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(Per Musi - UFMG) 13

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EditorialJuntamente com o lançamento do número 13 de PER MUSI - Revista Acadêmica de Música, homenageamos duas pessoas ligadas à história da revista e que nos deixaram recentemente para fazer música do outro lado da vida: o maestro e compositor Carlos Alberto Pinto Fonseca, cuja Missa Afro-Brasileira foi tema de um artigo de Ângelo J. Fernandes no n.11 de PER MUSI; e a filósofa e violinista Sandra Abdo, que contribuiu com um artigo sobre estética musical no n.1 de PER MUSI e também atuou como consultora da revista algumas vezes, inclusive no presente número.Por outro lado, é com muita satisfação que anunciamos a versão online de PER MUSI, numa iniciativa que se tornou possível graças ao apoio financeiro do CNPq. Assim, já estão sendo disponibilizados gratuitamente no endereço www.musica.ufmg.br/permusi os conteúdos publicados na versão impressa de PER MUSI do número 1 ao número 13 (incluindo as capas coloridas), totalizando 91 artigos, 8 partituras, 4 entrevistas e 11 resenhas. As versões impressas de quase todos os números da revista ainda podem ser adquiridas através do e-mail [email protected] este número 13 de PER MUSI, Bernardo Fabris e Fausto Borém analisam a hibridação de elementos do choro e do jazz na obra Catita, a partir da melodia e harmonia deixadas pelo compositor potiguar K-Ximbinho e de sua performance pelo saxofonista pernambucano Zé Bodega. A partir de uma revisão da edição de 1977 de Catita pela Vitale e, especialmente, da audição de sua gravação histórica de 1980, Bernardo Fabris nos apresenta uma leadsheet inédita contendo o tema de K-Ximbinho e o solo de Zé Bodega.Angelo José Fernandes, Adriana Giarola Kayama e Eduardo Augusto Östergren recorrem a alguns referenciais das práticas de performance para abordar as múltiplas funções do regente coral. Discutem sobre a importância da pesquisa histórica, a comunicação artística com o público, a flexibilidade estilística e questões sobre o contexto composicional e de interpretação, como tipos de público e acústica, padrões de afinação, timbre, realização rítmica, aspectos técnicos individuais e coletivos.Patrícia Furst Santiago discute a importância de se integrar atividades formais e informais na rotina de estudo do instrumentista, incluindo referências de músicos-pesquisadores e comentários de artistas-pedagogos da música instrumental, tanto erudita quanto popular.Leonardo Loureiro Winter e Fernando José Silveira examinam as diferenças entre os papéis do compositor e do intérprete em relação às diferenças de interpretação de uma obra musical, discutindo também os processos envolvidos na leitura musical, a questão da performance crítica e a importância da análise nas questões que surgem no ato de intrepretar.José Vianey dos Santos analisa as Treze Canções de Amor de Camargo Guarnieri sob o ponto de vista da performance e pedagogia vocais. Investiga como eventos da vida do compositor e idéias do intelectual Mário de Andrade influenciaram o estilo musical neste importante ciclo de canções brasileiras. Graziela Bortz analisa a escrita rítmica do compositor carioca Arthur Kampela em suas obras de 1995 a 1999 e propõe estratégias para sua performance, a partir de referenciais da escola composicional denominada Nova Complexidade, que inclui os métodos de Arthur Weisberg, o conceito de modulação métrica de Elliott Carter e o conceito de modulação micrométrica do próprio Kampela. Sonia Ray expõe a estruturação e atualização do catálogo on-line que divulga obras brasileiras para o contrabaixo no Brasil reunidas até 2005, a partir do processo de coleta e organização de partituras que resultou nos catálogos impressos anteriormente em 1996 e 1998. Na versão atual, inclui incipts de obras nas categorias contrabaixo solo, contrabaixo com piano, contrabaixo em câmara e contrabaixo solista com orquestra.Na seção de resenhas Pega na Chaleira, Carlos Palombini nos apresenta o livro Carmen: uma biografia de Ruy Castro, lançado em janeiro de 2006. Revela, tanto para o leitor leigo quanto o para expert, detalhes dos eventos musicais e biográficos que cercaram esta genial diva e pioneira da música popular brasileira.

Fausto Borém ([email protected])Editor de PER MUSI - Revista Acadêmica de Música

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Revisão Geral Fausto Borém (UFMG)Maria Inêz Lucas Machado (UFMG)

Universidade Federal de Minas GeraisReitor Prof. Dr Ronaldo Tadêu PenaVice-Reitora Profa. Dra. Heloisa Maria Murgel Starling

Pró-Reitoria de Pós-GraduaçãoProf. Dr Jaime Arturo Ramirez

Pró-Reitoria de PesquisaProf. Dr Carlos Alberto Pereira Tavares

Escola de Música da UFMGProf. Dr. Lucas José Bretas dos Santos, Diretor

Programa de Pós-Graduação em Música da UFMGProf. Dr. Maurício Loureiro, CoordenadorProf. Dr. Fausto Borém, Sub-Coordenador

Secretárias de Pós GraduaçãoEdilene Oliveira e Ráulia Augusta de Mello Planejamento e Produção Iara Veloso (Diretoria de Divulgação e Comunicação Social - DDCS/UFMG)Andréa Fernandes (estagiária), Clarice Feres (trainee) e Paulo Cerqueira (estagiário) - Diretoria de Divulgação e Comunicação Social - DDCS/UFMG

Projeto GráficoCapa e miolo: Jussara UbirajaraLogomarcas PER MUSI e Vinheta “PEGa na ChaLEiRa” Desenhos: Fausto BorémArte final: Edna de Castro (Diretoria de Divulgação e Comunicação Social - DDCS/UFMG)arte-Final Romero H. Morais / Samuel Rosa Tou (Diretoria de Divulgação e Comunicação Social - DDCS/UFMG)

FotosFoca Lisboa (Diretoria de Divulgação e Comunicação Social - DDCS/UFMG)Tiragem250 exemplares

PER MUSI - Revista Acadêmica de Música é um espaço democrático para a reflexão intelectual na área de música, onde a diversidade e o debate são bem-vindos. As idéias aqui expressas não refletem a opinião dos Corpos Editoriais ou Conselho Científico PER MUSI está indexada nas bases RILM Abstracts of Music Literature,The Music Index e Bibliografia da Música Brasileira da ABM (Academia Brasileira de Música).

Indexadores

ABM

Fundador e Editor CientíficoFausto Borém (UFMG)

Corpo Editorial internacionalAaron Wilkinson (Royal College of Music, Inglaterra)Anthony Seeger (University of California, EUA)Eric Clarke (Oxford University, Inglaterra)Denise Pelusch (University of Colorado, EUA)Florian Pertzborn (Instituto Politécnico do Porto, Portugal)Jean-Jacques Nattiez (Université de Montreal, Canadá)João Pardal Barreiros (Universidade de Lisboa, Portugal)Jose Bowen (Southern Methodist University, EUA)Lewis Nielson (Oberlin Conservatory, EUA)Lucy Green (University of London, Inglaterra)Marc Leman (Ghent University, Bélgica)Melanie Plesch (Univ. Católica, Univ. de Buenos Aires)Nicholas Cook (Royal Holloway, Inglaterra)Silvina Mansilla (Universidad Católica, Argentina)Xosé Crisanto Gándara (Universidade da Coruña, Espanha)Thomas Garcia (Miami University, EUA)

Corpo Editorial no BrasilAndré Cavazotti (UFMG)Cecília Cavalieri (UFMG) Cristina Caparelli (UFGRS)Diana Santiago (UFBA)Fernando Iazetta (USP)José Vianey dos Santos (UFPB)Lucia Barrenechea (UNIRIO)Márcia Taborda (UFSJR)Maurício Alves Loureiro (UFMG) Maurílio Nunes Vieira (UFMG)Norton Dudeque (UFPR)Rafael dos Santos (UNICAMP)Rosane Cardoso de Araújo (UFPR)Salomea Gandelman (UNIRIO)Sônia Ray (UFG)Vanda Freire (UFRJ)

Conselho CientíficoAcácio Tadeu de Camargo Piedade (UDESC)Adriana Giarola Kayama (UNICAMP)André Cardoso (UFRJ)Ângelo Dias (UFG)Arnon Sávio (UEMG)Beatriz Magalhães Castro UNB)Cíntia Macedo Albrecht (UNICAMP)Eduardo Augusto Östergren (UNICAMP)Fabiano Araújo (FAMES)Flávio Apro (UNESP)Guilherme Menezes Lage (FUMEC)José Augusto Mannis (UNICAMP)José Vianey dos Santos (UFPB)Lea Ligia Soares (EMBAP)Lincoln Andrade (UFMG)

PER MUSI: Revista Acadêmica de Música - n.13, janeiro / junho, 2006 - Belo Horizonte: Escola de Música da UFMG, 2006 –

n.: il.; 29,7x21,5 cm. Semestral ISSN: 1517-7599

1. Música – Periódicos. 2. Música Brasileira – Periódicos. I. Escola de Música da UFMG

O corpo de pareceristas de PER MUSI e seus pareceres são sigilosos.

Luciana Del Ben (UFRGS)Manoel Câmara Rasslan (UFMTS)Pablo Sotuyo (UFBA)Patrícia Furst Santiago (UFMG)Sandra Loureiro de Freitas Reis (UFMG)Vladimir Silva (UFPI)

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SUMÁRiOCatita na leadsheet de K-Ximbinho e na interpretação de Zé Bodega: aspectos da hibridação entre o choro e o jazz ............................................5Catita in the leadsheet by K-Ximbinho and in its interpretation by Zé Bodega: aspects of the hybridization between choro and jazz

Bernardo Fabris e Fausto Borém

Catita: tema e solo improvisado no disco Saudades de um clarinete .....29Catita: theme and improvised solo as recorded in Saudades de um clarinete

K-Ximbinho e Zé Bodega (Transc. Bernardo Fabris; Ed. BernardoFabris e Fausto Borém)

O regente moderno e a prática coral na atualidade: sonoridade e técnica .....................................................................................33The modern conductor and today’s choral practice: sonority and technique

Angelo José Fernandes, Adriana Giarola Kayama eEduardo Augusto Östergren

a integração da prática deliberada e da prática informal no aprendizado da música instrumental .....................................................52The integration of deliberate practice and informal practice in instrumental music learning

Patrícia Furst Santiago

Interpretação e execução: reflexões sobre a prática musical ..................63Interpretation and Performance: reflections about the musical practice

Leonardo Loureiro Winter e Fernando José Silveira

Treze Canções de Amor de Camargo Guarnieri:uma abordagem histórica, analítica e interpretativa ..................................72Treze Canções de Amor (Thirteen Love Songs) by Camargo Guarnieri: a historical, analytical and interpretive approach

José Vianey dos Santos

Modulação micrométrica na música de arthur Kampela ..........................85Micro-metric modulation in the music of Arthur Kampela

Graziela Bortz

Música brasileira para contrabaixo: coleta e organização dorepertório e formas de acesso ao acervo disponível ..............................100Brazilian music for the double bass: the repertory’s collection and organization and access to the available works

Sonia Ray

PEGa na ChaLEiRa – RESEnhaSCarmen de Ruy Castro, artista multimídia do disco ................................112Review of the book Carmen by Ruy Castro, a multimedia artist on disc

Carlos Palombini

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FABRIS, Bernardo; BORÉM, Fausto. Catita na leadsheet de K-Ximbinho e na interpretação de Zé Bodega ... Per Musi, Belo Horizonte, n.13, 2006, p.5-28

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Catita na leadsheet de K-Ximbinho e na interpretação de Zé Bodega: aspectos da hibridação entre o choro e o jazz

Bernardo Vescovi Fabris (UFMG)[email protected] Borém (UFMG)

[email protected]

Resumo: Estudo sobre a hibridação entre o choro e o jazz a partir de análise da leadsheet de Catita do potiguar K-Ximbinho (compositor, maestro, clarinetista e saxofonista; 1917-1980) e da gravação desta obra pelo pernambucano Zé Bodega (saxofonista e clarinetista; 1923-2003). A ocorrência simultânea de paradigmas musicais estilisticamente distintos, identificados a partir de referenciais teóricos do choro (ALMEIDA, 1999; SANTOS, 2001) e do jazz (GRIDLEY, 1987; HENRY, 1981) confirma uma tendência comum na música brasileira e é observada tanto no nível composicional (aspectos formais, harmônicos, escalares, melódicos e rítmicos) quanto interpretativo (ornamentação, realização rítmica e de articulações, vibrato, timbre, efeitos instrumentais e influência estilística de outros instrumentistas). Em Catita, esta hibridação ocorre ao nível das macro e microestruturas sem que, necessariamente, um novo gênero musical seja criado. Inclui uma edição harmônica e melodicamente revisada da leadsheet anteriormente publicada pela Vitale (K-XIMBINHO, 1977) e uma transcrição de Bernardo Fabris do tema e solo improvisado de Zé Bodega, a partir da audição de sua gravação no histórico disco Saudades de um clarinete (K-XIMBINHO, 1980).Palavras-chave: K-Ximbinho, Zé Bodega, música brasileira, choro, jazz, hibridação musical, transcrição musical.

Catita in the leadsheet by K-Ximbinho and in its interpretation by Zé Bodega: aspects of the hybridization between choro and jazz

abstract: Study on the hybridization between the musical styles of choro and jazz departing from the leadsheet of Catita by Brazilian composer, conductor, clarinetist and saxophonist K-Ximbinho (1917-1980) and its interpretation by Brazilian saxophonist Zé Bodega (1923-2003), based on the theoretical references of choro (ALMEIDA, 1999; SANTOS, 2001) and jazz (GRIDLEY, 1987; HENRY, 1981). The identification of simultaneous recurrences of distinct musical paradigms confirms a trend in Brazilian music, apparent in both compositional (formal, harmonic, scalar, melodic and rhythmic aspects) and interpretive levels (ornamentation, realization of rhythms and articulation, vibrato, timber, instrumental effects and stylistic influence from another performer). In Catita, the hybridization of popular practices in both large and small scales occurs without the emergence of a new genre. It includes a harmonically and melodically revised leadsheet of the wok based on the previous Vitale edition (K-XIMBINHO, 1977) and a Bernardo Fabris´s transcription of the theme and improvised solo by Zé Bodega as heard in the landmark recording Saudades de um clarinete (K-XIMBINHO, 1980).Keywords: K-Ximbinho, Zé Bodega, Brazilian music, choro, jazz, musical hybridization, musical transcription.

1 - introduçãoEste artigo apresenta uma análise descritiva e comparativa de elementos musicais contidos na leadsheet 1 do choro Catita, composto por K-Ximbinho na década de 1970, e na sua grava-ção que faz parte do disco Saudades de um clarinete, gravado em 1980 pela Eldorado e que tem Zé Bodega solo solista nesta faixa. Para entender melhor a interação entre elementos do

1 Leadsheet, o tipo de partitura mais comum na música popular, geralmente inclui apenas a melodia e os acordes simplificados na forma de cifras e, algumas vezes, detalhes rítmicos (“convenções”) ou de instrumentação.

Recebido em: 02/12/2005 - Aprovado em: 14/06/2006Per Musi – Revista Acadêmica de Música – n.13, 119 p., jan - jun, 2006

FABRIS, Bernardo; BORÉM, Fausto. Catita na leadsheet de K-Ximbinho e na interpretação de Zé Bodega ... Per Musi, Belo Horizonte, n.13, 2006, p.5-28

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choro e do jazz nesta música, buscamos integrar as informações advindas do texto musical escrito, deixado pelo compositor ao publicar o tema com cifras pela Editora Irmãos Vitale, em 1977, àquelas deixadas pelos intérpretes, recuperadas por meio da audição cuidadosa do do-cumento sonoro histórico e da transcrição, realizada por Bernardo Fabris, não só do tema (que possibilitou a revisão da leadsheet de Catita), mas também do solo improvisado no saxofone, transcrições que são apresentadas, ao final do artigo, às p. 29-32 desta revista. Assim, esta transcrição visa também prover uma fonte de referência e aprendizagem para os instrumentistas não habituados às práticas do choro e do jazz.

O saxofone tenor em Si bemol é um instrumento transpositor, o qual soa um tom (segunda maior) abaixo do que está escrito. Para que um maior número de leitores pudesse acompa-nhar a leitura ou tocar a música com maior facilidade, optamos pela apresentação de todos os exemplos musicais, da leadsheet e do solo transcrito no tom de Mi bemol maior (que podem, assim, serem lidos sem transposição pelos instrumentos em Dó), ao invés do tom original para sax tenor em Fá maior.

Para subsidiar as análises, foram transcritos a linha do baixo realizada pelo violão de sete cordas, o solo improvisado realizado pelo cavaquinho, além dos objetos centrais desta pesquisa: o tema e o solo improvisado realizados pelo saxofone tenor. A transcrição também serviu para o reconhe-cimento de práticas de performance geralmente não anotadas em partituras de música popular, como nuanças de articulações, tipos de ataque, timbre e efeitos instrumentais. Foram encontradas diferenças formais, harmônicas e melódicas entre a edição da Vitale e a gravação de 1980.

A articulação do som em música pode ser identificada por três características: o ataque, a res-sonância da nota (sustain) e o seu fim (release ou decay). Em relação à técnica do saxofone, os ataques podem ser divididos em quatro categorias distintas: (1) os golpes de língua, nos quais a língua vai de encontro à palheta (um toque rápido, de modo que a coluna de ar direcionada para dentro do instrumento não seja grande, mas apenas tenha o efeito de uma cesura); (2) os golpes de sopro, nos quais a palheta vibra simplesmente em função do deslocamento de ar, este obtido através de um impulso do diafragma e sem a intervenção da língua; (3) os golpes de meia–língua, que são golpes de língua intercalados por outros obtidos através do estreitamento, ou obstrução parcial, da cavidade bucal através da parte anterior da língua; e (4), os golpes de língua doodle, nos quais se acentuam as notas de tempo fraco em uma série de colcheias ou semicolcheias utilizando o fonema doodle (du : dl), recurso geralmente relacionado ao jazz. A ressonância das notas no saxofone está diretamente relacionada à aplicação de fonemas e dos princípios dos dois pontos citados anteriormente (ataque e release). A combinação destes três elementos resulta nas diferentes articulações utilizadas na música. O fim das notas no saxofone pode ser realizado sem a intervenção da língua, através do controle do fluxo de ar, ou com a interrupção da vibração da palheta através da aplicação da língua em contato com a mesma. Para a produção dos diferentes tipos de articulação, usa-se o recurso dos fonemas da voz. No ensino tradicional do saxofone, recomenda-se a utilização dos fonemas tu ou ta. Já na música popular, os fonemas mais utilizados são o du ou o da, sendo o fonema tu utilizado circunstancialmente em acentos mais marcados ou pesados.

Inicialmente, apresentamos um contexto histórico sobre os dois principais personagens deste estudo, K-Ximbinho e Zé Bodega, e seu disco Saudades de um clarinete. Após uma análise for-

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mal da obra, discutimos os elementos estilísticos do choro e do jazz e sua interação em ambas a leadsheet e a gravação de Catita. Utilizamos o referencial teórico sobre os paradigmas do choro de ALMEIDA (1999), corroborados por SANTOS (2001) em um artigo aplicado ao piano. Por outro lado, recorremos a GRIDLEY (1987) para abordar os elementos característicos do jazz e a HENRY (1981) para analisar os tipos de articulação no saxofone.

Num contexto mais amplo, espera-se que este estudo sirva de estímulo para empreitadas semelhantes e que possa auxiliar na compreensão da prática de hibridação musical, muito comum na cultura brasileira.

2 - K-Ximbinho e Zé BodegaSebastião de Barros nasceu na cidade de Taipu, Rio Grande do Norte, no dia 20 de janeiro de 1917 e faleceu na cidade do Rio de Janeiro em 26 de agosto de 1980. Iniciou seus estudos de clarinete e solfejo ainda criança e tomou gosto pelo choro e o jazz junto à banda de retreta da cidade. Este gosto intensificou-se ao se mudar com a família para Natal, onde tocava requinta e clarinete na Banda da Associação de Escoteiros do Alecrim e costumava apresentar-se com o grupo Pan Jazz na cidade. Com o alistamento militar, teve a oportunidade de aprender a to-car também o saxofone na banda do Exército, instrumento cuja forma emprestou-lhe o apelido carinhoso de K-Ximbinho.

Em 1938, K-Ximbinho ingressou na Orquestra Tabajara de Severino Araújo, com a qual se transferiu para o Rio de Janeiro. Ali trabalhou como clarinetista, saxofonista e arranjador em diversas orquestras, como aquelas do maestro Fon-Fon e de Napoleão Tavares. Só em 1946 é que teve sua primeira composição gravada, Sonoroso, em parceria com Del Loro. Em 1951, inicia o curso de harmonia e contraponto com Hans Joachin Koellreutter e, em 1954, embarca para a Europa em turnê como solista. Na volta, tornou-se arranjador da gravadora Odeon e, mais tarde, da Polydor, Orquestra Sinfônica Nacional da Rádio M.E.C e Rede Globo. Foi entre 1945 e 1964 no Rio de Janeiro, durante o período áureo da Orquestra Tabajara, que K-Ximbinho conheceu e conviveu com o saxofonista e clarinetista Zé Bodega, irmão do regente Severino Araújo. Sua discografia principal inclui Ritmo e Melodia (1956, Odeon), Em Ritmo de Samba (1958, Polydor), O Samba de Cartola (1959, Polydor), K-Ximbinho e Seus Playboys (1961, Polydor) e nosso objeto de estudo, Saudades de Um Clarinete (1980, Eldorado) (ALBIN, 2006; CLIQUEMUSIC.UOL.COM.BR, 2006).

O disco Saudades de um Clarinete, de 1980, foi o último registro fonográfico comercial de K-Ximbinho e reflete sua natureza musical eclética: compôs, arranjou e regeu todas as músicas, além de ter tocado clarinete em algumas das faixas. O revezamento da instrumentação entre dois tipos de grupos instrumentais, a orquestra e o regional, já sinaliza para a o gosto de K-Ximbinho pela hibridação entre o choro e o jazz. A orquestra é baseada na instrumentação das big bands de jazz, formação característica também da maioria das orquestras tradicionais de baile da época no Brasil, como é o caso da Orquestra Tabajara. Nesse disco, K-Ximbinho utilizou um quinteto de saxofones (dois altos, dois tenores e um barítono), um trombone, um trompete, piano, baixo e bateria. Em uma das faixas, o naipe de sopros é substituído pelo quinteto Villa-Lobos, composto por flauta, oboé, clarinete, fagote e trompa. Por outro lado, a formação do regional inclui cavaquinho, violão, violão de sete cordas, pandeiro e clarinete ou saxofone, dependendo da música.2 O choro Catita tem Zé Bodega como solista no saxofone

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tenor, acompanhado por Daudeth de Azevedo “Neneco” (cavaquinho), Damázio Baptista Filho (violão), Raphael Rabello (violão de sete cordas) e Jorginho (pandeiro).

José de Araújo Oliveira, o Zé Bodega, um dos quatro filhos do mestre de banda José Severino Araújo, nasceu no ano de 1923, em Recife, Pernambuco e faleceu em 23 de setembro de 2003, na cidade do Rio de Janeiro. Começou a tocar o clarinete na cidade de Ingá, Paraíba, aos 15 anos, e o ambiente musical na família foi decisivo na sua escolha profissional. Saía para tocar sob a regência do pai e era muito incentivado pelo irmão, Severino Araújo, que via nele um grande improvisador. Zé Bodega tocava clarinete, mas se notabilizou no meio do choro como o mais importante saxofonista tenor brasileiro, depois de Pixinguinha.

Na sua discografia, destacam-se três LPs em que aparece com artista principal. No disco Bate Papo: Caminho da Saudade, gravado em 1949 ao lado do pianista Radamés Gnatalli, gravou o choro Bate-Papo e a valsa Caminho da Saudade, ambas de Radamés. No disco Humilde-mente: Cadilac Enguiçado, de 1952, gravado ao lado do Trio de Trombones, interpretou os choros Humildemente e Cadilac Enguiçado de Manoel Araújo, Astor Silva e José Leocádio. No disco Um Sax no Samba, gravado pela Continental, foi acompanhado pela Orquestra Tabajara (ALBIN, 2006; CLIQUEMUSIC.UOL.COM.BR, 2006). Zé Bodega participou de muitos outros discos, acompanhando artistas como Chico Buarque de Holanda, Edu Lobo, Billy Blanco, Zé Menezes, Elis Regina, João Nogueira, Tim Maia, Raul Seixas, entre outros.

A relação de liberdade de expressão que deve ter existido entre K-Ximbinho e Zé Bodega e que pode ter favorecido a hibridação entre o choro e o jazz em Catita, pode ser inferido a partir do próprio ponto de vista de K-Ximbinho (1980):

“Eu gosto do chorista que apresenta em primeiro lugar a melodia, mas dentro dessa apre-sentação, mesmo na primeira vez, mesmo dentro da melodia pura, ele demonstre um pouco de colorido, um pouco de bossa, que apenas não ficasse tão restrito à execução melódica do choro. . . (K-XIMBINHO, 1980)”,

3 - Os elementos do choro na leadsheet e na gravação de CatitaA ocorrência da maioria das características dos quatro paradigmas estilísticos do choro apre-sentados por ALMEIDA (1999) e corroborados por SANTOS (2001) - harmonias, aspectos melódicos, ritmos e baixos - foram identificados na leadsheet ou na gravação de Catita, o que reforça a idéia de que trata-se de um choro. Foram também identificados em Catita algumas

2 Os músicos que participaram da gravação do disco Saudades de um Clarinete são os seguintes: Solistas de Clarinete: K-Ximbinho e Zé Bodega; Solista de Saxofone: Zé Bodega; Quinteto de Saxofones: Dulcilando Pereira (Macaé), Alberto Vianna Gonçalves, Ademir Gomes, Clóvis Timóteo Guimarães, Hélcio Jardim Brenha; Piano: Edson Antonio Marin (Marinho); Bateria: Edgar Nunes (Bituca); Baixo: Antonio Augusto V. Botelho de Guimarães; Cavaquinho: Daudeth de Azevedo (Neneco); Violão: Damázio Baptista de Souza Filho; Violão de 7 Cordas: Raphael Rabello; Pandeiro: Jorginho; Trombone: Jessé Sadoc Alves do Nascimento; Trompete: Heraldo Reis; Flauta: Carlos Seabra Rato; Oboé: Eros Martins de Melo; Clarineta: Paulo Sérgio dos Santos;Trompa: Carlos Gomes de Oliveira; Fagote: Airton Barbosa.

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práticas de performance observáveis, não na leadsheet, mas no nível da interpretação (e por isto percebidos apenas auditivamente), típicas do choro, como tipos de embocadura e articu-lações decorrentes.

3.1 – harmonias típicas do choro em Catita:Ao lado das harmonias mais simples, típicas do choro mais antigo, Catita apresenta carac-terísticas harmônicas do chamado choro moderno, em que há a utilização de acordes com sonoridades oriundas do jazz, e que também se tornaram mais comuns no choro que desenvol-veu-se no início na década de 1930, inovação que teve em Pixinguinha um de seus principais expoentes (SANTOS, 2001, p. 9).

Apesar de utilizar estas harmonias jazzísticas, que tipicamente enfatizam as notas fundamen-tais dos acordes, K-Ximbinho ainda preserva uma das características harmônicas principais do choro tradicional, que é a utilização de baixos invertidos. Embora não apareçam na lea-dsheet publicada pela Vitale, os baixos invertidos são claramente perceptíveis na gravação. As inversões dos baixos na condução desta voz no choro são decisões geralmente tomadas pelo instrumentista que estiver realizando as linhas do baixo, que pode ser um violonista, um violonista de sete cordas ou, mais raramente, um contrabaixista (BRASIL, 2003).

Raphael Rabello, que toca o violão de sete cordas na gravação de Catita, realiza estas inversões com muita freqüência, a exemplo da transcrição da linha do baixo descendente no Ex.1.

Ex.1 – Inversão de baixos em Catita por Raphael Rabello no violão de sete cordas.

3.2 – aspectos melódicos típicos do choro em Catita:Das cinco características melódicas do choro, apenas a utilização da escala menor harmônica descendente sobre a dominante não foi encontrada na leadsheet ou na gravação de Catita.

Entre os típicos procedimentos, K-Ximbinho anotou típicas apojaturas (Ex.2), bordaduras (Ex.3) e cromatismo (Ex.4) do choro na leadsheet.

Ex.2 - Apojaturas na leadsheet de Catita.

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FABRIS, Bernardo; BORÉM, Fausto. Catita na leadsheet de K-Ximbinho e na interpretação de Zé Bodega ... Per Musi, Belo Horizonte, n.13, 2006, p.5-28

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Ex.3 – Bordadura na leadsheet de Catita.

Ex.4 – Cromatismos na leadsheet de Catita.

Apojaturas e bordaduras são também recursos freqüentes no solo improvisado de Zé Bode-ga, como mostra o Ex.5. É interessante observar aqui o choque de segunda menor entre o Si natural da melodia e o Si bemol da harmonia no baixo no c.70, dissonância que ocorre mais comumente na improvisação do que da escrita do choro.

Ex.5 – Apojatura e bordadura no solo de Zé Bodega em Catita.

Embora o arpejo maior descendente acrescido da 6ª do acorde não ocorra na leadsheet de Catita, ele aparece no solo de Zé Bodega (Ex.6).

Ex.6 - Arpejo descendente de Si bemol maior com 6ª no solo de Zé Bodega em Catita.

K-Ximbinho recorre à ênfase melódica do contratempo, fazendo-o de diversas formas: em síncopa na nota mais aguda de um grupo melódico (Ex.7) ou como bordadura superior de uma nota que se repete (veja Ex.3 acima) ou, ainda, como anacruse do motivo recorrente na Coda (Ex.8).

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Ex.7 – Síncopa (ênfase no contratempo) na leadsheet de Catita.

Ex.8 - Anacruses (ênfase no contratempo) na leadsheet de Catita.

No seu solo, Zé Bodega também valoriza freqüentemente o contratempo no contexto melódico típico do choro (Ex.9).

Ex.9 - Valorização melódica do contratempo no solo de Zé Bodega em Catita.

3.3 – aspectos rítmicos típicos do choro em Catita:Ritmicamente, são comuns no choro tradicional as síncopas, alusões à síncopa e as quiálteras (geralmente três colcheias no lugar de duas ou, então, seis semicolcheias no lugar de quatro). A leadsheet de Catita apresenta recorrências dos dois primeiros elementos, como mostram o Ex.7 e o Ex.3 acima, ou ainda, mais caracteristicamente, seqüências de síncopas (Ex.10).

Ex.10 – Seqüência de síncopas na leadsheet de Catita.

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Já no solo de Zé Bodega, aparecem tanto as síncopas (Ex.11) como as quiálteras (Ex.12).

Ex.11 – Síncopas no solo de Zé Bodega em Catita.

Ex.12 - Quiálteras no solo de Zé Bodega em Catita.

3.4 – Baixos típicos do choro em Catita:Geralmente a realização dos baixos não aparece em leadsheets, mas pode-se observar na gravação de Catita, que Raphael Rabello utiliza dois dos três procedimentos típicos da linha do baixo do choro: (a) o baixo condutor harmônico, que acumula em si as características de linha de baixo, da harmonia e do ritmo (Ex.13) e (b) o baixo melódico, de caráter mais livre, onde o intérprete pode criar melodias em contraposição à melodia principal, ou ainda dialogar com esta (Ex.14). Não se observou a ocorrência de baixos-pedal, que é mais comum ser encontrado no choro em seções introdutórias ou durante transições.

Ex.13 - Baixo condutor harmônico de Raphael Rabello na gravação de Catita.

Ex.14 – Baixo melódico de Raphael Rabello na gravação de Catita.

3.4 – a improvisação do choro em CatitaA improvisação é um procedimento característico de diversas manifestações musicais populares. No jazz, a improvisação desenvolveu-se a ponto de tornar-se tão ou mais importante do que os elementos harmônicos ou melódicos do tema, sobre os quase se improvisam. Daí a tendência, no jazz, dos improvisadores serem mais lembrados do que os compositores. No choro, os temas

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geralmente apresentam grande invenção melódica e harmônica e, por isso, a improvisação geralmente acontece mais ao nível da variação melódica, da sugestão de alteração da métrica, da realização rítmica com sutilezas que parecem escapar das possibilidades da notação e que imprime o assim chamado “molho” do choro. Paulo SÁ (2000, p.68) comenta:

“. . .Diz-se então, que está faltando “molho” quando certo choro é tocado de forma muito rígi-da, isto em quando o intérprete toca exatamente o que está escrito na partitura. O “molho” se define muitas vezes através de uma mudança de métrica melódica, quando o chorão antecipa ou adianta uma nota ou um grupo de notas. . . Isto significa que um choro pode ter seu “molho” sem ser improvisado.”

Ele continua comparando o improviso no choro e no jazz:

“No caso do choro não existe um improviso nascido de divagações. . . não se espera do mú-sico chorão. . . uma espécie de choro instantâneo. . . ele possui um referencial que será o seu limite. . . Os ornamentos são parte essencial do conteúdo improvisatório do choro. Isto quer dizer que a utilização de mordentes, glissandos, apogiaturas, grupetos, entre outros, se dá de forma imprevisível. E mais do que isto, estes ornamentos muitas vezes apresentam também um caráter diferente daquele observado na música erudita, pois fogem da precisão que a escrita musical pretende lhes conferir” (SÀ, 2000, p.69)

A opção pelo improviso típico do choro, e não do jazz, é aparente na interpretação de Catita por Zé Bodega. Sua imprevisibilidade rítmica é notável, por exemplo, na coda, em que o ma-terial temático original da leadsheet da Vitale já contem uma ligeira alteração na primeira vez, por omissão de notas. Em seguida, nas três vezes em que a coda é reapresentada (sendo a última interrompida por um fading out), Zé Bodega toca diferentes variações, por acréscimo ou mudanças de notas, gerando novos padrões rítmicos que incluem quiálteras e fusas (Ex.15).

Ex.15 – Improvisação típica do choro (variações rítmico-melódicas) na interpretação de Catita por Zé Bodega.

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4 - Os elementos do jazz na leadsheet e na gravação de Catita4.1 - aspectos formais do jazz em CatitaHistoricamente, choros com formas mais simples do que o tradicional rondó ( l l : a : l l l l : B : l l a l l : C : l l a), com seções de 16 compassos cada, parecem ter surgido durante a década de 1930, período em que Pixinguinha compôs Carinhoso e Lamentos, ambos com apenas duas seções, ladeados por uma Introdução e uma Coda. É provável que esta mudança tenha sido inspirada em modelos norte-americanos, já que esta é uma característica formal do jazz. Entretanto, a prática inovadora de choros com duas seções só se tornou freqüente a partir da década de 1950.

Catita, que é da década de 1970, não segue o modelo tradicional, procedimento que K-Ximbi-nho explica, em uma entrevista a Paulo Moura:

“o choro tinha que apresentar três seções. Hoje eu acho que é desnecessário isso, em duas seções você demonstra o conteúdo melódico de uma composição popular como é o chorinho, e acho que na primeira seção a melodia já fica explicitada, estabelecida, esclarecida. . .” (K-XIMBINHO, 1980)”

Catita é um choro em duas seções, mas com características distintas da maioria dos choros deste tipo. Cada seção é composta por dois períodos de 8 compassos cada, sendo que os períodos que iniciam cada seção são paralelos. A este total de 32 compassos, K-Ximbinho acrescentou uma Coda de 8 compassos, que aparece na leadsheet editada pela Irmãos Vitale em 1977. No LP Saudades de um clarinete há também uma Introdução de 4 compassos. Assim, Catita pode ser representada pelo esquema formal intro {: l l a B l l l l a C l l :} Coda.

A forma canção [A A] [B A] com 32 compassos é uma das formas mais comuns do jazz. A forma central de Catita, [A B] [A C] com 32 compassos, que é uma variante desta, é também encontrada em standards do jazz (GRIDLEY, 1988, p.383). Já a Introdução e a Coda são estruturas formais encontráveis tanto no jazz quanto no choro pós-pixinguiniano. Entretanto, uma característica formal no arranjo desta gravação de Catita faz referência ao jazz e não ao choro. Trata-se das seções improvisatórias solísticas sobre o tema ou harmonia do chorus, cada chorus equivalendo a uma repetição completa da forma, exceto pela Introdução e Coda.

4.2 – harmonias típicas do jazz em Catita:Duas características da harmonia do jazz são bem marcantes. A primeira está ligada à dis-posição das notas nos acordes, que normalmente aparecem com a fundamental no baixo. Isto ocorre para que as extensões harmônicas (ou “tensões” 3 ) possam ser mais facilmente reconhecidas. O trecho abaixo mostra que este recurso, e não apenas os baixos invertidos, ocorrem em Catita (Ex.16).

3 “Tensão” harmônica é uma corruptela brasileira para o termo em inglês harmonic extension.

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Ex.16 – Acordes com notas fundamentais na voz do baixo na gravação de Catita.

A outra está relacionada à utilização de cadências com a progressão da subdominante relativa à dominante, o assim chamado ii-V, que pode ou não ser resolvido. Este tipo de cadência pode acontecer tanto no campo harmônico maior – ii7 (acorde menor com sétima menor) e V7(9) (acorde maior com sétima menor e nona maior), quanto no campo harmônico menor – ii7(b5) (acorde menor com sétima menor e quinta diminuta) e V7(b9) (acorde maior com sétima menor e nona menor) ou V7(#9) (acorde maior com sétima menor e nona aumentada). Estas cadências são muito utilizadas por K-Ximbinho na apresentação do tema, como uma cadência no campo harmônico de Mi bemol maior e outra no campo harmônico de Sol menor (Ex.17)

Ex.17 - Cadências ii-V no campo harmônico de Mi bemol maior e no campo harmônico de Sol menor na leadsheet de Catita.

4.3 – aspectos melódicos típicos do jazz em Catita:Algumas características melódicas do jazz, como a utilização de fragmentos da escala pentatônica, riffs4 , notas blue (blue notes) e acréscimo de notas estranhas à harmonia, foram gradualmente incorporadas às práticas de performance de outros gêneros populares em todo o mundo.

A utilização da escala pentatônica não é exclusiva do blues ou do jazz, e pode ser encontrada em músicas de diversas culturas, como a chinesa, a japonesa e a africana. Inicialmente, a escala de blues era um elemento estranho à prática do choro tradicional, mas tornou-se parte do gênero brasileiro, advindo, provavelmente, da música norte-americana.

Dada a limitada coleção de alturas (apenas 5), a limitada combinação de intervalos e a simpli-cidade de realização técnica em qualquer instrumento, a escala pentatônica é exaustivamente utilizada na música popular (especialmente no blues, jazz e rock) e daí, ser muito comum a similaridade entre temas de diferentes compositores. K-Ximbinho recorre à escala pentatônica

4 Riff é um termo do jazz que designa um motivo melódico curto (geralmente de dois a quatro compassos), simples e de fácil assimilação, destinado a ser repetido por diferentes naipes dentro de um conjunto instrumental, podendo ser utilizado como background durante solos ou mesmo servir de tema principal.

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de Dó menor para compor a primeira frase do tema de Catita (Ex.18) e pode-se especular, aqui, sobre uma evidente influência jazzística, se compararmos seu material temático inicial com o tema de Seven Come Eleven, composição dos norte-americanos Benny Goodman (clarinetista e bandleader) e Charlie Christian (guitarrista) (Ex.19, transposta de seu tom original, Lá bemol maior, para o tom da leadsheet de Catita, Mi bemol maior, a fim de facilitar a comparação entre as duas composições).

Ex.18 - Tema em Dó menor pentatônico no início de Catita de K-Ximbinho.

Ex.19 – Tema pentatônico de Benny Goodman e Charlie Christian no início de Seven Come Eleven.

Zé Bodega também recorre à escala pentatônica para desenvolver seu solo (Ex.20).

Ex.20 – Escalas pentatônicas de Mi bemol maior e Dó menor (com nota blue Sol b) no solo improvisado de Zé Bodega na gravação de Catita.

As notas blue (blue notes), que podem ser a terça, a quinta e a sétima da escala maior abai-xadas microtonalmente em até meio-tom, estão mais associadas às práticas de performance do que à escrita na partitura. De fato, apesar de não aparecerem na leadsheet de Catita, elas podem ser percebidas no improviso de Zé Bodega como as quintas abaixadas (Sol bemol no Ex.20 acima e Dó bemol no Ex.21) e a sétima abaixada (Ré bemol) no Ex.22.

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Ex.21 – Blue note com a 5ª abaixada (Dó bemol) sobre o acorde de Fá menor com sétima no solo de Zé Bodega em Catita.

Ex.22 – Blue note com a 7ª abaixada (Ré bemol) sobre o acorde de Mi bemol maior com sexta maior no solo de Zé Bodega em Catita.

Outro recurso de invenção melódica característico das improvisações do jazz é a inclusão e valorização de notas que não estão indicadas na cifragem da música, alterando o colorido de suas harmonias. No Ex.23, Zé Bodega acrescenta diversas “tensões” aos acordes originais de Catita. No c. 92, Zé Bodega toca a nota Dó, que é a sexta maior do acorde de Eb/Db. Depois, no c.93, sobre o acorde de Ab/Bb, são ressaltadas a sétima maior e a sexta maior (as notas Sol e Fá), respectivamente. Ainda no c.93, no acorde de Ab6, a presença da nota Si bemol na melodia implica no acréscimo da nona maior ao acorde. No c. 94, há a inserção da sexta maior (Fá sustenido) sobre o acorde de Am7(b5). No c.95, sobre o acorde de Gm7, são colocadas uma décima-primeira (Dó) no tempo forte, depois, uma nona maior (Lá). Finalmente, no c.96, Zé Bodega utiliza a sexta maior (Lá) como bordadura da quinta do acorde de C7(b9).

Ex.23 – Acréscimo de “tensões” harmônicas por Zé Bodega no seu solo em Catita.

4.4 - aspectos rítmicos típicos do jazz em Catita:No jazz, a característica rítmica mais marcante é a realização das swing-eighths (colcheias suingadas), geralmente escritas em grupos de duas colcheias, mas tocadas aproximadamen-te como uma tercina de colcheias (sendo as duas primeiras ligadas como uma semínima). Seu valor aproximado, ou proporção, depende do instrumentista ou, na maioria das muitas vezes, do andamento, que pode ser indicado na leadsheet, por exemplo, como light, medium ou heavy swing.

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A utilização das colcheias suingadas dentro do repertório da música popular brasileira é lar-gamente difundida, principalmente em gravações de solistas de estilo jazzístico e da bossa nova. Esta hibridação foi muito difundida a partir da década de 1960, quando alguns intérpretes norte-americanos gravaram discos com músicos brasileiros. Um caso emblemático foi o do saxofonista norte-americano Julian “Cannonball” Adderley, que gravou o disco Cannonball’s Bossa Nova: Cannonball Adderley with the Bossa Rio Sextet of Brazil, em 1962, ao lado do grupo do pianista brasileiro Sérgio Mendes, com repertório todo dedicado à bossa nova. Outro exemplo é o do também saxofonista norte-americano Stan Getz que, com o cantor e violonista brasileiro João Gilberto, gravou o histórico disco Getz/Gilberto em 1963.

As seções rítmicas destes dois discos históricos são formadas quase que totalmente por músicos brasileiros. No disco do saxofonista Cannonball Adderley, o grupo é formado pelo pianista Sérgio Mendes, pelo baixista Octavio Bailly Jr. e pelo baterista Dom Um Romão. Já no disco de Stan Getz e João Gilberto, a seção rítmica é formada por Antonio Carlos Jobim no piano, Milton Banana na bateria e pelo baixista norte-americano Tommy Williams. É inte-ressante notar que, nestas duas gravações, embora as seções rítmicas de ambos os grupos toquem em ritmo binário, que é característico do samba e da bossa, os solistas tendem a uma divisão quaternária própria da tradição do jazz, exemplificando uma fusão entre as práticas de performance destes estilos.

Por outro lado, é característica do choro a realização rítmica “quadrada” (sem swing ou straight). De fato, não há nenhuma indicação para a realização de swing na leadsheet de Catita. Entre-tanto, pode-se observar na sua gravação, que Zé Bodega utiliza ligeiramente o swing (no caso, semicolcheias suingadas), de maneira muito discreta, durante a exposição e re-exposição do tema de Catita. Entretanto, isto não chega a descaracterizar Catita estilisticamente enquanto choro, pois prevalece a condução binária pela seção rítmica, incluindo aí as suas baixarias típicas.

Outra característica rítmica do jazz é a utilização de notas engolidas (swallowed notes), que podem ocorrer tanto nas notas x (x notes) ou nas notas mortas (dead notes), estas últimas também conhecidas por notas fantasma (ghost notes). A diferença entre elas é que a nota x tem menor definição quanto à altura. Estes recursos de articulação não estão notados na leadsheet, mas aparecem com freqüência na interpretação de Zé Bodega, como mostra os Ex.24 e Ex.25.

Ex.24 - Notas mortas no solo de Zé Bodega em Catita.

Ex.25 – Notas x no solo de Zé Bodega em Catita.

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Finalmente, é muito comum se encontrar no jazz pequenas variações rítmicas ou melódicas (ou ambas) decorrentes da liberdade natural do estilo improvisatório. No meio do seu solo, Zé Bodega retorna ao tema original de Catita, mas não o repete literalmente, acrescentando um pequeno reforço rítmico na nota mais aguda (Ex.26).

Ex.26 - Ritmo original de K-Ximbinho e uma variante rítmica na interpretação de Zé Bodega em Catita.

4.5 - Baixos típicos do jazz em Catita:A principal característica do baixo no jazz é a utilização do walking bass, prática caracterizada por uma linha melódica de acompanhamento improvisatória em métrica quaternária (geral-mente 4/4), na qual o baixista do grupo de jazz combina as principais notas de cada um dos acordes da progressão (geralmente tônica, terça, quinta e sétima) com notas de passagem e bordaduras de maneira a evitar seqüência de arpejos, tocando quatro notas por compasso ou duas notas por compasso (two-feel), enfatizando os tempos fracos (segundo e quarto tempos). Este recurso não foi utilizado na gravação de Catita. Assim como a quialteração do swing, a métrica quaternária do walking bass poderia ter implicado em uma descaracterização estilística do choro.

4.6 - Efeitos expressivos típicos do jazz em Catita: Diversos recursos expressivos típicos do jazz foram explorados por Zé Bodega na gravação de Catita, como o lip trill (ou vibrato de lábio do jazz), o glissando, o pitch bend (ou portamento do jazz) e o scoop (GRIDLEY, 1987).

O lip trill, geralmente indicado pelo símbolo ( ), pode ser de dois tipos, dependendo do perí-odo estilístico do jazz: o hot (quente), característico dos instrumentistas de sopro anteriores à década de 1940, e o cool (frio), utilizado especialmente após a década de 1940.

O tipo de vibrato que Zé Bodega utiliza se aproxima mais do estilo cool, e geralmente o faz em notas longas ou notas que tenham sua finalização (release) mais prolongada, gradativamente aumentando a sua taxa e amplitude à medida que a nota vai desaparecendo (Ex.27)

Ex.27 –Vibrato jazzístico (lip trill) em estilo cool no solo de Zé Bodega em Catita.

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Em alguns momentos, em notas de menor valor como as colcheias, Zé Bodega recorre a um vibrato mais contínuo e intenso, se aproximando do estilo hot (Ex.28).

Ex.28 – Vibrato jazzístico (lip trill) em estilo hot no solo de Zé Bodega em Catita.

Zé Bodega utiliza poucas vezes o glissando, através do deslizamento rápido dos dedos sobre as chaves do saxofone, o que ocorre geralmente em saltos melódicos maiores. Este recurso é mais perceptível durante o tema, onde o intérprete preenche intervalos, como na 5a justa descendente, entre as notas Dó e Fá (Ex.29).

Ex.29 – Glissando no solo de Zé Bodega em Catita.

Assim como o glissando do jazz, o portamento do jazz, conhecido em inglês como pitch bend, é um recurso expressivo deslizante, mas que geralmente aparece em intervalos melódicos pequenos. Normalmente, é realizado atacando-se a nota pretendida um pouco acima ou abai-xo de sua afinação real, e deslizando-se da freqüência inicial até a desejada. O pitch bend é notado com o símbolo ( ) quando este se refere a uma nota ascendente, ou ( ) para indicar uma nota descendente. Zé Bodega utiliza o pitch bend em vários momentos durante o seu solo (Ex.30).

Ex.30 – Pitch bend descendente no solo de Zé Bodega em Catita.

Outro tipo de efeito semelhante ao pitch bend, utilizado por Zé Bodega, é o scoop, termo que faz referência ao movimento circular de uma “pá” ou “colher” e que tem por característica uma rápida alteração de freqüência da nota, primeiro descendente e, em seguida, ascendente, como mostra o Ex.31.

Ex.31 – Scoop no solo de Zé Bodega em Catita.

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5 - Zé Bodega e as articulações de choro e jazz em Catita São raros os casos em que as articulações do choro ou do jazz são grafadas na leadsheet ou partitura, e sua utilização depende do gosto, técnica, cultura musical e julgamento do intérprete.

Na performance do choro tradicional, os instrumentistas de sopro privilegiam suas articulações com base em dois tipos de legato: um em que as notas são separadas por golpes de língua, muito semelhante à articulação tenuto ( ). No segundo, apenas a primeira nota de um grupo de notas (ou de uma frase) é atacada e as seguintes são ligadas sob a mesma coluna de ar, sem cesuras. Estes dois tipos de articulação em legato aparecem conjugados e/ou intercalados por articulações staccato ( ). A variedade e mistura não padronizada destes tipos de articulação tornam a performance do choro característica, sendo rara (e até mesmo não aconselhável), a utilização de apenas um destes tipos de ataque de maneira contínua na realização deste gênero.

Em relação aos fonemas utilizados para produzir estas articulações da “linguagem” do choro, são comumente utilizadas as sílabas tu (ou ta) quando se busca maior acentuação no ataque da nota; e du (ou da) quando se deseja um ataque mais suave. A duração das notas no choro normalmente obedece à grafia do ritmo na leadsheet, mas são muito comuns a realização deliberada de pausas e encurtamentos do som não escritos, mais notáveis ou mais sutis, os quais respondem, em parte, pela maior ou menor verve rítmica (ou “molho”, ou “suingue brasileiro”) de sua interpretação. A acentuação marcato ( ̂ ), em que a nota é tocada com um valor mais curto do que a de sua grafia é muito utilizada, como na chamada síncope brasileira (semicolcheia-colcheia-semicolcheia), em que a colcheia (ou, às vezes, a primeira semicolcheia) fica mais curta.

Outro aspecto da articulação diz respeito às técnicas de finalização do som (release). Na prática do choro é mais comum a cesura do som através do controle do sopro, sendo a in-terrupção do som pela língua na palheta pouco observada neste estilo. Em linhas gerais, na performance do saxofone no choro tradicional, há uma preferência pela articulação com a lín-gua, cujo resultado é a emissão bastante clara das notas, com evidência de contrastes entre o som contínuo e o descontínuo.

Como no choro, as articulações no jazz fazem referência a uma retórica própria do estilo e são produzidas com base em alguns fonemas específicos. Uma das articulações mais comuns nos instrumentos de sopro no jazz é a articulação de língua (ou tonguing; HENRY, 1981, p.21), que é o legato produzido com o golpe de língua com base na letra “d”.

Outra articulação muito comum no jazz é a articulação de sopro (ou breath articulation; HENRY, 1981, p.22), produzida com um movimento brusco do diafragma, usando-se as sílabas (em inglês) huh, hoo ou wah. O resultado sonoro da aplicação desta técnica é um ataque menos definido, normalmente utilizado por solistas em inícios de frases. Quando utilizada por naipes, a articulação de sopro normalmente aparece em estilo coral, em séries de notas mais longas, como por exemplo, semínimas pontuadas ou colcheias pontuadas.

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A articulação de meia-língua (ou articulação half-tonguing; HENRY, 1981, p.21) é obtida com a pronúncia da sílaba du-n, onde du é realizada com golpe de língua e a letra n corresponde à obstrução parcial da cavidade bucal. Sua utilização é mais freqüente na articulação de notas mortas e notas x. No caso dos saxofonistas, a sílaba n também pode ser alcançada através da interrupção parcial da vibração da palheta com a língua.

Há ainda a articulação do tipo doodle ( du : dl ), obtida com a pronúncia destes fonemas no instrumento, em que é dada maior ênfase à sílaba dl (que representa o tempo fraco ou upbe-at) em detrimento da sílaba du (tempo forte ou downbeat), normalmente ligando a segunda colcheia de um grupo de duas colcheias com a primeira do grupo seguinte. Esta articulação é normalmente associada à acentuação característica das swing-eigths (colcheias suingadas) e, por isto, pouco freqüente em gêneros da música popular brasileira, como o choro. Este tipo de articulação permite maior suavidade em passagens rápidas com colcheias ou semicolcheias.

A interrupção do som produzido pelos saxofonistas de jazz pode ser realizada com ou sem a intervenção da língua. As articulações de ritmos mais longos ou sem diminuição da duração real da nota, tais como o tenuto ( ) e o acento horizontal ( ), são controladas pelo fluxo de ar através do diafragma. Já as articulações mais curtas, tais como o staccato ( ) e o marcato ( ), são interrompidas pela intervenção da língua na palheta.

O fraseado resultante desta variedade de articulações é conhecido no meio jazzístico como slurred, que literalmente significa “pronunciado sem clareza” ou “enrolado”. Aliadas à realiza-ção rítmica “não-quadrada” do swing, estas articulações imprimem um sotaque de “fala” com fonemas e sílabas não completamente inteligíveis, característico do jazz.

As articulações utilizadas por Zé Bodega em Catita resultam de uma combinação de diversas técnicas encontradas tanto no choro quanto no jazz. À articulação mais comum do legato, ele intercala acentos do tipo marcato e staccato, este último muito característico nas anacruses do choro (Ex.32). Zé Bodega inclui tanto a articulação de língua (veja no Ex.36 mais à frente) quanto a articulação de sopro (Ex.33) e, esporadicamente, a articulação de meia-língua (Ex.34).

Ex.32 – Articulação staccato por Zé Bodega na gravação de Catita.

Ex.33 - Articulação de sopro por Zé Bodega na gravação de Catita.

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Ex.34 – Articulação de meia-língua (du-n du) por Zé Bodega na gravação de Catita.

Quanto à interrupção do som, Zé Bodega emprega as duas maneiras anteriormente citadas: a interrupção do som por meio do controle do diafragma (Ex.35) e a interrupção por meio da língua (Ex.36).

Ex.35 - Interrupção do som pelo controle do diafragma no solo de Zé Bodega em Catita.

Ex.36 - Interrupção do som com intervenção da língua no solo de Zé Bodega em Catita.

Na interpretação de Zé Bodega, pode-se notar a alternância entre os estilos de articulação, ha-vendo passagens melódicas próprias da interpretação no choro, e outras que fazem referência ao jazz. Muitas vezes, estas articulações ocorrem dentro de uma mesma frase. O Ex.37 mostra esta imbricação dos dois estilos, em que a articulação de sopro e a articulação de meia-língua se referem à prática do jazz, enquanto que a articulação de língua grafada com tenuto (com a sílaba tu) se refere à articulação do choro.

Ex.37 - Imbricação de articulações típicas do choro (de língua com tenuto) e do jazz (de sopro, de meia-língua) no solo de Zé Bodega em Catita.

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A técnica convencional na performance do saxofone, especialmente no meio erudito, prescreve que se mantenha a mesma embocadura em toda a extensão do instrumento. No entanto, é comum notar, em um grande número de saxofonistas populares, que a embocadura é alterada para cada uma das regiões do instrumento, apesar das limitações e irregularidades na produ-ção sonora que esta prática possa vir a causar, como a tendência de uma afinação alta nos registros agudos, e de uma afinação baixa nos registros graves.

No registro agudo, o saxofonista popular tende a apertar a boquilha com a boca, quase que a mor-dendo, muito em função do “mito” de que as notas do registro agudo são mais facilmente emitidas se o instrumentista assim o fizer. Na verdade, a difícil emissão de notas no registro mais agudo depende de outros fatores como a espessura da palheta e seu tipo de corte, além da qualidade e ajuste do instrumento que, modificados, podem resolver facilmente esta dificuldade.

Já no registro grave e médio-grave, é muito comum o subtone, técnica típica do meio jazzístico na qual o saxofonista relaxa o queixo e desloca o maxilar um pouco para trás da posição normal da embocadura. A sonoridade resultante torna a região grave do instrumento mais “aveludada” e com maior flexibilidade para variar as baixas dinâmicas, tornando mais fácil a progressão do pianissimo ao mezzo-piano. Outra característica do efeito subtone é a mistura do som real do instrumento com um pouco de ar, resultando em um timbre soproso. Este recurso foi muito difundido principalmente pelos saxofonistas de jazz, ligados ao estilo cool5 ou pelos instrumen-tistas que integravam as big bands e que geralmente tocavam, além do saxofone, a flauta e o clarinete, instrumentos nos quais a aplicação do subtone também é possível (DELAMONT, 1965).

A forte influência das big bands americanas e de seus saxofonistas na música brasileira po-pularizou as técnicas do saxofone popular (e de outros instrumentos) nos diversos gêneros, inclusive no choro. Ainda que pontual, pode-se reconhecer a utilização do subtone como um recurso interpretativo por Zé Bodega em Catita. Aparentemente, a embocadura mais frouxa na região grave do instrumento serviu para ele evidenciar as notas mortas na exposição do tema (Ex.38) e na sua re-exposição.

Ex.38 – Utilização do subtone (seguido de vibrato cool) por Zé Bodega na exposição do tema de Catita.

5 O estilo cool não corresponde exatamente a um período dentro da história do jazz, mas sim a um modo de interpretar o repertório jazzístico de forma suave ou abrandada.

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6 - Zé Bodega e os estilos de Coleman hawkins e Lester Young A utilização do saxofone tenor dentro do universo do jazz é normalmente associada a dois estilos difundidos a partir da década de 1930 pelos saxofonistas norte-americanos Coleman Hawkins (1904-1969) e Lester Young (1909-1959), que estabeleceram diferentes padrões es-téticos para a aplicação de vários paradigmas da interpretação jazzística, como sonoridade, ornamentação, vibrato e fraseado.6

Com uma sonoridade mais densa e cheia, o tenorista Coleman Hawkins é conhecido por ter estabelecido a ligação entre o jazz clássico, ou pré-moderno (que vai da década de 1920 ao final da década de 1930) e o jazz moderno (do início da década de 1940 aos dias atuais). Os fraseados de Hawkins costumavam ser intrincados harmonicamente, com uma grande quanti-dade de figuras rítmicas de menor duração (como colcheias e semicolcheias). Com freqüência, utilizava ornamentações como o trinado e o pitch bend. É também notória a presença do sub-tone na região grave do seu saxofone, normalmente associado a um vibrato intenso em notas de maior duração (como colcheias pontuadas, semínimas e mínimas).

Lester Young, por outro lado, apresentava uma sonoridade mais leve e menos cheia do que a de Hawkins, com um fraseado mais melódico e menos rítmico. Suas grandes frases eram mais simples tanto harmonicamente quanto em relação aos ornamentos. Young também utili-zava o subtone, mas de maneira mais discreta e com um vibrato mais contido, no estilo cool. Em linhas gerais, enquanto Hawkins buscava uma sonoridade menos polida, mais vibrante e agressiva, próxima da família dos metais, Lester Young tendia para um universo mais doce, leve e misterioso, mais próximo da família das madeiras.7

Aparentemente, o saxofonista pernambucano Zé Bodega foi influenciado por esses dois esti-los. Se, do ponto de vista da sonoridade, Zé Bodega desenvolveu um som mais aberto, cheio e áspero, mais associado a Coleman Hawkins, por outro lado, outras de suas características, como o vibrato mais lento, a clareza e simplicidade harmônica e de ornamentação estão mais próximas de Lester Young.

7. ConclusãoEste estudo mostra que o choro não é um gênero estanque, mas passível de influências, ainda que advindas de uma cultura externa ao Brasil. O choro, tido como um gênero genuinamente brasileiro e que reflete um amálgama de procedimentos para se tocar um determinado repertório, apresenta, desde o seu surgimento, a tradição de se reinventar, buscando inspiração em tradi-ções musicais estrangeiras. Isto ocorreu tanto no início, com os primeiros chorões, lançando mão de elementos da música européia (valsas, mazurcas e polcas), como também posteriormente, com novas referências do jazz vindas da América do Norte. A hibridação entre o choro e o jazz constatada em Catita faz parte de um longo processo histórico, no qual novos “sotaques” são incorporados à fala cada vez mais rica das novas gerações de músicos do choro.

6 Os autores agradecem Rafael dos Santos (Unicamp) por sua valiosa contribuição sobre a possível influência de Coleman Hawkins e Lester Young sobre os saxofonistas brasileiros.

7 O saxofone é considerado um instrumento da família das madeiras pela sua produção de som, mas dispondo de recursos de dinâmica e possibilidades tímbricas da família dos metais.

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A identificação e análise dos elementos musicais no choro Catita evidenciam uma forte influência de elementos do jazz, tanto na composição de K-Ximbinho, representada pela leadsheet, quanto na interpretação do saxofonista Zé Bodega, representada pela gravação desta música no disco Saudades de um clarinete. Estes elementos evidenciam-se em níveis diversos: aspectos for-mais, melódicos e rítmicos, harmonia, condução dos baixos, efeitos expressivos, embocadura, tipos de articulação e influência estilística de outros instrumentistas. A presença concomitante de elementos característicos destes dois gêneros não descaracteriza Catita enquanto choro, mas aponta para um fazer musical comum na música instrumental brasileira, tanto no nível composicional quanto no nível da performance, que é a hibridação de gêneros populares.

Esta constatação também reforça a idéia de que, diferentemente do que ocorre na música erudita, a música popular permite uma aproximação muito maior entre o processo criativo e o processo de interpretação, diminuindo a distância entre o compositor e o performer. O texto notado em forma de leadsheet (ou partitura) pelo compositor popular prevê e deixa espaços que só serão preenchidos pelas singularidades, cultura e desejos musicais do intérprete, ao mesmo tempo em que as suas práticas de performance, intrínsecas ao processo de transmissão oral do conhecimento musical nos gêneros populares, inspiram a escrita de seus compositores. Catita reflete e sintetiza este quadro, que se repete em muitos outros exemplos do repertório popular, em que as barreiras entre as searas da composição e da perfomance tornam-se muito tênues. A liberdade com que o compositor K-Ximbinho - ele próprio um multi-instrumentista - e o intérprete Zé Bodega - ele próprio um “compositor” como improvisa – transitam entre a música como “tinta no papel” e a música como“ondas sonoras no ar” são exemplares e fazem oposição ao territorialismo em música.

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Bernardo Vescovi Fabris é Mestre em Música (sob a orientação de Fausto Borém) e Bacha-rel em Saxofone (sob a orientação de Dílson Florêncio) pela Escola de Música da UFMG e Licenciado em Música pela UDESC. Estudou música popular com Márcio Montarroyos, Paulo Sérgio Santos, Toninho Horta, Itiberê Zwarg, Vinícius Dorin e Proveta. Participou de diversos festivais de jazz, gravação de diversos CDs, foi monitor da Banda Sinfônica da UFMG e tocou com Celso Moreira, Márcio Montarroyos e Juarez Moreira. Ministra aulas de saxofone e toca nos grupos de samba Tranca Rua e de jazz Kintawt.

Fausto Borém é Professor de Contrabaixo, Música de Câmara, Pesquisa em Música e Práticas de Performance na UFMG, onde criou o Mestrado em Música e a Revista Per Musi. Organizou o I Seminário Nacional de Pesquisa em Performance Musical (1999), o IV Encontro Interna-cional de Contrabaixistas (1996), o II Concurso Nacional de Composição para Contrabaixo (1996) e o IV Concurso Internacional de Composição para Contrabaixo (2005). Coordenou o Projeto Artista Visitante da UFMG com a Oficina UAKTI (1994) e a Oficina de Luteria para a Construção de Contrabaixos para Crianças (2002). Desde 1993, tem representado o Brasil nos principais eventos nacionais e internacionais do contrabaixo. Recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior como solista e teórico. Publicou um livro, capítulos de livros e dezenas de artigos em importantes periódicos nacionais e internacionais nas áreas de performance, análise, musicologia, etnomusicologia (música popular) e comportamento motor. Sua obra Uma Didática da Invenção foi premiada com o 3º Lugar no III Concurso Nacional de Compo-sição para Contrabaixo, publicada no livro de partituras Música Brasileira para Contrabaixo e apresentada na 16ª Bienal da Música Brasileira Contemporânea (2005). Na música popular, já acompanhou Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Tavinho Moura, grupo Uakti, Roberto Corrêa e Túlio Mourão.

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Recebido em: 09/02/2006 - Aprovado em: 24/06/2006

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O regente moderno e a construção da sonoridade coral: interpretação e técnica vocal

Angelo José Fernandes (UNICAMP)[email protected]

Adriana Giarola Kayama (UNICAMP)[email protected]

Eduardo Augusto Östergren (UNICAMP)[email protected]

Resumo: Este artigo é uma reflexão sobre a tarefa do regente coral atual em suas funções de intérprete, executante e preparador vocal. Considerando o fato de que o regente é, em geral, o único profissional da área de música de um grupo coral, este trabalho analisa seu papel como intérprete e aponta os elementos necessários para a formação dos cantores corais quanto às questões histórico-estilísticas e seu preparo técnico-vocal como ferramentas fundamentais para a performance coral. O artigo ainda aborda a importância da sonoridade na execução da música coral, sua adequação aos vários estilos e propõe alguns caminhos para a construção do coro como um verdadeiro instrumento coral. Palavras-chave: música coral, regência coral, sonoridade coral, interpretação musical, técnica vocal.

The modern conductor and the choral tone: interpretation and vocal techniqueabstract: This article is a reflection on the tasks of the choral conductor in his/her activities as an interpreter, performer and vocal coach. Considering the fact that the conductor is usually the only professional musician in a choral group, this paper analyzes the conductor’s function as an interpreter and points out the several elements that are necessary for the singers’ understanding of the history of music and related styles, including the knowledge of vocal technique, as a fundamental tool in choral performance. The relevance of sonority is also discussed regarding the performance of the choral repertoire and its adaptation to the various choral styles. Lastly, this article suggests steps for the building of a choir as a true choral instrument.Keywords: choral music, choral conducting, choral tone, musical interpretation, vocal technique.

1- introdução:As últimas três décadas testemunharam um enorme crescimento da prática coral, tornando o canto-coral amador uma das atividades musicais mais comuns em inúmeros países. De natureza comunitária, a música coral tem proporcionado, de forma muito acessível, uma realização artística pessoal a um grande número de pessoas1 , pois, para satisfazer a experiência coral não é necessário, como pré-requisito essencial, um estudo profundo e extenso por parte dos cantores.

Observa-se que, em função de sua natureza, a atividade coral tem a diversidade como uma de suas principais características. As denominações corais são as mais variadas. Os objetivos, funções e interesses dos inúmeros grupos corais são bastante heterogêneos. O nível técnico

Recebido em: 09/02/2006 - Aprovado em: 24/06/2006

1 Em seu artigo “Choral Tone”, publicado em 1993 no livro Up Front! Becoming the Complete Choral Conductor, Brandvik citou que “um recente levantamento havia revelado que existia cerca de 15.000.000 de cantores corais em todo o mundo” (GRAU, 1992 apud BRANDVIK, 1993, p. 149).

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e artístico dos coros também varia em grande escala. Evidentemente, tal diversidade atinge também o repertório. Existem coros que se dedicam a um único estilo de música coral, mas em geral, a maioria dos coros trabalha com repertórios de estilos diferentes, da música renascentista aos arranjos de música popular e folclórica.

Um dos poucos pontos comuns entre os grupos corais de natureza amadora é o fato de que o regente é o único profissional do grupo. Mesmo na atividade coral profissional, ele é a figura central de todo o processo interpretativo das obras do repertório de seu grupo. Embora o regente tenha que assumir uma série de outras funções, como as de pedagogo e preparador vocal, o foco de seu trabalho é, normalmente, a performance, através da qual ele exerce seus papéis de intérprete e executante.

2 - Uma breve reflexão: o intérprete e sua função:Com os olhos focados nas questões histórico-interpretativas, pode-se dizer que “a arte da música está exposta a uma dificuldade não presente em outros meios artísticos (exceto em algumas formas literárias): ela requer os serviços de um executante” (NEWTON, 1984, p.1). E, embora a prática da música histórica se mantenha presente na vida do homem moderno, há sérias dificuldades encontradas por seus executantes, pois sendo a música uma arte temporal, a performance de uma obra musical exige sua re-criação. Assim, a performance depende “de um conjunto de símbolos visuais que transmitem as intenções do compositor ao seu intérprete e, através deste, ao ouvinte ou espectador” (DART, 2000, p.3). Tendo em vista a natureza da arte musical e a participação desses três agentes na interpretação musical – compositor, exe-cutante e público – HOWERTON (1956, p.81) afirma que:

“Toda a arte da interpretação consiste essencialmente na re-criação da idéia do compositor e na sua transmissão para o ouvinte, de acordo com a percepção do executante de seu significado interior. Assim, a interpretação depende do entendimento que o executante tem da intenção do compositor, de sua compreensão sobre as implicações básicas da obra e de sua habilidade em transmitir essas mensagens ao ouvinte. Sua prática em traduzir a idéia do compositor com suas atitudes define sua habilidade como um artista interpretativo.” [todas as traduções são dos próprios autores do presente artigo]

Para NEWTON, “o relacionamento entre compositor e executante de um lado e entre executante e público de outro é complexo e fascinante.” A partir de uma análise histórica, ele conclui que a prática dos diferentes estilos de música varia nas diferentes culturas. Assim, em alguns tipos de música o papel do intérprete tem certo destaque se comparado ao papel do compositor. Por outro lado, existem estilos musicais nos quais o intérprete não tem a menor liberdade de interpretação: “ele é meramente um executante de um texto controlado rigidamente” (NEWTON, 1984, p.1). NEWTON acredita que grande parte da música apresentada nas salas de concerto hoje tende a limitar a interpretação e que a chave do sucesso é a empatia e “a habilidade da imaginação em projetar sua própria consciência [intérprete] para outro ser (compositor) é o coração e a alma do estilo e da interpretação” (NEWTON, 1984, p.2).

HARNONCOURT (1998, p.28) diz que a música histórica é uma “língua estrangeira” para o intérprete atual. Para ele a mensagem particular que ela traz em si “é ligada à (sua) época e não pode ser reencontrada, a não ser que se tente um tipo de tradução para os dias atuais.” PACHECO (2004, p.7) completa afirmando que:

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“Um intérprete moderno, se está preocupado com autenticidade, deve partir sempre para um processo de tradução baseado em pesquisa histórica que não deve ser um instrumento repressor, ou um fim em si mesmo, mas o gatilho para uma interpretação verdadeira, viva e autêntica. Afinal, cada performance musical é uma nova criação, pois nenhuma interpretação pode ser repetida da mesma forma. Sejamos, então, como um tradutor que não pretendendo ser literal, palavra por palavra, mantendo-se fiel às idéias do texto original, compõe um texto em sua própria língua.”

A partir de um processo de tradução, o intérprete deve, portanto, estabelecer uma comunicação entre obra e público, que sendo o receptor da mensagem musical não pode ser ignorado, bem como seu tempo e seu ambiente. Essa “é a difícil tarefa do intérprete: reduzir as diferenças entre os meios usados pelo compositor e a compreensão da mensagem pelo ouvinte” (NEWTON, 1984, p.5).

No âmbito da música coral, o processo interpretativo é um pouco mais complexo. Antes de comunicar a obra ao público, o regente-intérprete precisa comunicá-la aos seus cantores. Assim, na re-criação da música coral existem quatro agentes essenciais: compositor, regente (intérprete), cantores (executantes) e público. Tanto os cantores quanto o público dependem, pois, das habilidades e da capacidade artística do regente. Para DECKER e KIRK (1988, p.1):

“A regência apresenta oportunidades e desafios musicais para a comunicação. [...] Um solista se preocupa em comunicar suas intenções artísticas e mensagens dos compositores diretamente ao público. Por sua vez, os regentes estão diante de uma grande e árdua tarefa. Eles devem, primeiramente, compartilhar percepções sobre as intenções de um compositor com os músicos que se unem para formar o [seu] instrumento (coro, grupo instrumental, ou ambos). Depois de ensaiar, o regente e o grupo terão como meta comum a comunicação artística com o público.”

3 - a interpretação na música coral: estilo e sonoridade:Sendo a música uma arte temporal, consequentemente uma obra musical “é entendida, de forma mais eficaz, durante o período de tempo dedicado à sua performance [e] sua beleza artística é transmitida através do som” (DECKER e KIRK, 1988, p.1). Pode-se dizer que a sonoridade de uma obra na performance, como resultado do processo interpretativo, é uma forma através da qual o intérprete pode expressar sua visão da obra. A dedicação ao estudo dos aspectos relacionados à sonoridade dos vários estilos de música coral é, pois, um caminho seguro e eficaz para o regente no cumprimento de sua tarefa de “tradutor”.

Não se pode ignorar o fato de que “as notas escritas por um compositor não existem em um vácuo; elas foram concebidas com uma certa sonoridade em mente, e essa sonoridade seria, naturalmente, aquela com a qual ele se familiarizava” (NEWTON, 1984, p.3). “Um compositor do passado concebia suas obras em termos de sonoridades musicais da sua época, como faz um compositor do século XX” (DART, 2000, p.27).

Assim como as formas e os estilos musicais, as sonoridades também mudaram ao longo da história. Portanto, se o regente pretende aprofundar-se na interpretação da música coral histórica, ele terá que enfrentar o desafio de entender como ela soava. Ele precisa, entre outras qualidades, desenvolver uma visão clara sobre os vários estilos e gêneros de música coral.

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A prática da música coral sofreu, ao longo da história, influências temporais, geográficas e próprias da individualidade dos vários compositores. Tais influências se refletem em uma série de aspectos que deveriam ser investigados no processo interpretativo de uma obra: a) em que circunstâncias e para que tipo de público a obra foi escrita; b) as possíveis condições acústicas das salas de concerto bem como o tipo e o tamanho dos grupos vocais e instrumentais para os quais a obra foi composta; c) o sistema e o padrão local de afinação; d) a “cor” ou qualidade sonora das vozes e dos instrumentos; e) as variações de métrica, fraseado, articulação e dinâmica; f) o significado do texto e as formas regionais de pronúncia deste texto. Direta ou indiretamente, todos esses aspectos exercem alguma influência sobre o resultado sonoro de uma obra na performance. Assim, a fim de desenvolver um trabalho coerente com questões estilísticas através da sonoridade, o regente precisa dar atenção à forma como esta se relaciona com cada um dos citados elementos.

Contudo, “o músico que se dedica à questão da sonoridade e lhe concede um papel importante no contexto da interpretação vê surgir automaticamente problemas referentes aos critérios históricos” (HARNONCOURT, 1998, p.86). Reunir evidências extremamente convincentes sobre sonoridades e práticas interpretativas, antes da invenção das gravações, é algo evidentemente difícil. Há, entretanto, uma grande quantidade de indicações e evidências que podem orientar o regente a respeito da prática vocal em séculos passados. NEWTON (1984, p.9) diz que:

“Elas podem ser encontradas nos vários livros de instrução escritos pelos grandes professores de canto. Elas podem também ser encontradas nas descrições do canto de perspicazes comentadores como Berlioz e Chorley no século XIX e Burney no século XVIII. Outras evidências importantes podem ser encontradas no estudo dos instrumentos usados na prática musical, particularmente aqueles que acompanhavam a voz. Eles prosperariam ou então cairiam em desuso, ou eles seriam modificados para satisfazer as mudanças de gosto. Especialmente nos tempos mais antigos, um dos objetivos declarados da criação de instrumentos, seja de sopro ou de cordas, era imitar a voz humana.”

Buscar respostas através de evidências sobre a performance coral em épocas e culturas diversas, é uma atitude que pode dar grande dimensão ao processo interpretativo. Com base em um conhecimento estilístico sólido, construído a partir de fontes seguras de pesquisa, o regente poderá desenvolver um trabalho de exploração de sonoridades vocais diversas, apropriadas ao estilo das obras do repertório de seu grupo coral. SWAN (1988, p.9) ressalta que:

“O regente que é familiarizado com o desenvolvimento histórico da música entende que elementos interpretativos mudam radicalmente a cada período de composição e para todo compositor e suas composições. Idealmente falando, o som do coro também deveria mudar com as idéias interpretativas se uma performance é fiel às exigências da música.”

4 - interpretação e técnica: em busca de sonoridades adequadas:Independentemente de seu valor artístico, tempo histórico e estilo, uma composição coral é uma proposta do compositor na qual, a partir de um texto, ele propõe o ritmo, o andamento, as diferentes freqüências das vozes, a dinâmica e a expressão. Sua execução vai depender da realização correta da afinação, da articulação inteligível do texto, além das qualidades técnico-vocais do coro, administradas pela competência do regente que deve moldar sua visão da obra expressando-a através da sonoridade resultante deste processo. HEFFERNAN (1982, p.111) afirma que:

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“A performance musical é dependente tanto da técnica como da capacidade artística do executante. Da mesma forma que o regente ensinou aos membros de um coro as técnicas de produção vocal e canto em conjunto, assim [também] ele deve oferecer-lhes orientação no desenvolvimento de sua sensibilidade à realização artística. Neste nível do fazer musical, o regente está lidando quase que exclusivamente com elementos sutis. Uma característica distintiva da realização artística é o refinamento, a sensibilidade para mudanças pouco perceptíveis na sonoridade, ritmo e dinâmicas. O regente deve ser uma pessoa sensível e estar apto a transmitir tais refinamentos para os cantores.”

Conseguir uma sonoridade adequada e única no processo de interpretação de uma obra coral vai exigir do regente e dos cantores um domínio e uma flexibilidade vocais capazes de possibilitar a melhor emissão, um bom entendimento do texto a ser executado, além do conhecimento sobre práticas interpretativas. Com conhecimento da pedagogia vocal, os regentes podem trabalhar efetivamente nos ensaios para desenvolver nos cantores uma maior habilidade vocal. A técnica vocal pode proporcionar uma maior qualidade sonora e uma melhor afinação. É possível se direcionar o trabalho técnico de forma aplicada à interpretação estilística de repertórios corais diversificados. De forma eficaz e saudável, o cantor pode: aprender a variar a sonoridade de sua voz em todos os registros, atingindo grande quantidade de “cores sonoras”; desenvolver um amplo espectro de dinâmicas; e adquirir a habilidade de executar passagens melismáticas com grande agilidade e leveza. O resultado sonoro de um coro depende da forma como seus cantores produzem seu próprio som. Não se pode ignorar a grande variedade de sons vocais usados na performance dos mais variados estilos de música. NEWTON (1984, p.5) diz que “existe um amplo espectro de sons que podem ser produzidos pelas pregas vocais para realizar os mais diferentes tipos de música, considerando-se o mundo inteiro e sua variedade cultural.” Como a prática coral atual tende a abranger grande diversidade de estilos de música erudita e popular, é importante formar coros conscientes e capazes de produzir sonoridades variadas.

Em sua abordagem sobre prioridades no treinamento de coros de todos os níveis, CARRINGTON (2003. p.29) aconselha ao regente, em sua função de preparador vocal, que:

“Independente do nível inicial do coro, decida sobre um som coral ideal e trabalhe para desenvolvê-lo. Por exemplo, um som limpo, saudável, alto, com uma variedade de cores, do brilhante ao escuro, do frio ao caloroso, do forte ao suave. Um som flexível, mas com intensidade constante, e um vibrato controlado, que pode variar sem esforço e rapidamente desde nenhum até um vibrato moderado – assim como o vibrato de um excelente instrumentista de corda.”

A abordagem de CARRINGTON é bastante apropriada para regentes que buscam uma maior autenticidade na performance. Entretanto, há autores que, mesmo compartilhando deste ideal, acreditam que tal meta, principalmente com cantores amadores, é impossível de ser atingida ou implicaria em um trabalho muito árduo para o regente e seus cantores. SWAN (1988, p.10) questiona:

“Se o som pode ser mudado à vontade, por que é que um coro regido pela mesma pessoa produz o que em essência é um som idêntico independente da seleção cantada? Nas mãos de um artista algumas mudanças interpretativas são imediatamente perceptíveis; não é necessário que Brahms soe exatamente o mesmo que Palestrina. Entretanto, com cantores amadores é impossível obter uma ampla faixa de variação sonora na medida em que o coro muda de uma peça a outra.”

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HEFFERNAN (1982, p.86) também argumenta:

“De maneira alguma eu defendo [a idéia de se] instruir um coro para cantar sempre com o mesmo som. Apesar de todos esses grupos famosos que são admirados por seu som claro ou escuro, a abordagem de uma sonoridade única é essencialmente errada. A menos que o coro cante apenas [obras] de um determinado período da literatura musical, a escolha de uma sonoridade única será inapropriada para pelo menos metade do repertório que está sendo executado. É verdade, entretanto, que trabalhar um grupo que possa variar substancialmente seu som de uma composição para outra é uma tarefa muito difícil. Isso quase não pode ser feito com coros de vozes jovens. Mudanças significativas podem ser obtidas apenas com um desenvolvimento substancial em técnica vocal. Daí a necessidade de se ensinar constantemente produção vocal nos ensaios.”

Certamente, as opiniões variam de regente pra regente, no que diz respeito à adequação da sonoridade em função da diversidade estilística. Tal variação de opiniões reflete, largamente, no trabalho de preparação vocal dos coros. Para ilustrar este fato, PLANK (2004, p.4) observa diferentes opiniões de regentes de coros ingleses a respeito da flexibilidade estilística:

“Sir David Willocks, há poucos anos afastado de seu cargo no King’s College Cambridge, sugeriu a flexibilidade estilística, mas que esta não se estendesse à qualidade sonora: ‘Naturalmente você deve ajustar seu estilo para adaptar ao da música..., mas é difícil e delicado esperar que um coro altere verdadeiramente a qualidade do som que produz.’ Igualmente, Bernard Rose, Informator choristarum no Magdalen College, Oxford, esperava um único som que funcionasse em todos os estilos: ‘Eu acredito que se você concentrar em [um trabalho com] vogais puras e unânimes, este produzirá um som que é apropriado e agradável para todo período da música.’ Trilhando um caminho diferente, Edward Higginbottom do New College, Oxford, buscou refúgio não na estética histórica, mas certamente, na saúde vocal: ‘Eu não tento conseguir um determinado som porque eu acredito que este seja o correto para determinado tipo de música, eu busco um som porque que acredito que seja a forma correta de cantar.”

PHILLIPS (1980; apud PLANK, 2004, p.4) cita, ainda, a opinião de um quarto regente, Barry Rose da Catedral de St. Paul que, defendendo a variação sonora do coro segundo as exigências do estilo, sugere uma realidade diferente em termos de abordagem técnica:

“Os meninos têm dois registros. Nós podemos cantar, em uma mesma cerimônia, o Prevent us O Lord de Byrd e o Hallelujah Chorus, fazendo o segundo soar como o Royal Chorus Society em pleno êxtase, e o outro [primeiro] como um coro lindo e puro. Os meninos simplesmente fazem um som diferente – diferente em timbre, diferente em produção. Para produzir este som duplo eles contraem levemente a garganta para que haja um aumento da aspereza e da intensidade, eles usam suas vozes de peito até seu limite superior; e sabem, através dos meus gestos, qual o som que eu busco.”

Apesar dos posicionamentos contrários, acredita-se firmemente que o trabalho de variação sonora é possível e de grande importância para a performance de repertórios diversificados, já que os diferentes estilos requerem diferentes sonoridades. É evidente que reproduzir exatamente as condições sonoras originais de uma composição coral é uma tarefa bastante pretensiosa. Contudo, HEFFERNAN (1982, p.82) diz que:

“ [...] qualquer coro pode variar seu som até certo grau, freqüentemente em uma escala surpreendente. [...] O fator determinante é a técnica vocal de cada cantor individualmente, [por isso], os regentes devem trabalhar para uma flexibilidade de produção. [...] Até que os membros do coro estejam seguros em sua demonstração de postura, respiração e apoio, e até que eles possam

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cantar sem tensão, com a ressonância adequada, pouco pode ser feito para produzir variações na sonoridade. Por isso é que muitos coros destreinados ou inexperientes são cansativos de ouvir; deficientes de técnica vocal, eles podem produzir pouquíssima variação em seu som. O regente deve ter constantemente em mente a necessidade de uma produção vocal eficaz.”

Ao regente cabe, portanto, a responsabilidade de conduzir o processo interpretativo, no qual ele deve exercer, entre outras funções, seu papel de preparador vocal.

5 - Desenvolvendo o instrumento coral: o regente como “professor de canto”BRANDVIK (1993, p.149) afirma que 95% dos cantores corais de todo mundo, “não estudam canto com um professor particular”, podendo concluir que o preparo vocal desses milhões de cantores corais está nas mãos de seus regentes.

É fato que, para o exercício da sua função de intérprete, o regente precisa ter um coro que responda às exigências estilísticas das obras bem como aos aspectos de sua interpretação. Entretanto, constata-se que mesmo tendo consciência do resultado pretendido nem sempre o regente está apto para alcançá-lo. Preparar vocalmente um grupo de cantores amadores é uma tarefa árdua, que exige do regente, além da atenção às condições técnicas de seu grupo, um bom conhecimento de técnica vocal. Sua relação com a técnica vocal deve ser tão íntima quanto sua relação com a técnica de regência e com o seu conhecimento musical geral. SMITH e SATALOFF (2000, p.9) afirmam que:

“O regente deve reunir um arsenal de ferramentas pedagógicas, inspiração poética, conhecimento histórico e habilidades pessoais para acompanhar os passos de uma natureza de constantes mudanças do coro. É essencial que os regentes corais aprendam a usar bem suas próprias vozes, e por meio disso formem uma estrutura pessoal de referência para assuntos vocais. Postura, qualidade e som da voz, uso da linguagem e o gestual de regência deveriam, cada qual, exemplificar e sugerir bons hábitos vocais.”

O desconhecimento da técnica vocal e da fisiologia da voz humana tende a limitar o regente em suas funções. Além de colocar em risco a saúde vocal de seus cantores, sua função de intérprete pode ficar comprometida pela falta de maiores habilidades vocais por parte do coro. MILLER (1996, p.58) enfatiza que:

“Um som coral completo só pode ser alcançado quando os cantores dentro do grupo usarem suas vozes eficientemente. É dever do regente coral ensinar os coristas como se tornar cantores eficientes, de forma que as exigências musicais a eles impostas os beneficiem e não os prejudiquem, e assim, a qualidade do som do conjunto seja da mais alta condição possível. Aceitando-se a premissa de que música coral é música vocal, as qualificações exigidas de um regente coral devem ser direcionadas. É suficiente ser um bom musicista, ter qualidades de liderança, possuir habilidades como um organista ou pianista, ou ser musicologicamente bem informado? Não é necessário ser um cantor profissional para ser um bom professor de canto, mas é necessário que se alcance um bom nível de proficiência técnica com o seu próprio instrumento. Da mesma forma, não é necessário ao regente coral ser um cantor, mas ele ou ela deveria estar apto a conduzir os coristas a uma proficiência vocal.”

Refletindo sobre a necessidade do desenvolvimento de recursos técnicos por parte dos cantores para a execução de obras corais, SWAN (1988, p.9) completa, afirmando que:

“Se uma composição é cantada corretamente, se as notas estão certas em altura e duração, tal procedimento garante automaticamente um som bonito? Estranhamente essa curiosa

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linha de pensamento rejeita o uso de procedimentos similares por um grupo instrumental, pois todos concordam que alguma habilidade é necessária para se tocar um instrumento. Igualmente, um cantor não precisaria de um considerável conhecimento técnico para usar sua voz adequadamente? Infelizmente, cantar é muito fácil, embora cantar bem seja uma tarefa difícil. Parece sensato acreditar que uma condição especial para ensinar e aprender é essencial para o desenvolvimento de uma sonoridade coral que seja adequada às exigências de qualquer composição musical.”

De fato, assim como os instrumentistas de um grupo precisam desenvolver habilidades técnicas para atingir certo grau de qualidade na performance, os membros de um coro precisam ser orientados sobre a forma como devem cantar:

“Os instrumentistas que tocam numa banda de uma escola do ensino médio ou orquestra geralmente receberam muitos anos de treinamento com um professor particular. Muitos instrumentistas continuam as aulas enquanto participam de grupos. Isso raramente é o caso de um cantor coral. [...] Regentes de corais incluindo os infantis e juvenis carregam uma tremenda responsabilidade por seu futuro [como cantores]. Eles [regentes] precisam ser bem qualificados para promover cantores em formação com instrução competente. Regentes que não estudaram canto com um professor de canto experiente raramente são qualificados para assumir tal responsabilidade.” (DECKER e KIRK, 1988, p.118)

Já que o regente é, em geral, o primeiro e único “professor de canto” dos cantores de seu grupo, é preciso assumir a responsabilidade de instruir o grupo a respeito de técnica vocal, caso se pretenda atingir um alto nível artístico na performance. Entretanto, os regentes ainda estão divididos em seus posicionamentos quanto ao trabalho técnico-vocal. Alguns consideram a técnica vocal sem importância, recusando-se a trabalhá-la. Outros possuem pouca ou nenhuma experiência em canto e, por isso, se sentem desconfortáveis com a responsabilidade de lidar com tais questões. Para muitos, a técnica vocal se limita a simples exercícios de aquecimento, que produzem pouco ou nenhum benefício ao desenvolvimento vocal a longo prazo. Há os que se prendem ao uso de alguns determinados exercícios ou métodos aprendidos em alguma escola de canto, sem discernir se esses contribuirão para o desenvolvimento da sonoridade das vozes. Existem aqueles que, por não planejar seus ensaios e a aplicação da técnica vocal no repertório, utilizam um número exagerado de vocalises aprendidos em cursos diversos, acreditando que conseguirão bons resultados através deste trabalho. Observam-se, ainda, regentes que buscam uma sonoridade única em seu trabalho; por acreditar que os vários estilos devem se adequar a tal sonoridade, executam todas as obras do repertório com um mesmo som.

As divergências em relação ao trabalho sistemático de técnica vocal aplicado ao coro não param por aí. Regentes tendem a concordar que um som vocal eficaz e bonito precisa ser saudável, sem ar, confortavelmente sustentado, cantado na afinação correta, bem articulado e capaz de variar em intensidade. Há, entretanto, diferentes posicionamentos a respeito do uso do vibrato, da importância de se trabalhar os registros vocais e a produção do som das vogais, da diferença entre a voz do cantor lírico solista e do cantor coral2 , entre outros.

2 Não está entre os objetivos deste trabalho entrar no mérito da questão sobre as diferenças entre a produção vocal do cantor lírico solista e do cantor de coro. Tal assunto merece ser tratado num trabalho específico, a parte. Contudo, é importante ressaltar que tais diferenças existem. Para um maior esclarecimento deste tema sugere-se a leitura do sexto capítulo Choral Voice do livro The science of the singing voice de Johan Sundberg.

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Em função da diversidade de escolas de canto, existe um amplo espectro de metodologias para se desenvolver uma técnica vocal eficaz. É importante que o regente determine suas prioridades e trabalhe para alcançá-las. SWAN (1988, p.55) constata que:

“Como um professor de canto, eu estou preocupado com o crescimento vocal de cada indivíduo no coro. Isso inclui o desenvolvimento de sua habilidade em produzir apropriadamente o som e apoiar, controlar e desenvolver a ressonância [deste] som. Ele é incentivado a usar o vibrato e deve aprender a aumentar sua extensão. Como um regente, meu desejo principal é que meu coro aprenda a comunicar com ao público todos os elementos musicais, estéticos e textuais que estão em cada partitura que eles cantam. Todo fundamento de ensaio e de técnica é dedicado a essa proposta. Portanto, eu considero que o som do coro é importante na medida em que pode contribuir com a comunicação. Além disso, de todas as características corais, eu acredito que a ‘cor’ do som é a mais útil como um agente de comunicação.”

Não basta, entretanto, determinar as prioridades. Para alcançá-las é necessário que o regente exerça sua função de preparador vocal e, para tal, é preciso que ele estude canto, conheça sua própria voz e adquira o hábito de utilizar uma terminologia adequada no treinamento de seus cantores. EDWIN (2001, p.54) observa que:

“Nós não deveríamos aceitar a condição atual no tocante ao vocabulário e à técnica. Todos nós [regentes e professores de canto] precisamos examinar [melhor] a terminologia a respeito de apoio, foco, colocação, voz de cabeça e de peito, considerando informações pedagógicas e pesquisas científicas fornecidas por autoridades como Richard Miller, Johan Sundberg, Thomas Cleveland e Robert Thayer Sataloff. A administração pessoal da respiração, a fonação e as técnicas de ressonância devem ser comparadas com essas [encontradas] na literatura de uso comum. Quando as comparações revelarem procedimentos contraditórios, deve-se estar disposto a experimentar, no estúdio ou na sala de aula, as técnicas opostas para determinar se uma é mais eficaz que a outra e, se necessário for, abandonar aquelas que são familiares e confortáveis por aquelas que são mensuravelmente melhores.”

6 - aspectos técnicos da sonoridade coral: a construção do som padrão:Dos vários elementos presentes na performance coral, o som do coro é, em geral, um dos que mais chama a atenção dos apreciadores de tal arte. HEFFERNAN (1982, p.80) observa que:

“A primeira coisa com a qual um público reage num concerto coral, com exceção dos aspectos visuais, é o som produzido pelo coro. A atenção dos ouvintes é imediatamente atraída à qualidade do som que está sendo externado – sua riqueza, maturidade, plenitude e clareza – também, em muitos casos, à falta de alguma dessas características.”

Segundo o ideal de Carrington descrito anteriormente, o regente deve construir “um som básico para o qual o coro possa sempre retornar”. A partir deste som “padrão” o coro aprenderá a variar sua sonoridade adquirindo uma flexibilidade que possibilite a execução adequada de repertórios diversos. A construção de um som padrão tecnicamente eficiente e esteticamente bonito depende de escolhas feitas pelo próprio regente que, assim, poderá demonstrar sua habilidade como preparador vocal. PFAUSTCH (1988, p.91) diz que:

“O som do seu coro será uma exposição da sua habilidade em transmitir seu conhecimento, em aumentar e refinar suas técnicas pedagógicas, em estimular e manter nos seus cantores a dedicação às normas vocais e musicais, em dar forma às nuances silábicas e melódicas, em expandir o conhecimento e proficiência técnica de seu coro e em conduzir o grupo à performance artística.”

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Uma vez que a sonoridade coral depende das escolhas do regente, de que forma, ou, a partir de que elementos, o som de um coro pode ser construído? Que aspectos são relevantes na construção de uma sonoridade coral padrão pretendida?

HEFFERNAN (1982, p.82) afirma que “o som coral é influenciado por algumas áreas claramente definidas: produção vocal, afinação, dinâmica e vogais.” Para SWAN (1988, p.8), não existem dois coros que produzam um som idêntico e a sonoridade de um coro depende, de fato, das escolhas técnicas e musicais feitas pelo próprio regente, além da sua capacidade de aplicá-las no trabalho à frente do coro. Ele ressalta que:

“O tipo ou qualidade de som produzido por um grupo coral é influenciado primeiramente pelos pensamentos e ações do seu regente no que diz respeito: 1. Aos processos básicos do canto: fonação, apoio, ressonância e extensão vocal; 2. Ao grau de ênfase dado a uma ou mais das variadas técnicas corais fundamentais de homogeneidade, precisão rítmica, fraseado, equilíbrio, dinâmica e pronúncia; 3. Às exigências interpretativas e estilísticas da partitura musical; 4. Aos recursos pessoais e técnicos do regente que ele usa para se comunicar com seu coro nos ensaios e nas apresentações.”

A formação do som padrão de um coro depende de uma série de aspectos técnicos. Na performance, este som ainda sofre a influência de aspectos estilísticos. Entre os aspectos técnicos, há os que estão relacionados à individualidade das vozes que formam o coro (produção vocal, registração vocal, dicção, timbre e vibrato) e os que se relacionam diretamente com o canto coletivo (homogeneidade, equilíbrio, entonação em grupo e precisão rítmica). Evidentemente, considerando a natureza da atividade coral, todos esses aspectos devem ser trabalhados coletivamente. Uma vez construída a sonoridade padrão, o regente poderá trabalhar sua variação através dos aspectos estilísticos: flexibilidade timbrística, fraseado, articulação (musical), emprego de dinâmicas e andamento (escolha de tempo).

6.1 - aspectos técnicos individuais:O desenvolvimento da qualidade sonora de um grupo coral começa por um processo de conscientização do cantor a respeito das ferramentas básicas para uma produção vocal adequada. Partindo do princípio de que o regente esteja apto para preparar vocalmente seus cantores e, considerando o fato que ele não teria tempo para dar aulas individuais de canto para todos, é preciso desenvolver um programa de trabalho sistemático para que os cantores aprendam a lidar com as questões técnicas e aplicá-las ao repertório. “Contrastes de dinâmica, homogeneidade e equilíbrio apropriados, afinação e entonação precisas, e fraseado eficaz são todos dependentes de uma produção vocal correta” (GARRETSON, 1988, p.67).

Evidentemente a fisiologia vocal é bastante complexa e merece um estudo aprofundado. De forma generalizada, pode-se dizer que existem essencialmente três áreas da produção vocal, claramente distinguíveis, que devem ser estudadas e constantemente trabalhadas: 1) a administração da respiração; 2) a função laríngea (coordenação eficiente da respiração com a produção do som) aliada à busca do relaxamento do pescoço, mandíbula e músculos faciais; 3) o desenvolvimento e exploração da ressonância vocal. Neste processo o regente deve, ainda, considerar fatores como a postura apropriada para o canto, o aquecimento corporal e vocal, a função e o valor dos vocalises e buscar meios de trabalhar a registração vocal, a extensão vocal, os timbres e a flexibilidade vocal.

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Saber lidar com a questão da registração vocal também é de grande importância para o regente. A voz humana possui três registros: a voz de peito (registro grave), a voz mista ou média (registro médio) e a voz de cabeça (registro agudo). A transição da voz de peito para a voz mista é chamada de primo passagio3 e a transição da voz mista para a voz de cabeça é chamada de secondo passagio4 . Cada registro vocal tem sua própria “cor sonora”, seu peso e suas características. Para que o cantor possa executar repertórios diversos de forma expressiva, as qualidades específicas de cada registro precisam ser desenvolvidas. Além disso, a ampliação da extensão vocal só é possível através do domínio dos registros.

A difícil tarefa do regente é a de entender os registros e orientar seus cantores a respeito de cada um, a fim de conseguir uma maior igualdade entre eles e desenvolver em todo o coro a habilidade de “transitar” de um registro para outro sem que haja perda da qualidade sonora. “O bom cantor deve aprender a lidar com a passagem de modo que ela se torne imperceptível, como se, ao passar de um registro para o outro, tivéssemos a impressão que fosse um registro único” (COSTA e SILVA, 1998, p.84).

Na música vocal, seja ela coral ou não, o trabalho para se alcançar uma boa dicção é outro ponto fundamental. Regentes e cantores tendem a concordar que o trabalho de dicção é essencial para o sucesso de um grupo coral porque a dicção permite: uma enunciação clara capaz de proporcionar o melhor entendimento do texto; a uniformidade sonora das vogais, essencial para uma afinação refinada e para a maior homogeneidade sonora; a uniformidade de articulação consonantal, essencial para a uniformidade rítmica; e a flexibilidade dos lábios, da língua e da garganta, permitindo uma produção vocal eficiente e saudável.

Um bom começo para se atingir uma dicção coral precisa é a produção correta dos sons vocálicos. “Os membros do coro devem se tornar conscientes a respeito dos sons das vogais puras. A falta desta consciência é a base para muitos erros no canto e para a dicção pobre” (HEFFERNAN, 1982, p.94). MOORE (1999, p.51) observa que:

“O ponto de refinamento da qualidade vocal e de unificação sonora do canto grupal está na formação das vogais. Ela determina a qualidade e a maturidade do som e constitui o fator primário na precisão e controle da afinação, além de abrir o caminho para que um grande número de cantores possa cantar como uma só voz. [...] Será necessário que o coro identifique e conheça a formação das vogais básicas.”

Ao regente compete o intenso trabalho de ensinar aos cantores a produção adequada dos sons vocálicos. Para MILLER (1996, p.61), muitos dos problemas de afinação nos grupos corais são conseqüência da inabilidade dos cantores em diferenciar claramente as vogais. O autor incentiva o regente a aplicar exercícios de diferenciação das vogais para que seus cantores adquiram maior domínio sobre sua produção:

“Um pequeno número de exercícios de diferenciação das vogais, executados individualmente ou em grupos, primeiro lentamente, e depois rapidamente, traz uma conscientização sobre como as vogais podem ser mudadas sem perda da consistência necessária para se produzir

3 Lit: “primeira passagem”. 4 Lit: “segunda passagem”.

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um timbre vocal rico em ressonância. Essa consistência do timbre pode ser mantida somente se o trato ressoador é permitido a assumir formas que ‘rastreiem’ a vogal gerada na laringe. É essa habilidade de mudar os contornos do trato ressoador que permitem que o timbre vocal permaneça constante quando as vogais são diferenciadas.”

Conscientes da produção vocálica, os cantores devem desenvolver a habilidade de articulação das várias consoantes. No discurso musical, a clareza das consoantes é essencial para a comunicação do texto. Se a “pureza” das vogais é básica para a produção de um som esteticamente bonito, a precisão rítmica e o significado do texto dependem de uma produção consonantal eficaz.

Dos vários aspectos que formam a qualidade sonora de uma voz e, conseqüentemente, de um coro, o timbre é o mais determinante. SMITH e SATALOFF (2000, p.140) afirmam que “o timbre vocal pode ser considerado como o aspecto fundamental do som.” Além disso, para o trabalho de flexibilidade sonora a variação timbrística é de grande relevância.

A fim de buscar maiores esclarecimentos sobre o timbre vocal é de grande valor, não só para cantores, mas também para regentes, recorrer ao tratado de canto de Manuel P. R. Garcia5 . Embora tenha sido escrito em meados do século XIX, este tratado tem grande importância por trazer, pela primeira vez na história, a descrição científica de aspectos da produção sonora e do estudo do canto que, até então pertenciam ao terreno do empirismo. Em especial, as informações sobre timbre têm uma importância histórica, uma vez que neste período a sonoridade vocal passava por uma grande transformação6 .

Segundo este autor, timbre é o conjunto de “características próprias e infinitamente variáveis que podem tomar cada registro e cada som, sem considerar a intensidade” (GARCIA, 1985, p.8). Em seu tratado ele aborda a existência de diferentes timbres vocais, ressaltando que “a variedade dos timbres resulta, inicialmente, dos diferentes sistemas de vibração da laringe e, em seguida, das modificações que a faringe imprime a esses sons produzidos” (GARCIA, 1985, 1ª Parte, p.8). Ele ainda afirma que “as modificações de timbre se produzem todas por dois meios opostos, podendo, em última análise, se reduzir a dois principais: o timbre claro e o timbre escuro” (GARCIA, 1985, 1ª Parte, p.9). Segundo PACHECO (2004, p.94), ao tratar de tal tema, o autor “não toma partido de um tipo específico de timbre, explicando e aconselhando o uso de ambos.”

5 GARCIA, M. Traité complet sur l’art du chant. Parte I, 1841; Parte II, 1847. Paris: Minkoff, 1985. 6 Evidentemente a pesquisa sobre timbre vocal evoluiu muito, desde que Garcia publicou seu tratado. Contudo,

por abordar a diferença entre timbre claro e escuro numa perspectiva histórica, consideramos este trabalho fundamental para a prática do regente preocupado com a variação sonora de seu coro. Convém ressaltar que, para um maior entendimento dos timbres vocais, é também importante o estudo sobre os formantes vocais e o formante do cantor. Uma vez que tal assunto merece um trabalho específico e mais detalhado, não é nossa intenção abordá-lo no âmbito deste artigo. Para maiores esclarecimentos acerca deste tema sugerimos a leitura do segundo capítulo The Voice Organ do livro The science of the singing voice de Johan Sundberg, e/ou do quarto capítulo The ressonant voice: supraglottic considerations in singing do livro The structure of singing de Richard Miller.

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No tocante à sonoridade coral, pode-se afirmar que, por um lado, o timbre claro dá muito brilho às vozes e ao som do coro como um todo, tem grande poder de alcance, é objetivo e excelente para a afinação e, por outro, dificulta a homogeneidade e pode tornar o som áspero em algumas circunstâncias. Por sua vez, o timbre escuro facilita a homogeneidade e proporciona um som arredondado e velado, entretanto, dificulta a afinação7 e a transparência das várias linhas vocais.

Por fim, não se pode deixar de abordar um dos mais polêmicos aspectos referentes à sonoridade coral: o uso do vibrato. Embora não se deva generalizar, há uma tendência atual entre regentes de se abolir por completo o uso do vibrato. O que se geralmente alega é que o vibrato tira a “pureza” das vozes e dificulta a homogeneidade.

Tal posição deve, entretanto, ser tomada diante de um estudo histórico-estilístico. Se por um lado o vibrato não é adequado para alguns estilos de música vocal, por outro ele se tornou um recurso praticamente essencial para a execução de outros estilos (no Barroco, por exemplo, o vibrato era utilizado como um ornamento em notas longas). Assim, o regente, diante de suas escolhas, deverá discernir sobre o uso deste recurso que, de forma natural e controlada, pode acrescentar muito à sonoridade coral na interpretação de alguns estilos.

MILLER acredita que a unificação vocálica garante a homogeneidade do coro e que vozes com vibrato podem ser equilibradas pelo regente. Ressaltando a diferença entre o vibrato natural e outras oscilações como o trêmolo, o autor expõe sua opinião afirmando que:

“Um vibrato uniforme, resultado da função relaxada da laringe, é uma característica inerente do som vocal livremente produzido. Não deveria ser solicitado aos cantores corais retirar a vibração de suas vozes na expectativa de torná-las homogêneas com vozes sem vibrato. Preferencialmente, o regente deveria auxiliar os amadores sem vibrato, por meio de exercícios de ataque e agilidade a acrescentar a vibração natural do canto ajustado. Vozes com vibrato produzidas apropriadamente podem ser equilibradas mais facilmente do que vozes sem vibrato. Naturalmente, se as vozes de um grupo sofrem de oscilação (variação de afinação muito ampla e muito lenta), ou de um trêmolo, [tais] vozes não equilibrarão. Um trabalho técnico adicional particular com tais cantores pode ser necessário.” (MILLER, 1996, p.63, tradução nossa)

É importante enfatizar que o vibrato é um fenômeno natural da voz. BRANDVIK (1993, p.167) afirma que “Quando uma pessoa canta livremente com todos os pequenos e grandes músculos do corpo trabalhando juntos para produzir um som musical saudável, enérgico e livre, a voz vai produzir uma pulsação leve e regular chamada vibrato”. Assim, o vibrato deve ser desenvolvido pelos cantores e usado como uma ferramenta de expressão. Tal uso é variável no canto-coral. Cabe ao regente decidir e orientar seus cantores sobre o quanto e quando o vibrato é apropriado. Como uma orientação para seu discernimento a respeito do uso do vibrato, o regente pode considerar os seguintes pontos abordados por este autor:

7 O timbre claro ajuda na afinação do coro porque, ao contrário do timbre escuro, ele proporciona aos vários cantores do coro uma maior facilidade de escuta dos harmônicos agudos das vozes.

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“1. O vibrato deve variar com as dinâmicas: quanto maior o volume, maior o vibrato; de modo inverso, quando menos volume, menos vibrato; 2. O vibrato deve variar com a textura da música: quanto mais densa a textura menos vibrato (para possibilitar que a harmonia seja ouvida mais claramente); opostamente, quanto menos densa a textura, mais generoso o vibrato; 3. O vibrato deve ser relacionado ao período ou estilo da música que estiver sendo cantada. A música renascentista com suas linhas claras, texturas esparsas e harmonias abertas requer um controle criterioso do vibrato. A música romântica com harmonias vibrantes e expressões sonoras cheias geralmente permite um vibrato rico e encorpado.” (BRANDVIK, 1993, p.167).

6.2 - aspectos técnicos coletivos:Paralelamente ao desenvolvimento da qualidade vocal individual dos cantores, o regente precisa estar atento à qualidade sonora do coro como um todo. Os aspectos técnicos coletivos dependem dos individuais. O regente só alcançará bons êxitos com a sonoridade coletiva do coro, na medida em que os cantores desenvolverem individualmente uma técnica vocal eficaz e consciente.

A homogeneidade é um dos mais importantes aspectos coletivos da sonoridade do coral e, por isso, precisa ser trabalhada incansavelmente pelo regente nos ensaios. A busca por alcançá-la entre os naipes e no coro como um todo é uma constante no trabalho de muitos regentes. SWAN chega a afirmar que “a homogeneidade é possivelmente a técnica coral mais necessária e importante; não dá para imaginar um belo grupo vocal sem homogeneidade” (SWAN, 1998, p.60). Como, em geral, nos coros amadores há uma grande heterogeneidade entre as características vocais de seus cantores, o regente deve aprender a lidar com essa “matéria prima” e trabalhá-la segundo suas intenções. PFAUSTCH (1988, p.103) diz que:

“Algumas vozes são fortes enquanto outras são leves; algumas são penetrantes enquanto outras são apagadas; algumas têm uma qualidade agradável enquanto outras são estridentes; algumas são flexíveis enquanto outras são indóceis; algumas são bem moduladas enquanto outras são ásperas e roucas; algumas têm uma extensão grande enquanto outras têm extensão limitada, umas são musicais enquanto outras não são.”

Diante desta realidade, a tarefa do regente é buscar, em seus conhecimentos vocais, elementos que lhe proporcionem uma maior homogeneidade sonora. Esta será alcançada primordialmente como resultado de uma produção vocal refinada. “Na medida em que os cantores aprendem a produzir os sons vocálicos corretamente, eles apresentarão um som mais homogêneo em cada naipe” (PFAUSTCH, 1998, p.103). O autor ainda ressalta que como “as exigências de extensão e tessitura também são fatores que ajudam ou atrapalham a homogeneidade”, é preciso trabalhar as extremidades das vozes de modo que os cantores não forcem sua produção e aprendam quais ajustes são necessários para manter a homogeneidade.

Acredita-se que essa “mistura sonora unificada” pode ser alcançada a partir de uma proposta timbrística única, baseada num trabalho uniforme dos vários aspectos técnicos individuais, na produção adequada dos sons vocálicos, no equilíbrio das vozes, na busca de uma afinação refinada, dentro da maior precisão rítmica possível. Ou seja, a homogeneidade sonora de um coro depende de todos os outros aspectos individuais e coletivos da sonoridade.

Intimamente ligado à busca pela homogeneidade sonora de um grupo coral está o trabalho de equilíbrio do coro. MILLER (1996, p.58) defende a idéia de que, uma vez que cada voz tem suas próprias características, é muito mais proveitoso investir num trabalho de equilíbrio das vozes do que tentar misturá-las de forma homogênea:

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“Cada instrumento vocal possui suas características timbrísticas únicas. [...] É tão incoerente para o regente coral exigir de todas as categorias de vozes uma qualidade vocal única quanto para o regente de orquestra solicitar que todos os instrumentos tenham o mesmo timbre. Equilibrar as vozes é uma técnica coral muito melhor do que a irrealizável meta de tentar torná-las homogêneas.”

Para se alcançar uma sonoridade equilibrada nas várias obras de seu repertório, o regente deverá considerar uma série de fatores. A citada heterogeneidade das vozes do coro é um fator complicador, assim como as exigências de extensão e tessitura. O regente deverá aprender a exigir dos cantores o que deve ser feito para se produzir uma relação balanceada dos naipes, a partir de mudanças de gradações de intensidade e dinâmica.

É preciso ainda ter um bom conhecimento de harmonia e contraponto para lidar com possíveis complicações de equilíbrio das partes, e, conscientizar os cantores de que a “importância” das linhas vocais é variável. Assim, os cantores devem aprender a se escutar, a escutar o seu naipe, aos outros naipes e ao acompanhamento, se houver. Neste trabalho de equilíbrio será sempre necessário que eles façam ajustes na dinâmica para permitir que as linhas mais importantes estejam em evidência.

Embora este tema permita longas abordagens, pode-se dizer que, de forma geral, o trabalho de equilíbrio da sonoridade coral depende da capacidade do regente em conduzi-la e da habilidade dos cantores em lidar com questões de dinâmica. Para tal, o regente deve desenvolver um trabalho de ampla variação de dinâmica. Mesmo os coros mais limitados são capazes de uma ampla variedade de dinâmica.

Apesar da importância da homogeneidade e do equilíbrio na sonoridade coral, para muitos profissionais da área a preocupação mais constante é a afinação entre as vozes:

“De todos os desafios associados à arte de cantar em coro, o de conseguir uma boa afinação é provavelmente o mais fugaz. Enquanto outros objetivos importantes do canto em grupo podem ser atingidos por meios bem diretos e de uma forma relativamente consistente, é geralmente difícil fazer com que um grupo coral cante afinado”. (MARVIN, 2001, p.26)

De fato, sendo a música uma arte temporal, a afinação precisa ser re-criada a cada performance e, “uma vez que os coros atingem um padrão de afinação satisfatório, não há garantias de que eles o farão novamente” (MARVIN, 2001, p.26).

A busca por uma constante boa afinação é um trabalho contínuo que deve acontecer no dia-a-dia do coro nas ocasiões de ensaio. Esse processo exige do regente uma boa preparação dos ensaios, que devem ser usados para se obter o melhor e mais afinado som do coro, afinal de contas, “o peso da responsabilidade recai primeiro sobre o regente no sentido de motivar e ensinar o coro a cantar afinado” (SILANTIEN, 1999, p.91).

Muitos são os fatores que levam um coro à desafinação: o nível de percepção auditiva do regente e dos cantores, o ambiente acústico, a má qualidade das vozes, além de inúmeros componentes musicais. SILANTIEN (1999, p.91) afirma que “alguns problemas de afinação estão mais ligados a questões de conjunto que a questões vocais individuais; por exemplo, o equilíbrio de acordes, a uniformidade vocálica e a colocação temporal de consoantes sonoras e ditongos.” Para MARVIN (2001, p.26), “tom e timbre, juntos, definem a entonação”:

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“Cantar afinado significa unificar o tom – ou seja, levar as vozes a cantar com freqüências similares e timbres compatíveis. No canto coral, um tom unificado está associado a uma emissão unificada das vogais. Um timbre vocal dentro de cada naipe unificado por uma emissão vocálica concorde dá lugar a um continuum sonoro integrado, que serve de base para uma boa afinação coral. Portanto, tanto as vogais como as notas devem estar afinadas.”

Moore observa que problemas referentes a respiração, produção vocálica e afinação precisam ser previstos pelo regente e resolvidos de forma eficaz nos ensaios corais. No que diz respeito à afinação, ele acredita que:

“A solução é que os cantores aprendam as partes vocais tão precisamente e ouçam tão cuidadosa e criticamente que a acuidade na entonação vá além daquela oferecida pelo piano ou pelo diapasão. Essa habilidade, combinada com um alto nível de produção vocal e edificada sobre hábitos apropriados de respiração e atenção detalhada aos sons vocálicos, pode resultar na aquisição de um ‘som desejado’ e uma ‘sonoridade’ que produza uma excepcional qualidade de conjunto.” (MOORE, 1999, p.52)

Assim como a homogeneidade caminha ao lado do equilíbrio, o trabalho por uma afinação eficiente, deve estar aliado à busca da precisão rítmica. As idéias musicais de uma obra são construídas dentro de uma organização temporal. Há um movimento seqüencial de tais idéias sonoras que, ordenadas pelo compositor, precisam ser percebidas e controladas pelo regente. OAKLEY (1999, p.112) afirma que:

“O regente deve auxiliar o coro a desenvolver um senso comum de ritmo interno que propicie uma organização estrutural ao som do coral. Isto não é tão comum quanto se imagina. Na verdade, uma pequena percentagem de conjuntos corais consegue de fato obter um senso de completa unidade rítmica. Infelizmente, isso é causado com mais freqüência pelo fato de que pouquíssimos regentes, e eu ressalto ‘pouquíssimos’, possuem um domínio pessoal de ritmo interno, segurança quanto ao tempo e sensibilidade rítmica.”

Para este autor, “talvez a melhor maneira de o regente desenvolver seu próprio senso rítmico seja auxiliando o coro a desenvolvê-lo” (OAKLEY, 1999, p.114). Ele diz ainda que:

“Muitas vezes, erros rítmicos não são pecados ligados à ação, mas sim de omissão, já que a maioria dos coros perde a estabilidade do andamento a cada ponto de respiração ou de mudança de frase. O grande mandamento da execução rítmica é: assim como o som é medido, o silêncio também deve ser medido. Cada ponto da frase e cada respiração devem ter uma atribuição rítmica. Muitos coros chegam ao fim de uma frase, respiram em conjunto e cantam a próxima entrada atrasados em relação à pulsação, obliterando, assim, o andamento. Isto não é rubato, isto é falta de disciplina.” (OAKLEY, 1999, p.117)

A precisão rítmica também depende de uma boa dicção e muitos problemas rítmicos podem estar “relacionados à articulação consonantal precária, à duração incorreta do som vocálico e a ditongos precipitados” (PFAUSTCH, 1998, p.102). É importante que o regente procure, à frente de seu coro, obter a duração correta dos sons vocálicos, a precisão adequada dos sons consonantais, as nuances sutis de uma seqüência silábica e a reprodução das linhas melódicas com os perfis determinados pelo compositor.

Com base nos dois autores citados pode-se afirmar que a precisão rítmica de um coro precisa ser constantemente trabalhada nos ensaios, a partir de um processo de desenvolvimento do senso rítmico interno dos cantores aliado ao trabalho de dicção proposto anteriormente.

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7 - ConclusãoDos vários desafios que o regente coral moderno enfrenta, a construção da sonoridade de seu coro é um dos mais complexos e fascinantes. Para a execução de uma obra coral, o regente-intérprete deve, inicialmente, partir do seu conhecimento histórico-estilístico e decidir por um som adequado e eficaz. Uma vez que o resultado sonoro de um coro depende do desenvolvimento técnico dos cantores, é preciso que o regente assuma a função de preparador vocal e instrua seus cantores a respeito dos vários fundamentos da técnica vocal. A criação e desenvolvimento deste som devem acontecer de forma saudável, produtiva e responsável já que, em geral, os cantores corais são amadores e não possuem, por si mesmos, um conhecimento técnico sólido. Assim, em concordância com BRANDVIK (1993, p.148), acreditamos que “ser um regente coral é como ser, ao mesmo tempo, organista e construtor de órgãos – o regente deve construir o instrumento coral com a mesma competência que ele o toca”.

Um grupo coral acostumado a executar obras de estilos diferentes deve evitar ter um único som. Com um conhecimento técnico eficiente, regente e cantores podem desenvolver um trabalho de exploração de sonoridades vocais diversas, apropriadas para a execução de repertório de diferentes estilos. Este trabalho de variação sonora deve, entretanto, partir de um som padrão que os cantores precisam ter como referência.

Como um verdadeiro “professor de canto” dos cantores de seu grupo coral, o regente pode criar o som padrão de seu grupo, baseado em suas escolhas interpretativas, e fundamentado num trabalho sistemático com uma série de aspectos técnicos (individuais e coletivos) a serem desenvolvidos pelos cantores. Neste trabalho, que se inicia pela técnica vocal, será necessário conscientizar os cantores a respeito de uma produção vocal adequada e saudável; orientá-los no desenvolvimento da habilidade de “transitar” de um registro vocal para outro sem que haja perda da qualidade sonora; ensiná-los a respeito da produção dos sons vocálicos e da articulação consonantal; e, ainda, oferecer-lhes esclarecimentos sobre os diferentes timbres vocais e o uso apropriado do vibrato.

A conscientização dos cantores a respeito desses aspectos individuais é fundamental para que se trabalhe os aspectos coletivos da sonoridade coral (homogeneidade, equilíbrio, afinação e precisão rítmica). É ainda importante ressaltar que há uma interdependência entre tais aspectos coletivos. A homogeneidade, por exemplo, depende de uma proposta timbrística única, de uma afinação refinada, da produção unificada e adequada dos sons vocálicos, da precisão rítmica e do equilíbrio sonoro. Este último vai exigir dos cantores que se busque uma relação balanceada dos naipes do coro, a partir de mudanças de gradações de intensidade e dinâmica. A afinação coletiva precisa ser trabalhada continuamente nos ensaios, quando se deve incentivar e exigir que todos cantem o som mais afinado possível, com timbres e sons vocálicos unificados. Por fim, a precisão rítmica deve ser desenvolvida pelo regente através do desenvolvimento de um senso comum de ritmo interno e do trabalho com a dicção, uma vez que muitos problemas rítmicos estão relacionados à articulação consonantal deficiente, à duração incorreta dos sons vocálicos e à precipitação dos ditongos.

Finalmente, uma vez construída a sonoridade padrão do coro a partir dos elementos citados, o regente poderá trabalhar a variação desta sonoridade e encontrar uma ampla gama de “cores sonoras” para a execução dos mais diversos repertórios corais.

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angelo José Fernandes é regente, Mestre em Práticas Interpretativas (Regência) pelo Instituto de Artes da UNICAMP, Especialista em Regência Coral e Bacharel em Piano pela Escola de Música UFMG. Atualmente, é doutorando em Práticas Interpretativas (Regência) pelo Departamento de Música da UNICAMP, tendo como orientadora a Profa. Dra. Adriana Giarola Kayama e como co-orientador o Prof. Dr. Eduardo Augusto Östergren. Atua intensamente como regente de coros em Itajubá (MG), onde nasceu, tendo alcançado destaque por sua atuação à frente do Madrigal Musicanto de Itajubá, recentemente premiado no 10th Athens International Choir Festival, na Grécia, onde conquistou a Medalha de Prata na categoria Chamber Choirs e a Medalha de Bronze da categoria Mixed Choirs.

adriana Giarola Kayama é Doutora em Performance Practice pela University of Washington (EUA) e docente do Departamento de Música da UNICAMP, atuando nas áreas de canto, técnica vocal, dicção e música de câmara. Coordenou os cursos de Graduação e Pós-Graduação em Música da UNICAMP. Atualmente, é presidente da ANPPOM (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música).

Eduardo augusto Östergren é maestro e professor do Departamento de Música do Instituto de Artes da Unicamp. Responsável pelo curso de regência coral e orquestral, atua também como docente nas disciplinas História da Música Medieval e Introdução à Pesquisa Musical. Foi docente das Universidades da Carolina do Norte (Raleigh, EUA), Indiana (Indiana, EUA) e Purdue (Indiana, EUA). Participou de seminários sobre Regência Coral e Orquestral em diversas universidades brasileiras e americanas. Foi membro de júri em vários concursos

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a integração da prática deliberada e da prática informal no aprendizado da música instrumental1

Patrícia Furst Santiago (UFMG)[email protected]

Resumo: O presente artigo discute a relevância da integração de duas abordagens de estudo instrumental - a prática deliberada e a prática informal. Tal discussão inclui comentários oferecidos por músicos-pesquisadores que investigaram diferentes aspectos do estudo instrumental. Paralelamente, são apresentados comentários sobre o assunto feitos por quatro pedagogos brasileiros de piano, que atuam no cenário musical de Belo Horizonte, bem como comentários sobre as atividades referentes à prática informal desenvolvidas pelos integrantes do Grupo UAKTI. O artigo conclui que as abordagens de estudo instrumental, deliberada e informal, podem ser vistas como complementares. Sugere-se que uma pedagogia instrumental que integre as duas abordagens possa trazer grandes benefícios para músicos instrumentistas. Palavras-chave: pedagogia da performance instrumental, abordagens e estratégias de estudo instrumental, prática deliberada, prática informal, Grupo UAKTI.

The integration of deliberate practice and informal practice in instrumental music learningabstract: This article discusses the relevance of integrating two approaches of instrumental practice in music - the deliberate practice and the informal practice. The discussion includes viewpoints of researchers on instrumental practice as well as opinions of four Brazilian piano pedagogues. Additionally, it discriminates the informal practices developed by the musicians of Grupo UAKTI. The article concludes that both deliberate and formal practices can be seen as complementary and suggests that the pedagogical strategy integrating both approaches would bring great benefits to instrumental players. Keywords: instrumental pedagogy, approaches and strategies of instrumental music practice, deliberate practice, informal practice, Grupo UAKTI.

1. introduçãoEnquanto o ensino instrumental formal de música tende a enfatizar o desenvolvimento de habilidades técnicas e o estudo de repertório, o estudo musical informal, tipicamente empreendido por músicos populares e músicos de Jazz, dentre outros, tende a incorporar práticas criativas tais como a improvisação, a composição, o arranjo e o tocar de ouvido. Inúmeros educadores musicais e músicos-pesquisadores reconhecem a relevância de um estudo instrumental balanceado que integre ambas as abordagens de aprendizado. Discussões que promovem reflexões sobre o tema têm sido oferecidas por educadores tais como PAYNTER (1992, 1997, 2000); KOELLREUTTER (1985, 1997); SWANICK e TILLMAN (1986); SLOBODA et al (1996); CAMPBELL (1998); BURNARD (1999, 2000, 2002); BURNARD e YOUNKER (2002); GREEN (2001); BROPHY (2002); FRANÇA e BEAL (2003); SOUZA et al (2003).

Porém, raramente o debate promovido por eles sobre o assunto agrega as opiniões de professores de instrumento e de instrumentistas. Com o objetivo de contribuir para a ampliação deste importante debate, o presente artigo apresentará discussões de pesquisadores sobre duas abordagens adotadas no estudo instrumental – a prática deliberada e a prática informal. Paralelamente, o

Per Musi – Revista Acadêmica de Música – n.13, 119 p., jan - jun, 2006 Recebido em: 02/10/2005 - Aprovado em: 15/05/2006

1 A autora agradece a Berenice Menegale, Eduardo Hazan, Tânia Mara Lopes Cançado e Miguel Rosselini, pela contribuição dada a este artigo. Agradece também a André Borges, pela revisão do texto e a Glaura Lucas e Fausto Borém por seu precioso apoio.

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artigo agrega comentários sobre o estudo instrumental, fornecidos por pedagogos do piano, especialmente por quatro pianistas que têm atuado de forma significativa em Belo Horizonte - Berenice Menegale, Eduardo Hazan, Miguel Rosselini e Tânia Mara Lopes Cançado.

Os comentários destes quatro pianistas foram obtidos por meio de entrevistas semi-estruturadas, conduzidas pela autora deste artigo em Belo Horizonte no ano de 20002 , como parte do estudo empírico desenvolvido em pesquisa sobre a pedagogia do piano (SANTIAGO, 2004). As entrevistas abarcaram inúmeros tópicos referentes à pedagogia pianística e foram integralmente gravadas e transcritas. No entanto, neste artigo serão incluídos apenas comentários específicos sobre as abordagens e estratégias referentes ao estudo do piano, concedidos pelos quatro pedagogos citados acima. Eles foram consultados sobre a adequação do uso de suas citações no contexto do artigo, tendo autorizado tal uso. Seus comentários serão citados aqui em linguagem coloquial, exatamente como foram concedidos à autora no momento das entrevistas.

Serão também apresentados alguns comentários sobre a prática informal realizada pelos integrantes do grupo UAKTI, indicadas por Artur Andrés em seu livro “UAKTI – um estudo sobre a construção de novos instrumentos musicais acústicos” (ANDRÉS, 2004). Finalmente, o artigo sintetiza a informação apresentada por educadores musicais, músicos-pesquisadores, pedagogos do piano e instrumentistas sobre o tema, endossando a relevância da prática informal para o estudo instrumental.

2. a prática deliberada no estudo instrumentalUm significativo número de pesquisadores têm se dedicado a investigar a eficácia da prática deliberada3 para a aquisição de alto nível de performance em diferentes áreas de conhecimento. Segundo ERICSSON, KRAMPE E TESCH-RÖMER (1993, p. 368), a prática deliberada constitui-se de um conjunto de atividades e estratégias de estudo, cuidadosamente planejadas, que têm como objetivo ajudar o indivíduo a superar suas fragilidades e melhorar sua performance; a realização de tais atividades requer esforço, não sendo, portanto, inerentemente prazerosa. Porém, os indivíduos se vêm motivados a empreendê-las pelo avanço eminente que elas podem proporcionar à sua performance.

O estudo acima é de grande relevância, pois instigou futura pesquisa em música e produziu uma elaborada fundamentação teórica para justificar o alto nível de performance alcançado por indivíduos que atuam em diferentes áreas (esportes, xadrez e performance musical, entre outras). Neste estudo, os autores também oferecem material empírico, referente aos hábitos de estudo de violinistas e pianistas e sugerem a existência de forte relação entre a realização da prática deliberada e o alto nível de performance musical alcançado por muitos músicos instrumentistas.

2 Além de Berenice Menegale, Eduardo Hazan, Miguel Rosselini e Tânia Mara Lopes Cançado, outros quatro pedagogos do piano foram entrevistados naquela ocasião: João Gabriel Marques Fonseca, Miriam Grossman, Maria de Lourdes Gonçalves e Maria Clara Paes Leme.

3 O termo “prática deliberada” foi adotado por pesquisadores, tais como ERICSSON , KRAMPE E TESCH-RÖMER, 1993; WILLIAMON e VALENTINE, 2000; JØRGENSEN, 2001; MCPHERSON e RENWICK, 2001. Denominações correspondentes foram usados por outros autores: “prática formal” (SLOBODA et al, 1996); “prática efetiva” (HALLAM, 1988; PITTS, 2000) e; “prática estruturada” (BARRY, 1992).

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Os autores argumentam que, mais do que o talento inato e as habilidades cognitivas herdadas pelo indivíduo, existem outros fatores que contribuem para aquisição e domínio de habilidades específicas e que são, portanto, responsáveis pela performance de alto nível, tais como: a precocidade na aquisição de determinado domínio de conhecimento; o prolongado e gradual processo de aquisição de conhecimento específico, mediado por prática deliberada regular e extensiva; o apoio parental; as condições do ambiente de estudo e; a qualidade de instrução recebida (ERICSSON , KRAMPE E TESCH-RÖMER, 1993, p. 365, 383, 392).

Além deste estudo, pode-se encontrar um corpo bem estabelecido de pesquisa sobre o aprendizado e estudo instrumental, que investiga a relação existente entre as estratégias de estudo adotadas por diferentes instrumentistas e o nível de performance musical alcançada por eles (por exemplo, LEHMANN, 1997; GRUSSON, 1988; COSTA, 1999; BARRY, 1992; SLOBODA et al, 1996; PITTS, DAVIDSON e McPHERSON, 2000; WILLIAMON e VALENTINE, 2000; HALLAM, 2001a, 2001b; NIELSEN, 2001; MCPHERSON e RENWICK, 2001; JØRGENSEN, 2001, 2002). Estes estudos apresentam algumas das estratégias típicas que caracterizam a prática deliberada no estudo instrumental, tais como: o uso de metrônomo; o estudo rítmico (por exemplo, com contagem em voz alta e palmas); a análise prévia da obra a ser estudada; o estudo repetido de pequenas seções da peça; o estudo silencioso e o estudo mental da obra; o estudo lento, com aumento gradual do andamento; a identificação e correção de erros, principalmente através do estudo lento; a verbalização de ordens durante o estudo e; a marcação do dedilhado na partitura. Estes estudos também indicam os seguintes fatores, que influenciam e alteram a qualidade da performance instrumental:

• Qualidade de instrução musical e de supervisão recebida;• Início precoce do estudo instrumental (que possibilitaria ao indivíduo engajar precocemente

em atividades referentes à prática deliberada e adquirir experiência de performance); • Aquisição gradual e progressiva de conhecimento instrumental e musical; • Nível de conhecimento e habilidade musical alcançado (estudantes mais experientes

tendem a apresentar maior habilidade para escolher e empregar estratégias de estudo do que os menos experientes);

• Nível de coordenação física e habilidades técnicas;• Nível de concentração, motivação, entusiasmo e prazer apresentado durante o estudo;• Apoio familiar;• Condições ambientais e recursos materiais (por exemplo, acesso a instrumento e ambiente

adequados para o estudo);• Diferenças individuais (que determinam habilidades ou dificuldades específicas apresen-

tadas por diferentes indivíduos).

Ainda um outro fator essencial para o estudo instrumental refere-se ao desenvolvimento das “habilidades auto-regulatórias”4 pelo músico instrumentista, ou seja, sua capacidade de plane-jar o próprio estudo e de se tornar participante ativo do seu próprio processo de aprendizado musical (NIELSEN, 2001, p. 156). Dentre as habilidades auto-regulatórias estão a capacidade

4 Ao invés de usar o termo “habilidades regulatórias”, HALLAM (1998, capítulo 6 e 2001b) adota o termo “metacognição” e oferece interessante discussão sobre o assunto.

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de definir objetivos e de planejar e escolher estratégias de estudos, bem como a capacidade de auto-avaliação, auto-instrução e auto-monitoramento (NIELSEN, 2001, p. 165). MCPHERSON e RENWICK (2001, p. 170-1) sugerem seis dimensões que determinam o nível da habilidade auto-regulatória de um indivíduo: “(1) Motivação - decisão sobre o quanto e quando se deve estudar; (2) Método - planejamento e emprego de boas estratégias de estudo; (3) Tempo - ma-nuseamento do tempo de estudo; (4) Performance - monitoramento, avaliação e controle da performance; (5) Ambiente de estudo - organização do ambiente de estudo (por exemplo, livre de distrações) e; (6) Fatores sociais - busca de informação que favoreça o estudo (por exemplo, ajuda obtida do professor ou membro da família e uso de materiais adequados)”.

Na literatura da pedagogia do piano, escrita nas línguas inglesa e portuguesa5 , encontram-se muitos comentários referentes à prática deliberada, muito embora os pedagogos não usem tal termo para designá-la. Eles sugerem estratégias de estudo que coincidem com aquelas apontadas pelos pesquisadores citados acima e também indicam o conteúdo que constitui o estudo pianístico deliberado. Neste conteúdo estão incluídos tópicos tais como o treinamento do uso do pedal, dedilhado, leitura à primeira vista, fundamentos técnicos (escalas, arpejos, etc.), toques (abordagens motoras adequadas a diferentes passagens musicais) e repertório.

Os comentários referentes aos hábitos de estudo pianístico, obtidos por meio de entrevistas realizadas com Berenice Menegale, Eduardo Hazan, Miguel Rosselini e Tânia Mara Lopes Cançado também endossam a relevância da prática deliberada para o aprendizado do piano. Tânia Mara Lopes Cançado enfatiza a importância do planejamento no estudo pianístico:

[No estudo], a primeira coisa é o planejamento. O aluno tem que ter um plano de estudo para que ele possa reforçar o que é necessário, não gastar energia com o que não é necessário naquele momento. Eu sempre criei um plano de estudo para a semana. Na segunda-feira, tais e tais obras, diminuindo na terça, aumentando na quarta. Num certo momento, se faz um apanhado de tudo. Junto com este plano, há um outro planejamento de horas, das dificuldades e um micro planejamento para cada etapa daquilo que se está trabalhando, realmente se observando o que é preciso fazer (entrevista concedida à autora - 13 de novembro de 2002).

Miguel Rosselini, Berenice Menegale e Eduardo Hazan falam sobre o monitoramento do estudo, sobre a importância da autonomia e das habilidades auto-regulatórias dos estudantes de piano e sobre o papel do professor na aquisição destas habilidades:

Miguel Rosselini: Quando você aprende a estudar, você já aprendeu o que você tinha que fazer. Porque o estudar bem, o estudar corretamente, já é praticamente o caminho ganho. Dentro deste processo, a gente deve fazer uma seleção, e, através desta seleção, você vai desenvolvendo o seu juízo e a sua própria auto-avaliação. Eu procuro desenvolver com os alunos liberdade e independência, porque grande parte do tempo eles estão estudando sozinhos em casa. Então eu alerto muito, vejam se vocês estão realmente aproveitando o estudo de forma objetiva, de forma a atingir os objetivos. Vamos usar a cabeça, vamos ver o que eu posso fazer de maneira a atingir da melhor forma a minha meta. Então, é um trabalho que envolve criatividade, inteligência, sensibilidade, envolve a pessoa inteira (entrevista concedida à autora - 25 de novembro de 2002).

5 Referências detalhadas a esta literatura e aos comentários de pedagogos do piano sobre o tema em questão poderão ser encontradas em SANTIAGO (2004, capítulo 1).

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Berenice Menegale: O ideal seria que a pessoa tivesse orientação que lhe permitisse depois trabalhar sozinha. Mas, para isso, realmente esse ensino precisava ser um ensino dirigido para o “como estudar”. É interessante que o professor procure fazer com que o aluno identifique naquela música situações equivalentes às da experiência anterior, mostrando “como” irá trabalhar. É um treinamento para autonomia (entrevista concedida à autora - 30 de outubro de 2002).

Eduardo Hazan: Acho que é muito interessante o professor chegar na aula, sentar no sofá e dizer pro aluno: “Agora você está em casa sozinho...agora você vai estudar”. Ele pode descobrir muita coisa interessante com isso. Outra coisa que [o professor] pode fazer é estudar na frente do aluno, para que o aluno veja como ele estuda. O professor também vai dando diretrizes para [o aluno] sobre o que ele vai estudar e como ele vai estudar. Como Liszt dizia, é mais importante a técnica do estudo do que o estudo da técnica (entrevista concedida à autora - 24 de setembro de 2002).

À luz dos comentários dos pesquisadores e dos pedagogos do piano, conclui-se que a prática deliberada e a aquisição de habilidades auto-regulatórias são de extrema relevância para o desenvolvimento musical dos instrumentistas, favorecendo o alcance de melhores níveis de performance instrumental.

3. a prática informal no estudo instrumentalDe acordo com GREEN (2001, p. 16), “o aprendizado musical informal refere-se a uma variedade de abordagens que levam à aquisição de conhecimento e de habilidades musicais fora de um contexto educacional formal”. O aprendizado musical informal envolve uma série de práticas, ocorrendo através da enculturação6 , da interação com colegas, familiares ou outros músicos que não atuam como professores ou do auto-didatismo (GREEN, 2001, p. 16). Esta série de práticas às quais Green se refere podem ser denominadas de “prática informal”7 e incluem atividades como a improvisação, a composição e o tocar de ouvido.

Além de se engajar nas atividades estruturadas referentes à prática deliberada, o músico instrumentista também pode dedicar uma parcela de seu tempo de estudo para as atividades que compõem a prática informal, que podem ser realizadas de forma extremamente prazerosa. A habilidade de tocar de ouvido - a reprodução de uma obra musical por meios exclusivamente auditivos – é, além de prazerosa, essencial para a formação do músico instrumentista, uma vez que requer uma escuta musical atenta e persistente e que favorece o desenvolvimento da capacidade de ouvir a si mesmo. A prática da composição, por sua vez, exige que o músico seja capaz de estabelecer relacionamentos entre os elementos que compõem a peça como um todo, a fim de formar e revisar idéias musicais definidas (BURNARD, 2002, p. 16). Geralmente,

6 Segundo GREEN (2001, p 22), “o conceito de enculturação musical se refere à aquisição de habilidades e conhecimento musicais através da imersão nas práticas musicais diárias do contexto social ao qual o indivíduo pertence”. GREEN (2001, p. 22) esclarece que o processo de enculturação ocorre tipicamente através de três modalidades do fazer musical: tocar (ou cantar), compor (e improvisar) e ouvir.

7 O termo “prática informal” é adotado por SLOBODA et al (1996). Outros termos têm sido usados para designar o mesmo tipo de prática: “prática livre” (BARRY, 1992) e “jogo” (ERICSSON et al, 1993).

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as idéias musicais apresentadas numa composição são memorizadas ou grafadas, de forma a serem repetidas eventualmente. Por outro lado, a improvisação é uma prática que favorece a performance instantânea do pensamento musical; aquele que improvisa precisa pensar durante a atividade e se engajar num processo que exige a realização contínua do impulso musical (BURNARD, 2002, p.16).

Além de favorecer o desenvolvimento de habilidades especificamente musicais, a prática informal pode ser relevante para o pleno desenvolvimento de outros processos essenciais ao aprendizado musical, tais como a familiarização com diferentes linguagens e estilos musicais e o desenvolvimento da memória. Ela também pode servir como elemento catalisador dos processos de compreensão e maturação musical. A composição e improvisação são ainda consideradas como relevantes para a aquisição de conhecimento musical e de habilidades especificamente instrumentais, tais como o desenvolvimento de habilidades técnicas (SWANWICK e FRANÇA, 1999, p.15-16; BURNARD, 1999, p.160; SANTIAGO, 2001, capítulo 4; GREEN: 2001, p. 84).

São poucos os pedagogos do piano que oferecem comentários sobre a adoção de atividades da prática informal no estudo pianístico. Dentre eles estão CZERNY (1982, p. 79)8 e HOFMANN (1910, p. 108), que recomendam a prática da composição pelos estudantes de piano, uma vez que ela atua como facilitadora do progresso do aprendizado do repertório. A pianista e pedagoga americana Abby Whiteside oferece comentários mais consistentes sobre a importância da prática da improvisação no aprendizado do instrumento:

Aquele que improvisa não toca nota por nota, interrompendo a performance para pensar no que irá tocar a seguir. Partindo da audição, a improvisação estabelece um relacionamento imediato entre as imagens auditivas e os mecanismos motores da performance. Já que o processo de improvisação requer a manifestação de idéia musical completa e da performance de frases inteiras, os alunos não poderão interromper o fluxo da energia musical quando estão improvisando. Além disso, os professores de piano poderão ajudar seus alunos a solucionar suas questões motoras pela sensação, à medida que eles aprendem peças musicais de ouvido (WHITESIDE, 1969, p. 34).

Pianistas brasileiros também opinam sobre a relevância da prática informal no aprendizado pianístico. Eduardo Hazan, por exemplo, sugere:

São muito importantes, as atividades da prática informal. É um aspecto muito negligenciado porque o aluno fica obcecado pelo repertório. Então ele não se dedica a isto, sistematicamente, continuamente. Eu tive contato muito estreito com o Luiz Eça, do Tamba Trio, que para mim foi o maior pianista de música popular que o Brasil já teve. Ele me dizia: “Você admira esses acordes que eu faço? Você não sabe o tempo que eu passei ouvindo os grandes pianistas de Jazz e repetindo até que eu conseguisse ‘pegar’ aqueles acordes. Então não foi uma coisa de natureza, foi uma coisa construída”. Eu toco de ouvido porque gosto muito de música popular brasileira, Jazz. Mas toco hoje, de ouvido, muito melhor do que eu tocava nos meus 20, 30 anos de idade. Desenvolvi muito, através da prática, realmente. Eu acho que se pode fazer como o Luizinho Eça, pegar um disco e tentar reproduzir o que a gente ouviu no disco, acompanhar...mesmo que seja sem consciência, eu acho que é bem melhor do que nada (entrevista concedida à autora - 24 de setembro de 2002).

8 Primeira provável edição em 1837.

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Segundo Berenice Menegale, a improvisação deve fazer parte do estudo do instrumento, deven-do ser trabalhada de forma progressiva. Ela oferece sugestões de como incluir a improvisação no ensino de piano para iniciantes:

Para [o aprendizado pianístico] se tornar um trabalho próximo do ideal, deveria haver sempre um incentivo à criança para improvisar. Começar com improvisação completamente livre, uma coisa descritiva como a criança gosta. Mas também pode ser algo que já caminhe pra uma estruturação. Até pequenas modificações numa peça simples que ela está tocando é possível fazer, sem preconceito, sem tirar o caráter “sagrado” da música. Essas sementezinhas podem ser importantes para a criança depois. A criança pode improvisar sobre certas notas, duas notas, em todas as regiões do piano, acrescentando elementos musicais que ela encontre, sempre progressivamente. Pegar elementos de uma música que a criança está tocando e sugerir que, a partir desse elemento, ela crie a sua música. Usar um elemento já existente, uma coisa que ela gostou, por exemplo. Eu acho que não há nada que não possa ser iniciado cedo. A outra coisa que também é progressiva é a maturidade. O amadurecimento é um processo. Tudo acontece de uma maneira mais consciente se for progressivo (entrevista concedida à autora - 30 de outubro de 2002).

Para Tânia Mara Lopes Cançado, as atividades da prática informal deveriam representar uma parcela importante do aprendizado pianístico:

É a vivência, o domínio do instrumento que o aluno deve ter, para que ele nunca sinta medo do piano. Isso vem através do tocar de ouvido, das improvisações, que são processos que ele não precisa abandonar. O professor de piano pode propor estas práticas aos alunos no início do aprendizado, especialmente com crianças. Mas o indivíduo começa a tocar, entra para uma escola, a escola não tem essas práticas no currículo, o aluno para. E é um bloqueio, talvez uma prática que pode até terminar, porque o aluno não vai desenvolver mais isso. O ideal seria que ele continuasse com essa prática, porque isso faria parte do desenvolvimento global do ouvido, incluindo a habilidade de se escutar enquanto toca. Sendo capaz de se escutar, o aluno vai entender muito melhor a obra que estiver estudando (entrevista concedida à autora - 13 de novembro de 2002).

Por outro lado, Miguel Rosselini alerta para o fato de que:

...nem sempre é possível para o professor lidar com a prática informal no contexto formal do ensino instrumental. Isto se deve tanto à realidade de muitos jovens alunos de piano, que não foram previamente iniciados no tocar de ouvido, na improvisação e na composição, quanto à dificuldade que encontram, ao ingressarem em uma escola de nível superior, na conciliação da prática informal com as inúmeras disciplinas dos cursos de graduação e com o estudo formal do instrumento. A tentativa de cumprir todas estas tarefas poderia levar os estudantes a dedicarem um tempo restrito ao estudo de seu repertório (entrevista concedida à autora - 25 de novembro de 2002).

Considerando a discussão apresentada nesta seção, pode-se sugerir que músicos e estudantes instrumentistas seriam beneficiados pela existência de pedagogias que abordem, de forma equilibrada, as práticas de estudo deliberada e informal. O desafio pedagógico consiste em se buscar pontes que unifiquem e integrem as duas abordagens de práticas de estudo, ao invés se considerar que elas são opostas entre si. Professores de instrumento poderiam ampliar sua visão pedagógica, buscando observar músicos instrumentistas que foram capazes de criar tais pontes, o que o será o tema da próxima seção.

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4. a integração da prática deliberada e da prática informal na performance do UaKTi A fim de abordar a questão da integração entre as práticas deliberada e informal no estudo instrumental, tomemos como referência o grupo UAKTI, que é integrado por Marco Antônio Guimarães, Artur Andrés, Paulo Santos e Décio Ramos. Ao longo de seu estudo sobre o grupo, ANDRÉS (2004) demonstra que a criação da música do UAKTI foi motivada pela busca de novas formas de composição musical, compatíveis com as sonoridades geradas pelos instrumentos musicais acústicos, criados por Marco Antônio Guimarães. O produto musical do UAKTI reflete a eclética formação musical de seus quatro integrantes - sua formação formal-acadêmica, concretizada através de sua experiência como músicos de orquestra e como cameristas, somada às suas habilidades musicais de caráter informal, desenvolvidas no trabalho realizado pelo próprio grupo, levaram o UAKTI a alcançar um nível extraordinário de inventividade e originalidade musical.

Andrés define as características musicais do UAKTI e nos fornece pistas sobre os tipos de prática informal empreendidas pelo grupo:

Do ponto de vista estético-musical, o estilo do UAKTI busca uma conciliação entre duas vertentes musicais distintas: a música erudita e a música popular. Do lado erudito, tanto na linguagem tradicional quanto na contemporânea, há conceitos de estruturação formal e abordagens experimentais, ambas apoiadas no conhecimento científico do fenômeno sonoro. Da vertente da música popular, que inclui a música folclórica, o jazz, o minimalismo e a música oriental, são absorvidos elementos mais livres e intuitivos, como a improvisação (ANDRÉS, 2004, p. 129).

Assim, adotando procedimentos da música popular, da música originária de outras culturas9 e da música erudita contemporânea, além de ter como base do seu trabalho a inovação, o experimentalismo e a integração de diferentes linguagens musicais, os músicos do UAKTI ampliaram e enriqueceram sua formação musical. Dentre as habilidades informais adquiridas pelos integrantes do grupo, destacam-se as práticas de arranjo, improvisação e criação, muitas vezes realizadas de forma coletiva. Adicionalmente, o grupo passou a utilizar formas de notação musical não convencional, adequadas ao tipo de prática musical requerida, por exemplo, pelas peças que compõem o balé I Ching, o balé 21 e a peça Toalha de Cerejas. Segundo ANDRÉS (2004, p. 133), “todas essas formas alternativas de notação musical criaram estruturas que estimularam a improvisação em grupo”.

Diferentemente dos integrantes do UAKTI, nem todos os músicos instrumentistas e professores de música têm encontrado ambientes motivadores e favoráveis ao desenvolvimento das atividades que compõem a prática informal. Então, como estes profissionais poderiam conduzir seus alunos na vivência e desenvolvimento de tais atividades, se eles próprios não as integraram em sua vida musical? Levando em consideração todos os relatos apresentados neste artigo - dos pesquisadores, dos pedagogos do piano e dos integrantes do UAKTI - a tentativa de resposta a esta pergunta poderá gerar reflexões elucidativas sobre o desafio representado pela busca de integração da prática deliberada e da prática informal no estudo do instrumento musical.

9 O termo “música originária de outras culturas” ou simplesmente “música originária” tem sido adotado pela autora com o intuito de evitar outras designações, tais como “música étnica” ou “world music”. Para esclarecimento, veja SANTIAGO (2005, p. 1-2).

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Seria essencial considerar que as práticas deliberada e informal são abordagens de estudo complementares, uma vez que cada uma delas poderá promover o desenvolvimento de habilidades específicas e experiência diferenciada, não alcançável por outros meios. Por um lado, a aquisição de habilidades informais requer o desenvolvimento de uma prática de estudo progressivo e sistemático, o que coincide e reforça o desenvolvimento de bons hábitos de prática deliberada. Por outro lado, habilidades referentes ao tocar de ouvido, à improvisação e à composição podem ampliar o universo musical do instrumentista, favorecendo a criação de novas estratégias de prática deliberada. As atividades contidas na prática informal poderiam ser utilizadas para o desenvolvimento das habilidades auto-regulatórias, do domínio técnico do instrumento, da vivência, da criatividade e da sensibilidade musical.

Algumas estratégias que podem ser adotadas para a realização deste intercâmbio de funções entre as duas abordagens de estudo – deliberada e informal - foram apontadas anteriormente neste artigo, pelos pedagogos do piano e pelos integrantes do UAKTI e serão sintetizadas abaixo:

• O desenvolvimento do ouvido através da apreciação musical e do tocar de ouvido, con-siderando-se diversos estilos e manifestações musicais;

• A improvisação livre, a realização de pequenas modificações nas peças do repertório estudado e a improvisação e criação de peças musicais a partir de elementos abstraídos de uma música do repertório;

• O recorte e a mistura de trechos de peças abstraídos de diferentes tipos de música (po-pular, erudita, originária, etc.) e diferentes tipos de estilo (minimalista, Jazz, etc.) para se criar pequenas peças;

• A elaboração de arranjos para peças tocadas de ouvido ou para trechos de peças do repertório;

• A elaboração de notação musical não convencional para grafar pequenas improvisações, composições e pequenos arranjos;

• A ênfase numa abordagem coletiva de aprendizado instrumental, que inclua atividades de caráter informal.

5. ConclusãoNem sempre o contexto do ensino formal de música oferece aos seus alunos uma formação instrumental integrada, que, além de contemplar o desenvolvimento técnico-musical e a aquisição de repertório, incorpore as atividades que compõem a prática informal. Se este for o caso, muitas das habilidades musicais, imprescindíveis para a formação do músico instrumentista, poderão estar sendo omitidas do seu processo de aprendizado. Assim, a inclusão das atividades referentes à prática informal parece ser uma responsabilidade a ser assumida por aqueles que ensinam um instrumento.

Para que seja assimilada de forma significativa, tal prática depende da realização de um trabalho sistemático e contínuo, através das atividades de tocar de ouvido, improvisação, composição, apreciação musical e arranjo. Ademais, a inclusão da prática informal deveria ser realizada sem que o trabalho do professor de instrumento e o empenho pela formação instrumental sejam comprometidos. A busca pela integração das práticas de estudo instrumental deliberada e informal, parece, então, representar um grande desafio pedagógico para aqueles que se aventurarem a empreendê-la. Mas este parece ser um empreendimento essencial, uma vez

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que a integração destas abordagens poderá favorecer o desenvolvimento de importantes habilidades musicais, bem como abrir novas veredas para os jovens músicos eruditos, facilitando sua eventual inclusão no difícil mercado de trabalho brasileiro.

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Patrícia Furst Santiago é Professora Visitante na Escola de Música da UFMG (PRODOC/CAPES), onde conduz pesquisa sobre a Técnica Alexander e Performance Instrumental. Obteve o Doutorado em Música e o Mestrado em Música no Instituto de Educação da Universidade de Londres e o Bacharelado em Piano e Especialização em Educação Musical na UFMG. Formou-se como professora da Técnica Alexander no Constructive Teaching Centre de Londres.

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WINTER, Leonardo Loureiro; SILVEIRA, Fernando José. Interpretação e execução: reflexões sobre a prática musical. Per Musi, Belo Horizonte, n.13, 2006, p.63-71

Interpretação e execução: reflexões sobre a prática musical

Leonardo Loureiro Winter (UFRGS)[email protected]

Fernando José Silveira (UNIRIO)[email protected]

Resumo: A finalidade desse artigo é demonstrar como as informações obtidas através da pesquisa e análise auxiliam na interpretação e execução de uma obra musical. A partir desse objetivo, são examinadas diferenças entre o trabalho do compositor e do intérprete, as características notacionais de uma partitura e dos processos que envolvem a leitura musical, as diferenças entre interpretação e performance crítica, bem como investigados os papéis da análise e pesquisa na elaboração de perguntas investigativas que auxiliem a interpretação e a execução musical.Palavras-chave: pesquisa em música, análise musical, interpretação e execução musical.

Interpretation and performance: reflections about the musical practiceabstract: The aim of this article is to exemplify how the information obtained through research and analysis can enhance the performance of a musical work. Taking this objective as our starting point, we discuss the differences between the work of the composer and the performer, the characteristics of the musical notation and its reading process, as well as the differences between interpretation and critical performance. We focus our article on the importance of the musical analysis and research to raise investigative questions which can help the musical interpretation and performance.Keywords: music research, music analysis, music interpretation and performance.

Otto E. Laske, no artigo “Toward an Epistemology of Composition”, propôs um modelo para o ciclo composicional tendo como finalidade a representação das decisões tomadas pelo compositor na realização de uma obra musical. Conforme ele, o ciclo “[...] compreende todos os processos (mentais e materiais, imaginativos bem como factuais) que ocorrem durante o ato de fazer arte” (LASKE, 1991, p.244). Nesse processo de escolhas composicionais, Laske identifica planos ou idéias geradoras, dados referenciais e geração de materiais que, por diferentes processos (repetições, inversões, desenvolvimentos, permutações etc.), resultarão na obra musical. Ele diz:

O ciclo origina-se em um plano baseado em uma idéia e, via geração de materiais, dirige-se a três modelos de obra de arte: um modelo de materiais (M1), um modelo de design geral (M2) e um modelo de design detalhado (M3). Em geral, o ciclo [compositivo] atravessa quatro níveis, a saber, o nível da análise, da síntese, da especificação e da implementação (LASKE, ibid.).

Ao analisarmos o ciclo composicional descrito por Laske, observamos a presença contínua do compositor na elaboração musical. Nesse processo é facultado ao compositor o poder de decisão na geração, transferência e transformação de idéias e materiais formadores da obra. Ao se considerar a vontade expressa do compositor para a obra - materializada através da partitura musical - nota-se que, em relação ao intérprete, na maioria das vezes, não é facultada a modificação da obra em termos de planos ou idéias geradoras, na escolha de materiais ou de

Per Musi – Revista Acadêmica de Música – n.13, 119 p., jan - jun, 2006 Recebido em: 14/08/2005 - Aprovado em: 03/04/2006

1 Exceções devem ser feitas nos casos onde o intérprete trabalhou na elaboração composicional da obra junto ao compositor, oferecendo sugestões, modificações etc.; ou em casos, geralmente associados à música contemporânea de vanguarda, onde é permitida e incentivada a participação criativa do intérprete na obra.

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elementos presentes na superfície musical (como, e.g., melodias, ritmos e harmonias)1 . Apesar disso, no processo interpretativo, o compositor deverá estar consciente da inevitabilidade da intervenção do intérprete no resultado final da sua obra, o que se deve, entre outros fatores, às limitações da grafia musical.

Embora a partitura contenha elementos essenciais a partir dos quais o intérprete vai iniciar seu trabalho interpretativo, esta não tem a capacidade de fornecer a totalidade de informações que estão presentes em uma execução musical. Ao intérprete é reservado o papel de “complementar” as informações fornecidas pelo compositor com elementos vinculados às práticas interpretativas.2 A esse respeito, KRAUS (2001, p.75)afirma que “[...] partituras não determinam interpretações3 e interpretações não determinam performances4 . Interpretações são mais completas que partituras e performances são mais completas que interpretações” . Ele ainda acrescenta:

[...] uma interpretação idealmente admissível não é inteiramente escrita em uma partitura caracteristicamente incompleta. Considerações extra-partitura são requeridas para complementar a interpretação. Enquanto o que é especificado em uma partitura não é suficiente para uma interpretação desta, o que está especificado [na partitura] pode ser suficiente [...] para a identificação de uma obra. [...] Existe uma certa correspondência entre o que é interpretado e o que é anotado como instrução em uma partitura. A diferença entre o que é interpretado e o que é notado é a partitura no contexto de suas práticas interpretativas (KRAUS, ibid.).

STIER (1992, p.18) também identifica limitações da notação musical na representação da idéia musical do compositor:

A notação [musical], não importando o quão cuidadosa ou exata, poderá, no máximo, ser apenas um guia para o executante. Primeiramente, você deverá estudar todos os detalhes da partitura de forma exata e detalhada para juntar as informações que o compositor tentou comunicar. Compositores esperam que você respeite aquilo que ele tentou dizer através da sua obra e da ciência da notação. Eles esperam que você entenda a forma, harmonia, melodia e fraseologia. Eles também esperam que você saiba que existem detalhes que são impossíveis de se escrever, ou irão soar erroneamente se executados como foram grafados.

O filósofo Luigi PAREYSON (1989, p.157), ao analisar o processo de leitura de uma obra de arte, identifica aspectos diversos nessa atividade: decodificação, mediação e realização. Ao transpor esses conceitos para a música, observa-se que a leitura de uma partitura acontece através de processos integradores, envolvendo a decodificação dos símbolos musicais, a construção do entendimento da obra (interpretação) e sua realização sonora (performance ou execução). Na decodificação são relacionados os códigos musicais com conhecimentos teórico-musicais previamente adquiridos; na mediação, os códigos decifrados são avaliados e

2 Aqui entendida como o conjunto de conhecimentos específicos vinculados à interpretação e/ou performance.

3 Segundo Levinson, interpretação é “... a elucidação de uma obra e de suas relações internas com a finalidade de mostrar o que a obra está dizendo ou fazendo, seja na parte ou no todo” (LEVINSON, 2001, p.33).

4 Compreendida aqui como o ato de execução musical de uma obra, envolvendo apresentação, seja pública

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transformados em sistemas significantes; a realização é a própria execução, o ato em si. Esses diferentes aspectos no ato de leitura de uma partitura musical estão presentes de maneira complementar, onde uma atividade informa e é informada pela outra. Além disso, o exercício crítico exercido durante e após cada leitura permite a correlação dos símbolos grafados com o significado musical e a realização sonora, possibilitando um processo de reavaliação constante pelo intérprete.

Mas qual seria, então, o papel do intérprete na transmissão da mensagem contida na partitura? Para UNES (1988, p.14), o intérprete é aquele que “[...] torna possível ao leitor comum o acesso a uma determinada obra que se encontra codificada num sistema [...] cujas regras são desconhecidas pelo leigo”. Conforme ele, a atividade do intérprete seria semelhante ao papel exercido por um tradutor, estabelecendo semelhanças entre estas atividades na decodificação e mediação de signos que, de outra maneira, não seriam compreendidos: “[...] o intérprete traduz signos gráficos em signos sonoros [e o tradutor] traduz signos idiomáticos desconhecidos em signos compreensíveis” (UNES, ibid., p.15).

Levanta-se outra questão nesse processo: se o papel do intérprete é semelhante ao papel do tradutor, quais as alternativas possíveis na “tradução” de um texto musical? Pareyson identifica duas concepções filosóficas que por algum tempo causaram um falso dilema sobre a leitura de uma obra de arte: a impessoalidade da reevocação, defendida por Croce, ou a arbitrariedade da tradução, apontada por Gentile (apud PAREYSON, p.151). Se para Croce, a leitura de uma obra de arte apresenta como característica a “reevocação” desta (ou seja, reconstruir o texto com precisão, recriando o mais fielmente possível as imagens originais e, portanto, com o mínimo de interferências pessoais), para Gentile, a leitura consiste em uma tradução que “revive” a obra pela atividade do leitor, em que cada leitura é uma nova interpretação, existindo múltiplas interpretações e, por conseguinte, múltiplas obras (Croce e Gentile apud PAREYSON, p.151). Ao se considerar a alternativa proposta por Croce aplicada à música (ou seja, a “impessoalidade da reevocação” na interpretação musical), logo se percebe que, considerada de forma ortodoxa, é impossível de ser realizada, pois o intérprete, mesmo que inconscientemente, sempre adicionará elementos subjetivos na interpretação e execução da obra. A proposta de Croce só vale a pena ser considerada se não for adotada de modo absoluto, ou seja, através do equilíbrio entre a vontade musical expressa do compositor, materializada na partitura e recriada o mais fielmente possível, e a contribuição proporcionada pelo intérprete. No que diz respeito à posição de Gentile, deve-se apontar a possibilidade de transformar de tal maneira a obra que esta adquira um significado totalmente diverso e distante da intenção original do compositor (autor), ocasionando o surgimento de uma nova obra. Como resposta a estas questões, colocadas por Croce e Gentile no que diz respeito ao ato de leitura de uma obra, Pareyson defende o princípio da coincidência da espiritualidade (ou seja, do significado a ser transmitido) e da fisicidade (ou seja, do texto) na obra, havendo uma duplicidade no que tange à natureza da obra de arte, unindo forma e conteúdo de maneira indissolúvel (PAREYSON, ibid, p.15). Cabe, pois, ao intérprete, consciente das características associadas ao ato de leitura, ponderar sobre estas questões, buscando uma alternativa que contemple essas possibilidades de acordo com seu entendimento. Nesse sentido, o compositor deverá confiar no conhecimento musical do intérprete para identificar, por meio do contexto subjetivo e cultural da obra, os aspectos interpretativos a serem escolhidos (GUERCHFELD, 1995, p.96).

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ROSS (1993) afirma que existem dois níveis de informação na partitura: os objetivos e os subjetivos. Os objetivos são todas aquelas informações que se encontram restritas ao espaço do pentagrama, como ritmo e altura dos sons (i.e., notas). Os aspectos subjetivos são todos os outros, tais como indicações genéricas de tempo e dinâmicas. As notações de dinâmicas, por exemplo, não são propostas em decibéis e, portanto, sua execução variará segundo o entendimento do intérprete, influenciada, também, por outros aspectos da performance, tais como acústica da sala e equilíbrio instrumental. O mesmo ocorre com indicações expressivas encontradas em partituras: dolce, allargando, affretando etc. Outros aspectos como o andamento expresso através de palavras - por exemplo, o termo “Allegro” - são, geralmente, eleitos baseados em valores pessoais do intérprete (LEVINSON, 1993, p.34). Portanto, “[...] a notação musical, e a nomenclatura utilizada junto a ela, é uma representação gráfica (e verbal) qualitativa dos elementos sonoros, e não quantitativa e, assim, a interpretação dessa partitura (notação musical) é, conseqüentemente, subjetiva” (KAYAMA, 1995, p.102-3). Mais que isso, a notação musical é “[...] uma espécie de guia de instruções, baseada na prática comum, convencionalmente estabelecida de acordo com a época ou período histórico” (GUERCHFELD, 1995, p.94). Observa-se, portanto, que o intérprete apresenta um papel fundamental na transmissão dos elementos contidos na obra para o receptor (ouvinte), possuindo a capacidade de acrescentar ou mesmo modificar substancialmente a mensagem contida na partitura. Para o ouvinte, essa subjetividade advinda do processo interpretativo proporciona, a cada execução da mesma obra, sua recriação como se fosse uma nova. Adicione-se a isso a constatação de não haverem duas interpretações iguais da mesma obra, ainda que o intérprete seja o mesmo. GUERCHFELD (1995, p.96) comenta:

[...] não há duas interpretações iguais da mesma obra, nem pela mesma pessoa, ainda que essa pessoa seja o próprio compositor, independentemente da sofisticação do sistema de notação. Conseqüentemente, todos os sistemas vigentes se constituem basicamente de registros de elementos como a altura relativa das notas musicais e sua relativa duração, enquanto que os demais elementos constitutivos da obra musical são, na melhor das hipóteses, sugeridos ao executante. Questões como modo de execução, fraseado, articulação, dinâmica sonora e outras vão depender de interpretação, em função do significado percebido e atribuído a esses vários elementos.

Já Pierre Boulez (apud CONTIER, 1999, p.268) questiona a partitura musical como uma possível representação de um cárcere, “[...] capaz de inibir a reinvenção de uma obra por intérpretes técnica e esteticamente mais radicais ou ousados”. Talvez a partitura não seja propriamente um cárcere, mas possua informações importantes para, subjetivamente, impor alguns limites ao intérprete. MARTIN (1993, p.120) informa da possibilidade do indivíduo ser “familiar” com certa obra musical sem estar familiarizado com a partitura somente através da apreciação auditiva da obra. Acredita-se, porém, que para o músico/intérprete, construindo sua interpretação a partir da partitura, seja imprescindível profundidade no conhecimento desta.

A partir do momento que o intérprete escolhe esta ou aquela obra para a execução, o intérprete “se envolve afetiva e comportamentalmente” com ela e com o recital ou concerto, iniciando um processo de maturação musical com o intuito de obter uma concepção consistente sob sua ótica (MAGALHÃES, 1992, p.91). A seleção das obras (ou obra), que farão parte do recital/concerto, pode resultar de escolhas pessoais identificadas pelas relações de afinidade. Dentre esses fatores de empatia, podem-se destacar os “sócio-culturais que estejam direta ou indiretamente

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ligados à composição de certa peça, conhecimentos adicionais sobre a técnica e a estética do compositor [...]” (MAGALHÃES, 1992, p.91). Segundo CONE (1968, p.88-89), a “[...] percepção estética depende [...] da compreensão sinóptica” da estrutura da obra5 , mas ideais estéticos são algo à parte da consciência do indivíduo, indicando que os conceitos estéticos devem ser compreendidos “por sua própria definição”. Isso indica que o fato de a obra escolhida para a execução ser de entendimento do intérprete faz toda a diferença, já que o intérprete deverá tentar se aproximar do estilo da obra (MAGALHÃES, 1992) ou “do espírito da música” (BERENSON, 1993, p.61). “Músicos trabalham a partir de uma partitura. É impressionante, contudo, o grau de liberdade que um músico tem ao explorar e testar formas alternativas de construir o design de uma execução” (SCHÖN, 2000, p.158). Mas o que seria “tocar bem”?

Que é uma boa execução? Uma tecnicamente perfeita? Ou aquela que revela algo a quem, no caso da música, a escuta? [...] O essencial é percebermos a forma da obra e tentar transmiti-la tão claramente quanto possível aos nossos ouvintes (CONE, 1968, p.39), utilizando-nos dos recursos do nosso corpo e do nosso instrumento, apoiados numa fundamentação teórica que busque esquadrinhar todos os aspectos da e relacionados com a obra em questão. Creio ser essa a melhor abordagem para o intérprete: deter-se não apenas na análise orgânica da peça a ser trabalhada; tomá-la como ponto de partida, porém, além dela, buscar a análise mais abrangente, de relacionamentos com todos os outros aspectos da composição e de seus sentimentos pessoais em relação a ela, ao ato de execução e à própria arte – à vida, enfim, em busca de uma síntese final a ser manifestada em sons (SANTIAGO, 1992, p.81).

A interpretação é um processo no qual gradativamente vão sendo revelados aspectos de uma imagem correspondente da obra, não sendo fechada em si mesma, mas conectada com diversas possibilidades que se modificam no transcorrer do percurso a partir de descobertas, revelações, verificações, correções etc. Se o processo interpretativo modifica-se com o decorrer do tempo e de novas descobertas realizadas pelo intérprete, cabe a este investigar e formular o maior número possível de questões sobre a obra. A respeito do processo interpretativo, PAREYSON (1989, p.168) afirma:

Pode-se, então, comparar a interpretação a um diálogo entre pessoas, feito de perguntas e de respostas, em que se trata não só de saber escutar, mas também saber falar, isto é, de formular as perguntas do modo mais compreensível ao próprio interlocutor de forma a dele obter as respostas mais acessíveis aos pontos de vista em que nos encontramos.

A interpretação e a execução de uma obra musical pressupõem a realização de escolhas. Dependendo das escolhas adotadas, o intérprete propõe diferentes interpretações para uma mesma obra, influindo na mensagem transmitida. Para que essas escolhas sejam fundamentadas, é necessário embasá-las em um conjunto de conhecimentos sobre a obra a ser estudada, sejam elas teóricas, instrumentais, histórico-sociais, estilísticas, analíticas, baseadas em práticas interpretativas de época, organológicas, iconográficas etc. Esse conjunto de conhecimentos e informações fornece elementos que influenciam a interpretação de uma obra e, conseqüentemente, a performance. Contudo, a performance poderia até mesmo prescindir desse conjunto de conhecimentos e, ainda assim, constituir-se em uma performance coerente

5 Por compreensão sinóptica, entende-se a percepção de como o artista deve proceder a esta experiência artística de acordo com suas próprias idéias.

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e válida. Porém, a contribuição proporcionada pela pesquisa e análise, interligadas com a interpretação, tende a consolidar a prática da performance musical que, de outra maneira, seria meramente intuitiva. GUERCHFELD (1989, p.58) comenta:

Em se tratando de uma atividade complexa, é muito importante que o intérprete busque respostas através da pesquisa sistemática. [...] Por sua própria natureza o intérprete é muito resistente à pesquisa e o próprio termo ‘pesquisa’ o assusta; muitas vezes ele racionaliza, denominando de pesquisa algo que não tem nada a ver com uma busca sistemática de conhecimento [...]. O intérprete necessita estar em dia com seu instrumento, com sua técnica, o que lhe consome várias horas diárias. Mas é preciso também desenvolver alguma forma de articulação das idéias, resultado da reflexão e da pesquisa, muitas vezes embasada na sua própria experiência como intérprete. De certa forma todo intérprete é um pesquisador por suas próprias características, porém, não tem consciência de que o é. Se adquirir esta consciência, poderá se direcionar, de maneira sistematizada, na busca do conhecimento.

Ao considerar-se o processo de estudo de uma partitura, diferentes enfoques e técnicas podem ser adotadas, dependendo da escolha do indivíduo. A escolha da técnica de estudo de uma partitura musical está intimamente ligada à interpretação: por meio dela, o processo interpretativo de uma obra já está sendo construído. Leimer e Gieseking, ao formularem bases para o estudo e aprendizado do instrumento, recomendam que este seja realizado inicialmente apenas na partitura, pois, “[...] ao sentar-se ao instrumento [sic], o intérprete imediatamente se prepara para a resolução de uma série de percalços (de natureza técnica, acústica etc.), com que ele inevitavelmente se defrontará, desviando, assim, sua atenção do texto original” (Leimer e Gieseking apud UNES 1988, p.25). Mas, além disso, qual o conhecimento básico que se deve esperar do intérprete? Segundo MARTINS (1992, p.99) o mínimo, acredita-se, é que conheça profundamente seu instrumento e toda a técnica que envolva sua execução. Ele deve possuir, também, educação musical abrangente, capacitando-o às mínimas considerações da análise musical genérica e das regras e valores da interpretação musical. Deve conhecer o repertório de forma geral, gravações e história da música relacionada aos compositores e artistas mais destacados (MARTIN, 1993, p.12); deverá ter consciência musical e, ao mesmo tempo, estar atento ao que acontece, culturalmente, ao seu redor. Dessa forma, poderá, passo a passo, ampliar o conhecimento e experiência, ainda que de forma empírica, sobre suas necessidades enquanto artista. Há de se esperar, também, que, minimamente, o intérprete tenha preocupações, por exemplo, com as edições musicais que adotará. Não se concebe, modernamente, as desculpas pelo uso de edições equivocadas. Já há consideráveis avanços na musicologia, assim como a ampla divulgação dessas pesquisas, para que o intérprete possa tomar ciência das recentes descobertas – fontes obrigatórias de informação (MARTINS, 1992, p.101). Não se pretende afirmar que não é possível uma boa interpretação sem conhecimento teórico, mas apenas evidenciar que o conhecimento teórico contribuirá para uma visão crítica e fundamentada do intérprete (GERLING, 1992).

Muitas são as influências recebidas pelos músicos durante sua carreira. Dentre essas influências, pode-se destacar, como muito importante, a cultura. Nela estão amalgamados os ritmos característicos e os aspectos culturais e históricos inerentes à música de seu país. A isso vem colaborar a teoria de Luigi Pareyson, segundo a qual a criação artística é pessoal e histórica, isto é, fruto da experiência do artista (Pareyson apud ABDO, 2000). Este aspecto intrínseco do intérprete, com suas próprias raízes, facilita que ele “incorpore de forma sublime [a música] em sua maneira de tocar” (LEVINSON, 1993, p.38), aproximando-se, ao máximo,

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dos aspectos estéticos da obra musical. Esses aspectos estéticos fazem com que o intérprete adquira responsabilidades e obrigações perante a obra e seu compositor, levando-o a delimitar, segundo sua consciência e fundamentado em estudos extra-partitura, seus limites como intérprete (URMSON, 1993, p.160-161).

Do conjunto de conhecimentos que auxiliam a interpretação e performance de uma obra, a análise musical fornece princípios objetivos pelos quais a execução pode ser informada, contribuindo na solução de problemas específicos de interpretação. Segundo BERRY (1989, p.6), “[...] a experiência musical é mais rica quando elementos funcionais de forma, continuidade, vitalidade e direção tenham sido claramente discernidos na análise e interpretados como uma base para a consciência intelectual que precisa embasar interpretações verdadeiramente esclarecedoras”. Nesse sentido, o conhecimento da estrutura musical por parte do intérprete é um requisito básico nas escolhas a serem tomadas, fazendo com que decisões analíticas e performance dialoguem entre si, uma informando e complementando a outra. COOK e EVERIST (1999, p.248) denomina esse tipo de atividade como “performance estruturalmente informada”, na qual a análise é utilizada como uma ferramenta para as decisões a serem tomadas. Para ele, análise musical contribui como processo, não como produto final, salientando a interatividade e simultaneidade entre análise e execução na construção da interpretação musical. A execução musical, segundo CONE (1968, p.13), deve ser, também, um evento teatral e dramático, com começo, meio e fim. Como um evento “dramático”, a platéia é parte integrante do recital/concerto, contribuindo positivamente ou negativamente para a qualidade da performance.

LEVINSON (1993) aponta dois níveis de interpretação: Performática (IP) e Crítica (IC). Destaca, como principais diferenças entre elas, que a IC é mais do que simplesmente colocar em prática a visão do intérprete, mas sim levar em conta aspectos não explícitos na partitura para revelar as suas convicções interpretativas. A IP é aquela revelada ao ouvinte no momento da execução. Esta poderá ser o resultado de uma IC ou não. Duas interpretações performáticas poderão ser similares, apesar de se originarem de interpretações críticas distintas. Uma interpretação crítica poderá ser originária de um estudo analítico da obra, de escolhas intuitivas ou das duas combinadas, desde que o intérprete consiga fundamentar suas escolhas. Por essas escolhas, alicerces da interpretação crítica, o executante elege “como aquela obra deverá soar” (LEVINSON, 1993, p.44). Na interpretação performática (IP), ele identifica duas fases que se influenciam continuamente, não necessariamente nessa ordem:

idealização da obra e reconstrução do texto: Qual a verdadeira obra escrita? Qual obra foi pensada pelo compositor? (decidir o que a partitura representa).Realização: como a obra é executada? Definir valores como tempo, articulação, dinâmica etc. (execução da obra) (LEVINSON, Ibid., p.34).

Levinson ainda salienta que a primeira fase tem conexão com interpretação crítica (IC) pela formulação de perguntas sobre o que a obra representa ou expressa e da elucidação de seus relacionamentos internos. Contudo, para uma mesma obra, podem existir diferentes possibilidades de análises, cada uma estabelecendo suas próprias conclusões e levando a diferentes interpretações musicais. COOK e EVERIST(1999, p.261) defendem a possibilidade de múltiplas interpretações como base para o pluralismo analítico, permitindo diferentes abordagens e o surgimento de questões articuladas sobre a obra. Assim sendo, o desafio do intérprete-analista é decidir quais conclusões devem ser extraídas da análise e conectá-

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las com os procedimentos interpretativos e de execução. De qualquer modo, “não há algo como a interpretação ideal” já que a “vitalidade renovada [da obra] em cada execução é que a mantém viva” (CONE, 1968, p.56).

Nos dias de hoje, em que o papel da performance na academia tem sido questionado por alguns pesquisadores e teóricos, a resposta a ser oferecida é clara: através de um sólido conhecimento proporcionado pela pesquisa, análise, entre outros, aliados a uma prática musical consistente, o intérprete pode ocupar seu lugar na vida acadêmica, contribuindo para o aprofundamento da ciência da música e oferecendo um duplo caminho para a complementação das informações de natureza puramente teórica.

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WINTER, Leonardo Loureiro; SILVEIRA, Fernando José. Interpretação e execução: reflexões sobre a prática musical. Per Musi, Belo Horizonte, n.13, 2006, p.63-71

Leonardo L. Winter é Doutor em execução musical (UFBA) e exerce as funções de Professor Adjunto de flauta transversal e coordenador da disciplina “Técnicas Interpretativas de Música de Câmara” na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Vencedor de vários concursos, atuou como solista com as orquestras do Teatro São Pedro, Unisinos, Orquestra de Câmara de Blumenau, OSPA, OSUFBA e Orquestra Barroco na Bahia. Como camerista, tem atuado em recitais no Brasil, Buenos Aires e na Suíça. Membro do Trio de Madeiras de Porto Alegre (flauta, clarineta e fagote) e do Duo Coraggio (flauta e clarineta) tem se dedicado ao repertório camerístico. Participou de diversas masterclasses com renomados professores, como Emmanuel Pahud, Félix Renglli, Auréle Nicolet, Peter-Lukas Graff, Michael Faust. Inte-grante da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (OSPA) desde 1990, tem atuado como músico convidado de diversas orquestras.

Doutor em Execução Musical/Clarineta pela UFBA, Fernando José Silveira é Professor Ad-junto de clarineta, saxofone e música de câmara da UNIRIO. Aluno de José de Freitas e Joel Barbosa, participou de cursos com Wolfgang Meyer e Alain Damiens. Foi primeiro clarinetista da Orquestra Sinfônica Nacional (RJ) durante 7 anos. Atua como solista, camerista e docente pelas Américas do Sul, Norte e Europa. Atua como clarinetista e saxofonista free lancer, par-ticipando da Orquestra Sinfônica Brasileira, Orquestra Petrobrás Sinfônica e Orquestra Sinfô-nica de Porto Alegre (OSPA). Escreve artigos para prestigiosos periódicos internacionais, tais como The Clarinet (Associação Internacional de Clarinetistas, EUA) e Eldorado (Associación Latinoamericana de Instrumentistas de Cañas, Buenos Aires). É membro do Duo Coraggio e do Trio de Palhetas da UNIRIO.

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SANTOS, José Vianey dos. Treze Canções de Amor de Camargo Guarnieri... Per Musi, Belo Horizonte, n.13, 2006, p.72-84

Treze Canções de Amor de Camargo Guarnieri: uma abordagem histórica, analítica e interpretativa

José Vianey dos Santos (UFPB)[email protected]

Resumo: Este artigo se constitui numa síntese da tese de doutoramento Treze Canções de Amor (Thirteen Songs of Love): a song cycle by Camargo Guarnieri, que objetivou desenvolver a literatura musical sobre o seu ciclo ampliando, assim, as possibilidades da performance e pedagogia vocais. Aspectos da vida e obra do compositor foram apresentados, a fim de situá-lo no contexto da sociedade brasileira e nos eventos históricos nos quais ele viveu.Palavras-chave: música brasileira, Camargo Guarnieri, canção brasileira, Modernismo e música, performance vocal.

Treze Canções de Amor by Camargo Guarnieri: a historical, analytical and interpretative approach.abstract: This article summarizes the doctoral dissertation Treze Canções de Amor (Thirteen Songs of Love): a song cycle by Camargo Guarnieri which had the main purpose of bringing new information about the song cycle of the Brazilian composer to improve vocal performance and pedagogy. Aspects of the composer’s life and work were presented to place him within the context of the Brazilian society and the historical events in which he took part.Keywords: Brazilian music, Camargo Guarnieri, Brazilian art song, Modernism and music, vocal performance.

1- introduçãoA canção de câmara brasileira remonta sua origem nas canções de salão das famílias abastadas do Brasil colonial em sua interação cultural com Portugal. A forma vocal mais proeminente oriunda daqueles salões foi a modinha, a qual se difundiu pelos centros urbanos brasileiros, entre os séculos XVIII e XIX, e se popularizou paulatinamente atingindo diferentes camadas sociais. Por outro lado, as classes trabalhadoras do Brasil Colônia e Império, ou seja, os escravos negros na sua maioria, praticavam sua própria música propiciando diferentes possibilidades musicais daquelas dos salões ricos. Assim surgiu o lundu que, ao lado da modinha, representou outra forma de expressão vocal importante naquela época.

Com o advento do Nacionalismo, a canção de câmara brasileira teve em Alberto Nepomuceno (1864-1920) o seu mais importante defensor. Ao equiparar o nível poético ao musical, já atingido pelo Lied alemão e pela mélodie francesa, e advogar o canto em língua nacional, Nepomuceno preparou o caminho desta forma vocal facilitando assim a produção dos futuros compositores brasileiros. Mudanças significativas relacionadas às artes nos grandes centros urbanos brasileiros, especialmente em São Paulo e Rio de Janeiro, começaram a ocorrer no início do século XX e a conjunção de novas idéias políticas com novas práticas artísticas viria a se firmar com o Movimento Modernista. Tendo Mário de Andrade (1893-1945) como seu principal interlocutor, o Modernismo mudou de forma significativa os rumos da música erudita no Brasil. Entre os preceitos dos modernistas estavam “o direito permanente à pesquisa estética, a atualização da inteligência artística brasileira e a estabilização de uma consciência criadora nacional” (MARIZ, 2000, p.145).

Per Musi – Revista Acadêmica de Música – n.13, 119 p., jan - jun, 2006 Recebido em: 11/10/2005 - Aprovado em: 14/05/2006

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Mário de Andrade foi um dos mais influentes intelectuais brasileiros na primeira metade do século XX e o seu pensamento continua a ser discutido até os dias de hoje. Enquanto escritor, professor de estética musical e crítico musical e literário, Andrade orientou muitos artistas brasileiros identificados com o pensamento da brasilidade. Entre os seus discípulos estava Camargo Guarnieri (1907-1993), que sempre confessou o quanto Andrade foi importante tanto para sua carreira de compositor quanto para a sua formação geral, como cita Maria ABREU (2001):

Eu era um sujeito bisonho, mal saído do segundo ano do grupo escolar. Mário não só organizou um plano para meus estudos, onde obras de valor universal estavam presentes, como também colocou sua biblioteca à minha disposição (p.40).

Guarnieri desenvolveu sua produção composicional sempre sob a égide da expressão de uma linguagem musical brasileira fiel ao pensamento andradiano. Mesmo depois da morte do seu mentor, Guarnieri continuou numa posição representativa de ‘compositor nacional’, a despeito da influência trazida pelos estudos da música de Schoenberg, Hindemith e Berg. Essa influência se converteu em liberdade tonal para a suas peças, que em vez de atonais, ele as preferia chamar de ‘não tonais’. “Possuíam tonalidade indeterminada, não eram maiores nem menores, não eram em Dó nem em Ré...” (VERHAALEN, 2001, p.28).

Depois do piano, seu primeiro instrumento musical e a base de seus estudos composicionais, foi no canto que Guarnieri se expandiu de modo mais expressivo e diversificado. Compôs 206 canções para canto e piano, além de outras obras vocais, sempre primando por um estilo de caráter nacional através do uso do nosso idioma e de elementos de nossas raízes culturais. A propósito da verve cancioneira do compositor, ANDRADE (1993) afirma:

Talvez sejam os Lieder a parte mais acessível, mais amável de criação de Camargo Guarnieri. Persiste neles, é certo, aquele ascetismo básico do pensamento musical deste paulista, que o leva a não fazer nenhuma concessão a nós outros, indo à mais amarga, à mais desértica dedução lógica de seu próprio pensamento e individualidade: mas sempre a linha cantada de Camargo Guarnieri se reveste de maior sensualidade, é mais gostosa por assim dizer, tomando as suas bases mais constantemente na melódica das modinhas (p. 311).

A primeira incursão de Guarnieri no âmbito da canção de câmara foi em 1928, ano em que começara a sua amizade com o “Papa do Modernismo”. Daquela época até praticamente o final da sua vida, Guarnieri sempre compôs para a voz, com humores variados em consonância com os poemas e demonstrando uma crescente acuidade para com a relação texto-música. Algumas canções foram agrupadas posteriormente formando pequenos ciclos, como as Três Canções Brasileiras (1939 e 1948); outras foram concebidas num todo, como as canções Para Acordar Teu Coração (1942-1951) e os Cinco Poemas de Alice (1954).

2- ObjetivosA presença de Camargo Guarnieri na história da música brasileira vem tomando, cada vez mais, maior vulto e representando um crescente interesse por parte dos estudiosos da área, quer para um melhor entendimento do seu estilo composicional quer para um aperfeiçoamento na execução da sua obra. Com o intuito de aprimorar a performance e pedagogia vocais, o propósito desta pesquisa foi o de ampliar a informação sobre o ciclo Treze Canções de Amor de Camargo Guarnieri.

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Dentre os objetivos específicos deste estudo procuramos situar o compositor e seu ciclo no contexto da música erudita brasileira; analisar as canções em função do ciclo; avaliar as influências que tenham sido trazidas pelo compositor para o referido ciclo; sugerir tópicos para a performance.

3- Treze Canções de AmorGuarnieri compôs o ciclo Treze Canções de Amor entre abril de 1936 e dezembro de 1937, mas não o publicou em editoras comerciais. Ao invés, solicitou uma edição particular ao seu copista e, depois, outra edição foi elaborada pelo Serviço de Difusão de Partituras da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. A cópia usada para este estudo, como fonte primária, é uma fotocópia desta última edição, gentilmente cedida por Edmar Ferretti, cantora e professora de canto que trabalhou com Guarnieri por muitos anos. Por impossibilidades físicas e materiais, os originais não puderam ser analisados para este estudo.

Apesar de não haver nenhuma continuidade poética estrita entre as canções, elas possuem uma ordem numeral sugerindo que o compositor concebeu o ciclo nesta seqüência específica. Do ponto de vista musical, a integridade do ciclo é justificada por Marion VERHAALEN (2001, p. 253) ao reafirmar o desejo do compositor: “Musicalmente, não demonstram que inicialmente houve qualquer intenção de agrupá-las, seja pelo estilo ou pela tonalidade, mas ele pretendia que fossem cantadas em conjunto”.

Treze Canções de Amor:1. Canção do passado – Poesia: Corrêa Junior2. Se você compreendesse... – Poesia: Rossine Camargo Guarnieri3. Milagre – Poesia: Olegário Mariano4. Você... – Poesia: Francisco de Mattos5. Acalanto do amor feliz – Poesia: Rossine Camargo Guarnieri6. Em louvor do silêncio... – Poesia: Corrêa Junior7. Ninguém mais... – Poesia: Cassiano Ricardo8. Por que? – Poesia: Camargo Guarnieri9. Cantiga da tua lembrança – Poesia: Rossine Camargo Guarnieri10. Talvez... – Poesia: Carlos Plastina11. Segue-me – Poesia: Quadra popular12. Canção tímida – Poesia: Cleómenes Campos13. Você nasceu... – Poesia: Rossine Camargo Guarnieri

A variedade de climas poéticos neste ciclo pode ser explicada pela diversidade de poemas que Guarnieri escolheu para musicar. As fontes poéticas foram de vários autores aproximadamente contemporâneos do compositor, com exceção de Segue-me, cujo poeta é anônimo e tornou-se, portanto, uma poesia de época indefinida da tradição popular. Um poema foi escrito pelo próprio Guarnieri - Por que?, que ao invés de revelar seu nome, o compositor preferiu colocar três ‘x’ no alto esquerdo (local do poeta) da partitura.

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Rossine Camargo Guarnieri, o primeiro irmão do compositor, é autor de quatro dos poemas usados no ciclo: Se você compreendesse, Acalanto do amor feliz, Cantiga da tua lembrança e Você nasceu. Nestes poemas, Rossine mostra uma construção poética simples, porém abundante em conteúdo e imagens passionais: do amor intenso e não correspondido ao amor confiante e repleto de encantamento “murmurando cantigas pra você”. O poema Ninguém mais é de autoria do poeta paulista Cassiano Ricardo Leite (1895-1974), que participou dos movimentos Modernista e Nacionalista sendo eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1937. Seu estilo poético apresenta aspectos que vão do Simbolismo/Parnasianismo até a poesia de vanguarda. Em Ninguém mais, Cassiano Ricardo revela-se numa fase de internalização do ‘Eu’, no qual a figura poética dialoga com uma projeção de si mesma. Outro membro da Academia Brasileira de Letras, Olegário Mariano, é autor do poema Milagre. Olegário Mariano Carneiro da Cunha (1889-1958), pernambucano de origem, identificou-se com a escola parnasiano-simbolista de poesia e em 1938 foi eleito, pelos intelectuais de todo o Brasil, o terceiro “Príncipe dos Poetas Brasileiros” (ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, 2003). No poema Milagre, Mariano utiliza a linguagem simbolista ao fazer um paralelo entre o personagem e o tronco da árvore. Cleómenes Campos de Oliveira (1895-1968), autor de Canção tímida, foi membro da Academia Paulista de Letras e Academia Sergipana de Letras. Seu poema exibe um estilo simples, quase coloquial, no qual a figura poética permanece absorta em pensamentos de incerteza exalando “suspiros perdidos no ar”.

Até o presente momento, este autor não conseguiu obter informações sobre os outros poetas contidos no ciclo. São eles: Corrêa Junior, Canção do Passado e Em Louvor do Silêncio; Francisco de Mattos, Você; e Carlos Plastina, Talvez. Os poemas empregados no ciclo apresentam, em geral, regularidade métrica em seus versos com a predominância de sete e oito sílabas por verso. A canção Nº 4 exibe a métrica mais consistente de todo o ciclo por sua alternância invariável de oito e sete sílabas ao longo de suas estrofes. Com relação à rima, as canções Nº 5, 11 e 13 apresentam rimas isoladas enquanto que as canções Nº 2, 3, 4, 9 e 12 apresentam rimas cruzadas. A canção Nº 8 exibe rima apenas no refrão e as de Nº 1, 6, 7 e 10 exibem versos livres.

Quanto ao tema prosódia, para o propósito deste estudo, as canções foram classificadas em três categorias de acordo com a freqüência com que a síncopa surge na melodia vocal deslocando as sílabas tônicas das palavras-chave do verso, em relação ao português brasileiro falado. As categorias são: prosódia sincopada, prosódia levemente sincopada e prosódia falada (Fig.1). Prosódia sincopada é definida aqui como um deslocamento considerável do acento das sílabas tônicas na frase vocal ou verso em relação à prosódia falada no vernáculo. Nas canções Nº 1, 3, 4, 7 e 10 a prosódia sincopada é encontrada na linha vocal e está diretamente ligada ao padrão rítmico musical. A prosódia levemente sincopada, ou seja, aquela que se afasta da prosódia vernacular com menor ocorrência, surge na maioria das canções: Nº 5, 6, 8, 9, 11, 12 e 13. Apesar deste tipo de prosódia estar presente na maioria das canções, a sonoridade geral é próxima à da língua falada. Apenas a canção Nº 2 apresenta o que este autor convencionou de prosódia falada pela ausência do deslocamento exclusivamente da sílaba tônica.

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Estruturalmente, as canções deste ciclo foram divididas neste estudo em dois tipos de forma: estrófica (quatro) e continuada (nove). Apesar de terem estrofes com música similar, as canções estróficas não possuem sinal de repetição e Guarnieri reapresenta o material musical destas com pequenas diferenças no tratamento harmônico/melódico. Esta técnica composicional revela a predileção do compositor pela forma de canção continuada neste ciclo. Além disso, as canções mostram uma variedade harmônica, melódica e rítmica, tanto quanto exibem variedade poética com seus respectivos climas. Este ciclo apresenta, ainda, combinação modal, bitonalidade, tonalidade livre, progressões de acordes específicas segundo a concepção harmônica, melodias diatônicas e cromáticas. Grande parte das melodias vocais alterna intervalos diatônicos com saltos incomuns, tais como sétimas e trítonos.

Guarnieri não mostrou nenhuma predileção por uma tonalidade específica, mas sim por um modo: o maior. Sete canções estão em modo maior e quatro em modo menor. Tradicionalmente, isto sugere que o ciclo pode ser considerado mais para uma atmosfera alegre e bem humorada do que o contrário, muito embora alguns poemas exponham desventuras amorosas, tais como: Se você compreendesse, Por que? e Cantiga da tua lembrança. Uma canção (Nº 1) apresenta mudança de tom maior para menor na tonalidade de Dó e outra canção (Nº 12) foi composta com tonalidade livre.

Fig.1. Três exemplos (Incipit) comparativos entre a prosódia coloquial e as três categorias de prosódia musical, com suas respectivas síncopas, ocorrentes no ciclo de canções.

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Outra característica harmônica, a de relação cruzada pela combinação de duas tonalidades ou tonalidade e modo, está presente nas canções Milagre (Ré maior/Fá maior), Acalanto do amor feliz (Dó# menor/Lá maior), e Você nasceu (Mi maior /Mi Mixolídio) (Ex.1). Na maioria das canções, especialmente naquelas com uma única tonalidade, Guarnieri utilizou uma forte relação tônica-dominante.

Ex.1. Na canção Você nasceu, a combinação de Mi maior com Mi mixolídio.

A conjunção da linha melódica vocal com o acompanhamento pianístico mostra o alcance do compositor em termos de graça, equilíbrio e fluidez através da conexão texto-música. Há duas abordagens básicas com relação à construção musical da linha vocal e acompanhamento neste ciclo. A primeira refere-se às canções nas quais o piano tem um papel estrito de acompanhador, portanto independente, sem nenhuma citação direta da melodia vocal. Por exemplo, nas canções Nº 9 e Nº 10, o piano apresenta um padrão de acompanhamento com uma linha melódica distinta no baixo contrastando com acordes sincopados na mão direita. A melodia vocal se mostra autônoma e seu material melódico não aparece na parte do piano. A segunda abordagem diz respeito à prática de apresentar material melódico da voz no acompanhamento. Esta técnica engloba a maioria das canções e está subdividida em dois grupos: acompanhamento baseado em figuras ou em motivos. Nas canções Nº 1 e Nº 7, Guarnieri usa figuras no acompanhamento que são relacionadas com ou aludem à melodia vocal não apresentando, portanto, uma frase melódica completa. Na canção Nº 8, o compositor inicia a introdução com um motivo oriundo da melodia vocal da última seção desta canção. No entanto, o exemplo mais típico de acompanhamento por motivo ocorre na canção Nº 3. Desde a primeira frase vocal, o compositor reforça a construção do acompanhamento com citações da melodia vocal (Ex.2).

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Ex.2. Na canção Milagre, a construção do acompanhamento com motivos da linha vocal. O motivo na voz superior do piano ecoa a frase vocal anteriormente exposta.

A característica rítmica mais significativa nas Treze Canções de Amor é o uso da síncopa evocando explicitamente duas das mais importantes danças brasileiras: o samba urbano æ n e o baião o•q1 . Apesar do samba e do baião serem executados em tempo 2/4, Guarnieri mostra preferência pelo compasso 4/8 reorganizando cada uma delas para veicular sua concepção musical em cada canção. Ao subdividir os tempos, combinar as figuras, variar as síncopas e redistribuir os acentos, o compositor diversifica e amplia a rítmica nos remetendo a outras importantes danças da cultura brasileira, como o lundu, o maxixe, o tango brasileiro e o xaxado. Outros elementos rítmicos remanescentes de danças de outras culturas que se difundiram no Brasil do final do Segundo Império e início do Republicano também podem ser encontrados no ciclo, tais como da polca e, especialmente, da habanera que tem sua história vinculada ao surgimento do tango brasileiro. Bruno KIEFER (1990) apresenta a idéia de que o lundu abrasileirou a habanera, sendo categórico com respeito à “miscigenação” destas duas danças ao afirmar que “Não há dúvida: uma das raízes do tango brasileiro é a habanera” (p. 36).

1 Alguns consideram esta figura rítmica como sendo a do batuque, porém no Nordeste do Brasil esta é a grafia do ritmo dançado e/ou cantado conhecido amplamente como baião. Ao se subdividir a figura rítmica do baião nos dois tempos do 2/4, em andamento mais rápido, tem-se o xaxado. Ao analisar os Ponteios de Camargo Guarnieri, Belkiss Carneiro de MENDONÇA (2001) afirma que nos de Nº 15 e 32 “... é evidente a influência do batuque” (p. 404). No Dicionário Musical Brasileiro de Mário de ANDRADE (1999), Oneyda Alvarenga refere-se ao batuque como a mais antiga dança registrada no Brasil, porém não apresenta uma grafia musical. Para este autor, à semelhança das Canções, o Ponteio Nº 15 tem a rítmica do xaxado, o Nº 32 apresenta similaridades com o xaxado na seção intermediária, enquanto que o Nº 39 é essencialmente um baião. Alvarenga afirma, ainda, que o batuque, com o passar do tempo, tornou-se um nome genérico para algumas danças, o que leva este autor à hipótese de que o baião e o xaxado podem ter uma origem comum naquela antiga dança, dadas as semelhanças rítmicas e coreográficas.

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Nas canções Nº 1, Nº 4 e Nº 11, o compositor usa amplamente a figura rítmica do samba com suaves variações tanto na melodia vocal quanto no acompanhamento. A canção Nº 4, porém, é a que mais claramente apresenta a clássica figura do samba. Nesta canção, Guarnieri usa aquela figura com ligaduras nas semicolcheias internas æ•æ que, conjuntamente com o tema cíclico, cria uma rítmica cruzada, alterando a prosódia musical ao longo da obra. A clássica figura rítmica do baião apresenta-se claramente na mão esquerda do acompanhamento da canção Nº 6 e de forma abreviada na mão direita do acompanhamento da canção Nº 9. A canção Nº 3 é essencialmente um xaxado m•M pelo desdobramento dos tempos do compasso, pelas síncopas que provocam o ritmo cruzado e pelo andamento rápido, “Depressa”, como indica o compositor. Na canção Nº 8, Guarnieri combina as figuras do xaxado (linha do baixo) e do samba (linha intermediária). A característica mais marcante desta canção, contudo, revela-se na subdivisão rítmica das semicolcheias com o baixo abrasileirado da habanera que, aliados ao andamento moderado, evoca o tango brasileiro dos salões cariocas. A síncopa se apresenta de modo especial nas canções Nº 2 e Nº 12, uma vez que Guarnieri estende o compasso para 4/4. Uma variação da figura típica do baião é apresentada, na canção Nº 2, com o dobro da duração da sua forma em 2/2 com esta configuração j e•eq e e a do samba, na canção Nº 12, com esta configuração eq eqj.

Por volta de 1944, Guarnieri expandiu sua gama de gêneros musicais compondo formas maiores, como sinfonias, sua segunda ópera e concertos, porém seu estilo continuou exibindo os elementos musicais nacionais sob o crivo da sua personalidade e da sua verve artística. Nas suas obras da maturidade, do mesmo modo, pode-se encontrar a melodia fluida, a variedade rítmica e a complexidade harmônica e contrapontística presentes nas Treze Canções de Amor.

A fluidez melódica das linhas vocais nas Treze Canções de Amor exibe, não apenas o esmero do compositor em apresentar um texto inteligível, mas, sobretudo, sua íntima ligação com a expressão musical das formas e rítmicas simples, do povo rural e urbano, mas nem por isso banal. Mesmo em Canção tímida, na qual a melodia da voz parece soar independentemente do acompanhamento, há uma graciosa flutuação dos trechos vocais justificada pelo teor poético da timidez, da hesitação. Quanto à variedade rítmica, a despeito da dissecação analítica anterior, Guarnieri vai muito além da rítmica estrita das danças em questão: samba e baião. A rítmica destas danças é transformada pela técnica de estender, condensar, combinar, re-sincopar e ligar os tempos e compassos de tal forma que ampliam enormemente suas concepções originais transcendendo a rigorosa métrica 2/4. Tomando como exemplo a mais próxima da rítmica estrita do xaxado, a canção Milagre mostra a combinação dos ritmos do baião (voz intermediária), do xaxado (combinação da voz superior com a do baixo) e do samba (alguns tempos da linha vocal). Ao realizar tal combinação, mesmo que a predominância rítmica seja a do xaxado, Guarnieri ultrapassa a concepção rigorosa de qualquer uma destas danças e apresenta uma rítmica cheia de frescor e originalidade. Harmonicamente, a mistura tonal/modal alia-se à rítmica contribuindo para revigorar a música. A canção Você, por exemplo, apresenta os acordes iniciais e finais na tonalidade de Mi bemol maior, mas o modo mixolídio desta tonalidade é amplamente usado. Ao empregar esta combinação em muitos trechos, o compositor traz uma cor especial de surpresa para a música pela presença inesperada da tonalidade pura de Mi bemol maior, no interior da canção. Isto ocorre mais intensamente em dois momentos da referida canção: nas segunda e quarta estrofes.

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Outro exemplo de vigor harmônico encontra-se na canção Se você compreendesse, na qual Guarnieri, partindo da tonalidade de Si menor, usa várias progressões harmônicas não funcionais e intervalos atípicos, como acorde Napolitano, sétima diminuta, segunda aumentada e trítonos, para dar apoio, em especial, ao cromatismo vocal. Em Canção tímida, a justaposição de acordes tonais livres apoiados por um Fá natural tocado no baixo oferece à música um colorido harmônico vago intimamente ligado ao conteúdo poético: o sentimento de dúvida ou incerteza. No que concerne ao contraponto, Guarnieri demonstra sua excelência em todo o ciclo apresentando uma escrita pianística polifonicamente idiomática. Da complexa textura musical da canção Se você compreendesse, na qual as vozes do acompanhamento se misturam perfeitamente ornadas com os grupos de appoggiaturas, até uma textura mais simples como a da Canção do passado, o contraponto se revela orgânico e a favor de uma concepção musical unificada e de uma expressão poético-musical coerente. Uma característica marcante no contraponto deste ciclo é a presença do baixo melódico no acompanhamento, ora como um baixo ostinato dialogando com fragmentos melódicos da parte vocal (Milagre), ora comentando uma melodia da voz superior do próprio acompanhamento (Talvez), ou ainda tornando-se o elemento musical condutor do acompanhamento (Cantiga da tua lembrança) (Ex.3).

Ex.3. Na canção Cantiga da tua lembrança, o contraponto exibe um baixo melódico que conduz o acompanhamento.

4- ConclusõesCamargo Guarnieri foi um dos exemplos mais característicos da geração pós-Semana de 22 e, como um resultado daquele movimento, sua obra continua sendo um símbolo do ideal de brasilidade. Com Mário de Andrade, Guarnieri adquiriu formação cultural não para ignorar o legado da música ocidental, mas para desenvolver gosto estético e enxergar a música brasileira, folclórica e popular, como sua fonte real de criação. Como um compositor de domínio técnico e artístico consumado, ele teve todas as credenciais para defender a música brasileira enquanto arte autônoma.

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O compositor de Tietê não rejeitou influências musicais que considerava contribuições úteis ao seu estilo. Conheceu as principais correntes da história da música ocidental, particularmente as do seu tempo (pós-romantismo, neoclassicismo, dodecafonismo, serialismo, etc.), mas já havia estudado a música popular e o folclore brasileiros e sua obra demonstra isso. No desenrolar da sua batalha contra o dodecafonismo, Guarnieri solidificou sua posição política (sem pretensões politiqueiras), sua estética e criou uma escola de composição única em seu tempo. Sua vida e sua obra estiveram sempre em favor do enriquecimento da música brasileira. Com ele, uma vez mais, o ideal do Modernismo foi atingido: influências musicais exógenas eram recebidas para serem re-elaboradas dentro da música nativa brasileira, dentro daquela música que se produzia pelo povo brasileiro. O antropofagismo na música. Um antropofagismo sem o ímpeto passional e urgente dos primeiros modernistas, porém aquele que emerge maduro, sólido, consistente. Por estas razões, este ciclo de canções pode ser considerado uma obra representativa no legado da música brasileira e colocado entre as obras-primas do gênero. As Treze Canções de Amor, com seu estilo guarnieriano ampliaram indiscutivelmente a literatura vocal brasileira e se transformaram em obras universais.

5- Sugestões para InterpretaçãoAs sugestões apresentadas a seguir são resultados do estudo e da prática deste ciclo por este autor, que sempre tem em mente o ideal de uma música expressiva, ideal este tão profunda e declaradamente defendido por Guarnieri. As Treze Canções de Amor formam um ciclo refinado e apesar de algumas das canções soarem em estilo popular ou folclórico, elas não têm nem são citações de elementos musicais populares ou folclóricas, mas sim obras originais do compositor concebidas pela sua maestria artística e técnica que transcendem estes conceitos.

O primeiro aspecto interpretativo a ser abordado diz respeito às frases vocais. Além de seguir as indicações escritas pelo compositor, é importante observar as particularidades da frase vocal, como movimento, saltos e dinâmica. As canções em estilo declamatório devem ter o seu texto enfatizado através das palavras-chave na frase. Além disso, o cantor deve “dizer” o texto para que mantenha o fluxo poético e seja claramente entendido. Já as canções em tempos mais rápidos, devem ser cantadas com graça, leveza e vivacidade, pois se baseiam em canções de salão ou em danças populares ou folclóricas.

Nem sempre uma linha vocal ascendente requer um crescendo como acontece comumente na tradição européia do canto. Por exemplo, na canção Se você compreendesse, um salto ascendente de sétima diminuta, no compasso seis, pode ser tomado como o clímax da frase vocal. Guarnieri, no entanto, indica um diminuendo para este salto e pede um crescendo em seguida, quando a linha vocal desce.

Outro aspecto que pode parecer insignificante é a execução do portato e glissando. Guarnieri escreveu essas indicações na maioria das canções. Tais indicações representam um aspecto estilístico importante por se tratarem não apenas de uma prática de época, mas principalmente por serem elementos de ênfase para um som escorregado na linha vocal. Na verdade, o portato e o glissando vêm a ressaltar as outras indicações personalizadas do compositor, como as de andamento e dinâmica: “molengamente”, “dengoso” e “com graça”. É o que ocorre, por exemplo, na canção Em louvor do silêncio, na qual o glissando arremata o clima de um humor leve: a figura poética ironiza, suavemente, sua própria ansiedade ante a expectativa da chegada da pessoa amada (Ex.4).

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Ex.4. Na canção Em louvor do silêncio, indicação de glissando no final da palavra “inutilidade”, que conclui o poema.

Portanto, o cantor não deve desprezar o glissando, mas realizá-lo sonoramente e ao mesmo tempo delicadamente, baseando-se nas inflexões da língua falada, para que tal recurso não se torne artificial ou grotesco.

Com relação aos sons nasais, tão característicos da língua portuguesa, podemos observar algumas semelhanças com os nasais franceses ‘un’ [ ] ‘on’ [ ] e ‘in’ [ ].

Contudo, os fonemas ‘in’ / / e ‘um’/ /, e os ditongos ‘ãe’ , ‘ão’ , e ‘õe’ são singularidades do português com especificidades no Brasil e, portanto, devem merecer atenção especial do cantor. Mesmo os nossos fonemas ‘ã’ / /, ‘õ’ / / e ‘en’ , semelhantes aos franceses, estão passíveis de diferentes interpretações e conseqüentemente de diferentes grafias fonéticas o que demanda uma ampla discussão na direção de um consenso2 . No seu estudo “Os compositores e a Língua Nacional”, Andrade (1991) se preocupou com a inteligibilidade e qualidade sonora destes fonemas nasais. Seguindo os conselhos de Andrade, Guarnieri tentou evitar tais fonemas em partes crucias das canções, mas não foi possível faze-lo na canção Se você compreendesse deste ciclo. Na sua análise austera, Andrade alerta para a dificuldade de se cantar a palavra

2 Neste artigo, foi utilizada a grafia fonética proposta pela Associação Brasileira de Canto (ABC) para representar os fonemas do português brasileiro cantado. Este autor considera esta proposta pertinente, entretanto outras possibilidades gráficas para os fonemas do nosso português vêm sendo elaboradas no país. A ABC também propõe uma “pronuncia neutra” do português brasileiro, defendida por Mirna RUBIM (2003/2004), que deveria ser utilizada pelos cantores nacionais e internacionais para execução de nossas obras. Existem estudos de profissionais da lingüística e da fonologia, alguns dos quais ligados à Associação Brasileira de Lingüística, que visam mapear os fonemas de cada região do Brasil com o objetivo de formar um banco de dados fonéticos. Em outra via, o Encontro de Estudos da Palavra Cantada, já na sua segunda edição, neste ano promovido

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“aflição” naquela canção. É fato que cantar o ditongo ‘ão’ na altura de Fá# agudo torna-se difícil sem abrir os ressonadores em certa extensão e que, talvez por isso, a maioria dos cantores o cantem mais para ‘ao’ // do que para a manutenção do som nasal. Talvez esteja incluída aí, também, a influência das escolas européias de canto, principalmente a italiana, que esteve fortemente presente por alguns séculos no Brasil, e que por assim segui-las os cantores são orientados a manter a redondeza do timbre em detrimento dos fonemas reais do português brasileiro. Este autor, contudo, considera plenamente possível cantar este fonema nasal (e todos os outros) aliando qualidade sonora com inteligibilidade sem se descaracterizar o som coloquial. Antes de tudo, o cantor precisa ter a consciência de que está cantando no português brasileiro.

O último aspecto enfatizado neste estudo relaciona-se ao acompanhamento pianístico. Igualmente à melodia vocal, a parte do piano está repleta de indicações de performance, uma vez que Guarnieri era um pianista consumado. O pianista deve observar a escrita polifônica, a independência das vozes, ressaltar a linha melódica principal se for o caso, e principalmente fazer soar o baixo. Nas canções em que aparece uma linha melódica superior apoiada por um baixo igualmente melódico, o pianista deve manter o diálogo entre as vozes. Igualmente a boa parte das obras para piano do compositor, na qual a melodia do baixo é proeminente, o pianista deve executá-la “cantando”, já que, muitas vezes, trata-se do som seresteiro que evoca o violão trovador.

pela UFRJ, vem reunindo estudos que, se não tratam exatamente da grafia dos nossos fonemas, examina elementos envolvidos na discussão macro de como se canta (ou vem se cantando) no português brasileiro. Neste panorama plural de análises, nota-se a atenção de muitos estudiosos na direção de reconhecer a diversidade e, principalmente, o regionalismo brasileiro com relação aos fonemas, o que implicaria numa reavaliação do que vem a ser uma “pronuncia neutra” do português brasileiro. Este autor avalia que o ideal deveria ser uma proposta que congregasse as contribuições de todos os esses estudiosos.

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José Vianey dos Santos, tenor, graduou-se em Educação Artística – Habilitação em Música e estudou Canto, História e Teoria da Música no Deptº de Música da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Campus I, João Pessoa - PB. No Brasil seus principais professores de canto foram Tika Porto, Carmela Mattoso, Zuinglio Faustini e Edmar Ferretti, e no exterior, Grayson Hirst, Michael Forest e Janette Ogg. Em Munique, Alemanha, fez aperfeiçoamento em interpre-tação do Lied. Desde 1991 é professor de Canto do Depto de Música da UFPB, João Pessoa, desenvolvendo atividades pedagógicas, artísticas e de pesquisa e tendo se apresentado em recitais e concertos pelo Brasil e no exterior. Em João Pessoa, foi membro fundador de vários grupos musicais com ênfase na música vocal, como: Anima, Associação Lírica Bel Canto e Camena (Música Antiga). Mestre e Doutor em Música (MM, DMA - Performance Vocal) pela Shenandoah University, EUA.

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Modulação micrométrica na música de arthur Kampela

Graziela Bortz (City University of New York)[email protected]

Resumo: Este artigo discute aspectos rítmicos da escola de composição chamada Nova Complexidade, tais como o uso de séries de quiálteras aninhadas e de compassos irregulares, para analisar, sob o ponto de vista do intérprete, a escrita rítmica de composições que compreendem o período de 1995-1999 da obra do compositor brasileiro Arthur Kampela. Com este objetivo, utiliza os métodos descritos por Arthur Weisberg para encontrar as mudanças de velocidade metronômica nas modulações de tempo de Elliott Carter e introduzir o conceito de modulação micrométrica criado por Kampela.Palavras-chave: métrica musical, ritmo, Nova Complexidade, performance, análise musical, composição.

Micro-metric modulation in the music of arthur Kampelaabstract: This article discusses rhythmic aspects found in pieces of The New Complexity School of composition, such as nested rhythms and irrational meters, in order to analyze the rhythmic notation of works written between 1995 and 1999 by Brazilian composer Arthur Kampela. Two methods described by Arthur Weisberg are used to explain how to find the speed changes in Elliott Carter’s tempo modulations, and to introduce the concept of micro-metric modulation as developed by Kampela. Keywords: musical meter, rhythm, New Complexity, performance, music analysis, composition.

1- introduçãoBuscando uma notação para suas idéias rítmicas, e influenciado pela escrita complexa do compositor britânico Brian Ferneyhough, o compositor carioca Arthur Kampela passou a usar em suas composições mais recentes (desde 1995) a técnica que ele denominou modulação micrométrica, baseada, por sua vez, na modulação de tempo de Elliott Carter.1 Antes de utilizar essa técnica, a música de Kampela já apresentava características rítmicas particulares, tais como: accelerandos e ritardandos aparentemente desordenados e confusos, ritmo ‘nervoso’ e energético, que permanecem em sua música atual, porém com uma escrita mais precisa. É verdade que a alta precisão da notação oferece ao próprio compositor um grau de ‘controle’ que é apenas aparente do ponto de vista da realização no momento da performance. O que poderia ser escrito com palavras imprecisas, tais como: mais rápido, mais lento, accel. e rall., é anotado com números precisos. A questão, porém, em se usar essa precisão funciona, na música de Kampela, não apenas como tentativa de controlar a performance, mas de oferecer à textura rítmica uma incrível variedade, um alto grau de entropia através da agitação e aparente confusão. Os pilares rítmicos familiares da música tonal, onde as referências – cadências, câmbios harmônicos, acentos de duração e de textura2 – estavam implícitas no próprio sistema, são substituídos por novas hierarquias e enriquecidos por timbres obtidos por técnicas expandidas. Examinaremos neste texto uma dessas novas hierarquias em suas composições: a modulação micrométrica.

Per Musi – Revista Acadêmica de Música – n.13, 119 p., jan - jun, 2006 Recebido em: 05/09/2005 - Aprovado em: 11/04/2006

1 Carter usa a modulação de tempo para determinar rallentandos ou accelerandos com precisão, preparando as mudanças de tempo de maneira sutil, evitando que estas ocorram bruscamente. Para isso, mostra o novo pulso com uma nova figura rítmica e sua velocidade metronômica. Por exemplo, se o antigo pulso é de semínima, o novo pode ser de uma colcheia pontuada, e sua velocidade metronômica será calculada em função do antigo pulso. Mais adiante, para calcular a nova velocidade metronômica na modulação de tempo, serão usados como referência os métodos descritos em WEISBERG (1993).

2 Sobre o assunto, ver excelente discussão em LESTER (1986).

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2- Escrita Rítmica ComplexaAntes de introduzir o conceito de modulação micrométrica, é necessário esclarecer algumas questões fundamentais da escrita rítmica complexa, escrita esta utilizada extensivamente pelo compositor já citado, Brian Ferneyhough, e por Kampela, entre outros. Seus intérpretes enfrentam sérios desafios de leitura, sendo um deles o uso freqüente de quiálteras aninhadas, 3 como podemos observar no Ex.1:

Ex.1: Quiálteras aninhadas de semínimas.

Em algumas peças, Ferneyhough emprega fórmulas de compasso que dividem a semibreve irregularmente,4 como 7/20 (sete quintinas de semicolcheias), 1/10 (uma quintina de colcheia), etc. Essa notação pode causar ao intérprete não familiarizado uma reação negativa ao que entende como dificuldades excessivas na escrita.

Kampela usa um procedimento similar em Phalanges para harpa solo, mas ao invés da notação de Ferneyhough, usa, nesta peça, o símbolo: no denominador, como podemos ver na fórmula de compasso do Ex.2. Esse símbolo representa uma septina que ‘cabe’ numa mínima, ou seja, uma septina de colcheia. Portanto, a fórmula é composta por um 3/4 mais dois tempos de septinas de colcheias. Se, ao invés da figura rítmica na parte de baixo da fórmula, ele tivesse usado números, como faz Ferneyhough, esta seria escrita como um 2/14, já que 14 colcheias ‘cabem’ em uma semibreve. 5 Este extrato será examinado a seguir com mais detalhe.

3 Em BORTZ (2003), quatro estratégias de abordagem da escrita rítmica complexa são abordadas sob o ponto de vista do intéprete. Este artigo sintetiza duas delas por se aplicarem diretamente à escrita de Kampela, como será esclarecido neste texto.

4 FERNEYHOUGH (c1995) chama essas fórmulas de compasso de “irrational meters”, cuja idéia se origina em COWELL (1930), que propõe a divisão da semibreve em valores distintos da divisão binária ou subdivisão ternária (compassos compostos) da escrita tradicional, mas em três, cinco ou sete divisões. Neste caso, a semibreve poderia ser dividida em três mínimas, cinco ou sete semínimas, por exemplo.

5 Para melhor entender o raciocínio, basta pensar que, a partir do denominador 16, a unidade seria equivalente à semicolcheia, de 8 a 15 à colcheia, de 4 a 7 à semínima e assim por diante.

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Ex.2: Phalanges para harpa solo, de Arthur Kampela, compassos 1-2.

3- Modulação Métrica: Os Métodos de WeisbergWEISBERG (1993, p.45) ensina como se opera uma modulação de tempo através de uma figura alterada por uma quiáltera e como se encontra a velocidade metronômica da nova figura. É preciso lembrar que as velocidades de uma figura de valor não alterado são calculadas a partir de outra, multiplicando-se ou dividindo-se a marca metronômica da figura-base por valores binários. Assim, quando se tem uma semínima cuja velocidade metronômica é equivalente a 100, a mínima será 50 (metade), a colcheia 200 (dobro) e assim por diante, conforme a hierarquia das figuras.

Weisberg propõe dois métodos para calcular a modulação de tempo efetuada por meio de figuras alteradas (quiálteras): o “método menor e o maior”. Pelo primeiro, por exemplo, para encontrar a velocidade de uma nova semínima calculada a partir de quintinas, e cuja semínima normal tem a velocidade MM = 100, é preciso perguntar qual é a figura rítmica de quintina que ‘cabe’ em uma quintina de semínima, cuja reposta é: uma quintina de semicolcheia (Ex.3).

Ex.3: Cálculo da mudança de velocidade de uma semínima para uma quintina de semínima. “Método menor” de Weisberg: as quintinas de semicolcheias ‘cabem’ nas quintinas de semínimas.

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Portanto, ao se multiplicar 100 por 5, encontra-se a velocidade da quintina de semicolcheia: 500 batidas por minuto. Como são quatro semicolcheias contidas em uma quintina de semínima, divide-se 500 por 4 e sua velocidade será portanto 125. O método maior oferece o mesmo resultado. De acordo com o segundo método de Weisberg, para encontrar a velocidade da nova semínima, deve-se perguntar em qual figura normal a quintina de semínima se encaixa. A resposta é: a semibreve. Logo, a velocidade desta será 25. A quintina de semínima é cinco vezes mais rápida que a semibreve; portanto, sua velocidade é 125.

4- Modulação MicrométricaA idéia de modulação micrométrica de Kampela é a de oferecer ao intérprete (ele mesmo intérprete virtuoso de suas próprias obras para violão) a chance de se adaptar gradualmente às mudanças de velocidade de uma cadeia de quiálteras a outra. Ao agrupar quiálteras secundárias mantendo a mesma velocidade metronômica de um subgrupo a outro adjacente, Kampela adapta a idéia de Carter a um contexto rítmico mais complexo, como veremos em seguida.

Em Quimbanda (1999) para guitarra elétrica (Ex.4), subgrupos adjacentes compartem a mesma velocidade. Neste exemplo, as quiálteras aninhadas [9:8 – 3] e [3 – 9:8] no compasso 19 estão agrupadas intencionalmente de maneira que as quiálteras secundárias adjacentes [3] contenham semicolcheias de mesma duração. Note-se que o primeiro nível de alteração representado pela quiáltera primária [9:8] se refere a fusas e não a semicolcheias.

Ex.4: Quimbanda para guitarra elétrica de Arthur Kampela, compasso 19 – quiálteras secundárias [3] compartindo a mesma velocidade.

Já que a velocidade comum entre os subgrupos nem sempre se mostra na música de Kampela tão óbvia como no exemplo acima, necessitamos, muitas vezes, saber como encontrar a velocidade metronômica de um subgrupo pertencente a um grupo de quiálteras aninhadas e compará-lo com o grupo ou subgrupo adjacente.

Para calcular a velocidade na modulação micrométrica de Kampela da última quiáltera (último subgrupo) numa cadeia de quiálteras, utiliza-se a propriedade comutativa e associativa da multiplicação (Kampela, 1998, p.37). Este conceito é fundamental para se lidar com a modulação micrométrica, já que se utiliza a operação básica da multiplicação entre frações para encontrar a velocidade do último subgrupo. Pode-se pensar numa quiáltera de [7:4] como a fração: ,

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ou seja, sete figuras rítmicas substituindo quatro do mesmo valor. Pode-se adicionar uma quiáltera secundária de [5:4] à primeira, como no Ex.5:

Ex.5: Cadeia de quiálteras em dois níveis.

Kampela (1998, p.24) afirma que se pode encontrar a velocidade final do último subgrupo ao se multiplicar as frações obtidas numa série de quiálteras agrupadas como no exemplo acima, ou seja, , que fornecerá a velocidade metronômica do subgrupo [5:4]. Supondo uma indicação metronômica de semínima 100, pode-se obter a nova velocidade multiplicando-se a velocidade original (100) pelo denominador e dividindo-a pelo numerador da fração, ou seja, pelo inverso da fração: 100 x 35 = 3500 ÷ 16 = 218,75, de onde se obtém o MM aproximado de 219.

Essa operação pode ser entendida com mais clareza considerando-se novamente o Ex.3, que ilustra o método menor de Weisberg, onde a alteração de velocidade na modulação de tempo ocorre em apenas um nível, no qual [5:4] representa a proporção de semínimas alteradas na quintina de semínima, que por sua vez resulta na fração .Voltando, por hora, ao Ex.5, onde a nova velocidade metronômica referente à fração foi calculada multiplicando-se MM = 100 pelo inverso da fração, nota-se que essa operação é idêntica àquela realizada com a quintina de semínima do Ex.3, ou seja, multiplica-se MM = 100 pelo denominador 5 e divide-se por 4, resultando em MM = 125.

É importante saber a nova velocidade metronômica em casos como o que se pode observar no Ex.6, onde um intercâmbio de posição ocorre entre dois grupos de quiálteras. No primeiro grupo, temos a quiátera [7:4] no primeiro nível e [5:4] no segundo. No grupo seguinte, temos o contrário: [5:4] no primeiro nível e [7:4] no segundo. Pelas propriedades comutativa e associativa da multiplicação, o resultado será o mesmo não importando a posição em que se encontrem as quiálteras, ou seja, os últimos subgrupos das duas cadeias de quiálteras têm a mesma velocidade metronômica, que deverá ser multiplicada por .

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Ex.6: Modulação micrométrica entre dois grupos de quiálteras.

KAMPELA (1998, p.6) comenta:

O conceito de continuidade é crucial se queremos desenvolver uma teoria da modulação micrométrica. Para conectar uma figura rítmica (ou uma quiáltera anterior) a uma nova, é necessário que existam velocidades rítmicas equivalentes em ambos os lados das quiálteras aninhadas. Estas propriedades da álgebra são conhecidas como propriedades comutativa e associativa e afirmam que os elementos de uma operação produzirão os mesmos resultados independentemente da ordem de seus fatores. 6

Mais tarde, ele acrescenta que “As propriedades comutativa e associativa garantem não somente o suporte matemático para os resultados numéricos, mas, ainda mais importante musicalmente, possibilitam o acesso a uma enorme diversidade de configurações rítmicas” (KAMPELA, 1998, p.37).

5- Grupos adjacentes de Diferentes níveis de alteração Mantendo a Mesma Velocidade KAMPELA (2002, p.169) aplica a modulação micrométrica para evitar câmbios bruscos de velocidade, ajudando, assim, o intérprete a acessar as alterações de maneira orgânica. Ao usar a técnica, afirma que esta leva em consideração, de um lado, elementos “puramente estruturais relacionados às envoltórias rítmicas e ao material sonoro”; de outro, a necessidade de “superar as limitações instrumentais ao acessar efeitos através do uso de técnicas expandidas ou novas nuances tímbricas. Essa tensão entre hierarquias composicionais e limitações instrumentais é uma constante preocupação na minha música”.

As “envoltórias rítmicas” – ou o tecido rítmico – são estruturas de quiálteras aninhadas, fórmulas de compassos irregulares e mudanças de velocidade metronômica. A modulação micrométrica oferece ao intérprete um nível de subdivisão que funciona como uma ponte entre dois grupos de quiálteras. Desta forma, os grupos adjacentes que têm a mesma velocidade metronômica mantêm, conseqüentemente, as mesmas subdivisões. Sua intenção é a de evitar a simples

6 Esta e as próximas citações de textos de Kampela são traduções da autora.

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permutação arbitrária de configurações rítmicas e permitir à mente do intérprete se adaptar a suas necessidades físico-motoras. Ainda que “o cérebro não possa imediatamente lidar com a matemática do novo ritmo”, ajuda saber que “uma partícula do que ele acabou de tocar tem a mesma velocidade do que acontecerá em seguida” (KAMPELA, 2002, p.192).

No Ex.7, Quimbanda, a velocidade comum entre os grupos é acessada de maneira diferente ao que foi visto nos exemplos anteriores. O grupo alterado em dois níveis: [7:5 - 5] do com-passo 32 pode ser traduzido nas frações (5 semicolcheias substituídas por 7)e (4 fusas substituídas por 5), que multiplicadas resultam na velocidade final da quiáltera secundária [5], igual à velocidade da quiáltera [7:4] do compasso seguinte.

Ex.7: Quimbanda para guitarra elétrica de Arthur Kampela, compassos 32-3 – grupo de quiáltera em dois níveis [7:5 – 5] e quiáltera simples [7:4] compartindo a mesma velocidade final.

Assim, a modulação micrométrica que ocorre entre o subgrupo [5] do compasso 32 e a quiáltera [7:4] do compasso 33 é preparada pela primeira quiáltera primária [7:5] no compasso 32 e seguida pela quiáltera primária [7:4] na segunda metade do compasso 33. Esse exemplo mostra que a quiáltera secundária [5] – o pivô em torno do qual a modulação micrométrica ocorre – funciona como uma ponte entre duas velocidades distintas: a da quiáltera primária [7:5] do compasso 32 e a da quiáltera [7:4] do compasso 33. Ainda que complexa, esta técnica deixa ao intérprete algum espaço para se acomodar física e mentalmente à mudança. Como o metrônomo aqui é igual a 77, a velocidade do subgrupo [5] no final do compasso 32 e da quiáltera [7:4] do compasso 33 será calculada multiplicando-se o valor da semínima original (77) pelo inverso da fração (77 x 7 = 539 ÷ 4 = 134.75 – velocidade na nova semínima).

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6- Mudanças Graduais de Velocidade Um outro exemplo de modulação micrométrica ocorre na parte de viola de A Knife All Blade/Uma Faca Só Lâmina (1998) nos compassos 155-56.

Ex.8: A Knife All Blade/Uma Faca Só Lâmina para quarteto de cordas, parte C: Proposition II, de Arthur Kampela, compassos 155-56.

No compasso 155, vê-se o primeiro grupo de quiálteras na parte de viola [7:6 - 5:4 - 3]. Essas quiálteras são traduzidas nas frações , , e . A segunda cadeia de quiálteras presente no compasso 156 da mesma parte tem apenas um subgrupo: a quiáltera [7:4] dentro da quiáltera de primeiro nível [5:4], que são traduzidas nas frações e . Portanto, as velocidades finais da última quiáltera [3] compasso 155 e da quiáltera secundária [7:4] do início do compasso 156

são iguais a

O metrônomo, aqui, é de 45 batimentos para a semínima, o que equivale a da nova velocidade metronômica das últimas quiálteras aninhadas acima. A fração fornecerá a nova marca de metrônomo ao se multiplicar o valor da semínima original (45) pelo inverso dela, ou seja, 45 x 35 = 1575 ÷ 16 = 98.4375, como ocorreu em Quimbanda. Essa manutenção da subdivisão de semicolcheias do final de um compasso ao início do outro faz com que as dificuldades com os grupos alterados em série sejam minimizadas.

Depois da quiáltera secundária [7:4] do compasso 156 na parte de viola, há um espaço de tempo de uma semicolcheia que pertence ao primeiro nível de alteração [5:4] que, por sua vez,

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leva à subdivisão da fórmula de compasso regular de 7/8. O único instrumento que trabalha aqui, além da viola, é o segundo violino (Ex.8), que não oferece nenhuma ajuda ao violista para voltar ao ‘pulso’ regular depois de tocar a série de cadeias alteradas. Embora a linha de segundo violino não contenha quiálteras, as subdivisões do compasso em notas pontuadas e o glissando na partitura obscurecem o senso de métrica. Sendo o metrônomo para as quiálteras de ‘dentro’ nos compassos 155-56 de 98, a velocidade da semicolcheia é de 98 x 4 = 392. Essa informação aparentemente inútil do ponto de vista prático pode elucidar a intenção do compositor ao se calcular, também, a velocidade da semicolcheia do compasso regular, além da semicolcheia da quiáltera primária [5:4]. Ao se comparar os valores das diferentes semicolcheias (Tab.1), percebe-se que a intenção do compositor foi a de escrever um rallentando em figuras rítmicas.

Tab.1: Desaceleração rítmica da semicolcheia na parte de viola no compasso 156 de A Knife All Blade/Uma Faca Só Lâmina de Arthur Kampela desde a quiáltera secundária [7:4], passando pela quiáltera primária [5:4] à

divisão regular (sem alterações).

Embora a peça seja escrita para quarteto de cordas, a ajuda de um regente, ao manter a subdivisão da semicolcheia normal da parte de segundo violino, seria valiosa. De qualquer modo, é importante que o violista descubra a relação entre os diferentes níveis de alteração de velocidade, do contrário, será impossível entender a flexibilidade rítmica implícita na escrita. Compreender essa relação é mais importante que obter precisão, o que se torna viável somente com a realização desses cálculos.

7- Modulação Micrométrica como acesso à nova Velocidade MetronômicaNa Part C – Proposicion II de A Knife All Blade, Kampela prepara a mudança de metrônomo indicada na partitura usando quiálteras adjacentes de mesma velocidade. No Ex.9, o metrônomo no compasso 20 é equivalente a 52 batidas por minuto para a semínima, enquanto no compasso 21, passa a 48.

Ex.9: A Knife All Blade/Uma Faca Só Lâmina de Arthur Kampela, parte C: Proposition II, primeiro violino, compassos 20-1.

Semicolcheia da quiáltera secundária [7:4] 98 x 4 = 392Semicolcheia da quiáltera primária [5:4] 56.25 x 4 = 225Semicolcheia regular 45 x 4 = 180

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A modulação micrométrica indicada acima do pentagrama diz que a fusa da quiáltera [6:4] no compasso 20 é a mesma da quiáltera [13:8] no compasso 21. Para se entender como isso ocorre, deve-se calcular a velocidade dessas quiálteras de acordo com suas respectivas marcas metronômicas. Neste exemplo, ao contrário do Ex.8, as frações são diferentes, mas as quiálteras terão a mesma velocidade:

A modulação micrométrica nesse caso facilita a transição à nova fórmula de compasso de 2/4. Embora este exemplo possa ser considerado modulação métrica, simplesmente (por haver apenas um nível de quiálteras), o uso de um grupo como a quiáltera de [13:8] é incomum na obra de Carter, que prefere grupos mais compactos, como [4:3], [5:4], [7:4], ou figuras pontuadas.

8- Novas Alterações Obtidas entre Duas Quiálteras AdjacentesEventualmente, Kampela adiciona um novo grupo alterado entre duas quiálteras adjacentes de mesma velocidade, estendendo as possibilidades de obtenção de ligações temporais. Pode-se, por exemplo, criar uma nova camada rítmica originária a partir da linha de viola examinada no Ex.8, onde a quiáltera terciária [3] do compasso 155 tem a mesma velocidade da quiáltera secundária [7:4] do compasso 156. Uma nova quiáltera [7:6] (arbitrária) foi incluída no Ex.10.

Ex.10: Linha rítmica da parte de viola de A Knife All Blade/Uma Faca Só Lâmina, parte C: Proposition II, de Arthur Kampela, compassos 155-56, modificada pela nova quiáltera (fictícia) [7:6] entre os dois subgrupos

adjacentes: [3] e [7:4].

Esta técnica é usada por Kampela em Phalanges (1995) no Ex.12 no qual as sete colcheias da quiáltera [7:2] do compasso 2 substituem duas semínimas (ou quatro colcheias). Portanto, a velocidade dessas colcheias deverá ser calculada usando-se a fração .

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Ex.11: Phalanges para harpa solo, de Arthur Kampela, compassos 1-3.

Voltando à fórmula 2/ do compasso 2 (examinada anteriormente no Ex.2), onde a septina de colcheias representa a unidade de tempo, observa-se, no final do compasso de fórmula mista, a mesma relação entre as figuras alteradas pela quiáltera [7:2], onde sete colcheias substituem quatro do mesmo valor. Obtém-se, assim, a mesma fração: , mostrando que as semicolcheias da quiáltera de primeiro nível [7:2] têm a mesma velocidade daquelas do compasso 2/ .

No final do segundo compasso do Ex.11, deveria haver apenas quatro semicolcheias, já que se trata da parte do compasso misto que tem a fórmula 2/ e que se refere as duas septinas de colcheias. No entanto, Kampela altera a linha superior como se houvesse uma nova linha paralela. Como se pode ver no Ex.12, ele ‘apaga’ as duas últimas semicolcheias pertencentes à quiáltera [7:2] e as duas colcheias originais do compasso 2/ – o que resulta no total de seis semicolcheias ‘eliminadas’ – e as substitui por uma nova quiáltera: [8:3], que substitui três colcheias por oito semicolcheias.

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Ex.12: Ritmo na voz superior da clave de sol do compasso 2 de Phalanges para harpa solo de Arthur Kampela – um novo grupo alterado [8:3] substitui a linha ‘eliminada’ no final do compasso.

Sendo MM = 72 para a semínima, a velocidade da quiáltera [7:2] é . 7 Tanto para a quiáltera [7:2], como para o compasso 2/ , a velocidade da semicolcheia é a mesma: 126 x 4 = 504.8 No entanto, sendo a quiáltera [8:3] de segundo nível, deve-se calcular a velocidade final multiplicando-se as frações correspondentes às quiálteras [7:2] e [8:3].

O número seis e o número quatro são usados na Tab.2 em relação à quiáltera [8:3] e à quiáltera [7:2], respectivamente, para se manter a relação numérica correta entre as figuras rítmicas, ou seja, oito semicolcheias substituem seis, e não três, assim como sete substituem quatro, e não duas.

Para:

Tab.2: Cálculo da velocidade final da quiáltera secundária [8:3] no compasso 2 de Phalanges para harpa solo de Arthur Kampela.

A Tab.3 mostra a mesma operação para se encontrar a velocidade da semicolcheia na quiáltera secundária [5:4] que imediatamente precede a quiáltera [8:3].

7 A divisão é feita com o número quatro, e não dois: sete colcheias substituem quatro do mesmo valor rítmico. 8 Para a quiáltera [7:2], este resultado pode, também, ser obtido através da operação com o MM original: 72 x

7 = 504.

Novo MM (semínima) 72 x 7 = 504 ÷ 3 = 168

Nova semicolcheia 168 x 4 = 672

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Para

Tab.3: Cálculo da velocidade final da quiáltera secundária [5:4] no compasso 2 de Phalanges para harpa solo de Arthur Kampela.

Ao se comparar os resultados obtidos nas TAB.2 e 3, pode-se notar que a semicolcheia da primeira é ligeiramente mais rápida que da última. A velocidade da semicolcheia da quiáltera secundária [5:4] é de 630, enquanto que a do subgrupo [8:3] é de 672. Portanto, a intenção do compositor aqui é de obter um accelerando escrito da série de subgrupos [5:4] ao subgrupo [8:3] no final do compasso.

Um outro fator importante que envolve a quiáltera [8:3] é que ela serve de conexão entre os compassos 2 e 3. No Ex.11, no início do compasso 3, a primeira mínima pontuada (v. anotação na clave de sol) contém a quiáltera [8:3] (oito colcheias substituindo seis do mesmo valor), e é imediatamente modificada pela quiáltera secundária [7:2] (sete no lugar de quatro). A velocidade final para a quiáltera secundária [7:2] no início do compasso 3 é .

Comparando-se este resultado com a fração obtida na TAB.2 para a quiáltera secundária [8:3] do compasso 2, observa-se que as duas quiálteras têm a mesma velocidade. Ainda que a quiáltera primária [8:3] do compasso 3 e a secundária [8:3] do compasso 2 não se refiram às mesmas figuras, a mesma relação numérica se mantém nas frações e, portanto, na velocidade metronômica. A quiáltera secundária [8:3] adicionada ao final do segundo compasso, ao contrário de ser aleatória, foi criada para conectar duas velocidades diferentes nos compassos 2 e 3. Demonstrando o que já foi mencionado, o propósito da modulação micrométrica é o de criar uma transição suave entre duas velocidades, proporcionando ao corpo e mente do intérprete a possibilidade de responderem às mudanças organicamente. Ao contrário de outros compositores que adotam a escrita rítmica complexa de Ferneyhough, Kampela utiliza a modulação micrométrica tanto como uma ferramenta estrutural, como uma forma de expressar velocidades excessivamente entrópicas na superfície, mas que em sua organização oferecem ao intérprete a possibilidade de captar essas velocidades em termos matemáticos e físicos, ou, como prefere dizer Kampela: “ergonômicos”. 9

Novo MM (semínima) 72 x 35 = 2520 ÷ 16 = 157.5

Nova semicolcheia 157.5 x 4 = 630

9 É preciso levar em consideração que suas obras utilizam extensivamente técnicas expandidas e que, portanto, é necessário que essas velocidades sejam adaptadas às possibilidades reais de execução. Kampela tem o hábito de experimentar diretamente suas composições, seja executando-as ou recorrendo a um instrumentista para isso. Comunicação pessoal com o compositor.

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ConclusãoA validade da notação rítmica complexa é freqüentemente questionada. SILVERMAN (1996, p.34), que ferozmente se opõe a essa escrita, critica: “They all write notes. And more notes. More than can be played: more than can be imagined”. (Eles todos escrevem notas. E mais notas. Mais do que se possa tocar: mais do que se possa imaginar.) TOOP (1993, p.44), por outro lado, defende os adeptos da Nova Complexidade,10 opondo-os aos seguidores do que ele chama de “Nova Simplicidade”, tais como Phillip Glass, John Adams e Arvo Pärt, gerando uma infinita discussão estética que transpõe os limites da questão da notação.

Este texto não pretende discutir se esta notação é mais ou menos eficiente que outras, e sim decifrar as propostas do compositor em certas obras em particular, cujo impulso criativo e cuja inspiração oferecem aos intérpretes alternativas aos conceitos eternizados pela repetição dos códigos de leitura.

DE MASI (2002, p.70-2), sintetizando seus estudos em epistemologia sobre a criatividade, diz que “os cientistas – sobretudo aqueles das ciências ditas ‘exatas’ – foram forçados a se conscientizar de que a realidade é múltipla, difícil, incerta, complicada, contraditória”. Segundo ele, existe hoje uma aproximação entre as ciências humanas e exatas, entre hard e soft e entre a ciência e a arte:

E não porque as ciências humanas tenham finalmente conquistado os códigos da ordem previsível e da simplicidade inteligível que pretendiam, mas porque as ciências da natureza chegaram finalmente à consciência (e mesmo ao reconhecimento e à apreciação) daquela desordem e daquela complexidade que desde sempre detestavam.

Acrescenta que a inexatidão, imprevisibilidade, “relatividade dos fenômenos frente ao particular e ao contingente” fazem parte há muito das ciências humanas e sociais:

Porém, enquanto elas viveram essa condição como se fosse um rebaixamento, um limite e um vínculo, um obstáculo à sua exatidão, credibilidade, qualificação científica, capacidade de formalização e de exaustão, as ciências da natureza aceitaram, em vez disso, a complexidade como tensão essencial entre uma velha e uma nova epistemologia, entre a era da descoberta e a era da invenção. Portanto, como uma oportunidade.

Ao contrário do que parece, a escrita abordada neste texto não pretende ser rígida e exata, e sim, trabalhosa, admitindo em sua aritmética espaço para a inexatidão, para a complexidade, onde os diversos fenômenos que ocorrem na execução, incluindo o matemático, interagem modificando cada performance. Assim como De Masi crê que as ciências exatas encontraram uma nova oportunidade ao aceitar a inexatidão e complexidade, não somente das ciências humanas, mas da própria natureza, também os intérpretes de música erudita podem incorporar ao contínuo aprendizado novas propostas criadas por compositores vivos, ainda que trabalhosas e, afinal, inexatas, mas não mais inexatas que a própria escrita tradicional. Nas palavras de WEISBERG (1993, p.1): “It is not a performer’s job, however, to predict [if new principles will last], but to perform as well as possible”. (Não é trabalho do intérprete, no entanto, prever se novos princípios irão perdurar, mas executar o melhor possível.)

10 De acordo com WEISSER (1998, p.184), o musicologista belga Harry Halbreich foi o primeiro a usar a expressão Nova Complexidade em reação ao movimento Neue Einfachkeit na Europa.

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Referências bibliográficasBORTZ, Graziela. “Rhythm in the Music of Brian Ferneyhough, Michael Finnissy, and Arthur Kampela: A Guide for

Performers”. Diss. de doutorado, Graduate School and University Center of CUNY, 2003.COWELL, Henry. New Musical Resources. New York: Something Else Press, 1930.DE MASI, Domenico. Fantasia e Concretude. Rio de Janeiro: Sextante, 2002. FERNEYHOUGH, Brian. Collected Writings, ed. James Boros. Amsterdam: Harwood, c1995.KAMPELA, Arthur. “Micro-Metric Modulation: New Directions in the Theory of Complex Rhythms”. Diss. de douto-

rado, Columbia University, 1998.________. A Knife All Blade para quarteto de cordas. Partitura. Requisito parcial da diss. de doutorado, Columbia

University, 1998. ________. “A Knife All Blade: Deciding the Side Not to Take”. Current Musicology 67-68 (Special Issue 2002):

167-93.________. Phalanges para harpa solo. Partitura. Manuscrito do autor,1995.________. Quimbanda para guitarra elétrica. Partitura. Manuscrito do autor, 1999.SILVERMAN, Julian. “Britcomplexity”. Review of Aspects of Complexity in Recent British Music, by Tom Morgan.

Tempo 197 (July 1996): 33-7.TOOP, Richard. “On Complexity”. Perspectives of New Music 31, n.1 (1993): 42-57.WEISBERG, Arthur. Performing Twentieth-Century Music: A Handbook for Conductors and Instrumentalists. New

Haven: Yale University Press, 1993.WEISSER, Benedict. “Notational Practice in Contemporary Music: A Critique of Three Compositional Models,

Luciano Berio, John Cage, and Brian Ferneyhough”. Diss. de Doutorado, Graduate School and University Center of CUNY, 1998.

Leitura recomendadaLESTER, Joel. “Notated and Heard Meter”. Perspectives of New Music 24, n.2 (1986): 116-28.

Graziela Bortz é Bacharel em trompa pela Universidade de São Paulo. Como bolsista da Capes-MEC, obteve o título de Mestre pela Manhattan School of Music e o Doutorado, orientada por Joseph N. Straus, na City University of New York. Foi trompista das Orquestras Sinfônicas de Porto Alegre e Municipal de São Paulo. Como intérprete de música contemporânea e solista, apresentou-se na Bienal de Música Contemporânea (RJ), no Festival da ISCM em Seúl, no espetáculo promovido pela ASCAP na sala The Cutting Room (Nova Iorque), no Teatro Popular do SESI (SP), no Conservatório de Cuenca e na Universidade de Valladolid (Espanha). Integrou o Grupo Novo Horizonte em São Paulo. Trabalhou como tradutora do RILM –Répertoire Internacionale de Littérature Musicale (Nova Iorque). Apresentou artigos no Congreso Música y Universidad em Salamanca (Espanha) e no Simpósio de Cognição e Artes Musicais (PR).

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Música brasileira para contrabaixo:coleta e organização de obras e formas de acesso ao acervo disponível

Sonia Ray (UFG)[email protected]

Resumo: Este trabalho trata do processo de coleta de obras brasileiras disponíveis para contrabaixo no Brasil e a elaboração do catálogo online deste repertório no período de 1993 a 2005. O texto traz os critérios de organização, estruturação e atualização do catálogo, bem como uma listagem das obras que o compõem, divididas nas categorias: contrabaixo solo, contrabaixo com piano, contrabaixo de câmara e contrabaixo solista com orquestra. Entradas do catálogo em suas três principais versões (1996, 1998 e 2005) ilustram as atualizações do mesmo ao longo de quase uma década.Palavras-chave: contrabaixo, repertório, catálogo, música brasileira, composição.

Brazilian music for the double bass:the repertory’s collection and organization and access to the available worksabstract: This article addresses the process of collecting Brazilian compositions available for the double bass and the construction of its online catalogue in the 1993-2005 period. The text explains the criteria for the catalog structure, organization and updating procedures as well as a list of works which were divided into four categories: unaccompanied bass, bass with piano, chamber music with bass and bass soloist with orchestra. Figures of entries from the three main versions catalogue (1996, 1998 e 2005) illustrate its updating which spanned over a decade.Keywords: double bass, repertoire, catalog, Brazilian music, composition.

introduçãoEste trabalho tem por objetivo apresentar o processo de coleta de obras brasileiras disponíveis para contrabaixo no Brasil e a elaboração do catálogo on-line com este repertório. Apresentarei em detalhes a organização das obras brasileiras coletadas por mim no período de 1993 a 2005. Começo relatando o processo de coleta das obras em três etapas sendo 1993 a 1994 (RAY, 1996), 1995 a 1998 (RAY, 1998) e 2000 a 2005 (RAY, 2005). Em seguida, apresento a organização e estrutura de atualização do catálogo on-line e uma listagem das obras que compõem o catálogo, divididas nas categorias: contrabaixo solo, contrabaixo com piano, contrabaixo em câmara e contrabaixo solista com orquestra. Vale dizer que a separação das obras para contrabaixo e piano daquelas para contrabaixo em câmara foi o caminho que escolhi para facilitar a busca do instrumentista. A divisão direciona a busca por repertório executável em salas com ou sem piano. Além disso, no repertório tradicional para o instrumento obras para formações de 2 a 6 contrabaixos são comuns, além de várias combinações envolvendo este instrumento com outros que não o piano. Cabe ainda ressaltar que, apesar das obras estarem organizadas sob o título de catálogo, trata-se apenas de uma reunião e organização de material sem referência a nenhum sistema de catalogação convencional.

Per Musi – Revista Acadêmica de Música – n.13, 119 p., jan - jun, 2006 Recebido em: 18/11/2005 - Aprovado em: 06/05/2006

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1 - O Processo de Coleta e Organização das Obras1.1 - Primeira etapa 1993 a 1994 (RaY, 1996)Esta etapa se deu durante meu último ano como pesquisadora em nível de iniciação científica no Instituto de Artes da Unesp – SP, como bolsista da FAPESP. A coleta de repertório brasileiro para contrabaixo iniciou-se em primeiro lugar com meu desejo de incluir compositores brasileiros em meu repertório de recitais. Duas fontes foram especialmente inspiradoras neste período: Valerie Albright, então minha professora, incluía constantemente obras brasileiras em seus recitais e mantinha um acervo de partituras no estúdio de contrabaixo ao qual eu tinha amplo acesso. Além disso, Albright organizou uma listagem de obras em forma de relatório de pesquisa que foi muito útil pra iniciar meu trabalho (ALBRIGHT, 1993); e Fausto Borém, pesquisador incansável da música brasileira para contrabaixo, que também tem atuado como compositor e arranjador, enviando-me muitas obras que compuseram a primeira versão do catálogo.

A coleta de obras também se deu por correio comum, em visitas a compositores e por telefone. Neste período, destaca-se meu convívio diário com o compositor Edmundo Villani-Côrtes que, além de me colocar em contato com sua paixão pelo contrabaixo, contribuiu para que este compusesse algumas obras a meu pedido para a ampliação do repertório, entre elas Raízes (para contrabaixo e percussão, 1990) e 5 Miniaturas Brasileiras (versão violão e contrabaixo, 1993) entre outras.

Ao concluir o relatório da FAPESP, o mesmo foi aprovado com indicação de publicação por se constituir em obra de referência. Com o empenho de minha orientadora de pesquisa, Maria de Lourdes Sekeff, dois anos mais tarde o relatório foi transformado em publicação da FAPESP em parceria com a editora Annablume, intitulada Catálogo de Obras Brasileiras Eruditas para Contrabaixo (RAY, 1996).

No catálogo, atualizei pouquíssimas informações desde a conclusão do relatório FAPESP e defini o formato que uso até hoje, com pequenas alterações. A estrutura de organização e classificação das obras incluiu sua divisão em 4 categorias envolvendo o contrabaixo: solo, com piano, com outros instrumentos, solista com orquestra. Não foram incluídas obras orquestrais onde o contrabaixo não tem atuação de destaque, visto que o objetivo principal da organização das obras foi o de ampliar a oferta de repertório para o instrumento em recitais.

O sistema de classificação das obras foi inspirado em algumas publicações afins e em classificações de grau de dificuldade de execução do instrumento, na visão de dois contrabaixistas e professores de competência reconhecida internacionalmente. São eles Roger RUGGIERI (1991), solista especializado no repertório contemporâneo para contrabaixo e Murray GRODNER (2001), autor do maior e mais completo catálogo de obras para contrabaixo. Cada entrada no catálogo apresenta-se como no quadro abaixo (Fig.1).

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Fig.1 – Exemplo de entrada no Catálogo... (RAY, 1996. p.36).

Além de um breve texto sobre a obra, cada entrada foi classificada em três graus principais de dificuldade técnica quanto à parte do contrabaixo: iniciante (1 a 3), médio (4 a 7) e avançado (8 a 10). Por exemplo: GDB – Grau de Dificuldade do Baixo = 8. Inclui ainda informações como duração aproximada da obra em minutos, o tipo de afinação (S=solo e O=orquestra), a extensão utilizada e o grau de dificuldade de outros instrumentos (piano, ou aquele usado na formação camerística). A terminologia utilizada foi inspirada na catalogação de ROBERT (1995). Nesta etapa foram catalogadas 88 obras. Veja detalhamento dos termos técnicos utilizados para cada entrada na ‘bula’ abaixo (Fig.2).

Fig.2 – Definição dos Termos... Catálogo... (RAY, 1996. p.21).

21.CORTES,EdmundoVillani.5MiniaturasBrasileiras.SãoPaulo:manuscrito,1993.A=S/OE=Fa1/Sol3GDB=5GDP=4D=5’

A obra foi originalmente escrita para flauta doce e piano, sendo transcrita pelo próprio autor para contrabaixoepianoecontrabaixoeviolão,apedidodacontrabaixistaSoniaRay.Asminiaturassão: 1.Prealudius, 2.Toada (cantiga sem forma determinada e de caráter melancólico), 3. Choro (gênero binário, instrumental e de caráter rítmico acentuado), 4.Cantiga de Ninar e 5.Baião (dança típica do nordeste, de forma binária, caráter rítmico acentuado e citações modais - modos lídio e mixolídio). O autor usa as regiões média e grave do contrabaixo, explorando seu cantabile (peças 1,2 e 4), técnicas de detaché e pizzicatto peça 3) e glissandi, cordas duplas e cordas percutidas “com legno”(peça 5). Nas versões de 93, o Baião teve sua duração ampliada em 1’30’’(original=1’).

DEFINIÇÃO DOS TERMOS A SEREM ADOTADOS DESTE CATÁLOGO

AFINAÇÃO - O contrabaixo geralmente é afinado de duas maneiras: Mi1(E)/La1(A)/Re2(D)/Sol2(G) afinação normalmente usada na orquestra ou Fa#1(F#)/Si1(B)/Mi2(E)/La2(A) afinação solo, que exige um encordoamento especial que produz um som mais brilhante e projetado. Neste caso, a parte do contrabaixo é impressaumtomabaixo.S=Solo O=Orquestra S/O=Ambas

EXTENSÃO - Indica que região do espelho será utilizada para a execução da peça. E=X/Yonde:X=notamaisgraveeY=notamaisagudaDo3=DocentralExceções:1 - quando houver extensão opcional, esta será indicada entre parênteses. Ex: E=Mi1(Re1)/La4 2 - o termo LIMITE foi adotado para indicar quando toda a extensão do instrumento estiver sendo solicitada, já que a extensão máxima varia de um instrumento para outro.

GRAU DE DIFICULDADE TÉCNICA - Indicação do nível de dificuldade técnica da composição ou aquele gerado no processo de transcrição.Grau de dificuldade: 1 a 4 = nível iniciante; 5 a 7 = nível intermediário; 8 a 10= nível avançado

GDB = Dificuldade técnica da parte do contrabaixoGDP = Dificuldade técnica da parte do pianoGDX=X será substituído pela inicial do instrumento que estiver tocando com o baixo.

DURAÇÃO - Indica o tempo aproximado de execução da peça em minutos. D=X’INSTRUMENTAÇÃO - Indica quais são os instrumentos utilizados na peça, além do contrabaixo, na seção Contrabaixo em Câmara. I = nome do(s) instrumento(s) ou I = DUO, TRIO or QUARTETO, quando a peça for escrita para grupos de contrabaixo.

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1.2 - Segunda etapa: de 1995 a 1998 (RaY, 1998)Esta etapa se deu durante meus estudos na Universidade de Iowa, EUA, possibilitados através de uma bolsa da Capes. Minha pesquisa de doutorado concentrou-se no contrabaixo no Brasil e foi organizada em três partes: aspectos histórico-pedagógicos; a influência do baião, choro e samba no repertório; e um catálogo das obras disponíveis. Este catálogo consistiu na incorporação das obras compostas (ou localizadas) após a publicação do livro em 1996. A principal mudança na estrutura do catálogo foi a criação de uma parte temática, na qual trechos das obras foram incluídos com o objetivo de ampliar as informações para os interessados em tocar as obras ou conhecer um pouco mais sobre o idioma do contrabaixo. Os comentários analíticos ganharam maior profundidade, à medida em que meus conhecimentos como performer se ampliaram. A coleta se deu através de correio eletrônico, faxes e telefonemas para compositores em todo o Brasil. Além disso, o catálogo foi reformulado em inglês. Nesta etapa o catálogo atingiu um total de111 obras coletadas. Na Fig.3 abaixo, um exemplo extraído da versão de 1998 (RAY, 1998).

Fig.3 – Exemplo de entrada no Catálogo... (RAY, 1998). 1.3 - Terceira etapa: de 2000 a 2005 (RaY, 2005)Esta etapa foi iniciada com um projeto de pesquisa como docente no Programa de Pós-Graduação em Música da UFG e contou com o apoio da Capes e da Fundação de Apoio a Pesquisa da UFG na forma de bolsas de iniciação científica para meus orientandos e auxílio para participação de congressos. De 2000 a 2004, estes orientandos desenvolveram pesquisas que ampliaram discussões sobre o ensino de contrabaixo no Brasil, em particular o ensino para iniciantes adolescentes e adultos (NEGREIROS, 2003; RODRIGUES, 2004; GUIMARÃES, 2004; Teles, 2004 e Silva, 2004). Minha atuação ficou concentrada na atualização do catálogo através de coleta de partituras, organizada

101. Villani-Côrtes, Edmundo. 5 Miniaturas Brasileiras.SãoPaulo:manuscript,1993.T=ER= F/g’ LDB= 5 D= 5’I= acoustic guitar

The 5 Brazilian Miniaturesare:1.Prealudius (prelude), 2.Toada (a free song with a melancholic character), 3. Choro,4.Cantiga de Ninar (a lullaby) and 5.Baião. In 1993, Villani-Côrtes revised the piece and lengthened the Baião to 1’30’’ (the original duration was about one minute). Although the work was originally written for recorder and piano, the composer transcribed it for various combinations including double bass and piano and double bass and acoustic guitar (present version). This transcription was commissioned by Sonia Ray and was premiered in 1992 in São Paulo (Sesc Pompéia) with guitarrist Julio Guidice Maluf. (see double bass and piano section).

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via Internet em conjunto com o bolsista (VIEIRA e RAY, 2004). Em 2004, iniciei a organização de uma nova forma de apresentação do Catálogo, para a qual recebi apoio financeiro do CNPq. Adaptei a sala de contrabaixo na UFG para servir também como laboratório de pesquisa e comecei a construir uma estrutura de disponibilização das informações sobre as obras que fosse compatível com nossa era digital. A solução para lidar com o problema (bem-vindo) da constante produção de obras brasileiras foi a proposta de atualização contínua. Assim nasceu o Catálogo de Obras Brasileiras para Contrabaixo ON-LINE 2005.

2 - Organização e apresentação do Catálogo On-LineA principal mudança na apresentação das obras foi a exclusão da avaliação do grau de dificuldade de outros instrumentos (piano ou aquele usado na formação camerística) e a extensão utilizada. O item “grau de dificuldade” foi excluído dado o volume de novas obras e à limitação na capacidade desta pesquisadora em aferir julgamento técnico a instrumentos que não executa. O item “extensão” mostrou-se ineficiente para demonstrar a exeqüibilidade da obra, visto que o grau de dificuldade cobre esta questão facilmente. Teria que haver um grau de detalhamento maior para que estas avaliações voltassem a compor o catálogo, bem como o envolvimento de executantes dos outros instrumentos envolvidos e a criação de um banco de dados interativo que pudesse classificar a extensão. No contrabaixo, a execução de harmônicos agudíssimos em regiões graves pode levar a uma leitura equivocada do grau de dificuldade com base na extensão. Por isso, acredito que a informação de grau de dificuldade (GDB) somada às informações do texto que acompanha o trecho musical é suficiente para informar ao interessado se a obra é pertinente para o que ele busca, sem que os demais instrumentos tenham que ser igualmente detalhados.

O Catálogo está hospedado na página da Irokun Brasil Edições Musicais, como cortesia, até que algum recurso financeiro duradouro seja destinado à manutenção do mesmo. O menu principal da Irokun oferece link direto para o Catálogo. Há também link para o catálogo do portal <www.soniaray.com>. Uma vez no menu principal do Catálogo, o pesquisador terá acesso a um breve histórico da construção do Catálogo (introdução), à definição dos termos utilizados no Catálogo, a uma lista geral das obras coletadas (disponíveis e em processo de inclusão) e a várias opções de informações em inglês, como mostra a Fig.4 abaixo.

Fig.4 – Menu Catálogo On-Line <http://www.soniaray.com/catalogo/catalogo_paginas/catalogo.html>(RAY, 2005).

Principal Home

introdução Introdution

Definições Definitions

Lista de Obras List of Works

Contrabaixo Solo Double Bass Alone

Contrabaixo e piano Double Bass & Piano

Câmara Chamber Music

Contrabaixo e Orquestra Double Bass &Orchestra

Obras a serem incluídas Works to be Included

Cadastro de novas obras

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Ao consultar o catálogo, o visitante do site encontrará a opção de “clicar” sobre o nome da obra desejada e terá disponibilizado um quadro em formato PDF (veja Fig.5 abaixo) com o trecho musical e comentários em português e inglês.

Fig.5 – Modelo de Obra Consultada no Catálogo... (RAY, 2005).

Para enviar partituras para considerações de inclusão no catálogo, o visitante terá que informar detalhes da obra. Para facilitar este processo, criei a ficha abaixo (Fig. 6) que será disponibilizada em formulário on-line, inclusive possibilitando a inclusão de um anexo com o trecho musical em submissão.

Até o momento, o Catálogo conta com 136 obras completas das quais estão sendo disponibilizados apenas trechos das partituras, a fim de não ferir a lei de direitos autorais dos compositores. Dezenas de obras se encontram em meus arquivos de forma incompleta. As informações disponíveis sobre estas obras serão anexadas à página do Catálogo em breve, a fim de que as mesmas possam ser complementadas com a ajuda da comunidade musical brasileira. Já está disponibilizada uma ficha (veja Fig.6 abaixo) para que informações sobre obras que não constem na página possam ser enviadas. Entretanto, haverá um crivo para inclusão de obras para evitar que o Catálogo venha a ser utilizado de forma inadequada. O Conselho Editorial da Irokun Brasil Edições Musicais avaliará todas as submissões de obras antes de sua efetiva inclusão na página. O Conselho é composto hoje pelos contrabaixistas Sonia Ray, Fausto Borém e Valerie Albright. Para contato com o Conselho, basta enviar uma mensagem na própria página do catálogo.

BERTOLA, Eduardo. Lucíferez. Brasília: Musimed, 1994.

GDB=9 D=8’ – Segundo Bertola, Lucíferez significa “aquele que traz a luz, o novo.” A peça foi escrita para o contra-baixista, compositor e pesqusiador Fausto Borém. Bertola utilize quase toda a extensão do contrabaixo e explora grande variedade de timbres. As repentinas mudanção de tempo e métrica combinadas com cordas duplas e registro agudo exigem uma refinada técnica do instrumentista.

LDB=9 D=8’ – According to Bertola, Lucíferez means “he who brings the light, the new” and was written for the double bassist, composer and researcher Fausto Borém. Bertola uses almost all of the double bass range exploring a variety of timbres. The sudden changes in tempo and meter combined with the use of double stops in the high register require an advanced-level performer.

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Fig. 6 - Modelo de Ficha para submissão de obras a serem incluídas no Catálogo

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3 - Listagem das Obras Disponíveis (com trechos de partitura)3.1 - Obras para Contrabaixo Solo (Works for Unaccompanied double bass)

1. BÉRTOLA, Eduardo. Lucíferez. Brasília: Musimed, 1994.2. BASSETO, Bruno. Cativeiro. São Paulo: Edição eletrônica do autor, 1999.3. CAMERON, Pedro. 3 peças para contrabaixo solo: reinvenção, solóquio, conciliação (1979).

Ed. Sonia Ray. Iowa City: Edição eletrônica da editora, 1998.4. CLAUDINO, Valdir. Estudo no.1. Belo Horizonte: editoração eletrônica do autor, 1996.5. DE LUCCA, Silvia. Contrastes. Zurique: Edição eletrônica da autora, 1991.6. DELOR, Tibô. Volubile. Edição eletrônica do autor, s/d. 7. FERRAZ, Sílvio. Estudo de cores para um cena de erosão. São Paulo: Novas Metas, 1992.8. F I R M E J r . , R a u l P e n n a . S u i t e b r a s i l e i r a . ( 1 9 9 1 ) . E d . S o n i a R a y. I o w a C i t y :

Edição eletrônica da editora, 1998.9. GARCIA, Denise. Em algum lugar. Campinas: editoração eletrônica da autora, 2002.10. KIEFER, Bruno. Conf luências . Por to Alegre: manuscr i to , 1985. (no pre lo pela I rokun

Brasil, 2006)11. LACERDA, Osva ldo . Qua t ro va r i ações e f ugue ta sob re um tema i n fan t i l ( 1974 ) .

Transc. F. Borém. Belo Horizonte: manuscrito, 1981.12. MANZOLLI, Jonatas. Recortes (1996). Ed. Sonia Ray. Goiânia: Irokun Brasil, 2005. 13. MIGNONE, Francisco. Estudo para contrabaixo. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1985.14. M I G N O N E , F r a n c i s c o . Va l s a d e c l a m a d a . Tr a n s . F a u s t o B o r é m . B e l o H o r i z o n t e :

manuscrito, 1988.15. OLIVEIRA, Jailton. Segmentatus (1999). Ed. Sonia Ray. Goiânia: Irokun Brasil, 2005.16. RAY, Sônia. Ondas (1993). Goiânia: Irokun Brasil, 2004.17. RIBEIRO, Antonio Celso. Conductus - dramat is personae . Belo Hor izonte: manuscr i to,

1994.18. SANTORO, Claudio. Fantasia sul américa. Brasília: Musimed, 1983.19. TRAVASSOS, Alexandre. Lamento e inconformação. São Paulo: manuscrito, 1991.

3.2 - Obras para Contrabaixo e piano (Works for Double Bass and piano)20. ALBRIGHT, Valerie. Esquisitango (1993). Sonia Ray (Ed.). Goiânia: Irokun Brasil, 2004.21. ASSIS, Gilberto. Brincadeiras. Belo Horizonte: edição eletrônica do autor, 1996.22. ASSIS, Gilberto. Retirantes. Belo Horizonte: edição eletrônica do autor, 1996.23. AYRES, Nelson. Mantiqueira. F. Borém (transc.). B. Horizonte: edição eletrônica do editor, 1985.24. AYRES, Nelson. Ecos de um Maracatú. Belo Horizonte: edição eletrônica do autor, 1996.25. BARBIERI, Ricardo. Contrastes (1981). S. Ray (Ed.). Iowa City: edição eletrônica da editora, 1998.26. BONFÁ, Luiz. Manhã de Carnaval. F. Borém (Ed.). Athens, GA: edição eletrônica do editor, 1993.27. BORÉM, Fausto. O Colibri II. Belo Horizonte: edição eletrônica do autor, 1987.28. BOTA, João Victor. Música para Contrabaixo e Piano. São Paulo: manuscrito, 2003.29. BOTA, João Victor. Freqüência Modulada. São Paulo: manuscrito, 2003.30. CAVALCANTI, Nestor de Hollanda. Conversa Mole. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1985.31. DAMAZZO, Álvaro S. Sabino. Cenas de um Siriri. Belo Horizonte: manuscrito, 1996.32. ESCALANTE, Eduardo. Acalanto. Fausto Borém (Transc.). Belo Horizonte: manuscrito,1988.33. FREIRE, Arnaldo. Fantasia Concertante. Belo Horizonte: manuscrito, 1996.34. FREIRE, Arnaldo. A Floresta Mágica. Belo Horizonte: manuscrito, 1996.35. GNATALLI, Radamés.Canção e Dansa. Rio de Janeiro: Funarte, 1985.36. GONZAGA, L. e C. PEREIRA. Gonzagueana. F. Borém (Transc). B. Horizonte: manuscrito, 1985.

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37. JOBIM, Antonio Carlos. A Felicidade. Fausto Borém (Arr.). Athens, GA: manuscrito, 1993.38. KORENCHENDLER, Henrique David. Prelúdio, recitativo e dança. Rio de Janeiro: Funarte,1985.39. KORENCHENDLER, Henrique Dawid. Valsa e Variações. Belo Horizonte: manuscrito,1996.40. LAGNA FIETTA, Hector. Sugestões de Portinari. Fausto Borém (Transc.). Ouro Preto (MG): manuscrito, 1989.41. LOBO, Edu. Choro Bandido. Arr. Hermínio de Almeida. 1997.42. MAHLE, Ernst. As Melodias da Cecília. 1975.43. MAHLE, Ernst. Sonatina. 1975.44. MAHLE, Ernst. Concertino. 1978.45. MEDEIROS, Ricardo. Choro Valsa. 1989.46. MEDEIROS, Ricardo. Fantasia Nordestina. 1996.47. MEDEIROS, Ricardo. Introduction, Blues and Fugue. 1989.48. MEDEIROS, Ricardo. Melodia para Contrabaixo. 198949. MEDEIROS, Ricardo. Rasqueado. 1989.50. MEDEIROS, Ricardo. Três Melodias Curtas. 1989.51. MEDEIROS, Ricardo. Xaxado. 1989.52. MIGUEZ, Leopoldo. Impromptu (1898). Ed. Fausto Borém. 200453. MOROZOWICZ, Henrique. Introdução e Sapateado. 1985.54. NOBRE, Marlos. Desafio IV. 1973.55. OLIVEIRA, Jailton. Suite Mirim. 1996.56. OSWALD, Henrique. Berceuse. Transc. Fausto Borém. 1989.57. OSWALD, Henrique. Sonata op. 21 para Contrabaixo e Piano. Transc. Fausto Borem.1993.58. PARPINELLI, Santino. Dança Nordestina. Ed. M. Masciadri Jr. & A. Sensale. 1995. 59. PARPINELLI, Santino. Jongo. Ed. M. Masciadri Jr. & A. Sensale. 1995. 60. PARPINELLI, Santino. Modinha. Ed. M. Masciadri Jr. & A. Sensale. 1995. 61. PARPINELLI, Santino. Seresta. 1985.62. PEREIRA, Marco. Balada para Toni. 1985. 63. PIAZOLLA, Astor e A. Troilo. Contrabajeando. Arr. Fausto Borém. 1988.64. REIS, Hilda. Seresta. Sem data.65. RIBEIRO, A. C. Danças e Contradições d’um Matuto Embriagado. 1996.66. SCHUBERT, Antonio P. Suite para Contrabaixo e Piano. 1988.67. SEPÚLVEDA, Elmo de Oliveira. Três Momentos. 1996.68. SIMÕES, Cláudio. Fantasia Brasileira. 1991.69. VALLE, Raul do. Interação. 198570. VIANA, Andersen. Sonata para Contrabaixo e Piano. 1998.71. VIDAL, Cesar Luis. Germinal. 1991.72. VIDAL, Itamar. Maracabrú. 1992.73. VILLANI-CÔRTES, Edmundo. 5 Miniaturas Brasileiras. 1993.74. VILLANI-CÔRTES, Edmundo. Chorando. 1996.75. VILLANI-CÔRTES, E. Choron. Ed. M. Masciadri Jr. And A. Sensale. 1995. 76. VILLANI-CÔRTES, E. Praeludius Onnibus (Prelúdio para On). 1979.77. VILLANI-CÔRTES, E. Rua Aurora. Transc. Sônia Ray. 1995.78. VILLA-LOBOS, H. Bachianas Brasileiras n.5. Transc. Fausto Borém. 1990.79. VILLA-LOBOS, H. Fuga Sobre um Tema de Caráter Popular Brasileiro. Transc. F. Borém.1990.80. VILLA-LOBOS, Heitor. Legendária. Transc. Fausto Borém. 1988.

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3.3 - Obras para Contrabaixo em Câmara (Chamber Music for the Double Bass)81. ALBRIGHT, Valerie. Esquisitango a dois. 1993.82. AGUIAR, Ernani. Duos de Oxosse. 1985.83. ALMEIDA, Nelson C. Janelas do Interior. 1988.84. BARROSO, Ary. Aquarela do Brasil. Ar. Ricardo Vasconcellos. 1994.85. BASSETO, Bruno. Serenata. 1995.86. BOREM, Fausto. Cânone Extensivo aos Contrabaixistas. 1993.87. BORÉM, Fausto. O Colibri. 1985.88. BERTOLA, Eduardo. Cantos a Ho. 1994.89. BRAGA, F. Diálogo Sonoro ao Luar (Seresta). Ed. Sérgio Barrenechea. 2003.90. CINTRA, Celso Luis de Araújo. Andando no Fio da Navalha. 1991.91. CUNHA, Estércio Márquez. Música para Violino e Contrabaixo. 2003.92. CROWL, Henry. Sunset. 1983.93. DELOR, Tibô. Lègendaire. 2002 (p/ 6 contrabaixos)94. DELOR, Tibô. Là Dans Lês Airs. 2003 (p/ 3 contrabaixos)95. DELOR, Tibô. A Nota Filosofal. 2001 (p/ 4 ou 6 contrabaixos)96. DELOR, Tibô. Rouge Mineur. 1994 (p/ 4 contrabaixos)97. DELOR, Tibô. Voleuse De Sommeil. 1995 (p/ 6 contrabaixos)98. DOURADO, Henrique Autran. Quartet for Two Double Basses. 1981.99. ESCALANTE, Eduardo. Acalanto. 1974.100. ESCALANTE, Eduardo. Invenção No.1. 1980.101. FERNANDES, Adil. Forró no Naipe. 1994.102. FERNANDEZ, O. L. Trio Brasileiro. Arr. Fausto Borem. 1927.103. FERRAZ, S.Igreja N. S. do Prado de Ouro Preto, Minas Gerais. 1991.104. FICARELLI, Mário. Dois Estudos para Dois Contrabaixos. 1969. 105. JOBIM, A. C. B. Tributo à Tom Jobim. Arr. H. Almeida. 1995.106. LACERDA, Oswaldo. Choro Seresta. 1974.107. LUCCA, Silvia de. À Luz do Sol. 1993.108. LUCCA, Silvia de.Quadri de la natura. 1990.109. MAHLE, Ernst. Duetos Modais. 1980.110. MAHLE, Ernst. 60 Duetos Fáceis para Contrabaixo. 1975.111. MAHLE, E.Ten Easy Brazilian Folk Tunes. Ed.Sonia Ray. 1998.112. MAHLE, Ernst. Quarteto para Contrabaixos. 1995.113. MIGNONI, F. Prelúdio (1973). Ed. Sérgio Barrenechea. 2003.114. OLIVEIRA, Sergio Roberto de. Pau e Corda. 2003.115. PARPINELLI, Santino. Temas Nordestinos. 1975.116. PIXINGUINHA. Agradecendo. Arr. Hermínio de Almeida. 1997.117. RIBEIRO, Antonio Celso. Harmonia et Dicordia. 1993.118. SANTOS, Rita de C. Domingues dos. Um Olhar Sobre a Morte. 1991.119. VICTORIO, Roberto. Vattanan. 1996.120. VILLANI-CÔRTES, Edmundo. Bachianinha. 1992.121. VILLANI-CÔRTES, Edmundo. A 7a Folha do Diário de um Saci. 1992.122. VILLANI-CÔRTES, Edmundo. A Dança dos Quatro Mestres. 1996. 123. VILLANI-CÔRTES, Edmundo. 5 Miniaturas Brasileiras. 1993.124. VILLANI-CÔRTES, Edmundo. Raízes. 1991.

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3.4 - Obras para Contrabaixo e Orquestra (Works for Double Bass and Orchestra)126. CORDEIRO, João Rodrigues. Fantasia para Contrabaixo (1869). Ed. Sergio Dias. 2000.127. DELOR, Tibô. Voleuse De Sommeil. 1999.128. GLIERE, R. Intermezzo op. 9 No.1. Orq. Valdir Claudino. 1997.129. GNATTALI, Radamés. Canção e Dança. 1982.130. KORENCHENDLER, Henrique David. Prelúdio, Recitativo e Dança. Orq. Fausto Borem. 1994.131. LARA, Felipe. Chiaroscuro. Duplo Concerto para Contrabaixo, Viola e Orquestra. 2002.132. MAHLE, Ernst. Concerto para Contrabaixo e Orquestra. 1990.133. PIAZZOLLA, Astor. Contrabajeando. Arr. e Orq. Fausto Borém. 1994.134. SIMÕES, Claudio Martins. Fantasia Brasileira para Contrabaixo Solo e Orquestra. 1996.135. VILLANI-CÔRTES, E. Concerto para Contrabaixo e Orquestra. 1996-2000.136. WIDMER, E. Concerto para Contrabaixo e Orquestra, Op.147. 1986.137. WOLF, Daniel. Concerto para Contrabaixo e Orquestra. 2002.

ConclusãoEste trabalho apresentou o processo de coleta e organização de obras brasileiras disponíveis para contrabaixo no Brasil e a elaboração do Catálogo on-line com este repertório. Os detalhes da organização das obras brasileiras coletadas por mim no período de 1993 a 2005 incluíram definição de critérios para classificação e organização das obras, opções por formas variadas de coleta ao longo destes doze anos (que incluiu contato pessoal, correspondência por carta e fax, contato por telefone e correspondências por vias eletrônicas) e a organização e estrutura de atualização do Catálogo on-line. Foi incluída uma listagem das obras que já estão disponibilizadas, divididas nas categorias: contrabaixo solo, contrabaixo com piano, contrabaixo em câmara e contrabaixo solista com orquestra. Desde setembro de 2005, o processo de atualização está sendo feito de forma interativa com compositores e contrabaixistas através do formulário para inclusão de obras, disponível na página da Irokun Brasil, que pode ser acessada no endereço: <http://www.soniaray.com/catalogo/catalogo_paginas/catalogo.html>.

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Sônia Ray é professora da EMAC-UFG, onde leciona contrabaixo, música de câmara, metodologia de pesquisa e apreciação e crítica da música contemporânea. Doutora em Performance e Pedagogia do Contrabaixo pela Universidade de Iowa, EUA, onde foi bolsista da CAPES sob a orientação de Diana Gannett, tem se apresentado regularmente como solista e camerista (incluindo o Duo Marray com a pianista Marina Machado) no Brasil (Brasília, Goiânia e São Paulo) e EUA (Iowa City, Oberlin, Indianápolis e San Diego), tendo feito a estréia de diversas obras brasileiras para contrabaixo. Sócia-fundadora da ABC (Associação Brasileira de Contrabaixistas), idealizou e co-organizou cinco encontros internacionais de contrabaixistas, dois concursos nacionais de composição e um concurso de solistas para o instrumento. Atualmente, desenvolve projetos de pesquisa nas áreas de psicologia da performance musical e de catalogação (edição e editoração) de música brasileira para contrabaixo. É Coordenadora o GEPEM (Grupo de Pesquisa em Performance Musical).

Referências BibliográficasALBRIGHT, V. Relatório Trienal de Pesquisa para a UNESP. São Paulo, dez. 1992.BORÉM, Fausto. Improvisação na Música de Bach em Transcrições para Contrabaixo. Revista da Associação

Brasileira de Contrabaixistas. São Paulo, ano 1, n.1, 1993.GUIMARÃES JÚNIOR, José e RAY, Sonia. Performance do Contrabaixo: localização, organização e análise de

técnicas não-convencionais de execução do contrabaixo. In: SEMINÁRIO NACIONAL DE PESQUISA EM MÚSICA, 4. CD Rom. Anais... Goiânia: PPGMúsica-UFG, 2004.

GRODNER, Murray. A Comprehensive Catalog of Available Literature for the Double Bass. 2a ed. Bloomington: Grodner, 2001.

NEGREIROS, A. Perspectivas Pedagógicas para a Iniciação ao Contrabaixo no Brasil. Dissertação de Mestrado defendida em dezembro de 2003. Universidade Federal de Goiás. Goiânia, 2003. 101p.

NEGREIROS, Alexandre e RAY, Sonia. Implicações Históricas na Atual Pedagogia do Contrabaixo no Brasil. In: SEMINÁRIO NACIONAL DE PESQUISA EM MÚSICA, 4. CD Rom. Anais... Goiânia: PPGMúsica-UFG, 2004.

RAY, Sônia. Catálogo de Obras Brasileiras Eruditas para Contrabaixo. São Paulo: Annablume/Fapesp, 1996. ________. Brazilian Classical Music for the Double Bass: An Overview of the Instrument, the Major Popular Music

Influences within its Repertoire and a Thematic Catalog. Dissertação de doutoramento. Universidade de Iowa, 1998.

________. Relatório de Pesquisa para a FUNAPE-UFG. Goiânia, julho de 2005. ROBERT, Jean Pierre. Modes of Playing the Double Bass: a dictionary of sounds. Paris: Musical Guild, 1995.RODRIGUES, Ricardo N.; RAY, Sonia. Ensino Coletivo de Contrabaixo: aplicação da proposta de iniciação de

Alexandre Negreiros. In: SEMINÁRIO NACIONAL DE PESQUISA EM MÚSICA, 4. CD Rom. Anais... Goiânia: PPGMúsica-UFG, 2004.

RUGGERI, Roger. Highlights of the Last Half Century for Solo Double Bass. ISB Magazine, Dalas, Texas, Vol. 18, n.1, Fall/Winter, 1991-2. p.20-24.

TELES, Ricardo e RAY, Sonia Ray. Edição, Restauração e Editoração Digital de Partituras: uma proposta de disciplina. In: SEMINÁRIO NACIONAL DE PESQUISA EM MÚSICA, 4. CD Rom. Anais... Goiânia: PPGMúsica-UFG, 2004.

VIEIRA, Dominique e RAY, Sonia. Histórico da Aplicação de Técnicas de Performance de Contrabaixo no Brasil. In: SEMINÁRIO NACIONAL DE PESQUISA EM MÚSICA, 4. CD Rom. Anais... Goiânia: PPGMúsica-UFG, 2004.

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PALOMBINI, Carlos. Carmen de Ruy Castro, artista multimídia do disco. Per Musi, Belo Horizonte, n.13, 2006, p.112-119

Carmen de Ruy Castro, artista multimídia do disco

Carlos Palombini (UFMG) 1 [email protected]

Palavras-chave: música popular brasileira, samba, indústria fonográfica, historiografia

Review of the book: Carmen by Ruy Castro, a multimedia artist on discKeywords: Brazilian Popular Music, samba, phonographic industry, historiography

Carmen: uma biografia, de Ruy Castro. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. (600 P.)

Carmen: uma biografia, de Ruy Castro, foi lançado pela Companhia das Letras no final de novembro de 2005 e já circulava em primeira reimpressão no início de janeiro de 2006. O autor é jornalista e tradutor, com nove obras originais publicadas pela Companhia; entre elas, dois livros sobre bossa nova (A onda que se ergueu no mar, 2001, e Chega de saudade, 1990) e duas biografias, uma de Garrincha (Estrela solitária, 1995) e outra de Nelson Rodrigues (O anjo pornográfico, 1992).

As seiscentas páginas de Carmen dividem-se entre um prólogo, trinta seções e um epílogo, seguidos de agradecimentos, discografia, filmografia, bibliografia, crédito das imagens (dois cadernos de dezesseis páginas cada um, com um total de onze páginas coloridas) e índice onomástico. O prólogo coloca em cena o assassinato do rei de Portugal, Dom Carlos I, em primeiro de fevereiro de 1908, fato que teria sido determinante na vinda de José Maria Pinto da Cunha para o Brasil em setembro de 1909, sete meses após o nascimento de sua segunda

Per Musi – Revista Acadêmica de Música – n.13, 119 p., jan - jun, 2006 Recebido em: 10/04/2006 - Aprovado em: 12/05/2006

1 O autor agradece aos doutores Carlos Sandroni (UFPE) e Fausto Borém (UFMG) pelos comentários e sugestões aos quais esta resenha deve suas eventuais qualidades.

RESEnhaSResenha sobre o livro Carmen: uma biografia, de Ruy Castro

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PALOMBINI, Carlos. Carmen de Ruy Castro, artista multimídia do disco. Per Musi, Belo Horizonte, n.13, 2006, p.112-119

filha, Maria do Carmo Miranda da Cunha, a Carmen. As trinta seções seguintes abordam a vida de Carmen Miranda, ano a ano, até sua morte em 5 de agosto de 1955. O epílogo acompanha o esquife, da aterrissagem na Ilha do Governador à apoteose final no cemitério São João Batista, em Botafogo.

A bibliografia de Carmen revela a preocupação de Castro em munir-se de informações acerca da protagonista, das pessoas que conviveram com ela e dos tempos e lugares em que se desenrolam as ações. Neste afã, ele desencava originais inéditos e até um livro publicado em Marco de Canavezes, município natal da protagonista. A lista extensa de agradecimentos — com a tocante observação “pela idade avançada de muitas de suas fontes, esta biografia foi sofrendo várias baixas entre as pessoas com quem o autor matinha contato regular” — é freqüentada pelo tout Rio e mostra a que ponto o jornalista chegou em busca dos fatos.

Pode-se dividir a vida de Carmen Miranda em dois períodos: de 1909 a 1939, no Brasil, aonde chegou aos dez meses de idade; de 1939 a 1955, nos Estados Unidos, de onde seu corpo retornou ao Brasil. Castro dedica sete seções (quase um quarto do livro) ao tempo desta transferência crucial. O período brasileiro de Carmen Miranda é o de sua formação no Rio de Janeiro, dos seis aos doze anos, na Lapa do colégio das freiras vicentinas e na Lapa das ruas. É também o período das contratações pelas Rádios Mayrink Veiga e Tupi e dos shows nos cassinos Atlântico, Copacabana e da Urca. Acima de tudo, o período brasileiro de Carmen Miranda é o de uma carreira ímpar como artista do disco, com dois fonogramas na gravadora Brunswick (em 1929), 149 na Victor (de 1929 a 1934) e 129 na Odeon (de 1935 a 1940), numa média de dois fonogramas e meio por mês.2

Josué de Barros descreve assim seu primeiro encontro musical com a artista, em 1929: “como se estivesse fascinada pelo violão que eu levava, suas palavras foram ganhando ritmo, foram se transformando em música e eu me lembro de seus gestos, de suas mãos, de seus dedos, agitando-se no ar como que impelidos por uma corrente elétrica” (BARSANTE, 1985, p.46). No mesmo ano, Barros levou Carmen Miranda às gravadoras Brunswick e Victor. No início do ano seguinte, Joubert de Carvalho escutava “Triste jandaia”, da primeira chapa Victor da cantora: “era como se eu, além de ouvir a intérprete, a estivesse vendo também, tal era a personalidade marcante que jorrava da gravação” (BARSANTE, 1985, p.46). Esta personalidade inspirou-lhe a marcha “Taí”, gravada por Carmen Miranda em 27 de janeiro. Em um ano, “Taí” vendeu 35.000 cópias, numa época em que 1000 cópias forneciam a medida do sucesso.

A carreira de Carmen Miranda como artista do disco inicia-se dois anos e meio após o início das gravações elétricas no Brasil. O gesto elétrico de Carmen Miranda tinha um precursor. Em 1928 Mário Reis gravara o samba “Jura”, de Sinhô, na antiga sala de música do Theatro Phoenix, no Rio de Janeiro, onde funcionava o estúdio da Casa Edison. No palco do mesmo teatro, na revista Microlândia, Aracy Côrtes era obrigada a trisar o samba de Sinhô todos os dias. Em disco, o sussurro elétrico de Mario Reis bateu a projeção vocal de Aracy Côrtes,

2 Esta aproximação desconta o período em que a artista esteve afastada do Brasil, de maio de 1939 a julho de 1940, antes de sua transferência definitiva para os Estados Unidos.

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ultrapassando a marca das 30.000 cópias e consagrando a figura do artista do disco.3 O rádio inventava-se no Rio, com shows ao vivo e um elenco de artistas contratados, suplantando o comércio de partituras e o teatro de revista no papel de divulgador do disco.4 Carmen Miranda era disputada pelas principais gravadoras e radioemissoras do país. Quando ela embarcou para Nova Iorque, em 4 de maio de 1939...

Apenas no que se refere aos discos, Carmen estava deixando para trás uma carreira maravilhosa. Em dez anos, gravara 281 músicas,5 recorde absoluto entre as cantoras brasileiras — sambas e marchas na imensa maioria, mas também choros, canções e até ritmos exóticos, como rumbas, foxes e tangos. Os sucessos eram incontáveis. Fizera dupla com os maiores cartazes de sua geração — nenhum maior do que ela —, como Chico Alves, Mario Reis, Sylvio Caldas, Carlos Galhardo, Almirante, Aurora. Todos os grandes compositores brasileiros tinham passado pela sua voz e ela fora responsável pela consagração de pelo menos três: Assis Valente, Synval Silva e Dorival Caymmi. (CASTRO, 2004, p.196)

De volta ao país, Carmen Miranda realizou seus últimos trabalhos para a Odeon nos dias 2, 6 e 27 de setembro de 1940: dez músicas novas, quase todas preparadas para estréia, em 12 de setembro, no Cassino da Urca, do show com o qual se despediria definitivamente do Brasil.6 Era sua resposta à acolhida hostil que recebera da oficialidade do Estado Novo, em 15 de julho no mesmo local. Atacada em sua brasilidade, a artista — nascida em Portugal e recém-consagrada nos Estados Unidos — cria o protótipo do álbum-conceito, tendo como tema sua persona pública. Em defesa de Carmen Miranda saem Ataulpho Alves e Torres Homem com “É um quê que a gente tem”; Dorival Caymmi com “O dengo que a nega tem”; Assis Valente com “Recenseamento” e “Brasil pandeiro”;7 Vicente Paiva e Luiz Peixoto com “Voltei pro morro”, “Disso é que eu gosto” e “Disseram que eu voltei americanizada”;8 Luiz Peixoto e Hannibal Cruz com “Diz que tem...”; e Gomes Filho e Juracy de Araújo com “Blaque-blaque” e “Ginga-ginga”.

O período norte-americano de Carmen Miranda é o da show-woman e de suas atuações em teatros, cassinos, night clubs, cinemas e estádios. Estas atuações se multiplicam em função do estrelato instantâneo em Hollywood, num total de quatorze filmes realizados entre 1940 e

3 Ambos os registros foram realizados pela Casa Edison; o de Mário Reis para o selo Odeon e o de Aracy Côrtes para o Parlophon (GIRON, 2001, p.286; RUIZ, 1984, p.270).

4 As letras do cateretê “As cinco estações no ano”, de Lamartine Babo (gravação Victor, 1933, com Lamartine Babo, Mario Reis, Carmen Miranda e Almirante), e da marcha “Cantores de rádio”, de Alberto Ribeiro, João de Barro e Lamartine Babo (gravação Odeon, 1936, com Carmen e Aurora Miranda), refletem o universo do rádio brasileiro nos anos 30.

5 O parágrafo de Castro presta-se a confusão, uma vez que 10 dos 129 fonogramas registrados pela Odeon só foram gravados quando do primeiro retorno de Carmen Miranda ao Brasil, em 1940, como se pode aferir na própria discografia do livro (CASTRO, 2006, p.557–66). Note-se também que constam ali 149 fonogramas (i.e. faces gravadas) Victor, e não 150, como computado por Castro (2006, p.557).

6 Carmen Miranda embarcou para os Estados Unidos pela segunda vez em 2 de outubro de 1940. 7 De acordo com Castro (2005, p.255), foi por modéstia que Carmen Miranda recusou “Brasil pandeiro”. 8 No livreto que acompanha a caixa EMI-Odeon de 1996, Abel Cardoso Junior observa que “Bruxinha de pano”,

também de Paiva e Peixoto, não guarda relação com o episódio da Urca, embora tenha sido gravada em 6 de setembro de 1940.

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1953, na Fox, United Artists, MGM e Paramount. Para a Decca americana, Carmen Miranda registrou 32 fonogramas entre 1939 e 1950, a maior parte deles com o Bando da Lua. O disco já não era, porém, o veículo de sua arte. A visualidade virtual das antigas criações fonográficas materializava-se então na película de celulóide, em tecnicolor, com distribuição internacional. Por curiosa metonímia, a iconografia hollywoodiana de Carmen Miranda terminaria ofuscando imagens da artista nos anos 30, entre elas, os belos trabalhos de Annemarie Heinrich (fotógrafa alemã radicada em Buenos Aires); o art déco à brasileira do filme Alô, alô carnaval!; e o material de divulgação da própria Victor.9

Como observou Araújo (2002, p.335–64), a memória coletiva da música brasileira se tem pautado pelas diretrizes combinadas na tradição e da modernidade. Criada na Lapa dos anos loucos sob o reinado de Sinhô — de cujo “Burucuntum” realizou um belo registro em 1930 — e tendo Ary Barroso, Joubert de Carvalho, Assis Valente e Synval Silva entre os compositores de sua predileção, Carmen Miranda ocupa um lugar no cerne de nossa tradição musical. Onde residiria sua modernidade? Para Castro, “Carmen simplesmente inventou a música brasileira de bossa e todos os cantores do gênero bossa — Luís Barbosa, Cyro Monteiro, Moreira da Silva, Dircinha Batista, Lucio Alves, Emilinha, Marlene, João Gilberto etc etc etc — são seus devedores” (CASTRO, 2006).

Carmen: uma biografia sugere duas leituras: a do comum dos leitores, interessado nas peripécias de uma vida na qual carreiras extraordinárias no disco e no cinema dão lugar a um fim cruel; a do especialista ou amador, interessado num dos períodos mais fascinantes de nossa cultura. Embora a prosa cinematográfica de Castro deva prender uns e outros,10 o especialista pode ressentir-se da ausência de discussão das fontes e de referência a questões de método. Desta forma, quando o autor diverge de Dulce Damasceno de Brito (que conviveu com Carmen Miranda de abril de 1952 até agosto de 1955) no que diz respeito ao relacionamento da cantora com Getúlio Vargas ou de Cássio Emmanuel Barsante (que realizou sua pesquisa num tempo em que as recordações estavam mais vivas), no que diz respeito à reação do estado-maior getulista à apresentação de 15 de julho de 1940 no Cassino da Urca, nem sempre fica claro o que embasa a versão defendida por Castro. Por outro lado, o autor afirma trabalhar com fatos e não com interpretações e considera ofensiva qualquer alusão à possibilidade que haja algo de fictício na Carmen que nos apresenta (CASTRO, 2006), sugerindo assim a adesão a uma concepção ingênua da história. Um de seus méritos é a reconstituição minuciosa de vários contextos da vida da artista. O maior de seus méritos é revelar o estofo humano da mulher em seu destino trágico, reconciliando a nação com a memória do ídolo.

9 Assim, é a baiana pan-americanizada que domina não só a caixa de três CDs com parte dos fonogramas Victor lançada pela RCA-BMG, como também a caixa de cinco CDs com a totalidade dos fonogramas Odeon lançada pela EMI e as antologias do período brasileiro da artista pelo selo Revivendo.

10 Há vários projetos de filmagem, inclusive uma minissérie da Globo, que já comprou o livro (CASTRO, 2006).

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Durante os dez anos de sua carreira na América do Sul, Carmen Miranda cantou as coisas do Brasil, em batuque, canção de roda, canção-toada, cançoneta cômica, cateretê, cena carioca, cena típica baiana, chorinho, choro, choro receita, fox canção, foxtrote, lundu, macumba, marcha-canção, marcha carnavalesca, marcha-frevo, marcha mistura, marcha protesto, marchinha, marchinha can-can, maxixe indiferente, partido alto, rumba, rumba-canção, samba, samba-batuque, samba canção, samba carnavalesco, samba-choro, samba-jongo, samba místico, samba nostálgico, samba paródia, samba revista, samba romântico, samba-tango, samba típico baiano, tango e zamba.11 Povoado pelos malandros que não conseguem se regenerar, pelas mulheres que gostam de apanhar e pelas coquetes inveteradas a que nos acostumaram os sambas do Estácio e as lendas da Lapa, este repertório também tem lugar para morenos que não são malandros nem cafetões,12 a rejeição do asfalto pelo morro,13 a desmistificação de sítios sagrados da geografia do samba14 e até o protesto do asfalto.15

Na arte vocal de Carmen Miranda as flexões brejeiras da fala das ruas modulam um material sonoro de tessitura e potência reduzidas. Com essa bossa, ela tempera o repertório excepcional que aflui à sua casa na Urca para ser multiplicado e distribuído por uma indústria fonográfica em expansão. Na Odeon e na Columbia, o maestro e violinista russo Simon Bountman e, na Victor, o compositor, orquestrador, flautista e saxofonista brasileiro Alfredo da Rocha Vianna criavam arranjos moldados por suas experiências distintas, pelas novas possibilidades do estúdio de gravação elétrica e por um repertório em processo de transformação.16 Surgem assim pequenas jóias como os sambas “Adeus batucada” de Synval Silva (Odeon, 24 de setembro de 1935), “Você não tem pena” de Russo do Pandeiro e Bucy Moreira (Odeon, 19 de março de 1936), “Capelinha do coração” de Arlindo Marques Júnior e Roberto Roberti (Odeon, 19 de março de 1936) e “Cabaré no morro” de Herivelto Martins (Odeon, 20 de julho de 1937).

Em “Cabaret no morro”, compositor, arranjador e intérprete se unem na empatia com um per-sonagem que é um convite à caricatura: a mulher que deixa de gostar de malandro e desce o morro na esperança de um dia voltar “com um ricaço pendurado no braço”. Após uma introdu-ção instrumental no chalumeau, sobre ritmo marcado de samba, em tom menor, crepitam no alto-falante as consoantes nítidas de Carmen Miranda, entre vogais em arabescos tímbricos cada vez mais aventurosos. Emerge assim, pontuada por desenhos ascendentes do clarinete,

11 Na grafia dos gêneros citados, nem sempre foi possível verificar o emprego ou não do hífen no selo original do disco.

12 Como no samba de Kid Pepe e Siqueira Filho “Triste sambista” (gravação Odeon, 15 de abril de 1936), cujo personagem principal, embora não haja mulher que resista aos acordes de seu violão, passa a vida isolado, fazendo seresta para aquela gente pobre.

13 Como no samba de Laurindo de Almeida “Mulato antimetropolitano” (gravação Odeon, 5 de abril de 1939), cujo protagonista “não gosta da cidade” e “diz que isto aqui por baixo não é pra ele não”, preferindo viver no morro “onde há samba pra cachorro e a gente é mais igual”.

14 Como a referência ao Café Nice no samba de Assis Valente “Isso não se atura” (gravação Odeon, 26 de junho de 1935): “o sambista do Café, ai eu não quero falar mal, só se lembra da morena quando chega o carnaval”.

15 Como na rumba de Joubert de Carvalho “Sai da toca Brasil” (gravação Odeon, 8 de março de 1938): “Brasil das avenidas, da praia de Copacabana e do asfalto, a tua gente branca e forte ninguém cantou ainda bem alto”.

16 No que diz respeito a estas transformações, vide Sandroni (2001).

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a disposição da mulher pobre em lançar-se ao perigo, afirmando sua liberdade sobre o fundo sombrio ao qual está inextricavelmente ligada.

Se Carmen Miranda pôde entoar com tanto despudor o “sou brasileira, vivo feliz, gosto das coisas de meu país” de Randoval Montenegro,17 foi porque, nascida em Portugal “por acidente” (CASTRO, 2005, p.12), sua brasilidade esteve sempre em xeque. Emblema da nacionalidade conquistada, Carmen Miranda torna-se a brasileira maior. Seu fado é o da nação em busca perene de sua identidade. O resultado desta busca necessita validar-se longe do palco onde se desenrola o drama da identidade nacional. Aqui, o destino da nação e o da mulher se unem de novo, desta vez de modo trágico.

A elegantíssima baiana estilizada surge em 1938, no filme Banana da terra, ilustrando o samba típico baiano “O que é que a baiana tem?”, de Dorival Caymmi.18 Foi o jovem — mas já baianíssimo — compositor quem ensinou a Carmen Miranda o traje, os adereços e os meneios de mãos. Nos Estados Unidos, a baiana de credenciais irretocáveis pan-americanizou-se: foi Rosita Rivas em Week-end in Havana (Aconteceu em Havana, 1941), Rosita Murphy em Springtime in the Rockies (Minha secretária brasileira, 1942), Dorita em The Gang’s All Here (Entre a loura e a morena, 1942), Chiquita Hart em Something for the Boys (Alegria, rapazes!, 1944), Chita em Doll Face (Sonhos de estrela, 1945), Carmen Navarro em Copacabana (1947), Rosita Conchellas em A Date with Judy (O príncipe encantado, 1948), Marina Rodriguez em Nancy Goes to Rio (Romance carioca, 1950) e Carmelita Castina em Scared Stiff (Morrendo de medo, 1953).

Dissolvendo as fronteiras entre o Brasil e a América hispânica, as Rositas glamourosas de Carmen Miranda solaparam nossa identidade lusófona, fazendo-nos unos com aquilo que nos é mais próximo e, conseqüentemente, com o qual mais tememos ser confundidos. O preço que a mulher pagou foi dos mais altos. Privada de amor e prisioneira de um personagem do qual se distanciava em seu íntimo, Carmen Miranda se viu condenada a repetir a performance hilariante ad nauseam, em ritmo frenético, para escapar aos problemas conjugais, aquecer-se ao calor dos aplausos e satisfazer a ganância do marido. Diante das câmaras de televisão, em 4 de agosto de 1955, acometeu-a uma arritmia.19 Na madrugada de 5 de agosto, quando se deslocava do banheiro para o quarto de sua residência, foi fulminada por um infarto. O marido encontrou-a com um espelho na mão, prostrada e já enrijecida.

Oito anos e meio após a morte da artista, instaura-se no Brasil a ditadura militar. O amor de Carmen Miranda pelo país reforça agora os valores da cultura oficial. Se estivesse viva,

17 No samba “Eu gosto da minha terra” (Victor, 6 de agosto de 1930); é interessante comparar esta gravação com a de Elza Soares, em 2003, no álbum Vivo feliz.

18 A cena em que Carmen Miranda canta “O que é que a baiana tem?” acompanhada pelos dançarinos do Cassino da Urca é a única que sobreviveu do filme.

19 O fotograma congelado de Carmen despencando para a morte, o olhar fixo na câmara, a boca contorcida numa súplica muda, aparece em Barsante (1985, p.197).

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poderia ter sofrido agressões físicas, como Dom e Ravel (vide ARAÚJO 2002, p.284–85 e 292–95); morta, foi tachada de adesista e condenada ao ostracismo, como Wilson Simonal em vida (ARAÚJO 2002, p.289–92).20 Sobreviveu nos desfiles das Escolas de Samba, nos Bailes dos Enxutos e nos shows de drag queens, onde seu talento para a autoparódia era bem compreendido. Em 1978 Abel Cardoso Junior lançou Carmen Miranda: a cantora do Brasil em edição particular do autor. Aos trinta anos de sua morte, surgiram os trabalhos de Barsante (1985), Gil-Montero (1986) e Brito (1986). Os ensaios de Mendonça e Garcia apareceram, respectivamente, em 1999 e 2004.

Castro abre os agradecimentos de Carmen: uma biografia com uma evocação significativa:

Em 1991, Mario Cunha tirou de uma velha caixa de sapatos todas as cartas que Carmen lhe escrevera quando foram namorados, de 1925 a 1932. Leu uma a uma, chorando muito — cartas lindas, arrebatadas, cheias de descrições maliciosas, mas temperadas com os diminutivos que ela tanto gostava de usar —, e rasgou-as. Fez isso em seu apartamento, na rua Buarque de Macedo, no Flamengo, na presença do sobrinho Fernando. Mario Cunha morreria cinco anos depois, aos 95 anos, irremediavelmente solteiro e, segundo Fernando, admitindo que Carmen “fora a mulher de sua vida”. (CASTRO, 2005, p.551)

Tampouco Castro esconde seu amor pela protagonista. Ele concebeu o livro para “o leitor inteligente e capaz de se emocionar” (CASTRO, 2006). E confessa tê-lo concluído aos prantos.

Referências bibliográficasARAÚJO, Paulo Cesar de. 2002. Eu não sou cachorro não: música popular cafona e ditadura militar. Rio de Ja-

neiro e São Paulo: Record.BARSANTE, Cássio Emmanuel. 1985. Carmen Miranda. Rio de Janeiro: Europa. BRITO, Dulce Damasceno de. 1986. O ABC de Carmen Miranda. São Paulo: Companhia Editora Nacional. CASTRO, Ruy. 2006. Comunicação pessoal escrita de 14 de janeiro. ———. 2005. Carmen: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras.GARCIA, Tânia da Costa. 2004. O “it verde e amarelo” de Carmen Miranda (1930–1946). São Paulo: Annablume

e FAPESP.GIRON, Luís Antônio. 2001. Mario Reis: o fino do samba. São Paulo: Editora 34. MENDONÇA, Ana Rita. 1999. Carmen Miranda foi a Washington. Rio de Janeiro e São Paulo: Record.PÊRA, Marília e CASTRO, Ruy. 2006. “Irmãos por parte de Carmen: Marília Pêra entrevista Ruy Castro”. O globo:

segundo caderno. Rio de Janeiro: 28 de janeiro, p.1–2.RUIZ, Roberto. 1984. Araci Cortes: linda flor. Rio de Janeiro: Funarte. SANDRONI, Carlos. 2001. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917–1933). Rio de

Janeiro: Zahar e UFRJ.

20 Em entrevista recente com Castro, Marília Pêra afirma ter sido por causa de Carmen Miranda que, em 1972, Henfil a enterrou no “Cemitério dos Mortos-Vivos” do Pasquim (PÊRA e CASTRO, 2006, p.1). De fato, a atriz aparece ali com o turbante característico, em alusão ao show A Vida Fabulosa de Carmen Miranda, que ela apresentava no Rio naquele ano.

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Discografia recomendadaCarmen Miranda. 1998. RCA-BMG. 3 CDs contendo 66 dos 149 fonogramas gravados por Carmen Miranda na Victor

de 1929 a 1934 e livreto bilíngüe de Tárik de Sousa com ilustrações em preto e branco e letras. 7432152774–2.Carmen Miranda. 1996. EMI-Odeon. 5 CDs contendo todos os 129 fonogramas gravados por Carmen Miranda na

Odeon de 1935 a 1940 e livreto bilíngüe de Abel Cardoso Junior com ilustrações coloridas e letras. 834704–2, 834705–2, 834706–2, 834707–2 e 834708–2.

Carmen Miranda, South American Way: Original Recordings 1939–1945. 2003. Naxos-Nostalgia. CD contendo 21 dos 32 fonogramas gravados por Carmen Miranda na Decca norte-americana de 1939 a 1950 e encarte de Greg Gormick. 8.120719.

The Lady in the Tutti Frutti Hat: Carmen Miranda on Films and Airshots. 1999. Harlequin. Inclui 4 faixas extraídas da gravação do Jimmy Durante Show.

Documentos audiovisuaisSOLBERG, Helena e MEYER, David. 1994. Banana is my Business. Internartional Cinema Inc. em associação

com Corporation for Public Broadcasting, Channel 4 Television, The National Latino Communications Center e Riofilmes S.A. Em DVD da Fox Lober Home Video, 1998. Com depoimentos de Aurora Miranda, Mario Cunha, Caribé da Rocha, Laurindo Almeida, Synval Silva, Aloysio de Oliveira, Cesar Romero, Alice Faye, Jeanne Allan, Estela Romero, Raul Smandek, Cássio Barsante, Jorginho Guinle, Ted Allan e Rita Moreno.

Carlos Palombini é professor adjunto de Musicologia na Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais, onde dirige o Centro de Pesquisa em Música Contemporânea. Seus artigos e resenhas aparecem nos periódicos Computer Music Journal, Music and Letters, Leonardo, Organised Sound, Synteesi, Echo, Ethnomusicology On-Line, eContact!, Revista eletrônica de musicologia, Per musi etc bem como nas antologias de Larry Sitsky Music of the Twentieth Century Avant-Garde: A Biocritical Sourcebook (Westport e Londres: Greenwood, 2002) e de Eduardo Miranda Música y nuevas tecnologias: perspectivas para el siglo XXI (Barcelona: L’Angelot, 1999).

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