentenasdedólaresporumaúnicapeça.Deacordocomodr.NathanMyhrvold, talvezovalorexigidoporessas

panelas top de linha não valha a pena. Myhrvold, que foi diretor detecnologia da Microsoft antes de se voltar para os alimentos, é o autorprincipal (comChris Young eMaximeBilet) deModernistCuisine (2011),umtrabalhode2.438páginas,emseisvolumes,queaspiraa“reinventaraculinária”. Trabalhando num laboratório de culinária com tecnologia deponta, perto de Seattle, em sua empresa, a Intellectual Ventures (quetrabalha com patentes e invenções), Myhrvold e sua equipe depesquisadoresquestionaramoraciocíniopor trásdediversas técnicasdecozinhaantestidascomocertas.QuandoMyhrvoldqueriadescobrircomoumalimentorealmentecozinhavanumapaneladepressãoounumawok,elea cortavaaomeioe fotografavaos resultados,nomeiodocozimento.Entre as suas muitas descobertas surpreendentes e úteis está a de quemorangos e outras bagas, assim como a alface, conservam-se frescos pormaistemponageladeiraseprimeiroforemimersosemáguaquente,equeo confit de pato não precisa ser cozinhado em sua gordura, conforme atradição–ocozimentoavácuoembanhodeimersãofuncionaigualmentebem.Myhrvoldtambémsededicouaoproblemadapanelaideal.Apósinúmerosexperimentos,oautordeModernistCuisineconstatouque

“nenhuma panela pode ser aquecida de maneira uniforme”. Notou quemuitaspessoas(ricas)têmpanelascarasdecobre,“penduradasnacozinhacomotroféus”.Noentanto,nemmesmoapanelaqueéamelhorcondutoradeenergiapoderiagarantirumacocçãouniforme.Emtodaasuaobsessão

com panelas e frigideiras, as pessoas se esqueceram de outro elementobásico do processo de cozimento: a fonte de calor. Os experimentos deMyhrvoldlheensinaramqueabocapequenatípicadosfogõesdomésticos,com apenas seis centímetros de diâmetro, não é grande o bastante paradifundir o calor uniformemente “até as bordasmais externas da panela”,pormais sofisticada que esta seja. Qual o conselho dele? “Economize napanela, mas escolha com cuidado o seu fogão.” Presumindo-se que vocêtenha uma boca de bom tamanho – idealmente, da largura da própriapanela –, Myhrvold constatou que uma panela barata, com uma liga dealumínio e aço inoxidável, cozinha “quase comomesmodesempenho dapanela de cobre” – o que é bom saber, embora não ajude muito, seestivermoscozinhandonumacozinhanormal,malequipada,combocasdefogãodetamanhomédio.Hátambémaquestãodahabilidade.ResolvitestarateoriadeMyhrvold

nasbocasdomeufogãoagás,obviamenteinferior(emborapelomenososbotõesdeacendimentoautomáticofuncionem,namaioriadasvezes,oqueémelhorqueofogãodanossaantigacasa).Pegueiminhamenorfrigideirae a coloquei para aquecer na maior boca, para saltear umas fatias deabobrinha. A condução do calor foi perceptivelmente mais uniforme eintensa. As rodelas de abobrinha praticamente saltaram da frigideira.Depois,irromperamemchamas.Desdeentão,volteicontenteparaaminhamistura imperfeita de panelas muito grandes e bocas muito pequenas.Prefiro enfrentar o incômodo dos pontos quentes a ter as sobrancelhaschamuscadas.Apanela ideal – assim comoa casa ideal – não existe.Não fazmal.As

panelas nunca foram perfeitas, nem precisam sê-lo. Elas não são apenasutensílios para ferver e saltear, fritar e guisar. Fazem parte da família.Passamos a conhecer suas falhas e suas variações de humor. E vamoslevando,apesardasdificuldades,jogandocomnossaspanelasboaseoutrasnãotãoboas.Enofimoalmoçochegaàmesa,enóscomemos.

PANELAELÉTRICADEARROZ

Quando as panelas elétricas de arroz chegaram aos lares japoneses ecoreanos,nadécadade1960,avidamudou.Atéentão,arotinatinhasidoditadapelanecessidadedeproduzirarrozbrancomacio,cozidonovapor–abasedetodasasrefeições.Oarrozprecisavaficardemolho,serlavadoecuidadosamentevigiado,enquantocozinhavanumapaneladebarro,paranãoqueimar.Apanelaelétricadearroz–umrecipientecomumelementoqueaquece

porbaixo eum termostato – eliminou todo esse trabalho epreocupação.Nas versões atuais, basta medir o arroz lavado e a água e ligar ointerruptor.Otermostatoinformaàpanelaquandoaáguafoiabsorvidaeela passa de quente paramorna. As panelasmais requintadasmantêmoarroz aquecido por muitas horas, e têm até uma função temporizadora,paraquevocêpossadeixarprogramadooacionamentodapanelaantesdesairparatrabalhar.

Aspanelaselétricasdearrozforamumcasamentoidealentreaculturaea tecnologia. Os primeirosmodelos reproduziram o cozimento lento dastradicionaispanelasdearroz japonesas, feitasdebarro–aocontráriodomicro-ondas, que alterava toda a estrutura das refeições familiares, aspanelaselétricasdearrozpermitiramqueasfamíliasasiáticasfizessemasmesmasrefeiçõestradicionais,porémcommuitomaisfacilidade.Onde há asiáticos, há panelas elétricas de arroz foi o título de uma

monografiade2009,escritaporYoshikoNakano.Nadadetelevisão:essaspanelas sãoo eletrodomésticomais importantedas casas japonesas.Mastudo isso aconteceu com incrível rapidez. As panelas elétricas de arrozfizeram parte do surto de crescimento eletrônico dos produtosMade inJapan da década de 1950. A primeira delas foi lançada pela Toshiba, em1956.Em1964,menosdedezanosdepois,oíndicedepossedelasnoJapãoatingiu88%.DeláelasviajaramparaHongKong,paraaChinacontinentaleaCoreiadoSul(ondeforamprojetadasnovaspanelas,commaispressão,paraprepararumarrozmaismacio,queécomooscoreanosgostam).Emminúsculas cozinhas rurais da China, a panela elétrica pode ser o únicofogão,usadoparafazerummingaudearrozglutinoso,ocongee,bemcomooarrozcozidonovapor.Uma coisa para a qual ela não é muito boa – até hoje – são os grãos

longosdearrozdaÍndiaedoPaquistão.Oarrozbasmatidevesersoltoemacio.Masacocção lentanovapordapanelaelétricanãoajudaosgrãoslongos;elesficamempapados–oquetalvezexpliqueporqueaÍndianãocompartilhaovíciodaChinanessaspanelas.

aLévi-Strauss,Claude,Aorigemdosmodosàmesa, trad.BeatrizPerrone-Moisés, SãoPaulo,CosacNaify,2006.(N.T.)bTambémchamadodebuchadaescocesa,ohaggisépreparadocomocoração,ospulmões,ofígadoeoutrosmiúdosdecarneiro,picadosecozidoscommuitostemperosdentrodoprópriobuchodoanimal.(N.T.)cInstituiçãobeneficentequesededicaacuidardopatrimôniohistóricoeambientaldaInglaterra,doPaísdeGalesedaIrlandadoNorte.NaEscócia,oNationalTrustforScotlandexerceomesmopapel.(N.T.)dAmíticasopadecarneque,talveznumaparódiacontrastantecomasopadearrozconhecidacomo“sopaWindsorbranca”,passouasercitadaapartirdadécadade1830,masnunca foiencontradapor nenhum historiador sério da culinária britânica. Ver www.foodsofengland.co.uk/brownwindsorsoup.htm.(N.T.)

2.Faca

“Opoetacomsuapena,opintorcomseupincel,ocozinheirocomafacadecozinha.”

F.T.CHENG,MusingsofaChineseGourmet,1954

UMDIA,EUESTAVAfazendoumapilhadesanduíchesdepepinoquando,emvezdopepino,corteiumafatiadeumdedo.Ocortefoiresultadodomeuexcessodeempolgaçãocomumfatiadorjaponês(recém-comprado).“Acidentecomum fatiador!”, gritaram, com animada indiferença, quando cheguei aopronto-socorro:ficouclaroqueeunãoeraaprimeiraidiotaasemachucarcom esse aparelho relativamente obscuro.Muitos entusiastas da cozinhatêm um desses fatiadores abandonado em algum armário, salpicado desangueseco.“Cuidadocomosdedos!”,diziaaembalagem–oquedeveriatermedadoumapista –,mas, de algummodo, a animaçãode ver surgiruma pilha de rodelas transparentes de pepinome distraiu e, quando deipormim,haviaumafatiademimmesmadoladoerradodalâmina,entreasfatias de pepino. Poderia ter sido pior. Enquanto eu esperava peloatendimento médico, senti uma pontada de alívio por ter ajustado ofatiadornaregulagemmaisfina.A cozinha pode ser um lugar violento. As pessoas se queimam, se

esfolam, se ferem com o gelo e, acima de tudo, se cortam. Depois doincidente com o fatiador, inscrevi-me num curso para dominar o uso defacas,numaescolanovadeculinárianosarredoresdacidade.Amaioriadoshomens do curso tinha ganhado facas de presente de suas mulheres enamoradas,na suposiçãodequeessesutensílios sãoo tipode coisa comque eles se divertem, como trenzinhos elétricos ou furadeiras. Eles seaproximaram da tábua com um ligeiro ar de superioridade. Asmulheresmostraram-se mais desconfiadas no começo. Sem exceção, todas nóstínhamos nosmatriculado por prazer (como fazer uma aula de ioga), ouparasuperaralgumpavorouangústiapertodelâminas(comonumcurso

de autodefesa). Eu tinha esperança de que o cursome ensinasse a picarcoisas em pedacinhos como um samurai, a dar cutiladas como umaçougueiroeaaniquilarumacebolaemdezgolpes,comofazemoschefsdecozinha na televisão. Na verdade, a maior parte do curso era sobresegurança:aprendemosapegaroslegumescomumapreensãosemelhantea uma garra, com o polegar dobrado por baixo e mantendo os nós dosdedos sempreencostadoscontraa superfícieda lâmina,paranãoacertarsemquererospolegaresjuntocomacenoura;firmaratábuacomumpanoúmido;guardarasfacasnumsuportemagnéticoouembainhasdeplástico.Aparentemente, o nosso pavor era justificado. A professora, uma suecacompetente,alertou-nosparaosacidentesterríveisqueacontecemquando,por descuido, deixam-se facas afiadas numa tigela cheia de água comdetergente.Apessoaesquecequeasfacasestãolá,enfiaamãonaáguae,aospoucos,estavaificandovermelha,comonumacenadeTubarão.Asfacasdecozinhasempreestiveramaapenasumpassodasarmas.São

utensíliosprojetadosparaquebrar,desfiguraremutilar,mesmoquevocêestejacortandoumsimplesalho-poró.Aocontráriodosleões,nãotemosacapacidadedearrancaracarnedeumacarcaçasócomosdentes,eporissoinventamosinstrumentoscortantesquefaçamotrabalhopornós.Afacaéoutensíliomaisantigonoarsenaldocozinheiro,umadoismilhõesdeanosmais velho que o controle do fogo, dependendo do antropólogo a quedermoscrédito.Cortarcomalgumaferramentaéamaneiramaisbásicademanipularcomida.Asfacasfazempartedotrabalhoqueosfrágeisdenteshumanos não conseguem realizar. Os primeiros exemplos de utensílioscortantesdepedradatamde2,6milhõesdeanosatrás,naEtiópia,ondeasescavações encontraram pedras afiadas e ossos com marcas de cortes,indicativosdequeacarnecruaeraseparadadosossos.Jáentãohaviacertasofisticaçãonahabilidadeexibidacomasfacas.OssereshumanosdaIdadeda Pedra criaram inúmeros dispositivos cortantes diferentes, conformesuas necessidades: os arqueólogos identificaram cortadores simplesafiados, raspadeiras (para serviços pesados e leves) e percutores eesferoidesparabateroalimento.Jánesseestágioinicial,oserhumanonãoretalhavaaesmoosalimentos,mastomavadecisõescriteriosassobrequaiscortesfazer,ecomqueinstrumentos.

Ao contrário de cozinhar, fazer ferramentas não é uma atividadeexclusivamentehumana.Oschimpanzéseosbonobos(outrotipodesímio)mostraram-se capazes de bater uma pedra em outra para criarimplementos afiados. Os chimpanzés sabem usar pedras para quebrarnozes e gravetos para tirar frutas da casca. Os símios também batiampedrasparacriarlascas,masnãoháindíciosdequetenhamtransmitidoahabilidadedecriarferramentasdeumanimalparaoutro,comofizeramoshominídeos.Alémdisso,osprimatasparecemsermenossensíveisqueoshumanos aos diferentes tipos de matéria-prima. Desde o começo, oshominídeos que faziam utensílios tinham vivo interesse em descobrir asmelhores pedras para cortar, em vez de apenas as mais cômodas, e sedispunhamaviajarparaobtê-las.Quepedradariaa lascamaisafiada?Osfabricantes de utensílios da Idade da Pedra fizeram experiências com ogranito e o quartzo, a obsidiana e a pederneira. Os fabricantes de facasbuscam até hoje osmelhoresmateriais para produzir lâminas afiadas; adiferença é que a arte da metalurgia, da Idade do Bronze em diante,

ampliou imensamente as nossas opções. Do bronze ao ferro, do ferro aoaço,doaçoaoaço-carbono,aoaçoextraduroeaoaçoinoxidável,edaípordiante, até o sofisticado titânio e os laminados. Agora você pode gastarsomasvultosasnumafacajaponesaparachefsdecozinha,feitaàmãoporummestre cuteleiroemaçoenriquecidocommolibdênioevanádio.UmafacadessasécapazdefazerproezasquedeixariamadmiradoohomemdaIdadedaPedra,cortandoacascaduradeumaabóboracomosefosseumaperamacia.Naminhaexperiência,quandoseperguntaachefsdecozinhaqualéseu

utensílio favorito, nove entre dez deles respondem que é uma faca. E odizem com ligeira impaciência, por ser algo muito óbvio: a base dequalquergrande refeiçãoéo cortepreciso.Umcozinheiro sem faca seriacomoumcabeleireirosemtesoura.Omanejodafaca–maisaindadoqueaaplicaçãodecalor–éabasedoqueoschefsfazem:usarumalâminaafiadapara converter ingredientes em algo com que se possa cozinhar. Cadacozinheiro tem sua preferência: uma cimitarra curva; uma faca retafrancesa “de sangria”, feita para açougueiros especializados em carne decavalo;umafatiadorapontudaalemã;umcutelo.Conheciumchefquemedisse usar uma grande faca de pão serrilhada para absolutamente tudo.Gostavadenão ter que afiá-la.Outrospreferemminúsculas faquinhasdedescascar, que dissecam os alimentos com a precisão de uma agulha. Amaioriaconfianaclássicafacadochef,de23ou25centímetros,porqueelatemotamanhocertoparaatenderàmaioriadasnecessidades:écompridao bastante para soltar a carne das juntas, mas pequena o bastante parafatiá-laemfilés.Umbomchefdecozinhaafiasuasfacasváriasvezesacadaturno,deslizando-asrapidamenteparaumladoeparaooutro,numângulodevintegraus,paragarantirquenuncapercamogume.Ahistóriadasfacasedoalimento,noentanto,nãodizrespeitoapenasa

utensíliosde corteque ficamcadavezmais forteseafiados.Tambémdizrespeito à violência alarmante desses utensílios. Nossos ancestrais daIdade da Pedra pegavam os materiais de que dispunham e, até ondepodemos depreender, deixavam-nos tão afiados quanto possível. Mas, àmedidaqueatecnologiadafabricaçãodefacasdesenvolveu-se,passandoausar ferroeaço, a facamaisafiada tornou-sealgodisplicentemente letal.“Cuidado com os dedos!” A função primordial da faca é cortar, mas aquestãosecundáriasemprefoicomodomarseupoderdecorte.Oschinesesofizeramrestringindo-asàcozinha,onde,longedeolhosalheios,reduziamos ingredientes a pedacinhos do tamanho de uma mordida, usando um

instrumentoparecido comumcutelo.Os europeuso fizeram, aprincípio,criandoregrascomplexassobreautilizaçãodefacasàmesa–osubtextodetodaaetiquetaàmesaéomedodequeoconvivaaoladopossaapontarafacaparavocê–,edepois, inventando“facasdemesa” tãocegase frágeisqueseriaumalutausá-lasparacortarpessoas,emvezdacomida.

HÁ UMA ALEGRIA PECULIAR em segurar uma faca que parece se encaixarperfeitamenteemnossamão,eemnosdeslumbrarmosàmedidaqueelapicaumacebola,quasesemesforçodenossaparte.Nocursodehabilidadesnomanejodasfacas,aprofessoranosmostroucomodesossarumagalinha.Ao separar as coxas das sobrecoxas, deve-se procurar dois pequenosmorros;quandotocanolugarcerto,afacapenetracomosefosseemseda.Mas, para começo de conversa, isso só funciona quando ela é afiada obastante.Oschefssempredizemquea facamaisseguraéamaisafiada(oqueé

verdade,atéapessoasofrerumacidente).Entreoscozinheirosdomésticos,porém,sabermanterumafacaafiadatornou-seumapaixãoparticular,emvez de uma habilidade universal. O amolador de facas itinerante da eravitoriana, que era capaz de afiar um conjunto de facas em questão deminutos–emtrocadoquevocêpudessepagar,algunstostõesouatéumcopo de cerveja –, desapareceu há muito tempo.a Foi substituído porardorososentusiastasdas facas,queafiamasdelesnãoporobrigação,ousequer por necessidade, mas pela simples satisfação de fazê-lo, e quetrocamdicasemfórunsonlineespecializados.Asopiniõesdiferemquantoaomelhor amoladorpara atingiro gumeperfeito, seumafiadorde facasjaponês,umapedradeamolartradicional,umapedradoArkansasouumapedra sintética de óxido de alumínio. (Não conheço nenhum verdadeiroentusiasta das facas que prefira amoladores elétricos, que costumam serduramentecensuradosporafiaremdeformaexageradaeagressiva,eporissodestruíremboasfacas.)Seja qual for o instrumento escolhido, o princípio básico é sempre o

mesmo. Afia-se uma faca raspando parte do metal, começando por umabrasivogrossoepassandoparaummaisfino,atéchegaràafiaçãoexigida.Além disso, talvez você goste de acerar sua lâmina toda vez que a usa,passando-a algumas vezes por uma haste de aço para realinhar o fio. Aaceragem podemanter o fio de uma faca afiada,mas não consegue afiarumafacainicialmentecega.Oquesignificauma facaafiada?Éumaquestãodeângulo.Vocêobtém

um gume afiado quando duas superfícies, conhecidas como chanfros,juntam-se num ângulo agudo em forma de V. Se você pudesse observarumasecçãotransversaldeumafacaafiada,veriaqueoângulotípicodafacade cozinha ocidental é de cerca de vinte graus: 1⁄18de círculo.As facaseuropeiascostumamterchanfroduplo,istoé,sãoamoladasdosdoisladosdalâmina,oqueresultanumângulototaldequarentagraus.Todavezquevocêusasuafaca,umtantodogumesedesgastae,aospoucos,oânguloseperde. Os amoladores renovamo gume, raspando partículas dometal deambososladosdoVerefazendooângulooriginal.Comousofrequenteeaamolaçãoexcessiva,alâminavaiprogressivamentediminuindo.Num universo ideal, a faca poderia chegar a um ângulo zero –

representandoaafiaçãoinfinita.Maséprecisofazeralgumasconcessõesàrealidade.Asfacasdeângulofinocortammelhor–comoasgiletes–,mas,seforemfinasdemais,tambémserãomuitofrágeispararesistiraoatodepicar,oqueastornariainúteis.Enquantoasfacasdecozinhaocidentaissãoafiadasnumângulodeaproximadamentevintegraus,asjaponesas,quesãomais finas, podem ser afiadas em cerca de quinze graus. Essa é uma dasmuitasrazõesporquetantoschefsdecozinhapreferemfacasjaponesas.Hámuitospontosemqueosentusiastasdasfacasdiscordam.Amelhor

facaéagrande?Háumateoriadequefacasmaispesadasfazemumapartemaiordonossotrabalhopornós.Ouseráqueapequenaémelhor?Outrateoriadizqueasfacaspesadasdeixamosmúsculosdoloridos.Vocêprefereumafacadegumeretooucurvo?Elestambémdiscordamquantoàmelhormaneiradetestaraafiaçãodeumafaca.Vocêdeveusaropolegar,exibindoasuagrandefamiliaridadecomometal,ouserápreferívelcortaraoacasoum legume ou uma esferográfica? Há uma piada sobre um homem quetestousualâminacomalíngua:as lâminasafiadastêmgostodemetal,asrealmenteafiadastêmgostodesangue.Oqueuneosentusiastasdasfacaséoconhecimentocomumdequeter

umafacaafiadaesabermanuseá-laéomaiorpoderquesepodesentirnacozinha. Descobri por que a maioria dos chefs considera a faca uminstrumento indispensável vergonhosamente tarde em minha vidaculinária.Agentedeixadeficarnervosadiantedeechalotasoubagels.Olhapara a comida e vê que é capaz de cortá-la do tamanho que quiser. Ospratosadquiremumnovorefinamento.Umacebolapicadacomprecisão–emcubinhosminúsculos,sempedaçosmaioreserrantes–confereaorisotoum luxosuave,porquea cebolaeosgrãosdearroz se fundemnumtodoharmonioso. Uma faca de pão afiada cria a possibilidade de torradas

elegantemente finas. Domine uma faca afiada e você dominará a cozinhainteira.Naverdadeissonãodeveriasernenhumarevelação.Masamestriacom

a faca é hoje um entusiasmominoritário. Atémesmomuitos cozinheiroshabilidososemoutrosaspectostêmsuportescheiosdefacascegas.Eusei,porquejáfuiumdeles.Pode-sesobrevivermuitobemnacozinhamodernasem nenhuma das habilidades de sobrevivência conferidas pelas facas.Quando algo precisa ser cortado ou desfiado em tiras realmente finas, oprocessadorcompensaa falha.Nãoestamosna IdadedaPedra(pormaisquealgunsentusiastasda facadesejemqueestivéssemos).Nossosistemaalimentar permite que comamos até quando nos faltam as maisrudimentareshabilidadesparatalhar,paranãofalarnacapacidadedecriarnossospróprios instrumentoscortantes.Opãode forma jávem fatiadoepodemoscomprarlegumesjápicados.Houveépoca,noentanto,emqueomanejoeficientedeumafacaeraumahabilidademaisbásicaenecessáriadoquelerouescrever.

NA EUROPA MEDIEVAL e renascentista, o indivíduo carregava sua faca para todaparteeasacavanahoradasrefeições,quando issoeranecessário.Quasetodos tinham uma faca pessoal para comer, numa bainha pendurada nacinta. Ela podia ser igualmente usada para cortar o alimento ou paradefendê-lodosinimigos.Eratantoumapeçadovestuário–comoorelógiodepulsohoje–quantoumaferramenta.Eraumbemuniversal,amiúdeomaisprecioso.ComoavarinhamágicaemHarryPotter,afacaerafeitasobmedida para seu dono. Os cabos eramde latão,marfim, cristal de rocha,vidro e conchas; de âmbar, ágata, madrepérola ou casco de tartaruga.Podiam ser entalhados ou gravados com imagens de bebês, apóstolos,flores, camponeses, plumas e pombos.Não se comia coma faca de outrapessoa, tal como hoje ninguém escovaria os dentes com a escova de umestranho.Afacaerausadadeformatãohabitualque,comoacontececomorelógio, o indivíduo podia começar a vê-la como parte de si mesmo eesquecerqueelaestavaali.UmtextodoséculoVI(aRegradeSãoBento)alertavaosmongesparanãoseesqueceremdetirarafacadacintaantesdesedeitarem,paraquenãosecortassemduranteanoite.Isso representava um sério perigo, porque, naquela época, com seu

formatosemelhanteaodeumaadaga,as facaseramrealmenteafiadas.Eera preciso que o fossem, visto que podiam ser solicitadas a lidar comqualquer coisa, desde um queijo borrachudo até um pão crocante.

Excetuada sua roupa, a faca era a única posse de que todo adultonecessitava.Muitas vezes se cometeu o equívoco de presumir que, comoobjetosdeusopotencialmente violento, as facas eramumaexclusividademasculina. Mas as mulheres também as portavam. Um quadro de H.H.Kluber,datadode1640,retrataumafamíliasuíçapreparando-separafazerumarefeição, compostadecarne,pãoemaçãs.As filhasda família levamflores no cabelo e, pendendo dos vestidos vermelhos, facas prateadas,presas a cordas amarradas na cintura. Comuma faca assim tão perto docorpo,o tempotodo,apessoa teriagrande familiaridadecomaestruturadela.As facasafiadas têmdeterminadaanatomia.Naextremidadeda lâmina

ficaaponta,apartemaispontiaguda,boaparaespetarouperfurar.Apontapodeserusadaparafurarmassasdetortas,tirarcaroçosdeumametadedelimãoouespetarumabatatana fervura,paraver seestá cozida.O corpoprincipalda lâmina–abordacortante inferior–éconhecidocomofioougume. É a porção da faca que faz amaior parte do trabalho, desde picarervasatéfatiarescalopes.Virando-adelado,podeserusadaparaesmagaroalhocomsalgrosso,atétransformá-lonumapasta–adeus,espremedordealho!Aextremidadeopostaaofiodalâminaéodorso,abordacegaquenão corta, mas acrescenta peso e equilíbrio. A parte grossa e afiada dalâmina perto do cabo é o apoio, boa para o corte pesado de coisasmaisduras, como nozes e repolho. A partir desse ponto, a lâmina dá lugar àespiga,apeçademetalescondidanointeriordocabo,queunealâminaaele.Aespigapodeserparcial–estender-seapenasporumapartedocabo–ou inteiriça. Hoje em dia, muitas facas japonesas de prestígio não têmespigas,sendoformadas,comcaboetudo,porumúnicopedaçodemetal.Opontoemqueocaboseencontracomalâminaéchamadodeguarda-mão.Naextremidadedocaboficaopomooutalão,abasedafaca.Quandosecomeçaagostarde facas,passa-seavalorizar tudo,desdea

qualidadedosrebitesdocaboatéalinhadoapoio.Hojeessesentusiasmossãobastantemisteriosos,mashouveépocaemqueeramcomunsatodos.Uma boa faca era motivo de orgulho. Ao ser tirada da cintura, o cabofamiliar,desgastadoepolidopelousoencaixava-secomodamentenamãoparafatiaropão,espetaracarneoudescascarumamaçã.Sabia-seovalordeumafacaafiadaporque,semela,seriamuitomaisdifícilcomeramaiorpartedoquehaviaàmesa.Etodossabiamqueboaafiaçãoerasinônimodeaço,oqual,noséculoXVI,jáeraometalmaisvalorizadopelosfabricantesdefacas.

AS PRIMEIRAS FACAS METÁLICAS foram feitas de bronze, durante a Idade do Bronze(c.3000-700 a.C.). Pareciam-se com as facas modernas porque, além dogume cortante, possuíam uma espiga e um calço em que era possívelencaixar o cabo. Mas o fio não funcionava bem, porque o bronze é ummaterial terrível para lâminas – macio demais para reter um gumerealmenteafiado.Queobronzenãoproduzboas facaséconfirmadopelofatodeque,na IdadedoBronze,os instrumentosdecortecontinuaramaserfeitosdepedra,aqual,emmuitosaspectos,erasuperioraonovometal.Oferroeraummetalmelhorparaasfacasdoqueobronze.AIdadedo

Ferrofoiaprimeiragrandeeradasfacas,quandoaslâminasdepederneira–usadasdesdeaépocadaindústriaolduvaiense,há2,6milhõesdeanos–desapareceram.Comometalmaisduro,oferropodiasermuitomaisafiadoqueobronze.Eraummetalconvenienteparaforjarferramentasgrandesepesadas. Os ferreiros da Idade do Ferro faziam machados bastantesatisfatórios.Paraasfacas,noentanto,oferronãoeraideal.Apesardesermaisduroqueobronze,enferrujavacomfacilidadeedavaumgostoruimaosalimentos.E,atéhoje,facasdeferronãosãodasmaisafiadas.Ograndesaltoà frentefoioaço,queaindaé,numaounoutraforma,o

material de que são feitas quase todas as facas, com exceção das novasfacasdecerâmica,queforamdescritascomoamaiorinovaçãoemmaterialpara lâminas em trêsmilênios. As facas de cerâmica são um sonho parafiletarpeixesmaciosoutomatestenros,porémfrágeisdemaisparaocortepesado.Parafazerlâminasafiadas,comdurezaeresistênciasuficientes,atéhoje nada suplantou o aço, que é capaz de formar e preservar um gumeafiadomelhordoqueosoutrosmetais.Aço nadamais é que ferro acrescido de uma proporçãominúscula de

carbono: cercade0,2a2%da liga.Masesseacréscimo ínfimo faz todaadiferença. É o carbono que torna o aço suficientemente duro paraconservar um ângulomuito agudo,mas não tão duro que não possa serafiado.Quandoseacrescentacarbonoemexcesso,oaçoficaquebradiçoeestalasobpressão.Paracortaramaioriadosalimentos,0,75%decarbonoéamedidacerta:elecriaum“açopuro”passíveldesermoldadoemfacasdegumeresistenteefino,fácildeafiarequenãoquebracomfacilidade–otipodefacacapazdecortarquasequalquercoisa.No século XVIII, os métodos de fabricação de aço-carbono haviam

chegadoà indústria, e essa substânciamaravilhosapassoua serutilizadaparaproduzirtodoumlequedeutensílioscadavezmaisespecializados.Oramoda cutelariadeixoude concernir à fabricaçãodeumartigopessoal,

semelhante a uma adaga, para um único indivíduo; voltou-se para aprodução de uma gama de facas para usosmuito específicos: facas parafiletar,facasparadescascar,facasparabolos,todasdeaço.Essas facas especializadas foram causa e consequência dos estilos

europeus de alimentação. Observou-se,muitas vezes, que ahaute cuisinefrancesaquedominouopaladardoseuropeusricosapartirdoséculoXVIIIeraumaculináriademolhos:béchamel,velouté,espagnole,allemande (osquatro molhos básicos do chef francês Marie-Antoine Carême,posteriormente reformulados comoos cincomolhosbásicosdeEscoffier,quedescartouomolhoalemãoeacrescentouoholandêseodetomate).Éverdade,maselaeratambémumaculináriadefacasespecializadasecortesprecisos.Osfrancesesnãoforamosprimeirosausarfacasespecíficasparatarefasespecíficas.Comoacontececomgrandepartedaculináriafrancesa,suabateladadefacasremontaàItáliadoséculoXVI.Em1570,BartolomeoScappi, o cozinheiro italiano do papa, tinha uma miríade de armas decozinhaaseudispor:cimitarrasparadesmembrar,facasdelâminagrossapara bater, facas de ponta cega paramassas, facas de bolo e raspadeiraslongase finas.Noentanto,Scappinãoditouumcódigoexatodaformadeutilização dessas lâminas. “Em seguida, bata [o alimento] com as facas”,dizia, “ou corte-o em fatias”. Ele não catalogou formalmente as diversastécnicas de corte. Foram os franceses que, com sua paixão pela exatidãocartesiana, transformaramomanejodas facasnumsistema,num livroderegrasenumareligião.AcutelariaSabatierfoiaprimeiraaproduzirfacasdeaço-carbono,nacidadedeThiers,nocomeçodosanos1800–maisoumenosnaépocaemqueseinventouagastronomiacomoconceito,atravésdosescritosdeGrimodde laReynièree JosephBerchouxedacozinhadeCarême.Asfacaseaculináriacaminhavamdemãosdadas.Paraondequerque viajassem, os chefs franceses levavam consigo uma série de cortesrigorosos–mince,chiffonade,julienneb–easfacascomquefazê-los.Portrásdacomidafrancesa,não importaquãosimplessejaoprato,há

ummanejometiculosodasfacas.Umatravessadeostrascruas,servidasemmeiaconchanumrestauranteparisiense,nãodáamenorimpressãodeserumpratoqueexijaalgumpreparo,masoquefazcomquesejaumprazercomê-las, afora seu frescor, équealguém teveahabilidadedeabrir cadamolusco com uma faca própria para ostras, deslizando-a para cima demodoacortaromúsculoadutorquemantémaconchafechada,semcriarlascas cortantes. Quanto ao vinagre de echalotas com que as ostras sãoservidas,alguémtevede trabalhar feitoum loucoparapicarasechalotas

em brunoise – cubinhos minúsculos de 0,25 centímetro. Somente essepreparoimpedequeaechalotasejadominantedemaisemrelaçãoaosabordelicadodasostrassalinas.

Aquelesaborosobifefrancêsqueétãoconvidativodiantedenós–sejaeleumonglet,pavéouentrecôte–resultadousodeutensíliosespecíficospelosmatadouroseaçouguesdaFrança:umenormecuteloparaoentalhemaisbruto,umadelicada facadeaçougueiropara separaros cortesmaisesquivos e talvez um batedor de carne especial para costeletas (batte àcôtelettes),a fimdeachataracarneantesdeelaserpreparada.Acozinhaclássicafrancesaincluifacasparapresuntoeparaqueijo,facasparafazerocortejulienneefacascombicoparacastanhas.Ahautecuisineprofissionalfundamentou-senaespecialização.Ogrande

chef Escoffier, que lançou as bases de toda a culinária dos modernosrestaurantes franceses, organizou a cozinha em setores separados paramolhos, carnes e confeitaria e padaria. Cada setor tinha suas facasespecíficas.Numa cozinhaorganizada segundoosprincípiosdeEscoffier,uma pessoa pode ser encarregada de “tornear” batatas como bolinhasperfeitas.Paraessatarefa,elausariaumafacadetornear–umapequenafaca de descascar com a lâmina semelhante a um bico de pássaro. Essalâmina curva seria desajeitada para cortar alimentos numa tábua – oângulo é todoerrado–,mas seuarcoéperfeitopara tirar a cascadeumalimento redondo segurado na mão, acompanhando seu contorno paracriarumgloboesteticamenteagradável.Aguarniçãocompostadelegumestorneados–tãobonita,tãocaprichosa,tãofrancesa–éresultadodiretodeuma certa faca,manejada de uma certamaneira e guiada por uma certafilosofiasobrecomodeveseracomida.Nossa comida émoldadapor facas – enossas facas sãomoldadaspela

misteriosa combinação de recursos locais, inovações tecnológicas epreferênciasculturaisquecompõeumacuisine.Ojeitofrancêscomasfacasnãoéoúnico.NocasodaChina,todaumaabordagemdaalimentaçãoedacozinhabaseou-senumaúnicafaca,adao,muitasvezeschamadadecutelochinês,talvezafacamaisassustadoramenteútilquejáseinventou.

OSUTENSÍLIOSDECORTEdividem-seentreosquetêmapenasumaúnicafunção–o

cortador de gorgonzola; a faca para caranguejo, em formato de flecha; odescascadorefatiadordeabacaxi,quedesceemespiralpordentrodafrutaretirandoomioloduroedeixandoapenasrodelasperfeitasesuculentas–eos que podem ser postos a serviço de inúmeras tarefas: os utensíliosmultifuncionais.As diferentes culturas culinárias produziram diferentes facas de usos

múltiplos.Ouludosinuítes,porexemplo,éumalâminaemformadeleque(semelhante àmezzaluna italiana, ou meia-lua), tradicionalmente usadapelosesquimósparaqualquercoisa,desdeapararocabelodascriançasatécortar blocos de gelo, além de picar o peixe. A santoku japonesa é outroutensílio multifuncional, sendo hoje considerada uma das facas maisdesejáveis na cozinha doméstica. É muito mais leve que a faca do chefeuropeia, tem a ponta meio arredondada e, muitas vezes, sulcos –chamados alvéolos – ao longo da lâmina. Santoku significa “três usos”,porqueelaéboaparacortarcarne,picarlegumesefatiarpeixes.

Talveznenhumafacaseja tãomultifuncionaloutãoessencialparaumacultura culinária quanto a chinesa dao. Essa peça maravilhosa écomumente chamada de “cutelo”, por sua lâmina ter o mesmo formatoretangulardoscutelosusadospelosaçougueirosparaquebrarosossosdas

peçasdecarne.Masousodadaoéodeumafacamultifuncionaldecozinha(nessecaso,“multifuncional”nãoéexagero).ParaoantropólogoesinólogoE.N.Anderson, adao exemplifica o princípio do “minimax”: omáximodevalorpelomínimodecustoeesforço.Aênfaseénafrugalidade:amelhorcozinha chinesa pretende extrair do número mínimo de utensílios opotencialmáximoparacozinhar.Adaoatendeaessaexigência.Essafacadelâminagrande,escreveAnderson,éútilpara

cortarlenha,eviscerareescamarpeixes,fatiarlegumes,picarcarne,amassaralho(comoladocegodalâmina),cortarunhas,apontarlápis,apararfachisnovos,matarporcos,fazerabarba(elaémantida,ousupostamentemantida, comafiaçãosuficiente)eacertarcontasantigasenovascomosinimigos.

Oquetornaadaoaindamaisversátiléque,diferentedauludosinuítes,eladeuorigemaoqueé amplamente consideradoumadasduasmaioresculinárias do mundo (sendo a outra a francesa). Desde a Antiguidade, aprincipalcaracterísticadacozinhachinesaéamescladesabores,pormeiodoscortesfinosemiúdos.Adaopossibilitouisso.DuranteadinastiaZhou(1045-256 a.C.), quando o ferro foi introduzido na China, a arte dagastronomia requintada era designada por “k’o’peng”, ou seja, “cortar ecozinhar”. Afirmou-se sobre o filósofo Confúcio (que viveu de 551 a 479a.C.) que ele se recusava a comer carne que não tivesse sido cortada daforma correta. Por voltade200 a.C., os livrosde receitasusavammuitostermosdiferentesparacortarepicar,sugerindoumaltoníveldehabilidadenomanejodefacas(daogong).Adao típica temuma lâminade 18 a 28 centímetros de comprimento.

Atéaí,émuitoparecidacomafacadochefeuropeia.Adiferençadrásticaestánalarguradalâmina:cercadedezcentímetros,quaseodobrodapartemais larga da faca do chef. E adao tem amesma largura em toda a suaextensão:nãoháafinamento, curvanemponta.Trata-sedeumretânguloconsiderável de aço,masque é tambémsurpreendentemente fino e leve,muito mais leve que um cutelo francês. Ele exige ser usado de formadiferente de uma faca do chef. A maioria dos cortes europeus usa ummovimento de “locomotiva”, deslocando a faca para a frente e para trás,seguindo o gradiente da lâmina. A dao, por seu achatamento contínuo,convidaacortarcomummovimentodecimaparabaixo.Osomdomanejoda facanumacozinhachinesaémaisaltoepercussivoquenumacozinhafrancesa:toc-toc-toc,emcontrastecomtap-tap-tap.Masessesomaltonãoreflete nenhuma rudeza da técnica. Com essa única faca, os cozinheiroschinesesproduzemumlequemuitomaiordeformatosdecortedoqueas

tirinhas, cubinhos e outros produzidos pelas muitas facas da cozinhafrancesa. A dao é capaz de criar fios de seda (oito centímetros decomprimentoemuito finos), fiosdeagulha(aindamais finos),orelhasdecavalo(fatiasdetrêscentímetros,cortadasemânguloagudo),cubos,tirasefatias,paracitarapenasalguns.Nenhuminventorisoladodispôs-seainventaressafacafantástica,ou,se

o fez, seu nome se perdeu. A dao, assim como toda a culinária que elapossibilitou, foi produto das circunstâncias. A fundição do ferro foidescobertanaChinaporvoltade500a.C.Eraumaproduçãomaisbarataqueadobronze,epermitiacriarfacasqueerampedaçosgrandesdemetalcomcabosdemadeira.Acimadetudo,adao foiprodutodaculturafrugaldo campo, e permitiu a redução dos ingredientes a pedaços pequenos obastante para que os sabores de todos os componentes do prato semisturassemeospedaçoscozinhassembemdepressa,provavelmentenumfogareiro portátil. Era um utensílio econômico, capaz de aproveitar aomáximoocombustívelescasso:cortartudobemmiúdo,cozinhardepressa,nãodesperdiçarnada.Comotecnologia,émuitomaisinteligentedoqueseafiguraaprincípio.Ao ladodawok, funciona comoum instrumentoparaextrairomáximodesabordomínimodeenergiaculinária.Aosaltearmosalimentos muito picados, uma parte maior da superfície fica exposta àgordura,tornando-sedouradaecrocante,comgostode“queromais”.Comoacontececomtodasastecnologias,háganhoseperdas:otrabalho

árduo e a habilidade demandados na preparação dos ingredientes sãocompensadospelacocçãoajato.Noforno,umfrangointeirolevamaisdeuma hora para assar. Até um único peito de frango pode levar vinteminutos.Masosfragmentosdefrangopicadospeladaopodemcozinharemcincominutosoumenos;otempoquesegastaéodepicar(mas,nasmãoscertas,issotambémérápido;noYouTube,podemosverochefMartinYandesossandoumfrangointeiroemdezoitosegundos).Aculináriachinesaéextremamente variada, de uma região para outra, desde o sabor muitoapimentado dos pratos da província de Sichuan até o feijão preto e osfrutosdomardoscantoneses.Oqueuneoscozinheiroschinesesdeáreasdistantes são suahabilidade comas facas e o apegode todos a essa facaespecífica.Adao estevenocernedomodocomoseestruturouaculináriachinesa

clássica–eaindaestá.Todasasrefeiçõesdevemserequilibradasentreofan – que em geral significa arroz,mas tambémpode se aplicar a outroscereaisouatiposdetalharim–eots’ai,ospratosdelegumesecarnes.A

dao é um componente mais essencial dessa refeição do que qualqueringrediente isolado, pois é ela que corta o ts’ai e o deixa em múltiplasformasdiferentes.Hátodoumespectrodemétodosdecorte,compalavrascorrespondentes.Pegueumacenoura.Vocêvaifatiá-lanavertical(qie)ounahorizontal(pian)?Oupreferepicá-la(kan)?Seofizer,queformatovaiescolher: lascas (si), cubinhos (ding) ou nacos (kuai)? Seja qual for oescolhido,vocêdeveater-seaelecomexatidão:ocozinheiroéjulgadopelaprecisãodoscortesdesuafaca.HáumahistóriafamosasobreLuHsu,umprisioneiro da dinastia do imperador Ming: ele recebeu uma tigela deguisado de carne em sua cela e, nomesmo instante, soube que suamãeestivera lá para visitá-lo, porque só ela sabia cortar a carne naquelesquadradosperfeitos.Asdaos têm uma aparência assustadora.Manejadas pela pessoa certa,

contudo, essas lâminas ameaçadoras são instrumentos delicados, quepodem atingir amesma precisão de corte para a qual os chefs francesesnecessitamdeumlequedelâminasespecializadas.Emmãoshábeis,adaoécapaz de cortar pedaços de gengibre finos como pergaminho, e de picarlegumestãomiúdosqueparecemovasdepeixe-voador.Essafacaconseguepreparar sozinhaumbanquete inteiro,desde frágeis lascasdeescalopeetiras de vagem de cinco centímetros até pepinos recortados para separeceremcomfloresdelótus.Adaoémaisqueumutensíliopararefeiçõesrefinadas.Emépocasmais

pobres,osingredientescarospodemserfacilmenteomitidos,desdequeomanejo da faca e o tempero permaneçam constantes. A dao criou umanotável união entre as classes na culinária chinesa, em contraste com acozinha britânica, na qual a comida dos ricos e a dos pobres tendia afuncionaremesferasopostas(osricoscomiamrosbifeservidosobreumatoalhademesa,ospobrescomiampãoequeijocomamão).OcozinheiropobredaChinapodiatermuitomenosts’ai–legumesecarnes–comquetrabalhardoqueseuequivalenterico,mastratavaosalimentosdomesmomodo. É a técnica, acima de tudo, que torna chinesa uma refeição. Ocozinheirochinêspegapeixeseaves, legumesecarnes,emtodososseusdiversos formatos, e os torna geometricamente exatos e do tamanho deumagarfada.Opoderprincipaldadaoépouparosconvivasdequalquertrabalhocom

a faca. As facas de mesa são vistas como desnecessárias e ligeiramenterepulsivas na China. Cortar comida à mesa é visto como uma forma debrutalidade.Depoisqueadaofazoseutrabalho,tudoqueapessoatemde

fazer é pegar os pedacinhos uniformes com o fachi. A dao e o fachitrabalhamemperfeita simbiose:umacorta,ooutro serve.Maisumavez,esseéummodomaisfrugaldefazerascoisasdoqueaclássicaabordagemfrancesa, na qual, apesar de todas as trabalhosas técnicas de corte, comdiversasfacasnacozinha,aindasãonecessáriasoutrasfacasparasecomeracomida.A dao e seus usos representam uma cultura radicalmente diferente e

estranhaemmatériade facas,comparadaàdaEuropa(e,portanto,àdosEstados Unidos). Enquanto o mestre-cuca chinês usa uma faca, seuequivalente francês emprega muitas, com funções muito diversificadas:facasdeaçougueiroe facasparadesossar, facaspara frutaseoutrasparapeixes. E não se trata apenas dos utensílios. A dao representa todo umestilo de cozinhar e comer completamente diferente das refeiçõesaristocráticasdaEuropa.Háumimensoabismoentreumpratodetirinhassalteadas de carne, aipo e gengibre, preparadas no estilo sichuanês,temperadas com pasta apimentada e vinho Shaoxing, num cuidadosoequilíbriodesabores,eumfiléàfrancesa,malpassadoeinteiro,servidoàmesacomumafacaafiadaparacortá-loemostardaparaacrescentarsabor,aogostodo freguês.Osdoisrepresentamdiferentesvisõesdemundo.Háumabismoentreaculturadopicareadotrinchar.

NA EUROPA, o auge do manejo das facas não era o do trabalho feito pelocozinheiro,masodo trinchadorda corte, cuja tarefaera cortara carneàmesa para as damas e os cavalheiros. Enquanto a dao era usada emalimentos crus, tornando-os todos tão parecidos quanto possível, otrinchadormedievallidavacomalimentosprontosedeveriacompreenderquecadaanimal–assado inteiro–precisavaser trinchadoàsuamaneiraespecial,comsuafacaespecial,eservidocomseumolhoespecial.“Tendeabondade,senhor,demeensinaratrinchar,amanejarafacaea

cortar aves, peixes e carnes”, pede um livro medieval de etiqueta. Deacordo com uma obra publicada por Wynkyn de Worde em 1508, as“RegrasdoTrinchador”inglêsdiziam:

QuebreocervoFatieacarneDestrincheogansoTalheocisne…Desmembreagarça

Asregrasdotrinchadorfaziampartedeummundodesímbolosesinais:

cadaanimaltinhasualógicaprópriaedeviasercortadodeacordocomela.Haviaumaligaçãoentreasfacasdetrinchareasarmasdacaça:aideiaeradividiroprodutodacaçanumahierarquiarigorosa,paraenfatizaropoderdo homem em cujas terras os animais tinham sido mortos. A faca dotrinchadortinhaqueseguiraslinhaseostendõesdecadaanimal,efazê-loa serviço de um senhor; não podia talhar livremente, como uma dao. Otrinchadortinhadesaberqueasasasdagalinhaerampicadas,enquantoascoxas e as sobrecoxas eram deixadas inteiras. Mas era motivo de honrafazerotrabalhocorreto.Nacorte,trinchareraconsideradotãoimportanteque evoluiu para um cargo especial: o de “trinchante-mor”, exercido porservidoresnomeadosequeincluíaatémembrosdanobreza.Ao contrário dos trinchantes modernos, cuja tarefa é a distribuição

equitativadacarne,quandoseincumbiamdecortarumassadodedomingoouumperudoDiadeAçãodeGraças,otrinchadoreuropeumedievalnãoseencarregavadamesainteira,masdeumúnicosenhor.Suatarefanãoeradividirigualmenteacomida,maspegaroquehouvessedemelhornamesaparaseuamo.Comumacolher,elecolhiapequenasamostrasdetodososmolhos em pedacinhos de pão e os punha na boca dos criados demesa,paraverificarseestavamenvenenados.Grandepartedoseu trabalhoeraimpedirqueseuamocomessequalquer“impureza”–emoutraspalavras,cartilagens,pele,penasouqualqueroutracoisaquepudesseserindigesta.Aforaisso,naverdade,otrinchadornãotrabalhavatantocomafaca.Afinal,seusenhorteriasuaprópriafacaafiadaparalidarcomacarneaocomê-la.Oqueimpressionanafacadetrincharmedievaléopequenonúmerode

cortes que ela fazia. A linguagem do trincho era brutal: desmembrar,retalhar,quebrar,desarticular.Emcontrastecomochefchinêsesuaúnicadao,asfacasàdisposiçãodotrinchadorerammuitas:facõespesadosparatrincharassadosgrandes,comoveadosebois;faquinhasparaavesdecaça;largas facas para servir, semelhantes a espátulas, para levar a carne aotrincho;efacascegasdeaparadorpararetirartodasasmigalhasdatoalha.No entanto, pouquíssimos golpes de faca eram de fato praticados nascarnesassadas.“Desmembrarumagarça”éumafrasehorripilante,masoque de fato envolvia era a colocação da pobre ave morta num arranjosupostamente elegante no trincho, em vez de cortá-la em pedacinhos:“Pegueumagarça,levante-lheaspernaseasascomoumgroueponha-lheo molho”, diz Worde. Às vezes, o trinchador precisava partir os ossosgrandes, e às vezes picava um pouco da carne – uma asa de capão erapicadaemisturadacomvinhooucerveja,porexemplo.Masotrabalhodo

trinchador era mais o de servir que o de cortar. A faca trinchante nãoprecisava transformar todo o alimento em pedaços do tamanho de umamordida.Issoequivaleriaausurparopapeldafacadoprópriosenhordasterras.O hábito de carregar consigo a própria faca afiada era um esteio tão

sólido da cultura ocidental quanto o cristianismo, o alfabeto latino e oEstado de direito. Até que – de repente – deixou de sê-lo.Muito do quepensamos sobreosutensílios édeterminadopela cultura,masos valoresculturaisnãosãofixoseeternos.ApartirdoséculoXVII,houveumagrandereviravoltanaatitudeeuropeiaemrelaçãoàsfacas.Aprimeiramudançafoique elas começaram a ser previamente postas na mesa, ao lado de umimplemento ultramoderno: o garfo. Isso despojou as facas de sua antigamagia. Em vez de serem feitas sob encomenda para cada proprietário,caixasdefacasidênticaspassaramasercompradasevendidasàsdezenas,edispostasdeformaimpessoaldiantedequalquerpessoaquesesentasseà mesa. A segunda mudança foi que as facas de mesa deixaram de serafiadas.Assim,tambémforamdespojadasdeseupoder.Arazãodeserdasfacas é cortar. É preciso uma civilização em avançado estágio derefinamento–oudeagressãopassiva–paraconceber,depropósito,umafacaquecortepior.Emdiversossentidos,atéhojeaindavivemoscomasconsequênciasdessamudança.

EM 1637, O CARDEALRICHELIEU, principal conselheiro do rei Luís XIII da França,teriavistoumconvidadodeumjantarusarapontaafiadadeumafacadegume duplo para palitar os dentes. Esse ato horrorizou de talmaneira ocardeal–nãosesabeaocertoseporcausadoperigooudavulgaridade–queeleordenouquetodasassuasfacasfossemcegadas.Atéentão,asfacasusadaspara comer tendiama ser afiadasdosdois ladosda lâmina, comoumpunhal. Pois isso acabou. Seguindo o exemplo deRichelieu, em1669Luís XIVproibiu todos os cuteleiros da Françade fazerem facas demesapontiagudas.O ditame francês contra as facas de gume duplo acompanhou uma

transformaçãodaetiquetaàmesaedosutensíliosnelausados.AEuropapassoupeloqueoeminentesociólogoNorbertEliaschamoude“processocivilizador”. As normas de comportamento àmesa sofreram uma grandealteração.Antigascertezasdesmoronaram.AIgrejacatólicahaviaperdidosua unidade anterior, e fazia muito que os códigos de conduta doscavaleiros haviam desaparecido. De repente, as pessoas sentiram-se

enojadascommaneirasdecomeratéentãoaceitáveis:pegaracarnedeumprato comum com asmãos, tomar sopa bebendo-a na tigela e usar umaúnicafacaafiadaparacortartudo.Todasessascoisas–antescompatíveiscomaetiquetadacorte–pareceramincivilizadas.Oseuropeuscomeçaramacompartilharadesconfiançados chinesesemrelaçãoa facasafiadasnamesa.Aocontráriodoschineses,conservamosasfacasparacomer,porémasinabilitamosdeváriasmaneiras.NaFrança,tornou-secomummanterasfacasforadamesa,excetopara

algumastarefasespecíficas,comodescascarecortarfrutas,paraasquaisseusavamfacasafiadaspessoais,comonosvelhostempos.As facas inglesaspermaneceramnamesa,massetornaramsignificativamentemaiscegas.AsfacasdemesainglesasdosséculosXVIeXVIIparecemfacasdecozinhaemminiatura. O formato da lâmina pode variar, desde as semelhantes apunhais até as parecidas com canivetes e as de lâmina de cimitarra. Emalgunscasos,a lâminatemdoisgumes,noutros,apenasum.Mastodasasfacas têm em comum uma característica: são afiadas (ou seriam, pelomenos,quandobrilhantesenovas).As facas setecentistas são completamente diferentes das usadas no

século anterior. De repente, tornaram-se pomposamente cegas. A lâminacostuma curvar-se de leve para a direita e terminar numa pontaarredondada. Trata-se de um formato que hoje associamos às facas demanteiga – e por boas razões. A faca de mesa deixara de ser uminstrumentodecorteeficaz.Tornara-seumutensílioineficiente,útilapenasparaespalharmanteiga,pôrcoisasnogarfooucortaralimentosjámacios.Essa nova faca de mesa sem gume também levou a umamudança na

maneirade segurar o objeto.Até então, empunhava-se a faca comamãointeira, numa postura de esfaqueamento. A partir daí, o dedo indicadorpassouaseapoiarcomdelicadezanodorso–agoracego–,envolvendo-seocabocomapalmadamão.Essaaindaéamaneiraeducadadesegurarumafaca de mesa. É uma das razões por que tantos de nós temos poucashabilidadescomasfacas.Usamosamesmaformadesegurá-lassejamelasafiadasoudemesa, o que édesastroso.Ao seguraruma facade cozinha,nuncasedeveapoiaro indicadornodorso–o riscodesecortarémuitomaiordoquequandosesegurafirmementeabasedalâminacomopolegardeumladoeoindicadordooutro.Obomtreinamentonaetiquetaàmesa–que ensina uma timidez constante junto ao gume afiado – é ruimpara acozinha.No século XVIII, os ocidentais bem-educados sentavam-se à mesa

segurando com delicadeza as suas belas faquinhas, procurando evitar atodocustoqualquergestoquefizesselembrarviolênciaouameaça.Comotecnologiadecorte,afacademesatornou-semaisoumenossupérflua.Nofimdo séculoXVIII, a facademesaSheffield, emboraainda fosse feitadeaçodamelhorqualidade,passouatermenosavercomocortedoquecomaostentação.Nasociedade londrina,esseseramobjetosbonitos,postosàmesa como marca do bom gosto e da riqueza do anfitrião. Seria fácildescartar as facas de mesa como tecnologicamente obsoletas na eramoderna. Sua inutilidade foi demonstrada pelo surgimento de facas decarneserrilhadaseafiadas(criaçãopioneiradacidadedeLaguiole,nosuldaFrança), cujapresença funcionoucomoumaespéciedereprimendaàsfacas normais: o que as facas de carne disseram foi que, quando seprecisava realmente cortar alguma coisa à mesa, as facas de mesa nãoserviam.A facademesa tornou-seentãoumobjetodistintoda facausadacomo

arma.Nãohavia necessidadede portar uma faca; fazê-lo, aliás, podia serconsiderado falta de etiqueta, pelomenos no ReinoUnido. Em 1769, umhomemdeletrasitaliano,GiuseppeBaretti,foiindiciadoporesfaquearumhomememlegítimadefesa,emLondres,usandoumafaquinhadobráveldefrutas. A defesa de Baretti foi declarar que, na Europa continental, eracomum a prática de portar uma faca afiada para cortar maçãs, peras edoces.Ofatodeeletertidoqueexplicarissoaumtribunalbritânico,comtamanhaprofusãodedetalhes, foiumsinaldecomoanaturezadas facastinha semodificado no Reino Unido em 1769. O gume afiado já não eravisto como necessário ou sequer desejável numa faca de mesa. Nessamatéria,oReinoUnidofoipioneiro.Hámaisdoqueogumeafiadonasfacasdemesa,entretanto.Hátambém

aquestãodecomoessesutensíliostornamosalimentosmaissaborosos–ounão.Poressaperspectiva,paraamaioriadaspessoas,asfacasdemesasó se firmaram mesmo no século XX, com o advento do aço inoxidável.Afirmeiantesqueoaço-carbonopreferidopeloscuteleirosdeSheffielderaummetalmuitomelhorparaafabricaçãodelâminasdoqueasalternativasanteriores. O que nãomencionei foi que a desvantagem do aço-carbono,assim como do ferro, é que ele pode dar a certos alimentos um saborexecrável.Tudoqueé ácido temumefeitopotencialmentedesastrosonoaçonãoinoxidável.“Aomenorcontatocomovinagre”,escreveuEmilyPost,anotávelespecialistanorte-americanaemetiqueta,asfacascomlâminadeaçotornavam-se“negrascomotinta”.Molhovinagreteefacasdeaçoeram

umacombinaçãoruim,dondeopreconceitofrancês,quepersisteatéhoje,contracortarasverdurasdasalada.Outroproblemaeramospeixes.Fazséculosqueaspessoasconsideramo

limão o acompanhamento ideal para peixes. Entretanto, até a década de1920 e a invenção do aço inoxidável, toda vez que se comia um peixetemperadocomlimão,seusaborerapassíveldeserdestruídopelaacidezmetálicadalâminadafaca.Oácidodolimãoreagiacomoaçoedeixavanabocaumterrívelressaibometálico,quedominavacompletamenteosabordacarnedelicadadopeixe.Issoexplicaaproduçãodefacasdeprataparapeixe no século XIX. Hoje em dia, elas parecem uma afetação inútil; naverdade,asfacasdepeixeforamsobretudoumainvençãoprática,emborasó os ricos pudessem dar-se o luxo de possuí-las. Ao contrário das facasnormaisdeaço,asdepratanãoeramcorrosivasenãoreagiamcomosumodelimãonoprato.Noinício,aformarecortadafoiummododedistingui-lasnagavetadetalheres(edeassinalarqueopeixe,aocontráriodacarne,nãoeraduroenãoprecisavaserserrado).Paraquemnãotinhafacasdeprata,aúnicaalternativaeracomeropeixecomdoisgarfos,ouusarumgarfoeumpedaçodepão–ousuportarogostodoaçocorroído.Porisso,olançamentodoaçoinoxidável,noséculoXX,figuracomouma

dasmaiorescontribuiçõesparaafelicidadeàmesa.Quandoaproduçãofoibarateadapelalargaescala,depoisdaSegundaGuerraMundial,elecolocoutalheres reluzentes e elegantes ao alcance da maioria dos orçamentos eeliminou qualquer receio de que as facas dessem um sabor esquisito àcomida. Nunca mais tivemos de nos preocupar ao espremer um limãosobreumaposta de bacalhau, oude achar quenãodevíamosusar a facaparacortarumasaladacommolho.Oaçoinoxidável(tambémconhecidocomoinox)éumaligametálicacom

altoteordecromo.Ocromodometalformaumacamadainvisíveldeóxidode cromo quando exposto ao ar, e é isso que permite que o aço inox semantenha resistente à corrosão e também esplendidamente lustroso. Sónos primeiros anos do século XX é que se conseguiu produzir um açoinoxidáveldequalidade–, forteeelásticoobastante,alémderesistenteàcorrosão. Em 1908, o alemão Friedrich Krupp construiu um iate de 366toneladas, o Germania, com casco de aço cromado. Enquanto isso, emSheffield,naInglaterra,HarryBrearley,daempresaThomasFirthandSons,descobriuumaligadeaçoinoxidávelenquantotentavaencontrarummetalresistenteàcorrosãoparafabricarcanosdearmasdefogo.Acutelarianãocorrosiva foiumsubprodutoafortunadodadisputaporavançosmilitares

entre o Reino Unido e a Alemanha, a caminho da guerra declarada. Nocomeço, o novo metal foi difícil de trabalhar, exceto nos moldes maissimples da cutelaria; foram necessárias as inovações industriais daSegundaGuerraMundialparaqueasfacasdeaçoinoxidávelsetornassemalgo passível de ser moldado com eficiência e por um preço baixo nosformatos desejados pelas pessoas. O aço inox foi outro passo nadomesticação da faca, por torná-la mais barata, mais acessível e menosameaçadora do que as facas que nossos ancestrais portavam junto aocorpo.Hoje, a facademesaocidentalpareceumobjeto totalmente inofensivo

(embora ainda tenha sido considerada ameaçadora o suficiente para serbanida dos aviões, na esteira do 11 de Setembro). Entretanto, nossapreferênciaporessesutensíliospoucoafiados,nosúltimosduzentosanos,teve importantes consequências não percebidas. As facas não deixammarcas apenas nos alimentos. Deixam-nas no corpo humano. Todo cheftemcicatrizesparamostrar,emuitasvezesasexibecomorgulho,contandoahistóriaportrásdecadaferimento.Sãomarcasdetalhosnopolegarpordescascarlegumes,ouumnacodededofaltando,porumencontroinfaustocomumlinguado.Meudedoaindainchaeficadoloridoondeofatiadorlhetirou uma lasca. E há também as bolhas e os calos adquiridos peloscozinheiros, que surgem sem qualquer acidente ou erro, como simplesefeito dobommanejodas facas.As bolhas e os cortes são o legadomaisóbvio das facas de cozinha, porém asmarcas que elas deixam em nossocorpovãoaindamaislonge.Atecnologiabásicadecortaralimentosàmesamoldounossaprópriafisiologia,emespecialnossosdentes.

GRANDE PARTE DA CIÊNCIAortodônticamodernadedica-seàcriação–pormeiodeelásticos, fios metálicos e bráquetes – da “sobremordida” perfeita.Sobremordidarefere-seàmaneirapelaqualosincisivosdaarcadasuperiordispõem-sesobreaarcada inferior, comoa tampadeumacaixa.Essaéaoclusãoidealhumana.Oopostodasobremordidaéaoclusão“topoatopo”,observada em primatas como os chimpanzés, na qual os incisivossuperioreschocam-secomosinferiores,comoumalâminadeguilhotina.Oque os ortodontistas nãodizemé que a sobremordida é umaspecto

muitorecentedaanatomiahumanae resulta,provavelmente,damaneiradeusarmosnossasfacasdemesa.Esqueletospreservadosmostraramqueesse é o alinhamento “normal” da arcada dentária humana há apenasduzentosa250anos,nomundoocidental.Antesdisso,amaioriadosseres

humanos tinha uma oclusão topo a topo, comparável à dos símios. Asobremordida não é produto da evolução – o intervalo temporal é curtodemais.Aocontrário,pareceprovávelquesejaumarespostaàmaneiradecortarmos nossos alimentos durante nossos anos de formação. QuemdescobriuissofoioprofessorCharlesLoringBrace(nascidoem1930),umadmirávelantropólogonorte-americanocujagrandepaixãointelectualerao homemdeNeandertal. Durante décadas, Brace construiu amaior basemundialdedadossobreaevoluçãodosdentesdoshominídeos.ÉpossívelqueeletenhatidoentreasmãosmaismandíbulashumanasantigasdoquequalqueroutrapessoanoséculoXX.Já na década de 1960, Brace estava ciente de que a sobremordida

precisavadeexplicação.Aprincípio,presumiuqueelaremontariaàadoçãoda agricultura, há muitos milhares de anos. Em termos intuitivos, fariasentido a sobremordida corresponder à adoção dos cereais, já que elesrequerem, potencialmente, muito menos mastigação do que a carnegranulosaeostubérculoseraízesfibrosasdaserasanteriores.Contudo,àmedidaquesuabasededadosdentáriosfoicrescendo,Braceconstatouquea oclusão topo a topo havia persistido pormuitomais tempo do que sepresumiraatéentão.NaEuropaOcidental,segundodescobriu,amudançapara a sobremordida havia ocorrido apenas no fim do século XVIII, acomeçarpor“indivíduosdeelevadaposiçãosocial”.Por quê? Não houve nenhuma alteração drástica dos componentes

nutricionaisdadietadasaltasclassesnessaépoca.Osricoscontinuaramaingerirgrandesquantidadesdecarnesepeixes, fartosemproteínas,umaprofusão de massas salgadas e doces, volumes ínfimos de leite, umaquantidademodestadelegumesemaisoumenosamesmaquantidadedepão consumida pelos pobres. Podemos admitir que os ricos de 1800esperariam que sua carne fosse preparada com temperos e molhosdiferentes dos de 1500: menos groselhas, menos açúcar e condimentos,mais manteiga, ervas e limão. Porém a maioria dessas mudanças naculinária precedeu em muito o surgimento da sobremordida. A nouvellecuisinequeapareceunasmesasdaEuropaduranteoRenascimento,maisleve e mais fresca, remonta pelo menos a 1651, ao livro Le cuisinierfrançais,dofrancêsLaVarenne;epode-seargumentarqueremontaaumaépoca ainda mais antiga, ao italiano Martino de Rossi, dito maestroMartino,dadécadade1460,cujasreceitasincluíamfritadadeervas,tortadeveado,cremedequeijoparmesãoelinguadofritocommolhodesalsaesuco de laranja, nenhum dos quais pareceria deslocado nos jantares dos

milionários de trezentos anos depois. Na época em que os dentes daaristocracia começaram a se modificar, fazia centenas de anos que aessênciadadietadaclassealtanãosofriaalteraçõesradicais.Oquemudoudemaneiramaissubstancialnãofoioquesecomia,esima

maneira de comer. Isso marcou a época em que se tornou normal, noscírculos das classes alta e média, comer com garfo e faca, cortando osalimentos em pedacinhos antes de ingeri-los. Aparentemente, isso seriamais uma questão de costume que de mudança tecnológica, e em certamedidaera.Afinal,aprópriamecânicadafacaestavalongedesernova.Aolongo de milênios, as pessoas tinham inventado inúmeros utensíliosartificiaiscortantes,parafacilitarotrabalhodenossosdentesnaingestãodos alimentos. Talhamos, serramos, trinchamos, moemos, amaciamos,picamosecortamosemtirinhas.Odomíniodos instrumentosdecortenaIdadedaPedraparecetersidoumdosfatoresquelevaramàsmandíbulaseaos dentes menores do homem moderno, comparados aos de nossosancestrais hominídeos. Mas foi apenas há duzentos ou 250 anos, com aadoçãodegarfoefacaàmesa,quesurgiuasobremordida.Nostempospré-modernos,Bracepresumequeoprincipalmétodopara

comerseriaoqueeledenominoude“encherabocaecortar”.Comosugereo nome, não se trata damaneiramais elegante de fazer uma refeição. Émais oumenos assim: primeiro, pegue a comida comumadasmãos. Emseguida, prenda-a pela ponta com força entre os dentes. Por último,arranqueapartemaiordopedaçopresoemsuaboca,sejacomumpuxãofirme,sejausandouminstrumentodecorte,sevocêdispuserdealgum,e,nesse caso, tome cuidadoparanãodeceparospróprios lábios.Era assimquenossos ancestrais,munidos apenas de uma lasca de pedra afiada, oumaistardedeumafaca,lidavamcomosalimentosmaisdurosdemastigar,especialmente a carne. A escola de etiqueta do “encher a boca e cortar”perduroumuitodepoisdaAntiguidade.Asfacasmudaram–doferroparaoaço,doscabosdemadeiraparaosdeporcelana–,masométodocontinuou.Acrescenteadoçãodohábitodecomercomgarfoefaca,nofimdoséculo

XVIII,marcouofimdo“encherabocaecortar”noOcidente.Voltaremosaogarfo(eaofachieàcolher)noCapítulo6.Porenquanto,precisamosapenasconsideraroseguinte:dostemposmedievaisaostemposmodernos,ogarfopassou de uma coisa esquisita, um pretensioso objeto de ridículo, a umaparte indispensável das refeições civilizadas. Em vez de encher a boca ecortar,aspessoaspassaramacomersegurandooalimentocomogarfoecortando-o em pedacinhos com a faca, e levando à boca pedaços tão

pequenosquemalnecessitavamdamastigação.Asfacastornaram-semaiscegas, de modo que os pedaços precisavam ser mais macios, em geral,reduzindoaindamaisanecessidadedemastigar.OsdadosdeBracesugeremqueessarevoluçãonasmaneirasàmesateve

um impacto imediato nos dentes. Disse ele que os incisivos – do latimincidere,“cortar”–têmumnomeimpróprio:suaverdadeirafinalidadenãoécortar,masprenderoalimentonaboca,comonométodo“encherabocaecortar”. “Suspeito”, escreveu ele, “que se os incisivos foremusados dessamaneira,váriasvezespordia,desdeomomentoemquecomeçamanascer,elesseposicionemdemodoafazeremnormalmenteaoclusãotopoatopo.”Quandoaspessoascomeçamacortarosalimentosempedacinhos,usandogarfo e faca e levando as porções à boca, a função preênsil dos incisivosdeixade serusada e eles continuama crescer, atéque a arcada superiordeixadetocarabordadainferioresesuperpõeaela:éasobremordida.Costumamos pensar que nosso corpo é fundamental e inalterável,

enquantocoisascomoasmaneirasàmesasãosuperficiais:podemosalterá-lasdevez emquando,masnãopodemos sermodificadospor elas.Bracevirou essa ideia de pernas para o ar. Nossa sobremordida – essacaracterísticaaparentementebásicadaanatomiahumanamoderna–,quesupomosnormalenatural,é,naverdade,produtodecomonosportamosàmesa.Como podemos ter certeza, comoBrace, de que foram os talheres que

acarretaramessamudançaemnossosdentes?Arespostacurtaéquenãopodemos. A descoberta de Brace levanta tantas perguntas quantasresponde. As maneiras de comer eram muito mais variadas do que suateoriaadmite.EncherabocaecortarnãoeraoúnicomododeaspessoascomeremnaEuropapré-industrial, enemtodososalimentosprecisavamda preensão dos incisivos; as pessoas também ingeriam sopas ralas ecremosas, beliscavam tortas quebradiças de massa podre e comiammingaus e polentas às colheradas. Por que esses alimentos macios nãomodificaramanossaarcadadentárianumaépocamuitoanterior?Talvezoamor de Brace pelos neandertalenses o tenha cegado para o quanto aetiqueta àmesa, antesmesmo do garfo e da faca, via commaus olhos aforma voraz de entupir a boca. Posidônio, umhistoriador grego (nascidoc.135a.C.),queixou-sedequeosceltaseramtãogrosseirosque“seguramquartos inteiros de carne e os mordem”, sugerindo que os gregos bem-educadosnãoo faziam.Alémdisso,o simples fatodea sobremordida tersurgidonamesmaépocaemqueafacaeogarfocomeçaramaserusados

nãosignificaqueumacoisatenhasidocausadapelaoutra.Correlaçãonãoécausa.No entanto, a hipótesedeBrace realmenteparece ser a quemelhor se

encaixacomosdadosdisponíveis.Quandoescreveuseuartigooriginalde1977sobreasobremordida,elemesmofoiforçadoaadmitirqueosdadosde que dispunha até então eram “pouco sistematizados e anedóticos”.Brace passaria as três décadas seguintes à caça de mais exemplos paraaperfeiçoarabasededados.Duranteanos,sentiu-setentadopelaideiadeque, se sua tese estivesse correta, os norte-americanos deveriam terconservadoaoclusãotopoatopopormaistempoqueoseuropeus,porqueforamnecessáriasváriasoutrasdécadasparaquecomercomgarfoefacafosse aceito nos Estados Unidos. Após anos de busca infrutífera deamostras dentárias, Brace conseguiu fazer escavações num cemitériooitocentista não identificado emRochester, no estado deNova York, queguardavacadáveresdomanicômio,doasilodepobresedaprisão.Parasuaimensa satisfação, constatou que, dos quinze corpos cujos dentes emandíbulas estavam intactos, dez – dois terços da amostra – tinhamoclusãotopoatopo.MasoquedizerdaChina?“Encherabocaecortar”destoafrancamente

damaneirachinesadecomer,queécortarcomadaoecomercomofachi.Oestiloextremamentepicadodaculináriachinesaeousodospauzinhostornaram-se corriqueiros cerca de ummilênio antes de o garfo e a facaserem normais na Europa, na época da dinastia Song (9601279),começando na aristocracia e se difundido aos poucos pelo restante dapopulação. Se Brace estivesse certo, a combinação da dao com o fachideveriaterdeixadosuamarcanosdentesdoschineses,muitoantesdafacademesaeuropeia.Os dados corroborativos demoraram um pouco a aparecer. Em sua

eternabuscademaisamostrasdentárias,Bracedescobriu-senoMuseudeHistóriaNaturaldeXangai.Aliviuosrestosconservadosdeumestudanteuniversitário da era da dinastia Song, exatamente a época em que ospauzinhos tornaram-se ométodo normal de levar o alimento do prato àboca:

Orapazeraum jovemaristocrata,umoficialquehaviamorrido, comoexplicavaaetiqueta,maisoumenosnaocasiãoemquedeveriaprestarseusexamesimperiais.Bem,poisaliestavaele numa cuba, flutuando num líquido conservante, de boca aberta e com uma aparênciarepulsiva.Masaliestavaela:asobremordidaprofundadoschinesesmodernos!

Em anos posteriores, Brace analisou muitas arcadas dentárias dechineses e descobriu que, com exceção dos camponeses, que em geralconservaram a oclusão topo a topo até já bem tarde no século XX, asobremordida surgiu mesmo uns oitocentos a mil anos antes de seuaparecimentonaEuropa.AposturadiferentedoOcidenteedoOrienteemrelação às facas exerceu um impacto visível no alinhamento de nossasarcadas.Portanto,omodocomoumafacaéusadaétãoimportantequantoasua

eficiência para fatiar. A dao que cortava os alimentos desse aristocratachinês,mil anosatrás,não seria significativamentemaisafiadanemmaisforte do que as facas de trinchar que então cortavam a carne de seusequivalenteseuropeus.Adiferençamaiorestavanoquese faziacomela:cortarosalimentoscrusemfragmentospequeninos,emvezdetrincharemgrandesnacosacomidajápreparada.Acausadessadiferençaeracultural,baseada numa convenção sobre os utensílios que deveriam ser usados àmesa. Suas consequências, porém, foram claramente físicas. A dao haviadeixado suamarcanadentiçãodoestudante chinês, e estavaali para servistaporBrace.

FACAMEIA-LUA

Comseuscabosgorduchosdemadeiraesualâminaemarco,amezzalunaparece um utensílio que deveria ter caído em desuso hámuitos séculos.Pelomenosdesde a Itália renascentista, toda cozinha temalgumaversãodessa faca curva de picar. Antes dela, os cozinheiros italianos utilizavammuitas facas curvasdeumcabo só.Tambémhaviaoutrasde caboduplo,maserampara limparamesa,nãopara cortar alimentos.Por fim, algumferreiro palaciano dotado de iniciativa deve ter pensado em combinar alâminacurvaeafiadacomocaboduplo,paracriaroutensílioperfeitoparapicar.Eamezzalunaperdura,picandoervaseemprestandoseubelonome–“meia-lua”,emitaliano–ainúmerosrestaurantescaros.O poder de permanência dessa faca é um alerta para que não

subestimemosaforçadoromancenacozinha.Éumobjetopalpitantedeseusar.Écomolevarsuasmãosparabrincarnaquelesbalançosemformatodenaviodealgumaantigacidadeitaliana.Pracima,prabaixo,pracima,prabaixo.Baixamososolhoseaspiramosoaromaestonteantedesalsa,alhoecascadelimão–umagremolataparasalpicarnumossobucco.Sim,vocêtambémpoderiaprepará-lanuminstantenumprocessadorde

alimentos,oupicá-lacomumafacadechefqualquer–porémameia-luaafazmelhor.Háeficiênciaportrásdoromantismo.Aopicaremoleaginosas,porexemplo,osprocessadorestendemaexagerar–vocêseguraobotãodepulsarporumpouquinhomaisdetempoe,quandomenosespera,estácomasamêndoasmoídas;maisumminutoeelassetransformamemmanteigadeamêndoas.Comumafacadechef,elasseespalhamportodaatábua.Amezzaluna pega as nozes ou amêndoas em cada ponta ao balançar,produzindonuminstantebelosfragmentosdesiguais.Asfacasmeia-luadeumaúnicalâminasãoasmelhores,porque,comas

de lâmina dupla, embora ganhe força, você perde tempo para tirar ospedaços que se acumulam entre elas. Uma simples lâmina curva tempotênciasuficiente,semamenordúvida,paradarcontadedamascossecos,quegrudamnasfacasnormais.Eomovimentodebalançocontinuaaseramelhormaneiradepicarervasfrescasatédeixá-lasbemmiúdas,masnãoempastadas.

Eamezzalunatemoutraenormevantagemsobreasfacascomuns,comoassinalouNigellaLawson.Comameia-lua,escreveuela,“ficocomasduasmãosocupadase,assim,éimpossíveleumecortar”.

aSevocêconsultara internet,noentanto,veráqueaindaexistemalgumasoficinasdeamoladoresqueafiamqualquercoisa,desdefacasdecaçaatécortadoresdepizzaelâminasdeprocessadoresdealimentos.bOmincepicaoalimentoempedaçosbempequenos,uniformesnotamanho,masnãonoformato,ecostumaserusadoparacortaralho,gengibreou folhasdeervas;ochiffonade é aquele emque seenrolamervasoufolhasdeverdurasesecortamtirasbemfinas,eojulienneproduztirasestreitaseuniformes,comc.0,3centímetrodeespessurae2,5acincocentímetrosdecomprimento.(N.T.)

3.Fogo

“Provavelmenteamaior[descoberta]jáfeitapelohomem,comexceçãodalinguagem.”

CHARLESDARWINsobreaculinária,Aorigemdohomemeaseleçãosexual,1871

“Ópai,oleitão,oleitão,venhaprovarcomoébomoleitãotorrado.”

CHARLESLAMB,“ADissertationUponRoastPig”,1823

“IMAGINE FAZER ISSOnumacozinhasemiluminação–vejacomoéperigoso!”Umhomem de camiseta preta e avental branco de mestre-cuca postava-seperto de um fogo quente, pondo umpequeno pedaço de vitela, recheadacom folhas de sálvia, no que parecia ser um instrumento de tortura.Compunha-sedecincoespetosletaisdeferro,todoscommaisdeummetrode comprimento e precariamente interligados. O aparelho parecia umdardo com cincopontas.Na verdade, trata-se de um tipo rarode espeto,chamado spiedo doppio, um equipamento italiano para assar carne,origináriodoséculoXVI.QuemomanejavaeraIvanDay.Talvezsejaaúnicapessoadomundoqueaindacozinhacomesseespeto.Day, um sujeito jovial de sessenta e poucos anos, é o mais destacado

historiadordaculinárianoReinoUnido.MoraemLakeDistrict,nointeriordaInglaterra,numacasadefazendaseiscentistameiodilapidada,atulhadadeutensíliosdeépocaeantigos livrosdereceitas,umaespéciedemuseuvivoondeeledáaulassobremétodoshistóricosdecozinhar.Lecionaparagruposdecozinheirosamadores,bemcomoparadiversoschefs,estudiososecuradoresdemuseus.NumcursodeIvanDay,talvezvocêaprendaafazeruma torta renascentista de marmelo e tutano, um biscoito waferseiscentista aromatizado com água de rosas, uma geleia vitoriana ou um

biscoito medieval de gengibre – todos preparados com equipamentoautêntico.AgrandepaixãodeDay,entretanto,éfazerassadosnoespeto,oqueeleconsideraseramelhortécnica já inventadaparaprepararcarnes.“As pessoas me dizem que minha carne assada é a melhor que jáprovaram”,observounumadesuasaulas.Sualareiraabertaetodososseusespetoslhepermitemassardeumasóvezpeçasenormes,àsvezesdeatéoitoquilos.Paradanopisodepedradesniveladoda cozinhadeDay, ocorreu-meo

quantoéincomum,hojeemdia,terumacasainteiraorganizadaemtornode uma lareira aberta. Houve época em que quase todos viviam assim,porqueumúnicofogoserviaparaaqueceracasa,esquentaraáguaparaobanhoeprepararasrefeições.Durantemilênios,tudoquesepreparavanacozinha era assado, de uma forma ou de outra. Hoje, no mundo emdesenvolvimento,ofogovivodalareiraoudofogãoalenhacontinuaaseraformadecozinhardosmaispobres.

Nomundodesenvolvido,porém,ofogofoiprogressivamenteapagado.Sóemchurrascosouquandonossentamosemvoltadefogueirasaoarlivre,aquecendo as mãos junto às chamas ou assando marshmallows, é queencontramosumfogodiretodecozinha.Muitosdenósafirmamgostardecarneassada–eadeIvanDayfoirealmenteamelhorquejácomi–,masnãotemososrecursosnemodesejodefazer instalaçõesemnossascasasparaprepararalimentosemlareirasabertas.Temosmuitasoutrascoisasafazer, e nossa cozinha precisa enquadrar-se na nossa vida, e não ocontrário.Daytemquefazerumesforçoenormeparamantersuacozinha:vasculha osmercados de antiguidades da Europa em busca de espetos eoutrosutensíliosparaassardescartadoshámuitasdécadas,naépocaemque as cozinhas foram reformadas, trocando o lume vivo por fornosfechadosebocasdefogão.

Nãoéapenasumaquestãodofogoemsi.Cozinharnumalareiraabertaexigia uma multiplicidade de instrumentos correlatos: suportes paraimpedirquealenharolassedasextremidadesdafogueira;apressadores–grandes coifas de metal colocadas diante do fogo, para acelerar ocozimento ou proteger o cozinheiro do calor; inúmeros tipos de espetos,desdeospequenos,deumaúnicahaste,atéosenormes,comcincohastes;armaçõesapropriadasparagiraracarnenoespeto;pegadoresdemetalefoles para controlar o fogo; ganchos para pendurar as panelas acima dofogoepingadeirasparapôrdebaixodeleerecolheragorduraqueescorredoassadoempreparação;trempesetripésparasustentaraspanelassobreofogoegarfosdecabolongoparatirarpedaçosdecarnedapanela.Todosesses utensílios eram feitos de metal pesado (ferro, em geral) e tinhamcabos compridos, para proteger o cozinheiro do calor terrível. Nenhumadessas coisas pode ser encontrada atualmente nas lojas de artigos de

cozinha–todasdesapareceramjuntocomalareiraaberta.Se eu entrasse na cozinha deDay compegadores de aço inox de cabo

curtoeespátulasnãoaderentesdesilicone,não teriaamenorchance.Osutensílios derreteriam, e eu fritaria. As crianças iriam gritar de fome, acomidaqueimaria. Todoo estilo de vida que sustentava a preparaçãodacomida na lareira tornou-se obsoleto. A tecnologia da culinária nãoconcerneapenasaobomfuncionamentodiretodesteoudaqueleutensílio–seeleproduzounãoacomidamaisdeliciosa–,masatudoqueacerca:asinstalações da cozinha, nossa atitude perante o perigo e os riscos, apoluição, a vida dasmulheres e dos criados, nossa postura em relação àcarnevermelhaouàcarneemgeral,asestruturassocialefamiliar,oestadodametalurgia. Assar a carne diretamente no lume condiz com toda umacultura que se perdeu. É por isso que é tão desconcertante entrar nacozinhadeIvanDay,umdosúltimoshomensdaInglaterraquesedispõemaconstruiravidaemtornodeumalareira.

ASSARÉAMAISANTIGAformadecozinhar.Nosseustermosmaiselementares,nãosignifica nada além de pôr os ingredientes crus direto sobre o fogo. NaÁfrica, os caçadores-coletores !Kung San ainda cozinham assim, jogandofavas de tsin sobre as brasas. Jamais conheceremos a pessoa abençoadaque, por acaso ou não, descobriu que os alimentos podiam sertransformados pelo fogo, tornando-se mais fáceis de digerir e maissaborosos. Em sua “Dissertação sobre o leitão assado”, Charles LambimaginaonascimentodométododeassarnaChina,quandoBo-bo,ofilhopreguiçosodeumcriadordeporcos,provocaumincêndiodomésticoquemataequeimaacidentalmenteumaninhadadeleitões.NafábuladeLamb,Bo-boestendeamãoparapegarumfragmentodapeletostadadoleitão“e,pela primeira vez em sua vida (na vida domundo, aliás, pois antes delenenhumhomemoconhecera),provou…torresmo!”É uma história sedutora,mas a descoberta dessa técnica não pode ter

ocorridoassim,pelarazãoóbviadequeassarcarnesfoimuitoanterioràscasaseaoscriadoresdeporcos.A tecnologiadoassamentoémuitomaisantiga que a da construção de edificações, e mais antiga ainda que aagricultura.Antecedeuemquasedoismilhõesdeanosaproduçãodepotesdecerâmicaparaferveralimentosedefornosparaassá-los.Aconstruçãomais antiga de que se tem notícia, até hoje, foi datada de cerca demeiomilhão de anos atrás, ali pelo final da era doHomo erectus, o primeirocaçador-coletorhumano.Muitosmilharesdeanossepassariam,entretanto,

antes que esses proto-humanos residentes em casas se tornassemagricultores.Ocultivodevegetaissurgiupelaprimeiravezemc.9000a.C.,bemnaeradohomemmoderno,ouHomosapiens.Acriaçãodeanimaiséaindamaisrecente.OsporcossóforamdomesticadosnaChinaporvoltade8000a.C.Aessaaltura, já fazia centenasdemilharesdeanosquenossosancestraisestavamfamiliarizadoscomogostosaborosodacarneassada.Aliás, talvez tenha sido a descoberta da possibilidadede assar sobre o

lume vivo que nos transformou originalmente no que somos. Se oantropólogoRichardWranghamestiver certo,oprimeiroatodecozinharouassar–hácercade1,8a1,9milhõesdeanos–foiomomentodecisivodahistória,ouseja,omomentoemquedeixamosdesersímioseretosenostornamos mais plenamente humanos. Cozinhar torna a maioria dosalimentosmais fácil de digerir, além de liberar uma partemaior do seuvalor nutritivo. A descoberta dos alimentos cozidos deixou-nos comumaenergia extra para o crescimento do cérebro. Wrangham escreveu que“cozinhar foi uma grande descoberta, não apenas por ter nos dado umacomidamelhor,oumesmopor ternos tornado fisicamentehumanos.Fezalgoaindamaisimportante:ajudouatornarnossocérebrosingularmentegrande, proporcionando a um corpo humano sem graça uma mentehumanabrilhante”.Depois de domar essa poderosa fonte de calor e luz, o ser humano

construiucasaspertodelae,maistarde,àsuavolta.Alareiraqueforneciatodasasrefeiçõessemprefoiopontofocal(dolatim focus, fogo,lume)dacasa.Anecessidadedecuidardofogo–deacendê-lo,mantê-loaceso,paraele gerar a medida certa de calor, fornecer-lhe combustível suficientedurante o dia e abafá-lo durante a noite, para a casa não se incendiar –,tudoissoconstituiuoconjuntodetarefasdomésticasdominantesaté150anosatrás,quandosurgiramos fogõesagás.Hojeemdia,o termo inglêscurfewsignifica“toquederecolher”.Ocurfewaoriginaleraumutensíliodecozinha:umagrandetampademetalcolocadasobreasbrasas,ànoite,paraconterofogoenquantoaspessoasdormiam.Quantoacozinhar,emsi,essafoisobretudoaartedemanejarofogo.Nacozinhamoderna,ofogonãofoiapenasdominado.Foitãoconfinado

que quase podemos esquecer sua existência, em meio às bancadaselegantes e a todos os botões de ligar e desligar que nos permitemconvocaredescartarocaloremumsegundo.Mas,poroutro lado,o fogovolta à tona e nos lembra que, mesmo no mundomoderno, as cozinhasaindasãolugaresemqueaspessoassequeimam.Numestudogregosobre

239 casos de queimaduras infantis, constatou-se que a cozinha era, semsombradedúvida,ocômodomaisperigosodacasa,provocando65%delas.O grupo etário mais afetado por queimaduras com líquidos quentes nacozinha é o das crianças de um ano: grandes o bastante para termobilidade,masnãoparasaberqueofogãoéquente.Antigamente,entrava-senacozinhaesperandoverumfogo.Hojeemdia,

apresençade fogoéumsinaldepânico.NoReinoUnidoatual,amaioriadosincêndiosdomésticosaindaécausadapelacozinha–emespecialporsedeixarempanelase,sobretudo,fritadeirasdesassistidas.Afritadeira–umapanela funda em que se fritam batatas num cesto – é um exemplointeressante de como é frequente as pessoas continuarem apegadas acertas tecnologias de cozinha,muito depois de elas se revelarem letais eineficientes. Todos os anos, há cerca de 12 mil incêndios causados porfritadeiras no Reino Unido, os quais resultam em 4.600 ferimentos ecinquentamortes.OCorpodeBombeirosfazapelosperiódicosparaqueapopulaçãoparedefritarbatatasemfritadeiras,implorandoqueaspessoascomprem fritadeiras apropriadas, com tampade vedação, ouque comamoutra coisa – qualquer coisa! – em vez de batatas fritas, particularmentequandoestãobêbadas.Noentanto,osincêndioscausadospelasfritadeirascontinuam.Os grandes incêndios britânicos causados por fritadeiras são

emblemáticos de um esquecimento profundo, que vai além da evidenteestupidezdecombinarálcooleóleoquenteànoite,emespaçosconfinados.Háumaespéciede inocênciaarespeitodaschamasdessaspanelas,comose os responsáveis houvessem esquecido por completo a ligação entre aculináriaeofogo.Issoeraalgoquejamaispassariadespercebidonaépocaemquetodopreparoculináriocomeçavaporumachamaviva.

BRILLAT-SAVARIN,ograndefilósofofrancêsdaculinária,escreveuem1825que“ocozinheiropodeserensinado,masohomemquesabe fazerassados jánasce com essa competência”. Na primeira vez que li isso, quando alunainiciantenacozinha,fiqueiintrigada.Assarnãomepareciatãodifícilassim–principalmentesecomparadoafazerumamaionesequenãodesandasseouumamassafolhadaquenãodesmoronasse.Nãoeradifícilpincelarumfrango de um quilo e meio com manteiga, sal e limão, colocá-lo numaassadeira no forno elétrico aquecido, esperar uma hora e dezminutos eretirá-lo. Desde que eu comprasse um bom frango caipira, meu “frangoassado”sempresairiaperfeito.Assareramuitomaisfácildoquerefogare

cozerumlombobovinoemfogobrando,ousaltearumacosteletadeporco,ambos os quais exigiam rigorosa atenção para garantir que a carne nãoficassedura.EsseprocedimentobásiconãoeranadadoqueBrillat-Savarintinhaem

mente. Até bem tarde no século XIX, havia na culinária doOcidente umarigorosadivisãoconceitualentreospratosfeitosnachamaviva–ascoisasque assavam diretamente no fogo – e nos fornos fechados – as coisascozidasnoforno.bParaBrillat-Savarin,oquefaçocomofrangopoucotemaver com assar. Do ponto de vista damaioria dos cozinheiros de séculosanteriores,os“assados”queservimosemjantaresnãosãonadadisso,esimumestranhotipodecarnescozidas,meiogrelhadas,meioguisadasemsuaprópria gordura. A ideia de assar, no seu sentido original, era que issoexigia,emprimeiro lugar,uma lareiraaberta,eemsegundo,arotaçãodeumespeto(araizdapalavra“roast”[assar]éamesmade“rotate”[girar]).Oprocessooriginaldeassardiretosobreolume–colocaralgosobreum

fogonãocontrolado–éummétodo toscoe rápido,queresultaemcarnedura e gordurosa. A proteína dos músculos cozinha demais e endurece,enquantoocolágenodotecidoconjuntivonãotemtempoparaamaciar.Overdadeiro assamento, em contraste, é umprocessodelicado.O alimentocozinha a uma distância considerável das brasas, sempre girando. Arotação significa que o calor não consegue acumular-se em excesso numponto qualquer: a carne não queima. O ritmo lento e gradativo conservamacia apeçaempreparação,maso cozinheiro tambémdeve ficar atentoaos sinais de que o fogo não está quente o bastante, ou de que precisaaproximar o espeto dele. É por isso que se diz que os verdadeiroschurrasqueiros não aprendem, nascem prontos. Além da simplestrabalheira de ficar girando o espeto, é preciso ter uma espécie de sextosentidoarespeitodacomidaempreparação,uminstintoqueavisequandoelaestáprestesaqueimar,ouquandoofogoprecisaseratiçado.IvanDay se enfurece quando as pessoas dizem, como é frequente, que

assar no espeto na lareira – o mais estimado método de cozinhar naEuropa, durante centenas de anos – era sujo e primitivo. “Ao contrário,muitasvezeseraumprocessoaltamentecontroladoesofisticado,comumatecnologia avançada e um estilo próprio e admirável de preparação.” Àsvezes, o ato de assar no espeto é descartado como digno do homem deNeandertal. Ao que Day comentou, um dia, quando fazia o aquecimentoparaentrarnoassunto: “PrefirocomercarneàNeandertal”doquecarnepreparada“numfornodemicro-ondas”.

Comiváriascarnesassadasnoespetopor IvanDay,usandosua lareirado século XVII e todos os seus apetrechos. O sabor e a textura eram deoutromundo.Mas eu nunca soube ao certo até que ponto isso refletia atecnologia do cozimento na brasa, ou se o mérito cabia, na verdade, àsconsideráveis habilidades gastronômicas deDay. Seus padrões culináriosvãomuitoalémdosdamédiadoscozinheirosdomésticos.Elepreparasuaspróprias cascas de frutas cítricas cristalizadas e destila suas própriasessências.Éexigentecomostemperos,ecadarefeiçãosaídadesuacozinhapareceumaobradearte.O que todas as carnes assadas por Day tinham em comum era a

suculênciatenraqueàsvezesfaltaàscarnesassadasnoforno.Umpernildecarneiro,assadonumespetoverticalmovidoporpesos,emergiunopratoempedaços saborosíssimos.Avitelaàmoda renascentista italianaestavamaciaeperfumadacomaservas finas.Omelhorde todos foiocontrafilévitoriano, seguindo uma receita de Francatelli, o cozinheiro da rainhaVitória,queaprendiafazernumadasaulasdeIvan.Primeiro,lardeamosocontrafilé cru. Isso consistiu em costurar tiras de gordura de porcodefumadanacarne,usandoenormes“agulhasdelardear”,comaintençãode que ela fosse deliciosamente regada por dentro. Em seguida, nós apusemos numa marinada de azeite, echalota, limão-siciliano e ervas –sabores surpreendentemente leves, à italiana.Por fim,prendemosapeçanum espeto enorme e a pusemos no lugar, diante do fogo, com gramposmetálicoschamados“firmadores”.Ocontrafiléfoiservido–seguindooaltoestilovitoriano–decoradocomhatelets(espetinhoscomopulentasfileirasde trufas e camarões). A carne em si tinha uma crosta caramelada, porcausadasregasdiligentesde Ivan;aparte internadesmanchavanogarfocomomanteiga. Nós que cursávamos as aulas nos entreolhamos àmesa.EntãoeraporissoquesefaziatantoalvoroçoarespeitodacarneassadadaInglaterra. Esses resultados esplêndidos eram produto de uma gamaimpressionanteeexigentede trabalhoeequipamento,quehaviapassadoporséculosdeaperfeiçoamentos.Antes de mais nada, havia o próprio fogo. Não sabemos como foram

acesos os primeiros fogos, se pelo atrito deliberado entre a pirita e apederneira, se aproveitando um incêndio na mata para acender umgraveto. Mas é certo que a domesticação inicial do fogo foi uma tarefaangustiante: acendê-lo, mantê-lo aceso e contê-lo, tudo era passível decausar problemas. As fogueiras do Paleolítico (de 200mil a 40mil anosatrás)consistiamnumpunhadodepedrasdispostasemcírculoparaconter

ofogo.NascavernasdorioKlasies,naÁfricadoSul,hárestosde125milanosdemoradoreshumanosdecavernasqueparecem ter sealimentadodeantílopes emoluscos, focas epinguins, todosassadosem fogueirasdepedraconstruídasparaessafinalidade.Umavezaceso,ofogoprecisaseralimentado.Emlugaresemquealenha

éescassa,éprecisoalimentá-locomqualquercoisa,desdeturfaatéfezeseossos de animais. Algumas tribos de caçadores-coletores levavam o fogoconsigo,porque,quandoeleseextinguia,nãohaviacomogarantirqueemalgum momento fosse possível reacendê-lo. Os gregos e os romanosconstruíam lareiras públicas inextinguíveis, em homenagem a Héstia/Vesta, a deusa do lar. Mesmo no ambiente doméstico, o fogo básico dalareiranãoeraapagadocomdisplicência.Quandoouvimosfalarem“chamaeterna”,imaginamosumbelofogocor

de laranja, semelhante à tocha olímpica, passado de mão em mão. Naschoupanas pré-modernas, porém – fossem elas romanas ou irlandesas,mesopotâmicas ou anglo-saxônicas –, a chama eterna costumava vir aopreço de o indivíduo se marinar numa mistura horrorosa de fumaça evapores.Ocalordeumacozinhaprofissionalmodernajáéruimobastante;visiteiascozinhasdeváriosrestaurantesdeLondres,poralgunsminutosdecadavez,esaíbanhadaemsuor,compenadospobreschefsauxiliaresque tinham de cumprir turnos de dez horas nessas condições. E eramcozinhasmodernasereluzentes,comtodososventiladoreseexaustoresdefumaça exigidos pelas normas de “saúde e segurança”. Como devia sernumapequenacozinhaantiga,semventilaçãoalguma?Quaseinsuportável.Emmeados do século XX, a escritora classicista Louise Rayner passou

algum tempo numa casa de pau a pique e piso de terra batida na antigaIugoslávia – o tipo de acomodação em que viveu a grande maioria dahumanidade, antes da chegada de coisas como ventilação, luz elétrica esistemasdeencanamentomodernos.Raynersugeriuqueessecasebrenãodiferiadoscasebresgregosdaerahomérica.Ocômodoprincipalnãotinhajanelasnemchaminé,apenasumburaconotelhadoparaafumaçaescapar.Asparedeseramnegrasdefuligemporcausadofogo.Astábuasdaparteinternaeramtodasmanchadasdefumaça.Cozinharnumespaçotãorestritodificilmentepoderiaserumaatividade

prazerosacomoéparamuitosdenóshoje.Cadatentativadeatiçarofogobaixo, ouespetar a carneemcozimento, só faria aumentar a fumaça.Eraimpossívelmanterumachamavivasobacarnee,aomesmotempo,abrirumaporta.Nãoadmiraquemuitosantigoscozinheirosgregospareçamter

preferido usar braseiros portáteis: cilindros de barro que podiam serdeslocadosparaqualquercômododacasaenosquaiseramuitomaisfácilcontrolarofogo.As coisas eram ligeiramente melhores nas cozinhas dos ricos na

Inglaterramedieval.Nelas,pelomenos,ospisoseramdepedra,emvezdeterra batida, e o pé-direito altíssimo dissipava parte da fumaça. Mesmoassim,enquantosepreparavamassucessivaslevasdecarnesassadas,erafrequente os enormes salões dessas residências ficarem sufocantes, porcausa dos vapores. Quando os cozinheiros tinham de preparar qualqueroutro prato além dos assados, era preciso acender múltiplos lumes,espalhadospelopisoda cozinha: podiahaverum fogopara guisar, outropara ferver e outro para assar, todos flamejantes, cuspindo centelhas efuligem.Nessascasas,eracomumesperar-sequeoscozinheirosassassemcarne suficiente para cinquenta pessoas de cada vez. Podemos avaliar operigo e a imprevisibilidade dessas lareiras abertas pelo fato de que,muitas vezes, as cozinhas inglesas eram construídas como prédiosseparados, ligados ao salão por uma passagem coberta. Assim, se umacozinha fosse destruída por um incêndio, podia-se construir outra semperturbaracasaprincipal.Entretanto,não se cogitavaviver sem lareira,pois semelanãohaveria

aquecimentonoinvernonemcarnesassadas.Paraopatriotainglês,aideiadeumenormepernildeveadooudeumlombodevacagirandolentamentediantedofogoeraesplêndida.NoreinadodeElisabethI,alguémobservouque“oscozinheirosingleses,comparadosaosdeoutrasnações,destacam-se, sobretudo, pelas carnes assadas”. Os ingleses se orgulhavam de suaspreferências másculas: “Bife e liberdade!” era o grito do século XVIII.“Quando a Inglaterra descartar a carne assada no fogo, será lícitoconcluirmos que a nação está em vias de modificar seu caráter viril enacional”,escreveuodr.Hunter,deYork,em1806.Paraosfranceses,aindasomos“lesRosbifs”.Mas a predileção inglesa pela carne de vaca assada (que, de qualquer

modo,restringia-sepredominantementeaosricos)nãoera,nofundo,umaquestãodegosto: eraumaquestãode recursos.Emparte, os cozinheirosinglesesoptavamporassarenormescarcaçasaocalordegrandeslareirasporque–emcontrastecomoutrasnações–tínhamoslenhafarta.DaIdadeMédiaatéoséculoXIX,LondreseramuitomaisricaemcombustíveldoqueParis,oqueteveaconsequênciadetornarmaisabundanteoabastecimentoalimentar dos ingleses. Talvez os franceses também desejassem ser

“Rosbifs”. O pão, a cerveja e os assados eram vorazes consumidores delenha, todos eles; calculou-se que o simples atendimento do apetitelondrinodepãoecervejadeveterconsumidocercade30miltoneladasdelenha no ano de 1300, mas isso não era problema, porque havia umaprofusãode florestasbem-supridas– epredominantemente renováveis –noscondadoscircunvizinhos.Precisava-sedemaiscombustívelaindaparaaquecerasresidênciasparticulareseassarcarnes.DepoisdaPesteNegra,ocusto da lenha teve um aumento drástico na Inglaterra, mas o carvãobaratotomouoseulugaremanteveofogodosassadosardendo.AdiferençaemrelaçãoàChinaégritante.Éverdadequeoschinesestêm

sua própria tradição de carnes assadas – as vitrines de todos osrestaurantes de qualquer bairro chinês no mundo são repletas dereluzentespatosassadoseprateleirasdecostelasdeporco,todosinteiros.Masfritarnawokcontinuaaseratécnicafundamentaldacozinhachinesa,umaculinárianascidadaescassezdecombustíveis.Cadarefeiçãotinhaquese basear em cálculos frugais sobre como extrair omáximo de sabor domínimoinsumodeenergia.“LesRosbifs”nãotinhamtaispreocupações.OsassadosdaInglaterrarefletiamnossaspaisagensdensamentearborizadase o fato de possuirmos grama em abundância para os animais de pasto.Podíamosnosdaraoluxodecozinharanimaisinteirosnocalordeumfogoflamejante,alimentando-ocomtodasastorasquefossemnecessárias,atéque a carne ficasse assada aonosso gosto.A curtoprazo, erauma formasuntuosa de comer – e uma formadeliciosa, se podemos nos guiar pelasrecriaçõesde IvanDay.A longoprazo, entretanto, équase certoque issotenhalimitadoashabilidadesculináriasdopaís.Anecessidadeéamãedainvenção, e uma quantidade mais restrita de lenha talvez nos houvesseforçadoaproduzirumaculináriamaiscriativaevariada.Ter lenha suficiente não significou que o tradicionalmétodo inglês de

assar carnes tenha sido um processo acidental. Longe disso. Para assarbem,eraprecisosaberquaiscarnespodiamsercozidasnumachamasuaveequaisprecisavamdocalorcompletodofogoalto,comooscisnes.Ajulgarpor manuscritos ilustrados, a habilidade de preparar assados no espetoremontapelomenosàépocadosanglo-saxões.Oscozinheirosprecisavamsaberregaracarnecommanteigaouóleoepolvilhá-lacomfarinhadetrigooufarelodepão,paradeixá-lamaiscrocantenaparteexterna,usandoummuffineer – um pequeno polvilhador metálico parecido com ospolvilhadores de noz-moscada e chocolate em pó que encontramos nascafeteriasdehoje.Umvisitante suecoque estevena Inglaterrano século

XVIIIobservouque“osingleses,melhordoquequasequalqueroutropovo,entendem da arte de assar adequadamente uma peça de carne”. Mas,quandoessa tecnologia foisuperada,restouaoscozinheiros inglesesumacoleção de habilidades que não podiam ser transferidas para outrosmétodosculinárioscomfacilidade.Aprincipalhabilidadedequetodocozinheiroinglêsnecessitavaeraesta:

sabercontrolarumfogogrande,atiçando-ooudeixando-obaixarconformeoprato.O bom cozinheiro conhecia o temperamentoda chama, sabia lerpadrões nela. Para controlar o fogo, controla-se a corrente de ar:canalizandooarparaele,intensifica-seocalor.QuandoDayquerelevaratemperatura, atiça vigorosamente o fogo com um atiçador. “Agora vaiaumentar comoele só!”, exclama.E, dito e feito, passadosdezminutos, édolorosochegarpertodalareira.Apessoasenteasbochechasfritarememsegundos.Aoprepararo jantarsobreachamabaixado fogãoagás,vocêpodese

aproximarobastanteparamexereespetar.Àsvezes,ponhoonarizacimadapanela,parasentiroperfumedoalhoedotomilhonummolho,porpuroprazer.Noassamentoemfogoalto,oscozinheirostinhamdemanterumadistância maior do alimento, só se aproximando da carne quando eraestritamente necessário, para regá-la ou polvilhá-la, ou para mudá-la deposiçãoemrelaçãoaofogo.Osutensíliosparacozinharemlareiratendiamatercaboscompridíssimos:colheresalongadaspararegar,garfosdecarne,escumadeiras e conchas com cabos longos, todos eles davam aoscozinheirosmais alguns centímetrosdedistânciadas chamas.Umdessesinstrumentoseraasalamandra,umutensíliodenomeinspiradonodragãomítico que, supostamente, seria capaz de suportar o calor extremo.Consistianumcabocompridocomumapontadeferrofundidoemformatodepáachatada.Apontadasalamandraeramantidanofogoatéoferroficarembrasae,emseguida,movidasobreumatravessa–quasesemprecomtortasououtrasreceitasdepastelaria,cremesdocesou iguariascobertasdequeijo–paragratinar.NoséculoXIX,eraissoquedavaaocrèmebrûléeasua superfície dourada (semnecessidade de ummaçarico). IvanDay usasuasalamandraparacriarumacoberturacrocantenumpratodetomatesrecheados com migalhas de pão. Ele a segura a uma pequena distânciaacimados tomates, que, quasenomesmo instante, começama ferver e adourar.Nãosepodefazerissonumabocadefogãoagás.Outroaspectocrucialdomanejodoassamentonolumevivoéacertara

posiçãoexatadoalimento.Muitaspessoaspensamqueassarnoespetoera

assar acima do fogo, mas, na verdade, o cozimento era feito a uma boadistância lateral dele, do qual a carne só era aproximada no final, paradourar.Trata-sedeumatécnicasemelhanteàdomodernoasadoargentino,noqualseassalentamenteumanimalinteiro,inclinadonumespetoaumaboa distância de um braseiro de carvão ao ar livre, até a carne ficarsuculenta edefumada.Oassadorhabilidoso sabiaqueacertar adistânciaera crucial para moderar o acúmulo de calor na superfície da carne. Aciênciamodernaconfirmou isso.Experimentosrecentesmostraramqueaintensidade do calor do fogo para assar varia em proporção inversa aoquadradodadistânciadacarnequeestásendoassada.Acadacentímetroqueumcortedecarneseaproximadofogo,elenãoficaapenasumpoucomais quente, ele fica muito mais quente. No caso de assados grandes, o“ponto ideal”ouposiçãoótimaparaassarsemtorrarchegaa ficaraumadistânciadenoventacentímetrosdofogo.Aforaacomplexidadedofogo,umproblemaadicionaldessamaneirade

assar era manter o alimento firmemente preso no assador. Quandocravamos um espeto numa peça de carne e o giramos, o espeto tende agirar,enquantoacarnepermaneceimóvel.Haviadiversasestratégiasparalidarcomisso.Umadelaserapôrburacosparaespetosnoassador:acarnepodia ser fincada no lugar com espetos chatos. Outra solução era o“firmador”,umaespéciedeganchoparasegurá-la.Depoisqueoalimentoerafirmadono lugarcerto,haviamaisumdesafioparaocozinheiro,edelonge omais complicado: comomanter um enorme pedaço de carne emmovimentoininterrupto,duranteashorasdequeeleprecisavaparaassar.

DENTRE TODAS AS FUNÇÕES INGRATAS edeprimentesdascozinhasbritânicasmedievaisricas–inclusiveasdoajudantedecozinha,dolavadordelouçanatinaedoserviçalaquemsedavaqualquertarefa–,poucaspodiamserpioresqueado gira-espeto ou gira-assador, a pessoa (em geral, um menino)encarregada, como o nome indica, de girar os assados no espeto. “Emtempos remotos”, escreveu o grande biógrafo John Aubrey, “os meninospobresgiravamosespetoselambiamaspingadeiras.”NoreinadodeHenriqueVIII,opaláciorealtinhaverdadeirosbatalhões

de gira-espetos, que chamuscavam o rosto e cansavam os braços parasatisfazer o apetite do rei por capões e patos, veados e carne bovinaassados.Espremidosemcubículosaoladodalareira,osprópriosmeninosquasedeviamassaremseutrabalhodegirarascarnes.Atéoanode1530,os empregadosda cozinhadopalácioHamptonCourt trabalhavamquase

nus, ou vestiam frangalhos imundos. Henrique VIII resolveu a situação –liberandonãoosgira-espetosdeseusdeveres,masverbaparaoschefsdecozinhamanteremaequipemaisjovemdecentementevestidae,portanto,sentindoaindamaiscalor.Osgira-espetos tambémeramempregadosemcasasmenosricas.Em1666,osadvogadosdoMiddleTemple,cemLondres,usavam os serviços de um “gira-assador”, dois ajudantes de cozinha, umcozinheiro-chefeeumcozinheiroassistente.MesmocomoséculoXVIII jábemadiantado,otrabalhodegira-espetoaindaeraconsideradoadequadopara crianças. JohnMacdonald (1741-1796), nascido nas Terras Altas daEscócia, foi um lacaio famoso, que escreveu um livro dememórias sobresuas experiênciasno trabalho.Órfão,despedidode seuempregoanteriorcomobalançadordeberços,Macdonaldarranjouserviçonaresidênciadeumcavalheirocomogira-espetos.Tinhaapenascincoanosdeidade.Àquelaaltura,osmeninosgiradoresdeespetoseramconsideradosuma

espéciede retrocesso.Ao longodos séculosXVIeXVII,na Inglaterra, seutrabalhoforamajoritariamenteassumidoporanimais.Numlivrode1576sobrecães ingleses,o “turnspit dog” [“cãogira-espeto”] foidefinido como“certo tipo de cão do serviço de cozinha”. Esses animais eram cruzasdesenvolvidas para terem pernas curtas e o corpo longo. Eram postosnumarodadeunssessentacentímetrosdediâmetro,penduradanoaltodeumaparedejuntoaofogo,eobrigadosagirá-lasemparar.Essaespéciedeesteira mecânica circular era ligada ao espeto por uma polia. Algunscozinheiros preferiam usar gansos, em vez de cães. Um documento dadécada de 1690 diz que eles eram melhores, porque eram capazes decorrerpormaistemponaesteiraemformaderoda,àsvezesatépordozehorasseguidas.Haviasinaisdequeoscãeseraminteligentesdemaisparaotrabalho.ThomasSomerville,quepresenciouousodessarodadurantesuainfância,naEscóciadoséculoXVIII,recordouqueoscães“costumavamseesconder ou fugir, quando notavam indícios de que se ia preparar umassadoparaarefeição”.Araçaturnspitjánãoestáentrenós.Seriabomimaginarquefoiextinta

graças a um súbito ataque de consciência de seus proprietários, mas ahistória não costuma funcionar assim. As rodas para cães ainda eramusadas nas cozinhas de restaurantes norte-americanos quando já ia bemavançadooséculoXIX.HenryBergh,umdefensorprecocedosdireitosdosanimais, fez campanha contra ousodelas (e contra outrosmaus-tratos aqueeramsubmetidososanimais,comooaçulamentodecãescontraursosacorrentados).O estardalhaço feitoporBergh sobreos cães giradoresde

espetospor fimassocioucertavergonhaaessaprática,mastevetambémconsequênciasinesperadas.Emvisitas-surpresaacozinhas,paraverificarapresença de rodas movidas por cães, muitas vezes Bergh constatou queestestinhamsidosubstituídosporcriancinhasnegras.Nofinaldascontas,nãofoiabondadequepôsfimàeradoscãesturnspit,

e sim a mecanização. A partir do século XVI, inventaram-se diversosmecanismos para girar os espetos, semnecessidade demeninos, cães ougansosparaexecutarotrabalho.Em1748,onaturalistasuecoPehrKalm,emvisita à Inglaterra, elogiou o “espeto suspenso de corda”d como “umainvençãomuito útil, que alivia o trabalho numa população que é grandeconsumidora de carne”. Com base em suas viagens, Kalm afirmou queespetossuspensosmovidosporroldanas,“defabricaçãosimples”,podiamser encontrados “em todas as casas da Inglaterra”. Isso era exagero. Noentanto, a julgar por inventários, mais ou menos metade de todas asresidências,enãoapenasasabastadas,defatopossuíaumespetosuspensodecorda,oqueéumapercentagemsurpreendentementeelevada.Pormaisarcaicasquenospareçam,essaserampeçasmuitodesejadasdo

equipamentodecozinha.Osassadoresmecânicoseramaparelhosde fatobrilhantes, que eliminavam grande parte do trabalho de assar carnes noespeto. O mecanismo básico consistia num peso suspenso numa corda,enroladaemtornodeumcilindro.Aforçadagravidadefaziaopesodescerlentamente(outronomedessasmaquininhasera“espetosdegravidade”).Com isso, através de uma série de rodas denteadas e polias, a força eratransmitidaaumoumais espetos.Graças à forçageradapeladescidadopeso, o espeto girava. Alguns desses assadores faziam tocar umacampainhaquandooespetoparava.Os assadores movidos por pesos não eram a única forma de

equipamento mecanizado. A partir do século XVII, houve também osassadoresavapor,queusavamacorrentedearquentequesubiadofogopara acionar uma grimpa, como num cata-vento. Os apreciadores desseaparelhoavaporgostavamdofatodenãoserprecisodar-lhecordaedeeleserbarato.Masessesassadoressóerambaratosquandonãoselevavaemcontaousodocombustível.Paramanteraventoinhagirandonovapor,eraprecisoalimentarofogocomumaquantidadeabsurdadelenhaoucarvão.Em 1800, calculou-se que com um milésimo do combustível necessárioparaofuncionamentodesseaparelhoseriapossívelalimentarumpequenomotoravaporparagiraroespeto.Dadaaimportânciacentraldosassadosnaculináriabritânica,esbanjava-

seinteligêncianainvençãodemétodosaperfeiçoadosparagirarespetos.Aágua, o vapor e os mecanismos de corda foram experimentados comomaneiras de manter a carne em preparação num estado de movimentoconstante, senão perpétuo. Os espetos mecânicos eram as reluzentesmáquinas de café expresso da época: o produto de cozinha em que seinvestiaaengenhariamaiscomplexa.NumacozinhadefazendadoséculoXVII,ascolhereseoscaldeirõesremontavamaosromanos,osespetoseassalamandraserammedievais,acarneeo fogoeramtãoantigosquantoopróprio tempo – mas o assador pendular que acionava o espeto era aúltimapalavraemtecnologia. IvanDayainda temumagrandecoleçãodeassadoresmecânicos.Quandolheperguntamqualseuutensíliofavoritodecozinha,detodosostempos,elerespondesemhesitaçãoqueéseuassadorseiscentistapendular,acionadopelopesodeumapequenaboladecanhão.Emostra-sedeslumbradocomaeficiênciadoaparelho:“Quatrocentosanosantes do micro-ondas e seu alarme, a minha máquina sabia me dizer[quandoacomidaestavapronta],fazendosoarumasineta”,comodissenoFood Programme, da Rádio BBC 4. “Eu nunca usaria outra coisa. Elafuncionatãobemquantohátrezentosanos.”À sua maneira, o assador mecânico pendular era milagroso. Poupava

meninos e cães do sofrimento e produzia – pelomenos nasmãos de umcozinheiro talentoso – uma carne de sabor estupendo, uniformementeassada pela rotação regular e contínua. É um prazer observá-lo. Poucosaparelhosdecozinha,antigosoumodernos,sãocapazesdeproporcionaraserena satisfação que sentimos ao ver umdesses assadores executar seutrabalho: o zumbido acelerado do pêndulo, o encaixe de rodas eengrenagens, o movimento confiável do espeto. Em termos de suaspróprias características, ele de fato funciona. Mas as tecnologias nuncaexistem apenas em termos de suas características. Emmeados do séculoXIX, o assadormecânico foi ficando obsoleto, não por conta de qualquerproblema seu, mas porque toda a cultura da culinária em lareira abertaestavasaindodemoda.Ofogoavançavanoprocessodesercontidoe,comoresultado,acozinhaestavaemviasdesetransformar.

“É COMUM CONSUMIR-SE mais energia num fogão de cozinha para ferver umachaleiradoque seria suficiente, comomanejoadequado,para fazerumarefeição para cinquenta homens.” O autor dessas palavras foi BenjaminThompson, conde Rumford, um dos mais brilhantes cientistas a sededicaremàquestãodaculinária.Entreseusmuitosexperimentos,elesevoltouparaa investigaçãodoproblemadeporqueo recheioda tortade

maçãtendiaa ficarquenteapontodequeimaraboca.eRumfordtambémera um valente defensor de programas sociais e acreditava haverdescobertoa soluçãoparaa fomemundial, inventandoumasopaparaospobres que era capaz de suprir omáximo de nutrientes pelomínimo dedinheiro.Umadesuasoutrasgrandespreocupaçõeseraodesperdíciodefogonosassados.NofimdoséculoXVIII,Rumfordficouestarrecidocomomodocomoosinglesescozinhavamsobreachamadireta:“Aperdadecalore o desperdício de combustível nessas cozinhas são inacreditáveis.”Rumfordsequeratribuiugrandeméritoaosalimentosassadosnoespeto.Porconcentraremtodaasuaenergianosassados,oscozinheiros ingleseshaviamnegligenciadoaartedopreparode“sopasecaldosnutritivos”.O problema de Rumford com as lareiras inglesas era fácil de resumir:

“Elas não são fechadas.” Desse erro básico decorriam “outros males”. Acozinha era um ambiente desconfortável para se trabalhar, como sabiaqualquer um que já houvesse “encontrado o cozinheiro saindo dela,abafadodecalor”.A temperaturaeraaltíssima,haviacorrentesdear friopertodachaminée,piorquetudo,haviaas“exalaçõesnocivas”daqueimade carvão vegetal: uma atmosfera constante de fumaça. Esse excesso defumaçanãoeraacidental,masinerenteaoprojetodascozinhasinglesasemtorno de 1800. No intuito de dar espaço a todos os recipientes queprecisavamsercolocadossobreofogo,construíam-sefogõesalenhamuitocompridos,oque,porsuavez,exigiaumachaminé“enormementegrande”,quecausavaumbrutaldesperdíciodecombustívelegeravamuitafumaça.AsoluçãodeRumfordfoiseuprópriofogãofechado,feitosobencomenda,queconsumiaumaquantidadeinfinitamentemenordecombustível,comoele provou ao instalar um desses equipamentos no seu dispensário emMunique.NofogãodeRumford,emvezdeumfogogrande,haviaumaporçãode

pequenos lumes fechados, para minimizar a fumaça e o desperdício delenha.Cadacaldeirão,chaleiraoupanelaparaguisadoseradestinadoasuaprópria “lareira fechada separada”, feita de tijolos, para aumentar oisolamento, e fechada por uma porta, com um canal separado para“carregar a fumaça para a chaminé”. A cozinha ficava sem fumaça efuncionava com extrema eficiência, e Rumford dizia que a comidaproduzida era mais saborosa. Ele chamou alguns amigos paraexperimentarem um pernil de carneiro assado num fogão Rumford ecompará-lo com outro feito no espeto. Todos preferiram o que foipreparado no assador fechado, deliciando-se com a gordura

“primorosamenteadoçada”comgeleiadegroselha;oupelomenosfoioquedisseram.Umacoisaeraconvencerseusamigoseconhecidos,outraeraconvencer

opúblicoemgeral.AideiadeRumforderaavançadaparasuaépoca.Seusfogões engenhosamente concebidos nunca seduziram um grande público(embora,maistarde,diversosvendedoresviessemacomercializar“fogõesRumford” sem nenhuma ligação com o original). A invenção de Rumfordnãosebeneficioudeserfeitasobretudodetijolosecompouquíssimoferro;osferreiros–queeram,naépoca,osprincipaisfabricantesdeutensíliosdecozinha–tiverampoucoincentivoparareproduzirseuprojeto.Haviatambémofatodeque,pormaisfumacentasedesperdiçadorasque

fossemaslareirasabertas,oscozinheirosapegavam-seaelascomosendo,simplesmente,aúnicamaneiradeassarcarnes.Hojeemdia,osdefensoresde fogões sem fumaça no mundo em desenvolvimento enfrentam osmesmosobstáculos.Emmédia,cadalareiraabertadecozinhanoTerceiroMundo–alimentadaporcarvão,estercoou lenha–geratantodióxidodecarbonoquantoumautomóvel.Cercadetrêsbilhõesdepessoas–metadeda população mundial – cozinham dessa maneira, com consequênciasterríveis, tantoambientais,pelaemissãodecarbono,quantoparaasaúdeindividual: essas lareiras podem causar bronquite, doenças cardíacas ecâncer.AOrganizaçãoMundialdaSaúdecalculouquea fumaçaem locaisfechados, sobretudo do fogo usado para cozinhar, mata 1,5 milhão depessoas todos os anos. No entanto, quando voluntários da açãohumanitária visitam aldeias da África ou da América do Sul e oferecemfogões limposenãopoluentes,écomumencontraremresistência,porqueas pessoas se apegam obstinadamente às lareiras fumarentas em quecozinharamdurantetodaavida.Em 1838, quatro décadas depois dos alertas de Rumford sobre os

perigosdaslareirasabertas,MaryRandolphinsistiuemque“carnealgumapodeserbem-assada,anãosernumespetogiradonumaarmaçãoediantedeumfogolimpoeregular;osoutrosmétodosnãopassamdecozimento”.Continuouahaverinovaçõesnaconcepçãodosassadoresmecânicosmuitodepoisdequandoesperaríamosquejáhouvessemdesaparecido.Em1845,umcertosr.Nortonobteveapatentedeumassadormovidoeletricamentecomaajudadedoisímãs,numestranhochoqueentreatecnologiaantigaeanova.NoséculoXVIII,comarainhaVitória,oReinoUnidoentrounaeradailuminaçãoagás,dasviagensferroviáriasemaltavelocidade,dosvasossanitárioscomválvuladedescargaedotelefone,mas,apesardisso,muita

genteoptavaporassarsuascarnesdiantedeumalareiraaberta.Aindaem1907, a Skinners Company, de Londres, originada como a corporação deofíciodosfabricantesecomerciantesdepeles,mandouinstalarumfogãoalenhade3,35mdelarguranacozinhadesuasede.Opreconceitocontraosfogõesfechadosprovinhaacimadetudodeeles

parecerem muito com os fornos em que se assava pão. Só as lareirasabertas serviam para assar carnes, acreditava-se. Os fornos eram paraassar outras coisas.Nas cozinhas europeias, teimava-se emmanter essesdoistiposdecalorseparados.

NOORIENTE,talseparaçãonuncafoitãolonge.Otermoárabecorrespondentea“pão”ékhubz,oquegeraoverbokhabaza,quesignifica“assarnoforno”ou“fazerkhubz”.Maskhabaza tambémpodesignificar“grelhar”ou“assarno fogo”. Assim, esse único verbo reúne o que seriam, em inglês, trêstécnicasculináriasseparadas,etodaspodemserpraticadasnotandoor,oufornodebarro.Osfornosbásicosdebarroparaassarpãoremontamapelomenos3000

a.C.,novaledorioIndoenaMesopotâmia,naregiãoemquehojeficamoPaquistão, o Iraque, a Síria e o Irã. Esses fornos de pão já tinham otradicional formato de ânfora de barro arredondada que ainda têm, atéhoje,emgrandepartedaÁfricarural.Acende-seumfogonabasedaânforaeamassaéintroduzidaporumaaberturanapartesuperiorechapadanalateraldoforno,deondeéretirada,poucosminutosdepois,sobaformadeumpãoachatado,semfermento.Esses fornosdebarroparecemvasosdeplantas virados de cabeça para baixo. No Iraque, recebiam o nome detinaru.Nósoschamamosdetannuroutandoor–umatecnologiaaindaemusoemtodooOrienteMédioenasregiõescentralesudestedaÁsia.Apesardetersidoaprimoradoaolongodosúltimos5milanos,otandoor

desempenhaamesmafunçãodesempre:fornecercalorintensoesecoparaassar. Ele permitiu que as casas, inclusive as mais humildes, fossemautossuficientesnotocanteaopão.EmAmarna,umaantigaaldeiaegípciaque data de 1350 a.C., escavou-se uma série de casas de trabalhadores,metade das quais, inclusive as pequenas, mostra vestígios de fornos debarrocilíndricos.Enquanto,naEuropa,haviaumaconvicçãopersistentedeque o único pão verdadeiro era o assado por padeiros profissionais, noIraquemedieval preferia-se o pão caseiro, feito no tandoor. Um inspetordosmercadospopularesdaBagdámedievalobservouque “amaioriadaspessoasevitacomerospãesassadosnomercado”.

O tandoor oferecia possibilidades de cocção caseira diferentes das dosimples fogo. Apesar de baratos e portáteis, esses fornos de barropermitiamcertocontroledocalor,graçasaum“olho”nabasequepodiaserabertooufechadoparaelevaroubaixaratemperatura.Paracertostiposdepão–comoo“pãodeágua” iraquiano,de formatoredondoeuntadocomóleo de gergelim –, usava-se uma temperatura mais moderada. Mas osfornos de barro também podiam aquecer-se como fornalhas, quandonecessário.Comoalenhaouocarvãoqueimamdiretamentenofundodeleecontinuamaarderàmedidaqueoalimentoéassado,astemperaturasdeum tandoor moderno podem ser altíssimas, chegando a atingir 480°C(comparadasaumatemperaturamáximade220°Cnamaioriadosfornoselétricos domésticos). É esse calor abrasador que faz desse forno umutensíliotãopotenteeversátil.Os usos do tandoor iam muito além do assamento, o que explica, em

parte, por que não existia a dicotomia entre cozer e assar na culináriaoriental e do OrienteMédio. Além de assar pães, biscoitos e bolachas, otandoorpodiaserusadonopreparodeguisados,cozidosdefornoecarnesassadas na brasa. Hoje em dia, é provável que sejamais famoso como outensílio em que se cozinha o frangomarinado em iogurte e especiariasvermelhas:ofrangotandoori.NaBagdádoséculoX,esse fornoerausadopara assar coisas como “cordeiros ou leitões gordos e inteiros, quasesempre recheados…, peças grandes de carne, aves domésticas e peixes”.Eles eram colocados em placas de barro dispostas sobre o fogo, oufirmementepresosemespetosebaixadosnotandooratéficaremassadosesuculentos. É óbvio que ali não havia nenhum sentido em que não sepudesse “assar” carne num forno. Mas o calor do tandoor funciona nosalimentosdemododiferentedosfornosdepãoocidentais.Hátrêstiposdiferentesdecalorparasecozinhar.Todacocçãoobedeceà

segundaleidatermodinâmica:ocalorpassadascoisasmaisquentesparaasmais frias. No entanto, essa transferência de energia pode ocorrer demaisdeummodo.Oprimeirodeleséocalorradiante.Penseemcomoumafrittata italiana começa a se inflar e a dourar assim que posta no fornogratinador. O gratinador em si não a toca, mas a fritada cozinha assimmesmo.Issodecorredaradiaçãodocalor,comoadosraiossolares.Assimcomoasondasderádio,aradiaçãofuncionasemqualquercontato:acoisaque é aquecida e a fonte de calor não precisam tocar-se. O fogoincandescente gera muito calor radiante, proveniente das chamas e dasbrasas.NacozinhadeIvanDay,aquelemomentoemqueeleatiçouofogoe

onívelde calorpuloudo suportávelparao insuportável representouumsaltorepentinonaquantidadedecalorradiante,osuficienteparaproduzirumacapacrocantenapeçadecarne.Osegundotipodetransferênciadecaloréacondução.Aocontrárioda

radiação, ela funciona de um material para outro, através do contato.Algunsmateriaissãoótimoscondutores,emespecialosmetais;outrossãomauscondutores,comoobarro,otijoloeamadeira.Quandoumacoisaseaquece, seus átomos vibram rapidamente. A condução funciona pelatransmissãodessasvibraçõesdeummaterialparaoutro:da frigideirademetal para o filé, do cabometálico de uma caçarola para a sensívelmãohumana.Oterceirotipodecalorusadonaculináriaéaconvecção.Ocorrequando

asmoléculasdeumfluido,sejaelearouágua,caldodelegumesouazeite,difundemocalordeumasparaasoutras.Aspartesquentesdolíquidooudo gás são menos densas que as partes frias – basta pensarmos nocontraste entre o vapor e a água. Aos poucos, o fluido quente transfereenergia para o fluido frio, até tudo se aquecer: pensemos no mingaufervendonapanela,ounoardeumfornopré-aquecido.Qualquermétododecozimentoenvolveumacombinaçãodessasformas

decalor,mas,emgeral,umaououtrapredomina.Oquetornaotandoortãoincomuméqueelecombinatodasastrêsformasdetransferênciadecalor.Háumimpactobrutaldecalorradiantequevemdofogonabase,somadoamais radiação proveniente do calor retido nas paredes de barro. O pãoassado nas paredes ou a carne assada em espetos recebem calor porconduçãodobarrooudosespetosdemetal.Porfim,háumaquantidadedecalorporconvecçãonoarquentequecirculanoforno.Umcalorintensoepotente como esse pode ser usado para cozinhar praticamente qualquercoisa.Em geral, os fornos da cozinha ocidental eram caixas feitas de tijolos.

Nesse tipo de forno, a transferência de calor se dá 80%por convecção eapenas20%porradiação.Emvezdocalorintensoeconstantedotandoor,havia um calor que começava numa temperatura altíssima, porém iaesfriandoaospoucos.Naverdade,oalimentosóeraintroduzidoquandoofogo já estava quase extinto. Ao longo dos séculos, desenvolveram-seestilos culinários que refletiam esse resfriamento gradual, com umrepertório destinado a tirar omáximo proveito de cada fase do calor doforno. Os alimentos eram preparados em sucessão: o pão no fornomaisquente,seguidoporguisados,pastelariaesobremesas;maistarde,quando

o forno mal estava aquecido, era possível deixar ervas secando em seuinteriorduranteanoite.ÉverdadequeoOcidentetinhaseuequivalentedotandoornos“fornos

decolmeia” introduzidospelosromanos,masestesnuncapenetraramemtoda a cultura culinária como fizeram os fornos de barro do Oriente. NaEuropaantigaemedieval,osfornosdepãotendiamaserenormescâmarasque serviam a comunidades inteiras. O equipamento usado nas cozinhassenhoriais ou dos mosteiros tinha dimensões gigantescas: a massa eramexidacomcolheresdepaudotamanhoderemosetrabalhadaemvastasmesasmontadassobrecavaletes.Osfornoscomunitárioseramalimentadospor meio de barracões externos. Primeiro, o combustível – grandesquantidades de lenha ou carvão – era levado para o fundo do forno eacendido.Quando o forno ficava quente, as cinzas eramvarridas para osbarracões e a massa era introduzida, estendida sobre enormes pás demadeiracompridas,chamadaspásdeforneiro.Comoosmeninosgiradoresdeespetos,ospadeirostrabalhavamquasenus,porcausadocalor.Asemelhançaterminavaaí.NoOcidente,assarnofornoenofogoeram

atividades inteiramente distintas, com equipamentos,métodos e receitasseparados. No século XVIII, assar no forno envolvia uma parafernália detinas de madeira para trabalhar a massa, cortadores de massa, diversosaroseformasparatortaseempadões,pásdeforneiro,formasdeempada,moldes de ferro de cabo longo para bolachas e pratos de cerâmica. Opadeiro não necessitava de assadores e espetos, grelhas e ferros parafirmaralenha.HáumagravuradacozinharealdopaláciodeSt.James,daépoca de Jorge III, que retrata três formas diferentes de cozinhar com ofogo.Háuma lareira abertapara assados,um forno fechadopara cozer eumalareiraelevadadetijolosparaopreparodeensopadosemolhos.Cadaoperaçãoédiferentedaoutra.Não admira que o fogão fechado de Rumford tenha enfrentado tanta

ridicularizaçãoezombariaquandofoiapresentado.Eleameaçouunirduastecnologias – assar no forno e no fogo – que quase todos na Inglaterra,senão no mundo ocidental, consideravam incompatíveis. Foi como sedissesse que poderíamos usar uma fritadeira para cozer alimentos novapor,ouumatorradeiraparacozinharovos.

EM MUITOS CÍRCULOS também se duvidou que algum dia o calor de um fornofechado pudesse substituir o prazer caseiro de nos aquecermos junto auma lareira aberta. Poderia uma estufa cujas chamas se ocultavam dos

olhos tornar-se centrodavidadoméstica, comoera a lareira?O fogonosafeta de modos nem sempre racionais. Apesar de todos os riscos e dafumaçadosassados, aquelas chamassignificavam lar.Dizemque,quandoosfogõeseasestufasforamintroduzidosnosEstadosUnidos,nadécadade1830, inspiraram sentimentos de ódio: as estufas podiam ser um modoaceitáveldeaquecerlocaispúblicos,comoumbarouumtribunal,masnãoumacasadefamília.Comotempo,amaioriadaspessoassuperousuarepugnância.O“fogão-

modelo” tornou-seumdosgrandes símbolosde statusdosconsumidoresna era industrial, e os lares desenvolveramumnovo foco. O típico fogãovitorianoeraum“monstro”deferrofundidoquecombinavaumtanquedeáguaquente,paraasfervuras,echapasemquecolocarpanelasefrigideirassobre um forno alimentado a carvão, atrás de portas de ferro, tudo issointerligado por “um arranjo complicado de tubos e com a temperaturacontrolada por um registro e placas reguladoras do fluxo de ar”. Emmeados do século XIX, o fogão fechado ou “fogão de cozinha” tinha setornado o equipamento essencial das cozinhas da classemédia do ReinoUnido e dos Estados Unidos. Os cozinheiros aprenderam que, em vezdeconstruiracozinhaemvoltadofogo,erapossívelconstruí-laemtornodeumaparelho,assimcomoascozinhasricasdehojeseestruturamaoredordosutensílioseeletrodomésticoscoloridosdaKitchenAidedereluzentesfogõesViking.

NAGRANDEEXPOSIÇÕODE1851,naqualoReinoUnidomostrouaomundoasuariqueza industrial, muitos fogões foram exibidos. O primeiro prêmio foiparaoImprovedLeamingtonKitchener,umaconstruçãocomplexaquefoialvodaadmiraçãodasra.Beeton.fOLeamingtonofereciaexplicitamenteacombinaçãodasfunçõesdeassarecozernumúnicoequipamento.Emseuinteriorhaviaumassadordeferrofundidocomumapingadeira,masissopodia ser convertidono calor não ventiladode um forno, fechando-se asválvulasnofundo.OLeamingtontambémpodiafornecerlitrosemaislitrosdeáguafervente.Umfogãonuncaserviaapenasparacozinhar;tambémeraessencialpara fornecer águaquente a todaa família, esquentar ferrosdepassareaquecerasmãos.“Leamington”foiumadasprimeirasmarcasdeaparelhosasetornarumnomecorriqueironoReinoUnido,enãotardouaserusadocomosinônimodefogõesfechadosemgeral.Mashouvemuitosmodelos concorrentes, vários deles com glamorosos nomes patenteados(CoastalGrandPacific,Plantress)ecomsofisticadosarabescosedesenhosdecorativosnapartefrontal.Eramaparelhosdecozinhaqueseafirmavamcomoaltamoda.A popularidade repentina dos fogões fechados foi além do estilo. Foi

impulsionadapelosmateriaisdaRevoluçãoIndustrial,sobretudoocarvãoeo ferro.Houveumaexplosãodecrescimentodos fogões,nãoporqueaspessoastivessemlidoRumfordesevoltadocontraaslareirasabertas,masporque o mercado viu-se subitamente inundado de ferro fundido a umpreço barato. O típico fogão de cozinha era o sonho dos ferreiros: aoportunidadededaremvazãoavolumesenormesdeferro,semcontarosacessórios adicionais do mesmo material. A rapidez com que surgiamnovasversõeseraumavantagemamais:passadosunsdoisanos,o fogãopodia sair demoda e ser trocado por ummodelomais atualizado, o quesignificavamaislucro.A produção de ferro fundido havia melhorado em meados do século

XVIII,aosedescobrirumnovométodo,queusavacarvãomineralemvezdecarvãovegetal.JohnWilkinson(1728-1808),apelidadodeIron-Mad,gfoipioneirodessenovométodoeproduziuoscilindrosdasmáquinasavaporque aceleraram ainda mais a produção. Uma geração depois, o ferrofundidoestavaemtodaparte:osvitorianos fechavam-seatrásdeportõesdeferrofundido,cruzavampontesdeferrofundido,sentavam-seaoredorde lareiras de ferro fundido, erigiam construções de ferro fundido ecozinhavamem fogõesde ferro fundido. Épossível que as governantas esuas patroas, ao folhearem os catálogos da Smith Wellstood e se

perguntarem que modelo de fogão comprar, acreditassem não estarsatisfazendo nada alémdo seu capricho,mas, qualquer que fosse o novomodelo escolhido, elas estavam a serviço dos lucros da indústriasiderúrgica e, de quebra, apoiando também a de carvão mineral, já quequasetodosessesfogõesmodernoseramalimentadosporcarvão,emvezdelenhaouturfa.Ocarvãonãoeranenhumanovidadenascozinhasbritânicas.Aprimeira

revolução do carvão havia ocorrido no século XVI, quando a escassez delenha transformou as cozinhas. A era elisabetana assistira a uma rápidaexpansão da indústria. As fábricas de ferro, vidro e chumbo eramconsumidoras vorazes de madeira, a qual também foi necessária naconstrução naval durante a guerra contra a Espanha, deixando muitomenoscombustívelparaaslareirasdomésticas.Oresultadofoiquemuitascozinhas, particularmentenas cidades, converteram-se com relutância ao“carvãomarinho”,assimchamadoporqueeratransportadopormar.Apassagemdamadeiraparaocarvãotrouxeoutrasmudanças.Ofogãoa

lenha medieval era, na verdade, uma fogueira em recinto fechado, semnada além de umas trempes (ou grelhas) para impedir que as torasrolassemparaochão.Eraumaformaarriscadadecozinhar.NoséculoVII,oarcebispoTeodoro,daSaxônia,decretouque,“seumamulherpuserseufilhopequenojuntoàlareira,eseohomempuseráguanocaldeirão,eestaferver e transbordar, causando ferimentos mortais na criança, a mulherdeverá ser punida por sua negligência, mas o homem será eximido deculpa”.Aforaainjustiçadessalei,elarevelaummundoemqueascriançasdedoisoutrêsanoscorriamumgranderiscodeesbarrarnofogoembrasaeemcaldeirões, comseuspassos incertos.Tambémasmulheres corriamperigo, por causa dos vestidos compridos. Os laudos demédicos-legistasmedievaissobremortesporacidenteindicamqueasmulherestinhammaisprobabilidade de sofrer acidentes mortais dentro de casa do que emqualquer outro lugar. Meninas pequenas também morriam nas lareirasabertas,brincandodepanelasecaçarolasparaimitaramãe.A combinação de casas de madeira com lareiras abertas fazia dos

incêndios na cozinha uma ocorrência comum. O mais famoso deles nahistóriadoReinoUnidofoioqueseiniciouem2desetembrode1666napadariareal,situadanaPuddingLane,equedeflagrouoGrandeIncêndiodeLondres.Quando a cidade foi reconstruída com tijolos, as novas casasganharamlareirasougrelhasalimentadasporcarvãomineral.Umdosefeitosdapassagemparaocarvãofoiconfinarofogo,aomenos

numapequena parte. O carvão precisava de algo que o contivesse, sob aforma de uma grade metálica chamada “grade de quarto” ou “cesta decarvão”.A transiçãodos fogos a lenhanabaseda lareiraparaos fogos acarvão foi acompanhada por toda uma bateria de novos utensílios. Asnovas lareiras precisavam de placas de ferro fundido, para proteger aparedetraseiradocalorabrasador,edecomplexossuportesmóveisparacolocar no fogo as panelas e depois retirá-las. A outra mudançafundamental acarretada pelo carvão foi a chaminé. O grande número dechaminésconstruídasnoreinadodeElisabethIdeveu-se,emgrandeparte,ao maior uso do carvão, porque houve necessidade de tubulações maisgrossasparalevarparalongeosvaporesnocivosdaqueimadessemineral.Naverdade,comoobservouRumford,essacombinaçãodechaminésmuitolargas e grandes lareiras em brasa era mortífera. Quando o sueco PehrKalm chegou a Londres no século XVIII, considerou “muito incômoda” a“fumaçadecarvão”dascozinhas,e seperguntouseela seria responsávelpelaaltaincidênciadedoençaspulmonaresnaInglaterra.OpróprioKalmdesenvolveuumatosseterrível,quesócedeuquandoeledeixouacidade.Nem todos passarampara o carvão, entretanto.Nas lareiras das zonas

ruraisenoscondadosdonorte,anormacontinuouaserovelhoesimplesfogoalenha.Enquantoisso,asfamíliasmaispobresdacidadeedocampose arranjavam da melhor maneira possível com o combustível queestivesse àmão: punhados de urze seca, pequenos gravetos colhidos nascercasvivas,estercodegado.Paraelas,nadadosnovosereluzentesfogõespatenteados.É discutível se a impossibilidade de adquirir um fogão a carvão

constituíaumagrandeperda.Nessaformaespecífica,ofogãofechadotinhamuitasdesvantagensepoucosbenefíciosreaisemrelaçãoàlareiraaberta.Ao contrário das lareiras fechadas e ideais de Rumford, feitas de tijolos,muitosdosprimeirosfogõeserammalconstruídoseexpeliamvaporesdecoque.Umacartade1853aojornalTheExpositorchamou-osde“máquinasvenenosas”, ressaltando a morte recente de três pessoas que haviamaspirado seus vapores. Mesmo quando não chegavam a matar, muitosfogões eram ineficientes. Os defensores dos fogões norte-americanosalegavam que eles eram capazes de economizar 50% a 90% decombustível,comparadosàslareirasabertas,masissonãolevavaemcontao calor desperdiçado. Um bom fogão precisa isolar o calor, além deconduzi-lo.Haviaumproblema fundamentalnautilizaçãode todoaqueleferroaltamente condutivo, queabsorvia vastasquantidadesde calor e as

retransmitia por radiação à cozinha, mas não aos alimentos, deixando opobrecozinheironumaatmosferadecalor,cinzasefuligemqueseriamaisprópriadeumafornalha.O fogão de ferro fundido foi uma dessas tecnologias curiosas que se

tornaramobjetododesejodosconsumidoressemofereceremumgrandeaperfeiçoamentorealdoqueexistiaantes.Nãopoupava trabalho–muitopelocontrário,eminúmeroscasos.Acenderofogonãoeramaisfácilnumfogãodoquenalareira,ealimpezaeopolimentodeleerampraticamenteumatarefadehoráriointegral,fosseparaumaempregada,fosseparaumadonadecasa.Aindaem1912,amulherdeumpolicial listousuas tarefascotidianasligadasaofogão:

1. Retiraroguarda-fogoeosatiçadores.2. Varrertodoocarvãoeascinzas;jogarprimeiroumasfolhasúmidas

decháparareterapoeira.3. Peneirarascinzas.4. Limparastubulações.5. Removertodaagorduracompapeldejornal.6. Poliraspeçascombuchaeparafina.7. Passarbetumenaspartesdeferroedarpolimento.8. Lavarepolirapedradaestufa.

Todoessetrabalhosemquesehouvessepreparadoumúnicoprato,semfritar uma só fatia de toucinho ou cozinhar uma única batata. Pobremulher! Se tivesse nascido alguns anos depois, poderia ter sido poupadadissotudo.Équasecertoquecomprasseumfogãoagás.

TODAANOSSAVIDAdomésticasecompõedecentenasdepequenasatividadesqueserepetemtodososdias,eemnenhumlugarmaisdoquenacozinha.Osutensílios revolucionáriosdeverdadenãosãoosquenospermitem fazercriaçõescompletamentenovas–secarmorangoscomumsecadorelétricooucozinharavácuocortesrarosdecarnedeveado–,masaquelesquenospermitemfazercommaisfacilidade,melhoresresultadosemaiorprazerascoisas que já fazemos: por exemplo, preparar o café da manhã para afamíliacommaisrapidez,pormenosdinheiroecommuitomenostrabalho.Ofogãoagásfoiumraroavançoinovador:umequipamentoquetrouxeumprogressorealnacozinha.Comparado ao fogão a carvão, o fogão a gás era mais limpo, mais

agradávelemaisbarato:calculou-seque,numafamíliadeclassemédia,ocustodecozinharagáseradetrêsacincovezesmaisbaratodoquecomocarvão.Averdadeiraalegriadogás,porém,eraotrabalhoqueelepoupava.Asprimeiraspessoasqueaprenderamapreparar refeiçõesusandoogás,na década de 1880, desmancharam-se em elogios pelo tanto que a vidatinhaficadomaisfácil.Umatarefasimples,comoprepararocafédamanhã,passouatomarmuitomenos“tempoeatenção”doquenosistemaantigo.Asra.H.M.Young,queescreveuumdosprimeiroslivrosdereceitasaincluirumaseçãosobrealimentospreparadosagás,observouque“odesjejumdafamíliamédia,comcafé,costeletas,filéoubacon,ovosetorradas,digamos,podeserpreparadoemquinzeminutos”.Como tantas vezes acontece, a inovação foi inicialmente recebida com

desconfiançaeresistência.Houveumintervalodequaseumséculoentreasprimeirastentativasdecozinharagáseaadoçãodessatécnicapelograndepúblico. Os mesmos cozinheiros que labutavam no calor tropical e nasujeiradeumfogãoacarvãotemiamqueogásfosseumaformaperigosade cozinhar e desse aos alimentos um sabor e um cheiro repulsivos.Embora cada vezmais contentes por iluminarem suas casas com gás decarvão–Londresfoiaprimeiracidadeateriluminaçãoagás,em1814–,aspessoastemiamserenvenenadasoumorrernumaexplosãoseousassemparacozinhar.Dizia-sequeoscriadosmorriamdepavordosfogõesagás.Talvez parte do preconceito se justificasse, visto que os primeiros

modelos desses fogões erammal ventilados e que nem sempre as bocasforneciamum fluxo regularde gás, o quede fato resultava emalimentoscomcertogostodegás.Masospreconceitoscontinuarammuitodepoisqueessamaneiradecozinhartornou-seseguraeconfiável.EllenYouleraumadonadecasadoproletariadodeNorthamptonquecomprouumfogãoagásnofimdoséculoXIX.Seumaridoreagiucomhorror:

Eleachavaqueogáscontinhavenenoeserecusouacomerqualquercoisapreparadanessefogão.MasEllenrecusou-seasedesfazerdonovoaparelhoquelhepoupavatrabalho.Assim,todososdiaspreparavaojantardomaridonofogãoagáseotransferiaparaalareiraabertaminutosantesdeelechegardotrabalho.

As primeiras experiências de cozinhar a gás tiveram um toque deexibicionismo científico, como que para destacar a novidade. O primeiroaparelho comercial a gás vendido no Reino Unido apareceu em 1824,produzido pela empresa metalúrgica Aetna Ironworks. Lembrava umpoucoumaraquetedesquash,porserfeitodeumaligadecobre,estanhoezincoecheiodefuros,porondefluíamosjatosdegás.Nãoseligavaaum

forno,maseraapenascolocadoembaixodoquesequisessecozinhar,paracriaruma fontedecalor.Maismeioséculosepassariaatéquecozinharagássedisseminasse,apesardastentativasdeAlexisSoyer,umcélebrechefvitoriano,decomercializarumfogãoagáscaríssimoesofisticado,chamadoPhidomageireion, que se gabava da impossibilidade de “algum dia vir aocorrer uma explosão”. Isso não era inteiramente tranquilizador. Muitagente devia compartilhar a opinião de Thomas Webster (autor daEncyclopaediaofDomesticEconomy),em1844,dequeosfogõesagáseramapenas“umbrinquedoculinárioelegante”quevinhasomar-seaos“modoscostumeirosdecozinhar”,enãosubstituí-los.Foisónadécadade1880queosfabricantes–emespecialWilliamSugg,

cuja famíliamonopolizou omercado de fogões a gás por algum tempo –enfim começaram a produzir equipamentos acessíveis o bastante paraconvencerosmais irredutíveisusuáriosde fogõesa carvão.Osaparelhosde Sugg eram notavelmente parecidos com os fogões a carvão e vinhamcom o mesmo tipo de nomes extravagantes: Westminster, Cordon Bleu,Parisienne.Paratranquilizarosamantesdovelhoassadonoestiloinglês,acarne preparada no forno continuava a ficar suspensa acima de umapingadeira,oquefazialembraralareiraaberta.ASuggCompanyencontrouumaboasoluçãoparaneutralizaromedodeexplosões,equipandotodasasbocascomacendedoresqueasativavamaogirardeumbotão,evitandoanecessidadedefósforos.Adécadade1880tambémassistiuàdisseminaçãodosreservatóriosde

gásoperadospormoedas,quetornaramousodogásdecozinhaacessívelatodos,comexceçãodosmiseráveis,nasáreasemquehaviaabastecimento.Asempresasdegásinstalavamosgasômetrosdegraçaetambémalugavamfogõesporumatarifatrimestralmodesta.Aaceitaçãofoirápida.Em1884,a empresa Newcastle-upon-Tyne and Gateshead Gas Company alugouapenas95fogõesagás;em1920,essenúmerohaviasubidopara16.110.Em1901,umaemcadatrêscasasbritânicastinhaumfogãoagás;em1939,às vésperas da Segunda Guerra Mundial, três quartos das famíliascozinhavam a gás. Em outras palavras, a maioria da população estavafinalmentelivredoquetinhasidoumadasatividadesdefinidorasdavidahumana:atarefadeacenderemantervivoumfogo.Àquela altura, os fogões a gás enfrentaramumdesafio, sob a formada

eletricidade.ApesardeThomasEdisontercriadosuaprimeiralâmpadadesucessoem1879,acozinhabaseadanaeletricidadedemoroumuitomaistempoparadeslanchar,tolhidapelocustodosprimeirosfogõeselétricose

pela disponibilidade limitada do abastecimento de energia. O Museu daCiência, em Londres, tem em sua coleção o mais antigo forno elétricopreservado, composto por uma lata de biscoito ligada a uma lâmpadagrandeeunsrolosdearame.Oaparelhonãoparecemuitopromissor.Em1890,aGeneralElectricCompanycomeçouavenderumaparelhoelétricoparacozinhar,afirmandoqueelepodiafervermeiolitrodeáguaemdozeminutos–oqueserveapenasparanosdarumaideiadecomoeralentooprocessodecozinharnaeradosfogõesacarvão.Ousodaeletricidadenacozinhasósetornouanorma,tantonaEuropa

quantonosEstadosUnidos,nofimdadécadade1920,quandoopreçodosfogões elétricos caiu e sua eficiência aumentou. Os primeiros fornoselétricoslevavamséculosparapreaquecer–até35minutosem1914–easpeçasquefaziamoaquecimentotendiamaqueimar.Alémdisso,seupreçode compra e de utilização era alto. Uma família de classe média talvezcomprasseumachaleiraouumatorradeiraelétricas,masnãoteriagrandeincentivo para substituir um fogão a gás por um aparelho elétrico. Ageladeira elétrica desempenhava funções que simplesmente não haviamexistido até então; o fogão elétrico era menos revolucionário (sua únicaverdadeira vantagem, antes da invenção de dispositivos internos desegurança nos fogões a gás para cortar o fluxo de combustível quando achamanãoseacendia,eraquenãosepodiamorrerintoxicadoporgáscomum deles). Seu grande benefício – fornecer uma fonte de calor paracozinhar que se podia acender e apagar quando quisesse – já tinha sidoproporcionado pelas maravilhas do gás. Em 1948, 86% das famílias doReino Unido usavam alguma forma de eletricidade, mas apenas 19%possuíamfogõeselétricos.Hojeemdia,comomuitaspessoas,cozinhousandoumacombinaçãode

gáseeletricidade.Tenhoumfornoelétricodeconvecção(dessesqueusamumpequeno ventilador para termelhor circulação de ar), comum fornoseparado para grelhar na parte de cima. Ele faz seu trabalho direitinho.Ponho lá dentro amassa lisa de umbolo e ela sai crescida.O forno assabatatascombastanteuniformidade,epossoespiarpelaportadevidroparatercertezadequenãohánadaqueimando.Masnãosintoporelenemdelonge a mesma afeição de quando cozinho no meu fogão a gás, que meoferece todososbenefíciosdo fogo, semnenhumadasdesvantagens.Naspoucasvezesquecozinheinumfogãocominduçãoelétrica,elemelevouàloucura:asuperfícieplanaéumconviteparaqueimardedinhosgorduchos.Numminutoestá friacomoumapedrae,derepente,aparentementesem

aviso, está em brasa (embora eu admita não ter usado a ultimíssimageração de placas de indução eletromagnética, que vem sendo alardeadacomo a última palavra em eficiência da fonte de calor). O gás faz o quemando.Quandoescutooclique-clique-cliqueenquantoesperoachamaseacender, sei que boas coisas vão acontecer. Em 2008, Ching-He Huang,autor chinês de livros de culinária, deu um conselho sensato a quemquisessecozinharcomawokenãotivessefogãoagás:“Invistanumfogãonovo!”

AFORA A INVENÇÃO ORIGINAL da culinária, a fonte de calor alimentada a gás foi omaior avanço já ocorrido na tecnologia da cozinha. Libertou milhões depessoas da poluição, do desconforto e da simples perda de tempode terquecuidardeumfogo.Outropassoparalongedalareiraabertaveiocomofornodemicro-ondas,embora,destavez,osbenefíciosculináriosesociaistenham sido menos diretos. Hoje, com a abertura recente de novosmercadosnaChina,asvendasglobaisdemicro-ondaschegamacercade50milhões de unidades por ano. Emmuitas pequenas cozinhas urbanas domundo inteiro, omicro-ondas é a principalmaneira de aplicar calor aosalimentos,eestáclaroqueémuitoutilizadoparacozinhar.Noentanto,elecontinua a ser umutensílio controverso, que nunca inspirou o amor queumdiasentimospelofogo.Nemsempresedácréditoaomicro-ondaspelasmuitascoisasqueelefaz

excepcionalmente bem. É capaz de cozinhar peixes preservando suaumidadeedeassaremminutostradicionaispudinscozidosnovapor.Éumaparelho fabuloso para caramelizar açúcar com ummínimo de sujeira epara derreter o chocolate amargo com delicadeza, sem que ele fiquegranuloso. Cozinha sem esforço um arroz basmati perfeitamente solto. Aatração das micro-ondas pelas moléculas de gordura faz com que essesaparelhossejamamaneira idealdetiraroexcessodegorduradepatosecosteletasmagrasantesdeassá-los,comoobservouBarbaraKafkaemseulivrode1987,MicrowaveGourmet –adefesamais convincentedomicro-ondascomouminstrumentodeprazer.No entanto, ele pode inspirar ideias de pânico tanto quanto de prazer.

Esses “fornos sem fogo”, como foram inicialmente chamados, pareceramobjetosmisteriososaoseremvendidospelaprimeiraveznosanos1950,eatéhojecontinuama intrigareassustarmuitoscozinheiros.Suainvençãoveioem1945dePercySpencer,daRaytheonCompany,umengenheiroqueestava trabalhandoemsistemasderadarmilitares, tentandoaprimoraro

magnetron, um tubo de vácuo feito para gerar micro-ondas. Contam-sevárias histórias míticas sobre o momento em que Spencer notou pelaprimeiravezqueomagnetrongeravacalorsuficienteparacozinhar.Numadasversões,eleestavaapoiadonumtuboprotetoraberto–otuboporondepassamas ondas – quandonotouque a barra de chocolate em seubolsohavia derretido. Outros contamque ele ficou olhando, admirado, quandoum ovo explodiu e cozinhou sozinho, ou que deixou seu sanduíche doalmoçonomagnetroneoencontroucozidoaovoltar.Maistarde,aequipede engenheiros que trabalhava com Spencer disse que a verdade foramenosdramática:acriaçãodomicro-ondashaviarequeridoumasériedeobservaçõesmetódicasdeváriaspessoas,enãoummomentodeheurecadeumhomemsó.Comoquerquetenhaacontecido,foiumimensosaltodaimaginaçãode

Spencer e sua equipe achar que o magnetron, aquele vasto cilindro demetal, poderia ser usado na cozinha, em vez de um campode batalha.Omagnetron QK707 usado nos primeiros modelos pesava colossais dozequilos, em contraste com o 0,7 do forno-padrão moderno. Spencerdemonstrouaindamaisimaginaçãoaoreconhecerdeimediatooqueviriaaser um dos usos mais populares do micro-ondas: fazer pipoca. Umailustraçãodesuasegundapatentedomicro-ondasmostrouqueumaespigainteira demilho podia ser temperada commanteiga e sal, colocada numsaco de papel parafinado e transformada empipoca em apenas “20 a 45segundos”. Em1945, isso pareceu altamente improvável; e, de fato,maisduas décadas se passariam até o micro-ondas doméstico transformar-senumapreferênciapopular(asvendassódeslancharamem1967,quandoosfabricantes conseguirambaixar o preço de um forno paramenos de 500dólares).Muitos consumidores ainda veem o micro-ondas como um modo

improváveldecozinhar.Eleparecedistantedemaisdo fogoparaseralgoque preste. Durante muito tempo, temeu-se que fizesse mal à saúde. Éverdadeque,àsvezes,osmodelosantigosemitiammaisde10mW/cm²deradiação, em contraste com o novo padrão extremamente rigoroso de1mW/cm². Em ambos os casos, porém, a “radiação” eramuitomenor doqueos50mW/cm²aquenos exporíamosaoparar ameiometrodeumalareira. Com base em todos os dados obtidos até hoje, o micro-ondas éinocente como causador de riscos para a saúde, exceto pelos perigos decozinhar com ele, como o da explosão de pequenos objetos em “pontosquentes”–perigoscujamaioriapodeserevitadamedianteasimplesleitura

domanualdeinstruções.Portrásdosmedosperiódicosdosriscosdomicro-ondasparaasaúdehá

uma desconfiança mais fundamental desse aparelho como método paracozinhar.Em1998,umapesquisademercadodogrupoMintelsobreousode micro-ondas no Reino Unido constatou que 10% dos consumidoresinsistiamcomobstinaçãoemque“jamaiscomprariamumfornodemicro-ondas”.Atédatamuitorecente,eu faziapartedesses10%.Tinha36anosquandocompreimeuprimeiromicro-ondas,tendosidocriadaacreditandoque havia algo esquisito em cozinhar “de dentro para fora”. Na minhafamília, víamosomicro-ondas comoapenas ligeiramentemenosmaléficodoqueasbombasnucleares.Comoéque“bombardear”oalimentopoderiaresultaremalgosaboroso?Cozinhar no micro-ondas parece inexplicável, de um modo que não

acontece comoutrosmétodosda cozinha. Éuma injustiça.Na verdade, ofornonãocozinhadedentroparafora,comosempremedisseram.Nãohánadadeparanormalnele:acomidapreparadanomicro-ondasobedeceàsmesmasleisdafísicaqueafetamoassadonoespeto.Asondasultracurtasse deslocam em velocidade, mas só penetram uns quatro a cincocentímetros no alimento (razão por que as porçõesmenores são as quecozinhammelhornomicro-ondas).Agordura,oaçúcareasmoléculasdeáguaatraemessasondas,fazendo-assaltarmuitodepressadeumladoparaoutro. As vibrações produzem calor no interior do alimento. Além dosquatroa cinco centímetros,o calor sedifundepor conduçãoparao restodele – como aconteceria numa frigideira.Mas, ao contrário da frigideira,onde a comida adquire uma adorável crosta dourada, a que é feita nomicro-ondas não doura (se bem que algunsmodelos tenham funções dedouraregratinar,paracompensaressafalha).Não se pode preparar um assado nomicro-ondas, nem fazer pão.Mas

nenhumutensíliodecozinhaécapazdefazertudo,digamoquedisseremosfabricantes.Dizerqueele“nãoassa”éumargumentotãoprecáriocontraomicro-ondas quanto dizer que um forno de pão é quente demais parafazercremedeovosebaunilha.Overdadeirosenãodomicro-ondasnãoéoaparelhoemsi,masomodocomoeleéutilizado.Essefornoteveoazardecomeçaraservendidonaeradacomidaprontaousemipronta,surgidanopós-guerra.“Reaquecer”,emvezdecozinhar,ésuautilizaçãomaiscomum,segundoumapesquisademercadofeitaem1989noReinoUnido:84%dasfamílias usavam-no para esquentar alimentos previamente preparados,enquanto34%ousavamparacozinhardetudo.“Nãocozinhocomele;na

verdade,apenasesquentocoisas”,disseumparticipantedeumgrupofocal.Namaioriadascozinhas,elenãoéusadocomoummododecozinhar,esimcomoumrecursoparaevitar fazê-lo,enfiando ládentroumpratoprontocongelado e aguardando o bipe, sem a menor atenção. O micro-ondasproporcionou uma forma de comermos refeições quentes sem asociabilidadedenossentarmosàmesacomafamília.Amaioriadelesnãotem tamanho suficiente para aquecermais que o prato de uma ou duaspessoasdecadavez.Será que isso é o fim da vida social, tal como a conhecemos? O

historiador Felipe Fernández-Armesto execra o micro-ondas como umaparelhoque tem“opoderdemudarasociedade”deummodomaléfico,devolvendo-nos a “uma fase pré-social da evolução”. É como se nuncahouvéssemosdescobertoofogo.Aolongodahistória,buscamosencerrarecontrolarofogo,essefocodanossavidasocial,eotemosdomesticadocomlareiras de pedra, cercado de grandes salões construídos a seu redor,encerrado em grelhas de metal, isolado em fogões de ferro fundido,subjugadoànossavontadepormeiodofogãoagás.Eporfim,descobrimosummododecozinharsemelenomicro-ondas.Háindíciosdequesentimossaudadedofogoelamentamossuaausência

emnossavida.Oentusiasmocomquecozinheirosamadoresseapressamafazer churrascos ao primeiro sinal de sol, tostando linguiças no fogo,implicaquetalveznossaculináriatenhaperdidoofoco.Ninguémsesentaaoredordeumfornodemicro-ondasparacontarhistóriasatéaltashorasdanoite.Suafachadaangulosadevidronãoaquecenossasmãosnemnossocoração.Mastalveznemtudoestejaperdido.Oprocessodecozinhartemopoderdefazeraspessoasseunirem,mesmoquandonãosegueosantigospadrões convencionais. Quem acha que o micro-ondas não pode ser umfocodafamília,comoeraaantigalareira,nuncaviuumgrupodecriançasamontoadasemsilenciosoassombro,àesperadequeumpacotedepipocasdemicro-ondasacabedecozinhar, comocoletores-caçadoresaoredordachama.

TORRADEIRA

Fazer torradaséumasatisfação.Poderíamosdizerqueéporse tratardeumalimentomuito reconfortante– a crosta tostada, o aromacelestialdamanteigaderretendo-selentamentenasranhurasdopão.Mashátambémumasatisfaçãomecânicaeinfantil:encaixarasfatiasnasaberturas,regularotemporizadoreaguardaroplimouopoft.Paraumutensíliotãobásico,atorradeiraelétricaveiotarde.Emtese,os

inglesesdofimdoperíodovitoriano,doidosporengenhocas,podiamusaraeletricidadedesdeadécadade1890paraferveráguaemchaleirasefritarovos,mas,emmatériadetorradas,aindadependiamdogarfotridenteparatorraredasgrelhasdaculináriaemlareiraaberta–variaçõessobreotemados pegadores e das chapas vazadas para segurar o pão (ou pedaços dequeijo e carne) diante da chama. Pensando bem, tostar não deixa de serassar–aplicarcalorradiantesecoaalgumacoisa,atésuasuperfície ficardourada.

Paraquesepudesseinventaratorradeiraelétrica,eraprecisodescobrirum filamento metálico forte o bastante para suportar temperaturasaltíssimas sem derreter. Isso ocorreu em 1905, quanto Albert Marshdescobriuonicromo,umaligadeníquelecromodebaixacondutividade.Apartir daí, omercado norte-americano foi inundado por esses aparelhos.Talcomoaconhecemos,a torradeira foi inventadaporCharlesStrite,ummecânico de Minnesota que estava cansado das torradas queimadas dalanchonete do seu trabalho. Em 1921, Strite obteve a patente de umatorradeira com molas verticais para fazer as torradas saltarem e umtemporizadorregulável.Eraumanovidade:umatorradeiraquepodiaserencarregada de fazer o trabalho sozinha. “Você não tem que vigiá-la – éimpossívelatorradaqueimar”,insistiaumanúnciodaToastmaster,criadaporStrite.Quemdera.Infelizmente,aindaépossívelqueimaropãonumatorradeiraautomática.

aOtermovemdofrancêsmedievalcouvrefeu,oucouvrefeu,literalmente,cobrirofogo.(N.T.)bVale lembrarquea língua inglesa temverbosdiferentesparadesignarosprocessosde roasting(assar/tostarnolumedofogo,assarnabrasa,churrasquear)ebaking(assaroucozernoforno).Onossotermo“rosbife”éumaportuguesamentoderoastbeef(carneassadadeboioudevaca).(N.T.)cUmdosquatroColégiosdeJurisconsultosdasCortesdeJustiçaReaisbritânicas.(N.T.)dTratava-sedeummecanismodecordapenduradonoalto,ligadoaumarodaqueelefaziagiraredaqualpendiamumoumaisespetoscomacarne.(N.T.)e Sua resposta foi que “o calor passa pelas maçãs cozidas com muito mais dificuldade, ou comlentidãomuitomaior,doquepelaáguapura”.Comoocaloreramais lentamenteconduzidopelasmaçãscozidas,estaslevavammaistempoparaesfriardoqueaáguaquente,dondeoproblemadasqueimadurasnabocaaosecomertortademaçã.f IsabellaMaryBeeton (1836-1865), autoradoMrs. Beeton’sBook ofHouseholdManagement, tidacomoumadasprimeirasemelhoresescritorasdoReinoUnidosobreassuntosculinários.(N.T.)gTermoquesetraduziriapor“fissuradoemferro”,ou“loucoporsiderurgia”etc.(N.T.)

4.Medição

“Conteoqueforcontável,meçaoqueformensurável,etornemensurávelaquiloquenãoofor.”

GALILEUGALILEI,1610

“Nãomepeçaparacontarascentenaseosmilhares.”

NIGELLALAWSON,1999

FANNIEMERRITT FARMER eraumacozinheiraquedetestavadesleixona cozinha.Nãoqueria saber de umpunhadodisto e umapitada daquilo, preferindolidarcommedidasfixaseniveladas.Suamagnumopus,TheBostonCooking-School Cook Book (1896), foi o livro de receitas de maior sucesso nosEstadosUnidosnoiníciodoséculoXX;em1915,tinhavendidomaisde360mil exemplares.Grandepartedo seuatrativo resumia-sena insistência –muito reconfortantemente científica – no uso de medidas corretas eprecisasnacozinha.“Umaxícara”,escreveuFarmer,“mede-senivelada….Uma colher de sopa se mede nivelada. Uma colher de chá se medenivelada.” Farmer,uma ruivadeporte avantajado, empregavaasmesmaspalavras em suas demonstrações culinárias, sempre usando uma faca demesaparanivelarotopodesuasmedidas.Nãopermitiaquenenhumgrãoperdidodefarinhadetrigoseintrometesseemsuastortaseoutrasmassas.Seuapelidoera“Mãedasmedidasniveladas”.Farmer parece ter achado que estava conduzindo os Estados Unidos a

umanovaeradeexatidãonacozinha. Já iam longeos tempos tenebrososdos palpites. “As medidas corretas são indispensáveis para garantir osmelhoresresultados”,escreveuela.Medireraumaformadeimporordemaumuniverso caótico, e Fannie Farmernão estava apenas ensinando seusleitores de classe média a cozinhar, mas lhes oferecendo a sensação decontrole absoluto no campo da culinária. Por isso, é curioso que tenha

escolhido ummétodo demedição – o sistema das xícaras – tão instável,ambíguoepropensoaresultadoscomoscilaçõestãodiscrepantes.O sistema das xícaras quantifica todos os ingredientes, sejam eles

líquidos ou secos, porosos ou densos, usando xícaras medidoras dedeterminadovolume:236,59mililitros,paraserexata.Comoessesistemamede o volume, e não o peso, às vezes é chamado de “volumétrico”. Asxícarasaindasãoumamedidaquaseuniversalnoslivrosdereceitasnorte-americanos e, por conseguinte, nas cozinhas norte-americanas, emborahajaqueixasfrequentesdequemedirporpeso,usandoumabalança,seriamuitomais fácil emaispreciso.Porumestranhocaprichodahistória,osEstadosUnidos sãooúnicopaísdomundoquemedeos alimentosdessamaneira.Os cozinheiros australianos e neozelandeses usamo sistemademedição por xícaras esporadicamente, e os europeus em geral usam ovolumeparamedirlíquidos,masapenasnosEstadosUnidosessaunidademuito específica de volume é vista como a forma padronizada demedirtodososingredientes–animais,vegetaisouminerais–,eissosedeve,emgrandeparte,aolegadodeixadoporFannieFarmer.a

Façamosumavançorápidoparaosdiasatuais,quando,numatardedeverão,tenteiprepararumadasreceitassupostamenteinfalíveisdeFannieFarmer.Onomeerabastantesimples–Saladadevagem:

Tempereduasxícarasdevagensfriascommolhovinagrete.Acrescenteumacolherdechádecebolinhascortadasemfatiasbemfinas.Empilhe-asnocentrodasaladae,emvoltadabase,arrumefatiasfinasderabanete,superpondoumasàsoutras.Decoreotopocomumrabanetecortadoemformatodetulipa.

Você já tentouempilhar fatias finasdecebolinhanumacolherenivelá-las com uma faca?Não tente. A cebolinha cai por todo lado. Teriamuitomais sentido apenas fatiá-la direto no prato; um pouquinho amais ou amenos não faria diferença. Quanto a medir as vagens em xícaras, isso épiada. Elas ficam espetadas em ângulos que tornam a tarefa impossível.Paraobterduasxícarasperfeitamenteniveladasdevagensfrias,vocêteriade amassá-las tanto que a salada ficaria destruída. A receita também sedestaca pelas coisas importantes que não nos diz: quanto de molhovinagrete? Por quanto tempo é preciso cozinhar as vagens antes de elasficarem “frias”? Como se deve cortá-las? E onde é que se consegue umrabanete “cortadoem formatode tulipa”?Comcerteza, euéquenãovoufazê-lo (“comecepela raiz e faça seis incisões na casca, deslizando a facapor três quartos do comprimento do rabanete”, instrui Farmer, demodointimidante).Hámuitomaisnuma receitadoqueasmedidas.Domesmo

modo,porém,nenhumareceita jamaismediutodasasvariaçõespossíveisdoatodecozinhar.Comsuafénasxícaras,FannieFarmerachouquetinharesolvido tudoemmatériademedição–masaverdadeéque issonuncaacontece.Assim é a história da medição na cozinha. Cozinhar bem é uma

empreitadaquímicaexata.Adiferençaentreum jantaresplêndidoeumarefeiçãoindiferentepodeserdetrintasegundoseumquartodecolherdechádesal.Asreceitassãoumatentativadetornarospratosreproduzíveis.Na ciência, a reprodutibilidade é a possibilidade de que um experimentosejarecriadocomprecisãoporumpesquisadorindependente.Éjustoessaa qualidade que buscamos numa receita: no nível ideal, a sua receita detortademaçãdeveteromesmosaborquandoeuaprepararemcasa,naminha cozinha. Mas os cozinheiros trabalham em condições em que hámuito mais variáveis extrínsecas do que qualquer cientista admitiria:temperaturasnãoconfiáveisdoforno,ingredientescrusmutáveis,paranãofalaremcozinharparapúblicoscompreferênciasdiferentes.Ocozinheiroque se atém demais a medir por medir pode perder para as xícarasmedidoras e estragar a refeição. Concentrar-senuma fórmula exatapodefazerapessoaesquecerqueamelhormedidadequequalquercozinheirodispõeéseujulgamentopessoal.Valetambémlembrarqueosinstrumentosdemedidanacozinhapodem

ser julgadospormaisdeumcritério.Oprimeiro é a exatidão, saber se amedida corresponde a umvalor fixo: será que o jarro que vocêusaparamedir um litro de leite temmesmo um litro? A segunda é a precisão, orefinamentodesuamedida:vocêseriacapazdemedirmeiomilímetrodeleite? A terceira é a coerência (que os cientistas chamariam dereprodutibilidade): a capacidade demedir repetidas vezes omesmo litrodeleite.Aquartaéaconversibilidade:saberatéquepontoumamedidaseenquadra demaneira compreensível num sistemamais amplo de peso evolume,eseoinstrumentoeasunidadesusadasparamediroleitetambémpodem ser usados paramedir outras coisas. A quinta talvez seja a maisimportante. Trata-se da facilidade ou comodidade para o usuário: apossibilidade de medir um litro de leite sem nenhuma cerimônia, semrecursos nem habilidades especiais. Julgado por este último critério, umdosmelhoresinstrumentosdemedidaéomodestocopomedidordaPyrex.Alémdasmarcaçõesclaras,quemostramasmedidaspelosistemamétricoe pelo sistema imperial britânico, o copo de pirex, feito desse vidropatenteadoem1915e resistenteaaltas temperaturas, temumbicopara

verter líquidos, pode ir ao freezer e aomicro-ondas, e tem a inestimávelcapacidade de não quebrar quando cai, desde que o piso da cozinha nãosejadurodemais.Tudo que se cozinha implica medições, mesmo que sejam apenas os

cálculos espontâneos dos sentidos. Os olhos nos dizem quando a cebolarefogada está translúcida o bastante. Os ouvidos sabemquando a pipocaacaboudeestourar.Onarizinformaquandoastorradasestãoqueimando.Ocozinheirovivefazendoestimativasetomandodecisõescombasenessescálculos.Volumee tempo, temperaturaepeso: sãoestasasvariáveisquetodocozinheirotemquemanejar.Masastentativasdemediressascoisascommaior exatidão, por meio de uma tecnologia superior, nem semprelevaram a se cozinhar melhor. Na cozinha, agarrar-se a fórmulas podetornar-se contraproducente. Até hoje, nenhuma tecnologia suplantou acapacidade demedição de um bom cozinheiro, abençoado com umnarizapurado,visãoaguçada,mãosresistentesemuitosanosdiantedeumfogãoquente – alguém cujos sentidos avaliam os alimentos de maneira maisnotávelquequalquerinstrumentoartificial.

“DE TODAS AS COISAS que nos identificam como norte-americanos e nosdistinguem de outros povos”, escreveu o grande crítico de culinária RaySokolov, em1989, “amenos ambígua – e amais raramente notada – é axícaramedidora.” Sokolovnotouqueemnenhumoutro lugarquenãoosEstados Unidos uma “nação inteiramede ingredientes secos, demaneirahabitualequaseexclusiva,comumaxícara”.O restodomundomede a farinhade trigo (namaioriadas vezes, pelo

menos)pelopeso.Asbalançasassumemmuitasfeições,masoprincípioésempreomesmo:

mediropeso.bParaessefim,talvezumcozinheirofrancêsuseumatravedeequilíbriocomumpratorasopendurado,dotipousadoemoutroslugaresparapesarbebêsrecém-nascidos.NaDinamarca,abalançadecozinhapodeserumarodiscreto,presoaumaparedeemuitoparecidocomumrelógio,com um prato pendente que revela um mostrador. Os ingleses aindagostam das antigas Queen Scales – as clássicas balanças mecânicas depesadoferrofundido,comumpratodelatãodeumladoeumconjuntodepesos graduados do outro – ou talvez seja apenas eu que goste delas.Pensando bem, quando meus amigos veem minha cozinha, é comumsoltarem exclamações diante da balança, como se fosse uma peça demuseu,eàsvezesmeperguntamseusomesmoaquelespesosantiquados.

Sim!Todososdias!Masdevoadmitirquenãoquandoprecisãoé crucial,pois,nessecasofaçoamediçãodigital,óbvio.Hojeemdia,cozinheirosdetodasaspartesdomundodesenvolvidousambalançasdigitais.Elassãoumdosmelhoresutensíliosdacozinhamoderna,oferecendograndeexatidãoeprecisãoporumpreçobaixo.Nasbalançascomfunçãozero,vocêpodeatépesar os ingredientes já no recipiente em que serão misturados,reajustandoamediçãonozerodepoisdecolocarorecipientenabalança.Issopoupaas lavagenseéespecialmenteútilparacoisascomoxaropesemel,porquenãohánecessidadedabagunçaderaspá-losdabalançaparaatigela.Todavia,algunsmétodosmaisantigosdepesagemtambémfuncionavam

muitíssimo bem (ainda que commaiormargem de erro). Se você for denacionalidade alemã e tiver um temperamento tradicionalista, é possívelquetenhaumabalançadegangorra,comumpoteparaosingredientesdeumladoeumcontrapesodooutro,sendoospesosimpressosnotravessão.Você o desliza até que fique perfeitamente equilibrado e verifica o pesomarcadonotravessão.Atecnologiaéidêntica–emboradeconstruçãomaisfrágil–àdeumabalançaromanademetalencontradaemPompeia,datadadoano79.Aciênciadapesagemfoibasicamenteresolvidahá2milanos,oumais.A

mais antiga balança chinesa remonta ao século IV a.C., na concepçãoclássicadedois pratospendendodeum travessão. Issonão significaquemuitaspessoaspudessemcomprarsuasprópriasbalanças.Aprincípio,elaseramusadasparapesarcoisaspreciosas,comoouro;sóseinsinuaramnacozinha séculos depois. Com certeza, já estavam lá na época de Apício,autordoprimeiro“livrodereceitas”daRomaantiga,quefalaempesosnãosó de ingredientes secos (“6 escrópulos de levístico”), mas também dosmolhados (“1 libra de caldo de legumes”). Portanto, a tecnologia dapesagemde ingredientes foi estabelecida hámuito,muito tempo. E hoje,funcionamelhordoquenunca.Amaioriadasbalançasdigitaisdecozinhaécapaz de pesar um ingrediente numa faixa de exatidão de apenas umgrama. O que há de maravilhoso na pesagem é que não temos de nospreocuparcomadensidade:100gramasdeaçúcarmascavocontinuamaser100gramasdeaçúcarmascavo,estejaelecompactadoousolto.Importaapenasopeso,queéconstante.Écomoavelhapiada:oqueémaispesado:umquilodeouroouumquilodepenas?Éclaroqueosdoispesamamesmacoisa.Umquiloésempreumquilo.

Em contraste, o sistema volumétrico norte-americano de pesagem porxícaras,pelomenostalcomoseaplicaaosingredientessecos,podeserdeumaimprecisãoexasperante.Umaxícaradealgonãoéapenasumaxícara.Jáhouveexperimentosmostrandoqueopesodeumaxícaradefarinhadetrigopodevariarde110a170gramas,pelasimplesalteraçãodograuemque a farinha foi peneirada e arejada ou compactada. Isso respondepeladiferençaentreumboloquesaibem-feitoeumquenãosai,entreamassagrossademaiseamassaaguadaerala.Vamossuporqueoautordareceitamandasse usar uma “xícara” de farinha de trigo correspondente a 110gramas, eque, emvezdisso, a sua xícara tivesse170.Vocêacabaria comumavezemeiaafarinhanecessária–umenormedesequilíbrio.O problema de usar o volume para medir materiais sólidos é o da

compressãoeexpansão.Emcondiçõesnormais,epresumindoqueelanãoesteja congelada nem fervendo, a densidade da água é fixa; não se podeespremê-laparaquefiquemenor.Afarinhadetrigo,aocontrário,podeserdensamente comprimida na xícara, ou afofada com muito ar. Algumasreceitastentamcontornaressadificuldade,estipulandoquea farinhatemque ser peneirada antes de ser medida, e algumas chegam a detalharquantas vezes ela deve ser peneirada. Mas isso ainda não garante aexatidão, já que as farinhas são muito variáveis. Além disso, peneirar

acrescentaàreceitaumaetapaextradetrabalhobraçal.Ocozinheirogiraem torno de peneiras e colheres, afofando, compactando, empilhando epeneirando, tudo isso para chegar a uma exatidão menor do que umabalançapoderialhedaremsegundos.Passandodafarinhadetrigoaoutrassubstâncias,amediçãocomxícaras

pode ser ainda mais enervante. Uma coisa é medir grãos como arroz,sêmola e aveia num copo – na verdade, essa é provavelmente a melhormaneira, jáqueéprecisopoder avaliarporvolumeaproporçãoentreosgrãoseaáguaparacozinhá-los;aquantidadeabsolutaémenosimportante.Aaveiaeamaioriadostiposdearrozpedemumaproporçãode1:1½entresólido e líquido; a sêmola, 1:1. Há certa satisfação em derramar umamedidadesêmolanocopomedidor,retirá-laeprocurarlevaraáguaouomolhoaomesmonível.Apessoarefazseupercurso.Masébemdiferentetentarmedircincoxícarasdeberinjelacortadaemcubos(oequivalentea450gramas)oudezxícarasdealfacepicada(também450gramas).Comopicá-las? Devemos cortá-las de uma em uma, colocando-as na xícara àmedidaqueavançamos,oufazertudodeumavezecorreroriscodepicaruma quantidade excessiva? Devemos compactar os vegetais cortados naxícara,oupresumirqueoautordo livrodereceitas já levouemcontaosespaços entre os cubinhos?Ou será que você atira o livro de receitas nochão,furiosoporlhepediremparaexecutarumatarefatãoabsurda?O apego norte-americano às xícaras é realmente estranho (e enfim

vemospequenossinaisderevoltacontraele,comoumartigodoNewYorkTimes de 2011, que fez um “apelo a favor da balança de cozinha”). Eminúmeros aspectos, os Estados Unidos consideram-se um lugar maisracionalqueaEuropa.Asruasdascidadesnorte-americanassãodispostasnuma grade ordeira de vias numeradas, e não amontoadas de qualquerjeito, como em Londres ou em Roma. Há também o dólar, usado desde1792: um sistema monetário eminentemente sensato. Em matéria demoeda,osEstadosUnidosestabeleceramumsistemausávelmuitoantesdaEuropa(comexceçãodaFrança).EmmeadosdoséculoXX,oprocessodecomprar uma xícara de café em Roma, usando as liras italianas, era umexercíciodematemáticaavançada;nãoeramuitomelhorcomprarumbulede chá em Londres, já que nós, britânicos, nos aferrávamos ao nossoconfuso sistema de libras, xelins e pence. Enquanto isso, os norte-americanosiamtranquilamenteàmerceariaecontavamcomfacilidadeosseus cents [um centavo], dimes [dez centavos] e dólares decimais. Domesmomodo,osnúmerosdetelefonenorte-americanossãopadronizados

numafórmuladedezalgarismos.Umaamiganorte-americanadescreveométodo ou falta de método que rege os números de telefone britânicoscomo“umamiscelâneaembasbacante”.Então,porquê,quandosetratadeculinária, esse povo joga a razão pela janela e insiste em medir comxícaras?Isso só pode ser compreendido no contexto da história dos pesos e

medidas.Vistaem termoshistóricos, a faltadepadrões clarosdemedidatemsidoa regra,enãoaexceção.Alémdisso,asmedidasemxícarassãoparte de um sistema mais amplo de medição, no qual elas faziamconsideravelmentemaissentidodoqueemnossosdias.AconfusãodehojeseenraízanaInglaterramedieval.

NO PERÍODO ANGLO-SAXÃO, estabeleceu-sena Inglaterra a “medidadeWinchester”,quando Winchester era a capital do país. Esse sistema criou umaequivalência entre o peso dos alimentos e seu volume, o que seria umaformaóbviadecriarunidadesdevolumeondeelasnãoexistiamatéentão.Penseemcomoseriacomplicadoestabeleceracapacidadeexatadeum

recipiente se você não tivesse um copo medidor. Como poderia saberquanta água cabia numdado copo? Você poderia derramar o líquido emoutrocopoecompararonívelentreosdois.Mas,nessecaso,comosaberiaquanto continha o segundo? Esse exercício logo se transforma numpesadelo.Eramuitomais fácil estabelecera capacidadeusandoovolumedecertassubstânciasdepesagemconhecida.O“busheldeWinchester”eradefinido como o volume de 64 libras de trigo (o que era relativamenteconstante,jáqueosgrãosdetrigotêmdensidademenosvariáveldoqueafarinha). Obushel compunha-se de quatropecks. Opeck equivalia a doisgalões. O galão correspondia a quatro quartos, e umquarto tinha quatropints.Oresultadodissotudoeraumfatoagradável:obusheldeWinchestercorrespondiaa64libras(detrigo)etambéma64pints(deágua).Umpintequivaliaaumalibra.Certinho.SeessasmedidasdeWinchester fossemoúnicopadrãoparaovolume,

estaria tudo bem. Mas, na Inglaterra medieval, vários galões rivaispassaram a ser usados para substâncias diferentes. Além do galão deWinchester (também conhecido como galão de milho), havia o galão devinhoeogalãodecerveja,todosrepresentandoquantidadesdiferentes.Ogalãodecervejaeramaiorqueodevinho(cercade4,62litroscontra3,79litros),comoquerefletindoofatodequeacervejacostumaserconsumidaemquantidadesmaioresqueovinho.Esseéotipodelógicamalucaàqualé

muitofácilsucumbir,quandosepensaemmaneirasdemedircoisas.A falta de pesos e medidas padronizados era um problema para os

consumidores,quequeriamreceberaquiloaque tinhamdireito (umpintdecervejavariavaenormementedeumcondadoparaoutro),mastambémparaoEstado,poisafetavaosimpostoscobradossobreasmercadorias.AMagnaCartade1215tentoulidarcomaquestãodafaltadeuniformidade:“Haveráumasómedidadevinhoemtodoonossoreino;eumasómedidade cerveja; e uma sómedidademilho.” Issonão funcionoue asmedidasrivais continuaramaproliferar.Entre1066eo fimdoséculoXVII,houvemaisdedozegalõesdiferentes, algunsdestinadosaos sólidos, outros aoslíquidos.No fim do século XVIII, tomaram-se várias providências para fugir à

anarquia do sistema medieval de pesos e medidas. Na década de 1790,depoisdaRevoluçãoFrancesa,o sistemamétricocomeçoua se firmarnaFrança.Ometrobaseou-senasdescobertasdeumaexpediçãodecientistaspara medir a extensão do meridiano terrestre, uma linha imaginária doPoloNorteaoPoloSul:ummetroequivaleriaaumdécimo-milionésimodomeridiano, embora, por umpequeno erro de cálculo, na verdade ele sejaum pouco menor. Mas ficou então estabelecido o princípio de que osfranceses fariam medições decimais. Em 1795, as novas medidas foramdecretadas numa lei do dia 18 de Germinal: litros, gramas e metros. AeliminaçãodavelhamixórdiadepadrõesarcaicospretendiademonstraroquantoaFrançatinhasetornadomoderna:racional,científicaecomercial.Tudo,desdeossistemasviáriosatéasporçõesdemanteiga,foisubdivididoemdécimosperfeitos.Os revolucionários chegaramaté a experimentar asemana de dez dias – a “décade”. Graças a esse novo sistema demensuração, a vida tornou-se lógica: no café da manhã, comia-se pãomedidoemgramas,tomava-secaféemmililitrosesepagavaportudoemfrancosesoldosdecimais.Os norte-americanos e os britânicos fizeram suas próprias reformas,

porém nenhum dos dois países quis ir tão longe quanto os francesesrevolucionários. Em 1790, o presidente George Washington deu a seusecretáriodeEstado,ThomasJefferson,atarefadeconceberumprojetodereforma dos pesos e medidas. Os Estados Unidos já tinham umamoedadecimal, tendosedesfeitodas libras,xelinsepenceaomesmotempoquedaCoroabritânica.Naocasião,porém,oCongressonãoconseguiuaprovarnenhuma das propostas de reforma de Jefferson e passou várias outrasdécadassemconseguirdecidirnadasobreoassunto.

Enquanto isso,em1824,os inglesesentraramemação.Nãosecogitou,nessaépoca,emseguiros franceses– inimigosnacionaiscomosquaissórecentemente o país deixara de estar em guerra – num caminho demetrificaçãototal;oobjetivoeraapenaslivrarocomérciodaeratenebrosados padrõesmúltiplos. Em 1824, o Parlamento aprovou o uso de um sógalão imperialpara líquidosecereais.Onovogalão imperialbritânico foidefinido como “o volume ocupado por dez libras de água a umatemperatura e pressão especificadas”. Isso resultou em 4.546,10centímetroscúbicos,oqueseaproximavadoantigogalãodecerveja.Umavezcriadoonovogalão,foifácilrefazerogabaritodopint,doquartoedobushelparaqueseadequassemaele.As novas medidas imperiais foram confiantemente promulgadas em

todososlugaresdominadospeloImpérioBritânico.UmpintdemaplesyrupnoCanadácolonial tinhaomesmovolumedeumpintdeuísquena Índiacolonial.Isso pôs fim à confusão das medidas? De modo algum. Em 1836, o

Congresso dos Estados Unidos por fim estabeleceu padrões norte-americanos uniformes e resolveu seguir o caminho inverso ao do ReinoUnido.Emvezdeadotaronovogalão imperialúnico,opaís seateveaosdoisgalõesmaiscomunsdosistemaantigo:ogalãodeWinchester(oudemilho)paraprodutossecoseogalãodarainhaAnne(oudevinho)paraoslíquidos. Não surpreende muito que tenha querido adotar padrõesdiferentesdosbritânicos.OestranhoéquetenhaexpressadosualibertaçãométricadoReinoUnidonãoatravésdesuasprópriasmedidasmodernas,masdeestranhasmedidasbritânicasantigas.QuandoenviaramumhomemàLua,osEstadosUnidosaindaestavamraciocinandoemtermosdospintsebushels da Londres setecentista. Mesmo hoje, na era das pesquisas noGoogle, quando é mais provável que cozinheiro da família procure umareceitana internet emvezdevasculhar aspáginasdeThe Joy of Cooking(1931), as receitas que aparecem na tela dos sites de culinária norte-americanosaindasãomajoritariamentemedidasnasxícarastradicionais.O resultado são quase duzentos anos de incompreensão mútua na

culinária das duas nações, agravada desde 1969, quando o Reino Unidoenfim se juntou oficialmente às nações métricas (embora muitoscozinheiros domésticos britânicos ainda prefiram asmedidas imperiais).OsEstadosUnidossãohojeumdosúnicos trêspaísesdomundoquenãooficializaramosistemamétrico francêsemseu território;osoutrossãoaLibériaeMianmar,ouantigaBirmânia.Paraosouvidosnorte-americanos,

há algo de frio, quase desumano, na prática europeia de quantificaringredientesemgramas.Paraorestodomundo,porém,asxícarasnorte-americanas são confusas. Na Austrália, a xícara recebeu uma definiçãométrica,equivalentea250mililitros,mas,noReinoUnido,àsvezeselasetraduzpor284mililitros,metadedeumpintbritânico.OCanadáfazsuasmedições comuma xícara de 227mililitros, correspondente a oito onçasimperiais líquidas.Quantoàverdadeiraxícaranorte-americana,elanãoénenhumadessas: adefinição técnicadeumaxícaradosEstadosUnidosé“metadedeumpintnorte-americano”,ou236,59mililitros.

CONSIDERANDO TUDO ISSO,porqueFannieFarmer,a “Mãedasmedidasniveladas”,julgou,em1896,queosistemadasxícarasera tãosuperioreexato?Nãohavianadade inevitávelnapreferênciadosEstadosUnidospelamediçãoporvolume,emvezdabalança.Seexaminarmososlivrosdereceitasnorte-americanos anteriores, veremos que existe amesma probabilidade de osmétodosindicadosseremapesagemnabalançaouamediçãoporxícaras.Naverdade,issosedeve,emparte,aquemuitoslivrosdeculinárianorte-americanos eram reedições de livros de receitas britânicos de sucesso,comoANewSystemofDomesticCookery(1807),dasra.Rundell.Contudo,mesmonos livrosgenuinamentenorte-americanos,amaioriadasreceitasimplicaaexistênciadeumabalançanacozinha.Oprimeirodesseslivrosaserpublicadoporumanorte-americanaparaleitoresnorte-americanosnosEstados Unidos foi American Cookery, de Amelia Simmons, lançado em1796.Simmonsfalasempreemlibraseonças.Seurecheiodeperupedeumpãodetrigo,“umquartodelibrademanteiga,umquartodelibradecarnedeporcodefumada,picadaempedaçosmiúdos”,doisovosealgumaservas.Ela também forneceaprimeira receitanorte-americanadoqueviriaa setornarumclássicodaculináriadosEstadosUnidos,opoundcake,ou“bolodelibra”:“Umalibradeaçúcar,umalibrademanteiga,umalibradefarinhade trigo, uma libra de ovos, ou dez ovos, um gillc de água de rosas,especiariasagosto;vigie-ocomatenção,poiseleassaemfornobrandoem15minutos.”Opound cake de Amelia Simmons não é uma grande receita. O tempo

curtíssimo, quinze minutos, deve ser um erro tipográfico (na minhaexperiência,opoundcake levacercadeumahoraparaassar),eSimmonsnãonosdizcomoprepararamassa(devemosacrescentarosovosumaum,paraqueelanãotalhe,oucolocamostudodeumavezsó?).Pormaisfalhaqueseja,noentanto,areceitamostraque,pelomenosem1796,osnorte-americanosnãoeramavessosapesaramanteigaeafarinhadetrigonuma

balança.Opoundcake continuouaseruma iguaria favorita,muitodepoisdeasxícarasdominaremamedição.AtéFannieFarmerincluiuumpoundcake em seu livro, nãomuito diferente dode Simmons, exceto por haversubstituído a água de rosas e as especiarias por um pouco de macis econhaque;elatambémdisse,comoseriaplausível,queobolo levavaumahora e quinze minutos numa “forma funda” para assar. E substituiu aslibrasporxícaras.EmmeadosdoséculoXIX,asxícaras foramdominandocompletamente

as librasnosEstadosUnidos.Nocomeço,seriaqualquerxícaraoucanecausadanocafédamanhãequeestivesseaoalcancedasmãos.Éassimqueoscozinheiros tradicionaisainda fazemgrandepartedesuamedição,emdiversos países, da Índia à Polônia. Pega-se um copo disto e uma xícaradaquiloefuncionamuitobem,porquevocêjáfezessepratoumacentenadevezes,usandoomesmocopoouxícara.Oproblemasóaparecequandovocêprocurainstruiroutraspessoas,foradafamíliaoudocírculoíntimo,afazer determinado prato, quando a receita se perde na tradução. O quehouvedediferentenasmediçõesfeitascomxícaranosEstadosUnidosdoséculoXIXfoiapassagemdousodexícarasparaousodeumaxícara–umpadrãoúnico,comumvolumepreciso.

Porqueosnorte-americanosseapegaramtantoasuasxícaras?Algunsviramnissoumtraçodavidadoscolonospioneiros,quandoaspessoasqueviajavamparaooestelevavamutensíliosdecozinhaimprovisadosemsuascarroças, mas não queriam sobrecarregar-se com balanças pesadas. Issodeve ter certa veracidade. Num povoado distante, em regiões quaseinexploradas,umfunileirolocalpoderiarapidamentefazerumaxícara,aopasso que a balança era um produto industrial, produzido em fábricas e

vendidonascidades.Alémdisso,acomidanasáreasdecolonizaçãotendiaaserespecíficadolugar,aexemplodoboloJohnny–umamisturapesadadefubáegorduradeporco,feitacomxícarasdistoepunhadosdaquilo.Contudo, a mentalidade dos pioneiros não explica de todo a adoção

generalizada da xícaramedidora nos Estados Unidos. O que os livros dereceitas indicamé que ela era vista não comouma substituta inferior dabalança, porém como melhor do que esta. A xícara era usada tanto nascozinhas elegantes e bem-equipadas das cidades quanto em carroçascaquéticas.CatharineBeecher,cujairmã,HarrietBeecherStowe,foiautoradeumgrandesucessodevendas,AcabanadoPaiTomás(1852),escreveuumlivrodereceitas–MissBeecher’sDomesticReceiptBook,publicadoem1846.Beecher observa que “poupamuito trabalho ter o livro de receitasorganizadodetalmodoquesepossamediremvezdepesar”.Elapresumeque suas leitoras terão balanças, assim como xícaras, mas considera asxícarasmais jeitosas.Recomendapesar cada ingredientenaprimeira vezqueeleforusado,emedirovolumedoingredientepesadonuma“pequenaxícara medidora”. A ideia de Beecher é que, na próxima vez que esseingredientefornecessário,acozinheirapoderádispensarabalançaeusarapenasaxícara.Aascendênciadaxícarafoiauxiliadapelaprópriaindústriadeutensílios

de cozinha, ou seja, pelo surgimento gradativo de xícaras medidorasespecialmente fabricadas, com graduações demeia xícara, um quarto dexícaraeassimpordiante.CatharineBeecherfalaemxícarasdecháecafécomuns, mas, em 1887, Sarah Tyson Rorer destacou o aparecimentorecente,“emnossomercado”,de“umapequenaxícaradecozinha,feitadelatão”.Taisxícaraseramvendidas “aospares,apreçosvariados…,sendoum dos pares dividido emmedidas de ¼ e o outro emmedidas de⅓”.Trata-se, reconhecivelmente, da xícara de medida tal como continua aexistiratéhoje.Jáentão,tornara-secomumosautoresdelivrosdereceitasfornecerema

conversãoparaxícaras,demodoqueoscozinheirospudessemdispensarabalança.MariaParloa,umaconhecidaprofessorade culinária sediadaemBoston, forneceu as seguintes conversões em 1882, usando uma “xícaracomumdecozinhacomcapacidadeparameiopint”:

Umquartodefarinhadetrigo…umalibra.Duasxícarascheiasdemanteiga…umalibra.Umpintgenerosodelíquido…umalibra.Duasxícarascheiasdeaçúcargranulado…umalibra.

Duasxícarasamontoadasdeaçúcardeconfeiteiro…umalibra.Umpintdecarnefinamentepicadaesolidamentecompactada…umalibra.

O problema de todas essas conversões era como interpretá-las.Exatamente quão sólida era a carne “solidamente compactada”? Comodistinguirumpint “generoso”de líquidodeumpint “parco”?Equediabovemaseruma“xícaraamontoada”?A sra. Lincoln, outra cozinheira de Boston, e predecessora de Fannie

Farmer na direção da Escola de Culinária de Boston, tentou introduziralgumas ressalvas na pesagem. Uma colherada, observou, sem ajudarmuito, devia ser, em geral, “apenas arredondada, ou convexa na mesmaproporçãoemqueacolherécôncava”.OqueFannieFarmerfezfoipegaressasmedidaseretirardelastodainterpretação.Afacacomquenivelavaotopodesuasxícaraseliminavaqualquerdúvida,qualquerambiguidade.Asxícaras não deviam ser generosas nem parcas, amontoadas nemcompactadas. “Umaxícara é umamedidanivelada.Uma colherde sopa éumamedida nivelada. Uma colher de chá é umamedida nivelada.” Essaexatidãoofereciaaoscozinheirosasensaçãodequeaculináriatinhasidoelevadaaoníveldaciência.Com efeito, o método de Farmer foi um enorme aperfeiçoamento das

medidasgenerosasouparcasdeautoresanteriores,dondetalvezpossamosperdoá-lapornãoterreconhecidoofatodequetodoosistemademedidasbaseadoemxícaraserafalho.Suafixaçãopormedidasniveladasnacozinharefletiu a fase tardia em que ela chegou à culinária. Farmer nasceu em1857, sendo uma das quatro filhas de um tipógrafo (uma quinta filhamorreunaprimeirainfância).Cozinhavapoucoemcasa.Eraprovávelquese tornasse professora primária, como suas três irmãs, porém, quandocursava o secundário, foi acometida por uma doença, possivelmentepoliomielite,e,apósumperíododeparalisia,ficoudebilitadaemancaparasempre.Durantealgumtempo,pareceuquenuncasairiadecasa.Nadécadade 1880, aos 28 anos, aceitou um emprego de ajudante na casa de umaamiga da família. Ali desenvolveu o interesse pela culinária. Em 1887,matriculou-se na Escola de Culinária de Boston, uma de várias novasinstituições nos Estados Unidos que visavam ensinarmulheres da classemédia a cozinhar. Farmer deve ter feito alguma coisa certa, porque, seteanos depois, era a diretora da escola, usando um chapéu branco e umaventalbrancoquelhedesciaatéostornozelos.AEscoladeCulináriaensinouFannieFarmeracozinharcomasxícaras

medidoras criadasparaesse fime recém-surgidasnomercado.Eelanão

reconheceunenhumoutrométodo.Todaasuaabordagemconsistiaemdaràscozinheirasasensaçãodequeelaspoderiamfazerqualquercoisa,desdequeobedecessemàs regrase seguissemsuas instruçõesaopéda letra: aobediência absoluta levaria à proficiência absoluta. Tendo chegadotardiamente à cozinha, Farmer não tinha como recorrer a nenhum dosinstintos naturais sobre quanto de cada ingrediente era necessário e porquanto tempo se devia cozinhá-lo. Tudo tinha que ser explicitado. Elachegavaaopontodeestipularque,nadecoraçãodedeterminadopratocompimentãovermelho,estedeveriasercortadoempedaçosde¾depolegadadecomprimentoemeiapolegadadelargura.A ideia era criar receitas que fossem absolutamente reproduzíveis,

mesmoquenãosesoubessenadadecozinha:receitasque“funcionassem”.FarmerinspirouomesmotipodedevoçãodespertadoporDeliaSmithnoReinoUnidodehoje.(“DigamoquequiseremsobreaDelia”,ouve-secomfrequência, “mas as receitas dela funcionam.”) É evidente que muitaspessoasachavamreconfortantesasmedidasniveladasdeFarmer,dadasasvendas colossais de seu livro (seus 360 mil exemplares a puseram nomesmopatamardeAcabanadoPaiTomás,quetinhavendidomaisde300mil exemplares nos meses seguintes à publicação). Desde que a pessoativessesuasxícarasmedidorasesuafacademesa,essaseramreceitasemqueelapodiaconfiar,eomaisadmirávelnumareceitadeFarmereraquese podia repeti-la vezes sem conta obtendo mais ou menos os mesmosresultados.Se hoje quereríamos os resultados de Farmer é outra história. Suas

preferênciasnãotiveramboaaceitaçãoaolongodotempo.Elagostavadecoisas como bolos de espaguete (massa cozida mole, reaquecida numaformadebolo comrecheiode salmão triturado) e abacate recheado comlaranja, decorado com trufas e molho de leite condensado. Isso nos fazlembrarocomentáriodeElizabethDavid:“Oqueseprecisasabersobreasreceitas não é tanto se elas funcionam, mas o que produzem quandofuncionam.”

PARTEDACONFIANÇAdeFannieFarmeremseusistemaproveiodeelaterrejeitadoprontamente as instruções arcaicas baseadas em analogias, queconstituíramquasetodaamediçãofeitanaculináriaatésuaépoca.Desdeos temposmedievais, os autoresde livrosde receitashaviam lidado comtermoscorrentes,comodedosdeáguaeporçõesdemanteigadotamanhodeumaervilha,umanozouumovo.Aanalogiamaisuniversalpareciasera

danoz.ParaFarmer,asmedidasemxícaraseramsuperioresaosdedinhoseàsnozesporseremmaisexatasemaisprecisas.Emmuitossentidos,elaestavacerta.Instruçõescomo“umaporçãodemanteigadotamanhodeumovo” levariammuitas pessoas racionais ao desespero. Hoje os fóruns deamantes da culinária na internet estão cheios de cozinheiros domésticosfrustrados,tentandoavaliarasdimensõesexatasdeumaporçãodemassadotamanhodeumanoz.Seráumacolherdesopa?Duas,talvez?Noentanto,durantecentenasdeanos,essascomparaçõesforamamoeda

correntedasmedidasnacozinha.OuçamosHannahWolley,autoradeTheQueen-LikeCloset,orRichCabinet,de1672,comumareceitade“panquecastãocrocantesquesepodecolocá-lasdepé”.Eisaíntegradareceita:“Façauma dúzia ou uma vintena delas, numa frigideira nãomaior do que umpires, depois ferva-as na gordura, e elas ficarão douradas como ouro emuito saborosas.” Isso nada tem a ver com uma receita nos termos deFannie Farmer.Wolley não nos diz como fazer amassa nem por quantotempo fritá-la. Qual é a temperatura da gordura? Quanto dela devemosusar?Quantaspanquecasdevemos“ferver”deumavez?Ecomodevemosescorrê-las?Amenosquevocêjáconfiassemuitoemsuaartedefazerpanquecas,não

chegaria a parte alguma comWolley.No entanto, supondoque já tivesseumalongaexperiênciaemprepararefritarmassas,trata-sedeumareceitainteressante. As imagens criativas – “não maior do que um pires” e“douradas como ouro” fariamperfeito sentido, se a pessoa já agisse comdesenvoltura na cozinha. O resultado final, com panquecas duplamentefritas,soainusitado,meioparecidocomumhíbridodepanquecaedonut–opesadelodoscardiologistas–,masédefatoútilparaquemquiserfazer“panquecastãocrocantesquesepodecolocá-lasdepé”.Antes do século XIX, quase todas as receitas lidavam com as medidas

comoWolley.Eramlembretesparaquemjátinhahabilidadenacozinha,enão instruções sobre comocozinhar.Emparte, épor issoqueas receitasantigassãotãodifíceisdereconstituir:nãofazemosideiadasquantidades,nãoconhecemosas regrasdo jogo.Vejaesta receitado romanoApício.Épara“outropurêdelegumes”:

Cozinheas folhasdealfacecomcebolaemáguagasosa,esprema[pararetiraraágua],cortebemfino;nopilão,soquepimenta,levístico,sementedeaipo,hortelãsecaecebola;acrescentecaldo,óleoevinho.

Semquererserindelicada,issosoarepulsivo:alfacecozidapastosacom

duasporçõesdecebola,umanocomeçoeoutranofim.Masasquantidadeseotempodecocçãopoderiamfazertodaadiferença.Olevístico,asementedeaipoeahortelãsecasãotemperospróximosdoanis:umapitadadecadaum poderia cair bem, mas uma colherada inteira seria um horror. Osdefensores da cozinha romana dizem que devia haver um equilíbriodelicadoentretodosossaboresativos,masnãohácomosabermosseelestêmrazão.ComparadoaessetipodereceitadeApício,quenãofornecequantidade

alguma,“umaporçãodemanteigadotamanhodeumanoz”foiumenormeavanço. Soa vago, mas não é, em termos relativos. Medir é sempre umaforma de comparação – entre o padrão fixo e a coisa que émedida. Nassociedades antigas, a mensuração começou, como seria natural, pelasdimensões do corpo humano. Os sumérios da Mesopotâmia inventaramunidades de comprimento baseadas em suas mãos: a largura do dedomínimo,alarguradamão,adistânciadapontadodedomínimoàpontadopolegar damão estendida. Amedida básica dos gregos era o dáktylos, alargura de um dedo: 24 dedos correspondem a um côvado. Os romanospegaramodáktylosgregoeotransformaramnumdígito.Na culinária, os cozinheiros faziam a mesma coisa. O dedo era uma

medidasemprepresente.Estavaliteralmenteàmão.“Peguequatrodedosdemarzipã”,dizMartinodeRossi,omaisrenomadocozinheirodoséculoXV.PellegrinoArtusi,obest-selleritalianodofimdoséculoXIX,iniciaumadesuasreceitasdemaneiraconvidativa:“Tomeabobrinhaslongasefinas,docomprimentodeumdedo.”Usarosdedosparamedirrefletiaanaturezatátil do trabalho culinário, no qual os dedos eramusados para cutucar acarne,darformaapratosdepastelariaesovarmassas.Se havia dedos, havia também punhados. Até hoje, muitos cozinheiros

irlandesesfazemosodabreaddusandopunhadosdefarinha,eserecusamaprepará-lo de outramaneira. Isso dá a impressão de não funcionar bem,visto que as mãos humanas variam muito em seu tamanho. Mas oimportanteéisto:amãodeumdadocozinheironãovarianunca.Ométododos punhados pode não funcionar como medida absoluta, mas funcionamuito bem segundo o princípio da razão matemática. A razão é umaproporção fixa de algo em relação a outra coisa.Desdeque a pessoauseapenas a mesma de suas mãos para pegar a farinha e os outrosingredientes,asproporçõesserãoconstanteseopãocrescerá.Algunsnutricionistasdehojeaindausamamãohumanacomounidade

medidoradeporções:aporçãodeproteínarecomendávelparaumadulto

podeserapalmadamãodele(semosdedos);paraumacriança,aporçãoseria a palma damão infantil. Emmuitos aspectos, as razões funcionammelhor na culinária do que as medidas absolutas, porque é possíveladaptar a receita ao número de pessoas para quem se cozinha. MichaelRuhlman, que escreve sobre culinária, produziu recentemente um livrointeiro baseado no princípio da proporção, argumentando que conheceruma proporção culinária “não é como saber uma única receita, e simconhecerdeimediatomildelas”.AproporçãodeRuhlmanparaopão,porexemplo,sãocincopartesdefarinhadetrigoparatrêsdeágua,somadasaofermento e ao sal, porém essa fórmula básica pode ser adaptada para setransformarempizza,ciabattaoupãodeforma,ouaumentadadeumpãoparamuitos.Diferentementedosirlandesescomseusodabread,Ruhlmanconstróisuasproporçõesapartirdepesosprecisos,nãodepunhados,masaideiaéamesma.Depoisde esgotaremaspossibilidadesdemediçãodamãohumana, os

cozinheirosvoltaram-separaoutrosobjetosfamiliares.Entreeles,anozsedestacaporsuaubiquidade.O“tamanhodeumanoz”temsidousadoporcozinheiros de locais tão variados quando a Rússia e o Afeganistão; aInglaterra, a Itália e a França; e os Estados Unidos. Essa comparação éusada pelo menos desde os tempos medievais. É aplicada a cenouras,açúcar, bolinhos fritos de parmesão, massa de biscoitos, pasta frita denozese,acimadetudo,àmanteiga.Oquelevouanozasertãovalorizadacomounidadedemedida?Sevocêseimaginarsegurandoumanozinteira,comcasca,napalmada

mão,ovalordelaficarámaisclaro.Talcomoosdedos,anozeraumobjetofamiliar; quase todosdeviamconhecer suaaparência.Atéhoje, amaioriadaspessoasécapazdecalcularcombastanteexatidãootamanhodeumanoz,mesmoquesóavejamosumavezporano,noNatal.Aocontráriodasmaçãsoudasperas,quetêmmuitasformasetamanhos,asnozessãomaisou menos uniformes. É verdade que existem variedades estranhamentemiúdas,emespecialanoixnoisettefrancesa,quenãopassadasdimensõesde uma avelã. Em geral, porém, quando falamos em nozes, fazemosreferênciaaofrutodaJuglansregia,queeracultivadanaGréciaantiga,paraondefoiimportadadaPérsia.Noanode400d.C.,elahaviachegadoàChina.Constituiu uma cultura importante na Françamedieval, embora só tenhachegadoàInglaterranoséculoXV.OquehádeesplêndidonanozdaPérsia,aforaosaborforteeoleosoeapolpadelicada,deformatosemelhanteaodeumcérebro,éaconstânciadotamanho.Osfrutosdanogueiranãovariam

muitoentre2,5e3,5 centímetrosdediâmetro,oquedáumaquantidadeconveniente. Pense numa noz sobre uma colher. Agora, imagine a noztransformadaemmanteiga.Éumaquantidadedecente,nãoacha?Anozéum poucomais que um pouquinho e um poucomenos que ummontão,assimcomoumacolherada.Eminúmerasreceitasquelevammanteiga,umanozérealmenteaconta

certa.Em1823,MaryEatonusavaumpedaçodemanteiga“dotamanhodeuma noz” para refogar espinafre. A sra. Beeton, em 1861, recomendavaumanozdemanteigaparagrelharbifesdealcatra.TalvezFannieFarmerprotestasse:comovousaberseaminhamanteigatemmesmootamanhodeumanoz?Todavia,quantomaisapessoasesenteconfiantenacozinha,menos se preocupa com essas coisas. “Uma porção de manteiga dotamanhodeumanoz”refletearealidadeagradáveldeque,namaioriadasformas de preparo de alimentos – com a exceção parcial das receitas depadaria–,um tiquinhoamaisouamenosdequalquer ingredientenãoéumproblemacrucial.Entretanto, uma noz nem sempre era o tamanho necessário, e os

cozinheirosdesenvolveramtodoumvocabuláriodemedidasbaseadasemoutrosobjetosconhecidos.Asanalogiasescolhidasdependiamdaépocaedo lugar. Ervilhas eram comuns, assim como a noz-moscada, esta pararepresentar uma quantidademais oumenos na faixa da nossa colher dechá. Alguns cozinheiros do século XVII escreviam referindo-se a cápsulasdebalasebolasdetênis.Moedaseramoutropontodereferênciaútil,desdeos xelins e as coroasda Inglaterra até aspanquecas “dólardeprata”dosEstadosUnidos.Essasmedidasporanalogiadãoa impressãodeuma janelaparaavida

domésticadopassado.Revelamummundodaimaginaçãocompartilhado,noqualnozes-moscadas,cápsulasdebalas,moedasebolasdetêniseramtodosdeusocorrente.Essasquantidadespodemnãoser“científicas”,masrefletem uma grande consideração por parte do autor das receitas, natentativadetraduzirseuspratosemtermosqueoutraspessoaspudessemcompreender.ElenaMolokhovets foiumagrandecozinheira russado fimdo século XIX, e suas receitas são repletas dessasmedidas comparativas.Quandoabriaamassacomorolo,podiadar-lheaespessuradeumdedooudedoisrublosdeprata.Molokhovetscortavaumdedaldegengibre,massadotamanhodeumamaçãsilvestreeporçõesdemanteiga–comonão?–dotamanhodeumanoz.Até hoje confiamos em imagens compartilhadas de medidas. Quando

cortamos legumes “em cubos”, estamos recorrendo a cozinheiros comoRobertMay,quecortavaotutanobovinoem“cubosgrandes”eastâmarasem “cubinhos”. Quando Jamie Oliver nos diz de que tamanho moldar acarnemoídaparafazerumhambúrgueremcasa,elepodenãoevocarnozesnemmaçãs silvestres,mas nos diz para pegar punhados do tamanho deumaboladecríquete.

A QUANTIDADE É SÓ o começo. As duas coisas mais difíceis de quantificar nacozinhasãootempoeocalor.“Estendaamãoesquerda”,disse-meochefcanadenseJohnCadieux,num

tomdequemestáacostumadoaserobedecido.Estávamossentadosaumamesa tenuemente iluminada da filial do Goodman, um restauranteespecializadoemcarnes,nocentrofinanceirodeLondres,pertodoBancoCentraldaInglaterra.Cadieuxéochefexecutivodolugar.Conversávamossobrecarnes.“Agora,useoseuindicadordamãodireita.”Eelememostroucomo usar o indicador direito para tocar a palma da mão esquerda, naparte carnuda abaixo do polegar. “É essa a sensação de um filémalpassado”, disse Cadieux. Meu dedo afundou na carne mole: pareciacarnecrua,ondeascoisasnãoquicam.“Agora,junteoindicadoreopolegaresquerdosevolteatocarnapalmadamãoesquerda:esseéoaopontoparamalpassado.Acrescenteodedomédio–aoponto.Oanular–aopontoparabem-passado.Porúltimo,odedomínimo–esseéobem-passado.”Fiqueisinceramente admirada ao ver como a carne abaixo do polegar iaendurecendoacadadedoacrescentado,comoumfilésendopreparadonafrigideira.Cadieux,umhomemdecabeçaraspada,alipelacasadostrintaanos,quetrabalhahámaisdeseteemrestaurantesdeluxoespecializadosem carnes, reclinou-se na cadeira e sorriu. “Isto é um velho truque doschefs”,disse.O restaurante temaúltimapalavraem forno-grelhaa carvão (sãodois

deles,a13mil librascada),várioscronômetrosdigitais,enfileiradosparalidar com o fluxo contínuo de pedidos diferentes, e os melhorestermômetros de carne que se pode comprar. Cadieux insiste em treinarseuschefsporummínimodeduassemanas(sejaqualforaformaçãoquejátiverem)antesdepermitirquepreparemumacarne.Elestêmdedecoraras temperaturas exatas necessárias para cada corte e cada pedido. Noentanto, Cadieux aplica padrões diferentes a si mesmo. “Não gosto determômetros”,diz.“Souumromântico.”Elejápreparoutantosmilharesdefilésqueécapazdedizerseacarneestáprontasópeloespetoepelotoque.

Tudo isso vai muito bem, até o momento em que Cadieux precisatransmitir seus conhecimentos superiores a seus aprendizes.Nessa hora,ele supera a antipatia pelos termômetros. Ainda que, pessoalmente, nãonecessite de aparelhos medidores, exige que seus sous-chefs os utilizemcomomuletasatédesenvolveremoconhecimentointuitivodeummestre.Para o mestre-cuca medieval, essa questão de transmitir habilidadesculinárias era muito mais difícil. Ele devia ter o mesmo conhecimentoprático da culinária que tem Cadieux, mas nenhum termômetro nemcronômetrosdigitaisaquerecorrer.Comoéquesesabiaquandoumpratoestavapronto?Apenassabia-se–oquenãoajudavaaexplicarosprincípiosa alguém que não “apenas soubesse”. Para fazê-lo, precisava-se de umasérie de códigos que funcionassem como traduções. Por sorte, omestre-cucamedieval dispunha demuitomais que as duas semanas de Cadieuxpara transmitir os detalhes sutis da mensuração a seus aprendizes, amaioria dos quais começava a trabalhar na infância, observando eabsorvendoossegredosdocálculodotempoaolongodemuitosanos.Os cozinheiros sempre precisarammedir o tempo, de ummodo ou de

outro.Orelógiodecozinha,quetiquetaqueiabaixinhonaparede,éumdosrecursos tecnológicos menos reconhecidos, porém mais vitais. Ninguémparece saber quando ele entrou nesse espaço pela primeira vez, emboracomcertezajáhouvessechegadoaelenoséculoXVIII.Éfácilsabermosqueos relógiosde cozinhanãoeramanormana IdadeMédiaeno iníciodostemposmodernospelonúmerode receitasque indicamo temponão emminutos,masemorações.Umareceitamedievalfrancesadeumaconservadenozes recomendaque elas sejam fervidas pelo temponecessário paradizerum“Miserere”(“Temcompaixãodemim,óDeus,pela tuabondade;pelatuagrandemisericórdia,apagaomeupecado…”)–aproximadamentedoisminutos.Amedidadetempomaiscurtaeraa“ave-maria”,commaisoumenos vinte segundos. Poderíamos dizer que tais receitas refletiam ofatodeaFrançamedievalserumasociedadeemqueareligiãopermeavatudo. Mas essa marcação do tempo pela oração tinha uma base muitoprática, numa época em que os relógios eram raros e dispendiosos. Talcomo a porção de manteiga do tamanho de uma noz, essa marcação dotempo dependia de conhecimentos comuns. Visto que as orações eramfeitasemvozaltanasigrejas,todosconheciamoritmocomumemqueelaseramentoadas.Sepedíssemosaalguémpara“ferveremexeromolhopelotempo necessário para rezar três credos”, ou para “cozinhar o caldo emfogobrandodurante trêspai-nossos”,elesaberiaoque issosignificava.E

assim,longedeseralgodooutromundo,tratava-sedeumainstruçãomaissensata do que alguns exemplos mais laicos de receitas escritas, como“deixeaspartículassólidasseprecipitaremnamisturapelotempoqueumapessoalevariaparacaminharduasléguas”.Ousodeoraçõescomorecursosparamarcaro tempofezpartedosmuitosséculosemqueoscozinheirostinhamqueusardeextremaengenhosidadeevigilânciaparagarantirqueumarefeiçãosaíssebem-feita:cozida,masnãoqueimada.Se o tempo eramedidopela oração, o calor eramedidopela dor. Para

testar a temperatura de um forno, punha-se amão dentro dele. Ainda éassimqueospadeirosfazem,emmuitaspartesdaEuroparural.Osujeitopunha amãono forno e, pelo nível dedor, avaliava se ele estavaprontoparaassarpão–oqueexigeumatemperaturaelevadíssima.Aumpassodissoficavaotestedopapel,muitousadopelosconfeiteiros

doséculoXIX.Aqui,aideianãoeraavaliarocalormaisintensoaoseatiçarofogo,masasgradaçõessutisdatemperaturamaisbaixa,àmedidaqueoforno ia esfriando, adequada para assar bolos e pastelaria em geral, cujoaltoteordemanteigaeaçúcarostornavamuitomaispassíveisdequeimardoqueopão.Cadatemperaturaeradefinidapelacordeumaamostradepapeldelinhobrancopostanabasedoforno.Primeiro,eraprecisopôrumpedaçodessepapelnofornoefecharaporta.Seelepegassefogo,ofornoestava quente demais. Passados dezminutos, introduzia-se outro pedaçodepapel.Seficassechamuscado,semqueimar,ofornoaindaestavamuitoquente.Apósmaisdezminutos,entravaumterceiropedaço.Seficassenumtom castanho-escuro, sem pegar fogo, estava na temperatura certa paraassarempadaspequenasaumatemperaturaalta:chamava-seaisso“calordopapelcastanho-escuro”.JulesGouffé, chefdo JockeyClubdeParisapartirde1867,explicouos

outros tipos de calor e seus usos. Alguns graus abaixo do calor do papelcastanho-escuro ficava o “calor do papel castanho-claro, adequado paraassarvol-au-vents,tortasrecheadas,empadõesetc.”.Aseguirvinhao“caloramarelo-escuro”–umatemperaturamoderada,boaparaospratosmaioresdepastelaria.Porfim,haviaosuave“calordopapelamarelo-claro”,que,nodizerdeGouffé, era “adequadoparaassarmanqués,génoisese e suspiros”.Umavariação era o teste da farinhade trigo, que era igual,mas comumpunhado de farinha lançado na base do forno: contavam-se quarentasegundose,seafarinhadourasselentamente,atemperaturaeraadequadaparaassarpão.Todas essas idas e vindas foram eliminadas de uma só vez quando o

termostato integrado ao forno tornou-se corriqueiro no século XX. Otermostatoéumdessesexemplosdeumatecnologiaquedáaimpressãodequedeveria terentradonacozinhamuitoantesdoqueaconteceu.Váriostermômetrosforamdesenvolvidosporcientistas–inclusiveporGalileu–jádesdeoséculoXVI,quasetodosparamediratemperaturadoar.Em1724,Fahrenheit produziu sua escala de temperaturas e, em 1742, Celsiusproduziu sua escala rival (que ia dopontode congelamento aopontodeebuliçãodaágua).Acozinhaéumlugarondesefervemuitaáguaeondeogeloderrete,mas,durantecentenasdeanos,ninguémpensouemusarumtermômetropara indagar aque temperatura convinhaassarumbolo.Nadécadade1870,aspessoasfalavamrotineiramentedoclimareferindo-seatermômetros–em1876,jogadoresinglesesdecríquetejogaramnum“diaescaldantedejulho”emque“otermômetroexpostoaosolmarcacercade110 graus [43°C]”, escreveu oNewYorkTimes –, porém, ao entrarem nacozinha,elasaindasesatisfaziamcomo“caloramarelo-escuro”e“amarelo-claro”.Por fim, mais ou menos na virada do século XX, os cozinheiros

começaram a perceber que os termômetros poderiam ser muito úteis,afinal. Um novo forno norte-americano, chamado “nova Casa Branca”,anunciou-se equipado com um termômetro para forno, que era incluído“paraficarmos…atualizadosatéoúltimominuto”.Oprimeirofogãoagásinteiramenteintegradoecomtermostatofoicomercializadoem1915e,nadécada de 1920, produziram-se fogões elétricos com termostatoseletromecânicos.Omais fácil,porém,paraquemjápossuíaumfogão,eracomprarumtermômetroindividualparafornoemandarinstalá-loemseufogão.Umdosprimeiroslivrosdereceitasescritosdepoisqueessesmodernos

termômetros para forno entraram no mercado foi Mrs. Rorer’s NewCookbook, de Sarah Tyson Rorer, lançado em 1902. A sra. Rorer eradiretora da Escola de Culinária da Filadélfia e tinha vinte anos deexperiência ensinando a cozinhar. Ela se mostrou nada menos queextasiada ao dar as boas-vindas a esse novo utensílio. Por apenas 2,50dólares,escreveu,ostermômetros“livramapessoadetodaaansiedadeeda adivinhação”. Um toque de piedade próprio dos primeiros adeptosinsinua-se em sua voz, quando ela escreve sobre os que vivem “semtermômetro” e têm que “adivinhar o calor do forno (um métodoextremamente insatisfatório)”. Rorer fornecia todas as suas receitas emgraus Fahrenheit (embora também oferecesse um sistema de conversão

paragrausCelsius).Énítido,adoravaseunovobrinquedoeaprecisãoqueele parecia garantir. Enfiava seu termômetro no pão recém-assado e nacarne cozida (“introduza um termômetro no centro da carne e, para suasurpresa, ele não marcará mais que 170°F [77°C].”). Rorer gostava deostras fritas, um autêntico prato tradicional da Filadélfia. Agora podiaabandonarorecursodepôrumcubodepãonagorduraquentedafrituraeesperarparaveremquantotempoeledourava.Otermômetrolhediziadeimediatoseagordurajáestavaquenteosuficiente.Maisdoquetudo,Rorerousavaparamedira temperaturado forno.Comanovapossibilidadedemandar instalar um termômetro em qualquer tipo de “fogão moderno”,fosseeleagás,carvãooulenha,ocozinheirolivrava-sedanecessidadedeficarparado,observando,efazer“tentativasinsatisfatóriasdedeterminarocalorexatodoforno”.Todaessaantigapreocupaçãohaviaacabado,porquea responsabilidade por calcular o que significava “um forno moderado,moderadamentefriooumoderadamentealto”foraretiradadosombrosdoatormentadocozinheiro.Comonovotermômetro,essaafliçãoeracoisadopassado.

Umabatataassaemtrêsquartosdehora,àtemperaturade300°F[150°C];endureceaparteexterna e quase queima em vinte minutos, à temperatura de 400°F [205°C], e, se o fornoestiveraapenas220°F[105°C],elalevarádeumahoraequinzeminutosaumahoraemeiaparaassar.

Apreocupaçãohaviaacabadoporque–comoaconteciacomasmedidasde Fannie Farmer em xícaras –, qualquer necessidade de julgamentoindividualtambémhaviadesaparecido.Nãoeraprecisoespremerosolhospara um pedaço de papel, para saber se ele estava mais próximo doamarelooudomarrom.Bastava seguiro sistemae tudo ficariabem–aomenospelospadrõesdealgumaspessoas.

EXAMINANDOFOGÕES,nossojácitadoNathanMyhrvold,autordeModernistCuisine,constatou que o termostato de “quase todos os fornos tradicionais estásimplesmenteerrado”.Amargemdeerrodotermostatomédioeratãoaltaquedavauma falsa impressãode segurança: o botãoda temperatura emquedepositávamosanossaconfiançanãoeraumreflexoverdadeirodoquesepassavanointeriordoforno.Myhrvoldchamouotermostatoparafornodetecnologia“decepcionante”.Paracomeçar,ostermostatosmediamapenasocalorseco,semlevarem

conta a umidade. Sabemos que o teor de umidade do forno afetaenormementeomododecozimentodacomida,determinandoseelaserá

tostada, cozida no vapor ou assada e, nesse caso, em quanto tempo. Noentanto,oscozinheiros–atéMyhrvold–rarasvezespensavamemmediraumidade: o termo técnico é temperatura de bulbo úmido. O termostatoparafornonãoconseguiamediremquantotempoopreparodeumpernildecordeiroeraafetadoporumcopodevinhoderramadonotabuleiro,nemaquepontoacascadopãoeraamaciadaporumcopodeágua jogadonabaseescaldantedoforno.Esse era o primeiro problema. Um inconveniente maior era que a

maioriados termostatosdomésticosnem sequermedia o calor seco commuita exatidão. O termostato baseava sua leitura numa sonda sensoracheiadelíquido–semelhanteaosvelhostermômetrosdemercúriousadospelos médicos de antigamente. A localização do sensor podia deturparnossa impressão do calor real do forno. Os sensores com queMyhrvoldmaisantipatizavaeramossituados“atrásdasparedesdoforno”,asquaispodiamterumatemperaturamuitomaisbaixaqueadocorpocentraldofogão;eramelhorqueosensorseprojetasseparaointeriordacavidadedoforno, se bem que nem isso fosse perfeito, porque, quanto mais longeestivesse a comida do sensor, menor a probabilidade de que este fosseexato.Myhrvoldconstatouqueos termostatoserravama temperaturadebulbosecodosfornosdomésticospor“até14°C/25°F”,oquepodiafazeradiferença entre o sucesso e o fracasso de uma receita. Todo forno tinhaseuspontosquentes.A resposta era calibraropróprio forno: colocarumtermômetro para forno em diferentes pontos deste, durante oaquecimento, anotar as temperaturas verdadeiras e proceder de acordocomelas.Fornostemperamentaissãoumarealidadedavida.Depoisqueapessoa

aprendequeseu fornoesquentademaisounãoesquentaosuficiente,elapodegirarobotãoreguladorparacimaouparabaixo,comoquemafinauminstrumento musical. Mas esse tipo de ajuste improvisado não seriaaceitávelnacozinhamodernistadosrestaurantesdocomeçodoséculoXXI,que atribui grande valor a instrumentos de medida fantasticamenteprecisos e exatos. Os chefs que cozinham no estilo de Ferran Adrià, doagora fechado elBulli, na Espanha, precisam poder pesar quantidadesmuito grandes (até 4 quilos) e quantidadesmuito pequenas (na faixa de0,01grama),comomesmograudeexatidão,vezapósoutra.Amaioriadasbalanças de cozinha, inclusive as digitais, fica aquém desses padrões deexigência.Asoluçãoéternãouma,porémduasbalanças,ambasdepadrãolaboratorial,umaparaasquantidadesgrandes,outraparaaspequenas.

O peso e a temperatura não são, de modo algum, as únicas coisasmedidas na cozinha modernista. Esses cozinheiros de alta tecnologiaparecem exploradores mapeando novas terras culinárias. Queremquantificar tudo, desde o calor ou ardência dos tipos de pimenta(mensurávelpelaescaladeScoville)atéofriodosfreezersdetemperaturabaixíssimaqueelespreferem.Quandoqueremtestaraacidezdeumpurêdefrutas,elesnãousamalíngua,massacamummedidoreletrônicodepH,capazdefornecerumaleiturainstantâneaeexatadaacidezoualcalinidadedequalquerlíquido.Paramediroteordeaçúcarnumamisturaparasorbet,eles usam o refratômetro, um aparelho que reage àmaneira como a luzmuda de direção ao atravessar determinado material. Ela fica mais oumenosoblíqua conformeadensidadedeumdado líquido,oque,por suavez, informa quão doce está um xarope (quanto mais doce, maior adensidade). Esse é um avanço tecnológico em relação aos antigossacarômetrosusadospeloscervejeirosefabricantesdesorveteapartirdoséculoXVIII,queconsistianumbulbodevidrograduadoquemediaoteorde açúcar com base no princípio da flutuação (quantomais alto o bulboflutuava,maisdoceasubstância).Antesdisso,osprodutoresdehidromeljogavamumovocomcascanolíquidoaçucaradopelomel;seeleflutuasse,olíquidoestavadoceobastante.Os chefs de hojemedem coisas que ninguém nunca tinha pensado em

medir,comooteorexatodeáguadequeumabatatanecessitaparaquesefaçam batatas fritas ideais. Heston Blumenthal, o chef visionário do FatDuck,emBerkshire,noReinoUnido,orgulha-sedesuasfritastriplamentepreparadas(primeirocozidasnaágua,depoiscozidasavácuoembanhodeimersãoe,porfim,fritasemóleodeamendoim);provei-asapenasumaveze, de fato, era incrível como eram crocantes. Ele descobriu que as fritasperfeitas, “consistentemente crocantes”, só podem ser feitas com batatascomumteordematériasecadecercade22,5%. “Oproblema”,observouBlumenthal, “é que não há maneira simples de olhar para uma batata esaber quanta água ela contém”. A resposta é uma balança especial de“matériaseca”,quedeterminaoteordeáguadeumapequenaamostradebatata crua, pesando-a e cozinhando-a ao mesmo tempo. No fim, elaregistra a diferença de peso entre a batata cozida e a crua – em outraspalavras,medequantaáguaevaporou.Mediçõesdessetiposemdúvidaajudamoschefsprofissionaisaobterem

resultadosconfiáveis.Blumenthalsabequesuasbatatasfritastriplamentepreparadas sempre serão idênticas grosso modo. Mas não tenho tanta

certeza de que a ultraprecisão seja o que o cozinheiro domésticomédiobusca.Deiumaespiadanareceitade“areia”deHestonBlumenthal,quefazparte da receita de algo que ele chama de “Som do mar”. Ela pede 10gramasdeóleodesementedeuva,20gramasdeshirasu(filhotedeenguiasouanchovas),2gramasdepurpurinacomestívelazul,3,5gramasdepódecarvãovegetalmarrome140gramasde“óleoreservadodemissô”,alémdevárias outras coisas intrigantes. Depois de medirmos esses ingredientespeculiaresemnossasbalançasdelaboratório,devemossalteá-losemoê-losatéquesetransformemnumaespéciedeareiasaborosa.Todaareceitaéprofundamenteintimidante.Mesmoqueeupossuíssepódecarvãovegetalmarrom–e,pobredemim,

vasculhei em vão os meus armários de cozinha –, não disponho datecnologia nem da paciência para pesar 3,5 gramas desse treco. Isso éculinária comomatemática pura: tudo é quantificado, nada é deixado aoacaso,nãoháespaçoparaavariaçãonemparaojulgamento.Parachefsderestaurante que querem produzir repetidas vezes o mesmo resultado –amiúdeespetacular–,oestilodeBlumenthalfazsentido.Eleéomestredacomidacomoteatro,eaencenaçãosófuncionaquandotudoestáperfeito.Os imperativos da cozinha doméstica são diferentes. Preferimos terflexibilidadeaterumcontroleabsoluto.Eseeuquisessesubstituirapurpurinacomestívelazulporoutracoisa

(ou,depreferência,excluí-laporcompleto)?Eseomeushirasutivesseumgosto mais salgado que o do Blumenthal? É inútil perguntar. Não tenhonadacomquecompararessareceitae,portanto,nãotenhocomosaberseecomo ela poderia ser adaptada. Essa hipermensuração faz o cozinheiromédio sentir-se perdido num mar de números. Talvez as medições deBlumenthal sejam exatas, precisas e consistentes, mas ninguém podeacusá-las de serem fáceis. E nem pretendem sê-lo, aliás. Destinam-se achefs como ele, cuja ambição é levar a comida a novas e extraordináriasdireções.CompareecontrasteissocomasvelhaseconfiáveismedidasdeFannie

Farmeremxícaras.Apesardetodososseusdefeitos–e,comovimos,elessão muitos –, há nelas uma enorme virtude. Para quem aprendeu acozinhar usando xícaras, elas transmitem uma sensação de serenacompetência.Podemnãoterumaltograudeprecisãoouconsistência,massão maravilhosamente fáceis. Quando alguém lhe pede para medir trêsxícaras de farinha de trigo, você pensa: sim, eu sei fazer isso. Encher enivelar,encherenivelar,um,dois,três.Medircomxícarasrequertãopouca

especializaçãoquepodeserfeitoporumacriançaquemaltenhaaprendidoacontar,enumacozinhacomomaisínfimoequipamento.FannieFarmercomeçouacozinharmuitotarde,epor issose lembrava

daperplexidadeque sentiana cozinha.Ela encontrou segurançaemsuasxícarasdemedidaniveladas,eatransmitiucalorosamenteaseusleitores.As receitas de Blumenthal visam causar pasmo, confundir, até enojar.Farmer tinha a esperança de que suas instruções “fizessemmuitos olhosbrilharem”. Para os milhares de leitores que compraram seu livro, lerFannie Farmer era como ter uma ruiva afável,mas firme, segurando suamão enquanto eles cozinhavam, cochichando: siga-me que vai dar certo.Suas medidas em xícaras podiam não proporcionar a exatidão queprometiam,mas ela compreendeu algo que tem amesma importância: atecnologiadospesosedasmedidasnacozinhaprecisaadaptar-seàpessoaque fazamensuração.Amaioriadoschefseautoresde livrosdereceitascozinha há tanto tempo que se esquece do que é entrar em pânico porcausadamaissimplesreceita.Em2011,aTilda,umadasmarcasmaisconhecidasdearroz,organizou

um grupo de amostragem no Reino Unido, com cerca de quinhentaspessoas, para examinar os fatores que inibem o público britânico decomprar arroz. Constatou-se que muitas casas não possuíam balança decozinha.Mesmoquandoatinham,haviaumpavorgeneralizadodeerrarasmedidas:de superestimaraporçãodearroz,oude cozinhá-lopor tempodemais. Para muitas pessoas, como revelou o grupo, esse pavor erasuficientepara impedirqueelascomprassematémesmoomenorpacotede meio quilo de arroz no supermercado: o risco de fracasso era altodemais. Isso marcou um contraste gritante com os consumidores dascomunidadesasiáticasdoReinoUnido,quecompramseuarrozbasmatiemsacos de vinte quilos nos hipermercados e o preparam com serenaconfiança,usandoopolegarparamediraquantidadecertadeáguaacadapreparo, comoantes faziamsuasmãese avós.Eles colocamopolegarnabasedapanela emedemo arroz lavado até a articulaçãodopolegar; emseguida,apoiamapontadopolegarnoarrozecolocamaágua,denovoatéaalturadaarticulação.Assim,ficafácilcozinharumarrozfofopelométododeabsorção.Atecnologiausadanessecasoéopuroconhecimento.Todostemospolegares;oquenosfaltaéaconfiançaparausá-los.Afaltadeconfiançatambémexplicaaexistênciadamaisestranhacolher

medidora que já vi. Em vez de colheres de sopa ou de chá, a receitaespecifica coisas como uma pitada e uma gota. Nós que ficamos

razoavelmenteàvontadediantedofogãotalvezpresumíssemosquenãosepode atribuir uma quantidade exata a uma gota. Estaríamos enganados.Agora,todosessestermostêmdefiniçõestécnicas(desdeoiníciodosanos2000,quandoessetipodecolherdemedidacomeçouaserfabricado):umapitadaequivalea1⁄16decolherdechá(0,313mililitros)eumagotasão1⁄72decolherdechá(0,069mililitros),porexemplo.Ficaclaroqueexisteummercadoparapessoasquenão sossegarão enquantonãopuderemmedircada pitada de sal, mesmo que, do ponto de vista de um cozinheiroexperiente,aideiademedirumasimplesgotapareçaumexagero.

ASATITUDESPERANTEamensuraçãonacozinhatendemaserpolarizadas.Porumlado, existem os espíritos criativos que afirmam nunca pesar nemmedirnada.Sevocêpedirumareceitaaumadessaspessoas,elalhedirá,comardescontraído: “Ah, eu nunca leio livros de receitas”; e quando chegam aconsultarumareceita,elasdesrespeitamalegrementeasquantidades.Cadarefeiçãoquepreparamépurainvenção,puroinstinto:cozinharéumaartee não pode reduzir-se a números. No extremo oposto do espectroencontram-se os que querem atribuir a tudo umnúmero exato. Veem asreceitascomofórmulasrigorosas,comasquaisnãosedevebrincar.Seumareceitapede325mililitrosdecremedeleitefrescoeaembalagemcontémapenas 300 mililitros, essas pessoas saem para comprar uma segundaembalagem, aflitas, para cobrir a diferença. Se uma receita diz estragão,elasnemsonhariamsubstituí-loporcerefólio.Essesegundogrupoémaispropensoaacharqueaquiloquefazécientífico,poisaideiaéque,quantomaispudermosfazermediçõeseexplicitaraculináriacomclareza,maiselaseassemelharáaumaciência.Éprovávelqueosdoisgruposseiludam.Oscozinheirosartísticosusam

muitomaismedidasdoqueadmitem.Eosquecozinhampornúmerossãomuitomenoscientíficosdoquegostariam.Cozinharpornúmerosbaseia-senum mal-entendido sutil a respeito do que seria o método científico. Avisão popular de “ciência” é de fórmulas inflexíveis e de um conjunto derespostas definitivas. De acordo com essa interpretação, a culináriacientíficaseriacapazdeencontrar,digamos,afórmuladefinitivadomolhobechamel: quantos gramas de farinha de trigo e de manteiga, quantoscentímetros cúbicos de leite, a temperatura exata em que ele deve sercozido,odiâmetrodapanela,onúmeroexatodesegundosparacozinhá-loem fogo brando e o número de revoluções que o batedor deve fazerduranteacocção.Oproblemadessafórmula–àparteofatodequeelanãodámargemaoimproviso,queémetadedoprazerdecozinhar–éque,por

maior que seja o número de fatores que consigamos explicitar, surgemoutrosquenãopensamosemmedir,ouquefogemaonossocontrole:ondefoiproduzidaafarinhadetrigoequeidadeelatem;qualéatemperaturaambientedacozinha;segostamosmesmodebechamel.Muitas vezes, com todo esse foco nos números, as coisas efetivamente

importantes passam despercebidas. Consideremos o uso de certoscondimentos: é notável a frequência com que cozinheiros e chefs queaderemvivamenteaosnúmerosnão indicamaquantidadedesaldeumareceita. Em Modernist Cuisine, Nathan Myhrvold pesa tudo, grama porgrama,atémesmoaágua,masrecomendaqueosalseja“agosto”.HestonBlumenthalmedeoteordematériasecadesuasbatatas,masnãomedeosaleapimentadopurêdebatatasqueéumadesuasmarcasregistradas.Issoreforçaaideiadequenenhumafórmulapodeserdefinitivanacozinha.Ométodocientíficoémuitomaisabertodoquesecostumaadmitir.Não

é um conjunto dogmático de números, mas um processo de formação everificação de conjecturas baseadas nos resultados de experimentoscontrolados, que propõem novas conjecturas. O processo de preparar ojantar todas as noites certamente pode ser entendidopor esse prisma.Aminha experiênciame diz que limão-siciliano e queijo parmesão têmumsabordeliciosojuntos,emespecialnummolhodemacarrão.Issomelevaaconjecturarqueolimãocomumeoparmesãotambémpoderiamcombinar.Façooteste,umanoite,jogandoraspasdelimãonumtagliatellecomazeitede oliva, manjericão e queijo parmesão. Jantamos. Ninguém pede pararepetir.Minha conclusão provisória é que não, limão e parmesão não sebeneficiam um do outro, mas é preciso trabalhar mais para eliminar apossibilidadedequeoelementoculpadotenhasidooazeite.Algumasdaspalavrasmaissensatasquejáseescreveramsobrepesose

medidasna cozinhaencontram-seemTheZuniCaféCookbook (2002), dachefcalifornianaJudyRodgers,comumaabordagemartísticadaculinária–sua marca registrada é uma salada de pão e frango feita com um pãorústico, picado em pedaços variegados – e muito precisa: ela nos dizexatamentecomotemperarofrangoe(semchegarausarumamedidadopH) indica as proporções do vinagrete ácido que lhe serve de molho.Rodgerssugereemtomdelicadoque,quandooscozinheirosprofissionaisdizem que “nunca medem nada”, bem, “francamente, essa não é toda averdade”:“Podemosnãousarumutensílioparamedirosingredientesnemolharparaumpedaçodepapel,masmedimoscomosolhosepesamoscomasmãos, e vasculhamos as lembranças de experiências anteriores com a

culinária para encontrar o roteiro não escrito da experiência atual.” Osnúmerosconcretostêmseulugarnacozinha,insisteRodgers,emespecialpara as pessoas inexperientes. São “pontos de referência” que oferecem,“nomínimo, uma ideia de escala e uma concepção da escala relativa dosdiferentes ingredientes, temperaturas emedidas de tempo”. Ao fazer umprato pela primeira vez, talvez precisemos seguir bem de perto osnúmeros, que podem ajudar a “abreviar o processo de aprendizagemromântico, porém muito demorado, que poderíamos caracterizar como“adivinhar, sentir, errar, quebrar a cabeça, tentar de novo e procurarlembraroquefoifeitoantes”.Nasegundaouterceiravez,osnúmerossãomenos importantes, porque a pessoa começa a confiar em seus sentidos.Afinal, comenta Rodgers, ninguém precisa medir “a quantidade exata deaçúcar ou leite que costuma pôr no café ou no chá”. Os números sãocruciais,portanto,masnuncasãoahistóriatoda.Existeummundointeirofora das medições na cozinha. Parte do método científico consiste emaceitarquenemtudoestádentrodocampodaciência.Gostomuitodosmeusutensíliosdemedida–háumaalegriaserenaem

examinaraquele clássico copomedidordepirex,na tentativadever seocaldoparao arrozpilafe chegou àmarcados600mililitros, ou emver omostradorgirarnumtermômetroparacaldas,aofazercaldadecaramelo,ou em usar uma trena para conferir o diâmetro da massa dos biscotti.ChegoatéautilizarmeuiPhonecomocronômetrodecozinha.Aindaassim,nemtudopodereduzir-seamedidas.Muitascoisasimportantesnacozinhavão além delas: quanto gostamos da companhia das pessoas com quemfazemosumarefeição,asatisfaçãodeusaraquelaúltimacasquinhadepãoantesqueelamofe,osabordeumalaranjasanguíneaitalianaemfevereiro,oprazerdasopafriadepepinonumanoitequenteeasensaçãodeterbomapetiteeosmeiosparasatisfazê-lo.

TEMPORIZADORESDEOVOS

Por que criar um temporizador de ovos, e não de cenouras ou deensopados?Porqueémuitopequenaamargemdeerroparaconseguirmoso ovo quente ideal: gema amarela líquida, clara firme, porém nãoborrachuda.Etambémporqueoovoficaencerradoemsuacascaenãohácomoavaliá-locomosolhos,dondeolongocasamentoentreosovoseosmarcadoresdetempo.Marcarotempodosovoscozidoséquaseaúnicaocasiãopráticaemque

aindausamosatecnologiamedievaldaampulheta,naInglaterra.Nestaeradigital, quase todos trazemos conosco vários objetos – relógio de pulso,telefone celular – que poderiam cronometrar com mais exatidão ocozimentodeumovomole.Seasampulhetasperduram,decertoéporseuvalor simbólico: ver os grãos de areia do tempo escoarem ainda é umacoisapoderosa.

Recentemente, a lógica básica do uso de marcadores de tempo nacozinhafoiquestionada.Nósosempregamosparaverificarsealgoestánopontocerto,maselessópodemtestarseumacomidaestáprontadeacordocomumúnicoparâmetro.Otempotorna-seumsubstitutoemsiprópriodetemperaturamaistempo.Oovoquentepassaaserconhecidocomo“ovodetrêsminutos”,masosminutossãoumameraaproximaçãodoquesepassano interior do ovo. Alguns experimentos feitos por cientistas daalimentaçãoconstataramqueoovomoleperfeitoecremosoéobtidonumponto entre 61°C e 67°C. Mas como saber quando o ovo atingiu essatemperatura?Voltamosaoproblemadacasca.Emmeadosdadécadade1990,umaempresadeLosAngeles(aBurton

Plastics)lançouoEggPer’fect,umpedaçodeplásticoemformadeovoqueentranaágua juntocomosovos.Emvezdemarcaro tempo,elemedeatemperatura.Oplásticoexibelinhasindicativasdetrêstiposdiferentesdeovoscozidos:moles,médioseduros.Àmedidaqueosovoscozinham,oEggPer’fect vai aos poucos alterando sua cor, do vermelhopara o preto. Seuprincipalinconveniente–aforaumlevíssimoodordeplástico–éosilêncio.Precisamosgrudarosolhosnelefeitoumgavião.Parasetornarrealmenteperfeito, o Egg Per’fect deveria ter umpequeno sensor sonoro que fossegritando,àmedidaqueavançasseocozimento:Mole!Médio!Duro!Issonosdeixarialivresparalerojornalebebericarocafé,esperandocalmamenteachegadadosovos.

a No Brasil, como sabemos, tambémutilizamos xícaras e copos paramedir tanto líquidos quantoalguns sólidos, mas não exclusivamente (também medimos em mililitros e gramas) e sem tantaprecisão:umaxícarapodevariarde220mla250ml,sendoumamédiade240mlamaiscomum;ocopoditoamericanotem250ml(enãoàtoalevaessenome…);ecopoderequeijãotemde250mla300ml.(N.R.T.)b Tecnicamente, quando dizemos “peso”, na verdade deveríamos dizer “massa”. Peso refere-se àforçaexercidasobreumobjetopelagravidade(P=mg,ondem=massaeg=gravidade).Assim,opeso de uma xícara de farinha de trigo na Lua seriamuitomenor do que na Terra. Amassa, aocontrário,permanececonstante,emqualquermeio.Cemgramasdefarinhasãosemprecemgramas.De fato, é isso que queremos dizer quando falamos em “peso”. Entretanto, como este livro estáinteressadonatecnologiaprática,enãonaciênciapura,continuareiausardemaneiraincorretaapalavra“peso”,talcomoécomumenteentendida,comosinônimodemassa.cAproximadamente118ml–¼depintouquatroonças(118ml).(N.T.)dPãorápidoquelevabicarbonatodesódioecujamassanãoprecisadescansar.(N.T.)eOmanqué,tambémconhecidocomogâteaumanqué,éumbololeve,emgeralassadonumaformasemelhante a um cone de ponta achatada, às vezes com frutas picadas etc.; o génoise é o bologenovêsoupãodeló.(N.T.)

5.Moagem

“Essescozinheiros,comosocamecoamemoem!”

GEOFFREYCHAUCER,“ThePardoner’sTale”

QUASE TODO FIM DE SEMANA, fazemospanquecas.Precisodeunsbonsgolesdecaféparadespertarobastanteparaencontrarafarinhadetrigo,oleite,osovoseamanteiga,mas,depoisdisso,é fácil.Colocotodosos ingredientesnumpote.Batocomummixerporalgunssegundos,atéficarhomogêneo.Eésó.Amassaestáprontapara irparaa frigideiraquente.Empoucosminutos,surgeumapilhadecrepesdouradose finoscomorenda,compoucomaisesforçoqueodeserviroscereaismatinais.Fazer panquecas na Idade Média não era tão simples. Num livro de

conselhos do século XIV, intituladoLeMénagier de Paris e publicado em1393,háumareceitadepanqueca.Éassim:primeiro,pegueumrecipientede cobre de um quarto de galão e derreta uma grande quantidade demanteigasalgada.Depois,acrescenteosovos,umpoucode“vinhobrancoaquecido”(quetomaolugardonossoleite)e“amaisalvafarinhadetrigo”,e bata tudo “por tempo suficiente para cansar uma ou duas pessoas”. Sóentãoamassaficapronta.Háumaespantosadisplicêncianesse“umaouduaspessoas”,queevoca

umacozinhaemquehaveriaumexércitopermanentedecriados,dispostoscomoumaporçãodeutensílios.Quandoumsubalternoficaesgotado,outrotomaoseulugar.Derepente,percebemosqueareceitanãosepareceemnadacomasnossas,nasquaiséoleitorquemdeveexecutarotrabalho.LeMénagierdeParis,quesetraduziriaaproximadamentepor“Adonadecasaparisiense”, foi escrito na voz de ummarido idoso que se dirigia a umaesposajovemerica,ensinando-lheamaneiraapropriadadeseportar.Paraprovar seu valor, a esposa francesa medieval dessa classe precisavacertificar-sedequeospratosfossembem-feitos–masnãoapontodesujar

asprópriasmãos.Dispunhadeumaequipeinteiradebatedoreshumanosdeovosaseuserviço.Enquantosefritavamaspanquecas,eraprecisoque,“o tempo todo”, outra pessoa continuasse a “mexer e bater amassa semparar”.Essebaterincessanterefletiaaintensaânsiademaciezquetiveram,em

certa época, os paladares ricos. Tal desejo teve uma redução expressiva,agoraqueopãode formaamolecido e oshambúrgueresde carnemoídamaciaestãoentreosalimentosmaisbaratos.Numbelodiadaprimaverade2011, sentei-me num dos melhores restaurantes italianos da Inglaterra,onde os pratos principais custavam cerca de 30 libras esterlinas. Haviafamílias prósperas comendo seu almoço dominical. Muitas mesasdesfrutavam de retângulos duros de bruschetta, regados com azeite deolivaesalgrosso.Haviabandejasdeverdurascrocantescomummínimodepreparo.Umacosteletadeporcoveionumossoenorme, revelando-seum desafio até para uma faca de carne. O linguini com caranguejo epimentaestavaautenticamentealdente:sentia-senosdentesonúcleodurodecadafio.Atéosorvetecremosodasobremesa–nãohouvenadamacio;todasastexturasforamrústicas,variadasedesafiadoras.Masissonãofoisinaldecomidamalfeita:naeradoprocessadordealimentos,éprecisoumgrandeesforçoconscienteparaproduzirumarefeiçãocomoessa.Atéos temposmodernos,aocontrário,as refeiçõescujopreparoexigia

maisesforçoeramasaltamentemanipuladas.Papasereis, imperadoresearistocratas não queriam ter que mastigar muito. Esperavam que sesocassem pastas finas em pilões, para seu deleite. Nas cozinhas ricas, asmassasdetortaseempadõeseomacarrãoeramestendidosemespessurastãofinasquesepodiaenxergaratravésdelas(porimplicação,tãofinasquedeixavam doloridos os braços de alguém). Os molhos eram coadosrepetidasvezes,passandoporpeneirascadavezmaisfinaseporpanos.Afarinhadetrigoera“peneirada”em“telas”eemlinho.Osfrutossecoserampulverizadosetransformadosembiscoitoscomaçúcarultrarrefinado.Hojeemdia,usamosapalavra“refinado”paranosreferirmosaalguém“rico”ou“sofisticado”,mas,deinício,refinarreferia-seaograudeprocessamentodeumprato.Acomidarefinadaeraoqueaspessoasrefinadascomiam.Seriaexagerodizerqueoúnicoatrativodesseestilodealimentaçãoera

dar mais trabalho aos criados que a preparavam. As motivações erammuitas. Asmisturas suaves erampotencialmente desejáveis emqualquerera anterior à odontologia moderna. Os cozinheiros medievais faziammortrews, misturas trituradas de carnes brancas cozidas com amêndoas,

queeramideaisparaquemtinhadentesestragados.Alémdisso,amisturademuitosingredientestrituradoscorrespondiaàsideiasmedievaissobreotemperamento e o equilíbrio. Mais tarde, na época do Renascimento,processarosalimentos tornou-seumaespéciedealquimia:umdesejodedestilarascoisasrepetidasvezes,atérestarapenasaprópriaessênciaouocernededeterminadoalimento.Mas, ao considerarmos as tecnologias de triturar, socar etc., não

podemosdeixardeladoaquestãodamãodeobraligadaaospadrõespré-industriais do trabalho. Os alimentos altamente processados erampreferidospelosricos,nãoapesardotrabalhoqueexigiam–donúmerodepessoas que deixavam exaustas –, mas por causa dele. Servir um pratocomoraviólirecheadodepastatrituradadepeitodecapão,queijoraladoeervaspicadas,cobertoporumamisturadeaçúcarrefinadoecanela,refletiaostatusdoanfitrião.Todososqueocomiamsabiamqueprepará-loexigiamuitomaisdoqueapenasumaesposamunidadeumacolherdepau.Semnenhum processador elétrico de alimentos para ajudar, um prato comoesse requeria uma pessoa para preparar e abrir a massa, outra paracozinharetriturarocapão,eumaterceirapararalarepicaroqueijoeaservas,eassimpordiante.Oluxonãoestavaapenasnosingredientes,masno trabalho que dava reuni-los (como ainda acontece nas cozinhas querecebemestrelasdoGuiaMichelin:noelBulli,deFerranAdrià,opreparodeum coquetel de rum e cana de açúcar exigia duas pessoas com serrotes,paracortaracanaempedaçosmanipuláveis,outrasduascomcutelosparatiraracasca,emaisduasaoitoparacortaracanadeaçúcarempalitinhos;todasessaspessoaseram“estagiários”ouaprendizesnãoremunerados.Detemposemtempos,elevam-sevozescontraessaformatrabalhosade

cozinhar,tantoporquestõesdeestéticaquantoporqualqueroutracoisa.OfilósoforomanoSênecaassimescreveu, louvandoacozinhamaissimples:“Agrada-meo alimento quenão foi preparadopor um lote de escravos afitá-locomolhoscobiçosos,quenão foiencomendadocomváriosdiasdeantecedêncianemservidopormuitasmãos.”Demodosimilar,noséculoIVa.C., houve uma geração de jovens cozinheiros que se rebelou contra aubiquidade do pilão nas cozinhas gregas. Em vez de todas as misturastrituradas de vinagre e coentro, eles serviampedaços simples de peixe ecarne,evitandoosocador.Apesar desses momentos ocasionais em que a simplicidade pastoral

entrouemvoga,acomidaaltamenterefinadacontinuouaseranormadasmesas ricas até já ir bem adiantado o século XX. Na Inglaterra, os

eduardianos comiamsanduíchesdepepinonopão semcasca e tomavamconsomêscoadostrêsvezes.Atrásdecadapratodeumjantardeluxohaviaumminiexércitodelacaiosdebraçosdoloridos.Feitasàmão,astarefasdemoer,triturar,sovarecoarencontram-seentreasmaistrabalhosasdetodaa culinária.Oque realmente impressiona,portanto, éopequeno impulsoque houve, até época muito recente, para desenvolver recursos quepoupassemmãodeobra,eapequenamodificaçãohavidanoequipamentobásicoutilizado.Aolongodemilharesdeanos,criadoseescravos–ou,nasfamíliasmenosabastadas,esposase filhas–viram-sepresosaosmesmossocadoresepeneiras, compoucas inovações.Essaestagnação tecnológicareflete uma dura verdade: não havia grande interesse em procurareconomizartrabalho,quandootrabalhoemquestãoeradeterceiros.

OMEUSOCADORVEIOdaTailândiaeédegranitopretorugoso.Gostomuitomaisdele que desses comedidos pilões brancos de louça, cuja parte internaásperamedánosnervos,comogizarranhandoumquadro-negro.Opontonegativoéque,provavelmente,éoutensílionãoelétricomaispesadoquetenho.Todavezqueotirodaprateleira,tenhoummomentodelevepavorde deixá-lo cair – o que, na verdade, talvez explique por que não o pegocom tanta frequência. Em minha vida de cozinha, é uma tecnologiatotalmentesupérflua.Nãomefazfaltaparamoerfarinhaouaçúcar,quejávêmmoídosemsacos.Tambémnãoprecisodeleparaapimenta,quepossotriturarmuitomais depressa e commais facilidade nummoedor. O alhoficamelhorseesmagadocomapartemaisgrossadafacasobreumatábuadepicar.Quandousodefatoomeusocador,éporestarmesentindocomtempoequerendoexperimentarumpouquinhodaaromaterapiaculinária.Posso usá-lo para fazer um pesto, comprazendo-me com a sensação detriturar os pinhões cerosos contra o granito áspero, ou talvez moa asdiferentesespeciariasparafazerocurryempó(oquefaçomaisoumenosuma vez por ano, num ímpeto de entusiasmo, antes de ser tomada pelapreguiçaevoltaraopójámoído).Sejacomofor,opilãonuncaéessencialnuma cozinha que também tenhaum liquidificador e umprocessador dealimentos.Eleéumdispositivoprazerosodeusar,eeuoutilizoounãoporimpulso.Isso contrasta vivamente com os primeiros utensílios usados para

triturar, cujo mecanismo básico era mais ou menos idêntico ao do meusocador,mascujopapelerabemdiferente:tornarcomestívelaquiloque,deoutromodo,seriaimpossívelcomer.Amoendaeraumequipamentodequeossereshumanosdependiamparasobreviver.Osprimeiros implementos

usadosparamoerremontamacercade20milanosatrás.Aspedrasparatriturar, ou mós, permitiram que as populações primitivas extraíssemcaloriasde alimentosmuitopoucopromissores: raízesduras e fibrosas egrãos com casca. O processo de tornar digeríveis os cereais silvestres,socando-osemoendo-os,eradifícil, lentoe intensivoemmãodeobra.Ospilões eram usados, primeiro, para retirar os folhelhos ou as cascas, esegundo, para eliminar as toxinas (em estado natural, as bolotas decarvalho,porexemplo,contêmumaquantidadeperigosade tanino,queéparcialmente eliminado quando o pilão o expõe ao ar). Terceiro e maisimportante, eles reduziamo tamanhodaspartículasde comida–quer setratassedefrutasoleaginosas,querdebolotasoucereais–atéelasficaremfinas como poeira ou farinha. Sem instrumentos paramoer, não existiriapão.Adescobertadeumapedrademoerde20milanosdeidade,pertodomar da Galileia, ao lado de vestígios de cevada silvestre, sugeriu osprimeirosexperimentoscomalgumtipodemassaassada.Entretanto,outrosmilharesdeanossepassariamantesqueosutensílios

paramoagemsetornassemcomuns.SeuusoparecehaverseintensificadoduranteoNeolítico(10300-4500a.C.),oquefazsentido, jáqueessefoioperíodo em que se iniciou a domesticação dos cereais. Os homenscomeçaramasefixareaplantargrãos,permanecendonomesmolocalportempo suficiente para colhê-los. Como suasmulheres tambémhaviam sefixadonosmesmoslocais,elespassaramaterumpardemãosprontasparafazer a moagem dos grãos. Diversas estatuetas do antigo Egito quechegaramaténósretratammulherestrabalhando,moendocereais(cevada,provavelmente)numapedra.Moerosgrãosnecessáriosparaacomidadecadadia tornou-se amaiorparteda vidademuitasmulheres, nomundointeiro.Nopovolugbara,deUganda,asmulheresaindasãosepultadascomamenordesuasduaspedrasdemoer.Issosimbolizaofatodequeamaiorpartedesuavidafoigastanoatodesatentoerepetitivo–masessencial–demoercereaisparaanutriçãodafamília.Que forma assumiram os primeiros utensílios de moagem? O método

mais básico de triturar os grãos era algum tipo demoinhomanual: umapedra achatada, batendo repetidamente em outra pedra. Com o tempo,conceberam-se moinhos melhores, de formatos diferentes: em forma deselaoudeoval.Ograndeavançofoiomoinhogiratório,vistopelaprimeiravez na Idade do Ferro britânica (c.400-300 a.C.): uma enorme pedra emformaderoscasobreumamócircular.Aocontráriodomovimentoparaafrenteeparatrásdosmoinhosdemãoanteriores,omoinhogiratóriousava

movimentos circulares, mais eficientes, para triturar o cereal. Os grãoseramintroduzidospeloburacodocírculosuperior.Depois,umaespéciedepino era introduzido horizontalmente num encaixe e usado para girarváriasvezesamó.Essemecanismorotativofoiumgrandeaperfeiçoamentodomoinhobásico,masumagrandemógiratóriaaindaprecisavadeduasmulheresparaoperá-la,umaparaintroduzirosgrãoseoutraparagirarapedrasemparar.T.Garnett,umvisitantedasTerrasAltasdaEscóciaem1800, observou duasmulheresmoendo cereal nummoinho giratório, “otempotodoentoandocançõesceltas”.Além dos moinhos manuais, desde a Antiguidade havia pilões e

socadores. Os pilões mais antigos são tão velhos quanto os moinhosmanuais mais arcaicos: os primeiros pilões fundos a existir foramencontrados no Levante e têm cerca de 20mil anos.No fimda Idade daPedra,àsvezeseramincorporadosàscasas:háenormespilõesdebasaltocravados no chão, como parte de um quintal em que asmulheres ou asservaspassariamhorassentadas,moendo.Éfácilromancearesseestilodevida, mas os cemitérios do Oriente Médio indicam que o uso dessesinstrumentos de moagem cobrava um tributo elevado do corpo dasmulheres: há esqueletos femininos quemostram sinais de artrite aguda,comumdesgasteacentuadodasarticulaçõesdosjoelhos,doquadriledostornozelos, causadopelaposiçãoajoelhadaemqueamulherbalançavaocorpoparaafrenteeparatrás,paratriturarogrãocontraapedra.

Uma das coisas espantosas a respeito dos pilões e socadores é aprecocidade comque sua forma e função básicas foramestabelecidas. Seexaminarmos fotografiasdossocadoresdaAntiguidadequechegaramaténós,veremosquenãoficariamdeslocadosnumalojamodernadeutensíliosde cozinha; talvez parecessem meio primitivos, de bordas um tantoásperas, mas há quem goste dessa aparência. Os pilões e socadores querestaramdePompeia têmumaspectoperfeitamentemoderno;emcertossentidos,sãomaissofisticadosqueomeupilãotailandêsrugoso.Ospilõespassaramporváriosaperfeiçoamentos.Algunsforamfeitoscombico,paraderramar o produto acabado. Outros tinham pernas, como um tripé, ealgunscontavamcomumabasemais larga,queformavaumsuporteparaestabilizar o almofariz durante toda a socadura. Asmodas e os formatosiamevinham.Osgregos eos romanospreferiamo formatode taça (quevoltou a ser popular no século XIX) e, na China, eles eram largos eachatados, ao passo que, no mundo muçulmano da Idade Média,popularizaram-seosdotipo“almirez”,queerammaiscilíndricos,tendendopara o cônico, e feitos de bronze, com muitos adornos mouriscosrequintados,numestiloquedepoisfoilevadoparaaEspanha.A importância do pilão vai além da comida. Durante séculos, ele foi o

utensíliomaisessencialparaaproduçãoderemédios,econtinuaaserumdos símbolos internacionais das farmácias. Também era usado paratriturarpigmentosetabaco.Mesmoassim,éprovávelqueseuusoculináriotenha sido o mais vital para seus antigos manipuladores. Os alimentostriturados nos antigos pilões eram variados: na Mesopotâmia, moía-setudo, desde o pistache até as tâmaras.O trabalhomais importante desseutensílio, contudo, era triturar cereais, criando a possibilidade de umalimentobásico,algoqueoscaçadores-coletoresnuncahaviamconhecido.Osmoinhoseospilõesforaminstrumentosvitais,sebemquedesgastantes,natarefadegerarcaloriassuficientesparaencherabarrigaepermitirqueaspessoasatravessassemcadadia.Comotempo,osurgimentodemoleirosprofissionais liberouamaioria

das pessoas da necessidade de moer seu próprio grão. Nos vilarejosmedievais,omoleirotendiaaseroindivíduomaisdetestado,emfunçãodosentimentodedependênciaquegerava,porseumonopóliodafarinhalocal.Suamoenda–quersetratassedeummoinhodevento,querdeummoinhohidráulico– erao instrumentoessencial semoqualnão sepoderia fazerpão. Em vez de gratidão, seus clientes sentiam ressentimento edesconfiançadequeelecobravademaisporseusserviços.

Enquanto isso, o pilão ganhou um lugar permanente na cozinha comosocador demisturas. Amaior diferença entre omoinho e o pilão é que,emboraambospossam triturar alimentos, apenasopilãopode serusadocomotigelaparamisturar,alémdemoedor.Atéhojeaindaéusadodessamaneira para criar o romesco espanhol, uma mistura inebriante depimentão-vermelho,amêndoas,avelãs,azeite,vinagre,pãoealho.EssetipodemolhotinhaseuequivalentenaculináriadaIdadeMédia,quandosurgiutodo um gênero de pratos baseados nos pilões, operados por grandestropasdesubalternosdebraços fortes.Acreditava-sequeos ingredientesprecisavam ser “temperados” para recuperarem seu equilíbrio, e o pilãoeraoveículoidealparaisso:emseuabraço,omeltemperavaovinagre,eovinho temperava peixes; socavam-se os alimentos para subjugá-los. Se atrilhasonoradascozinhasmodernaséfeitasobretudoderuídoselétricos–ociclodalava-louça,ozumbidodoliquidificador–,adacozinhamedievaleraosocarconstante.OmesmoocorriacomascozinhasricasdaRomaantiga.Osimplementos

de preparação de alimentos que sobreviveram de Pompeia incluemescorredores e peneiras, conchas e conjuntos de pilão e socador. Omaisfamosolivrodereceitasromano–odeApício–contémumtipodepratochamadomortaria,misturasespecificamentefeitasnopilão,compostasdeváriaservasecondimentos.Vejamoscomoera feitaamortariadeApício:“Coloque no almofariz hortelã, arruda, coentro e funcho, todos verdes efrescos, e triture-os bem finos. Levístico, pimenta, mel, caldo e vinagredevem ser acrescentados quando o trabalho estiver concluído.” Tudo erasocado,socado,socado,atéserimpossíveldizerondeterminavaocoentroe onde começava o funcho – mas não socado pelo próprio Apício, ecertamentenãoporquemlhepagava.OprofessorFrederickStarr,umdostradutoresdeApício,escrevendoem1926–épocaemquemuitasfamíliasdeprofissionaisliberaisdaaltaclassemédiacomeçavamadescobrir,comaflição, que já nãopodiampagar empregados, ounão tantosquanto seusantepassadosvitorianoshaviammantido–,ficoumuitoimpressionadocomanaturezatrabalhosadacomidadeApício:

O invejávelApícionão se importava como tempoouo trabalho…Seusmétodos culináriosexigiamumvolumeprodigiosodelaboreesforçoporpartedoscozinheiroseseusajudantes.OitemmãodeobranuncapreocupounenhumpatrãodaAntiguidade.Elaeramuitobarataoumesmogratuita.

Eu não chamaria de tão invejável a cozinha de Apício, com suadependênciadeescravos.

Hoje em dia, na era de aparelhos elétricos como liquidificadores eprocessadores de alimentos, é muito fácil recriar uma aproximação damortaria apiciana. A única parte complicada – além de adivinhar asquantidades – são as compras. Arruda e levístico não são exatamente oponto forte dos supermercados,mas, se você se dispuser a procurar umpouco,podeencontrá-lossobaformadeplantasnasboaslojasdeartigosparahortasejardins.Umavezquetenhaosingredientes,amortariapodeser feita em segundos. Basta ir jogando tudo no tubo vertical doprocessadorecontando:cinco,quatro,três,dois,um–pronto.Oquevocêobtém é uma pasta ralamarrom-esverdeada. O sabor é agridoce emeioterroso, com um amargor bem desagradável, proveniente da arruda. Écomo uma versão muito menos atraente de uma salsa verde italiana.Excetuados os historiadores da culinária, é difícil imaginar alguém quebusqueesseamálgamaestranho,agoraquenãoháproblemaparafazê-lo.AmortarianuncapoderáterparanósumsabortãobomquantotinhaparaApícioeosromanosricosparaquemelecozinhava.Falta-lheotemperodotrabalhobraçal.

UMA DAS MAIORES inovações da cozinha do Renascimento, na Europa, foi adescobertadequeosovospodiamserusados comoagentespara fazer amassa cresceraoassar (oqueessesespertos cozinheirosnão sabiameraque isso funcionava porque a espuma proteica estável dos ovos batidossustentava as bolhasda estruturadobolo, enquanto ele assava). E assimnasceu o bolo. Antes disso, os bolos – se é que chegavam a ser feitos –cresciamcomfermentooulevedodecerveja,oquelhesdavaumatexturapróxima à do pão e um gosto forte de fermento. A descoberta dos ovosbatidos possibilitou uma vasta gama de doces em que o principalcomponente era o ar. Os ovos batidos passaram a ser usados para fazerbolos de massa muito mais leve. Os elisabetanos também faziam tortasamarelas, comgemasde ovobatidas em creme, e tortas brancas, comasclarasbatidasemneve,adoçadascomaçúcarecremedeleite.Houveumamodadosyllabubs,umcremelevefeitocomvinho,cremedeleiteeclarasde ovos. As claras eram também o ingrediente crucial da maravilhaconhecidacomo“pratonevado”–umcomponenteteatralnasequênciadepratosdeumbanquete.Para fazerumpratonevado,múltiplas claras emneve, que pareciam ummar de suspiros não assados, eram batidas comcreme de leite grosso, açúcar e água de rosas e, em seguida, empilhadasnumabandeja.Oproblemafoiqueainovaçãoculináriadeusargrandesquantidadesde

claras em neve não veio acompanhada por nenhum grande avanço noequipamentoounastécnicasparabatê-las.Assim,apredileçãopelasclarasfofasaumentouacanseiraeadornosbraçosdotrabalhonascozinhasdeluxo renascentistas. Sem a eletricidade para eliminar a trabalheira, eradifícilbaterasclarasobastanteparatransformá-lasnumaespumaestável,oquesóacontecedepoisqueasmoléculasdeproteínadoovodesdobram-separcialmente,emcontatocomoar,evoltamaganharformacomoumatreliçavazada–ospicosemneve.Osbatedoresdearameem formatodebalão,oufouet–dotipoqueusamosatéhoje,masagoraquasesempredeaçoinox–,sósetornaramcomunsnofinaldoséculoXVIII.Épossívelqueuma ou outra casa da Europa fizesse suas próprias versões dessesbatedores,emboranenhumatenhasobrevivido:umailustraçãodo livroAobradeBartolomeoScappi(1570)exibeumanotávelsemelhançacomumfouet.Ocerto,porém,équetaisutensíliosnãoeramcomuns.Sefossem,oscozinheiros renascentistas não teriam precisado recorrer ao leque detécnicas muito mais desajeitadas com que tentavam introduzir ar nasclarasdeovo.

Umareceitade“cremenevado”de1655recomendaousode“umfeixede juncos” enrolado entre as mãos. O utensílio-padrão para bater ovos,usadoatébemtardenoséculoXIX,eraumfeixedegravetos,emgeraldebétulas(ouplumas,menoscomumente),desfolhadoseatados.Avantagemdessesbatedoresimprovisadosdegravetoseraqueelespodiamserusadosparadar saboraos cremesouàs claras:há receitasque falamematá-loscomramosdepessegueirooutirasdecascadelimão-siciliano,paradaraocreme um buquê de limão ou de pêssego. A desvantagem era que osbatedores de gravetos eram lentíssimos. Uma receita de Joseph Cooper,“mestre cozinheiro do falecidomonarca”, datada de 1654, estipula “meiahoraoumais”parabaterovosparapanquecas.Aindaem1823,MaryEaton,autora de livros de receitas, avisava que bater adequadamente as clarasparaumbolograndelevariatrêshoras.Quandoeuerapequena,minhamãesemprebatiaos tradicionaisbolos

inglesesdahoradochá–bolomadeira,de cerejaoubolodundeea – comuma colher de pau, usando uma tigela caseira de cerâmica. Batíamos amanteigaeoaçúcaràmão,atéformarumcreme,antesdeacrescentarosovos.Aindamelembrodosbraçoslatejandoedairritaçãoquenostomavaquandoenfimaprontávamosocremedemanteigaeaçúcar.Masoprocessointeironão levavamaisquedezminutos, talvezumpoucomenos, senoslembrássemosde tiraramanteigadageladeiracomantecedência.Ograudecansaçodoindivíduodepoisdetrêshorasbatendoclarasemnevesemnada além de gravetos é simplesmente incalculável. Essas, com certeza,eram receitas que esgotavam a pessoa – ou duas delas, ou até três. Parapiorar a situação, naqueles tempos supersticiosos, era comum insistir-seem que todos os cremes ou claras de ovos fossem batidos na mesmadireção, como se alterá-la viesse a quebrar o encanto e impedir que amistura ficasse espumosa. Talvez essa história da carochinha tenhabrotado da simples dificuldade de obter uma textura de espuma comutensíliostãolimitados;tambémseexpressavamtemoresdequeasclarasde ovo fossem enfeitiçadas e não endurecessem o bastante em “diasúmidos”.Ainda assim, a “vara de bétula” era uma opção preferível a algumas

outrastecnologiasdisponíveis.Depoisqueosgarfossetornamcomuns–apartirdofimdoséculoXVII–,aomenoselesconstituíramumaalternativa.Até então, muitos cozinheiros talvez se arranjassem com uma colher ouumafacadelâminalarga,nenhumdosquaisofereciamuitatração.Apiorideiadetodaserapegarasclarasdeovoeespremê-lasrepetidamentecom

umaesponja,métodonãosó ineficaz comobastante repulsivo, sobretudoseaesponjajátivessesidousadaparaoutrafinalidade.Não é de admirar que omoliquet, oumoedor de chocolate, tenha sido

recebido com entusiasmo ao chegar à Inglaterra, no final do século XVII.Esses utensílios de madeira, que até hoje são usados no México e naEspanhaparabaterochocolatequenteefazê-loespumar,consistiamnumcabo comprido, preso a uma cabeça chanfrada, meio parecida com ummoinho hidráulico. Funcionavam girando-se o cabo entre as palmas dasmãos. No fim do século XVII, começaram a aparecer nos inventários dascozinhas das grandes residências rurais inglesas, onde sem dúvida tantoeramusadosparabaterovosquantoparaprepararanovabebidadamoda,ochocolatequente.Aindaem1847,numlivrodereceitasnorte-americano,omoliquet era mencionado como uma alternativa à vara de bétula parabater creme de leite. Mas até o moliquet era um modo relativamentetrabalhosodebaterovos.Eotrabalhoárduonãoselimitavaàsclaras.Amaioriadasreceitasque

envolvia claras batidas também incluía açúcar, ou, para ser mais exata,açúcarduasvezesrefinado–outracoisaestafanteparaseproduzir.Éfácilesquecermosarevoluçãoquerepresentouofatodeoaçúcarcomeçaraservendidomoído, no final do século XIX, ocasião em que os consumidorespassaram a poder escolher entre açúcar refinado, granulado ou deconfeiteiro, sem terem de fazer nenhuma parte do trabalho. O açúcarpreviamentemoídofoiumainvençãoqueeconomizoumuitomaismãodeobraqueopãode forma fatiado.Tradicionalmente,oaçúcarvinhanumamassa ou rolo, em blocos cônicos cujo tamanho ia de 2 a 18 quilos. Erapicadoempedaçosmenorescomumalicateparaaçúcar.Paraconvertê-lonum ingrediente a ser usado na cozinha, era preciso triturá-lo – volta oconfiávelpilão–erefiná-lo,passando-oporumasucessãodepeneirascadavez mais finas. Os escorredores e as peneiras são outra dupla deimplementosque,comoosocadoroupilão,de fatonãomudaramemsuaessênciadesdeaAntiguidade,earazãodissoéqueosantigoscozinheirosdependiammuitomaisdelesdoquenós.Ainda em 1874, Jules Gouffé, chef sediado em Paris, descreveu o que

entrava no processamento do açúcar. Assim ele fazia açúcar granulado(usadoparapolvilharprodutosdocesdepastelaria):

Providencie três peneiras ou escorredores, um que tenha furos comdiâmetro de⅜depolegada,outrocomfurosde¼depolegada,umterceirocomfurosde⅛depolegada,eumcoadorcomfundodetela.

Piqueoaçúcarempedaçoscomumafaca,depoisquebrecadapedaçocomaextremidadedeumrolodemassa,tomandocuidadoparanãopulverizarnenhumapartedele,poisissoretirariaobrilhodorestante.

Em seguida, era preciso passar o açúcar por cada uma das peneiras,terminandocomocoadorcomfundodetela.Goufféqueixou-sedealgumaspessoasquenãosedavamo trabalhode

seguirtodoesseprocessocomplicado,“poreleserbastante…custoso”.Emvez disso, apenas socavam o açúcar num pilão, sem peneirar nada. Elelamentouessapreguiça,observandoqueoaçúcarsocadonopilãonãotinhao brilho do peneirado “à moda antiga”. Com isso estava lamentandotambémaexistênciadecozinhasmenosbem-supridasdemãodeobradoqueascozinhasdarealezaemquetrabalhava.Surpreendentemente,poucacoisamudounosquasequinhentosanosdecorridosdesdeostemposdoLeMénagierdeParis, ou, pensandobem,nos2mil decorridosdesdeApício.Peneiraretriturar,socarecoar:essasaindaeram,naépocadele,atividadesemqueaspessoasseesfalfavam,paraqueosricospudessemdesfrutardecremesaerados,açúcarempóeoutroscompostossaborosos.É impossível compreender o conservadorismo tecnológico do preparo

dos alimentos separado da questão dos criados. É comum ignorarmos ofato portentoso e inquietante de que os livros pré-modernos de receitaseramescritos,emsuamaioria,parapessoasqueliteralmentenãopunhamamão namassa, pessoas que seriam elogiadas pelo que era servido emsuas mesas sem haverem empenhado nenhum dos esforços exigidos. Assenhoras bem-nascidas talvez temperassem uma salada com as própriasmãos, ou executassem alguma das tarefas mais bonitas, como refinar oaçúcar, mas não precisavam fazer parte alguma do trabalho pesado desocar e triturar, porque tinham criados que o fizessem para elas. Robot-CoupeéumamarcafrancesadeaparelhosdecozinhadoséculoXX,entreosquais se incluem trituradores, moedores, máquinas para sovarmassas ediversaspeneiras.Onome implicaque esses são robôsda cozinha, comoempregados movidos por energia artificial. Mas, enquanto existiu umaabundância de criados humanos à disposição – ou uma esposa quetrabalhava arduamente, nas famíliasmais pobres –, não houve demandaporrobôs.AscoisassócomeçaramdefatoamudardepoisdaRevoluçãoIndustrial,

quando a modificação dos padrões da mão de obra, combinada comfábricascapazesdeproduzirutensíliosmetálicosdebaixocustoemmassa,enfim levou a um dilúvio de novas máquinas para facilitar a vida dos

cozinheiros.

AEXPRESSÃO “economiademãodeobra” foiregistradapelaprimeiravez,emrelação àmanufatura, em1791.Maismeio século sepassariaparaqueoconceitochegasseàcozinha.NasegundametadedoséculoXIX,nosEstadosUnidos,de repente, omercado foi inundadoporutensílios culináriosque“economizavammão de obra”, muitos deles feitos de latão barato. Eramdescaroçadoresdepassasoucerejas,amassadoresdebatatas,moedoresdecaféeremovedoresdemiolodemaçã.Muitoseramaparelhospesados,quetinham de ser fixados à mesa, como as máquinas de moer carne, quetambém apareceram em grande número. De repente, houve centenas emais centenas de variedades concorrentes de batedores de ovos. Elesrepresentaram para a Costa Leste dos Estados Unidos, nas décadas de1870, 1880 e 1890, o equivalente das tulipas para a Holanda, nos anos1630,easstartupsdainternetparaSeattle,nadécadade1990.Entre1856e1920, foramconcedidasnadamenosde692patentesdistintasparataisbatedores.Em1856,concedeu-seumapatente;em1857, foramduas;em1858, três. Em1866, o número havia saltado para dezoito, commodelosque iam de batedores para jarro a batedores de latão, de batedores deengrenagemaosArquimedes(umaespéciedebatedorquesubiaedescia,baseadonoparafusodeArquimedesusadonaindústrianaval).MarionHarland,umaautoradelivrosdereceitasqueviveuabolhados

batedores de ovos, recordou o quanto amaioria desses novos utensíliosrevelou-se insatisfatória. Ela constatou que pouquíssimos dos batedorespatenteadossobreviviamàempolgaçãoinicial.Oscabosdemadeiracaíam,enquantoosdelatãomanchavamasmãosdepreto.Aparelhoscomplexos,compostos de uma “ventoinha” no interior de um cilindro de metal,pareciammaravilhosos, até sedescobrirqueo cilindroera impossíveldelavar e grande demais para bater quantidades pequenas. “Depois dealgumas tentativas”, acrescentou Harland, “a cozinheira jogava aquela‘chatice’numcantoescurodoarmárioe improvisavaumbatedormelhorcomdoisgarfosdeprata,habilmentemanejadosemconjunto.”Umdosprimeirosbatedorespatenteadosaultrapassaroestágio inicial

danovidadefoioWilliams’EggBeater,registradoem31demaiode1870emais conhecido como “Dover”. O Dover é um ícone norte-americano, edeterminoua formabásicaaindahojeassumidapelosbatedoresmanuaismaisbaratosencontradosemqualquer lojade ferragens.A ideiapor trásdele é simples: dois batedores são melhores que um só. Os primeiros

batedores Dover de 1870 compunham-se de duas hastes bulbosas, comuma engrenagem rotativa para girá-las. Turner Williams, da cidade deProvidence,noestadodeRhodeIsland,oinventorqueconcebeuomodelo,descreveuasvantagensdesuainvençãocomosendoa“açãomuitopeculiardecisalhamento”quevinhadeduasrodasgirandoemdireçõesopostas,aomesmotempoenomesmoespaço,oquenãotinhasidovistoemnenhumbatedorprévio.

ODover foiumsucesso instantâneo, tantoassimquedover tornou-seotermo genérico para designar batedores de ovos nos Estados Unidos.“Procure a palavra dover no cabo”, ordenava um anúncio de 1891,indicandosuaenormepopularidade;“nenhumdosoutroséautêntico”.Em1883,umlivrointituladoPracticalHousekeepingelogiouoDovercomo“omelhor domercado”. Marion Harland foi outra fã. Escrevendo em 1875,cincoanosdepoisqueoutensíliochegouaomercado,ela insistiuemque“baterovosdeixoudeserumbicho-papãoparamim”desdeacompradeumDover,eacrescentouquenãoovenderianempor100dólares(note-seque,naépoca,umbatedorportátildeovosnãodeviacustarmaisque10a

25centavos).OquehaviadetãoespecialnoDover?

Leve, portátil, rápido, fácil e relativamente silencioso,meuutensílio favorito funciona comoumduendebenfazejo.Comele,preparoumsuspiroemcincominutos,seminterromperminhacançãonemminhaconversa.

Harland, cujo verdadeiro nome era Mary Virginia Terhune, ofereceualgumas informações sobre a situação social e culinária que criou ocrescimentoexplosivodosbatedoresdeovosnosEstadosUnidos.Nascidaem1830,elaforacriadanazonaruraldaVirgínia,aterceiradenovefilhos.Suamãepraticamentenãocozinhava.“Duvidoquealgumdiatenhavarridoum quarto ou assado um corte de carne, em toda a sua vida”, escreveuHarland,temposdepois.Comoeratradicionalentreasdamassulistas,suamãe tinha “mães pretas” para bater seus ovos (e fazer muitas outrascoisas). Harland assumiu um papel mais atuante que a mãe na cozinha.Além de escrever 25 romances, ela acreditava ter o dever de dominar opapelde“donadecasa”.Depoisdesecasarcomumpastorpresbiterianoem1856esemudarparaNovaJersey,Marionresolveuensinarasimesmaea sua cozinheiramaioreshabilidadesna cozinha.Em1873,publicouosresultadosdasmuitassessõesdeculináriadasduasemCommonSense intheHousehold,quevendeu100milexemplares.Harlandnãoescreveuparamulheresquetivessemdebatertodososseus

ovos.Presumiuquesuasleitorasteriamcozinheiras,masestasprecisariamdeconsiderávelorientaçãoeajudaparaproduzirovostãofofosquantoeradesejável. O êxtase de Harland com o Dover faz parte de um incômodopontodetransiçãonahistóriadosserviços.Asnorte-americanasdeclassemédia para as quais ela escrevia ainda tinham cozinheiras, mas eraprovável que houvesse apenas uma. Se os braços da cozinheira ficassemexaustos, osdaspatroasviriamemseguida.Harlanddescreveu comumacondescendência de arrepiar a conversa que teve com sua empregada,Katey,aochegaremcasacomummodelodispendiosoefixodebatedordeovos,um“poupadordetempoemúsculosnumacaixa”.Harlandentrounacozinhacomaquelebatedor“desajeitado”,“trêmula”deempolgação.“Sim,dona Marion, e isso é o quê, sinhá?”, pergunta Katey. A engenhocacomplicadafuncionamal;acabaderrubandoumatigelacomdezgemasnochão. A pobre Katey é obrigada a experimentar uma porção de outrosdispositivos,atéHarlanddescobriromiraculosobatedorDover.Por que os ovos aerados tinham tanta importância, afinal? O boom

gigantesco dos batedores de ovos coincidiu comumperíododa culinária

norte-americana em que os doces, nas mesas respeitáveis, tinham setornadomuito aerados. Na sobremesa, era possível que fossem servidasneves demaçã, de laranja e de limão, cada uma das quais levava quatroclarasdeovos,batidas “emneve firme”.HaviaoboloOrleans (seisclaraslevemente batidas e gemas coadas) e o bolo Mont Blanc (claras de seisovos,bemfirmes).Haviacremesecharlotes,syllabubsepavês,coberturasdecremebatido,muffinsewaffles,paranãofalardossuspiros.Todosessespratosdependiamdeovosaltamenteaerados:gemasbatidascomocreme,clarasemneve.Docrescimentoadequadodessasiguariaspodiadependerareputaçãodeumadonadecasa.Umbolofofonamedida–produzidocomumDover ou umdos outros novos batedores – depunha a favor de umacasa.Embora,naverdade, fosse sua cozinheiraquembatia amaiorpartedos ingredientes, Harland considerava mérito seu os muffins leves queemanavam de sua cozinha. Contrastou-os com os de uma amiga menosvigilante,quenãosabiaquesuacozinheira,Chloe,andarafazendomuffinspreguiçosamente,comovosquemaltinhamsidobatidos, tudocom“meiadúziadebatidasdacolherdepau”.Harlandrepreendeuaamigapornãotersidomais“atenta”.O surto de vendas dos batedores de ovos respondeu a um desejo das

norte-americanasdeclassemédia,nãosódeaerarmaisosseusovos,mastambémdearrancarmais trabalhode suas empregadas.Para asquenãotinham criada alguma, esperava-se que os batedores as levassem a nãosentir falta delas, a ter a impressão de que seus braços não estavamfazendotrabalhoalgum,aindaquedefatoofizessem.Em1901,umbatedorHolt-Lyon,namesmalinhadoDover,promoveu-secomaafirmaçãodeque,graças a suas singulares “hastes batedoras mais largas na base”, que“quebram instantaneamente os ovos nas mais diminutas partículas”, eracapaz de bater “ovos mais leves e firmes que os melhores batedoresmanuais,emumquartodotempo”.Entretanto, apesar das afirmações eufóricas dos anunciantes, nenhum

desses batedores mecânicos realmente economizava muito trabalho. Ograndeinconvenientedobatedorgiratórioeraqueeleprecisavadasduasmãos para funcionar, o que impedia a pessoa de segurar a tigela. As pásteimavamem travar emdeterminadopontoou a rodardepressademais.Deslizavampelavasilha,respingandoovosportodaparte,muitoantesdeelesendurecerem.ODoverafirmavapoderbaterasclarasdedoisovosemdez segundos, o que é um disparate: na minha experiência, o batedorgiratório costumademorarmais a firmar as claras do que o fouet; e, em

ambososcasos,éumaquestãodeminutos,nãodesegundos.Muitos modelos posteriores tentaram lidar com os pontos fracos do

Dover,massófizeramcriarnovossenões.Váriosbatedoresenfrentaramoproblema da tigela deslizante instalando as pás num jarro ou vasilhaacoplados, mas isso criava seus próprios inconvenientes, pois só erapossívelbaterumapequenaquantidadede cadavez, e a tigelaquevinhajunto era mais um objeto a ser lavado. Outros batedores abordaram oproblemadanecessidadededuasmãospara segurá-los. “Uma ideianovaembatedoresdeovos”,gabou-seumanúnciode1902deumcertobatedorRoberts, uma espécie de batedor de Arquimedes. Tratava-se do “únicobatedor automático já criado que funciona com apenas uma das mãos…bastapressionarocaboesoltar”.Eraumavantagem,semdúvida;masoschamados batedores de uma só mão – cujo mecanismo ia de estranhoscaracóis de arame até molas ou discos parecidos com amassadores debatatas – estavam longe de ser perfeitos. Demoravamdemais para baterovos ou creme de leite e podiam funcionarmal, caso uma dona de casaapressada tentasseaceleraroprocesso. “Nãomanipuledepressademais”,alertava o batedor Simplex de uma sómão, o que não ajudavamuito. Amais estranha de todas era uma família de batedores movidos a água,ligadosànovaáguaencanadaquecomeçavaasurgirnasresidênciasnorte-americanas.“Bastaabriratorneiraparaelefuncionar!”,gabava-seoWorldBeater.Ao relembrar esse momento curioso da história norte-americana – a

bolhadosbatedoresdeovos–,vemo-nosdiantedeumenigma.Dopontode vista puramente tecnológico, nem um só das centenas de modelospatenteados,nosquaisseesbanjoutantainteligênciaesegastaramtantosdólares, foi, de fato, em termos de eficiência ou ergonomia, umaperfeiçoamento dos fouets franceses básicos, que eram usados pelomenos desde o século XVIII, muito antes de se iniciar a mania dosbatedores (e talvez desde 1570, na Itália, como mencionamos antes).Nenhum cozinheiro de alto nível pensaria em usar um batedor de ovosDover.Muitosdeles,noentanto,aindapossuemumavastagamadefouetsdeestiloantigo,eàsvezesosutilizamcomtigelasantiquadasdecobre.Osatuaisfouetsdealtaqualidadevêmcomcabosrevestidosdeumacamadaisolante e têm arames de aço inoxidável em vez de latão. Afora isso,entretanto, são exatamente os mesmos que um confeiteiro setecentistausaria.Todaessasúbitaexpansãonorte-americanadasvendasdebatedoresde

ovosfoiumafantasia.Naverdade,nãoteveavercomaeconomiademãodeobra, jáqueomodelo francêsrequeriamenosaçãodobraçodoqueamaioriadosnovosmodelospatenteadosparaexecutaratarefa.Tevemaisavercomailusãodepoupartrabalhoetempo.Emvezdeofereceremumaverdadeira cura para o cansaço, eles foram placebos. As pessoas que oscompraram, comoMarion Harland, precisavam achar que alguém – nemquefosseapenasofabricante–estavadoseulado,nabatalhapereneparaproduzir os ovos mais aerados no menor espaço de tempo. O que essaabundânciadebatedoresdeovosnosdizéque,derepente,oscozinheiroshaviam começado a se rebelar contra seus braços exaustos. Mas essesbraços só viriam realmente a ter algum repouso com o advento dabatedeiraelétrica.

SE CARL SONTHEIMER não gostasse tanto de quenelles, a história da cozinhadoméstica norte-americana dos últimos quarenta anos teria sido muitodiferente.Em1971,Sontheimereraumengenheiroeinventorde57anos(cujas descobertas incluíamum radiogoniômetro lunarusadopelaNasa),formadonoInstitutodeTecnologiadeMassachusettsefanáticoporcomidafrancesa. Havendo fundado e vendido com sucesso duas empresas deprodutos eletrônicos, vinha desfrutando de sua aposentadoria precoce.Conjugandohobbyenegócios,viajouàFrançacomsuamulher,Shirley,àprocura de produtos culinários franceses que pudessem ser transpostospara o mercado norte-americano. Foi numa exposição de produtosfranceses para cozinha que o avistou: um processador de alimentosconcebido para uso em restaurantes, chamado Robot-Coupe. Não erabonitonemcompacto,maseradeumaversatilidadeassombrosa.Alémdepoder misturar – como os liquidificadores elétricos que vinham sendovendidosnosEstadosUnidosdesdeadécadade1920–,elemoía,picava,cortava em cubos, fatiava e ralava. Era capaz de pegar quase qualqueralimento e reduzi-lo a um purê. Carl Sontheimer olhou para aquelamáquinavolumosaeoqueviuforamquenelles.“Umaquenelle”,escreveu JuliaChild, “paraquemnãoestá familiarizado

com esse delicado triunfo da culinária francesa, é feito de pâte à choux[massaparabombasoucarolinas],cremedeleiteeumpurêdepeixecru,vitela ou frango, que são moldados em formas ovais ou cilíndricas eescalfados num líquido temperado.” Preparados da maneira tradicional,sãochatíssimosde fazer.Comparadosaeles,os suflês sãobrincadeiradecriança. Amistura da quenelle – a pasta de frango ou peixe – exigia serlongamente socada e peneirada, para garantir que ficasse suave como

cetim.AtéJuliaChild,em1961–essa“cozinheirasemcriadas”–,precisavadar-seotrabalhodepassarsuapastadequenelledepeixeduasvezespelomoedor.Etudoissovinhaantesdesechegaràperigosatarefademoldaramisturafrágilemovais,usandoduascolheres.Comabondadequelheeratípica, Julia Child observou que, “em caso de desastre”, se as quenellesdesabassem,vocêpoderia“declararquesetratavadeumamusse”.Carl Sontheimer percebeu que a máquina maravilhosa à sua frente

poderia encarregar-se desse processo aflitivo e torná-lo muito maissimples.Todoosocarepeneirarpoderiaserfeitoaotoquedeumbotão.ARobot-Coupe tinha sido criada em 1963 por Pierre Verdun, um inventorfrancês que orientava seu equipamento para o ramo dos restaurantes.Tratava-sedeumtamborvolumoso,comumalâminagiratórianointeriorecomtrêsfunções:acionar,pararepulsar.Sontheimerviuqueumaversãoem escala menor poderia funcionar igualmente bem nas cozinhasdomésticas. Assim que avistou a máquina, negociou os direitos dedistribuiçãoparavendersuaversãoadaptadadaRobot-CoupenosEstadosUnidos. Levou para casa uma dúzia demáquinas, para suas experiênciaspessoais na cozinha. Em sua garagem, manipulou as diversas versões elevoumaisdeumanoparaanalisarcadacomponente,atécriarummodeloque fazia asmaisdelicadasquenelles comamais extrema facilidade.Quenome dar a essa nova engenhoca maravilhosa? “Ele sempre pensou naculinária francesa como uma arte, e queria que o nome se baseasse napalavra‘cuisine’”,recordouShirley,suamulher–dondeCuisinart.Quando o processador Cuisinart foi lançado nos Estados Unidos, em

1973,eracaro.Opreço inicialdevendanovarejo foide160dólares.Emvaloresatuais,issoequivaleriaaquase800dólares(combasenoÍndicedePreçosparaoConsumidor;emcontraste,emjaneirode2011seriapossívelcomprarumCuisinartnovoemfolhapor100dólares).Aessepreço,seriaesperável que o aparelho nunca fosse nada além de um equipamentodestinado a um nicho seleto de demanda e, com efeito, durante osprimeirosmeses,asvendassearrastaram.Masbastouumpardecríticasfavoráveis–umanarevistaGourmet,outranoNewYorkTimes–paraque,derepente,oCuisinartevaporassedasprateleiras.CraigClaiborne,críticodeculináriadoNewYorkTimes,foiumdosprimeirosaadotaroqueera,aseu ver, o “mais bem-bolado e versátil dos aparelhos de cozinha”. Comoinvenção, ele o comparou “à prensa tipográfica, ao descaroçador dealgodão,aobarcoavapor,aosclipesdepapel,aoKleenex”,equivalentea“um liquidificador elétrico, uma batedeira elétrica, ummoedor de carne,

umapeneira,umamassadordebatataseumafacadochef,tudonumacoisasó”.Era,segundosuaafirmaçãoempolgada,amaiorinvençãodaculináriadesdeacriaçãodospalitosdedente.HouveumaanimaçãosemelhantenoReinoUnido,ondeoutraversãodo

inventodeVerdunfoicomercializadacomonomedeMagimix, tambémapartirde1973.Umredatordo jornalTheTimes descreveuoquantoesseaparelho havia revolucionado o ato de picar pepinos e cenouras,permitindoàpessoaprepararobufêparaumafestainteiradecasamentoeaindatertempoparasearrumarantesdechegaremosconvidados.Em 1976, o preço do Cuisinart nos Estados Unidos havia subido, na

verdade, para 190 dólares,mas, até nesse patamar, as lojas nem sempreconseguiamreceberumestoquesuficienteparaatenderàdemanda.Nessaépoca,ShirleyCollinseraproprietáriadaSurlaTable(fundadaem1972),que hoje é a segunda maior cadeia de lojas de artigos de cozinha nosEstadosUnidos, depois daWilliams-Sonoma, porém era, na ocasião, umaúnicalojanoMercadodeAgricultoresPikePlace,emSeattle.Umapequenacafeteria chamada Starbucks mal acabava de ser inaugurada, logo aliadiante. O mercado Pike Place vendia os melhores produtos agrícolasfrescos da região de Seattle: bagas no outono, vagens tipo Blue Lake noverão. Collins adequava seus artigos ao calendário sazonal. Quandochegavamaomercadoostalosverdesegordosdeaspargo,naprimavera,elavendia“umagrandequantidadedepanelasparaaspargos”.Foitambéma primeira pessoa de todo o noroeste do país a vender o processadorCuisinart.Nocomeço,vendia“emmédiaumpordia”,masasvendas logotiveramumaescaladadrástica.O que Collins observou que estava acontecendo com o Cuisinart foi

realmentenotável.Aspessoasqueoadquiriamnãoeramcomoosoutrosclientes, que podiam comprar umaúnica panela a vapor para aspargos enão voltar nuncamais. O cliente que comprava o Cuisinart continuava aretornar,àprocurademaisutensílios:“fouetsepanelasdecobre,eoquemais fosse necessário quando eles se lançavam em mais uma aventuraculinária”. O aparelho os “viciava” em todo o processo de uma culináriaambiciosa.NãosetratavaapenasdequeoCuisinart facilitasseumagamadetarefasnacozinha,“paraqualquerumqueseinteressasseporpicaroufatiar cogumelos, fazer quenelles, massas ou recheios”; o que Collinsobservou foi algo muito mais significativo. Houve uma “verdadeiraexplosão da culinária”. Um único aparelho havia transformado o quemuitaspessoassentiamarespeitodepassarseutemponacozinha.Ela já

não era um lugar de tarefas enfadonhas – um local de braços exaustos edonas de casa oprimidas –, mas um lugar em que era possível fazeracontecerem coisas deliciosas, ao girar de umbotão. Os 190 dólares nãoeramumpreçotãoaltoapagarpelatransformaçãodaculinária,fazendo-apassardadorparaoprazer.O Cuisinart não foi, em absoluto, o primeiro processador elétrico do

mercado. Liquidificadores já existiam desde 1922, quando Stephen J.Poplawski, um norte-americano de ascendência polonesa, desenhou ummisturador de bebidas para a Arnold Electric Company. Seu uso originalera o preparo de milk-shakes maltados emmáquinas de refrigerantes esimilares.Depois, em1937,veiooWaringBlendor,baseadonummodeloanterior, chamado “Miracle Mixer”, que havia sofrido problemaslamentáveis,logonafaseinicial,comavedaçãodojarro:quandoseligavaoaparelho,oleitemaltadotendiaaesguicharportodaabancada.OWaringBlendorfuncionavamelhore,porserpromovidoporFredWaring,cantoremaestromuitopopular, foiumsucesso instantâneo.Em1954,ummilhãode unidades do mixer Waring tinham sido vendidas. A maioria dosliquidificadoreselétricosfuncionadomesmomodo.Háummotorembaixo,umcopodevidroemcimaepequenaslâminasgiratóriasdemetalligandoosdois.Écrucialquesejainstaladaumajuntadevedaçãodeborracha,paraimpedirqueavitaminaouomilk-shakepinguenomotor.Oliquidificadoréum aparelho fascinante. Nele colocamos o abacaxi fibroso, a bananamassuda, suco de limão, cubos de gelo duros e umas folhas ásperas dehortelã.Batemosloucamenteedelesaiumlíquidoaeradoeaveludado,como tipo de consistência que uma empregada vitoriana precisaria de trêspeneirasdiferentesparaconseguir.Mas o liquidificador tem seus limites. Lavar o copo é um deles. O

tamanho reduzido da maioria dos liquidificadores domésticos é outro.Toda vez que tento bater uma sopa cremosa de agrião no meuliquidificador, a tarefa parece transformar-se num daqueles quebra-cabeças matemáticos em que é preciso verter líquidos diferentes emrecipientes diferentes. Põe-se metade da sopa com a concha noliquidificadorebate-seocreme.Masentão,comobaterasegundametade?É necessário um terceiro recipiente para conter os lotes que vão sendofeitos.Essesdoisproblemas–alavagementedianteeotamanholimitado–foram resolvidos de uma só vez pelo liquidificador de imersão,mixer ouliquidificadormanual, patenteado como “Bamix” na Suíça, em 1950,masque só entrou emuso geral nas casas britânicas ou norte-americanas no

fim da década de 1980. Eu o considero um dos melhores utensílios decozinha: foiumaideiabrilhante levaro liquidificadoràpanela,emvezdocontrário.Omeu liquidificadormanual é usadoquase tododia, sejaparaemulsificar um vinagrete, fazer vitaminas de banana, criar um purê degengibreealhoparaumareceitaindianaoudarasuavidadedasedaaummolhodetomateemanteigaparamassas.Éumamaravilha.Apesardisso,hátarefasqueumliquidificadornãopodefazer.Obordão

“Será quemistura?” é amarca de uma campanha publicitária de enormesucesso, produzida pela Blendtec a partir de 2006, na qual vemos TomDickson, o fundador da empresa, vestindo um jaleco branco e tentandoliquefazerumaseleçãobizarradeprodutos:bolasdegolfe,bolasdegude,umagalinhainteira–tudomisturadocomCoca-Cola,inclusiveumiPhone.Aimplicaçãodoscomerciaisé:umliquidificadorpodefazerqualquercoisa.Masnãopode;nemmesmoumaparelhopotentedeterceirageração,comooBlendtec(ouodesuamarcarival,oVitamix).Osliquidificadorespodemtriturar nozes,mas não picam carne. São capazes demoer uma cenouracrua tão depressa que o atrito a aquece numa espécie de sopa,mas nãoconseguem ralar a cenoura fininho para uma salada, como faz oprocessador,porque,pormaiorque sejaapotênciadomotor, as lâminassãopequenasdemais.Apartemaistrabalhosadopreparodealimentosfoienfrentadaporuma

sériedebatedeiraselétricasenormes.Aprimeiraachegaraomercadofoium modelo vertical inventado por Herbert Johnston, em 1908, para aHobartManufacturingCompany,umaempresaespecializadaemmoedoresde carnemotorizados. Johnston viu umpadeiro batalhar paramisturar amassadepãocomumacolherdemetal.Aquilolhepareceuabsurdo.Comcerteza, seriamais fácil executara tarefausandoummotor.AsprimeirasbatedeiraselétricasHobartforamindustriais,comcapacidadede90litros.Em1919,entretanto,aHobartlançouumaempresacolateral,aKitchenAid,que forneceu uma versão de bancada em tamanho menor, pararestaurantes, que pesava 31 quilos. O modelo foi então reduzidonovamente, para atender à cozinha doméstica. A KitchenAid ainda é abatedeira norte-americana por excelência – um bloco abrutalhado demetal, como um jipão Humvee, porém nas belas cores de um Cadillac(merengue, vermelho, cinza-pérola); com uma batedeira dessas fazemosaquelesbolosfofosecoberturas,tãodifíceisdeconseguircomumbatedorgiratório,comospésnascostas.Oequivalentebritânico foiabatedeiraKenwood, lançadaem1950.Foi

uma invenção de Kenneth Wood (1916-1997), um engenheiro elétricorecém-saídodaReal ForçaAérea. Antes da guerra, ele havia dirigido suaprópria empresa de venda e conserto de rádios e televisores. Fez umlevantamentodosaparelhosde cozinhaexistentesnomercadomundial etentou combinar seus melhores componentes numa única máquina, aKenwoodChef.Woodpegouumabridorde latasdosEstadosUnidos,umdescascador de batatas da Alemanha, uma máquina italiana de fazerespaguetee juntoutudocomummoedor,umabatedeira,umespremedordesucos,umliquidificadoreoutrascoisasmais.Essamáquinamaravilhosaera capaz – se apessoa comprasse todosos acessórios –debater, sovar,liquefazer,espremer,moer, ralar,descascareaindaabrir lataseatécriarformatos diferentes de macarrão (esta última função parecia um certoexibicionismo).O aparelho foi comercializado como slogan “Umcriadoaseudispor,madame!”,transmitindoamensagemdequeosprocessadoresdealimentosfaziamotrabalhoantesexecutadopelosbraçoshumanos.O processador Kenwood foi e é uma esplêndida obra de engenharia –

porém, ainda assim, o Cuisinart/Magimix foi mais significativo etransformador.OKenwoodtemtudoavercomosacessórios,aopassoque,comoCuisinart,tudodequeapessoarealmenteprecisavaeradaslâminasbásicasemSquevinhamcomoaparelho:afacaafiadadeaçoinoxidávelealâminaduplaquerodopiavafeitoumdervixedentrodavasilhadeplástico.Eramessaslâminasquepermitiamaoprocessadornãoapenasliquefazeremisturar,maspicarepulverizar.Elaséqueforamrevolucionárias,fazendocomque,pelaprimeiravez,muitoscozinheirossesentissemlivres,emvezdeescravizados.RoyAndriesdeGrootescreveuumdosprimeiroslivrosdereceitas especializados em multiprocessadores e lançados nos anosseguintesa1973.Oprocessador,escreveuele,“praticamenteequivaleatercomoajudantepermanentenacozinhaumchefhabilidoso,munidodeduasfacas do chef superafiadas e de uma tábua de cortar”. Mais ainda, oaparelho era capaz de “produzir todos os resultados obtidos por umsocadordepedra.Podeamaciaringredientesduros,cortandoetornandoacortarsuasfibras,comoseelesfossemsocadosporumahora[numpilão]”.AslâminasmetálicasemSnãoeramoúnicoacessórioquevinhacomo

Cuisinartoriginal.Havia tambémumdisco fatiador serrilhado, idealparafatiar legumes crus, como cenoura, pepino ou repolho (“Antes que vocêconsiga dizer ‘salpicão’”, escreveu de Groot, “a tigela estará cheia derepolhocortadoemtirinhas”).Váriosdiscosraladorespodiamserusadospara transformar um pepino em tiras ou reduzir um aipo-rábano

encaroçado àquela clássica entrada francesa, a céleri rémoulade. Oacessóriomaisestranhoeraalâminanãocortantedeplástico,quevinhadegraçacomoaparelhoe tinhao tamanhoea formaexatosdas lâminasdeaço,massemopoderdecorte.DeGrootrecordouocomentáriodeumchefque disse: “A única serventia dela é nos deixar acordados de noite,pensandoemparaqueservirá.”Nãotinhaimportância.Para tirar omáximo proveito de um aparelho Kenwood da década de

1950,eraprecisoterumgrandelequedeacessórios,muitosdosquais,naverdade, eram tão volumosos para guardar quanto os aparelhos que seesperava que viessem a substituir (o acessório para liquefazer erapraticamente domesmo tamanhode um liquidificador comum). Comumprocessador de alimentos, os acessórios eram mais compactos e haviamenosnecessidadedeusá-los.Quasetudopodiaser feitocomas lâminasmetálicas básicas em S, que iam girando dentro da tigela enquanto seacrescentavam os ingredientes pelo tubo de plástico. Elas podiam serusadas paramoer carne para hambúrguer e fazermassas de bolos, parapicarcebolasefazeramaionesemaisfácildomundo.Quasequarentaanosdepois do primeiro Cuisinart,MarkBittman, autor de livros de culinária,aindasedeslumbravacomessacaracterísticadoprocessadordealimentos:

Asinstruçõesdamaionesefeitaàmãopedemquevocêpingueoazeite–nãoexatamentegotaagota,mas quase – numamistura ácida de ovo, enquanto vai batendo com um garfo ou um batedor. Éfactíveledivertido–umavez.

Àmáquina,vocêcolocaumovo,umacolherdesopadevinagre,duascolheresdechádemostardaeumpoucodesalepimentanavasilha;põeatampaeligaoaparelho;põeumaxícaradeazeitenotubodealimentação,comseuburaquinho,evaitomarumcaféoupraticarioga.Oazeitegotejaaospoucosevocêobtémumamaioneseperfeitaemumminuto.Sóissojávaleopreçodoingresso.

AsbatedeirasdemeadosdoséculoXXtornarammaisfácilparaasdonasde casa a execução de muitas tarefas que elas já faziam, de qualquermaneira:moercarne,baterovos,misturarmassadebolo.Oprocessadordealimentos deu um passo à frente, incentivando suas proprietárias aembarcaremtiposdepratosqueanteselasjulgariamimpossíveis.Em1983, o cozinheiro inglêsMichaelBarryobservouque,nopassado,

“apenas algumas almas corajosas e dedicadas tentavam fazer patê emcasa”,por causado “processoexaustivode cortar,moerebater, edepoislimparoequipamento”.Agora,fazerpatêstornara-senormal,umtrabalhodecincominutos:“Oprocessadormudounossoestilodevida.”Oaparelhohaviadesmistificadodeumsógolpemuitosdospratosmaiscomplexosdorepertóriodahautecuisinefrancesa,inclusiveasamadasquenellesdeCarl

Sontheimer.HouveraépocaemqueosricosdaEuropatinhamlevadoseuscriados à exaustão para desfrutar dessas iguarias leves, mas isso haviaacabado.Parafazeramistura,bastavajogarnavasilhadoprocessadordoispeitosdefrangodesossados,sal,pimenta,queijoparmesão,cremedeleiteeovos,eapertarobotão.Tão grande foi a sensação de liberdade trazida pelo processador para

seusdevotosdaclassemédia–entreosquaiseumeincluo–quedevemostomarcuidadoparanãonosiludirmos,achandoqueelerealmenteeliminoutodo o trabalho. A dona de casa medieval que fazia panquecas no LeMénagierdeParisficavacaraacaracomaspessoasquetrabalhavamparaela,aopassoquenossosempregadosquasedesapareceramdanossavista.Não vemos as mãos que desossaram os peitos de frango nas empresasprodutorasdessa carne, sem falardasavesqueperderamavida,nemosoperários que trabalharam para montar as peças dos nossos velozesprocessadores. Vemos apenas uma pilha de ingredientes e umamáquinapronta para fazer o que mandarmos. Sozinhos em nossas cozinhas,sentimo-nosinteiramenteemancipados.

TODA REVOLUÇÃO TEM sua contrarrevolução. Não se pode lançar algo tãoextraordinário quanto o processador de alimentos sem que haja umareação.NocasodoMagimix,noReinoUnido,areaçãoveiocedo.Em1973,ano em que ele chegou ao mercado, uma redatora do jornal The Timessugeriu que ele privaria as futuras gerações dos prazeres de debulharervilhas e sovarmassas comasmãos.Chegouapontode sugerirque, aoprivar os cozinheiros da estimulação tátil, o processador poderia deixar-nostodosprecisandode“terapiadegrupo”.Depoisqueelechegou,ninguémconseguiriaeliminaroprocessadorde

alimentos da nossa vida, mas podia reclamar, e sempre nos mesmostermos: ele tirava a alegria do processo de cozinhar; resultaria numacomida robotizada, que não poderia ter um sabor tão agradável quantoalgofeitoàmãoedeformaartesanal;ereduziatudoaumapapa.A bem da verdade, havia certo fundamento nesta última reclamação.

Muitas vezes, o nascimento de uma nova engenhoca dá margem a umapaixonadoexcessodeuso,atéacabaranovidade.Aolermososprimeiroslivrosdereceitaspautadospelosprocessadoresdealimentos,dasdécadasde 1970 e 1980, ficamos impressionados ao ver quantas receitas têm aconsistência de papinhas de neném. Qualquer legume que pudesse sertransformadoempurêassumiaessatextura.Haviaumnúmeroincontável

de patês e cremes enformados em timbales, uma profusão de pastas(taramasalata, homus, baba-ganoush) e misturas estranhas, feitas emformas com furo. Naqueles primeiros anos, muitos cozinheiros derestaurantes, bem como domésticos, não conseguiam parar de usar seunovo brinquedo em tudo. As quenelles passaram de rara iguariaaristocráticaapratodejantardediasdesemana,atéaspessoasacabaremdescobrindo que, desaparecido o fator raridade, elas não eram tãoespeciaisassim,afinal.Em 1983, a autora de livros de culinária Elizabeth David destacou a

ligaçãoentreoamploacessoaosprocessadoresdealimentoseanouvellecuisine, comsuaobsessãoporpurêsaveludados.Elaestava jantandocomJuliaChildnumrestaurantelondrino“muitoelogiado”,nadécadade1970,quando esta última comentouque as duas estavam comendo “comida doCuisinart”:

Cercadeseteemcadadezpratosdocardápiodorestaurantenãopoderiamtersidocriadossemoprocessadordealimentos.Ospurêsleves,osmolhosaeradoseasmusselinasdepeixe,tãoadoradospelosrestaurateursdehoje, tambémpodemserconseguidosemcasa,maisoumenosaosepressionarumbotão…[É]realmentemaravilhosoqueoprocessadorcuidedetodoomoer,picar,fazerpurêsemisturar,semtermosdepensarduasvezesemtodaaquelacansativatrituraçãodopassado.Masnãovamostratá-locomosefosseumalatadelixo.

Graças à própria David, entre outros, o pêndulo damoda na culináriaosciloudenovoemsentidoinverso,voltandoàcozinhaprovincialfrancesae italiana, mais robusta, na qual os ingredientes individuais eramdiscerníveis.Assopaseosguisadosganharampedaços,oqueeraummododeostentaranãoutilizaçãodeumprocessadoremseupreparo.Ospratosde textura fina perderam quase todo o seu atrativo anterior. Agora, orústicoeirregularéquepassaraaservalorizado,pormostrarqueamãodealguémtinhasecansadoaofazê-lo.Pilões e socadores tornarama entrar emvoga.Os autoresde livrosde

receitas insistiam em tom autoritário em que só se podia preparar umautênticopesto,umcurrytailandêsouumromescoespanholnumpilão.Otipo feito no processadornunca poderia ser igualmente saboroso. Houveaté uma nostalgia do estilo de vida de todas aquelasmulheres da Itália,Espanha, África e Oriente Médio que se sentavam em roda e passavamhoras a fio em comunidade, socando o alimento de cada dia e cantando.Não pareceu ocorrer a esses autores que talvez as mulheres cantassemporqueessaeraaúnicamaneiradese impediremdegritarde tédioantesuatarefa.Enquantonós,nascidadesdoOcidente,nosempenhávamosem

imitarasantigaspráticasdocampo,muitoscamponeseshaviampassadoausar processadores de alimentos. No ano 2000, Marlena Spieler,especialista californiana em culinária, viajou à Ligúria, na Itália, paraaveriguar como era feito o pesto em sua terra natal. O que constatou foique, “depoisdeexibiremorgulhosamenteoenormepilãoealmofarizqueera suaherançadegerações,os ligurianos, emsuamaioria,mostravamoqueusamdefatoparafazeropesto:umprocessadordealimentos”.OmesmosedeunoOrienteMédio.Em1977,onúmerodeprocessadores

emusopercapitaeramaiorládoqueemqualqueroutrolugardomundo.Umadasrazõesdissoeraoquibe,pratoqueassumemuitasformas,tantocruasquantocozidas,equelevacarnedecarneirofinamentetriturada,emgeralcomtrigointegral,canelaepimenta,cebolaeervasverdes.AautoralibanesaAnissaHelou recordouo quibe feito em casapor suamãe e suaavó,emBeirute:

Elassesentavamembanquetasbaixas,dosdois ladosdeumbelopilãodemármorebrancoemquehaviapedaçostenroserosadosdecarnedecarneiro.Osomritmadodopilãosubiadeumabatidasurdaelentaparaoutramaisaltaemaisrápida,àmedidaqueacarnesocadaiasetransformandonumapastamacia.

Oprocessode trituração levavaumahora,duranteaqualHelouesuasirmãs “entravame saíamcorrendoda cozinha”, perguntando se já estavapronto.Emseguida,acarnesocadatinhaquesermoldadaem“bolasbem-formadas”, junto como trigo integral eos condimentos.Essaetapaaindatemqueserfeitaàmão,masasocadura,queantesocupavaduasmulheresinstruídas durante uma hora, agora leva um minuto para pulsar numamáquina.Issoéempolgante,masétambémumtantinhodesdenhosoparacomas

mãos habilidosas que socaram o quibe durante tantas gerações. É o queacontece toda vez que umamáquina substitui o trabalhomanual de umartesão: as habilidades do artífice passam a ser desvalorizadas. Oprocessadordealimentosfoiumaafrontaaoorgulhodoscozinheiros,portertornadosupérfluooesforço.Todaaquelasocaduradavaaimpressãodevaler a pena, quando a pessoa podia dizer a simesma que suasmãos, eapenassuasmãos,faziamadiferençaentreumquibesaborosoeumquibeindiferente.Aoexecutaramesmatarefaigualmentebem,senãomelhor,oprocessadorretiroudacozinheiratrabalhadorapartedesuadignidade.Aofuncionar tãobem, essamáquinaparecedesconsideraro esforçoqueeraempenhadonopreparodediferentespratos:baterumamaionese,peneirarumfinopurêdecenoura,socaracarneparaoquibe.

O Thermomix é um aparelho mais recente, que torna mais ou menosirrelevantes asmãos do cozinheiro. É anunciado como reunindomais dedez utensílios de cozinha numa única unidade. Trata-se de umliquidificador e processador que tambémpode pesar, cozinhar no vapor,cozer,fazermassadepão,moergelo,emulsificar,moer,ralarefazerpurês.OThermomixpodeexecutarmuitasdastarefassutisemqueantesasmãoshumanas eram consideradas indispensáveis. Depois de jogar osingredientes ládentro,vocêpodemexerecozinharumrisotocremoso.Amáquina sabe fazer um cremede limão aveludado e ummolhoholandêsperfeitamente emulsificado. A você resta a única tarefa de comer osresultados.Cadacozinheiroreageaessesconhecimentosdeumjeito.Algunslutam

contra o aparelho, buscando uma cozinha artesanal que afirme, a cadagarfada de comida rústica, que o prato foi feito à mão. Até hoje, muitasfamílias italianas passam horas alegremente enrolando, cortando erecheando à mão o tortelone, porque as versões de massa recheadaproduzidasemfábricas–aocontráriodasmassassecasindustrializadas,asquaiséimpossívelaprimorar–nãopodemcompetircomasfeitasemcasa.Noentanto,essaspessoasnãochegamaoextremodepegaropilãoemoersuaprópriafarinhaparaamassa.Ocultodacomidafeitaàmãovaisóatécertoponto,porquetodostemoscoisasmelhoresparafazerdoquepassarhorasmoendo.Omovimento SlowFood iniciou-se na Itália, em1989, para “se opor à

ascensão da fast food de lanchonetes e da vida acelerada”. A lentidão doSlowFoodrefere-seprimordialmenteaosmétodosagrícolaseàsmaneirasdecomer:suafilosofiadefendeabiodiversidade,emoposiçãoàagriculturaintensiva, e as refeições lentas e sensuais, em oposição aos lanchesdevoradosàspressas.Omovimentotambémdápreferênciaaalimentosdeproduçãolenta.OSlowFoodalia-seaumcultoaoqueéfeitoàmãoefeitoemcasa,emcontrastecomo feitoàmáquina, comumaredescobertadosprazeresterapêuticosdesovaramassadopãooufazersalamedefumadoemcasa,partindodozero,recriandosobaformadelazeroqueumdiafoiumtrabalhoexaustivonacozinha.Mascozinhardeformalentaedifícilnãoéaúnicamaneiradepreparar

pratos deliciosos. Outros cozinheiros, mais pragmáticos, acolhem asmáquinasdebomgrado.OgrandechefRaymondBlancàsvezesdemonstracomofazermassadocenumprocessador,colocandomanteiga, farinhadetrigoeaçúcar,batendopornãomaisdemeiominutocomgemadeovoe

água, e moldando-a num movimento habilidoso em uma bola de massaamanteigada. “Vocêpode fazê-laàmão, sequiser”,ouvi-ocomentarcertavez, muito sensatamente, “porém vai demorar muito mais e não ficarámelhor.”

RALADORDENOZ-MOSCADA

A forma segue a função. Basta ver a diferença entre um ralador de noz-moscadabritânicoeumraladordegengibre japonês.Umédemetal,comperfurações de bordas protuberantes, para ralar a noz-moscada atétransformá-la num pó fino. O outro é um prato de cerâmica com picosespetados, em vez de furos. Esses picos prendem as fibras do gengibre,enquantoosumoeapolpasaborososescorrempeloslados.

Ambos são utensílios satisfatórios, cada qual a seu modo. Devem suaexistência à paixão por condimentos picantes e às guinadas tortuosas docomércio,daagriculturaedogostopessoal,queintroduzemesseouaqueletemperonaculináriadeumpaís.A noz-moscada, colhida na Indonésia, era o luxo mais desejado na

Europaseiscentista.Sachêsdenoz-moscadaeramusadoscontraapeste,eesse tempero levemente alucinógeno era ralado sobre pratos salgados edoces.Hojeaspessoas jánãocarregamseuestoquepessoalemcaixinhasminúsculas.Noentanto,éoúnicotemperoqueaindainsistimosemralarnahora,àsvezesguardandoospequenosovoidescastanhosbemfechadosnointerior de raladores semicilíndricos, que têm a mesma aparência quesempretiveramosraladoresdenoz-moscada.A comida japonesa não é carregada nos temperos, mas o gengibre é

crucial, seja o gengibre rosa em conserva que acompanha o sushi, seja orizomafrescoraladoemmolhoscomsojaesaquê.Ogengibreéapenasuma

dasplantasfibrosascomqueocozinheirojaponêsprecisalidar;outrassãoo wasabi e o rabanete daikon. Os raladores japoneses primitivos eramcomumente feitos de pele de tubarão, para reter os espinhos fibrosos.Agora,oserviçoé feitoporprotuberânciasdecerâmica,comoumaformamalignadeBraille.Nãosepoderalargengibrenumraladordenoz-moscada–araizúmida

entope rapidamente os furos do metal. Também não se pode ralar noz-moscadanumraladordegengibre–aespeciariaduraescorreganaquelesdentesemachucamosasmãos.Sevocêprecisardeumutensíliopararalarosdois (alémdecascade limãoequeijoparmesão),esqueçaa tradiçãoecompreumMicroplane.

aOmadeiraéumbolodelimãotipopãodeló,comacrostacrocante,eodundeeéumclássicobolodefrutasescocês.(N.T.)

6.Servirecomer

“Mantenhasuaroupademesalimpaeperfumada,suasfacasbrilhando,suascolheresbem-lavadas.”

JOHNRUSSELL,TheBookofNurture(c.1460)

“Osdedosforamfeitosantesdasfacasedosgarfos.”

Provérbioantigo

AS COLHERES SÃO – ao lado de seus companheiros e rivais, o fachi e o garfo –decididamente uma forma de tecnologia. Suas funções incluem servir,medirelevaroalimentodopratoàboca,semfalarnascolheresculináriaspara mexer e raspar, escumar, levantar e retirar como concha. Todasociedade humana tem algum tipo de colher. Em si, são utensílios bem-educados – em especial se comparados com as facas. São colheres quedamos aos bebês. Segurar uma colher com o punho fechado é um dosprimeiros marcos do nosso desenvolvimento. Elas são benignas edomésticas,massuaconstruçãoeseuusorefletiram,muitasvezes,paixõesprofundasepreconceitosardorosamentedefendidos.

EM1660,adornadoluxuosamentecomumaperuca,CarlosIItornou-sereida Inglaterra, Escócia e Irlanda, restaurando a monarquia após a breveexperiênciadopaís comogovernorepublicanodeOliverCromwelle seufilhoRichard.Onzeanosantes, em1649,opaido rei,Carlos I, tinhasidoexecutado,noaugedaguerracivil inglesa.Amonarquiavoltouentãocompleno vigor. A restauração de Carlos II foi acompanhada por amplasmudanças culturais, que almejavam apagar qualquer lembrança dosCabeças Redondas puritanos. Reabriram-se teatros, Händel compôs suamajestosaMúsicaaquáticae,quasedanoiteparaodia,ascolheresdeprataassumiram uma forma inteiramente nova: a colher trífida (tambémconhecidacomotrifólia,depontafendidaoupied-de-biche).

Comoogovernorepublicanoduroutãopouco,ascolherescromwellianassãoraras.Masasquesobreviveramsãosimplesesemadornos,comoseriade se esperar. A forma dessas colheres – que começaram a aparecer naInglaterraapartirdadécadade1630–éconhecidacomo“puritana”.Elastêmumasimplesconcharasaemformatooval,ligadaaumcabomodestoeplano.Acolherpuritanamarcouumdistanciamentodascolheresdepratainglesas anteriores, com concha em forma de figo (o termo técnico é“ficiforme”)ecaboshexagonaisrobustos.Essasprimeirascolherestinhamaconcavidadeparecidacomumalágrima,maislarganapartefrontalqueélevadaàboca,aopassoqueacolherpuritanaestreitava-seligeiramentenaponta,comoocorrecomamaioriadascolheresatuais.Amaiormudançadacolherpuritanafoinocabo,desprovidodequalqueradorno.Nos séculos anteriores, os artesãos que trabalhavam com prata

esbanjavam grande talento artístico na parte da colher que hojeconsideraríamos quase irrelevante, acrescentando pequenas esculturas àpontadocabo.Antesde1649,os“botõesdearremate”incluíamdiamantese bolotas de carvalho, corujas e cachos de uvas, mulheres nuas e leõessentados.Algunseramformasabstratasdepontaplana,comoumseloouum lacre; outros retratavam Cristo e seus apóstolos em arremateselaborados. Nenhuma dessas colheres decorativas foi bem-recebida noperíodorepublicano,quandoqualquertipodeadornoexcessivo,sobretudoreligioso, era reprovado. Os Cabeças Redondas cortaram a cabeça dascolheres tal como haviam cortado a do rei. Os novos utensílios demesarepublicanoseramdesprovidosdeenfeites,sendoapenaspedaçosdensosesimplesdeprata.Sugeriu-sequeumadasrazõesdeascolherespuritanasserem tão pesadas era que os cidadãos as usavam para acumular prata,contrariandoasfrequentesproclamaçõesqueexortavamopovoadoarsuapratapessoalparacustearadefesadascidades.Seaprataestivessesobaforma de talheres, o indivíduo podia alegar que eles eram essenciais eimpedirquefossemconfiscados.

Fosse como fosse, a própria colher puritana não tardaria a sersubstituída pela colher da Restauração – a trífida –, que viajou com omonarca recém-coroado, Carlos II, no regresso de sua corte do exílio naEuropacontinental.Essaéaprimeiracolheremsuaformamoderna;quasetodasascolheresdehoje,pormaisbaratasquesejam,aindadevemalgoàtrífida.Nenhumbritânicojamaishaviacomidocomumacolherdessasemseupaís–asmaisantigastrazemadatade1660.Noentanto,em1680elasjá se haviam espalhado por todo o reino de Carlos II, e continuaram adominardurantequarentaanos,acabandocomacolherpuritanaecomasoutrasficiformesqueexistiamantes.Ascolheresdemetalbaratodaplebe,feitas de estanho e latão, também mudaram de forma, passando daspuritanas para as trifólias. A mudança não foi gradual, mas abrupta. Noplano político, ninguém queria ser visto fazendo sua refeição com umacolherdosCabeçasRedondas.A concavidade da trífida era uma oval funda, e não um figo raso. Tal

comoodapuritana,seucaboeraplano,masaumentavanaponta,comumdesenho fendido característico (donde o nome, que significa “com trêsfendas”). O desenho era francês: o trifólio é um eco da flor-de-lis, o lírioestilizadoqueseassociaàmonarquiafrancesa.Virando-seacolher,via-sequeahastebatidacontinuavaatéascostasdapartecôncava, terminandonumsulcoemformadeseta,àsvezeschamadode“raboderato”.Aolongodas décadas, essas novas colheres tambémparecemhaver acompanhadomudanças na maneira de segurá-las. Algumas formas nos convidam a

segurá-las de certa maneira. Por causa do “botão” na extremidade, ascolheresmedievaissãomaisfáceisdesegurarcomocabosobopolegar,emânguloreto.Atrífida,aocontrário,podiaserseguradacomocaboapoiadonapalmadamão,paralelamenteaopolegar.Comumatrífidarégianamão,preparando-se para mergulhá-la numa torta de maçã, talvez vocêesquecesse que um monarca reinante tinha sido executado, ou que emalgummomento a Inglaterra havia prescindido de seu rei. Ali estava umutensíliodecozinhacomopropagandapolítica.As colheres servemde espelho da cultura circundante, justamente por

serem tão universais. Existem culturas do garfo e culturas do fachi, mastodos os povos do mundo usam colheres. A forma particular que elasassumem,portanto,émuitoreveladora:umabelacolherazulebrancadeporcelanachinesa,para tomarsopadewontons, fazpartedeumaculturadiferentedaqueusa colheres russaspara comerconservaspegajosas,oudas colheres de pau semelhantes a conchas usadas nas casas pobres daEuropaparatomarsopanumapanelacomunal,passandoacolherdebocaemboca.Em termos funcionais, a colheréumobjetoqueajudaa levaroalimento à boca. Na década de 1960, Jane Goodall viu chimpanzésimprovisandoumaespéciedecolhercomtalosdegrama,parafacilitarsuaingestão de cupins. No passado distante, os seres humanos amarravamconchasemgravetoseasusavamparaconsumiralimentoslíquidosdemaisparaseremcomidoscomamão.Apalavralatinacorrespondentea“colher”refleteessaprática:cochleare,quevemdovocábuloequivalentea“concha”.Osromanosusavamessascolherinhasparacomerovosoutirarfrutosdomardedentrodasconchas.Parapratoscomocaldosousopas,elesusavamumacolhermaior,emformadepera–aligula.Em diferentes períodos, as pessoas preferiram colheres diversas,

dependendodoquemaisgostavamdecomer.Colheresparaovos,feitasdemadrepérola, refletiamapredileçãoeduardianaporovosquentes (usava-semadrepérolaouossoporqueagemadeovomanchaaprata).Ascolhereshanoverianasparamostardarefletemoquãovitalessecondimentopicanteeranadietainglesa.OsgeorgianosdoséculoXVIIIadoravamtutanodeboiassado e inventaramuma série de colheres e conchas de prata especiaispara comê-lo. Algumas tinham duas conchas na ponta, uma para ossospequenos, outra para os grandes. A ideia era segurar o pedaço de ossoassadonumeleganteguardanapobrancoeusarosutensíliosparatirarosnacos macios e gordurosos de tutano. As colheres para tutanoassemelhavam-se à complicada série de colheres, palitos e espetos que

acompanhamumplateaudefruitsdemernaFrança.Acolherparatutanotornou-seobsoletaatualmente(emboraamodade

comer tutano assado com salada de salsa, iniciada pelo chef londrinoFergus Henderson, talvez ainda a traga de volta). Mas outras colhereslograram dar o salto que as levou de utensílios especializados aimplementouniversal, enenhuma foimaisbem-sucedidadoqueacolherde chá. Ela surgiu pela primeira vez quando os ingleses começaram aacrescentar leite ao chá, na segunda metade do século XVII. Tornou-senecessáriaparamisturaroleite,oaçúcareochánaxícara.Eraumutensíliodos ricos, separado dos aparelhos de jantar e talheres principais. Àprimeira vista, parece estranho que a colher de chá tenha saltado daatmosferararefeitadasmesasdechá inglesasparaasgavetasdetalheresdomundointeiro.Osutensíliosdacerimôniadochájaponesa–aconchaeavassourinhadechá,ambasfeitasdebambu–nãosedisseminaramdessamaneira.Tambémnãoofizeramosoutrosacessóriosdocháinglês,comoospegadoresdeaçúcareoscoadores,quecontinuaramaserprivilégiodosque ainda apreciam o ritual de se deter para um chá da tarde completo,comporcelanafinaeacompanhadoporsconescomcreme–umgrupocadavezmenor.Hojeemdia,rarasvezesseencontraalguémrefinadoobastantepara usar pegadores de açúcar, até porque os próprios cubos de açúcarsaíramdemoda.Masascolheresdechácontinuamemtodaparte.A colher de chá não ganhou mundo imediatamente. Em 1741, o

inventáriodebensdoduquedeOrléans,naFrança,incluía44colheresdecafé em prata folheada a ouro, mas nem uma única colher de chá. Osfrancesesainda tendemausarcomounidadedemedidaacolherdecafé,queémenorqueadechá(eusamaabreviaturacc,quesignificacuillèreàcafé). Emoutros lugares, porém, a colher de chá impera,mesmoquandonãosebebeocháemsi.DoséculoXIXemdiante,acolherdechátornou-seumcomponentebásicodostalheresnosEstadosUnidos,apesardesebebermaiscomumenteocafé;edeláasuainfluênciaseespalhou.Masporquê?Comofoiqueacolherdecháfezatransiçãoparaaculturadominante,masoutrascolheresespeciaisnão(porexemploacolhervitorianaparabagas,comsuaconchadebordarendilhada,ouaspazinhasdeprataparasalqueeramfeitasemprofusãonoséculoXVIII,algumasparecendominicolheresdesopa,outrassemelhantesaminúsculascolheresparasorvete)?Desconfioquesejamduasasrazõesdosucessoglobaldacolherdechá.

Primeiro,emsuafunçãoprimordial,elanãoérealmenteumacolherparachá,masumacolherparaaçúcar,substânciapopularentreosapreciadores

sejadecaféoudechá.Segundo,elaatendeuaumanecessidadegenuínadeumutensíliopequenoejeitoso,menorqueacolherdesopaouacolherdesobremesa do século XVIII, mas não tão miúda quanto a colher de caféfrancesanemtãosofisticadaquantoapazinhadesalgeorgiana.Acolherdechánorte-americanaeramaiordoqueainglesa,mas,emambososcasos,asdimensõeseramumencaixemuitobomparaabocahumana.Acolherdechá tem uma profusão de usos, como demonstra sua tendência adesaparecerdagavetadetalheres(sóatesouradecozinhaémaisesquiva).É sempre solicitada para medir pequenas quantidades de fermento econdimentos. Amaioria dos cozinheiros também a usa como provadora,mergulhando-anosmolhosparaavaliarotempero,ouapenaspararoubarumaprovinhasaborosadojantarquevirá.Ehátambémtodasascoisasqueé possível comer comodamente com colheres de chá, desde pudinspequenos até abacates. Sou bastante tendenciosa nesse aspecto, porque,como adolescente excêntrica e meio problemática, passei vários anoscomendotudo–pelomenos,oquenãoprecisassesercortado–comumacolher de chá. É claro que eu tinha umas “questões” não resolvidas.Lembro-me de como me sentia segura ao comer aquelas colheradaspequenas,feitoumbebê.Inextremis,portanto,pode-seusarumasócolherparatodasasrefeições,

oquenãoquerdizerqueelafuncioneigualmentebemcomtodosospratos.Comooresultadofinalésempreomesmo–levaracomidaàboca–,rarasvezessereconhecequeacolherusadaparacomerfuncionadepelomenosduasmaneirasdiferentes.Suaconcavidadepodeserumaespéciedexícarade cuja borda se bebem líquidos. Ou pode ser uma pá, concebida paratransportarmisturasmaissólidas.Umexemplomuitoclarodacolhercomopá é akafgeer, uma colher grande e achatada que se usa no Afeganistãopara servir arroz. Em todo oOrienteMédio, há pás e espátulas especiaispara servir arroz e, quando elas são usadas, nota-se que se saemmuitomelhor na tarefa de recolher todos os grãos do que as nossas colheresovaladas.Damesmaforma,quandoexaminamosasprimeirascolhereseuropeias,

identificamos diferenças radicais de formato, que refletem os usosdiferentes. Num convento na remota ilha escocesa de Iona, forampreservadasalgumascolheresdepratamedievaiscomaconcavidadefeitaem formade folha: trata-se decididamente de umapá,masmuitomenorqueasusadasparaarroznoOrienteMédio.Taiscolheresdeviamserideaisparatomarmingausgrossos,masnãotãoboasparaassopaslíquidas.Para

estas, os produtores medievais de colheres faziam unidades redondas egrandes, cuja concavidade era grande demais para caber na boca, masperfeitaparasebebericarolíquido.Hoje em dia, quase ninguém pensa muito em como funcionam as

colheres. A razão, em parte, é que a colher moderna, com sua conchaovoide, é uma conciliação entre a xícara e a pá. Pegue uma colher desobremesa na sua gaveta de talheres. Você poderia usá-la para comer,digamos, colheradas de arroz pilafe? Poderia usá-la para tomar umconsomê?A resposta a estasperguntas seria “sim”. Éprovável que a suacolherdesobremesanãosejaperfeitaparanenhumadasduastarefas:rasademaisparaasopa,fundaeredondademaisparaoarroz.Masserve.ParaJohnEmery,essaconcessãonãoeraboaobastante.Eleerafanático

por colheres, um historiador dos talheres que, na década de 1970,experimentoufazerréplicasdecolhereshistóricaseverificaroquepoderiaenãopoderiasercomidocomelas.Dopontodevistadafunção,lamentouatrífida e todas as suas sucessoras. Na opinião dele, a conciliação entrexícara e pá “raramente era satisfatória”. Piorava ainda mais com oincômodohábitodacomidadeoscilarentreosestadossólidoelíquido.Oraasopaeradensaeencaroçadafeitomingau,oraomingaueraralocomoasopa.AetiquetamandavaqueEmeryusasseumamesmacolher;afunção,outra.Paraele,comoparatodososespecialistasemcolheres,arespostaéfazê-

las cada vez mais especializadas. Se você é dessa mentalidade, a eravitoriana seria umparaíso, com suas colheres paraaspic epara tomates,colheresparamolhoseparaazeitonas,conchasafuniladasparacaldos,páspara bombons, conchas para chá e colheres para cítricos e para queijoStilton, entre outras. A proliferação dos talheres foi alimentada pelapassagemdo serviço à francesa (noqual todosospratos erampostosnamesaaomesmotempo,paraqueosconvivasseservissem)paraoserviçoàrussa (noquala refeiçãoeraservidanumasucessãodeetapas, cadaqualrequerendoseusutensíliospróprios).OsEstadosUnidosdofimdoséculoXIXassistiramaosurgimentodeumagamaaindamaiordenovascolheresespeciais: não apenas colheres de sopa arredondadas (introduzidas nadécadade1860),mastambémcolheresseparadasparasopascremosasebouillons (estas últimas erammenores). E as colheres para servir! Entreessesutensílios incluíam-seostiposespeciaisparaostras fritas, lascasdecarne defumada, macarrão e batatas chips. A Tiffany’s comercializou a“colher para fritas Saratoga” – peça cujo nome se inspirou em Saratoga

Springs,o localemqueseservirambatataschipspelaprimeiravez–,empratadelei,decabogrossoeconcavidadeabalonada,parapouparasmãosaristocráticas do horror demanusear batatas fritas. Não é certo, porém,queessaproliferaçãodetalheresparacomereparaservirtenhasidosinaldeprogresso.

DISPORDEMAISACESSÓRIOS–maisutensíliosdecozinha–nãonecessariamentetornaavidamais fácil.Oproblemade juntarmaisemaisutensílios reluzentes,quelidamcomacomplicadatarefadecozinharecomer,équeelestendemavircomcostumessociaisque julgamnecessáriousá-los,mesmoquandofazer isso é um claro insulto ao bom senso. Darra Goldstein, autora delivros de culinária, fala na “angústia do garfo”, um problema nervosoacarretadopela variada profusão de talheres posta namesa dos jantaresrequintados:“Éprovávelquenuncatenhahavidoumaépocaemquetodosessesgarfoseramusados,maséfácilperceberporqueasimplesexistênciadeumgarfoparatomatespoderiagerarangústia”,observouela,em2006.Os livros de etiqueta do início do século XX entram em minúcias paradescrever comomanipular com garfos e facas alimentos que seriamuitomelhorpegar e comer comasmãos, comopêssegosmaduros, espigasdemilhoouqualquercoisaquetenhaossos.Quasetodasasregraselegantesarespeitodostalheresrefletemopavor

demanusearacomida–umtemordoseucaráterpegajosoebarulhento.Vezes sem conta, dizem-nos que a sopa deve ser tomada de formasilenciosa, em contraste com o Japão, onde a etiqueta, ao tomar sopa demacarrão,decretaqueelesejaruidosamentesugado,parademonstrarumaverdadeiraapreciação.Asopadevesertomadapelabordadacolher:houveépoca em que se julgava deselegante inserir uma partemuito grande dacolher na boca, embora se abrisse uma exceção especial para os homenscom bigodes fartos, que podiam tomar a sopa pela ponta da colher. Em1836,considerava-seumagafetãoterrívelpegaroaçúcarcomamão,emvez de usar o pegador apropriado, que isso podia fazer um cavalheiroperder sua boa reputação. Por outro lado, havia também o medo de separecer exageradamente refinado ou de dar importância excessiva aosdetalhes dos modos à mesa. A preocupação em demasia com o garfocorreto era sinal de insegurança, ou até de falsidade. Os verdadeirosaristocratas conheciama “rudeza refinada”dequandousar osdedos, emvez de garfos: era correto comer rabanete, bolachas, aipo, morangos eazeitonascomamão.Háumahistóriafictíciadeumaventureiroquetentoupassar-se por nobre e foi desmascarado pelo cardeal Richelieu quando

tentoucomerazeitonascomumgarfo,coisaqueumverdadeirocavalheirojamaisfaria.Ousodegarfos,facasecolheresfazpartedocultivomaisamplodasboas

maneirasedeumaculturamaiordaconformidade.Emboraousodogarfoerrado pudesse não ter grande importância, era essencial a pessoademonstrarquecompreendiaasregrasdojogo.Osegredoeraagircomoseestivesseintegrada.Issoeraomaisdifícil,sobretudoporqueamodanousodosutensíliosdemesamodificava-serapidamente,eumcostumequeeradebom-tomnumadécadapodiatornar-seridículonaseguinte.Nocomeçodo século XIX, houve até um breve modismo, nas “rodas elegantes”, detomarsopacomogarfo.Foilogocondenadocomo“umatolice”eacolherserestabeleceu.Com respeito a quase todas as outras coisas, porém, a maneira mais

refinadadecomercontinuouasercomogarfo.Nasaltasclassesinglesasdemeados do século XIX, o “almoço de garfo” e o “jantar de garfo” eramrefeiçõesservidascomobufês,nasquaisafacaeratotalmentedispensada.Ogarfoerarefinadoporsermenosviolentoquea facaemenos infantiledesajeitadoqueacolher.Recomendavam-segarfosparatudo,dopeixeaopurê de batatas, de vagens a bolo de creme de leite. Criaram-se garfosespeciaisparasorvetesesaladas,sardinhasetartarugas.Aregrabásicadasboas maneiras à mesa no Ocidente, durante os séculos XIX e XX, foi: nadúvida,useogarfo.“Àsvezesseusaacolhercomsobremesasmaisfirmes”,observou um livro de receitas de 1887, “mas o garfo é o estilo maiselegante.”Noentanto, temosamemóriacurtaemmatériadeboasmaneiras.Não

fazmuitotempo,comerqualquercoisacomumgarfopareciaumabsurdo.Como utensílio de cozinha, ele é muito antigo. Os garfos para assar –espetoscompridosparaexaminarelevantaracarneduranteocozimento–existemdesdeostemposhoméricos.Osgarfostrinchantes,paraprenderacarne enquanto ela é cortada, são medievais. Entretanto, os garfos paracomer,aocontráriodosusadosnapreparaçãodacomida,sócomeçaramaparecer uma boa ideia na eramoderna. O garfo demesa émuitomenosconsagrado pelo tempo do que objetos como o escorredor, a chapaassadeira de waffles ou a panela de banho-maria. No panorama geral,comercomgarfoénovidade.

NAS REGIÕES DO MUNDO em que não se usam garfos, eles parecem instrumentosprofundamenteestranhos–pequenaslançasdemetalque,aocontráriodos

pauzinhosoudosdedos, chocam-se comosdentesaoentrarnaboca.NoOcidente, porém, seu uso é tão universal que nem paramos para pensarneles.Nomundoocidentalcontemporâneo,amenosquecomamossanduíches

outomemossopas,quasetodasasrefeiçõesquefazemosrequeremgarfo.Nósosusamosparaespetarlegumesefirmaracarneenquantoacortamos;parapegaracomidaouremexê-lanoprato;paraenrolarespaguete;paracortarpeixe;para juntarpedaçosdealimentosdiferentesnumaporçãoelevá-la à boca; para brincar com a comida ou para esconder pedaçosindesejados dos olhos desconfiados de nossos pais. Em jantares oucasamentos elegantes, ainda nos preocupamos com qual garfo usar paracadaprato,mastambémseencontramgarfosnasrefeiçõesmaisinformais,paraotipodelanchebásicoemqueumafacaficariadeslocada.Subestimamososgarfoscomoobjetoscorriqueiros.Masogarfodemesa

é uma invenção relativamente recente, que provocou desdém e risadasquando surgiu. Sua imagem não foi ajudada por suas associações com odiaboeseutridente.Oprimeirogarfoverdadeiro,noregistrohistórico,foiumapeçadeourodedoisdentes,usadaporumaprincesabizantinaquesecasoucomodogedeVenezanoséculoXI.SãoPedroDamiãoacondenouporseu“excessodedelicadeza”,porpreferiruminstrumentotãoexclusivoemlugardasmãosquelhetinhamsidoprovidascomoumadádivadeDeus.Passados duzentos anos, a história dessa princesa tola e de seu garforidículoaindaeracontadanoscírculoseclesiásticos.Àsvezes,orelatoeraenfeitado: a princesa haviamorridoda peste – como castigo, diziam, porcomercomumgarfo.

Seis séculos depois, os garfos ainda eram tidos como uma espécie depiada. Em 1605, o satirista francês Thomas Artus publicou um livroestranho,intituladoL’Isledeshermaphrodites.EscritoduranteoreinadodeHenrique IV, ele zombava dos modos efeminados do monarca anterior,Henrique III, e de sua corte de parasitasmimados e superprotegidos.Noséculo XVI, “hermafrodita” era um termopejorativo, aplicável a qualquerpessoanãomuitoapreciada.Aozombardessescortesãos,umadaspiorescoisasemqueArtuspôdepensarfoiqueeles“nuncatocamacarnecomasmãos, e sim com garfos”, cujos dentes eram tão separados que os“hermafroditas” derramavam mais favas e ervilhas do que as pegavam,espalhando-as por toda parte. “Preferiam tocar a boca com seusinstrumentinhosdenteadosdoquecomosdedos.”Aimplicaçãoeraqueouso do garfo (como ser hermafrodita) era uma espécie de anormalidadesexual.ParaArtus,ogarfonãoeraapenasinútil–eraobsceno.

Nãoéquenãosetivesseouvidofalardeinstrumentospontiagudoscomoosgarfosatéentão,masseuusose limitavaacertosalimentos.NaRomaantiga, havia lanças e espetos de um dente só, para tirar da conchamoluscosdifíceisdealcançar,ouparaiçaracomidadofogo,ouespetá-la.OsjantaresmedievaiseosdosTudortambémtinhamopequeno“sucket”,um talher de pontas diferentes, com uma colherinha numa delas e umgarfinhocomdoisdentesnaoutra.Àmedidaqueasfrutasemconservaoucristalizadas – as suckets – tornaram-se mais comuns entre os ricos,aumentou tambémanecessidadedesses garfos.Em1463,umaristocratadeBurySt.Edmunds,nosudestedaInglaterra,legouaumamigoseu“garfode prata para gengibre cristalizado”. A extremidade denteada era usadapara tirar os doces melados dos potes de louça; a extremidade com acolher, para pegar a deliciosa calda.Quandopedacinhos de doce ficavampresos nos dentes, o sucket cumpria uma função dupla, servindo deelegantepalito.Masissonãoseigualava,emabsoluto,aogarfonosentidomoderno–uminstrumentoindividualquepermitequeaspessoascomamrefeiçõesinteirassemtocá-lascomasprópriasmãos.Osgarfos,nonossosentido, foramconsideradosestranhosatéoséculo

XVII,excetoentreositalianos.PorqueaItáliaosadotouantesdequalqueroutropaíseuropeu?Numapalavra:macarrão.NaIdadeMédia,ocomérciodemacaronievermicelli jáestavabem-estabelecido.No início,asmassaslongas eram comidas com um espeto comprido de madeira, chamadopunteruolo.Mas, se o espeto era bompara enrolar os fios escorregadios,dois dentes eram melhores, e três eram o ideal. As massas e o garfoparecem ter sido feitos um para o outro. É um prazer ver umamesa deitalianos comendo longos fios de tagliatelle ou fettuccine, enrolandohabilmenteasgarfadas,comonovelosdeslizantesdefiosdetecer.Umavezdescoberto o quanto os garfos eram úteis para comer macarrão, ositalianoscomeçaramausá-lostambémnorestantedarefeição.Quando Thomas Coryate, um viajante elisabetano, percorreu a Itália,

pouco antes de 1608, notou um costume “que não é usado em nenhumoutropaís”,asaber,um“garfinho”paraseguraracarneenquantoelaeracortada. O italiano típico, observou Coryate, “não suporta que seu pratoseja tocado com asmãos, uma vez que nem todas asmãos humanas sãoigualmente limpas”. Embora aquilo lhe parecesse estranho, a princípio, opróprio Coryate adquiriu esse hábito e continuou a usar um garfo paracarneao regressar à Inglaterra. Seus amigos, inclusiveodramaturgoBenJonsoneopoeta JohnDonne,comseu“bomhumor”, implicavamcomele

poressecuriosohábitoitaliano,chamando-ode“furcifer”(quesignificava“quem segura o garfo”, mas também queria dizer “patife”). A rainhaElisabeth I possuía garfos para doces, mas preferia usar as mãos,considerandorudeogestodeespetar.Nadécadade1610,oshomensnãousavamgarfos.“Nãoprecisamosde

garfos para usar proveitosamente a boca, jogando a carne dentro dela”,comentou o poeta Nicholas Breton, em 1618. Às vésperas do século XX,aindaem1897,osmarinheirosbritânicoscontinuavamademonstrarsuavirilidadecomendosemgarfo. Issoeraumretrocesso,pois,àquelaaltura,osgarfoseramquaseuniversais.Em 1700, cem anos depois da viagem de Coryate pela Itália, os garfos

foram aceitos em toda a Europa. Até os puritanos os usavam. Em 1659,Richard Cromwell, filho de Oliver Cromwell e segundo Lorde Protetor,pagouduaslibraseoitoxelinsporseisgarfosdecarne.ComaRestauração,os garfos firmaram-se sobre a mesa, ao lado das colheres trífidas. Nãoquerer sujar os dedos com a comida, ou sujar a comida com os dedos,tornara-seacondutarefinada.Ogarfohaviatriunfado,emboraasfacaseascolheres continuassema sermaisvendidasqueeleatéo iníciodo séculoXIX.Avitóriadogarfoefacaacompanhouatransiçãogradativaparaousode

pratos de porcelana, em geral mais planos e rasos que outros pratos etábuas. Na época em que se usavam tigelas para todas as refeições, outensílioidealeraumacolhercomocaboemângulo,parapodermergulharfundo,comoumaconcha(emgeral,ascolheresficiformesdaIdadeMédiatinhamcabosapontadosparacima).Ogarfoea facadecaboshorizontaisnãoseacomodamcomnaturalidadeàestruturacurvadospratosescavadosnamadeira,oudastigelasparamingau–precisamdeumasuperfícieplana.Tentecomeralgocomgarfoe facanumatigela fundaparacereaisevocêentenderáoquequerodizer;oscotovelosse levantamea capacidadedeusarostalheresficaseveramenterestringida.Asuperfícieplanatambéménecessáriaparaacomplexagesticulaçãodegarfoefacaàmesa,queatingiuseuapogeunaeravitoriana.Opratotornou-seumaespéciedetelaemqueoindivíduocomunicavasuasintenções.Àsvezessedizquetodososprimeirosgarfostinhamdoisdentes.Nãoé

verdade. Foram preservados alguns garfos muito primitivos de quatrodentes,outrosdetrêseumnúmeromaiorcomdois.Onúmerodedentesnãoeraumaindicaçãodadata,masdafunção.Osdedoisdenteseramosmaisadequadosparaespetareestabilizaroalimento–sobretudoacarne–

na hora de cortá-lo (como os garfos trinchantes vendidos até hoje, queformam um par com as facas destinadas à mesma função). Os de trêsdentes ou mais eram melhores quando se pretendia usar o garfo quasecomoumacolher,paralevaracomidadopratoàboca.Houveatéalgumasexperiênciasparalevá-losaoslimites,criandogarfosdecincodentes(comoosbarbeadoresdecinco lâminasquesubstituíramosvelhosbarbeadoresdeduasou três,afirmando,numdiscursohiperbólico, seressaamaneiramais “avançada, em termos tecnológicos”, para os homens fazerem abarba), mas constatou-se que era metal demais para caber na bocahumana.NoséculoXIX,surgiramdoismétodosdistintosparamanejarogarfoea

faca.OprimeirofoibatizadoporEmilyPost,agrandemestradaetiqueta,de“zigue-zague”.Aideiaerasegurarafacacomamãodireitaeogarfocoma esquerda, cortando empedaços pequenos tudo que houvesse no prato.Em seguida, pousava-se a faca e se passava o garfo para a mão direita,usando-o para “ziguezaguear” pelo prato, pegando todos os pedaços. Deinício,essemétodofoicomumemtodaaEuropa,masdepoispassouaservisto como um americanismo, porque os ingleses inventaram umaabordagem ainda mais refinada. Segundo as boas maneiras britânicas àmesa,nuncasedepunhaafacaantesdeterminarumprato.Afacaeogarfoempurravamumaooutroritmicamentenoprato,comoremosnumbarco.O garfo espetava, a faca cortava.A faca empurrava, o garfo transportava.Eraumadançaimponente,cujoobjetivoeradiminuiropassodessahistóriadesconcertante de mastigação. Confidencialmente, norte-americanos ebritânicosachammuitovulgaroestilounsdosoutrosnousodogarfo:osbritânicos julgam-se refinadosporquenuncadescansama faca; os norte-americanos acham-se refinados porque o fazem. Somos duas naçõesseparadasporlouçaetalherescomuns,assimcomopelamesmalíngua.Nos quatrocentos anos decorridos desde que Thomas Coryate se

deslumbroucomosgarfosdecarneitalianos,nossospratospassarampormudanças incomensuráveis, mas não a nossa dependência do garfo emgeral:nósousamosmaisdoquenunca.Talcomoacolherdecháeopratode louça, ele é um exemplo da tecnologia do comer que vingou. Emborapossamos abandoná-lo para abocanhar um hambúrguer ou tentar usarpauzinhosnumrestaurantechinês,ogarfoestáinextricavelmenteligadoànossaexperiênciadecomer.Estamostãohabituadosàsensaçãodedentesdemetal (ouplástico)entrandonaboca, juntocomacomida,que jánempensamosnisso.Masnossousodogarfonãoé isentodeconsequências–

afeta todo o nosso universo culinário. Como observou Karl Marx nosGrundrisse (1858), “a fomeque se sacia coma carne cozida, comida comgarfoefaca,édiferentedaquedevoraacarnecrua,comaajudademãos,unhasedentes”.Ogarfomodificanãosóamaneiradecomer,masaquiloquesecome.Issonãoquer dizer que ele seja sempre superior a outrosmétodosde

ingestãodealimentos.Comoacontece com todasasnovas tecnologiasdacozinha,dofogoàrefrigeração,dosbatedoresdeovosaosfornosdemicro-ondas,osgarfostambémtêminconvenientesebenefícios.Seusadversáriosrenascentistas tinham razão, em muitos aspectos. Garfos e facas sãobastantejeitososparacortarumafatiadecarneassada,porématrapalhammaisdoqueajudamnahoradecomerervilhasouarroz,quesãomaisbem-servidos pela humilde colher. Comer com garfo e faca traz consigo umapresunção que nem sempre se justifica. É um modo muito afetado deingerir os alimentos. É comum atribuirmos uma eficiência exagerada àstecnologiascomqueestamosacostumados.Porusarmosgarfoefacatodosos dias, não notamos como eles nos atrapalham. Nossos modos à mesaexigemqueusemosduasmãosparafazercommenosdestrezaoqueofachiécapazdefazercomapenasuma.

“MACACOSCOMAGULHASdetricônãoteriamparecidomaisridículosdoquealgunsdenós”,comentouumdospresentesnaprimeiraocasiãoregistradaemquenorte-americanos provaram comida chinesa na China, em 1819. OsanfitriõeschinesesemCantão(Guangzhou)estavamrecebendoumgrupodecomerciantesnorte-americanos.Umaprocissãodecriados trouxeumasériede “miscelâneasguisadas”epratosdesopadeninhodepassarinho,além de muito arroz cozido, “mas, pobres de nós!”, recordou um jovemcomerciante de Salem, “nada de pratos, garfos ou facas”. Os norte-americanos batalharam para ingerir alguma coisa do banquete com ospauzinhos que lhes foram fornecidos, até que, por fim, seus anfitriõesficaramcompenadelesemandaramtrazergarfos,facasecolheres.

Às vezes há um momento parecido, quando ocidentais comem emrestaurantes chineses. A meio caminho da refeição, observa-se que háalguém enrubescendo em silêncio, por não fazer ideia de como usar osfachis e estar lutando para pôr alguma coisa na boca. É preciso tato porpartedomaîtredorestauranteparatrazerrapidamenteumacolhereumgarfo, sem fazer o cliente sentir-se estúpido. Uma chinesa que seestabeleceu em Harvard na década de 1950 observou que, ao recebernorte-americanos, era importante ter garfos preparados para umaemergência,mas igualmente importantenãoos impingir aos clientesqueinsistiamempraticar,semnenhumahabilidade,ousodo fachi.Ousuárioocidentaldegarfoe faca,aodepararpelaprimeiravezcomospauzinhos,ficareduzidoaoníveldeumacriançadesajeitada.Acapacidadedeusarofachi é como o domínio das letras: uma habilidade séria, nada fácil dedominar,masqueéessencialparaoindivíduoserummembroproficientedasociedade,naChina,noJapãoounaCoreia.Duranteosprimeirosanosde vida de uma criança chinesa, não há problema com o uso da colher.Depois disso, a criança pode usar fachis ligados por guardanapos eelásticos,oqueformaumaespéciedepinçaimprovisada.Aochegaràidade

do ensino secundário, entretanto, acabou-se o período de clemência:espera-sequeelajásaibamanejarosfachiscomdestreza.Nãofazê-loseriainterpretadocomoumsinaldequeospaisnãolhederamboaeducação.Osfachismaisantigosquechegaramaténóssãodebronze,dasruínasde

Yin,edatamdecercade1200a.C.,dondesabemosquesãousadoshápelomenos3milanos.Mas foisóapartirdadinastiaHan(206a.C.-220d.C.),mais ou menos, que se tornaram o método universal de ingestão dealimentosemtodaaChina.Osricostinhamfachisdebronze,marfim,jadeou laca finamentepintada;ospobres tinhamsimples fachisdemadeiraebambu.Àmesado imperadorusavam-se fachis deprata, não apenasporseuluxo,masparaajudarnadetecçãodevenenos:aideiaeraqueaprataescureceriaseentrasseemcontatocomarsênico.Oproblemaéqueaprataépesada,condutoradecalor(esquentademaisemcontatocomalimentosquentes e esfria demais em contato com alimentos frios) e, uma falhafundamental, é ruim para pegar a comida (não proporciona atritosuficiente, tornando o pauzinho escorregadio). Assim, os fachis de prataacabaram sendo abandonados, apesarde suabeleza e seupotencial paradetectarvenenos,porqueviolavamumadascaracterísticasmaisbásicasdaetiquetaàmesanoExtremoOriente:odeverdedemonstrarprazercomosabordeliciosodoqueéservido.Issoeramaisfácildefazercomfachisdeporcelana.Comovimosnocapítulo1,ousodosfachisligou-seaumaabordagemda

culinária inteiramente diferente da adotada na cozinha ocidental. Comoeles apenas levantam a comida, sem picá-la, todo o trabalho com a facapodia permanecer escondido na cozinha. “Serve-se tudo cortado”, foi aobservação feita em 1845 por Fletcher Webster, outro norte-americanoqueviajoupelaChina.Assim,adestrezadocozinheironocortepoupavaoscomensaisdetodasaspreocupaçõesenfrentadaspeloconvivaocidentalarespeito de como subdividir a comida em seu prato sem parecer rude.Como comer uma espiga de milho com educação não era um dilemaenfrentado por nenhum chinês, não só porque não se plantavamilho naChina,mastambémporqueoprópriofatodeumcozinheiropôrumobjetotãograndenopratoseriadeumagrosseriainimaginável.O sistema de comer com pauzinhos elimina os principais tabus do

Ocidenteàmesa,quedizemrespeito,principalmente,a como lidarcomaagressividade da faca. O teórico francês Roland Barthes viu símbolos emtoda parte, mas sobretudo à mesa, e afirmou que o fachi era o opostodiametraldafaca.Aseuver,segurarumafacafaz-nostrataracomidacomo

uma presa: sentamo-nos à mesa prontos “para cortar, furar, mutilar”. Ofachi, ao contrário, tinha algode “maternal”. Emmãoshabilidosas, lidavacomacomidacomdelicadeza,comoquemlidacomumacriança:

Esseinstrumentonuncafura,cortanemretalha,nuncafere,masapenassepara,vira,desloca.O fachi…nuncaviolentaoalimento:ouodesdobraaospoucos(nocasodosvegetais),ouodesfazempedaçosdistintos(nocasodospeixes,enguias),comissoredescobrindoasfissurasnaturaisdamatéria(e,nesseaspecto,aproximando-semuitomaisdodedoprimitivoquedafaca).

Apesardesuadelicadezaessencial,entretanto,osfachisaindapodemserofensivosquandosecomecomeles.Àprimeiravista,osmodoschinesesàmesa são mais descontraídos que os europeus e norte-americanostradicionais:aarrumaçãodamesacompõe-sedenadaalémdeumpardefachiseumjogodeporcelanacomtrêspeças:umacolher,umatigelaeumpratinho.QuandoFlorenceCodrington,umabritânicanaChinadocomeçodo século XX, convidou “uma senhora amiga” para um jantar à modainglesa,ela“deuvoltasemaisvoltasaoredordamesa,muitoalvoroçada,tocandoalternadamenteemcadaobjeto,edepoiscaiunagargalhada:“Ora,ora, isso é muito engraçado, é espantoso!”, arquejou. “Todos essesutensílios, só para fazer uma refeição!!!” Ao contrário da tradicionalprocissão de pratos individuais do Ocidente, os pratos chineses sãocolocadosnamesapara serempartilhadosemcomum, todos servindo-seao mesmo tempo. Não é grosseiro passar por cima das mãos de outraspessoas para chegar a um prato distante. Um autor chinês de livros decozinha,Yan-kitSo,observouque“aprobabilidadedeumchoqueentreosfachisémínima”.Por outro lado, como a culinária chinesa faz parte de uma cultura da

frugalidade,existemregrasrigorosassobrecomerdetalmodoquenãosepermitaodesperdícionemaaparênciadedesperdício,particularmentenoqueconcerneaoarroz.Amaneiracomotodoscompartilhamospratospodepareceraleatória,porémumadasmarcasdasboasmaneiraséquenenhumdospresentesdevesercapazdesaberqualéoprato favoritodealguém;emoutraspalavras,nãosedeveenfiarvorazmenteos fachisnummesmopratocomdemasiadafrequência.Quantoacomeroarroz,atigeladeveserlevada à altura dos lábios com uma dasmãos, enquanto os pauzinhos otransportamparaabocacomaoutra.Deve-secomeratéoúltimogrãodearroz.Ascriançasbritânicasquedeixamcomidanopratosãoadvertidasdeque devem pensar nas pessoas que passam fome na África. As criançaschinesas–quecomemváriaspequenasporçõesnumatigela,emvezdeum

único prato abarrotado – recebem uma admoestação diferente e maispersuasivacontraodesperdício:pensarnosuornafrontedolavradorquecultivouoarrozqueelascomem.Osjaponeseschegaramàculturadofachidepoisdoschineses(dequem

tomaram emprestada a ideia), mas hoje ninguém o diria, a julgar pelamaneiracomoelemoldatodoouniversoculináriodopaís.SóporvoltadoséculoVIIIéqueofachisuplantouasmãosentreaspessoascomuns,mas,depoisdisso, logose tornouessencialparaamaneira japonesadecomer.Osfachisjaponesestendemasermaiscurtosqueoschineses(emtornode22 centímetros, em contraste com 26 centímetros) e têm a extremidadepontuda, e não quadrada, o que permite pegar os mais diminutosfragmentosde comida. Seumalimentonãopode ser comido como fachinembebidonumatigela,dizumantigoditado,nãoéjaponês.Àmedidaqueaculináriajaponesaglobalizou-se,nasúltimasdécadas,estaregrajánãosesustenta. Entre os jovens de Tóquio e Osaka, dois dos pratos maispopularessãootonkatsu,umacosteletadeporcoempanada–quecostumaser fatiadaemdiagonal,emtirasqueprecisamsercortadasdenovocomumafaca–,eocurry,ummolhogenéricoestranho,meladoeapimentado,que lembracomidade lanchoneteemuitos japonesesadoram.Essecurrynãopodesercomidocomfachiseégrossodemaisparaserbebidonumatigela: pede uma colher. Outro prato popular japonês é o sandô, umaimitaçãodosanduíchebritânicofeitacomfatiasdepãodeformaerecheioscarregadosnamaionese.Comodeveacontecercomqualquersanduíchedeverdade,eleéseguradocomamão.No Japão, entretanto, oque se comee amaneirade comê-lo ainda são

predominantementemoldadospelo fachi,eháumasériederegrasmuitoespecíficas de conduta que devem ser evitadas ao manejá-lo. Além dostabus óbvios contra usar os fachis de um modo que sugira violência –apontá-losparaorostodealguém,espetá-losverticalmentenumpratodecomida–,existemtransgressõesmaissutis,queincluem:

namida-bashi, o fachi chorão: deixar que um líquido pingue daextremidadedospauzinhoscomoumalágrima;mayoi-bashi, o fachi hesitante: deixá-lo pairar sobre vários pratos,semescolherentreeles;yoko-bashi,ofachiescavador:usarospauzinhoscomosefossemumacolher;

sashi-bashi,ofachiperfurante:usarospauzinhoscomoumafaca;neburi-bashi, o fachi lambido: lamber fragmentos de alimento dapontadofachi.

Tambémexistem tabus a respeitode compartilhar os fachis.A religiãoxintoísta tem horror a qualquer forma de impureza ou profanação.Acredita-sequealgoqueestevenabocadeoutrapessoacontrainãoapenasgermes, que seriam mortos pela lavagem, mas também aspectos de suapersonalidade, que não o seriam. Assim, usar o fachi de um estranho éespiritualmente repulsivo,mesmoque ele tenha sido lavado.OprofessorNaomichi Ishige é um antropólogo da culinária japonesa com mais deoitentalivrospublicados.Certavez,conduziuumexperimentocomalgunsalunos japonesesdeseuseminário,perguntando-lhes: “Suponhaquevocêempresteumobjetodoseuusopessoalaoutrapessoa,queelaoutilizeedepoisolimpemuitobem,antesdedevolvê-lo.Qualseriaoobjetoquelhecausaria mais resistência psicológica para reutilizar depois?” Os doisobjetoscitadoscommaisfrequênciaforamumapeçaderoupaíntima“paraaparteinferiordocorpo”eumpardefachis.Isso ajuda um pouco a explicar o fenômeno do waribashi, o fachi

descartável, feito de um pedacinho de madeira barata quase partida aomeio,prontoparaserseparadoeusadopelofreguês.Àsvezessepresumequeesseswaribashisejamumaconcepçãoocidentalmoderna,semelhanteaos copos de poliestireno, mas não é verdade: eles são usados desde osprimórdios da indústria japonesa de restaurantes, no século XVIII, vistoquefornecerumnovopardepauzinhosacadaclienteeraaúnicamaneiradeorestaurateurpodergarantiràsuaclientelaqueoqueelalevavaàbocanão estava poluído. Eles são um bom exemplo de que aquilo que nosdispomos a aceitar, em termos da tecnologia do ato de comer, é maiscomumentedeterminadoporforçasculturaisdoquepelafunção.RichardHosking, um especialista britânico na culinária japonesa, afirma que, “doponto de vista do estrangeiro não inteiramente à vontade com o fachi, owaribashiédeplorável”,vistoqueseucomprimentocurtocomplicaseuusopara as pessoas de mãos grandes. Eles também têm uma incômodatendênciaasepararsuasduaspartesdamaneiraerrada,forçandooclienteapassarpeloconstrangimentodepediroutropar.Piorainda,owaribashiéumdesastreecológico:hojeoJapãousaedescartacercade23bilhõesdeunidadesporano.O apetite pelos fachis descartáveis, alémdisso, espalhou-sepelaChina,

que hoje fabrica anualmente 63 bilhões de pares. Em 2011, a demandachinesapor fachisdemadeiradescartáveis foi tãograndequeopaísnãoconseguiumais suprir1,3bilhãode cidadãos com fachisdo tipo certodemadeira. Uma fábrica norte-americana do estado da Geórgia começou apreencher essa lacuna. Trata-se de um estado rico em choupos eliquidâmbares, árvores cuja madeira é flexível e leve o bastante paradispensarobranqueamentoantesdesertransformadaemwaribashi.Hojea Georgia Chopsticks exporta bilhões de pauzinhos descartáveis paracadeias de supermercados na China, Japão e Coreia, todos com umaetiquetadeMadeinUSA.Aquelesprimeiroscomerciantesnorte-americanosquechegaramàChina

noséculoXIX,equebatalharamcomofachicomo“macacoscomagulhasdetricô”, provavelmente nunca imaginaram ver chegar o dia em que osEstadosUnidosforneceriampauzinhosàChina.Nofimdascontas,porém,asduasculturas–edogarfoefacaeadofachi–têmmaisemcomumdoque se afigura à primeira vista. Ao fazerem uma refeição em conjunto,talvezseusmembrospensassemcomseusbotões:“Seusbárbaros!”Masasduasculturasseunememseudesprezoporumterceirogrupo:odosquelidamcomaquestãodecomersemutensílioalgum.

POR DEFINIÇÃO, o preconceito não é racional, donde talvez não nos devasurpreender que a maioria dos preconceitos contra comer com a mãorevele ter pouco fundamento na realidade, se examinado de perto.Primeiro, existe a ideia de que pegar na comida é sinal de desleixo.Segundo, a de que comer com as mãos demonstra falta de educação. Eterceiro,adequenãopossuirutensíliosparacomer limitaoquesepodeingerir. A resposta a essas preocupações é (1) Não, (2) Não, e (3) Só àsvezes.A falta de talheres não é sinal de maus modos. Entre as pessoas que

comemsistematicamentecomasmãos,aexecuçãodeabluçõescomplexastorna-separtedoritmodarefeição.AtéoreiHenriqueVIII,cujohábitodecomer com asmãos tornou-se sinônimo demaneiras grosseiras à mesa,era,naverdade,muitomaisatentoàhigieneeàetiquetadoqueamaioriados atuais comedores de sanduíches. O trinchador do monarca recolhiaqualquerresíduocomuma facaderaspar.Pajens forneciamguardanaposao rei e removiam fragmentos de comida de sua roupa. Ao término darefeição, umnobre ajoelhava-sediantedele comumabacia, paraque elepudesselavardasmãosqualquervestígiodecomida.Podemosfazertroça

dosmodosrevoltantesdeHenrique,masquantosdenóschegamospertodeficartãolimposassimduranteasrefeições?Apreferênciaculturalporcomercomasmãostendeatornarosconvivas

muito sensíveis à higiene. Os romanos antigos lavavam-se da cabeça aospésantesdasrefeições.Osárabesdodesertoesfregamasmãoscomareia.Muitos árabes hoje usam garfo e colher, mas, antes de uma refeiçãotradicional no Oriente Médio, escreve Claudia Roden, os convidados sãorecebidos em sofás, onde suasmãos são limpas: “Uma criada passa comuma grande bacia de cobre e um jarro, derramando água (às vezesligeiramente perfumada com rosas ou botões de laranjeira) para osconvivas lavarem asmãos. Aomesmo tempo, circula-se uma toalha.” NoséculoIX,entreosárabes,quandoalguémcoçavaacabeçadepoisdefazerahigiene,todososconvivasàmesatinhamdeesperarqueeleselavassetodode novo para começarem a comer. As tigelinhas com que os europeusrefinados lavam os dedos, depois de comerem algo como mariscos,parecem imundas pelos padrões tradicionais indianos: reza o costumeindianoqueasmãosnãodevemsermergulhadasnumabaciadeágua,naqualvoltamasecontaminarcomasujeiraquedesprendem,esimlavadasporumfluxodeáguacorrenteelimpaparacadapessoa.Quem come com asmãos também costuma sermuito exigente quanto

aosdedosqueusa.Nãosóamãoesquerdaficaforadaação(porserusadapara fazer a higienepessoal e ser, portanto, “impura”), como tambémhánormasestritassobreosdedosdamãodireitaquedevemserusados.Paraaverdadeirapolidez,namaioriadasculturasemqueoalimentoéseguradocom asmãos, apenas o polegar, o indicador e o dedomédio são usados.(Como acontece com as várias regras referentes ao uso de garfo e faca,existemexceções.Ocuscuz,porsermuitofragmentado,podeseringeridocom o uso dos cinco dedos.) O alimento não deve ser precipitadamenteapanhadonopratocomum.Tambémémuitogrosseiroanteciparadentadaseguinteantesdeterminaraprimeira,oquenãoéregrageralentreosquecomemcomgarfoefaca.Quanto à questão de o fato de comer com asmãos limitar aquilo que

podeseringerido,arespostaéqueissoacontece,porémnãomaisdoquecomgarfosoufachis.Aprincipallimitaçãoéatemperatura.Asculturasquecomem com as mãos não têm a mesma devoção que nós pela comidapelandoepelosréchauds.“Seuspratosestãoquentes,Quentes,quentes?”,indagou,em1934,ElsiedeWolfe,umaanfitriãdaaltasociedade,numguiapara“refeiçõesdesucesso”.Émelhorquenãoestejam,sevocê forcomer

comasmãos.A temperatura ambiente, ou ligeiramentemais alta, é idealparaosalimentos ingeridosdessamaneira.Osdedos tambémnãosãoosinstrumentosideaisparalidarcomumjantardeassadosingleses:osnacosdecarnenomolhopedemtalheres.Nos países em que se come com os dedos, a comida evoluiu para se

adaptar a isso, e as mãos desenvolveram poderes que a presença detalheres lhes nega. Ottaviano Bon, um viajante europeu na corte do“imperadorturco”noiníciodoséculoXVII,notouqueacarnedoimperadorera“tãomacia,epreparadacomtantadelicadeza,que…elenãonecessitade faca,masretiramuito facilmenteacarnedosossoscomosdedos”.Deformasemelhante,quemtemumpedaçodepãoindianodotiponaannumadas mãos, pronto para ser mergulhado na tigela de dal (uma sopa delentilhaspartidas)emsuaoutramão,nãosentefaltadegarfo.Osdedosnãosão apenas substitutos satisfatórios dos utensílios de mesa: em muitosaspectos,sãomelhores.ComoescreveuMargaretVisser: “Paraaspessoasque comem comasmãos, elas parecemmais limpas,mais cálidas emaiságeis que os talheres. As mãos são silenciosas, sensíveis à textura e àtemperatura,egraciosas–desdequetenhamsidodevidamentetreinadas,éclaro.”Nospaísesondecomercomasmãosaindaéanorma,aspessoastornam-

sehábeisperitasemmanipularoalimentodamãoparaaboca.Muitodoque acontece nas refeições seria impossível com um garfo: por exemplo,formar uma bola de arroz e recheá-la com um pedaço de cordeiro ouberinjela, antes de colocá-la na boca, como nos países árabes. Nenhumtalherpoderiaaprimorarumgestotãoperfeitoesatisfatório.Atecnologiadosutensíliosdemesanãopodeserentendidaapenasem

termosdefunção.Numplanopuramenteutilitário,hámuitopoucoquesepodefazercomotriunviratogarfo/faca/colher,oucomosfachis,quenãopossa ser feito com os dedos e uma tigela (supondo que haja tambémalgumtipodeimplementocortante).Osutensíliosdemesasãosobretudoobjetosculturais,incorporandoemsiprópriosumavisãoparacadacomidaedecomodevemosnosportaremrelaçãoaela.Ehátambémossporks,ougarfolheres.O termo “spork” foi registrado num dicionário pela primeira vez em

1909,emboraaprimeirapatenteparaumdessesutensíliossótenhasidoconcedida em 1970. Tanto a palavra quanto o objeto são híbridos de“colher” [spoon] e “garfo” [fork]. Tal como o lápis com uma borracha naponta, o spork é o que os teóricos da tecnologia chamam de ferramenta

“conjunta”: duas invenções combinadas. Em sua forma clássica, feito deplástico descartável fino e oferecido gratuitamente em lanchonetes esimilares,osporktemaconcavidadedacolher,aliadaaosdentesdogarfo.Ossporksganharamseguidoresafetuosos,deestiloumtantoirônico,na

nossaprópriaépoca.Várioswebsitesdedicam-seaeleseoferecemdicasdeuso(“Dobreasabasparadentroeparaforaeponhaosporkdepé.Éumatorre inclinada de spork”), haicais em sua homenagem (“O spork, purabeleza,/os dentes, a concha, o cabo longo/agora a vida está completa”) ereflexõesgerais.Ositespork.orgdizoseguinte:

Osporkéumametáforaperfeitadaexistênciahumana.Tentafuncionarcomocolheregarfoe,poressanaturezadupla, falhavergonhosamentenasduas funções.Nãosepode tomarsopacomumspork,queérasodemais.Nãosepodecomercarnecomumspork,cujosdentessãomuitopequenos.

Osporknãoéumacoisanemoutra,masalgointermediário.EmWall-E,um longa-metragem de animação da Pixar, um robô num deserto pós-apocalipse tenta limpar os detritos deixados no planeta Terra pela raçahumana. Separa os antigos talheres de plástico em compartimentosdiferentes,atédepararcomumspork.Seucérebropequeninonãoconseguelidar com esse novo objeto. Ele deve ficar com as colheres ou com osgarfos?Osporkéimpossíveldecategorizar.Dois anos depois de assumir a presidência, em 1995, Bill Clinton,

pioneirodapolíticada “TerceiraVia”, fezdospork o eixodeumdiscursohumorístico no Jantar dos Correspondentes de Rádio e Televisão, emWashington. Declarou que o utensílio era “o símbolo domeu governo…Chega de escolha falsa entre o utensílio esquerdo e o utensílio direito”.Encerrou o discurso, em meio a entusiásticos aplausos e gargalhadas,dizendo: “Esta é uma grande ideia nova – o spork!” Clinton estava sendoirônico,mas,aseumodo,osporkémesmoumagrandeideianova.De onde terá vindo? Circula uma lenda urbana que diz que os sporks

foraminventadospelogeneralDouglasMacArthurcomopartedaocupaçãonorte-americanadoJapão,nadécadade1940.DizahistóriaqueMacArthurdecretou que os pauzinhos eram utensílios bárbaros, ao passo que osgarfoseramperigososdemais(temendo-sequeosnipônicosdominadosserebelassem e os usassem como armas). Assim, o spork foi imposto aosjaponeses comoumaversão truncada e segurados talheres ocidentais.Ahistória não pode estar certa – como já mencionamos, o nome sporkremontaa1909,eo formatoemsiéaindamaisantigo:entreos talheres

norte-americanos oitocentistas, os garfos para comer tartaruga e ascolheresde sorvete eram sporks em tudo, excetoonome.Éverdadeque,desde a Primeira Guerra Mundial, vários exércitos usaram combinaçõesdobráveisdegarfoecolhernosutensíliosdorancho,masnãosetratavadesporks de verdade, e sim de uma colher e um garfo unidos por umaarticulaçãonocabo.Essesutensíliosaindasãousadosnasforçasarmadasfinlandesas: são de aço inoxidável e se chamam Lusikkahaarukka, quesignifica“colher-garfo”.É possível que a lenda urbana sobre MacArthur e os japoneses tenha

surgidoporqueaprimeirapessoaacriarumhíbridodegarfoecolherparao mercado de massa foi outro MacArthur, um australiano chamado BillMcArthur, da cidadedePotts Point, no estadodeNovaGales do Sul, quelançouem1943oSplayd®–derivadodoverbo“tosplay”[estender,abrir]–,depoisdevernumarevistaumafotografiademulheresqueequilibravamnocolo,canhestramente,garfos, facasepratos,duranteuma festa.Caixasdesplaydsdeaçoinox,descritoscomo“umajunçãograciosamentemoldadadegarfo,facaecolher”,foramcomercializadascomoasoluçãoidealparaoentão recém-popularizado churrasco australiano. E tornaram-se umainstituição na Austrália, tendo vendido já mais de cinco milhões deunidades.Nos anos 1970, os splayds finalmente receberam a companhia dos

Sporks™.Onomefoiregistradoem1970porumaempresanorte-americana(aVanBrodeMillingCompany)e,em1975,porumafirmadoReinoUnido(Plastico Ltd.), para designar um talher combinado de plástico. Nãodemoroumuito para ele se tornar um artigo-padrão das lanchonetes derefeições rápidas. Em termos comerciais, o spork fazia sentido: doisutensíliosdeplásticopelopreçodeum.Outros usuários importantes do spork foram as escolas e os presídios,

bemcomoqualqueroutrocontextoinstitucionalemqueofornecimentodealimentaçãosereduzaaonívelfuncionalmaisbásico.Ossporksdasprisõesnorte-americanas costumam ser de plástico, de cor laranja e muitoineficientes,jáqueévitalquenãosejamusadoscomoarmas.Em2008,umhomemfoipresoemAnchorage,noAlasca,portentarpraticarumassaltoàmãoarmadacomumsporkdeumalanchonetedefrangofrito.Ocorpodavítimasofreuquatro“arranhõesparalelos”.Omaisnotávelnessahistóriaéalguémterconseguidocausaressesferimentoscomumspork,queemsuaversãoparalanchoneteséumimplementodeplorávelquesefragmentaemlascas de plástico ao contato com qualquer alimento que ofereça omais

remotodesafio.Em 2006, o spork recebeu uma reforma radical, que tentou corrigir

algumasdesuasdeficiênciasestruturais.JoachimNordwalléumdesignersueco empregado pela Light My Fire, uma empresa de produtos paraatividadesaoarlivre.CriadonaSuécia,elenãotinhanenhumaexperiênciacomousodosporkdaslanchonetesenãoseimpressionoumuitocomele.“Para mim, parece uma solução provisória” (ao que ficamos tentados acomentar: não diga!). Os dentes não funcionavam bem como garfo e aconcavidade não funcionava realmente como colher: quando se tomavasopa,elaescorriapelasaberturas.OgrandeavançodeNordwallfoisepararapartequeeracolherdaqueeragarfo,colocando-asnosextremosopostosdocabo.Dequebra,acrescentouuma lâminaàbordaexternadosdentes,comissotransformandosuacriaçãonumaespéciedeknork,[knife + fork,faca+garfo]alémdespork.“Ossporksganhamnovafeição”,entusiasmou-sea críticadeumapublicaçãodomundodosnegócios sobreodesigndeNordwall. Mas ele era muito antigo, na verdade: Nordwall tinhareinventadoosucketmedieval.Hojeháumsporkparacadaocasião,excetoasrefeiçõesemqueseexija

algum grau de formalidade. A LightMy Fire vende sporks de cores vivaspara quem gosta de acampar e sporks para funcionários de escritório,sporksparaoscanhotoseparacriançaspequenas.Aocontráriodeoutrosutensílios anteriores, que sempre trouxeram em si alguma expectativacultural de como devemos nos portar em relação à comida, o spork éinteiramentedesprovidodadimensãodacultura.Curva-seaodono,enãooinverso.Nãotrazemsinenhumcostumeparticularenãorequeretiqueta.Comercomumsporknãoéelegantenemgrosseiro.Umdosmuitostributosa esse utensílio, na internet, diverte-se com a ideia das boasmaneiras àmesano“manejodetalheresspork”erecomenda:“Aousarumspork paracomerpurêdebatatasnumrecipientedeisopor,mandaaetiquetaquesedeixe umpoucode ‘sobra de spork’ no fundo, emvezde raspar o isoporparapegaratéaúltimaporção.Sevocêtiverquecomertodasasraspinhasdopurê,useodedo,porfavor.”

PEGADOR

Antigamente, os pegadores tendiam a ser utensílios especializados:pegadoresdelareira,paramovimentarasbrasas;pegadoresdecarne,paragirá-lanafrigideira;pegadoresdeaspargo,paraservirosdelicadosbrotosverdes; pegadores demolas para escargot, para segurar aquelas conchasescorregadiasdecaracol,cheiasdemolhodemanteigaealho.Só agora (a partir dos anos 1990) é que passamos a apreciar os

pegadoresdecozinhacomooequipamentoversátilquesão:umutensíliogenérico para levantar, cutucar e recolher. Refiro-me ao tipo simples ebarato – aço inoxidável e bordas recortadas –, em vez dos pegadoresantiquadosdotipotesoura,queestraçalhamacomidaesefechamquandomenosesperamos.A função dos pegadores é aumentar nossa destreza à beira do fogão.

Segurarumpegadorécomotergarrasàprovadecalor.Vocêsetornaumacriaturacapazdelevantarcoxasdegalinhaassadasestalandodequentes,oudecatarcápsulasindividuaisdecardamomodeumpratodearrozpilafe,comaexatidãodeumapinçaeaserenidadedeumaespátula.Osmelhorespegadoressãoosmaiscurtos(a faixade24centímetrosé

ideal). Quantomais compridos, mais complicados são demanejar, o queacaba com seu propósito. Houve época em que os chefs franceses deformação clássica usavam longos garfos com dois dentes e cabo de ossopara executar as mesmas tarefas. No entanto, o garfo tem alcance maislimitado. Não pode tirar o linguini de uma panela de água fervendo noexatomomento em que ele fica pronto, paramisturá-lo habilmente compresunto,petit-poisecremedeleite.Emtermostécnicos,comumpegadoràdisposição, vocênãoprecisadeescorredornemde talherespara servirmassa. Além da faca e da colher de pau, os pegadores são os utensíliosmanuaismaisúteisqueconheço.

7.Gelo

Ihaveeatentheplumsthatwereintheicebox…Forgivemetheyweredelicioussosweetandsocold.a

WILLIAMCARLOSWILLIAMS,“Thisisjusttosay”,1934

ODIA24DE JULHODE1959foiummomentovitaldaGuerraFria.NikitaKruschov,olíder da União Soviética, e Richard Nixon, então vice-presidente dosEstados Unidos, durante a presidência de Eisenhower, montaram umagrandereuniãopúblicaemMoscou,diantedascâmerasdetelevisão.Eraoencontro mais significativo entre soviéticos e norte-americanos desde aconferênciade cúpuladeGenebra, em1955, sóquemuitomais informal.Rindoe,emalgunsmomentos,apontandoodedoumparaooutro,osdoishomens debateramosméritos do capitalismo e do comunismo.Qual dospaíses tinha a tecnologia mais avançada? Qual dos estilos de vida era omelhor?Aconversa–desdeentãoapelidadadeDebatedaCozinha–nãogirouemtornodearmasoudacorridaespacial,masdemáquinasdelavareutensíliosdecozinha.A ocasião foi a abertura da Exposição Nacional Norte-Americana no

ParqueSokolniki,umparquemunicipalde“lazerecultura”.Eraaprimeiravezque os russos deparavamemprimeiramão como estilo de vidadosEstadosUnidos:aprimeiravezqueprovaramumaPepsi-Colaoupuseramos olhos nas grandes geladeiras americanas. A exposição exibiu três

cozinhas-modelo, inteiramenteequipadas.Umadelas eraumacozinhadaGeneral Mills feita para economizar trabalho, com ênfase em alimentoscongelados.Outraeraumacozinha“futurista”daWhirlpool,quesópediaàs mulheres que apertassem um botão para acionar toda sorte deaparelhos de cozinha. A terceira era uma cozinha equipada da GeneralElectric,nacoramarelo-limão.Foi essa terceira cozinhaque entrouparaos livrosdehistória. Parecia

uma coisa saída de um filme de Doris Day: limpa, amarela e impecável.Belas assistentes demonstravam para os visitantes russos as maravilhasquepodiamemergirdageladeiraamarelo-limão:cupcakescomcoberturacremosagelada,boloemcamadascomrecheiodechocolate.AcozinhaforafeitapelaGeneralElectriccomopartedeumaresidêncianorte-americanacompleta,noestilocasadefazenda.NixoneKruschovpararamparaveracozinha,apoiadosnagradebranca

que separava os estandes. Lois Epstein, umamorena espevitada que eraumadasguiasnorte-americanasdaexposição,demonstrou comoa típicadonade casa americanausaria a lavadora/secadorade roupas embutida.AcimadamáquinahaviaumacaixadeesponjasdecozinhaS.O.S.eumadesabão empóDash. “NosEstadosUnidos, gostamosde facilitar a vidadasmulheres”,comentouNixon.Kruschovretrucoudizendoque“asuaatitudecapitalista em relação às mulheres não existe no comunismo”, o queimplicava que, em vez de facilitarem a vida, esses aparelhos apenasconfirmavamavisãonorte-americanadequeavocaçãodasmulhereseraseremdonasde casa (e talvez ele tivesse certa razãonisso). Em seguida,Kruschovindagousetodasessasnovasmáquinastraziambenefíciosreais.Emseu livrodememórias,ele recordouhaverapanhadoumespremedorautomáticodelimõesedito:“Quecoisatola!…Sr.Nixon!…Achoqueumadonadecasalevariamaistempoparausaressaengenhocadoquepara…cortarumafatiadelimão,jogá-lanumcopodecháedepoisespremermaisalgumasgotas.”Nixonrevidou,chamandoaatençãodeKruschovparatodososutensílios

reluzentesemexposição–batedeiras,espremedoresdesucos,abridoresdelatas, congeladores. “O sistema norte-americano”, insistiu, “é concebidoparatirarproveitodasnovasinvenções.”Kruschovcontinuoudesdenhoso:“Vocêsnãotêmumamáquinaparapôracomidanabocaeempurrá-laparabaixo?Muitas coisas que nosmostraram são interessantes, mas não sãonecessáriasnavida.Nãotêmumafinalidadeútil.Sãoapenasengenhocas.”Noentanto,KruschovqueriaacenderumavelaaDeuseoutraaoDiabo.

Aomesmotempoemquerejeitavaacozinhanorte-americanacomoinútil,tambémqueria insistir que os soviéticos eram capazes de fazer cozinhastãoboasquantoaquelas.Queriavenceracorridadacozinha,assimcomoacorridaespacial:“Osenhorachaqueopovorussoficarápasmoaoveressascoisas, mas a realidade é que as novas casas russas já têm todo esseequipamento.”Nãoeraverdade,eKruschovdecertosabiadisso.Nenhumacasa ou apartamento de toda a cidade de Moscou tinha um ambienteremotamente semelhante à reluzente cozinha amarela equipada pelaGeneralElectricnaexposiçãonorte-americana.Pelospadrõesamericanos,ascozinhassoviéticasdosapartamentosrecém-construídosnogovernodeKruschoveramminúsculas:de4,5a6metrosquadrados.Asupremaglóriadessas cozinhas, o grande dispositivo do futuro, criado para economizartrabalho, era uma série de armáriosmontados nas paredes e abaixo dassuperfíciesdetrabalho.Tinhamumaalturapadronizada–85centímetros–que visava a moscovita média. As mulheres mais altas tinham que seabaixar; as mais baixas, se esticar, ambas curvando-se aos padrõesuniformes do Estado. Afora espaço, saltava aos olhos nessas cozinhas aausência de algo parecido com a grande geladeira amarelo-limão dacozinha-modelo montada pela General Electric. Em 1959, as geladeirassoviéticaseramfeiaseapertadas,masavastamaioriadascozinhasrussassequertinhageladeira.Averdadeeraque,em1959,nemaUniãoSoviéticanemqualquerpaísdo

mundo–nemmesmoaInglaterraouaAlemanha–eramcapazesdefazergeladeiras domésticas equiparáveis às norte-americanas. Os EstadosUnidoseramanaçãodogeloporexcelência:96%dasresidênciaspossuíamgeladeiras (em contraste com 13%noReinoUnido). Em largamedida, oestilo de vida norte-americano era possibilitado pela refrigeração. Dotilintardoscubosdegelonumcopodebourbonaoluxofácildecomerumfilé de Chicago na cidade de Nova York, das máquinas de refrigerante epicolésàservilhascongeladas,resfriaralimentosebebidaseraumnegócioprofundamente norte-americano. Um espremedor automático de limãopodia mesmo ser, nas palavras de Kruschov, “apenas uma engenhoca”,porémageladeiraeraalgomais.Elaatendiaamuitasfinalidadesúteis,nãoera uma tecnologia isolada,mas um conjunto de tecnologias interligadasque,juntas,criavamabordagenstotalmentenovasdamaneiradecomer.Àsvezes, a refrigeração é um instrumento para resfriar algo pelo simples efrívolo prazer de fazê-lo – uma taça de vinho branco gelado, uma fatiarefrescante de melão –, mas é também um método para conservar os

alimentos: mantê-los seguros para consumo por períodos mais longos edistânciasmaiores.Asgeladeirasmodificaramporcompletoomodocomoosalimentos–suaobtenção,seupreparoesuaingestão–seenquadravamnavidadaspessoas.

A espaçosa geladeira norte-americana – assim como seu parentepróximo,ofreezer–foi,antesdemaisnada,umaparelhoparapreservaçãodos alimentos que libertou as cozinheiras da necessidade de pôr emconserva, salgar ou enlatar o que não pudesse ser comido de imediato.Eliminoudeumsógolpeadura sazonalidadedo consumo, tantoparaospobresquantoparaosricos.Transformouoqueaspessoascomiam:carnefresca, leite fresco e legumes e verduras frescos tornaram-se alimentosbásicos do ano inteiro, em todas as partes dos Estados Unidos, pelaprimeiraveznahistória.Asgeladeirasmodificaramomododeaspessoascomprarem mantimentos: sem a refrigeração, não poderia haversupermercados,“comprassemanais”nemestocagemnocongeladorparaas

emergências.Alémdeaparelhodepreservação,ageladeiraeraumsistemadearmazenamentoqueassumiuafunçãodaantigadespensa.Possuirumageladeirarepletadealimentosfrescos–alfacenagavetadelegumes,litrosde leite, potes de maionese, frangos assados inteiros, quilos de frios esobremesascremosas–eraparticipardosonhoamericano,queé,nofundo,umsonhodefartura.Ageladeiraamericanatornou-seumnovopontofocaldacozinha,assumindoo lugardaantiga lareira.Houveépocaemquenoscongregávamosaoredordofogo;hoje,aspessoasorganizamsuavidaemtornodaslinhasdurasefriasdageladeira.Emmatéria de geladeira, todos aspiramos a ser norte-americanos. Na

primavera de 2011, num lançamento de produtos num vasto espaço dosubsolodaBloomsburydeLondres,pareidiantedeumageladeiradúplexde última geração. Sua classificação ecológica era A++, e o aparelho nãopermitiaaformaçãodegelo.Eraaltoeinteiramentebranco,excetoporumpequeno painel metálico na frente, que parecia um dispositivo desegurança domundo de James Bond.Havia umbotão com o desenho deumabarracadepraia,queapessoapodiaapertarcasofossesairemviagemde férias: durante todo o tempo em que estivesse se bronzeando, ageladeira calibraria o uso de energia numa regulagem inferior à normal.Fiquei impressionada. Mas isso não era nada. A Samsung lançou uma“geladeira inteligente” com wi-fi integrado, atualizações do Twitter eprevisãodotempo.Noperíodoemqueestelivrofoiescrito,pesquisadoresda University of Central Lancashire, na Inglaterra, estavam trabalhandonuma geladeira autolimpante que também faria um inventário constantedeseuconteúdo,passandoparaafrenteosprodutosqueestivessemmaisperto da expiração do prazo de validade. Parecemos ter chegado a umpontoemqueesperamosqueasgeladeirasorganizemnossavida–eelaslogoserãocapazesdefazê-lo.Ageladeira,enãoofogão,tendeagoraaseropontodepartida–oqueos

decoradores chamam de “afirmação” – em torno do qual se constrói orestante da cozinha. Quando não conseguimos pensar no quemais fazer,abrimosaportadageladeiraeolhamoslongamenteparaseuinterior,comoseelafossefornecerasrespostasparaasgrandesquestõesdavida.

BACON,QUEIJOSPARMESÃOecheddar,salame,chucrute,patoconfit,linguiças,salmãodefumado, arenque defumado, bacalhau, sardinhas enlatadas no azeite,passas, ameixas secas, damascos secos, geleia de framboesa, compota defrutas cítricas… inúmeroscomestíveisdeliciosospoderiamnunca ter sido

inventadossetivéssemostidoacessoàrefrigeraçãomaiscedo.Apresençapermanentedemuitosdessesalimentosemnossadietaéum

anacronismo,porémsomoscriaturasdehábitoseaprendemosagostardemuitascoisasqueumdiaforamconsumidaspornecessidade.Obaconnãotemqualquerfinalidaderealnumaerarefrigeradasenãoadedarprazer,oquenuncadeve serdesconsiderado. Já nãohánecessidadede comermospresuntodefumado,quandopodemosguardarcosteletasdeporcofrescasna geladeira. Nosso gosto por alimentos defumados vem de épocasanteriores, quando defumar as carnes para preservá-las podia fazer adiferença entre a possibilidade de comer um alimento o ano inteiro ouapenasumavezporano.Durantetodooinvernoeaprimavera,naEuropamedieval,quasetodos

os alimentos proteicos – para quem tinha a sorte de possuí-los – eramsalgados e defumados, porque essa era a única forma de impedir que acarne e o peixe estragassem.Qualquer carne não consumida logo após oabate era preservada no sal: estendiam-se camadas de pedaços de carnenumgrandebaúdemadeira,abafadasporcamadasdesal.Eraumprocessocaro: no fim do século XIII, gastavam-se dois pence de sal (em moedaantiga)paracurarcincopencedecarne,demodoquesósesalgavaacarnede primeira. A carne de porco era a quemelhor absorvia o sal. Além dedefumar presunto e pernil e de salgar toucinho e carne de porco, oselisabetanosfaziamoutracoisa,grosseiramentechamadade“salmoura”–uma miscelânea de pés, orelhas, bochechas e focinho de porco emconserva: tudo, menos o grunhido do bicho. Também se salgava carnebovina.Umexemploeraa“carnedeSãoMartinho”,preparadaemtornododia dos festejos do santo, 11 de novembro. Depois de salgada, ela erapendurada no teto de um defumadouro até ficar pronta. Durante muitotempo, circulou o mito de que os cozinheiros de antigamente usavamespeciarias para disfarçar o gosto da carne putrefeita. Não é verdade: asespeciarias eram caras e não seriam desperdiçadas em alimentoscondenados.Masumimportanteusodelaseramoderarosaborpungentedacarnesalgada.O leite perecível também era preservado: no Oriente, era talhado e

fermentadoemcremessemelhantesaoiogurteeembebidasazedas,comookumissdoscazaques,oupormeiodaevaporação,parasetransformaremleite em pó (invenção dos mongóis); no Ocidente, era transformado emqueijooumanteigamuitosalgadoseguardadoemrecipientesdecerâmicabem-esmaltada.NoColóquiodeAelfric,bo“salgador”comenta:“Perderíeis

todaavossamanteigaequeijo,seeunãoestivesseàmãoparaprotegê-losemvossobenefício.”A“manteigacomsal”daIdadeMédiaeramuitomaissalgadadoqueanossa,queétemperadaparaagradaraonossopaladar,enãopormotivodeconservação.Atípicamanteigacomsalmodernacontém1% a 2% de sal, ao passo que a medieval tinha cinco a dez vezes essaquantidade;segundoumregistrode1305,eranecessáriaumalibradesalparacadadezlibrasdemanteiga,couseja,10%damanteigaerampurosal.Ingerida pura, teria um gosto terrível. Os cozinheiros precisavam fazerenormesesforçosparatirargrandepartedessesalantesqueelapudesseserusada.Tambémseusavasalparapreservaracarnefrágildospeixes.Oarenque

defumadoescocêssófoiinventadonoséculoXIX,mas,antesdisso,haviaossmokies,osbuckieseosbervies,umaespéciedehadoquecuradoproduzidaperto de Aberdeen, extremamente defumado sobre turfa e musgo emdecomposição.OspeixessalgadoseemconservaeramproteínasbásicasnaEuropa, sobretudoàs sextas-feiras.Desdeépocaspré-clássicas,houveumcomérciosignificativodepeixessalgados,primeirodoEgitoedaEspanha,depois,daGréciaedeRoma.DuranteaIdadeMédia,oarenquesalgadodomar do Norte e do Báltico foi uma grande indústria. Não era umamercadoria de fácil produção. Sendo um peixe oleoso, o arenque ficarançosomuito depressa, e o ideal é que seja salgado dentro de 24 horasapós sua captura,ouatéantes.No séculoXIV,osnegociantesdearenquepuderam aprimorar consideravelmente o processo, desenvolvendotécnicas para salgá-lo a bordo dos barcos; depois, o peixe voltava a serembalado,quandoasembarcaçõeschegavamaoporto.Osholandeses,emparticular,revelaram-semestresnessatécnica,oquetalvezexpliquecomovieram a dominar o mercado europeu. Os estripadores de arenqueholandeseseramcapazesdelimparaté2milpeixesporhoranomar.Essavelocidade tinha um benefício adicional, embora os encarregados dalimpezanãosoubessemdisso.Emsuapressa,elesdeixavamnopeixeumaparte do estômago que contém tripsina, uma substância química queaceleraoprocessodematuração.Amonotonia de uma dieta em que o único peixe consumido era uma

conserva pode ser avaliada pelo número de piadas a que esses produtosderam origem. “Seu bacalhau seco, suma da minha vista!”, diz umpersonagem a outro em A Pleasant Comedie, called Wily Beguilde (autoranônimo, 1606). A expressão “red herring” [“arenque vermelho”, ou“arenque defumado”] – que era um peixe curado de gosto forte,

“intensamentedefumado”duasvezes,alémdesalgado–mantémeminglêsosentidofiguradodealgoenganosoouforadelugar,pistafalsa.As conservasdoces tenderama ter conotaçõesmuitomais suntuosase

agradáveis. Nos países quentes banhados pelo Mediterrâneo, a maneiramaispráticadeconservarfrutaselegumeserasecá-los:asuvastornavam-se “passas do sol”, as ameixas, as tâmaras e os figos murchavam eintensificavam sua doçura. A tecnologia básica da secagem de frutas eramuito simples: nos tempos bíblicos e antes deles, as frutas e os legumessumarentoseramenterradosnaareiaquenteouespalhadosembandejasou nos telhados, e dessecados sob os raios solares. No Leste Europeu,porém,ondeosoleramenosabrasador,desenvolveram-semétodosmaissofisticados. A partir da Idade Média, na Morávia e na Eslováquia,construíram-secasasdesecagemespeciais,queconsistiamemumcômodoaquecidodebaixoparacimaporumafornalha,comumvastonúmerodearmações de vime em que os frutos em processo de secagem erampendurados.

O equivalente disso, nas casas ricas da Inglaterra, era o esplêndido“quarto de destilar”, onde os empregados destilavam bebidas alcoólicas,preparavam conservas de frutas, cristalizavam frutas secas e cascas defrutascítricasefaziamdocespastosos(originalmente,demarmelo),geleias

e balas. A arte de cristalizar era cheia de superstições e “segredos”alquímicos.Cadafrutatinhaseusprópriosimperativos.Deacordocomumlivromedieval, as nozes tinham que ser preparadas no dia 24 de junho,festa de São João. As frutas para conserva eram colhidas quasemaduras,porqueassimtinhammaisprobabilidadedemantersuaforma.“Amelhormaneira de conservar as groselhas verdes e inteiras” era uma receita deTheQueen-LikeCloset,deHannahWolley, lançadoem1672.OmétododeWolleyeracansativamentedemorado:trêsimersõesemáguaquente,trêsfervurasnacaldadeaçúcar,edepois,umafervurafinalnumanovacaldadeaçúcar.Otrabalhodadestilariaeraumaespéciedemágica,umadiamentodadeterioração,comparávelaoembalsamamentodosmortos.Omaisnotávelnasconservasdefrutaseraquedefatoelasconservavam

as frutas (pelo menos, na maioria dos casos). Ao longo da história, oscozinheiros têmsidopessoasquevisam tornar segurosos alimentosqueserão ingeridos;e,emmuitasocasiões,obtiveramsucesso.Contudo,atéadécada de 1860, quando Louis Pasteur descobriu os microrganismosresponsáveispeladeterioraçãodealimentosebebidas,oscozinheirosnãotinham um conhecimento verdadeiro da razão por que a preservação dealimentosfuncionava.Avisãovigenteeraqueadecomposiçãoeracausadapor geração espontânea – em outras palavras, que forças misteriosas einvisíveisfaziamomofocrescer.Aspessoasnadasabiamsobremicróbios,sobreosorganismosvivos– fungos,bactériase leveduras,entreoutros–queprovocavamumafermentaçãobenéficadovinhoedosqueijoseumafermentaçãotóxicaemqueoalimentosedeteriorava.As mulheres gregas que espalhavam figos para secar sob o sol não

sabiam estar matando micróbios invisíveis (as bactérias precisam deumidadeparaflorescere,quandooalimentosedesidrata,amaioriadelasmorre). As mulheres de lavradores que faziam cebolas em conserva novinagrenãotinhamumacompreensãodecomoaacidezprotegecontraocrescimentodefungos(osmicróbiospreferemcondiçõesalcalinas),sabiamapenas que as cebolas em conserva duravammais do que as cebolas aonatural. Os métodos de preservação desenvolveram-se devagar e comcautela. Manter os alimentos seguros para consumo foi um processo detentativa e erro,mas, como o erro podia significar amorte, havia poucoincentivo para se embarcar em novas experiências. Quando se descobriaalgoqueconseguiamanteroalimentocomestívelporumlongoperíodo,deforma segura, ficava-se agarrado a isso. A não ser pela descobertaquinhentista da conservação da carne numa camada de gordura ou óleo

(quer no caso do confit de pato, quer no das carnes em conserva daInglaterra), a tecnologia da preservação não fez avanço algum desde aIdadeMédiaatéosprimórdiosdoséculoXIX.Atéosurgimentodalata.

NEMMESMONICOLASAPPERT,ofrancêsqueinventouoprocessodeenlatamento–ummétodomuitomodernode conservação– compreendeu inteiramentecomoouporqueele funcionava.Declarouquea técnica tinha sido “frutodos meus sonhos, de minhas reflexões, minhas pesquisas”. Appert eracervejeiro, depois trabalhou como administrador na aristocracia e, maistarde, no período napoleônico, como confeiteiro. Diziam que era umindivíduo bem-humorado, calvo e com sobrancelhas pretas e muitogrossas.Apesardeter introduzidoumdosmaioresavançosdatecnologiaalimentardoséculoXIX,nãoderivoudissonenhumbenefícioduradouroefoisepultadonumavalacomum.Em 1795, o governo francês, então enredado numa guerra com a

Inglaterra, buscoumaneirasmelhores de alimentar suas forças armadas.Napoleãoofereceu12milfrancosaquemconseguisseapresentaramelhormaneira de preservar alimentos. Enquanto isso, Appert, que na épocacuidava de sua confeitaria na rue des Lombards, em Paris, andavapreocupadocomamesmaquestão.Sabiapreservarecristalizar inúmerasfrutasdiferentesnoaçúcar,mastinhacertezadequedeviahaverummodomais “natural” de obter o mesmo efeito. A seu ver, todos os métodostradicionais de fazer conservas eram falhos. Desidratar os alimentosretirava deles a textura essencial, o sal tornava-os “amargos”, e o açúcarescondia seus verdadeiros sabores. Appert procurava uma técnica quepromovessea conservaçãosemdestruirasverdadeiras característicasdeumingredientequalquer.Experimentouconservarfrutas,legumesecarnesguisadas em garrafas de champanhe, aquecendo-as em banhos de águafervente.Comotempo,passoudasgarrafasdechampanheparaoutrasdeaberturamais larga. Por fim, sentiu-se confiante o suficiente para enviaralgumasamostrasaoexércitofrancês.Arespostafoipositiva:oministrodaMarinha francês comentouque as vagens e as ervilhasdeAppert tinham“todo o frescor e sabor dos vegetais recém-colhidos”.O jornalCourierdel’Europefoiaindamaisexageradoemseuselogios:“Osr.Appertdescobriuummododeconservarasestaçõesdoano.”Oprêmiode12milfrancosfoi-lhedevidamenteconcedido.Ométodo de Appert era muito simples, consistindo em nada além de

aqueceroalimentonumbanhodeágua,dentrodegarrafas fechadascom

rolha.Em1810,Appertpublicouumlivroemquerevelouseussegredos.Osalimentos que preservava em suas garrafas herméticas eram inusitados:alcachofras,trufas,castanhas,filhotesdeperdiz,mosto,azedinha,aspargos,damascos,groselhas-vermelhas,sopadelegumespicados,ovosfrescos.Nofundo,porém,tratava-sedomesmoprocessopeloqualtodalatadeatumetoda lata de milho são fabricadas até hoje: um recipiente hermético,aquecidonovapor.Mas não foi Appert quem capitalizou nesse processo. Ao aceitar o

prêmio, ele renunciou à possibilidade de patentear sua invenção. Poucosmeses depois de lançado o seu livro sobre a produção de conservas, em1810,umcorretor inglês,PeterDurand,registrouàspressasapatentedeummétododepreservaçãodealimentossuspeitamentesemelhanteaodeAppert.Apatentefoicompradapormillibrasesterlinasporumengenheiroque tinha olho clínico para as grandes oportunidades, chamado BryanDonkin.Em1813,Donkineseussócioscomerciais,ossrs.HalleGamble,abriramumafábricaapelidadade“conservatório”emBermondsey,distritoindustrial de Londres, produzindo alimentosbeneficiadospela técnicadeAppert, queos aquecia em recipientes fechadosna água ferventepor atéseis horas. Mas houve uma diferença crucial: Donkin, Hall e Gambleacharam as garrafas de vidro de Appert frágeis demais e, em vez delas,embalaramseusalimentos–cenoura,vitela,sopadecarne,carnecozidaesimilares–emvasilhasfechadasdeferrorevestidodeestanho:aslatasdefolhadeflandres.Essas primeiras latas de alimentos não deixaram de ter problemas. O

mais imediato foi que houve uma defasagem de cinquenta anos entre adescoberta de Appert e a invenção dos primeiros abridores, o que é umexemplo flagrante de como a tecnologia pode avançar aos trancos ebarrancos. Até a década de 1860, as latas de carne de boi em salmoura(muito usadas pelas forças armadas), ou as de salmão ou de pêssego,vinhamcomas instruções“cortea tampa, juntoàbordaexterna,comumcinzeleummartelo”.Oprimeiroabridordelatasfeitosobencomendafoidesenhadoem1855

por Robert Yeates, um fabricante de instrumentos cirúrgicos, artigos decutelaria e talheres, que lhe deu a forma de uma perigosa alavanca,semelhanteaumagarrapresaaumcabodemadeira.Aideiaeracravaraalavancanotampodalataecortaremvoltacomforça,deixandoumabordairregular afiada. O utensílio funcionava – mas não bem. A história dosabridores de latas é repleta demodelos insatisfatórios: oWarner,muito

usadoduranteaGuerradeSecessãonorte-americana,comsuafoiceafiadanaponta,eraótimoparaocampodebatalha,masmortalparausonumacozinha normal; uma chave abridora de 1868, que enrolava uma tiradometal da parte superior e a retirava, mostrou-se ideal para as latas desardinha,masnãotãoboaparaaslatascilíndricascomuns,porquesóabriaparte da tampa circular; e os abridores elétricos da década de 1930introduziram uma complicação desnecessária à tarefa. Por fim, nos anos1980, surgiuumutensílioque a executava comummínimodeperigoouesforçoparaousuário.Oabridordelatasdeaberturalateral,quehojepodesercompradoporpreçosmodestosemmuitasvariações,éumdosgrandesheróisnão reconhecidosna cozinhamoderna. Emvezde furar o topodalata, ele usa duas rodas em conjunto, sendo uma lâmina giratória e umarodaserrilhada,eretiraatampaintacta,semdeixarrebarbascortantesnasbordas. É umutensílio fantástico, e a única lástima é quenão tenha sidoinventadoantes.Hojea indústriadealimentosenlatadosestápassandoausartampasabre-fácil,providasdeumaargola,queeliminamporcompletoanecessidadedoabridor.Aforaodesafiodechegaràcomidacontidanalata,oenlatamentotrazia

outro perigo: nem sempre se conseguia preservar o alimento. Em 1852,constatou-sequemilharesdelatasdecarnefornecidasàMarinhabritânicaeramimprópriasparaconsumo:“seuconteúdoeraumamassaputrefeita”que exalava um “fedor” pavoroso quando aberto. Em geral, presumia-seque a carne enlatada estragava porque “o ar penetrou na lata, ou nãochegouaserinteiramenteretiradodela”.AtéLouisPasteur,nãosesabiadaexistênciadeumtipodemicróbiocapazdevicejarsemoar;paramatá-lo,ofatorcrucialeraoaquecimentorigoroso.Otamanhooriginaldaslatasiade900gramasa1,8quilos(emcontrastecomos100a450gramasdamédiadaslatasdehoje);aslatasdamarinhaerammuitomaiores,com4,5quilosde carneemmédia.Na fábrica, o tempodeaquecimentodeveria ter sidoaumentado,masissonãoocorria,oquedeixavabolsõespútridosnomeiodaslatas.Nadécadade1870,aqualidadedacomidaenlatadahaviamelhoradoe

as latas começaram a abrir mercados globais de alimentos numa novaescala. Operários britânicos sentavam-se para refeições à base de carneenlatada Fray Bentos, proveniente do Uruguai. O presunto em latapercorriatodootrajetodeBermondseyatéaChina.Consumidoresnorte-americanos foram apresentados a ingredientes que, de outro modo,raramente provariam. Um historiador dos produtos enlatados observou

que,apartirdeentão,afamíliaamericanapôdecolherfrutosde“umahortaemque cresce tudoo queháde bom”, repleta de framboesas, damascos,azeitonaseabacaxis,paranãofalarnos“feijõescozidoscommolho”.Mas era uma horta em que muitos produtos tinham um sabor meio

estranho. É verdade que os tomates italianos em lata podem ser umaalegria – não em si próprios, mas se preparados lentamente em fogobrandoparadiversosmolhosparamassas:allaputtanesca,all’amatriciana.Noentanto,espinafreenlatado–desculpe,Popeye–égosmentoemetálico.Abacaxiepêssegoemlatasãobons(emboralhesfalteoperfumedasfrutasfrescas),masframboesaenlatadaviraumapapa.Hojeemdia,aslatassãomaisimportantescomoembalagemdebebidas(refrigerantes,cerveja)quede comida: as vendas mundiais de alimentos industrializados em lataatingemcercade75bilhõesdeunidadespor ano, emcontraste com320bilhõesdelatasdebebidas.Nocômputofinal,a tecnologiaquemaisaprimorouadietadasfamílias

norte-americanas não foi o enlatamento,mas a refrigeração, que de fatodeuàsmassasacessoa“umahortaemquecrescetudooquehádebom”..

EM 1833, UMA REMESSA surpreendente chegou a Calcutá, na época o centro doImpério Britânico na Índia. Eram quarenta toneladas de puro gelocristalino,transportadasdesdeBoston,naCostaLestedosEstadosUnidos,numaviagemde25.600quilômetros,despachadasporFredericTudor,umempresáriodoramo.O comércio de gelo Boston-Calcutá foi um sinal de como os Estados

Unidos estavam transformando o gelo em lucro. Como recurso naturalabundante,ogeloéantiquíssimo:colhia-segelonaChinaantesdoprimeiromilênioa.C.Vendia-seneveemAtenasdesdeoséculoVa.C.Aristocratasdoséculo XVII comiam colheradas de sobremesas servidas sobre tigelas degelo,bebiamvinhoresfriadocomneveeaté tomavamsorvetesde frutas.Noentanto,sónoséculoXIX,nosEstadosUnidos,équeogelosetornouumproduto industrial – foram os norte-americanos que reconheceram eexploraramo fatodequeasmaiores fortunasnãoestavamna criaçãodeiguarias geladas,mas no uso do gelo na refrigeração: na conservação dealimentos.O armazenamento a frio não era desconhecido antes do século XIX.

Muitas propriedades italianas possuíam suas próprias “casas de gelo”,comoadosJardinsBoboli,emFlorença.Elaserampoçosouadegasmuitobem-isolados – em geral, com turfa ou palha – nos quais era possível

guardar pedaços irregularmente cortados de gelo, desde o inverno até overão. Tais casas não tinham o objetivo preponderante de preservaralimentos,masde conservarogelo, a fimdequeeleestivessedisponívelparagelarbebidasoufazersorvetessuntuososnoaugedoverão.Épossívelque,emalgumasocasiões,acasadegelofosseusadaparacomplementaradespensa,massuafunçãoprimordialeramanterseusdonosabastecidosdeiguariasdocesegeladas,adornosdavidacivilizada.Teracessoaogelonoverão – zombar das estações do ano – era sinal certeiro de riqueza. “Osricos têm gelo no verão, os pobres no inverno”, como escreveu LauraIngalls num livro sobre sua vida de casada com um agricultor emdificuldades,naspradariasdoestadodeDakota,nosanos1880.Nos Estados Unidos como um todo – um país de vastas distâncias e

extremosdevariaçãoclimática–,afaltadegeloafetavaoabastecimentodevíveresemgeral.Manteiga,peixes, leitee carnes sópodiamservendidosemmercados locais.Amaioriados açougueiros abatia apenasos animaiscujacarnepudessevendernomesmodia.Acarnenãovendidaeradeixadanaruaparaapodrecer.Amenosquevocêmorassenazonaruraletivesseumahorta,verduraseramumararidade.Adietabásicaerafeitadecarnedeporcosalgadaepão,oubroademilho.Osconsumidoresurbanoseosprodutores rurais tinhampoucasmaneirasde chegaruns aosoutros.Em1803,um fazendeirodeMaryland, chamadoThomasMoore, concluiuquepoderia vender mais manteiga se conseguisse levá-la a mercados maisdistantes. Criou uma das primeiras “geladeiras”: uma tina de cedro emformadeovo,comumrecipienteinternodemetalparaamanteiga.Entreometaleamadeirahaviaumespaçoquepodiaserpreenchidocomgelo.Aprimeiragrandeinovaçãotecnológicanaindústrianorte-americanade

gelo foi o cortador de gelo de tração animal, puxado por cavalos,patenteadoem1829porNathanielJ.Wyeth.Antesdisso,ogeloeracolhidoemblocosdesiguais,comgrandedificuldade,medianteousodemachadoseserras.Commuitomenosesforço–paraossereshumanos,senãoparaoscavalos –, o corta-gelo de Wyeth produzia blocos quadrados perfeitos,fáceis de empilhar e de transportar. Os lucros obtidos alcançaramproporções épicas.Apartirde1873, tirar gelodo rioHudson custava20centavosportonelada.Elepodiaservendidoa freguesesparticularesporaté4a8dólaresportonelada–umamargempotencialdelucrode4.000%.Em1855,aenergiaavaporjuntou-seàtraçãoanimalnacoletadegelo,e

atéseiscentastoneladaspassaramapodersercoletadasnumaúnicahora.Aofertaaumentou,masomesmosedeucomademanda.Noanoseguinte,

a cidade de Nova York usou 100 mil toneladas de gelo; em 1879-80,precisou de quase um milhão de toneladas, e a demanda continuava aaumentar. Quase metade de todo o gelo vendido ia para residênciasparticulares.Asempresasdegeloentregavamseuprodutoemcarroçasoucaminhões,porumatarifafixadiáriaoumensal.Ogeloeramantidonuma“caixa de gelo” – uma geladeira primitiva, que era pouco mais que umacaixademadeirarevestidadeestanhoouzinco,comprateleirascomoumarmário de cozinha e um orifício no fundo para o escoamento do geloderretido. Essas “geladeiras” eram malcheirosas e ineficientes, semrecursosdecirculaçãodear.Aindaassim,quebênçãopoderdesfrutardealgo friozinhonocalorde julho, impedirqueo leite fresco talhassecomoqueijodurantealgumashoras,quemsabedias,ourefrigerarumatigeladeameixas.Ogelo,noentanto,introduziusuasmaiorestransformaçõesoitocentistas

nãonascasas,masnofornecimentocomercialdealimentos.Acombinaçãode imensos armazéns frigoríficos com vagões de trem refrigerados abriumercados totalmente novos. As indústrias de carne, laticínios e vegetaisfrescos foram as maiores beneficiadas. Na Segunda Guerra Mundial, osnorte-americanos eram conhecidos no mundo inteiro por seu apetiteaparentementedescomunalporcarnee leite(complementadosporcoposdesucodelaranjasrecém-espremidasesaladasdeverduras).Esseapetite,assim como os meios para satisfazê-lo, foram obra sobretudo darefrigeração.Em1851,pelaprimeiravezsetransportoumanteigaemvagõesdetrem

refrigerados,notrajetodeNovaYorkaBoston.Tambémopeixecomeçouacircularpelopaís,eem1857despachava-secarnefrescadeNovaYorkparaosestadosdoOeste.Os“vagõesdecarne”refrigeradoscriaramumanovaindústria de frigoríficos, centrada em Chicago. Foi de um fenômenotipicamente norte-americano: em1910, havia 85mil vagões refrigeradosnosEstadosUnidos,comparadosaapenas1.085naEuropa(amaiorianaRússia). A carne fresca já não tinha que ser consumida logo depois doabate. As carcaças podiam ser congeladas, armazenadas e despachadasparaqualquerlugar.Osnovosvagõesrefrigeradostiveramcríticosferozes,comoocorrecom

todasasnovastecnologiasdosalimentos.Osaçougueiroseosmatadouroslocais protestaram contra a perdade negócios e lamentaramo crescentemonopólio da carne em poder de Chicago (e, a julgar pelas pavorosascondiçõesdosmatadourosefrigoríficosdeChicagodescritasemAselva,de

UptonSinclair,de1906, talvez tivessemrazão).Emtermosmaisgerais,apopulaçãocomoumtodotemiajustoaquiloquetornavaarefrigeraçãotãoútil:suacapacidadedeampliaroprazodearmazenagemdosalimentos.Aoladodaproliferaçãodevagõesrefrigerados,houveumenormecrescimentodos armazéns frigoríficos. Em 1915, havia cemmilhões de toneladas demanteiga armazenadas a frio. Os críticos alegavam que a “armazenagemprolongada” não podia ser boa para os alimentos, reduzindo seu sabor eseuvalornutritivo.Outrapreocupaçãopersistenteeraquea refrigeraçãofosse um golpe: ao retardar a venda dos comestíveis, os vendedorespodiamelevarospreços.Outrapreocupaçãocomarefrigeração,sobretudonotocanteaos laticínios,queexigemuma limpezaescrupulosa,eraqueogelonaturalnemsempreeraimaculado,muitasvezescontendoimpurezas,ervasaquáticaseoutrostiposdevegetação.Periodicamente,asinspetoriasde saúde locais condenavam grandes quantidades de gelo colhido nanaturezacomoimpróprioparaconsumohumano.Essafoiumadasrazõespelasquaisarefrigeração,nosEstadosUnidos,

passou cadavezmaisdogelonaturalparao geloproduzidoem fábricas.Fazia séculos que o ser humano estava familiarizado com maneiras deproduzir gelo artificial,mas, namaioria dos casos, não o produzia comoobjetivoderefrigerar,esimparafazersorvetesegelarbebidas.OcientistaelisabetanosirFrancisBaconfoiumadaspoucasexceções.Deacordocomseubiógrafo,JohnAubrey,Baconmorreuem1626deumagripecontraídaquando tentava usar neve para conservar uma galinha. Ele tambéminvestigou o uso do salitre no que chamou de “experiência detransformação artificial de água em gelo”. Bacon atacou os usos frívolosqueosricostendiamafazerdeseugelo.Era“pobreedesprezível”produzirgelo apenas para requintes como esfriar vinhos, em vez de usá-lo em“conservatórios”,termocomquesereferiaageladeiras.Bacondecertoteverazão quanto ao fato de que isso era sobretudo uma questão deprioridades. Embora a refrigeração tenha sido negligenciada duranteséculos,atecnologiadaproduçãodesorveteseraavançadíssima.

OANÚNCIODOMRS.MARSHALL’SPATENTFREEZER,umamáquinadefazersorvetede1885,mostraaimagemdeumaparelhocircularbaixo,providodeumamanivela,eincluiestabravata:

MARSHALL’SPATENTFREEZER

Sorvetecremosoedeliciosoemtrêsminutos

Sorvete em três minutos? Feito à mão? Hoje em dia, as melhoressorveteiras elétricas, destinadas aos cozinheiros domésticos ao preço devárias centenasde libras, gabam-sedepoderproduzir “sorveteou sorbetemmenos de trintaminutos”. Como poderia amáquina da sra.Marshallfazersorveteemumdécimodessetempo,semaajudadaeletricidade?Parece propaganda enganosa. A sra. Marshall era uma empresária

extremamente sagaz, hábil em promover seus interesses. Mãe de quatrofilhosnobairrodeSt.John’sWood,nazonanortedeLondres,dirigiaumaescoladeculinárianaruaMortimerno31,nocentrodacidade,inauguradaem1883.Ajulgarpelosretratosemseuslivros,eraumamorenaatraente,bemnosmoldesdasbeldadestrigueiraspintadasporJohnSingerSargent:olhar vivo, blusas cobrindo seios fartos, cachos soltos amontoados numcoque alto. Logo depois de inaugurada a sua escola de culinária, a sra.Marshallabriuumalojanaqualseofereciaparaequiparcozinhasinteirascomtodososutensílioseaparelhosnecessários,delimpadoresdefacasaformasdecoradasparasorvete.Tambémvendiaessências,condimentosecorantes alimentares, além de escrever livros de receitas – dois sobresorvetes e um sobre culinária em geral –, sempre incluindo muitosanúnciosdasualinhadeprodutosnasquartascapas.

Emsuma,asra.Marshallerao tipodepessoaquepoderiaafirmarquesua sorveteira levava trêsminutos para produzir a guloseimaquandonaverdade levava trinta. Às vezes, porém, as pessoas que se empenhamnaautopromoção têmmesmoalgodeque segabar. Segundose constatou, asorveteira patenteada pela sra. Marshall era realmente um aparelhofantástico. Em 1998, sabia-se da existência de apenas cinco exemplaresremanescentes. Três pertenciam a Robin Weir, o maior historiador de

sorvetesdoReinoUnidoemembrodeumgrupopequeno,masapaixonado,de historiadores da culinária que afirmam que a sra. Marshall era umacozinheiramuitomelhordoquesuaquasecontemporânea,asra.Beeton.QuandoWeircomeçouafazerexperimentoscomsuassorveteirasMarshalloriginais,surpreendeu-seaodescobrirqueelaseramrealmentecapazesdeproduzir um sorvete macio e cremoso em poucos minutos – se nãoexatamentetrês,nãomaisdoquecinco–,desdequeaquantidadenãofossemuitogrande.Viumdosaparelhosdasra.Marshallemfuncionamentonumdoscursos

deculináriahistóricadeIvanDay(queéumdosoutrosrarospossuidoresdessamáquinaedefensordasra.Marshall).Àprimeiravista,asorveteiranão parece muito diferente da clássica máquina norte-americana demanivela,inventadaem1843porNancyJohnson,mulherdeumoficialdamarinha dos Estados Unidos residente na Filadélfia – outra grandeinovadoranaproduçãodesorvetes.Atéhoje,osbaldesdemadeiracaseirosnoestilodeJohnsonsãousadosemmuitascasasnorte-americanasparaascriançassedivertiremnumatardequentedeverão.Vocêcompactageloesalnumbalde,emvoltadeumrecipientedemetal.Emseguida,vertenesserecipiente a mistura para sorvete. Repõe a tampa e começa a girar amanivela, fazendo rodar lá dentro o “batedor”, que raspa o sorvete daslateraisfriasdorecipiente,àmedidaqueelevaigelando.Numdiadesorte,quandonãofazcalordemaiseconseguimoscompactaromáximodegeloesal no balde, o sorvete fica pronto após uns vinte minutos de girosvigorososdamanivela.Comopodeasorveteiradasra.Marshallfazeromesmotrabalhoquatro

vezesmaisdepressa?Elaémuitomaislargaebaixaqueobaldedesenhadopor Nancy Johnson. O congelamento é uma espécie de inversão datransferênciadecalor,quepassadamisturacremosaparaofriorecipientemetálico.Quantomaior a área de superfície dometal frio,mais depressagelaamisturadosorvete.Asorveteiradasra.Marshalltemumasuperfíciefria muito maior que a de outros aparelhos. Ao contrário do balde deJohnson, o gelo e o sal ficam apenas embaixo da cuba. Como se gaba oanúncio, “não é necessário compactar nada em volta”. Há também umainovaçãoadicional.Emtodasasoutrassorveteirasdomésticas,sejamelaselétricas ou anteriores à eletricidade, o recipiente de metal fica imóvelenquantoobatedorgira;nadasra.Marshall,obatedorcentralficaparado,enquantoamanivelasuperiorgirarepetidasvezesorecipiente.Trata-sedeumainvençãoesplêndida,comumaúnicafalha:parachegar

aopreçomaisacessível,asra.Marshallproduziasuasmáquinasemzincobarato, que é um metal venenoso. Por isso, embora os aparelhosremanescentes decerto ainda funcionem às mil maravilhas, fazendo umsorvete cremoso num prazo curtíssimo, faz muito tempo que ninguémprova um deles, exceto Robin Weir. Disse-me ele que “viv[e] tomandosorvetefeitona[sua]máquina;atemperaturasabaixodezero,atoxicidadedos metais torna-se desprezível”. Não há dúvida de que ele tem razãoquantoaisso,mas,nomundodehoje,qualqueraparelhoquecontamineosorvete com zinco tóxico, ainda que em nível muito baixo, encontrarápoucosusuários.Na casa de IvanDay, vimos umamistura para sorvete à base de água,

preparada com frutas cítricas e aromatizada combergamota, passar a deum líquido amarelo transparente para a de um creme gelado e brancocomo a neve. A tentação de prová-lo foi imensa, venenoso ou não. DaycomentouqueeleeRobinWeirtêmconversadosobrerelançarasorveteiradasra.Marshallemmateriaismodernos,nãotóxicos.Deveriamfazê-lo.Elaémelhordoquequalquercoisaqueseconheçanomercado:maisrápida,maiseficiente,maisagradávelemtermosestéticosetotalmenteneutraemmatéria de emissão de carbono. Para quem tinha umaMarshall’s PatentFreezer, talvez fosse mais fácil e mais rápido fazer sorvete em casa em1885doquenamaioriadascozinhasatuais.Mesmo o novo e revolucionário Pacojet, que diz fazer sobremesas

geladas emvinte segundos,pormeiodo “girodeprecisão”, naverdadeémaislentoqueasorveteiradeMarshall:parausá-lo,vocêprecisacongelaros ingredientes por pelomenos24horas antes de começar.O quehádeaindamaisnotávelnainovaçãodasra.Marshalléquefazersorvetesnãoéumaartenegligenciada(emmédia,asformasparagelatinaerammelhoreshácemanosdoquesãohoje,masissoéporqueamaioriadenósjánãoestámuito interessada em fazer gelatinas parecidas com castelos). Muitoscozinheiros atuais adorariam poder fazer o que a sra. Marshall fazia. Olequedesaboresdesorvetesdeseulivroexpressaa liberdadedequeelagozavaparainventaroquebementendesse,sabendoque,umavezfeitaamistura,osorveteacabadopoderiaficarprontoemminutos.Suasreceitasnão são apenas de baunilha, morango e chocolate, mas de amêndoastostadas, groselha, ameixa rainha-cláudia, canela, damasco, pistache,marmelo,águadeflordelaranja,chápretoetangerina.Asra.Marshallteveoutraideiaespantosaapropósitodossorvetes.Num

artigode1901emsuarevistaTheTable,sugeriuumtruquedivertidopara

“pessoasdeinclinaçãocientífica”:

Comaajudadeoxigêniolíquido,…cadaconvivadeumjantarpodefazerseuprópriosorveteàmesa, simplesmentemexendo com a colher ingredientes de sorvete aos quais tenham sidoacrescentadaspelacriadaalgumasgotasdeoxigêniolíquido.

É provável que ela tenha tido essa ideia ao assistir a uma palestracientíficasobregasesliquefeitosnaRoyalInstitution.Nãosesabeaocertoseelamesmachegouaexperimentá-la.OcientistaPeterBarham,que fazsorveteusandonitrogêniolíquido,sugerequenão,porque“algumasgotas”deoxigêniolíquidoprovavelmentenãobastariamparacongelarumatigelainteiradesorvete.Apesardisso,éadmirávelque,quandomalcomeçavaadespontar a aurora do século XX, essa grande inovadora culinária tenhaconcebido um método de fazer sorvete que ainda se afiguraria de altatecnologiamaisdecemanosdepois.OsclientesdorestauranteFatDuck,deHestonBlumenthal,aindaficamsemfôlegoaoveremassobremesasseremcongeladasnamesacomnitrogêniolíquido.Ooxigêniolíquidodasra.Marshallsurgiuaocabodecentenasdeanosde

inovaçãonopreparodesorvetes.Orecursobásicodepôrsalnogelo,parareduzirsuatemperatura,foidescobertoporvoltadoano300d.C.,naÍndia.Funcionaporqueosalbaixaopontodecongelamentodogelo–emtese,até−21°C. No século XIII, médicos árabes produziam neve e gelo artificiaisacrescentandosalitreàágua,comoqueseanteciparamaBaconemmaisde três séculos. Os visitantes europeus ao Oriente assombravam-se comseusmaravilhosossorvetesdefrutasexaropesgelados.PierreBelonfoiumfrancêsquevisitouoOrienteMédionoséculoXVI.Deslumbrou-secomasbebidas doces geladas: “Umas são de figo, outras, de ameixa, pera epêssego, outrasmais são de damasco e uva, e há também as demel, e osorveteiromisturaneveougelocomelesparagelá-los.”Na Pérsia, os sorbets eram feitos de suco de limão, laranja ou romã.

Primeiro,espremia-seafrutanumcoadordeprata;depois,acrescentavam-se açúcar e água para diluir; por último, colocava-se tudo numapilha degelo. Como os refrescos gelados gola, ainda hoje feitos e vendidos naspraiasdaÍndia,essessorvetesficavamnumpontointermediárioentreumalimonada e um suco servido sobre gelomoído – umbálsamo refrescantenuma tarde escaldante. “Dê-me um sol, não me importa quão quente”,escreveu o poeta Byron ao visitar Istambul, em 1813, “e sorbet, não meimporta quão frio, e meu paraíso será tão fácil de fazer quanto o seuparaísopersa.”

No século XVII, os europeus faziam seus refrescos de gelo em Paris,FlorençaeNápoles, e, emmeadosdo séculoXVIII, gelosdoceseramumaiguariabem-estabelecida.VendedoresdesorbettocirculavampelasruasdeNápoles (na época sorbetto, e nãogelato, era o termo geral italiano paradesignar o sorvete, e não indicava ausência de leite) oferecendo saboresque incluíamlaranja-lima,cerejaamarga, jasmimeperamoscatel.Eleeraservidoembolastiradasdiretamentedasorbettieraemqueerafeito–umrecipientecilíndricoalto,comtampademetal,colocadonumbaldedegeloe sal. Para quebrar os cristais de gelo e manter o sorbetto cremosoenquanto ele gelava, os vendedores giravam a sorbettiera na mistura degelo e sal a intervalos de poucos minutos, o que revolvia a mistura nointeriordorecipiente.Vezporoutra,ogeloeramexidocomumaespátulade madeira. Essa é outra maneira de fazer sorvete com uma tecnologiasimples, capaz de produzir resultados tão bons quanto os dos nossosgigantescosaparelhoselétricos.Emsuma,teríamosmuitopoucoaensinaranossosancestraisemtermos

dopreparodesorvetecaseiro.Nossoprincipalmétodonãoelétricodefazersorvete – gelá-lo num recipiente de plástico no congelador,mexendo-o aintervaloscurtosparaquebraroscristaisdegelo–émuitoinferioraumasorbettieraouàMarshall’sPatentFreezer.Independentedafrequênciacomqueotiremosdofreezerparamexê-lo,oresultadofinalésempreumblocodegelosemgraça.Excetuando-seafabricaçãoindustrialdesorvetes,queé,namaioriadoscasos,aartedebaratearoprodutocomoxigênioeaditivos,houvepoucasinovaçõesreaisdesdeaépocadasra.Marshall.Dadoodomíniovitorianoda tecnologiadosorvete, seriadeseesperar

que a refrigeração fosse o passo seguinte evidente. Com certeza, nasresidênciasmaisluxuosasdaEuropa,ondeoscriadosdacozinhadividiam-seentrecozinheiroseconfeiteiros,àsvezesestesúltimostinhamacessoauma “sala resfriada” em que as massas de pastelaria podiam manter-segeladas,alémdesefazeremsorvetesesearmazenarcarne.Nascasasmaismodestas, porém, muito depois da Revolução Industrial, a refrigeraçãoainda estava na primeira infância. Na década de 1880, a sra. Marshallvendeu um sortimento de “refrigeradores de armário” com “todos osaperfeiçoamentos modernos”, que nada mais eram que armários decozinhaseparados,feitosdemadeira,comumparderecipientesparagelona parte superior. Enquanto a sorveteira da sra. Marshall é uma dasgrandes tecnologias de cozinha negligenciadas, suas geladeiras nãopassaram de curiosidades vitorianas. Tornaram-se obsoletas com o

surgimento da geladeira com compressor elétrico que hojemolda toda anossavida.

ALGUNSANOSATRÁS,euestavaemLondresconversandocomumaamericanaqueestavacomsaudadesdecasa.Oquerealmentemexiacomela,disse-me,eraquesuacozinhabritânica, comtodososseusaparelhinhos,erasilenciosademais. Ela sentia faltado zumbido–não alto,mas constante –que vemcomumagrandegeladeiraamericana.Paraela,essezumbidoeraosomdecasa.Não era inevitável que as geladeiras americanas do século XX

desenvolvessem esse zumbido simpático, que é consequência do motorinterno (geladeira grande = motor grande = zumbido alto). Havia outratecnologia disponível, que não era potencialmente pior que a geladeiraelétrica:ageladeiracomsistemadeabsorçãodegás, cujo funcionamentoera silencioso. Os dois métodos de refrigeração – por compressão e porabsorção – foram desenvolvidos no século XIX. A refrigeração éinteiramentebaseadanaspropriedadestermodinâmicasdoslíquidosedosgases.Nãosetratadeacrescentar“frio”–talsubstâncianãoexiste–,masdebombearocalorparafora.Arefrigeraçãoexploraofatodeque,quandooslíquidossetransformamemgases,háumatransferênciadecalor,comoovaporquesobedeumpratodesopaàmedidaqueelaesfria.DesdeaAntiguidade,noEgito,oprincípiodaevaporaçãoerausadopara

esfriaraágua:armazenava-seolíquidoemjarrosdecerâmicaporosa,bem-umedecidanaparteexterna.Àmedidaqueaáguadasuperfícieevaporava,ocalordaáguanointeriordojarrotransferia-separafora.NaÍndia,aliás,essa técnica era usada para produzir gelo. Cavavam-se fossos que eramcobertos por palha. Dentro deles se colocavam recipientes rasos decerâmica, cheios de água. Em condições climáticas apropriadas – tempocalmoesemmuitovento–,aáguatransformava-seemgelo.ApartirdoséculoXVIII,diversos inventoresexperimentarammaneiras

deacelerarosefeitosderesfriamentodaevaporação.No iníciodoséculoXIX, Richard Trevithick, um engenheiro da Cornuália, na Inglaterra,conseguiuconstruirasprimeirasmáquinasemqueaexpansãodooxigêniosobpressãoconverteuaáguaemgelo.Contudo,ooxigênionãoeramuitobompararefrigerar–eramaucondutordecalor,eessacondução,afinal,era o que mais interessava. Os engenheiros começaram a experimentardiferentes gases refrigerantes. Em 1862, foi lançada a máquina de geloHarrison-Siebe,porcompressãodovapor,queusavaéteremvezdear.Era

um aparelho enorme e intimidante, “movido por um motor a vapor dequinze cavalos”. Funcionava segundo o mesmo princípio básico dasgeladeirasdamaioriadenossascozinhas.Umgás–oéter,nessecaso–eracomprimido por serpentinas de metal para chegar ao estado líquido.Depois,podiaexpandir-senovamentecomogás,oquelevavaocaloraserretirado: era esse o efeito refrigerante. Por último, o gás voltava a serliquefeito e todo o processo recomeçava. O aparelho de Harrison-Siebefuncionoumuito bem, depois de se resolverem suas tendências iniciais aexplodir.Asgrandesfábricasdegelodadécadade1890,movidasavapor,usavam a técnica da compressão para produzir centenas de toneladasdiáriasdegelolimpo,clarocomodiamante.Entretanto, essa não era a única maneira de fabricar gelo. Alguns

inventores franceses, em especial Ferdinand Carré, tinham criado ummétodo alternativo: a absorção de gás. A diferença é que, em vez deempurrar o gás pelas serpentinas do compressor, ele é dissolvido numlíquido “afim”. Na versão de Carré, esse líquido era a água e o gásrefrigeranteeraaamônia.Trata-sedeumprocessomaiscomplexodoqueacompressão:emvezdeumasubstânciaaconsiderar,passaahaverduas.Aindaassim,amáquinadeCarréeraimpressionante.Trabalhavanumciclocontínuoe, em1867, chegavaaproduziratéduzentosquilosdegeloporhora. Nos estados norte-americanos do Sul, que nunca haviam tido umsuprimentoconfiáveldegelonatural,surgiramfábricasequipadascomasenormesmáquinasdeabsorçãodeCarré.Em1889,havia165fábricasnoSul,produzindoumesplêndidogeloartificialtransparentecomqueresfriarosmint juleps ou ajudarno transportedos frágeispêssegosdoestadodaGeórgia.No entanto, embora a indústria comercial de gelo se houvesse

mecanizado, a dona de casa norte-americana comum continuava a searranjarcomopodiacomsuacaixadegelo.Aindaem1921,umaredatorada revista House Beautiful queixou-se da trabalheira que era fazer amanutençãodessereceptáculofrio:

Alguémtemquelimparolugarmolhadoemqueoentregadorapoiouoblocodegeloenquantoesperava…Alguémtemquetirardiariamenteabandejainferioreesvaziaraágua…Alguémtemqueficarcheirandoacaixadegelo,diaapósdia,paraverquandoelacomeçaacheirarmaleprecisaserareada.

Todoessemaçantetrabalhocotidianofoidispensadocomosurgimentodas geladeiras domésticas, tanto a gás quanto elétricas, criadas mais oumenosnosanosdoentreguerras.Houvequemdissessequeadécadaentre

ofimdaPrimeiraGuerraMundialeocomeçodaDepressãoassistiuàsmais“drásticas mudanças” nos padrões do trabalho doméstico nos EstadosUnidos, comparada a qualquer decênio da história. Em 1917, apenas umquartodasresidênciasnorte-americanasestava ligadoàredeelétrica;em1930,essetotalerade80%.Amassacríticadeconsumidorescomacessoàeletricidade foi um fator crucial na disseminação da geladeira porcompressão.Tratava-sedeumnegóciodealtolucro:aocontráriodoferroelétrico ou da chaleira elétrica, a geladeira nunca é desligada; ela usaenergia24horaspordia,todososdias,semparar.Porisso,asfornecedorasde eletricidade tinham grande interesse em estimular a difusão darefrigeraçãoelétricadomiciliar.OsprimeirosnomesconhecidosforamKelvinatoreFrigidaire,empresas

fundadas em 1916 e ambas produtoras de geladeiras elétricas. No iníciohouveproblemas,paradizeromínimo.Sevocêcomprasseumageladeiraelétricanadécadade1910,nãorecebiaumaparelhoautônomointeiro.Aempresa instalava um mecanismo refrigerador na sua caixa de gelo jáexistente, a qual,muitas vezes, não suportavao esforço, empenando e sedesarticulandocomavibraçãodomotor.Alémdisso,aaparelhagemeratãograndequeàsvezesmaldeixavaespaçoparaosalimentosnacaixadegelo.Paracontornaresseproblema,vezporoutraocompressoreomotoreraminstalados no porão, e o gás refrigerante era trabalhosamente bombeadoparaacaixadegeloemcima.Erafrequenteoscompressoresfuncionaremmaleosmotoresdaremdefeito.Omaispreocupanteeraqueosprimeirosgasesusados–cloretodemetilaedióxidodeenxofre–podiamser letais.Como os aparelhos tinham um isolamento muito precário, esse era umrisco sério. Em 1925, o cientista Albert Einstein decidiu desenhar umageladeira nova e melhor, ao ler uma reportagem sobre a morte de umafamília inteira, devido ao vazamento de gases venenosos da bomba dorefrigerador.AgeladeiradeEinstein,desenvolvidacomumex-alunodele,LeóSzilárd,epatenteadaemnovembrode1930,baseou-senoprincípiodaabsorção, como os aparelhos de Carré. Não tinha peças móveis e, parafuncionar,precisavaapenasdeumapequenafontedecalor,comoumbicodegás.AgeladeiradeEinsteinnuncafoicomercializada,portersidoatropelada

pelos acontecimentos. Em 1930, a indústria introduziu um novo gásrefrigerante não tóxico, chamado fréon-12. Quase de imediato, todas asnovas geladeiras domésticas o adotaram. Foi como um novo amanhecer,emborameioséculodepoisosfabricantesdegeladeirasviessemaprocurar

freneticamentealternativasparaofréon,vistoqueeleéumdosprincipaisclorofluorocarbonetos envolvidos na destruição da camada de ozônio.Também em1930, as vendas de geladeirasmecanizadas superarampelaprimeiravezasdascaixasdegelo.Jáentãooformatodasgeladeirastinhaidomuitoalémdosantigosarmáriosdemadeiracheiosdevazamentos.Osprimeirosaparelhosautônomosdadécadade1920eramemgeralbrancosetinhamquatropés,comoumroupeiro.Omaisfamosodelestalveztenhasidoo“Monitor-Top”,daGeneralElectric,umacaixabrancasobrepernas,com um mecanismo de refrigeração acondicionado num cilindro que seprojetavaacimadoteto.Nadécadade1930,asgeladeirasganharamalturaeperderamaspernas,desenvolvendoumabelezametálicaaerodinâmica.Em1926,aElectrolux-Servelconcebeuumageladeiradefuncionamento

contínuo,comsistemadeabsorçãodegás,e,durantealgumtempo,pareceuque as geladeiras a gás viriam a ser preferidas às elétricas. A invençãobásicaveiodedoisengenheirossuecos,CarlMunterseBaltzarvonPlaten.Essasnovasgeladeirasagásnãoprecisavamdemotorparafuncionar,alémde seremmais baratas e silenciosas.Umanúncio da Servel da décadade1940 mostrava um casal branco e bem-vestido gabando-se de haverconseguidomanterosserviçosdesuaempregadanegradepoisdecomprarumageladeiraElectrolux:“AMandyresolveunosdaroutrachance,depoisqueadotamososilêncio.”EMandycomenta:“Nossa,ésilenciosamesmo!”Apesardavantagemdo silêncio, a Servelnunca teveomesmopoderdasgrandescompanhiasdeeletricidade,comoaGeneralElectric,ehojeaideiadeumageladeiraagássoaesquisita.Todavia,aconcorrênciaentreosdoismodelos–osilênciodogásversusozumbidodaeletricidade–impulsionoua inovação de ambos os lados, o que explica, em parte, por que asgeladeirasnorte-americanastornaram-setãoboasemtãopoucotempo.Asdo final dos anos 1930 já tinham muitos dos acessórios modernos:fechamento por pressão na porta, compartimentos umidificantes paralegumeseverduraseespaçoparaformasdegelonocongelador,todososquaisaindaconstituemcarros-chefedasvendasatuaisdegeladeiras.OqueaFrigidaireeaElectroluxfabricavameracompradopelosEstados

Unidos. Em 1926, foram 200 mil geladeiras (a um preço médio de 400dólares); em 1935, as vendas atingiram 1,5 milhão de unidades (preçomédio de 170 dólares). Já então, quase metade do país possuía umageladeiramecânica.Osanúnciosestimulavamosconsumidoresapensarnageladeira como um lugar de onde saíam alimentos maravilhosamentefrescos.AKelvinatorpromoveuaideiadosalimentos“kelvinatados”:

TiradosdoargélidodeumrefrigeradorKelvinator,elessãoirresistíveis.Penseemfatiasdelaranja geladas; em melão-cantalupo ou toranja servidos geladinhos; ou em compotas defrutas feitasemcasa, servidasemsuascaldas friase saborosas.Penseno leiteparaos seuscereais,geladoerefrescante.

Grossomodo,osmétodosmaisantigosdepreservaçãodealimentosnãotinhamapretensãodeaprimorá-los, apenasde salvá-losdadeterioração.As pessoas sabiam que o arenque enlatado não era tão bom quanto ofresco, mas era preferível a um arenque estragado. Já a indústria dasgeladeiras afirmava não apenas preservar os alimentos,mas transformá-los.Arealidadenemsempreera tãoatraente.Umaqueixacomumsobreas

geladeiras era que elas faziam os alimentos perderem o sabor, mesmoquando eram frescos. Em 1966, um especialista em armazenagem dealimentos, R.C. Hutchinson, notou que os consumidores achavam que osalimentosrefrigerados“perdiamgrandepartedosaboreadquiriamoutrogosto”. Do ponto de vista comercial, isso não era necessariamente umproblema, podendo ser também uma oportunidade. As geladeiras deramorigem a novos produtos para acondicionar os alimentos, como o papel-filme(inventadoem1953comoSaranWrap)eosrecipientesTupperware(comercializados pela primeira vez em 1946). “Ouviu esse sussurro?”,perguntavaumanúnciodadécadade1950.“ÉapromessadosrecipientesherméticosTupperwaredemanterinalteradoosabordosalimentos!”Os produtos Tupperware também forampromovidos como recipientes

para alimentos congelados, ajudando a armazená-los em quantidademáximanoespaçorestritodoscongeladoresdomésticos.NaépocaemquealinhaTupperwarefoilançada,osalimentoscongeladoscaminhavamparase transformar numa indústria de bilhões de dólares, embora o começotivessesidolento.Asgeladeirasnorte-americanasdosanos1930eramumcasoperdidoemmatériadecongelamento.Osprodutoscongeladostinhamque ser guardados num espaço minúsculo, junto às serpentinas deevaporação,ondeageladeiraeramaisfria;sóhaviaespaçoparaumoudoispacotesdecomida,eoscubosdegelotinhamopéssimohábitodederreteresefundirnumblocoúnico.O potencial da comida congelada teve uma ampliação drástica com a

introdução,em1939,do“refrigeradordeduastemperaturas”–ageladeiradúplex.Ospotesdesorveteeoscubosdegelopuderamenfimsermantidosseparados do conteúdo da geladeira e a uma temperatura consistenteabaixo de zero. Outra inovação foi que as serpentinas de evaporação

passaram a ficar escondidas dentro das paredes da geladeira, o queproporcionou uma refrigeração mais uniforme, além de acabar com opesadelododescongelamento.Afamíliaquepossuíaumdessesaparelhostinhatodososmotivosparaenchê-lodaprofusãodeprodutoscongeladosjá então disponíveis: concentrado congelado de suco de laranja, para afamíliapodertomarseusuco“fresco”todasasmanhãs(essefoioprodutocongeladodemaiorsucessocomercialnosEstadosUnidosdopós-guerra,com 9 milhões de galões vendidos em 1948-9); morangos, cerejas eframboesas,paraqueasfrutasdoverãopudessemsersaboreadasmesmoem pleno inverno; inovadores nuggets de peixe; e ervilhas congeladas,cortesiadaempresaBirdsEye.

CLARENCEBIRDSEYE,quecriouamodernaindústriadealimentoscongeladosnosanos 1920, gostava de dizer que não havia “nada demuito admirável noquefiz…osesquimóstinham[alimentoscongelados]háséculos”.Eraumaafirmação modesta demais. É verdade que o gelo tinha sido usado (nãoapenaspelosesquimós)parapreservarpeixeecarneportemposuficienteparaqueeleschegassemaomercado.MassomenteBirdseyedesenvolveuuma técnicade congelamento rápido tãodelicada,quepodia seraplicadanãoapenasacarcaçasdecarne,masaminúsculaservilhas.TalcomoosEstadosUnidos,aRússiaeraumpaísdedistânciasimensase

invernosgelados,oqueestimulavaousodocongelamentoparapreservarvíveres.Em1844,ThomasMasters,umespecialistaemgelodoReinoUnido(umpaíspequeno,cominvernosamenos),escreveusobreasmaravilhasdomercado de gelo de São Petersburgo, que “contém os corpos de muitosmilhares de animais em estado de congelamento, amontoados em pilhasque parecem pirâmides: vacas, porcos, ovelhas, aves, peixes e manteiga,tudo endurecido numa rigidez pétrea”. Os alimentos ficavam congeladosem estado sólido. Quando a pessoa queria comprar um produto, ele eracortado“feitolenha”.É claro que isso é uma proposta muito diferente de um saquinho de

petits-pois congelados, previamente retirados das vagens e prontos paraseremservidosemcincominutos.OmercadodegelodeSãoPetersburgovendiaoalimentobrutoparaoindivíduoembuscadasobrevivência,muitodistantedadonadecasanorte-americanadecemanosdepois,quetiravadofreezerumpratoMinuteMaiddotipo“aqueçaecoma”e,quasesemsedeternatransiçãodogeladoparaoquente,transferiaoalimentoparaseuforno elétrico. A inovação de Clarence Birdseye consistiu na criação de

alimentoscongeladosquepudessemseencaixarperfeitamente,edeformahigiênica, na vida suburbana do século XX, sem necessidade de um fura-gelo.Birdseyeeraumcaçador,noramodaspeles,queanteshaviatrabalhado

como biólogo no Ministério da Agricultura dos Estados Unidos. Suainvençãoproveiodeumaobservação simples.Ele, suamulher,Eleanor, eseufilhopequeno,Kellogg,estavamnumamissãodecaçanapenínsuladoLabrador, no nordeste do Canadá, onde permaneceram de 1912 a 1915.Moravam numa pequena cabana, longe do povoado mais próximo. Emtermos de alimentação, sobreviviam com peixes e carne de caça,congelados nos ventos do Ártico. Birdseye notou que seus alimentos –coelhos, patos, renas e peixes – tinhammelhor sabor no inverno que naprimaveraounoverão.Acarnedoinverno,quecongelavadepressa,eratãosaborosaquantoacarnefresca.Arazão,supôsele,eraqueocongelamentotinhasidomaisrápido.Birdseyetambémexperimentoucongelarverduras,queraramenteeramenviadasparaapenínsuladoLabrador.Constatouquepodiacongelarorepolhoeoutrasverdurascomrapidez,mergulhando-osembarrisdeáguasalgada.ChegouatéausarabanheirinhadeKelloggparaajudarnoprocesso.Osmétodostradicionaisdecongelaralimentos,comoosdomercadode

São Petersburgo, consistiam basicamente em enterrá-los no gelo ou naneve, onde eles congelavam aos poucos. Isso propiciava a formação degrandes cristais de gelo e alterava a qualidade da comida para pior,danificando sua estrutura celular. Quando o alimento congeladolentamenteeradegelado,seus líquidosexsudavam.Eraumproblemaqueafetava sobretudo a carne. Em 1926, o jornal The Times reclamou dasquantidades “copiosas” de “sangue ou soro” que tendiam a exsudar dacarnebovinadecongelaçãolentaaoserdescongelada.Masasoluçãonãotardaria.AovoltardapenínsuladoLabradorparaos

EstadosUnidos,em1917,Birdseye fezuminvestimento inicialdeapenassetedólaresnumventiladorelétrico,algunsblocosdegelo,unsbaldesdeáguasalgadaeunsfilésdehadoque.Pôs-seatrabalharnumcantodeumafábrica de sorvetes de Nova Jersey, tentando “reproduzir os invernos doLabrador na Nova Inglaterra”. Em 1925, tinha desenvolvido um novométodo de congelamento acelerado, usando placas de metal resfriadasnuma solução de cloreto de cálcio a 40°C negativos. Pacotes de comidaeram imprensados entre as esteiras de metal e congelavam quase nomesmoinstante–muitomaisdepressaquecomqualquertécnicaanterior.

A princípio, Birdseye usou esse método para congelar peixes, criando aGeneral Seafood Corporation em 1925, com a intenção de fazer dela aGeneralMotorsouaGeneralElectricdosalimentoscongelados.Em1929,elevendeuaempresaeaspatentespor22milhõesdedólaresàGoldmanSachseàPostumCompany.O ramo de alimentos congelados não obteve sucesso instantâneo: as

primeiras ervilhas congeladas não eram saborosas. Só em 1930 sedescobriu que a ervilha e outros vegetais precisavam ser escaldados emáguaferventeantesdeseremcongelados,paraneutralizarasenzimasquelevavam à sua deterioração. A qualidade inconstante dos congeladoscontribuiuparaaprofundadesconfiançacomquemuitosconsumidoresosencaravam.Haviaumaideiageraldequeacomidacongeladaerainferior–materialrecuperado.OmomentodecisivoveioquandoBirdseyeembarcounumacampanhaderelaçõespúblicaserebatizouosprodutosde“comidacristalizada”,nomequeimplicavaumglamourgelado.“Comidacongelada”[frozen food] era algo que se comia para não morrer de fome; “comidacristalizada” [frosted food] era a matéria-prima das fantasias infantis.Funcionou.Apartirde1955,omercadodecomidacongeladadosEstadosUnidospassouaserorçadoem1,5bilhãodedólaresporano.Tais alimentos também se popularizaram no Reino Unido. As ervilhas,

com certeza, nunca teriam alcançado um lugar tão central na dietabritânica sem o congelamento. Salsicha com fritas e ervilha, frango comfritaseervilha,empadãocomfritaseervilha:quasetodososlegumesdoscardápiosdospubschegamàmesagraçasaBirdseye.Em1959,asvendasdeervilhascongeladasnoReinoUnidosuperarampelaprimeiravezasdaservilhas emvagens.Omais estranho eraqueos consumidoresbritânicoscompravam avidamente os congelados, apesar de não terem ondearmazená-los. OTimes observou que eles eram uma “vantagem” para asdonas de casa que “precisam aumentar de repente uma refeição, parareceberconvidadosextras,quandoaslojasestãofechadas”.Osfabricantesdecongeladostentaramcriarmáquinasautomáticasdeseusprodutosquefuncionassemforadohoráriocomercial,afimderemediaressadificuldade,mas,aoqueeusaiba,nenhumadelasjamaisentrouemoperação.Imagineacena: centenas de donas de casa aflitas em filas que dão a volta noquarteirão para comprar estoques de emergência de frango à Kiev, demodo a lidar com a chegada repentina do chefe do marido para jantar.Ainda em 1970, o número de residências com acesso a qualquer tipo defreezeratingiaapenas3,5%dototal.Quantoaorestantedopaís,qualquer

alimentocongeladoadquiridotinhaqueserespremidonumespaçoexíguoemcimada formadecubosdegelo.Aindame lembrobem:umacaixadepapelão de sorvete de baunilha e framboesa parcialmente comido,formandograndes cristaisdegeloao segrudarno tetodo congeladordageladeira.

ABRIU-SEUMABISMOENTREosrefrigeradosEstadosUnidoseorestantedomundo.Era uma questão de cultura, bem como de desembolso do capitalnecessário para comprar geladeiras e freezers. Durantemuito tempo, oseuropeus rejeitaram a tecnologia da frigorificação. Os franceses tinhamumapalavraparaisso:“frigoriphobie”,oufobiaageladeiras.Consumidorese produtores do Les Halles, o principal mercado de alimentos de Paris,resistiam à refrigeração. Os compradores temiam que ela desse aoscomerciantes um poder excessivo sobre eles: as geladeiras lhespermitiriam vender alimentos velhos, fazendo-os passar por frescos. Osvendedoresdeveriam ter acolhidodebomgradoessa tecnologia – afinal,ela lhesdavaumprazomais longoparavenderemseusprodutos–,mas,quandoageladeirafoiintroduzidanoLesHalles,oscomerciantesreagiramcomosetivessemsofridoumadesfeitapessoal.Ageladeira,insistiram,erauma espécie de mausoléu em que a verdadeira natureza de um queijofabulososeriaassassinada.E,pensandobem,quempodedizerqueestavamerrados? Um brie na temperatura da geladeira é uma coisa sem graça,comparado à maravilha amolecida de um brie amadurecido até o augenumadespensaantiquada.Os consumidores da Europa continental também não se mostraram

ansiosos por usar a refrigeração em casa. Dados os seus padrões decomprasdealimentos,francamentenãohavianecessidade.Nosanos1890,fabricantesnorte-americanosdecaixasdegelofizeramalgumasincursõestateantes nomercado europeu, pedindo informações aos consulados dosEstados Unidos sobre a demanda local desse equipamento. As respostasque receberam não foram animadoras. Os cônsules relataram que, nasgrandescidadesdaFrançameridional,haviaabatesdiáriosparaobtençãodecarnenoinverno,edoisabatespordianoverão.Amaioriadaspessoascomprava mantimentos duas vezes por dia, comendo tudo que eracomprado.Enquantoasmulheresestivessemsatisfeitasfazendocomprasecozinhando com essa frequência, e enquanto os vendedores pudessematender sua demanda por produtos frescos, as caixas de gelo seriamsupérfluas.

Também no Reino Unido não houve pressa na compra de geladeiras.Duranteboapartedo séculoXX, os visitantesnorte-americanos achavamquelátudotinhaatemperaturaerrada:casasfriasecomcorrentesdear,cerveja e leite quentes,manteiga rançosa e queijos suados. Em1923, umartigoda revistaHouseandGarden observou que “as geladeiras, que sãocorriqueiras nas casas norte-americanas, não são muito conhecidas nemusadas por aqui”. Dada a natureza venenosa e pouco confiável dasgeladeirasdadécadade1920, ademoraemsuaadoção talveznão tenhasido má ideia. Mas a antipatia britânica por esses aparelhos não erainteiramenteracional.Muitodepoisdeasgeladeiraselétricassetornaremseguras e confiáveis, e muito depois de a maioria das casas ter energiaelétrica, ainda persistia a ideia de que esses aparelhos eram umdesperdício. A Frigidaire destacou o desafio de penetrar no mercadobritânico:“Provavelmente,atécnicaagressivadevendaeraessencialnumaInglaterraqueviao gelo apenas comoum inconvenientedo invernoe asbebidas geladas como um equívoco norte-americano.” Esse medo doexagero dos apetites norte-americanos tinha origem numa austeridademental nacional muito anterior à austeridade da guerra e de suasconsequências, então vigente. Em 1948, apenas 2% das residênciasbritânicastinhamgeladeira.Os britânicos acabaram vencendo sua aversão ao frio. Num avanço

rápido para os anos 1990, constatamos que a residência britânicamédiapossuía1,4“eletrodomésticos frios”(sejaumageladeira,umfreezer,umageladeiradúplexouumfreezerhorizontalnagaragem).Pareciahaverumdesejo insaciável dosmodelos “FAB” damarca Smeg – conjugados retrôverticais de geladeira e freezer, em tons pastel, com grandes maçanetasdesajeitadas,comoasgeladeirasnorte-americanasdadécadade1950.Emoutraspalavras,nofimdosanos1990,osbritânicoshaviammaisoumenoschegado ao ponto em que estavam os norte-americanos, em matéria degeladeira,em1959.

UM MODELO DE GELADEIRA reflete o tipo de vida que os projetistas acham quelevamos e o tipo de pessoas que eles pensam que somos. Em 1940, umvendedornorte-americanodegeladeirascomentouque“metadedonossotrabalho é preservar asmulheres, não as frutas”. Um detalhe como umamaçaneta de fácil manuseio era importante porque “fazmuita diferença,para amulher, se ela pode ou não andar com os braços carregados”. Asgeladeirassevendiamparaasmulherescombasenodesejo–osoníricostons pastel –, mas também no dever: dizia-se às consumidoras que era

trabalhodelasmanterseguramentegeladaacomidadafamília.Emmeadosdosanos1930,foramacrescentadosnovoscompartimentos

às geladeiras – prateleirasdivisórias removíveis, gavetaspara legumes –,incentivandoas famíliasamanteremrefrigeradaumapercentagemmaiorde seus alimentos. Em meio a tudo isso, o objetivo original daarmazenagem a frio – manter os alimentos em ótimo estado por maistempo –muitas vezes se perdeu.Opão fica velhomais depressa quandorefrigerado, a batata estraga. As geladeiras vinham e ainda vêm combonitossuportezinhosparaovos,masessasprateleirascomconcavidadesprotegem menos os ovos da absorção de outros odores do que asembalagens em que eles são vendidos. Além disso, nos climas frios, émelhorguardarosovosforadageladeira,pelomenossevocêusá-loscomrapidez.Àtemperaturaambiente,agematendemenosaestourarquandovocêafrita,eémenospassíveldefazeramassadobolodesandar.Poroutrolado,talvezatemperaturaambientedasuacasanãosejaigual

àdaminha.NosEstadosUnidos,osovosnãorefrigeradossãovistoscomoobjetos perigosos, e é verdade que o são, nos estados mais quentes eduranteosmesesmaisquentes.Umestudode2007,provenientedoJapão,constatouque, ao se armazenaremovos infectadospor salmonela a 10°Cduranteseissemanas,nãohouvecrescimentodasbactérias.Mesmoa20°C,o crescimento bacteriano foi desprezível. Entretanto, a temperaturas de25°Coumais,oaumentodasalmoneladispara.NoAlabama,emjulho,umovo não refrigerado pode ser fatal. Agora que todos temos grandesgeladeiras de estilo norte-americano, todos tendemos a nos comportarcomosevivêssemosnoAlabama.Asdimensões internasdageladeira continuama evoluir.Nadécadade

1990, as prateleiras internas das geladeiras dúplex tendiam a ser meioquadradasegeométricas,numreflexodo fatodequeamplascamadasdapopulaçãoviviamcomcaixasretangularesderefeiçõesprontascongeladas.Nos últimos anos, disse-me um especialista em eletrodomésticos, issomudou. As pessoas queremmúltiplas gavetas para legumes e verduras eprateleirasmaisvariadas,numreflexodequeestãovoltandoà“cozinhaapartir do zero” (que é o que eu ou você chamamos simplesmente de“cozinhar”).Ossuportesinternosparavinhotambémsetornaramcomuns.As geladeiras começaram como recursos para nos ajudar a ter uma

alimentação saudável e segura. No entanto, transformaram-se em caixasinsaciáveis,queexigemseralimentadas.Muitascomidashojeconsideradasbásicas passaram a existir, principalmente, para dar às pessoas algo que

guardar em suas geladeiras novas.Nãome refiro apenas a coisas óbvias,comonuggetsdepeixeebatatasfritascongelados.Consideremosoiogurte.AntesdaSegundaGuerraMundial,quasenãosecomiaiogurtenoOcidente.Apesardeserumalimento tradicionalna ÍndiaenoOrienteMédio,ondeera feito na hora, conforme a necessidade, e guardado em local fresco,fermentandoeendurecendocomotempo,eletinhaumpotencialcomercialigual a zero no Reino Unido ou nos Estados Unidos. Sem a geladeira, assobremesasfeitascomlaticínioseramconsumidassobretudosobaformade pudins ou mingaus caseiros à base de leite, preparados na hora eservidosquentes:arroz-doce,cremesdesaguoutapioca.Apartirdosanos1950,oconsumodesobremesasàbasedeleitesofreuumaquedadrástica,ano após ano. Enquanto isso, o iogurte transformou-se numa indústriaglobalmultibilionária.Porquê?Vocêpoderiadizerqueosgostosmudam,masissoaindanãoexplicaporquedeumahoraparaaoutraoarroz-docemornocomumacolheradadegeleiademorangofoiolhadocomdesdémepor que iogurtes gelados de morango em potinhos de plástico foramacolhidos.Muito daquilo que vemos como gosto pessoal é, na verdade,

consequência de mudanças tecnológicas. Os fabricantes de iogurtecapitalizaram sobre o fato de que, havendo comprado uma reluzentegeladeira nova, seus donos quereriam uma profusão de coisas para pôrdentrodela.Aquelespotinhosbem-compostosficavambonitos,quandonasprateleiras com divisórias; o sabor que tinham era quase irrelevante(alguns iogurtes eram bons, porém muitos eram mais insossos e maisaçucarados do que os mingaus e cremes tradicionais que vieramsubstituir). Pela primeira vez na história, quase todas as pessoas tinhamacessoaogeloduranteoanointeiro.Àsvezes,simplesmentenãosabíamosoquefazercomele.

FORMAS

Asra.Marshallvendiaformasparasorvetemoldadasnoformatodemaçãs,peras, pêssegos, abacaxis, cachos de uvas, torres de cerejas, morangosgigantes, patos, galinhas, cisnes e peixes, além de outras mais abstratas,comocúpulasepilastras.Asformasvendidasporelaeramdeestanhooulatão,de custo acessível, oude cobre, estasdemelhorqualidade,para asgelatinas.Moldarumpratoéummododeimporcomgrandeforçasuavontadeaos

ingredientes. Os formatos das formas para alimentos são a tecnologiaculinária no que ela tem de mais caprichoso. Por qual lógica o sorveteindiano kulfi, aquela massa densa de leite cozido, passou a ser feito noformatodecones?Porquenãoquadradosouhexagonais?Ninguémparecesaber.Arespostaésempre:“Étradicional.”

Algumas formas seguem certa lógica: amusse de peixe émontada emmoldescomformatodepeixe,eosorbetdemelãopodeseracondicionadonuma forma imitando ummelão-cantalupo.Muitas vezes, porém, não háqualquer sentido por trás do formato, excetuadas as preferências e oscostumesdaépoca.AcabeçadeturcoeraumaformapopularparabolosetortasnocomeçodoséculoXX,imitandoumturbante;éumbeloformato,masa ideiapor trásdele–comeracabeçadeumturco–parecehojedemuitomaugosto.As formas são regidas pela fantasia e pelo desejo do espetacular, e o

nossosentidodoespetáculosemodificacomotempo.Asformasmedievaisdopãodegengibre,esculpidasàmãonamadeira,podiamretratarveadosecorças, javalisesantos.Asopçõesdeimagenshojedisponíveisparanósémuitomaior,porém,nãoraro,nossaimaginaçãoémenor.Naslojasatuais

deutensílios de cozinha, podemos comprar uma forma grandepara boloqueseassemelhaaumcupcakegigante.

a Em tradução literal: “Comi/ as ameixas/ que havia/ na geladeira/…/ Desculpe-me,/ estavamdeliciosas/tãodoces/etãogeladas.”(N.T.)b Aelfric de Eynsham (c.955-c.1020) parece ter sidomonge emDorset e Oxfordshire, e lecionavalatimpara jovensquesepreparavamparaavidamonástica.OColóquio, escrito em anglo-saxão elatim,destinou-seaensinaressa línguae,numdiálogoentremercadorese trabalhadores, forneceumvívidopanoramadavidanointeriornaépoca.(N.T.)cCercade500gdesalpara5kgdemanteiga.(N.T.)

8.Cozinha

“Consideroumtristereflexodanossacivilizaçãoque,emborasaibamosmedir,emeçamos,atemperaturadaatmosferadeVênus,nãosaibamosoquesepassanointeriordenossossuflês.”

NICHOLASKURTI,“Ofísiconacozinha”,1968

NOS PRIMEIROS ANOS do novo milênio, os decoradores gostavam de brincardizendo que a casa era apenas uma cozinha com alguns cômodosadjacentes. Em 2007, antes da Grande Recessão, o New York Timesidentificouumnovomal-estardacultura:profissionaisliberaissofrendode“depressão pós-reforma”, quando sua cozinha enfim ficava pronta e elestinham que parar de se obcecar com as minúcias das torneiras e dospainéisdeparedeparaprotegerdosrespingos. “Aspessoasdisseramqueseria um grande alívio quando terminasse”, comentou uma proprietáriacuja complexa reforma da cozinha quase dobrou o tamanho de sua casa.Quandoocômodoficoupronto,queixou-seela,“deixouumvazioimensonaminha vida”. Esse tipo de insatisfação talvez parecesse estranho a umacriadavitorianaqueembarcassenaexaustivatarefacotidianadelimparelubrificar um fogão de ferro batido. As cozinhas dispendiosas de hojeexibemum grau de conforto, particularmente para asmulheres, que nãotemprecedenteshistóricos.Atecnologiadacozinhaécausaeconsequênciadesse conforto. Nossa vida é confortável porque temos geladeiras etorradeiras chiquérrimas.Compramosas geladeiras e as torradeirasparacombinarcomnossavidaconfortável.O luxo e o brilho damoderna cozinha de exposição seriam uma terra

desconhecida para nossos antepassados de cem anos atrás, quando asgeladeiraselétricaseramdesconhecidaseofogãoagáseraumanovidadeempolgante.Quãofuturistaslhespareceriamessescômodos:apanópliadeartifícios para “armazenagem inteligente”, a máquina sibilante de caféexpresso, as gigantescas geladeiras dúplex, os armários embutidoscombinandocomasbatedeiras.Comoseriapossívelexplicaraumarecém-

casada eduardiana, mal começando a se entender com sua geladeira demognoem formadearmárioe seuestojode facas folheadasaprata,quehaveria de chegar o dia em que as pessoas – homens e mulheres –tratariam a reforma da cozinha como um passatempo, e em queliquidificadoreselétricosemperfeitoestadoseriamjogadosnolixopornãocombinarem com o azul-petróleo do novo jogo de armários de cozinha?Como foi que se tornou normal, ao nos mudarmos para uma nova casa,acabar com a cozinha montada pelos proprietários anteriores – talvezpoucos anos antes – e instalar a nossa a partir do zero, com metais,equipamentoseacessóriosinteiramentenovos:fogãonovo,pisonovo,pianova?Sevocêolharalémdogranitoedovidroeda iluminaçãoLED indireta,

entretanto, verá uma continuidade surpreendente entre a tecnologia dascozinhasdehojeedopassado.Nosanos1890,oquímicofrancêsMarcelinBerthelotpreviuque,noano2000,apráticadecozinharteriaacabadoeossereshumanossealimentariamdecomprimidos.Aideiadarefeiçãonumapílula tem sido um traço permanente de nossas fantasias sobre a eraespacial. No entanto, apesar de todas as invasões dos alimentosindustrializados – apesar dos suplementos alimentares dietéticos e dasbarrinhasdecereal–,atarefadecozinharpersiste.Nemmesmoacomidaingerida nas primeirasmissões espaciais veio sob a forma de pílulas, demodo geral. Quanto mais os astronautas se afastaram do planeta Terra,mais pareceram ansiar pelos sabores e texturas de casa. As refeiçõespodiam ser desidratadas e congeladas, mas eram aproximações dosguisadosedassobremesasdascozinhasnormais.DeacordocomJaneLevi,uma historiadora da comida espacial, uma das principais descobertas doProjeto Gemini – os dez voos espaciais tripulados que a Nasa conduziuentre1965e1966–foiqueosastronautasnãogostavamdebatatafria.Por mais radicais que nos consideremos em nossas convicções

cotidianas, a maioria de nós torna-se conservador ao entrar na cozinha.Picamos os alimentos com facas, os preparamos em panelas e mexemosessaspanelascomcolheres.Emnossascozinhasmodernas,aindausamosos escorredores, os pilões e as frigideiras dos antigos. Não partimos deprincípios básicos toda vez que queremos produzir uma refeição, masrecorremos aos utensílios e ingredientes que temos àmão, regidos pelasregras e tabus e lembranças que todos temos na cabeça com respeito àculinária.Algumaspessoasnãogostamdisso.ParaocientistafrancêsHervéThis,

umdosinventoresdaexpressão“gastronomiamolecular”,nossaculináriapeca pela “estagnação técnica”. Em 2009, ele perguntou: “Por que aindacozinhamos comona IdadeMédia, com fouets, fogo e caçarolas? Por queesse comportamento obsoleto quando, ao mesmo tempo, a humanidadeestáexplorandooslimitesexternosdosistemasolar?”

Porquesomostãoresistentesàmudançaemnossamaneiradecozinhar?Uma razão é que experimentar novos alimentos sempre foi uma práticaperigosa.Nanaturezaselvagem,experimentarnovasetentadorasfrutinhassilvestrespode levar àmorte.Talvez a sensaçãopersistentedesseperigonostorneavessosariscosnacozinha.Masnossoapegoacertasmaneirasde cozinhar vai além da autopreservação. Muitos utensílios perdurarampor funcionaremmuito bem. Nada faz o trabalho de uma colher de paumelhor que a colher de pau.Há tambémo fato de que, ao pegarmos umdadoutensílioparaprepararcertopratodamaneiratradicional–sejaumapaella valenciana, feita na sua frigideira larga e rasa, seja um pão de lóVitória, feito em antiquadas formas para bolo em camadas –, praticamosumritualquenosligaaolugaremquevivemoseanossosfamiliaresvivosemortos. Essas coisasnão são fáceisdedescartar. Comovimos, todas asvezesqueseintroduziuumanovatecnologianacozinha,pormaisútilquefosse–desdepanelasdecerâmicaatéofornodemicro-ondas,ouosfogõessem fumaçadomundoemdesenvolvimento–,ela foi recebidaemalgunscírculoscomhostilidadeecomprotestosdequeaformaantigaeramelhoremaissegura(e,emcertoscasos,decertamaneira,eramesmo).

Hervé This estabelece dois tipos de mudança tecnológica: a local e aglobal. As pequenasmudanças locais no equipamento de cozinha são asmais fáceis de aceitar. O exemplo que ele dá é o aperfeiçoamento de umfouet que acrescenta mais fios de metal, para bater os ovos com maiseficiência. As novas engenhocas transmitemmais segurança quando noslembramoutrosobjetosquejáconhecemosbem,oqueexplicaporqueasprimeiras geladeiras se assemelharam a pesados armários de cozinhavitorianos, feitos de madeira, e por que os espremedores de limão dadécadade1860eramcomumentepresosàmesaporumgrampo,comoasenormes máquinas de moer carne de ferro fundido. Nos anos 1950,inúmeros utensílios assumiram a forma de um triturador de alimentosMoulidaEuropacontinental,commanivelagiratória;derepente,surgiramraladores de queijo giratórios e trituradores giratórios de ervas, e todosforamrecebidoscomentusiasmo,embora–aocontráriodopróprioMouli–nenhumdeles, emsi, sejaumutensíliobomdeverdade: aservas ficamempastadas e o ralador de queijo deixa sempre um pedaço no tamborgiratório.Naocasião,porém,omecanismogiratóriotinhaumjeitonatural,e era isso que importava. As mãos e o cérebro estavam acostumados atrituraralimentosusandoumtamborcomummovimentocircular.Émuitomaisdifícilaceitarumatecnologiainteiramentenova.Éissoque

This chama de mudança “global”: o tipo de mudança ocorrida quandonossos ancestrais resolveram começar a cozinhar coisas em panelas debarro, ou quando o conde Rumford rejeitou a ideia de que uma lareiraaberta fosse uma boa maneira de aquecer a comida. Essas mudançasperturbamonossoconservadorismonatural.Aclaradeovo,porexemplo.Em vez de apenas fazer pequenos ajustes, acrescentando mais fiosmetálicos a um batedor preexistente, umamudança global da tecnologiaquestionariaoprópriousodobatedorparabaterclarasemneve.Éissoqueodr.Thisquersaber.“Porquenãousar,emvezdele,umcompressoreumbocal capazde introduzir bolhasde arna claradeovo?”Ouporquenãoinventar um utensílio completamente novo, em que ninguém tenhapensadoatéagora,usandotodaanossaengenhosidadeeimaginação?Para a maioria das pessoas, entretanto, cozinhar já é um processo

trabalhosoobastante,semqueseacrescenteàmisturaacriaçãodenovosutensílios. Os últimos anos assistiram a um pequeno renascimento daculinária doméstica, em parte como resposta à austeridade da recessão.Mas, sevocêexaminarosúltimosquarentaanos, a imagemseráadeumdeclínioradicalnapráticadecozinhar.QuandoJamieOliverfoiàcidadede

Rotherham,nonortedaInglaterra,paraseuprogramadetelevisãoMinistryofFood,em2008,conheceupessoasquetinhamfornoselétricos,masnãofaziamideiadecomoligá-los.Umapesquisafeitaem2006peloInstitutodeTecnólogos da Alimentação constatou que, embora 75% dos norte-americanos jantassem em casa, menos de um terço deles cozinhavainteiramente suas refeições. O verdadeiro avanço culinário seria fazer osdois terços restantes da população cozinharem com fouets, fogo ecaçarolas, em vez de convencê-los de que essas são tecnologiasultrapassadas. O ato de bater claras de ovos comum fouet pode parecerdesprovido de aventura, mas quem o utiliza teve de superar diversosobstáculosparasemanterentreosquesededicam,deumjeitooudeoutroà tecnologia da culinária. A maioria que não cozinha nem sequer seaproxima desse ponto. Há uma centena de razões pelas quais oscozinheiros não reinventam o fouet, que vão desde “não era assim queminha mãe fazia” até “não tenho todo o tempo e todos os recursos domundo”,e“omeufouetfuncionamuitobem”.Nas últimas décadas, contudo, tem havido na culinária ummovimento

quenãosecansadeperguntar“porquenão?”.Porquenãoservirsorvetequente, em vez de gelado? Por que não selar os ovos a vácuo num sacoplástico e fazer ovos mexidos num banho de imersão numa sous-vide, amáquinadecozimentoavácuo?Porquenãopegaramaionesee fritá-la?Esse movimento tem usado muitos nomes: gastronomia molecular,culinária tecnoemocional, superculinária, cozinha de vanguarda, cozinhamodernista.Comoquerquevocêochame–evouficarcom“modernista”,por ora –, esse movimento representa a maior reformulação dopensamento sobrea tecnologiada cozinhadesdeo surgimentodomicro-ondas(aparelhoqueosmodernistasadoram).

QUANDONOSSO JÁ CITADONathanMyhrvoldquercomerumhambúrguer,nãopegaumlivrodereceitasconfiávelnemtentarelembraralgumconselhoquesuamãetenhalhedadoumdia.Tampoucojogadesatentamenteumarodeladecarne numa grelha. Primeiro, ele determina o que quer dessa carne – ohambúrguer“supremo”.Myhrvoldgostaqueacarnetenhaumacoloraçãovermelho-rosadano interior, comumexterior escuro e caramelado. Essenão seria o hambúrguer “supremo” de todo mundo, mas é o dele, e semostra quase impossível de conseguir com os métodos culináriosconvencionais.Nagrelha,quandoaparteexternaestádouradaagostodeMyhrvold,o interior tendeaestar cinzentoe cozidodemais.Por isso, eleusouumpoucodesuaimensafortuna(numavidaanterior, foiexecutivo-

chefe de tecnologia da Microsoft) para fazer experimentos, até chegar aumatecnologiaquelhedesseosresultadosdesejados.Aresposta,comoseconstatou,estavalongedeseróbvia,paranãodizer

que era loucamente inatingível em qualquer cozinha doméstica normal.Paraimpedirointeriordohambúrguerdecozinhardemais,primeirovocêtemque imergi-lo emnitrogênio líquido, a fimde esfriá-lopor completo.Para garantir o exterior caramelizado, em seguida você o frita em óleoquenteporumminutoexato:obastanteparadourartodasassuperfícies,mas não o suficiente para o calor penetrar no centro. Todavia, antes donitrogêniolíquidooudoóleoquente,Myhrvoldaplicamaisumatecnologia,cozinhando o seu hambúrguer, lenta e longamente – por cerca de meiahora,emáguamorna–,numamáquinasous-vide,afimdegarantiramaciezperfeitadacarnemeiomalpassada.A técnica sous-vide está para a culinária modernista como assar no

espeto estava para os elisabetanos: é a tecnologia-padrão do preparo dequase tudo. O nome vem do francês correspondente a “a vácuo”, e oprocesso significa cozer o alimento na água, dentro de uma embalagemhermética, a temperaturas rigorosamente controladas. O alimento éembaladoavácuoemsacosplásticosresistentesesuspensonumbanhodeimersão a temperatura baixa, às vezes pormuitas horas (os cortesmaisbaratosdecarnepodemlevaraté48horasparaamaciar).Emprincípio,atécnica sous-vide é meio parecida com as panelas elétricas a vapor queestãoporaíhádécadas,oucomobanho-mariadequeosvitorianostantogostavam,masoefeitogeralétotalmentenovo.Paraquemfoicriadocomrefeições feitas em casa, usar a máquina sous-vide mal se parece comcozinhar.Acomidaembaladanoplástico temumasemelhançaalarmantecom amostras de patologia, ou cérebros no formol. Outra característicainquietante é a completa ausência de aroma. Os entusiastas da sous-videgabam-sedequetodooaromadoalimentoficapresoemsuaembalagemsilenciosa. Com amáquina sous-vide, você não tem nenhum dos indíciossensoriaisnormaisdequeháumarefeição sendopreparada:o cheirodoalhodourandonoazeite,obarulhinhodorisotonapanela.Eu era cética em relação à sous-vide. Não gostava da estética, do

desperdíciodeplásticoedafaltadecharme.Paracozinharporessatécnica,você precisa de dois aparelhos separados, dois bens a mais paraacrescentaràsuacozinhajátãoequipada:primeiro,umamáquinaseladoraa vácuo, quemais parece uma impressora a laser do que qualquer coisarelacionadacomcomida.Trata-sedeumblocoretangulardeplásticocom

botõesemcima;osingredientessãocolocadosemsacosdeplásticogrosso,cuja borda é colocada na seladora, a qual suga a quase totalidade do ar,deixandoacomidanumaembalagemencolhida.Osegundocomponentedatécnicasousvideéobanhodeimersão, feitonumacubadeaçoinoxidável.Enche-se a cuba de água e se faz a regulagem a temperaturas muitoprecisas, usando um painel digital de controle, e está tudo pronto paracozinharoalimentoembaladoavácuo.Eunãoqueriaaqueletroçogigantescodemetalnaminhabancada.Então,

pegueiumamáquinaemprestadadoprincipalvendedordeaparelhossous-videnomercadointernodoReinoUnido(aSousVideSupreme)edescobriqueacomidapreparadadessamaneiraeraqualitativamentediferentedapreparada por qualquer outra tecnologia – mas nem sempre melhor.Avaliarmalas temperaturaseos temposdecocçãonamáquinasous-videpode ser desastroso, porque não temos como verificar o progresso doalimento em preparação do modo como fazemos com uma panela. Vocêregula o banho de imersão na temperatura necessária, sela o alimento avácuo num saquinho, imerge os vários sacos, regula o temporizador eesperaobipe.Nadademexer,regar,cutucarouprovar.Nãohánenhumaparticipaçãohumana.Quando a gente acerta, no entanto, a comida feita na sous-vide é

extraordinária, até hiper-real. Frutas e legumes que seriam ferventados,cozidos no vapor ou escaldados adquirem um sabor concentrado. Aalcachofraficoucomumsaborquaseavassaladordealcachofra;quaseumahora depois de comê-la, eu ainda sentia na língua aquele estranho gostomeiooleoso,porquenenhumdoscomponentesdo sabor tinhavazadonaágua, como acontece numa panela. As maçãs e os marmelos cozidos namáquina sousvide por duas horas, a exatos 83°C de temperatura, eramprofundamenteperfumadosedourados,comumatexturamuitosuperioràqueeujáconseguiraescaldando-os:densa,masnãomuitogranulosa,comoa essência do outono. As cenouras com alecrim pareciam ter sidoimpregnadaspelaervaemtodasassuascélulas.Eabatata!Duranteanoseusonharacomumasbatatascozidasperfeitasquetinhacomido,certavez,numaviagemdefériasàFrança: firmes,amarelaseamanteigadas,o idealplatônicodabatata.Malsabiaeuqueumdiaelasemergiriamdeumsacoplásticonaminhaprópriacozinha.Asmáquinas sous-vide destinadas às cozinhasdomésticas sãovendidas

sobretudo como aparelhos para preparar carnes. Todas as imagens dacaixasãode filésdepeixe,costeletase filésbovinos.Umacompradorade

artigosdecozinhadisse-mequeeraporque“osfiléseoutrascarnessãouminvestimento muito grande”, e a maioria das pessoas (afora osvegetarianos)nãoqueresbanjar tantodinheiro–400 librasesterlinasoumais – num aparelho para cozinhar legumes. Também é verdade que acarneeopeixepreparadosnasous-videproduzemresultadossingularesenovos. Você pode pegar cortes duros de carne e, cozinhando-os natemperaturamais baixa possível – apenas o bastante para desnaturar asproteínasematarospatógenos,porémnãomaisqueisso–,chegaraumamaciezqueantesseriainimaginável.Pelaprimeiravez,vocêpodecozinharproteínas com uma perda mínima dos sumos. O bife duro de fraldinhadesmancha-secomoumamousse.Oscortes jámacios, como filédecarnede porco, tornam-se assustadoramente tenros, quase gelatinosos. Um filétradicional, fritona frigideira,cozinhaaospoucos,àmedidaqueocaloréconduzidopela carne, indodeumexteriormuitocozidoa– sevocê tiversorte–uminteriorrosado.Asproteínas funcionamdemododiferentenasous-vide:cozinhamnomesmograuemtodasasáreas.E,emcontrastecomasformasdepreparodacarnenopassado,elaétostadadepoisdecozida(sem essa etapa final de tostadura, a carne preparada na sous-vide ficapálidaeúmida).Atecnologiasous-vide foi inventadaparaalimentos industrializados,na

década de 1960, por engenheiros franceses e norte-americanos quetrabalhavam na Cryovac, uma empresa de embalagem de alimentos. Noinício, era vista como um modo de prolongar a vida útil, e, de fato, aselagemavácuoaindaémuitousadaparaessefimnoramodecomestíveis.Só em1974équeumchefdescobriuqueousodas embalagensCryovacpodiamelhorarosalimentos,emvezdeapenasfazê-losduraremmais,seatecnologiadeselagemavácuopudessesercombinadacomacocçãolentaembaixatemperatura.NaFrança,PierreTroisgros,comsuastrêsestrelasnoguiaMichelin, estava insatisfeito comseusmétodosde cozinharo foiegras – fígadode gansooudepato engordado–, tido, na época, comoumcomponente essencial de qualquer restaurante com estrelas doMichelin.Troisgrosconstataraqueo fígadoperdiaaté50%deseupesooriginalaoser salteado. Consultou uma ramificação da Cryovac, chamada CulinaryInnovation,queoaconselhouaenvolverseu foiegrasemváriascamadasde plástico encolhidas a vácuo e, em seguida, cozê-lo em fogo brando.Funcionou.Aperdadepesofoireduzidaa5%,oquepoupouumafortunaaTroisgros.Alémdisso,ofígadoficoumaissaboroso(pelomenosparaquemgosta de foie gras). A gordura que antes derretia na panela passou a ser

retida,dandoaofígadoumsaborexcepcional.Seis anos antes, no ReinoUnido, o físico húngaroNicholas Kurti havia

feito suasprópriasdescobertas. Em1968, ele deuumapalestranaRoyalInstitution,intitulada“Ofísiconacozinha”.Achavamuitotristequeopapelda ciência na cozinha não recebesse maior atenção. Mostrou ao públicouma sériede seringashipodérmicas, queusou comum floreiodramáticopara injetar suco de abacaxi num lombo de porco, a fim de amaciá-lo (oabacaxicontémumaenzima,abromelina,quedecompõeproteínas).Usouumfornodemicro-ondasparaconstruirum“BakedAlaskainvertido”,comuma camada externa de sorvete de chocolate envolvendo uma camadainternade suspiroquente e purêdedamasco.a Porúltimo,Kurti fezumapernadecarneirocozinharporoitohoras,precisamentea80°C,atéatingirumamaciezfantástica:jáeraumaversãodaideiadatécnicasous-vide,quecozinha a carne bem devagar a temperaturas baixas e controladas comprecisão. Hoje em dia, Kurti é reverenciado entre chefs modernistas ecientistasdacozinhacomoumdospaisdaculináriahigh-tech.Nasdécadasde1960e1970,todavia,aculturadosalimentosaindanão

estava exatamente pronta para seringas hipodérmicas e embalagens avácuo.Atécnicasous-videerausadanaindústriadeserviçosdebufê,masera um segredinho.Muitos de nós comemos alimentos preparados numamáquina sous-vide sem saber que era disso que se tratava. Quando umbanqueteiro precisa preparar algo como um coq au vin para um jantarempresarial para duzentos convidados, a sous-vide é muito conveniente,porque o prato pode ser dividido emporções individuais nos sacos, pré-cozidonobanhode imersão e reaquecido conformeanecessidade, comoum “prato pronto”. Isso também reduz o custo damãode obra.Mas, emgeral,nãoeraalgodequeoschefssegabassem.Aindaem2009,houveumescândalo quandoGordonRamsay foi “desmascarado” por servir comida“fervidaemsacos”emalgunsdeseusrestaurantes.A técnica sous-vide só foi abertamente revelada, de fato, nos últimos

anos, como parte da ascensão da culinária modernista. Hoje em dia, osrestaurantes alardeiam o fato de usarem a sous-vide para comprimirmelancia, fazer “picles instantâneos” de aipo, ou reinventar o molhoholandês.Avergonhaquehaviacercadoessatecnologiafoisubstituídapeloorgulho.Elapassoudesinaldedesconsideraçãoasinaldequeseinvestiuumenormetrabalhoparafazerumingredienteterumsabormaisintensodelemesmo.Amáquinasous-videéapenasumdosespantososutensíliosdacozinhamodernista,aoladodebatedoresdeleiteecremesobaformade

sifões com nitrogênio líquido, para fazer “espumas”, e dehomogeneizadores de incrível potência para fazer “nanoemulsões”. Nomundo inteiro há cozinheiros manuseando liofilizadores e centrífugas,processadoresPacojetesifões.E,comocriançasbrincando,elesperguntamsempre: por que não? Emvez de preparar algo numa grelha quente, porque não colocá-lo na “antigrelha” Anti-Griddle™, cuja superfície esfria oalimento a 30°C negativos, deixando-o tão gelado que a superfície ganhaumatexturacrocante,comosetivessesidofrita?Nas cozinhas profissionais que os adotaram, esses utensílios de alta

tecnologiaintroduzirammudançasprofundasnamaneiradecozinhardoschefs.Naantigagastronomia francesadeEscoffier,oscozinheiros tinhamum léxico de técnicas a que recorrer, indelevelmente gravadas em suamemória.Sabiamquandousarumapanelaparasaltearequandooptarporumafrigideira.Emcontraste,osnovoscozinheirosvivemquestionandoosfundamentosdatecnologiaculinária.NoelBulli,FerranAdriànãopresumianada em termos de como se devia preparar a comida, e fechava seurestaurante durante seis meses por ano a fim de poder conduzirexperimentos rigorosos sobre a melhor maneira de cortar salsifi ou deliofilizarpistache.Resta saberatéquepontoas técnicas culináriasmodernistas,pormais

importantesquesejam,podemoudevemtraduzir-senacozinhadoméstica.Com certeza existe lugar para a sous-vide, mas não consigo imaginar achegadadeantigrelhasecentrífugasamuitascasas.Seriaexaustivoviverassim,semprequestionandotudo.Nemmesmoosmodernistasconseguemfazê-lootempotodo:hálimitesparaquantosepodedesconstruir.Antesdese iniciar o dia de trabalho no elBulli, pela manhã, todos os cozinheirostomavamumaxícaranãodemelão esferificadonemde ventode concha,masdecafé:líquido,nãosólido;quente,nãofrio–comoemqualqueroutracozinha,emboraocafé fossemelhor,provavelmente.As lembrançasmaisfelizesdosestagiáriosnãoremuneradosquetrabalhavamcomAdriàeramdos almoços “em família”, nos quais eles comiam pratos normais, comoespaguete commolho de tomate ou couve-flor commolho bechamel. Aocontrário da arte, a comida não é tão fácil de desmontar e reinventar. Aculinária modernista pode divertir, mas será que consegue ser tãoacolhedoraquantoumarefeiçãofeitaemcasa?Talvezissoexpliqueaatitudecríticaqueoscozinheirosmodernistasàs

vezes adotam em relação às mães e a seus pratos. As mães sãomencionadas nove vezes no primeiro volume de Modernist Cuisine, de

Myhrvold,nuncadeformaelogiosa.Naúnicaocasiãoemqueoencontrei,Myhrvold falou em tom caloroso de sua mãe e do fato de ela o haverdeixadosoltonacozinha,aosnoveanosdeidade,parafazerseuprimeirojantardeAçãodeGraças,auxiliadoporumlivroempolgante,intituladoThePyromaniac’sCookbook(1968).Nolivroescritoporele,entretanto,asmãessão repetidamente criticadaspor suas ideias “do senso comum” sobreosalimentos, as quais se revelam erradas (como a de cozinhar a carne deporcoatédeixá-labem-passada).ModernistCuisinenãonosdiznadasobrenenhumadasocasiõesemqueosensocomumculináriodasmãesrevelou-se correto. Myhrvold nota que, em contraste com os “profissionais daculinária”, as mães e as avós do passado “cozinhavam apenas para elasmesmaseseusfamiliares”.Apenas!Comosealimentaraspessoasquenossãopróximasfosseumatosemamenorimportância.O movimento modernista na culinária não representa a única boa

maneiradeprepararumarefeição.AtéNathanMyhrvoldadmitequealgunsdos pratosmais deliciosos hoje servidos em qualquer lugar dos EstadosUnidos vêm das cozinhas maternais de Alice Waters, a chef que éproprietária do Chez Panisse, em Berkeley, e é a grande guru domovimento orgânico, cujos pratos são do antigo estilo das panelas efrigideiras.Watersnãotemmicro-ondas,muitomenosumamáquinasous-vide.Suaabordagemdacomidanãocomeçaperguntando “porquenão?”,mas “o que há de fresco e bom neste momento?”. Waters não sentenecessidadedereinventarcoisascomoespigademilhocozida,debulhandoalegremente as espigas mais gordas do verão e fervendo-as por doisminutos na água sem sal. Em 2011, perguntaram-lhe num programa derádio o que ela achava da nova onda de culinária de alta tecnologia. Elarespondeuquenãolhe“pareciareal”.“Achoquehábonscientistasevelhoscientistasmalucosquepodemsermuitodivertidos,masissotemmaisjeitodemuseuparamim.Nãoéumaformadecomerdaqualprecisamos…”A discordância entre Waters e os modernistas mostra que é possível

coexistiremestratégiasculináriasdiferentesnacozinhaatual.Nopassadodistante, era comum a chegada de uma nova tecnologia eliminar umatécnicaantiga.Osrecipientesdecerâmicasuplantaramosfornosescavadosnochão(excetoentreospolinésios).Ageladeirasubstituiuacaixadegelo.Asituaçãodosnovosutensíliosmodernistasédiferente.Amáquinasous-vide não vai acabar com a grelha nem com a panela. Hoje dispomos deinúmeras opções, de baixa e alta tecnologias. Queremos cozinhar comonossas avós ou como um cientistamaluco? As duas coisas são possíveis.

Podemosdecidirmergulhartudonumamáquinasous-vide–ounão.Talvezachemos preferível ter os aromas deliciosos da cozinha a ter o filémaissuculento do mundo. Como diz Alice Waters, não há necessidade decozinharcomooscientistas.Hámuitasoutrasmaneirasdeprepararumarefeição deliciosa na cozinha moderna. O que hoje define a nossa vidaculinária não é esta ou aquela técnica,mas o fato de podermos escolherentretantastecnologiasdiferentes,aoentrarmosemnossascozinhasenosperguntarmosoquepreparar.

QUANDO CONSIDERAMOS a cozinha high-tech, é fácil nos concentrarmos nasengenhocas e esquecermos que a maior tecnologia exibida na cozinhamoderna é a cozinha em si, como aposento. Muitos de nossos utensíliosindividuaisde cozinha sãoantiquíssimos.EmPompeia jáhaviapanelas efrigideiras, funis, peneiras, facas e pilões que continuam a nos serfamiliares.Masnãohavianadaexatamenteigualanossascozinhas.A maioria das famílias, na maior parte da história, não possuiu um

cômodoseparadoeconstruídopropositalmenteparasecozinhar.Entreosantigos gregos, cozinhava-se em diversos cômodos, uma vez que fornosportáteisparaassarebraseirosportáteisdeterracotaeramdeslocadosdeum aposento para outro. Assim, não havia cozinha no sentidoarquitetônico. Os arqueólogos desenterraram uma gama notável deutensíliosdecozinhagregos–recipientescomtampaparaforno,caçarolas,cutelos, conchas e até um ralador de queijo –, mas esses utensíliosimpressionantesnão tinhamumacozinhaparaabrigá-los.Atéoséculo IVa.C., amaioria das escavações dasmoradias gregas não revelou omenorvestígiodeumalareiraoucozinhafixa.Tambémeracomumosanglo-saxõesnãoteremcozinhas,porquemuitos

preparavamseusalimentosaoarlivre,especialmentenosmesesdeverão.Otetodacozinhaeraocéu,enquantoopisoeraochãodeterra.Osodorese a fumaça se dissipavam no ar. Era um modo mais livre e aberto deprepararalimentosdoqueemnossascozinhascompartimentadas,emboradevesse ter inconvenientes consideráveis nos dias chuvosos, ou quandohavia gelo, vento ou neve. No inverno, essas casas sem cozinha deviamdependerbastantedepãoequeijo.NoscasebresdaEuropamedieval,poroutrolado,emgeralhavialareiras

fixasnaparteinterna,porémocômodoqueabrigavaofogoparacozinhartanto era cozinha quanto sala, quarto e banheiro. Numamoradia de umúnico aposento, cozinhar era apenasmais uma atividade a ser encaixada

entreasujeiraeaconfusão.Asopanocaldeirãosobreofogofaziapartedomobiliáriodocômodo.Essecontinuouaseropadrãodoestilodevidadospobresduranteséculos;paramilhõesdepessoas,aindaé.Váriaspinturaseáguas-fortes seiscentistas de Adriaen van Ostade retratam a vida decamponesesdaHolanda.Veem-sefamílias imundas, reunidasemvoltadeumalareira.Aofundohácãeslatindo.Bebêssãoamamentados.Hápanelas,frigideiras e cestos de roupa espalhados pelo chão. Os homens fumamcachimbos.Um cutelo aparece penduradona parede. Isso não parece emnadacomalgumacozinhaqueconheçamos,porém,aquieali,háindíciosdeatividadeculinária: tigelascomcolheres,umbuledecafé,algoaquecendonumapanela.Nemé preciso dizer que a comidaproduzida num cômododesses não podia ter grande relação com as ambiciosas criações parajantares elaboradas pelos cozinheiros modernos. Também não devia serfácil realizar tarefas simples a que não damos grande valor, como picarumacebolaoubaterumovo.

Avidaculináriadamaioriadaspessoasnemsequerfoitocadaportodasas grandes inovaçõesda tecnologiade cozinhados séculosXVIII eXIX: o

espeto suspenso de corda, o limpador automático de facas, o batedor deovosDover, tudo isso ficava longedelas.Paraqueo indivíduohaveriadequerer um batedor de ovos, se nunca batia ovos? A não ser pelo espaçofechadodofogonalareira,nãohouvegrandemudançanaspossibilidadesculináriasdospobresentreostemposantigoseosmodernos.ComoséculoXX já bem avançado, os moradores pobres de casebres escoceses eirlandeses ainda preparavam suas refeições numa frigideira equilibradasobreumagrelha,aoladodebotasmolhadaseroupaestendidaparasecar.Morar nos cortiços das cidades podia ser ainda pior. Charlie Chaplincresceunumquartodilapidadonumsótão,divididocomamãeeoirmão.Ocômodo “sufocante”mediaunsdozemetrosquadrados;numcanto ficavaumaantigacamadeferro,compartilhadapelostrês;pratosexícarassujosamontoavam-senumamesa.Chaplinrelembrouomaucheiro,o“arfétidode restos de comida rançosos e roupas velhas”. O único recurso paracozinharerauma“pequenagrelha”entreacamaeajanela.Nessas moradias de um só cômodo, a cozinha não ficava em lugar

nenhum e ficava em toda parte. Em lugar nenhum porque faltavam aoshabitantes quase todas as coisas que consideraríamos necessárias paracozinhar: uma pia para lavar coisas, superfícies de trabalho e local dearmazenamento. Em toda parte, porque não havia como fugir do maucheiroedocalordofogo.Cozinharéminhaatividadefavorita,mas,numasituação como essa, eu preferiria não cozinhar. O fenômeno das pessoasquevivemapenasdecomidaprontanãoénovo.Desdetemposmedievais,os vendedores de tortas salgadas sempre foram uma característica dascidades britânicas, servindo aos que moravam em casas apertadas, comumasalaembaixoeumquartoemcima,ondenãohaviacozinhacomotal.Partedoluxodeterumacozinhaéapossibilidadedenosdistanciarmos

fisicamentedopreparodealimentos,quandoassimdesejamos.Nascasasricas da Europa medieval, isso era levado a extremos, construindo-secozinhas demadeira separadas da casa principal. Todas as necessidadesculinárias da família – assar no forno, produzir queijo, assar no espeto –podiam ser atendidas nessa construção especializada e separada. Os quemoravam na casa principal podiam desfrutar dos benefícios da comidapreparada numa cozinha grande sem terem que suportar a fumaça, agordura ou o medo de que a cozinha pegasse fogo e queimasse a casainteira. Quando essas cozinhas se incendiavam, o que aconteciaperiodicamente, era possível construir outras, novas, sem perturbar aestrutura principal da casa. O único inconveniente sério das cozinhas

externaseraqueacomidaesfriavaaosertransportadaatéasaladejantar.Emoutrosgrandesestabelecimentosmedievais,haviaimensascozinhas

de pé-direito alto e piso de pedra, construídas como parte da residênciaprincipal.Amaiordiferençapráticaentreessascozinhaseasnossaséqueelas eram comunitárias, como a famosa Abbot’s Kitchen na abadia deGlastonbury, no sudoeste da Inglaterra, um cômodo octogonal com umalareira grande o bastante para assar um boi inteiro. Esse era um espaçocujo equipamento precisava poder satisfazer o apetite de uma grandecomunidade de monges. Comparadas a ele, nossas cozinhas equipadas,destinadas a alimentar uma única família, ou, noutros casos, uma únicapessoa,parecemindividualistas.Mas era raro um cômodo bastar para cuidar das múltiplas atividades

culináriasdasresidênciasdeluxodeséculosatrás.Nadécadade1860,umaresidência ruralbritânica tinha, tipicamente, vários cômodosdedicadosadiferentesaspectosdotrabalhoculinário.Eracomoterumaruainteiradelojas de comida sob um mesmo teto. Havia uma despensa seca paraarmazenarpão,manteiga,leiteecarnescozidas;essecômodotinhaquesermantidoarejadoeseco,eosarquitetosprecisavamcertificar-sedequenãofossemconstruídosfornosoulareirasnasparedesadjacentes.Adespensamolhadaeraondeseguardavamcarnescruasepeixes,assimcomofrutaselegumes.Nasresidênciasmaiores,haviaaindaumadespensaparacarnesde caça, comganchosparapendurá-las eumabancadademármoreparaseupreparo.Outrosaposentosculináriosincluíamaleitaria,ondesebatiaamanteigaesefaziamcremedeleiteequeijos;apanificação,quecontinhaumfornodetijolosparasuprirdepãoafamília;umdefumadouroetalvezumasaladesalgados,parasalgartoucinhoefazerpicles;eoutrocômodopara tortas e massas, com uma mesa bem-iluminada para montarpastelaria e decorar tortas, ou fazer coberturas elaboradas. A existênciadessaconfeitariarefletiaogostoaristocráticoporgrandestortassalgadaserequintadastortasdoces.Ocômodomenosdesejávelparasetrabalhardeviaseracopa,queerao

localparaaexecuçãodetodasas tarefassubalternasmaisdesagradáveis:descascar legumes, limpar peixes e lavar a louça, o que não é nada fácilquandoosúnicosrecursosdequesedispõesãoáguafervendo,trapossujose sabão. A copa era dominada por uma enorme caldeira, para fornecer aágua da lavagem, e por pias de pedra de grande capacidade, bem comosuportesparaescorreralouça.Olugardeviarecenderacomidarançosaeespumade sabãoengordurada.Opiso tinhaque sermeio inclinado,para

queosrespingosconstantesdeáguasujaescoassemporumralo.Confinadas as tarefas mais desagradáveis na copa, a cozinha das

residências rurais ricas, emsimesma,podiasermuitoagradável.Eraumcômodo cuja única função era cozinhar, sem nenhuma das tarefas delavagemdelouça, lavagemderoupaearmazenagemdemantimentosquecostumamos espremer em nossas cozinhas. Tendia a ser um cômodoespaçoso – talvez de seis por novemetros –, com piso de pedra, janelasamplaseparedescaiadas,dominadoporumamesademadeiranocentro,naqualeramcolocadasváriastábuasdetrabalho.Asportaslevavamàcopaeàsdespensas.Acozinhacontinhaumarmárioparautensíliosereluzentespanelas de cobre em prateleiras. Havia amplo espaço para diversoscozinheiros e ajudantes atarefarem-se no trabalho, cozinhando nasmúltiplas fontes de calor, assando alimentos no forno ou no fogo,preparando molhos no fogão, cozinhando em banho-maria. Quando seentranacozinhadeumadessasresidênciasmajestosas,éfácilsentirumapontada de inveja de toda aquela vastidão demadeira lisinha, compararcom suaprópria cozinha, estreita e apertada, e dar um suspiro. Pois nãosuspiremais.Essas cozinhaspodiamser lindamentearrumadas,masnãopertenciamàspessoasquepreparavamacomida:aqueleeraum localdetrabalho, não de lazer. “Não desperdice. Não cobice” era um provérbioestampado nas paredes demuitas dessas cozinhas, um lembrete para osempregados não furtarem a comida, porque ela não lhes pertencia. Nascidades,osserviçaisdacozinhavitorianatrabalhavamemcondiçõesmaisprecárias. Era comum ela ser instalada num porão úmido e infestado debesouros,afimdequeatarefapoucoapresentáveldecozinharpudessesermantida longe dos olhos, enquanto os pobres cozinheiros derretiam decalorsemseremvistos,debruçadossobreseusfogõesdeferrobatido.Essas cozinhas vitorianas tinham mais em comum com as cozinhas

profissionais dos restaurantes do que com as nossas, caseiras. A grandemudança do século XX foi a criação de novas cozinhas da classe média,destinadas às pessoas que iriam efetivamente comer, além de cozinhar.Essesnovosespaçoseramdiferentesdosconjugadosmiseráveisdecozinhae sala das massas pré-industriais, ou das cozinhas dos privilegiados,dirigidas por seus serviçais. Eram higiênicas, com pisos de linóleo eprovidas de gás e eletricidade. A maior mudança consistiu em seremespecificamenteprojetadasparaatenderàsnecessidadesdaspessoasqueas usavam. Em1893, a sra. E.E. Kellogg (mulher domagnata dos cereaismatinais) escreveu que era um “erro” pensar que um cômodo qualquer,

“por menor e mais mal situado que seja, é ‘bom o bastante’ para umacozinha”.Kelloggfaziapartedeumnovomovimento“científico” femininoqueprocuravadignificaracozinhacomouma“oficinadoméstica”.Acozinha,pensavaKellogg,eraachaveda felicidadeda família inteira:

era o coração do lar. Hoje em dia, essa ideia é tão óbvia para nós que édifícil reconhecer que nem sempre foi assim. A comida tem sido umanecessidadeconstanteemnossavida,masocômododoqualelaprovémsópassou a existir em sua forma atual mais ou menos desde a PrimeiraGuerraMundial.Ossereshumanossemprecozinharam,masoconceitode“cozinhaideal”éumainvençãomuitorecente.

A“COZINHADOFUTURO”tornou-seumprodutofundamentaldavidanoséculoXX.Émeio tocante examinar fotografias das cozinhas futuristas de outrora.Vemos pessoas fitando, deslumbradas, eletrodomésticos que hoje seriamconsideradosinstáveisearcaicos:pequenosfogõeselétricosemdoisníveisdiferentes,geladeirasminúsculas.Ofuturodeonteméolixodeamanhã–ouentãovemosqueaquelavisãode futuronunca sematerializou.Oquepareciaserumnovocomeçoera,narealidade,umbecosemsaída.UmadaspeçasdemaiordestaquenaExposiçãoBritânicadaCasaIdeal,em1926,foiumacuriosaengenhocaquesecompunhadeumachaleiraacopladaaduascaçarolas,umadecadalado,paraquefossepossívelcozinhartrêscoisasaomesmo tempo: um milagroso aparelho para poupar energia que hojepareceumapiada.Entre os aparelhos que figuravam como futuristas, às vésperas da

Primeira Guerra Mundial, estavam uma cafeteira térmica que permitia apreparaçãodocafécomhorasdeantecedência;espremedoresdebatatas;bandejasgiratórias(tambémconhecidascomogarçonetessilenciosas,porpouparem as mulheres do trabalho de servirem os familiares nasrefeições); cortadores de salpicão (próprios para cortar repolho cru emtiras finas);picadoresdealimentos;batedeirasdebolo; fogõescomportade vidro para permitir a verificação do alimento durante o preparo; e,acimadetudo,algumafontedecalorcomumcombustívelmoderno,fosseelequerosene,gasolinaougás.Entretanto, apesar de todos esses supostos poupadores de trabalho, a

principalfontedeenergiadequasetodasascozinhasdocomeçodoséculoXXcontinuouaseraenergiadespendidapelasmulheres.Ascozinhasideaisforam produto do novo estilo de vida sem empregados das famílias daclasse média. Uma sucessão de arquitetos e especialistas em economia

domésticatentouinventarumacozinhaquereduzisseodesgasteimpostoaocorpodamulher.Em1912,ChristineFrederick,umaredatoradoLadies’Home Journal, expôs alguns planos mediante os quais a própria cozinhapoderia tornar-se um recurso para poupar trabalho e tempo. Frederickinteressou-sepelasideiasde“gerenciamentocientífico”entãoemvoganomundo empresarial. Especialistas em eficiência visitavam as fábricas efaziam recomendações sobre como os operários poderiam executar omesmo trabalho emmenos tempo. Por que não seria possível aplicar osmesmosprincípiosàcozinha?,perguntouFrederickemseulivroTheNewHousekeeping(1913).Após uma série de estudos sobre a “movimentação doméstica” de

mulheres reais de estatura diferente, Frederick criou um projeto decozinhaidealcujadisposiçãofizessesuausuáriadarumnúmeromínimodepassos, semnunca terque seabaixar.Cozinhar comeficiência significavareunir os utensílios certos antes de iniciar a tarefa, na altura correta, edispondo todos coma “consideraçãoadequadaunsaosoutros e aoutrastarefas”. Ao dispor a cozinha damaneiramais racional possível, sugeriuFrederick,asmulherespoderiamaumentarsuaeficiênciaemcercade50%,liberandotempoparaoutrasatividades,fossemelasdeleitura,trabalhoou“cuidadospessoais”.Acozinhacerta,afirmouFrederick,poderiaproverasmulheresdeumpoucode“individualidade”euma“vidasuperior”,emboraelanãotenhachegadoasugerirqueoshomensdacasatalvezgostassemdeserevezardiantedofogão–em1912,issoseriairlongedemais.OutracozinharacionaldoiníciodoséculoXXfoiaCozinhadeFrankfurt,

criadaporMargareteSchütte-Lihotzky,aprimeiraalunadearquiteturadaEscola de Artes e Ofícios de Viena. Entre 1926 e 1930, todos osapartamentos do programa de habitação pública da cidade de Frankfurtforam dotados de uma cozinha idêntica, construída segundo asespecificações de Schütte-Lihotzky. Num curto espaço de tempo, foramconstruídas mais de 10 mil dessas cozinhas, todas praticamenteindistinguíveis. Tinham todas as mesmas superfícies de trabalho eescorredoresdelouça,osmesmosarmáriosazuiseamesmalixeira.A Cozinha de Frankfurt podia ser pequena (embora não menor que

muitas cozinhas da Nova Yorkmoderna), mas se destacava por ter umadisposição compatível com o modo como as mulheres de fato semovimentam na cozinha, e não com a forma como os decoradoresgostariamqueelas se comportassem.Nas cozinhasdoReinoUnidoedosEstadosUnidosdadécadade1920,osarmáriosparamúltiplasfinalidades

eram promovidos como um sistema paramelhorar a vida dasmulheres.Foram os precursores das cozinhas planejadas: sistemas de armários,prateleiras e gavetas, com superfícies de trabalho do tipo “abre-fecha” erecipientesparafarinhadetrigoeaçúcar.Algunseramatéequipadoscomcaixasdegeloembutidas.OprincipalfabricanteeraaHoosierCompanyofIndiana. Os “Hoosiers”, como eram chamados, assumiam o papel de umacombinaçãodearmário,despensaemesadecozinha, tudonumapeçasó.“OHoosierme ajudará a permanecer jovem”, alardeava um comercial de1919,mostrandoumajovemrecém-casadaradiante.Emboraoshomensdapublicidadeinventassemmulheresdesonhopara

usaressesarmários,osHoosiersmostravamfaltadeimaginaçãoquantoaoque era necessário para as mulheres reais na cozinha. Mais pareciambrinquedosdoqueutensíliossériosdetrabalho.Espremendotudonumsóespaçoconfinado,essesmóveis isolados tornavammuitomaisdifícilparaoutras pessoas da família – filhos ou marido – ajudar uma mulher acozinhar ou a lavar a louça. Também impediam que a cozinheira fizessepleno uso do cômodo. Compare-se isso com a Cozinha de Frankfurt, quevinha equipada com uma cadeira giratória de rodinhas (com alturaajustável,numraroreconhecimento,porpartedeumarquiteto,dequeossereshumanostêmtamanhosdiferentes),paraqueasmulherespudessemdeslizar facilmente de um lado para outro entre a superfície plana detrabalho,emmadeiraejuntoàjanela,eosarmários.Asupremaglóriadessacozinhaeraseusistemadearmazenamento,que

seassemelhavaaummóveldearquivodeescritório.Haviaquinzegavetasdealumínio,dispostasemtrêsfileirasdecinco.Cadaumatraziagravadoonome de um ingrediente seco: farinha de trigo, açúcar, linhaça, arroz,ervilha e assim por diante. As gavetas tinham puxadores fortes, o quefacilitavasuaretiradaindividualcomumasómão.EomelhordaCozinhade Frankfurt era isto: o fundo de cada gaveta inclinava-se numa bordaafunilada,demodoquequemestivessecozinhandopodiatiraragavetadearroz, digamos, e pôr a quantidade necessária – sem derramar –diretamente na balança ou na panela. Nunca vi uma solução tão perfeitaquanto essa, em termos ergonômicos, para guardar alimentos. É bonita,prática, sistemática epoupa tempo.E é aindamaisnotável encontrarumprojeto de qualidade tão elevada para cozinhas democráticas, feitas paramoradoresproletários.Schütte-Lihotzky era uma revolucionária social – os nazistas a

mantiveram presa durante quatro anos, por pertencer a um grupo de

resistênciacomunista–esuacozinhatinhaumpropósitofeminista.Erasuaesperança que o projeto certo de cozinha libertasse as mulheres de seupapeldedonasdecasa,liberandotemposuficienteparaque,cadavezmais,elas pudessem trabalhar fora. As próprias moradoras de Frankfurt, noentanto,nemsempresesentiamlibertadasporsuacozinha.Algumasnãogostavam de ser obrigadas a usar a eletricidade, queixando-se de que ocusto de funcionamento da cozinha elétrica era elevado. Além disso,rebelavam-secontraaestéticafuncionalmodernistaetinhamsaudadedoatravancamentoedabagunçadesuasantigascozinhas.Custou para que a genialidade da Cozinha de Frankfurt fosse

reconhecida. As convicções comunistas de Schütte-Lihotzky significaramqueelanãoobtevemuitasencomendasemsuaÁustrianatal,nemmesmodepoisdaquedadeHitler.Finalmente,aos83anos,elarecebeuoprêmiodearquiteturadacidadedeViena.Hojeemdia, aCozinhadeFrankfurtéadoradapelos estudantesde arquitetura, e constituiu apeçaprincipaldeuma exposição sobre tecnologia de cozinha, realizada noMuseu de ArteModerna de Nova York, em 2011. Circulando pela exposição, vinovaiorquinos – alguns dos consumidores mais exigentes do mundo –pararem para admirar as humildes gavetas de mantimentos feitas dealumínio, projetadas por Schütte-Lihotzky. Isso era algo que a cozinhanorte-americanadopós-guerra,apesardetodaasuafartura,nãopossuía.ACozinhadeFrankfurteraumespaço linearestreito,comapenas1,96

metrodelargurae3,04decomprimento.Masosprojetistasracionaisdosanosqueantecederamaguerranãoachavamqueacozinhaidealprecisasseser particularmente espaçosa. Christine Frederick deu preferência a umcômodocom3,05metrospor3,67,umpoucomaislargaqueaCozinhadeFrankfurt, porém não muito mais longa. Frederick sabia que o espaçomaior era uma bênção duvidosa, porque, para quem cozinhasse isso,significava andar mais. O fator crucial do projeto era ter as tarefas e oequipamento reunidos num ponto, estimulando uma “cadeia de passos”pelocômodo.Frederickidentificouseisetapasdistintasnopreparodeumarefeição:preparar,cozinhar,servir,tirar, lavar,guardar.Cadaetapaexigiaseus próprios utensílios. E em cadauma, os utensílios deveriamestar naalturacertaenaposiçãocorretaparaatrabalhadora:

Com muita frequência, todos os utensílios ficam pendurados juntos, ou misturados numagaveta.Porqueesticarobraçoporcimadofogãoparapegaroespremedordebatata,seseulugarcertoéacimadamesa?Porqueandaratéoarmárioparabuscaraescumadeiradevirarpanquecasseénofogãoquevocêprecisadela?

Issomesmo,porquê?Noentanto,passadoscemanos,éincrívelcomosópoucosdenósnosmovimentamoscomverdadeiraeficiêncianacozinha.Oproblema,emparte, équea cozinharacionaldeFredericknãoerao

único modo de chegar a uma cozinha ideal. Na década de 1940, essaabordagempragmáticadoprojetodacozinhatinhasidosuperadaporalgomuitomais rebuscado – armários sofisticados, fogões com linhas curvas.Muitascozinhasideaistiveram–etêm–menosavercomaintroduçãodemaiseficiênciamaiornavidaqueapessoajálevadoquecomfingirqueelaleva uma vida totalmente diferente. Escolhemos esse aposento,mais quetodososoutros,comoaqueleemquevamosprojetarumavisãoperfeitadenós mesmos. Para Frederick, o objetivo da cozinha era “ver como sãonecessários poucos utensílios, panelas e frigideiras”. Para a maioria dosprojetistascomerciaisdecozinhas,entretanto,oobjetivotemsidovenderomaior número possível de objetos encantadores, reproduzir aquelasensação de invejinha que amiúde experimentamos ao circular por umshowroom de cozinhas planejadas. Como pode a vida ser completa semumamáquinadecaféexpressoembutida,rosafúcsia,quevaidatorrefaçãodogrãoàxícara?Apartirdosanos1940,ascozinhasideaisforamoferecidasaosolhosdas

mulheres como um regalo: uma compensação por uma vida de trabalhoenfadonhoepesado,oupartedeumtruquequelhesfalavadoquantoelastinham sorte por serem “donas de casa” não remuneradas. A cozinharacionaldeChristineFredericktinhasidomovidapelaeficiência:omenornúmero possível de passos, o menor número de utensílios. As novascozinhas ideais erammuito mais opulentas. Eram casas de boneca paramulheresadultas,abarrotadascomomáximopossíveldequinquilharias.Oobjetivo não era economizar trabalho, mas fazer as trabalhadorasesquecerem que estavam trabalhando. Como escreveu Betty Friedan emMística feminina, em 1963, a cozinha suburbana de meados do séculocomeçou a dominar o restante da casa. Foi embelezada commosaicos egeladeirasronronantesenormes.Asmulherespassaramaserincentivadas–sobretudopelospublicitários–aencontrarrealizaçãoafetivanotrabalhodoméstico,paracompensarsuafaltadetrabalhoprofissionalforadecasa.Em 1930, 50% das norte-americanas tinham trabalho remunerado; em1950, essa percentagem havia caído para 34% (comparados a 60% em2000).O luxo das cozinhas de meados do século também era um modo de

compensar–ouesquecer–asagrurasdaguerra.Em1944,últimoanodo

conflito mundial, a empresa norte-americana Libbey-Owens-Ford GlassCompanycriouuma“CozinhadoFuturo”quesecalculatersidovistapor1,6milhãodeconsumidoresemtodoopaís.Comoamaioriadascozinhas-modelo, esse protótipo, com armários com portas de vidro Tufflex,destinava-seaprovocar inveja–e, com isso, gerarvendas.OWashingtonPost observou que ela oferecia uma visão “luminosa” do futuro no pós-guerra,que faziavalerapenasuportaropresente;adonadecasa“usaráanimadamenteoquepossuiagora,sepuderaspiraraumacozinhadessasdepois da guerra”. Durante o conflito, a situação foi tranquila para osEstados Unidos emmatéria de alimentos, em comparação com qualqueroutra nação do mundo, mas a percepção dentro do país ainda era deprivação. Para as norte-americanas que lidavam com o racionamento devíveres, em especial açúcar e carne vermelha, a visão dessa cozinha eraumapréviaestonteantedaabundânciaqueviria.Decorridosquasesetentaanos,essa“CozinhadoFuturo”de1944aindaé

admiravelmentehigh-techemmuitosaspectos;emoutraspalavras,parecedesejável. O piso tem um revestimento escuro e liso e há esplêndidospainéis de parede em vidro, para proteger dos respingos. O quemais sedestacaéqueodesigner,H.AlbertCrestonDoner,decidiuacabarcomaspanelas e frigideiras tradicionais. Em lugar delas, há uma série derecipientesdetampodevidroaquecidospelaeletricidade–meioparecidocomobanhodeimersãonamáquinasous-vide–,escondidossobportasdecorrercontroladasporpedais.Quandonãoestáemuso,aunidadeinteirapode ser coberta para se transformar numa “bancada de estudo para ascrianças, ou [num] bar para o papai”. Uma impecável dona de casa dadécada de 1940 senta-se diante de sua pia de tampo articulado,convenientementesituadaaoladodesuagavetadelegumes–descascandobatatas.Maséaíqueavisãodaaltatecnologiadesmorona.Oobjetocomoqual

essa mulher elegante descasca suas batatas na “Cozinha do Futuro” éapenasumavelhaesimplesfacadedescascar.Nãosetratadeumautopiatão grande, afinal. Tal cozinha pode ter ultrapassado as panelas e asfrigideiras,maslhefaltaumdescascadordecente.

TRATA-SE DE UM detalhe pequeno,mas os bons descascadores de legumes sãouma invenção muito recente. Só estão na nossa vida desde 1990. Eu osincluoentreastecnologiasmaisimportantesdacozinhamoderna,porque,emsilêncio,essespequenosehumildesutensíliosfacilitaramopreparodas

refeições, além de alterarem sutilmente o que comemos e a maneira defazê-lo.Lembro que, quando eu era criança, descascar legumes era uma das

tarefasmaischatasdacozinha.Duranteséculos,ométodo-padrãoerausarumafaquinhadedescascarcomumalâminapequenaepontuda.Nasmãoscertas – as de um mestre-cuca treinado –, essa faca é um instrumentoexcelente, mas exige uma imensa concentração para que se tire cadapedacinhodecasca,semcortaropolegar.Nopassado,sevocênãotivessemuitojeitoparausarafacadedescascar,azaroseu:nãohaviaalternativas.O catálogoda SearsRoebuckde 1906 – paramuitos norte-americanos, afonte para adquirir todos os utensílios de cozinha – listava umdescaroçadordemaçãseumafacadedescascarcomcabodemadeira,masnenhumdescascador.Em meados do século XX, havia descascadores disponíveis, mas eles

eram maçantes de usar, sob vários aspectos. No Reino Unido, odescascador-padrãoeraoLancashire(assimdenominadoemhomenagema um dos condados ingleses que mais gostam de batatas), com cabo demadeirarevestidodecorda.Atoscalâminafixaeraumaextensãodocabo.Tambémeradifícilterumapoioadequadonabatataounamaçã,afimdenãodesperdiçar,aomesmotempo,pedaçosgrandesdolegumeoudafruta,alémdacasca.Muito melhores eram os descascadores norte-americanos e franceses

com um mecanismo giratório, mas eles também tinham seusinconvenientes. O modelo-padrão vinha com cabo de aço cromadocorrugadoelâminadeaço-carbono,comumatirarecortadanomeio.Essesdescascadoresafiadoserammuitoeficientes,porquea lâminasemoldavaaocontornocurvodosvegetais.Entretanto,eradolorosousá-los.Conformeseexerciapressãosobreolegume,ocabodurodeaçocravava-secomforçacorrespondentenapalmadamão.Prepararumpurêdebatatasparaumagrande reunião de família podia deixar o cozinheiro combolhas namão.Outraopçãoeraodescascadorgiratóriodeestilo“Rex”,cujocabocurvodemetalera ligeiramentemais cômododesegurar,porém–ameuver–deusoaindamaisdifícil,umavezqueo formatodocabo forçavaapessoaaempurraralâminadesajeitadamenteparalongedocorpo,emvezdeusaromovimentonaturaldedebulhadodescascadorgiratóriopadronizado.No fim dos anos 1980, Betsey Farber, casada com Sam Farber, vinha

tendoumadificuldadeaindamaiorqueanormalparadescascar legumes,porcausadeumaleveartritenamão.Seumarido,queseaposentarapouco

antesdoramodeutilidadesdomésticas,teveumaideiainovadora:porqueos descascadores tinham demachucar? Ao projetar um descascador queBetsey não tivesse dificuldade de segurar, Farber se deu conta de quetambémpoderiafazerumutensíliofácildesegurarparatodos.Levousuaideia à empresadeprojetos SmartDesign e, em1990, após a testagemerejeição de muitos protótipos, o descascador de legumes OXO foiapresentadonumgrandeeventogourmetemSãoFrancisco.O descascador OXO representa um grande exemplo de pensamento

lateral. Talvez você suponha que a maneira de fazer um descascadormelhorseriaconcentraraatençãonalâmina.Farberviuqueapartecrucial,paraquemousava,eranaverdadeocabo.AlâminadoOXOéafiadíssimaeangulosacomoadosantigosdescascadoresdeaço-carbono.Oqueotornadiferente, porém, é o cabo preto macio, volumoso e meio feio. Ele é deSantoprene,umcompostorobusto,masmeiomole,deplásticoeborracha,comumasrebarbinhasnapartedecima,parecidascomasdosguidõesdebicicleta, destinadas a absorver a pressão. O formato é de uma ovalachatada,paraimpedirqueelegirenamão.Outensílioécômododeusar.Além disso, realmente funciona, tirando apenas uma camada externa decasca,dafinuradopapel.Pormaisquevocêopressionecontraumafrutaou legume ao descascá-los, o aparelho nãomachuca. Com umOXO, vocêpode descascar até abóboras-cheirosas, duras feito pedra, marmelosnodososekiwispeludos.

OdescascadorOXOfoiumfatorradicaldemudança.Maisdedezmilhõesdeunidades foramvendidasatéhoje, eele inaugurou todoomercadodedescascadores, levando à invenção de inúmeros rivais: descascadoresserrilhados para frutas, descascadores com lâminas curvas, outros emformatodeY,deCedeU,emqualquercorquevocêpossaquerer (eemmuitasquenãoquererá).Trintaanosatrás,sevocêentrassenumalojadeartigosdecozinhadealtaclasse,poderiaverunsvinteutensíliosdiferentespara cortar bolinhas de melão – em cortes redondos, ovais, com duaspontas, canelados, de grandes a pequenos –, mas é provável queencontrasse apenas dois descascadores, o Rex e o Lancashire. Essesutensílios eram vistos como ferramentas, um remanescente das antigascopas em que descascar legumes era um trabalho cansativo. Agora, asituaçãose inverteu.Oscortadoresdemelãoforampraticamentebanidosda cozinha, rejeitados comopretensiosos, aopassoqueos descascadoressão oferecidos em todos os formatos possíveis. O dono de uma loja deartigos de cozinha no Reino Unido disse-me, há pouco tempo, que tinha

sessenta descascadores diferentes em estoque, considerando todas asvariaçõesdecor.Os descascadores que funcionam sem machucar fazem parte de uma

novaergonomiadacozinha.Nosetordosutensíliosnãoelétricos,existemhoje espátulas e escorredores ergonômicos, batedores cômodos, de cabomacio, e pincéis de silicone. A ergonomia é a ciência de projetarequipamentos que se ajustem às limitações e possibilidades do corpohumano.Todososutensíliosdecozinhadevemserergonômicos,vistoqueseu papel, em tese, sempre foi o de ajudar os seres humanos a cozinhar.Mas é impressionante a frequência com que os desenhos tradicionaisprejudicam de pequenas maneiras a nossa movimentação na cozinha, apontodenemsequeronotarmos,atéaparecerumaopçãomelhor.AtéosraladoresMicroplane® (cuja inspiração surgiu quando uma dona de casacanadense pegou emprestada uma das lixas demadeira domarido pararaspar casca de limão e fazer um bolo de laranja), serem lançados nomercado, em 1994, acreditava-se que ralar frutas cítricas era uma tarefaintrinsecamentemaçante:destroçarumlimãocontraosburacosmaisfinosdeumraladorcomume,emseguida,cataraflitivamenteosescassosfiaposderaspacomumacolher.Constatou-sequetudodequeprecisávamoserade um utensíliomelhor emais afiado. As raspas de limão obtidas com oraladorMicroplanecaemcomagraçasuavedapenugemdeumdente-de-leão.Muitos desses utensílios ergonômicos parecem deixar-nos mais perto

das antigas soluções pré-industriais, quando as pessoas tendiam a fazersuasprópriasferramentas.Acolherdepaudomésticapareciacertaporqueera desbastada para uma dada pessoa. Muitas engenhocas de altatecnologia são alienantes porque, por mais impressionantes que seafigurem,emsi,écomoseentrassememcombatecomocorpohumano.Osdescascadoreseosraladoresergonômicos,poroutrolado,fazempartedeumanovadisposiçãodosobjetosdacozinha:adeabordarnãoapenasosproblemasculinários,mastambémosproblemasdecomopreparamososalimentos para cozinhá-los. À semelhança dosmodernistas, os designersdessesnovosutensíliosabordamacozinhadentrodoespíritodo“porquenão?”.Adiferençaéqueoobjetivodaperguntanãoéreinventaraculinária,esimtorná-lamaisfácil.Para a maioria dos cozinheiros, a ergonomia é ummodomais útil de

pensarnacozinhamodernadoqueindagarsealgoéde“altatecnologia”ounão.Nofimdascontas,oquequeremosdosutensíliosésuacapacidadede

executarastarefasdamaneiraquemaispossaajudar,equecombinecomnossacozinhaenossocorpo,quercozinhemosparauma,duasoumuitaspessoas.Nacozinhadeumapessoasó,talvezissosignifiqueumadasnovastorneiras de água fervente (da marca Quooker) que permitem que, comextremarapidez,osujeitoprepareumareconfortanteporçãodemacarrão,aofimdeumdiacansativodetrabalho.Paraumafamílianumerosa,podesignificar um forno a vapor, programável para fornecer uma bandeja dealimentos nutritivos e quentes num horário predeterminado, semdiscussãosobredequeméavezde fazeroalmoço.Recentemente,visiteiuma cozinha cujos donos tinham buscado construir tudo de acordo comvirtuososprincípiosdepreservaçãoambiental,minimizandoodesperdícioe a emissão de carbono. Todas as superfícies de trabalho eramreaproveitadas; o fogão de indução, fabricado na Alemanha, erasupereficiente em termos de gasto de energia; a comida que saía daspanelas ecológicas era vegetariana. Em contraste com as cozinhas dopassado, ali não se explorava ninguém; a tarefa de cozinhar era divididaentreosmembrosdocasal.Acoisamaisinventivanoprojetodessecômodoeratambémamaissimples:elestinhampedidoaomarceneiroquefizesseseuarmáriopara enlatadosepotes comumaprofundidademuitomenorqueanormal,paraquepudessemparardedesperdiçarcomida.Oequipamentomaisergonômicoparaumadadacozinhapodeounãoser

o mais moderno. A bancada central ou “ilha” é um acréscimo recente anossa vida na cozinha, e teve como objetivo impedir que o cozinheiroficassedefrenteparaaparede;emmuitascozinhas,noentanto,seuefeitoacaba sendo obstruir omovimento e prender a pessoa que faz a comidaatrásdofogão.Ameuver,amesadecozinhaéumasuperfíciedetrabalhomuitomaisútilesociável–,maspodeserquevocêdiscorde.Osutensílioseacessóriossejustificam–ounão–pelouso.Conheçoumapessoa,amigademinha falecida avó, que desistiu recentemente das chaleiras elétricas –consideradas pela maioria dos britânicos como uma tecnologiaindispensável–depoisdeumasucessãoexageradadefusíveisqueimados.Após décadas de modelos elétricos decepcionantes, ela deu um basta ecomprouumaantigachaleiradeapitar,dessasquecolocamosnabocadofogão.Esta lhe servemelhor, segundoela.Épor issoque, respondendoàperguntadeHervéThis,aindacozinhamoscomfouets,fogoecaçarolas,talcomoerafeitoemtemposmedievais.Eofazemosporque,namaioriadasvezes e na maioria das cozinhas, os fouets, o fogo e as caçarolas aindafazemmuito bem o seu trabalho. Tudo que queremos são fouets, fogo e

caçarolasmelhores.

DEVEZEMQUANDO,deparamoscomreconstituiçõesdecozinhashistóricas.Numaexposição sobre alimentos antigos ou de campanhas publicitárias deempresas de utensílios de cozinha, por exemplo, uma pitoresca visãoretrospectiva da história de nossos fogões! Mas essas réplicas quasesemprecometemomesmoerrosutil.Nãoéquesejamanacrônicas–nãoexistemtelevisoreselisabetanosnemcomputadoresdadécadade1920–,masessesambientessãoautênticosdemais.Tudoéfeitoparasecoadunarcomoperíodoabordado: tal comonumacozinha-modeloparaexposição,tudo combina. Uma cozinha dos anos 1940, por exemplo, não incluinenhumitemquenãotenhasidofabricadonosanos1940.Masnãoéassimquesãoascozinhasreais.Nascozinhasqueefetivamenteusamos,velhasenovas tecnologiascoexistemesesuperpõem.Umadonadecasade1940,na faixa dos trinta anos de idade, teria pais nascidos no século XIX; seusavósteriampertencidoaoaugedoperíodovitorianoetostariampãocomum garfo junto a uma grelha; devemos mesmo supor que essas vidasanterioresnãoteriamdeixadonenhumvestígionacozinhadela?Nenhumfogão tipo salamandra?Nenhumapanelade ferrodavovó?Nacozinha,ovelho e o novo convivem lado a lado como companheiros. Nas cozinhasricas do passado, quando se adotava um novo equipamento, ele nãonecessariamente expulsava os antigos. Sucessivos utensílios eramacrescentados, mas por trás deles era possível vislumbrar as maneirasoriginaisdecozinhar,comonumpalimpsesto.ACalkeAbbeyéumaantigaresidênciadeDerbyshire,naregiãocentral

daInglaterra,cujosmoradores,afamíliaHarpur,quasenuncasedesfaziamdenada.Hoje elapertenceaoNationalTrust e se encontra emestadodeconsiderável decrepitude. A grande e velha cozinha é, na verdade, umasériedecozinhas,umaemcimadaoutrae cadaqual representandoumafatia do tempo. Esse aposento com piso de pedra foi equipado comocozinhapelaprimeiravezem1794(antesdisso,épossívelquetenhasidouma capela). O relógio foi comprado emDerby nomesmo ano. Tambémoriginalde1794éavastaeantigalareiradeassar,comumespetogiratóriode cordaemcima.Diantedesse fogo, emcertaépoca, a carnedeviagirarnosespetos.Entretanto,emalgumpontodadécadade1840,essemétodode assar deve ter sido abandonado, porque um fogão fechado de ferrobatido foi enfiado na lareira. Mais tarde, também esse fogão deve terdeixado de atender às necessidades da família, porque, em 1889,acrescentou-se uma segunda lareira com um fogão de ferro adicional.

Nesse meio-tempo, ao longo de outra parede, construiu-se um fogão detijolosdeestilosetecentista,usadoparacozereguisarouprepararmolhos.Por fim, na década de 1920, os moradores instalaram uma modernacaldeira Beeston para água quente, ao lado dos antigos fogões. Emmomento algum pensou-se em retirar qualquer dos equipamentosanteriores.Em1928,comasúbitareduçãodonúmerodecriadosdacasa,ocômodo foi abruptamente abandonado; instalou-se uma cozinha nova emais funcional noutro ponto da residência. A antiga cozinha permanecehoje tal como era em 1928. Ainda há um aparador repleto de panelas eoutrosutensíliosenferrujados.Oespetoeorelógiocontinuampenduradosnasparedes,nomesmolugaremquetinhamsidooriginalmentecolocados.É desnecessário dizer que a maioria das famílias é mais implacável

quandosetratadedescartarcoisasqueficaramsemuso.Masascozinhascontinuamaserótimasparaacomodaroantigoeonovosobomesmoteto.Háalgode triste, e tambémdesperdiçado,no impulsoatualde refazerascozinhasapartirdozero:arrancarqualquervestígiodoscozinheirosquevieram antes. Parece uma desconsideração. As cozinhas em geral nuncaforamprojetadasemtantosdetalhes,tãobem-equipadasetãoelegantes–nemtãovazias.Nadécadade1910,o idealeraacozinha“racional”;maistarde, nas de 1940 e 1950, era a cozinha “bonita”. Agora, é a cozinha“perfeita”.Tudodevecombinareseencaixar,dotetoemtomdemarfimaopisodepedracalcária.Todososelementostêmdeser“contemporâneos”.Qualquer coisa surradaoudeslocadaé jogadano lixo (amenosquevocêtenha resolvido seguir o estilo “usado chique”, misturando o novo compeçasantigasrecicladas).Isso é uma ilusão, claro. Na mais moderna das cozinhas planejadas,

continuamos a recorrer aos utensílios e às técnicas do passado. Quandovocêseguraseupegadorreluzenteparasaltearumpratomodernodelulacom verduras numa panela wok, ou fazer um linguini com abóbora-cheirosaepimentavermelha,aindaestá fazendoumacoisaantiquíssima:usando o poder transformador do fogo para aprimorar o sabor de algo.Nossas cozinhas são cheiasde fantasmas.Vocêpodenão vê-los,masnãopoderia cozinhar como cozinha sem a engenhosidade deles – dos oleirosque pela primeira vez nos deram a possibilidade de ferver e guisar; dosferreirosqueforjaramfacas;dosengenheirosbrilhantesqueprojetaramasprimeiras geladeiras; dos pioneiros dos fogões elétricos e a gás; dosprodutores de balanças; dos inventores de batedores de ovos edescascadoresdefrutaselegumes.

Acomidaquepreparamosnãoéapenasumamontagemdeingredientes.É produto de tecnologias passadas e presentes. Num dia ensolarado,resolvo fazer uma omelete rápida parameu almoço – uma omelete ovaldourada e fofa, segundo a tradição roulé dos franceses. Estritamentefalando,elasecompõeapenasdeovos(caipiras),manteigasemsalgeladaesalmarinho,masosverdadeiroscomponentessãomuitomaisnumerosos.Existeageladeiradeondetiroamanteigaeafrigideirasurradaevelhadealumínioemquepreparoaomelete,ecujasuperfíciefoitemperadapordezanosdeuso.Existeofouetquebateosovos,emboraumgarfopudessesair-se igualmentebem;háos inúmerosautoresdereceitascujaspalavrasmealertaram a não bater demais; há o fogão que me permite aquecer afrigideiraosuficiente,massemesquentá-laapontodequeimarosovosoudeixá-losborrachudos;eexisteaespátulaqueenrolaaomeletedouradaeaservenoprato.Graçasatodasessasformasdetecnologia,nestaocasiãoepara este almoço solitário específico, a omelete dá certo. Fico satisfeita.Todooestadodeespíritodeumatardepodeserestragadooumelhoradopeloalmoço.Porém existe aindamais um componente dessa refeição: o impulso de

prepará-la,paracomeçodeconversa.Ascozinhassóadquiremvidaquandose cozinha nelas. O que realmente impulsiona a tecnologia é o desejo deusá-la. Esse almoço à base de omelete nunca teria sido feito semminhamãe,quemeensinouqueacozinhaéumlugarondecoisasboasacontecem.

CAFÉ

A tecnologia do café adquiriu proporções espantosas. A inventividadeesbanjada para essa substância reflete sua condição de droga culináriaprediletaemtodoomundo.Fazercafénadamaisédoquemisturargrãoscomáguaquenteecoaropó.Masosmétodosparaexecutaressatarefatêmvariadodemaneiraincrível,doibrikturco,usadoparafazerumcafépretoforte desde o século XVI, até a MyPressi twist™, lançada em 2008, umamáquinaportátildecaféexpressoacionadaporumacápsuladegás,comoossifõesdecremechantili.Há apenas dois anos, a última palavra em cafeteiras eram as enormes

máquinas de café expresso, e as perguntas principais eram quanto vocêpodia pagar por elas (as melhores custam milhares de libras) e quantocontrolequeria ter.Outraopçãoeramascafeteirasbaseadasemcápsulasdepressão,comoasdamarcaNespresso™,queofereciamumaconsistênciaperfeita.Masosverdadeirosobsessivosdocaféquerempoderlidarcomafísicadoprocesso:osgrãos,amoagem,asocadura,apressão.

Eentãoosviciadosemcaféexpressocomeçaramanotarqueerapossívelgastar uma fortuna, fazer tudo certo e, ainda assim, acabar com um cafémedíocre–poissimplesmentehaviaumexcessodevariáveis.Anovaondadatecnologiadocaféfoialémdascafeteirasexpresso–arigor,emgeral,foialémdaeletricidade.AgoraexisteaAeroPress®,umutensíliointeligentedeplásticoqueusaapressãodoarparaforçarocaféadescerparaacanecapor um tubo. Você só precisa de uma chaleira e de braços fortes. Aindamais chique é o sifão japonês. Parece uma coisa saída de uma aula dequímica: dois bulbos de vidro interligados, com um pequeno queimadorembaixo.Masaspessoasdecertaidadeassinalamqueessessifõesnãosão

muitodiferentesdacafeteiraConadadécadade1960.Agora, a grande curtição do café está na tecnologia simples. Passamos

tanto tempo pensando em maneiras de fazer um café melhor quecompletamos o círculo. Hoje em dia, os peritos mais vanguardistas domundo em matéria de café – em Londres, Melbourne e Auckland – dãopreferênciaàprensafrancesaeaofiltro,emvezdasdispendiosascafeteirasexpresso.Ésóumaquestãodetempoparaquealguémanuncieopróximograndesucesso:obulecomacolher.

a A sobremesa de Kurti foi chamada de “Frozen Florida” (“Flórida congelada”). O “Baked Alaska”(“Alascaassado”),tambémconhecidocomoomeleteànorueguesaouglaceaufour,éumacamadadesorvetecobertaporumsuspiroqueérapidamenteassadono forno,aumatemperaturaaltíssima.(N.T.)