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- 8 '-'11 'J~"'" .::: - ! ;-, "-',.' -.I PER;()DjCO~ A CULTURA PODE SER UM OBSTÁCULO AO DESENVOLVIMENTO? "(,..) aumentou minha convicção de que mais do que qualquer dos numerosos/atores que ifluenciam o desenvolvimento dos países, na maioria dos casos éprincipalmente a cultura que explica por que alguns se desenvolvem mais rápida e bomogeneamente que outros." Lawrence Harrison ''Desubfator secundário, de longínqua e negligenciável conseqüência, as mentalidades tornar-se-ão o centro em torno do qual tudo grauita. motor essencial do desenvolvimento, ou obstáculo iruransponiuel. " Alain Peyrefitte estudo dos traços cul- turais como condição favorável ou como obs- .-culo ao desenvolvimento onômico não é recente. O autores atuais estão penas retornando ao sunto, diante dos resul- ados decepcionantes de muitos modelos, explicações e receitas econornicistas propagadas e adota das pelo mundo afora. Na verdade, a preocupação com a impor- tância da cultura, particular- mente da religião, como fator positivo ou negativo do crescimento econômico, é bastante antiga. Amintore Fanfani', em Catolicismo y protestantismo en Iagenesis del capitalismo, cuja edição original foi publica da em 1944, registra que o inglês William Temple abordou o problema em suas Obser- vations upon the United Provinces ofNetberland, em fins de 1673. Em 1682, William Pety explicava a maior prosperidade que os CÉSAR GARCIA' RESUMO A cultura tem grande importância como fator de de- senvolvimento, mas pode ser também um obstáculo. Este assunto pode ser encontrado em escritos do século XVII, embora seu estudo mais fecundo seja aquele elabora- do por Max Weber no início do século XX. Recente- mente, diante do fracasso de muitos modelos economicistas, vários autores vêm retomando a ques- tão para explicar especificamente o atraso da América Latina. No Brasil, as tentativas de definição de uma caracterização nacional feitas nos séculos XIX e XX, apesar de eivadas de preconceitos, ajudam a refletir sobre a compatibilidade entre nossa cultura e as exi- gências do desenvolvimento econômico. Resta saber como poderíamos promover mudanças em nossa cul- tura, removendo os obstáculos e estimulando valores, crenças e atitudes lavoráveis à prosperidade. ABSTRACT Culture has great importance as a lactor 01development but can also be a hindrance to it. This theme can be lound in writings lrom the seventeenth century but the most Iruitlul studies on it were carried out by Max Weber in the beginning 01the twentieth century. Recently,in view 01the lailure 01many economicist models, many authors have been reexamining this issue to specifically explain the backwardness 01Latin America. In Brasil,the attempts at delining a national character made in the nineteenth and twentieth century, although lull of prejudices, help us to reflect on the compatibility between our culture and the demands of economic development. It remains to know how we could advance changes in our culture, removing the obstacles and lostering values, beliels and altitudes favorable to prosperity. . Professor Adjunto de Economia do Departamento de Letras e Ciências Humanas da UFRPE, Mestre em Pia· nejamento Econômico pela Universidade de Antuérpia. protestantes de seu tempo alcançavam na Irlanda católica. A obra que ficou, porém, como marco de referência do início deste debate é sem dúvida o estudo de Max Weber publi- cado em 1904-1905, com o título A ética protestante e o espírito do capitalismo. A partir de então, todos os autores que examinaram a questão referem-se a esse trabalho seja para criticá-Io seja para nele buscar apoio. Baseado em uma por- menorizada análise dos ensi- namentos dos reforma dores, particularmente de Calvino e dos puritanos, Weber afirma que o protestantismo ascético teve grande impor- tância no desenvolvimento do capitalismo: A gênese desse tipo de vida remonta também" como tantos outros traços do mo- derno espírito capitalista, à Idade Média, mas foi na ética do protestaruismo GARCIA, CÉSAR. 107 A CULTURA PODE SER UM OBSTÁCULO AO DESENVOLVIMENTO? p.107 A 114.

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A CULTURA PODE SER UM OBSTÁCULOAO DESENVOLVIMENTO?

"(,..) aumentou minha convicção de que mais do que qualquer dos numerosos/atores queifluenciam o desenvolvimento dos países, na maioria dos casos éprincipalmente a cultura que

explica por que alguns se desenvolvem mais rápida e bomogeneamente que outros."Lawrence Harrison

''Desubfator secundário, de longínqua e negligenciável conseqüência,as mentalidades tornar-se-ão o centro em torno do qual tudo grauita. motor essencial do

desenvolvimento, ou obstáculo iruransponiuel. "Alain Peyrefitte

estudo dos traços cul-turais como condiçãofavorável ou como obs-

.-culo ao desenvolvimentoonômico não é recente.

O autores atuais estãopenas retornando aosunto, diante dos resul-

ados decepcionantes demuitos modelos, explicaçõese receitas econornicistaspropagadas e adota das pelomundo afora. Na verdade, apreocupação com a impor-tância da cultura, particular-mente da religião, como fatorpositivo ou negativo docrescimento econômico, ébastante antiga. AmintoreFanfani', em Catolicismo yprotestantismo en Iagenesisdel capitalismo, cuja ediçãooriginal foi publica da em1944, registra que o inglêsWilliam Temple abordou oproblema em suas Obser-vations upon the UnitedProvinces ofNetberland, emfins de 1673. Em 1682,William Pety explicava amaior prosperidade que os

CÉSAR GARCIA'RESUMO

A cultura tem grande importância como fator de de-senvolvimento, mas pode ser também um obstáculo. Esteassunto pode ser encontrado em escritos do século XVII,embora seu estudo mais fecundo seja aquele elabora-do por Max Weber no início do século XX. Recente-mente, diante do fracasso de muitos modeloseconomicistas, vários autores vêm retomando a ques-tão para explicar especificamente o atraso da AméricaLatina. No Brasil, as tentativas de definição de umacaracterização nacional feitas nos séculos XIX e XX,apesar de eivadas de preconceitos, ajudam a refletirsobre a compatibilidade entre nossa cultura e as exi-gências do desenvolvimento econômico. Resta sabercomo poderíamos promover mudanças em nossa cul-tura, removendo os obstáculos e estimulando valores,crenças e atitudes lavoráveis à prosperidade.

ABSTRACTCulture has great importance as a lactor 01developmentbut can also be a hindrance to it. This theme can belound in writings lrom the seventeenth century but themost Iruitlul studies on it were carried out by Max Weberin the beginning 01the twentieth century. Recently, in view01the lailure 01many economicist models, many authorshave been reexamining this issue to specifically explainthe backwardness01LatinAmerica. In Brasil, the attemptsat delining a national character made in the nineteenthand twentieth century, although lull of prejudices, helpus to reflect on the compatibility between our culture andthe demands of economic development. It remains toknow how we could advance changes in our culture,removing the obstacles and lostering values, beliels andaltitudes favorable to prosperity.

. Professor Adjunto de Economia do Departamento deLetrase Ciências Humanasda UFRPE, Mestre em Pia·nejamento Econômico pela Universidadede Antuérpia.

protestantes de seu tempoalcançavam na Irlandacatólica. A obra que ficou,porém, como marco dereferência do início destedebate é sem dúvida oestudo de Max Weber publi-cado em 1904-1905, com otítulo A ética protestantee o espírito do capitalismo.A partir de então, todos osautores que examinaram aquestão referem-se a essetrabalho seja para criticá-Ioseja para nele buscar apoio.

Baseado em uma por-menorizada análise dos ensi-namentos dos reforma dores,particularmente de Calvinoe dos puritanos, Weberafirma que o protestantismoascético teve grande impor-tância no desenvolvimentodo capitalismo:

A gênese desse tipo de vidaremonta também" comotantos outros traços do mo-derno espírito capitalista, àIdade Média, mas foi só naética do protestaruismo

GARCIA, CÉSAR. 107A CULTURA PODE SER UM OBSTÁCULO AO DESENVOLVIMENTO? p.107 A 114.

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-ascético que ele encontrou seus funda-mentos morais mais consistentes. Seusignificado no desenvolvimento docapitalismo é óbvio. Esse ascetismosecular do protestantismo - por essadenominação é que podemos resumiro que dissemos até agora - opunha-se,assim, poderosamente, ao espontâneousufruir das riquezas, e restringia o con-sumo, especialmente o consumo do luxo.Em compensação, libertava psico-logicamente a aquisição de bens das ini-biçõesda ética tradicional, rompendo osgrilhões da ânsia de lucro, com o quenão apenas a legalizou, como tambéma considerou (no sentido aqui exposto)como diretamente desejada por Deus.A luta contra as tentações da carne e adependência dos bens materiais era -como, aliás, os puritanos e também, ogrande apologista do qualeertsmo,Barclay, textualmente afirmava - nãouma campanha contra o enrique-ci-mento, mas contra o uso irracional dariqueza (Weber, 2001, p.122),

Weber tinha em mente a figura doempresário capitalista inteiramente dedicado aoaumento de sua riqueza, mas não ao uso de seusbenefícios. Alguém que encarava seu trabalhocomo uma vocação e que era motivado apenaspela preocupação com o futuro de seus filhos enetos ou apenas com o cumprimento de seudever. Mas a importância da religião na criaçãodo ambiente propício ao desenvolvimento estavatambém no seu poder de impor um comporta-mento adequado aos trabalhadores.

opoder da ascese religiosa, além disso,punha à sua disposição trabalhadoressóbrios, conscientes e incomparavel-mente industriosos, que se aferrauam aotrabalbo como a uma finalidade de vidadesejada por Deus, Dava-lhe, além dis-so, a tranqüilizadora garantia de que

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a desigual distribuição da riqueza des-te mundo era obra especial da DivinaProvidência, que, com essas diferenças,e com a graça particular, perseguia seusfins secretos, desconhecidos do homem(Weber, 2001, p. 127).

Embora os calvinistas acreditassem que sóseriam salvos aqueles predestinados por Deus,seu fatalismo não os levava à inação simplesmenteporque nenhum deles acreditava ter sidocondenado previamente por Deus, Os condenadoseram os outros. Era fácil crer que Deus dava algunssinais de sua escolha, e a prosperidade tinha tudopara ser um desses sinais, Este ambiente ético-religioso teve grande importância no desenvol-vimento das atividades econômicas quando adisciplina, a dedicação, a sobriedade e apoupança eram fundamentais para a construçãodas bases do capitalismo moderno. Dois séculosdepois, quando o alto nível de consumo tornou-se possível, já nào são aqueles valores quepredominam pelo simples fato de não serem maisnecessários. O próprio Weber constatou:

(.,.) nos Estados Unidos, a procura dariqueza, despida de sua roupageméticoreligtosa, tende cada vez mais aassociar-se com paixões puramentemundanas, quefreqüeruemente lhe dãoo carâter de espoitetweoes, 1967, p. 131).

As igrejas perderam seu poder e restringiramseu campo de influência, Já não se pode atribuir-lhes um papel fundamental no processo decrescimento dos países ricos nem sua fraquezaou ausência deve ser vista como explicação parao atraso econômico de outras áreas do mundo,No entanto, isto não invalida a preocupação comoutros setores da cultura que podem ter relaçãocom as chances de desenvolvimento de um país.

Para começar com um aspecto objetivo, éinegável que o nível de instrução está estrei-tamente associado ao desempenho de um agenteeconômico, seja ele empreendedor, seja

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-trabalhador, já que hoje, as tarefas mais simplesão orientadas por instruções escritas em

embalagens, manuais e folhetos. Pode-se cairnum círculo vicioso: o país nào se desenvolveporque não tem instrução; não tem instruçãoporque é pobre. Mas a segunda afirmativa nemempre é verdadeira. No caso do Brasil. o nível

de instrução é baixo porque no passado não houvequem percebesse com antecedência a importânciada instrução, ou, melhor dizendo, da educaçãofundamental, mesmo na óptica dos interessespredominantes. O povo, por seu lado, na ânsiade satisfazer necessidades imediatas, tampoucopercebeu a tempo a importância da educação,do aprendizado, da escola. Freqüentementenegligenciou o cuidado necessário para queos filhos menores permanecessem na escola.Até mesmo por parte dos próprios jovens, comidade suficiente para compreender a necessidadeda preparação para a vida adulta, não houve eainda não há, para uma boa parte, uma percepçãoclara da importância do colégio e até dauniversidade para suas vidas e muito menos parao desenvolvimento do país. Em vinte anos dedocência, sempre precisei lembrar aos alunosque eles estào desperdiçando, a cada dia,oportunidades de adquirir conhecimentos úteispara suas vidas quando se distraem durante aaula, quando não participam dos debates, quandonão lêem os textos indicados. Boa parte dosadolescentes e dos jovens brasileiros ainda nãoassimilou suficientemente a idéia de que aeducação e o preparo profissional são o únicocaminho para a integração na sociedade.

Caberia perguntar: de onde vem estadespreocupação com o futuro? Para responder aesta questão teremos que entrar no delicadoterreno do estudo da cultura predominante nopaís. Quando se tenta caracterizar um povo,corre-se o risco de cair em preconceitos.Há evidentemente diferenças culturais entre ospaíses, mas nem sempre é fácil descrever comsegurança os traços de comportamento quepredominam em cada um. Os indivíduoscomportam-se diferentemente segundo a classe

a que pertencem e, com o passar do tempo,também ocorrem mudanças que atingem a todos.

Com relação ao Brasil, muitos autorescorreram este risco e publicaram trabalhos que,embora tenham feito sucesso em seu tempo,tornaram-se inaceitáveis para os dias de hoje. DanteMoreira Leite 0927 - 1967), psicólogo paulista,autor de O caráter nacional brasileiro,' história deuma ideologia, faz a crítica do que disseram osprincipais autores sobre o assunto, particularmente:Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Nina Rodrigues,Oliveira Viana, Manoel Bomfim, Alberto Torres,Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda,Fernando de Azevedo, Viana Moog e Caio PradoJúnior. Em todos o autor aponta preconceitos eranços ideológicos. Cada um baseou-se nas teoriaspredominantes em seu tempo e assim aplicaramaos brasileiros, adjetivos (bons ou maus) que hojenenhum autor sério aplicaria. Vale a pena apreciara longa lista elaborada por Dante Moreira Leite.

Sílvio Romero: (características psicoló-gicas do brasileiro): apático, sem iniciativa,desanimado, imitação do estrangeiro (na vidaintelectual), abatimento intelectual, irritabilidade,nervosismo, hepatismo, talentos precoces erápida extenuação, facilidade para aprender,superficialidade das faculdades inventivas,desequilibrado, mais apto para queixar-se que parainventar, mais contemplativo que pensador, maislirista, mais amigo de sonhos e palavras retum-bantes que de idéias científicas e demonstradas.

Afonso Celso: (características psicológicasdo brasileiro): sentimento de independência,hospitalidade, afeição à ordem, à paz e aomelhoramento; paciência e resignação, doçura,longanimidade e desinteresse, escrúpulo nocumprimento das obrigações contraídas,caridade, acessibilidade, tolerância (ausência depreconceitos), honradez (pública e particular),falta de iniciativa, falta de decisão, falta defirmeza, pouca diligência, pouco esforço. Nosmestiços: energia, coragem, iniciativa, inteligência,imprevidência, despreocupação com o futuro.

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-Euclides da Cunha: Paulista: aventuroso,

rebelde, libérrimo. Indígena: inapto ao trabalho,rebelde, impulsividade. Vaqueiro: bravo,destemeroso, resignado, tenaz, fixação ao solo,impulsividade, apego às tradições, sentimentoreligioso levado ao fanatismo, honra, audacioso,forte.

Artur Ramos: culto da palavra, culto dodoutor. caça a diploma, primarismo, autodida-tismo, narcisismo, culto das coisas concretas,culto dos totens estrangeiros.

Afonso Arinos de Meio Franco: interessepor sexo, imprevidência, dissipação, desapreçopela terra, salvação pelo acaso, amor àostentação, desrespeito à ordem legal.

Manoel BOmIUD:parasitismo, perversãodo senso moral, horror ao trabalho livre, ódio aogoverno, desconfiança das autoridades, instintosagressivos, conservantismo, falta de observação,resistência, sobriedade, tibieza, intermitência deentusiasmo, desfalecimentos contínuos, desânimofácil, tendência à lamentação, facilidade naacusação, inadvertência, ausência de vontade,inconstância no querer, hombridade patriótica,poder de assimilação social. Mestiços: indolentes,indisciplinados, imprevidentes, preguiçosos.

Paulo Prado: tristeza, erotismo, cobiça,romantismo, individualismo desordenado, apatia,imitação.

Gilberto Freyre: sadismo no grupodominante, masoquismo nos grupos dominados,animismo, crença no sobrenatural, gosto porpiadas picantes, erotismo, gosto da ostentação,personalismo, culto sentimental ou místico dopai, 'maternismo', simpatia do mulato, individu-alismo, interesse intelectual, complexo derefinamento.

Cassiano Rícardo: mais emotivo, maiscoração que cabeça, mais propenso a ideologias

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que a idéias, detesta a violência, menos cruel,menos odioso, bondade, individualismo.

Sérgio Buarque de Holanda: culto dapersonalidade, falta de hierarquia, desordem,ausência de espírito de organização espontânea,inquieto e desordenado, ânsia de prosperidadesem custo, de posição e riqueza fáceis,'aventureiro', inteligência como ornamento eprenda, cordialidade, individualismo.

Fernando de Azevedo: afetividade,irracional idade, misticismo, sensibilidade,imaginação, religiosidade, resignado, dócil,submisso, bondade, reserva, desconfiança,sobriedade, imprevidência, inteligência superfi-cial e brilhante, individualismo, sentimentodemocrático, tendências igualitárias, altruísmo,sentimentalidade, generosidade, pacífico,hospitaleiro, tolerante, intuitivo.

Viana Moog: apego ao passado europeu eportuguês, desconfiança, medo do ridículo,exibição do sofrimento, reserva na expressão dafelicidade, mania de doenças, desamor ao trabalhoorgânico, sem profundidade religiosa, ausênciade iniciativa, de organização, de cooperação,o 'trabalho como labéu infamante', vaidadepedantismo, 'suficiência', valorização de triunfoatravés de habilidade, intriga, cálculo e astúciadelicadeza ou jeito, suscetibilidade, imaturidadeemocional, indiscriminação racial, despreocupaçãodos aspectos morais da vida, desprezo das virtudeeconômicas, procura de riqueza rápida.

Deixo ao leitor a constataçào das contra-dições. Chama atenção, contudo, a ausência doadjetivos alegre e informal, pois, hoje em dia.inegavelmente, estas duas qualidades fazem paneda imagem difundida do país. Apesar de enfrentarduras dificuldades em casa, no bairro, no transporte.no trabalho ou no desemprego, o povo brasileiroexpressa alegria através do gosto pela festa.pela dança e pela música. Quanto à informalidadeé fácil constatá-Ia na roupa, na linguagem

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-no tratamento com os desconhecidos e, muitoparticularmente, com os professores, nos colégiose nas universidades.

Quando Ary Barroso chamou o Brasil deterra de samba e pandeiro, fez um elogio e nãouma crítica. A alegria não pode ser consideradaprejudicial à prosperidade. É uma qualidadepositiva que nos orgulha. No entanto, quandofora de hora ou de lugar, quando inverte asprioridades, interrompendo o trabalho ounegligenciando os horários, deixa de ser umavirtude, pois dá lugar ao imediatismo e aodesprezo pelo futuro. A informalidade pode sersimpática, sobretudo quando significa umaadaptação ao clima. Torna-se, porém, um malquando descamba para o desrespeito, para a faltade seriedade em ambientes de trabalho ou dedevoção.

Que fazer?

Os economistas garantem: para havercrescimento econômico deve haver investimento;para haver investimento, tem que haverpoupança. E os antropólogos afirmam: o hábitode poupar é determinado pelo modo como apopulação encara o futuro. Onde predomina ocuidado com o futuro, a taxa de poupançaalcança 30% como já aconteceu no Japão,na Coréia e na China. Mesmo com uma taxa dejuro próxima de zero, os japoneses preferemmanter seu estilo frugal e deixar o dinheiroguardado para se prevenir contra dificuldadesmais tarde. Onde a população prefere consumir,desprezando juros em torno de 25%, oimediatismo impede que a poupança ultrapasseos 15% da renda nacional. Com tão débildisposição para poupar, recorre-se à poupançaexterna, ou seja, aumentam a dívida externa e adesnacionalização de empresas.

Além da disposição para poupar, muitasoutras características culturais são necessárias.

odesenvolvimento sustentado exigirá quecrenças, atitudes e valores produtivos

se espalhem entre trabalhadores, entreinstituições como igrejas e universida-des, e finalmente pela SOCiedadecivil.Do contrário, faltará apoio para polí-ticas de aumento da produtividade quedesafiem direitos adquiridos. (Porter,2002, p.63).

Que seriam, no entanto, "crenças, atitudese valores positivos"? Aqui, entramos num terrenotambém pouco seguro. Até agora, havíamosconsiderado dois fatores culturais bastanteobjetivos e até mensuráveis: o nível de instruçãoe a propensão à poupança, como dizem oseconomistas. "Crenças, atitudes e valores",contudo, são componentes da visão do mundoque orientam o comportamento humano,percebidos de forma variada por diferentesobservadores. É natural que daqui em diante oconsenso seja mais difícil, mas não podemosrecuar. O exame já realizado por alguns autoresnos fornece clareza suficiente para a continuidadedo debate sem grandes riscos.

Nossa hipótese é que definitivamente amola do desenvolvimento reside naconfiança depositada na iniciativapessoal, na liberdade empreendedora ecriativa - numa liberdade que conhecesuas contrapartidas, seus deveres, seuslimites, em suma, sua responsabi-lidade, ou seja, sua capacidade deresponder por si mesma (Peyrefitte,1999, p. 32).

Quer se trate de instituir a democracia,quer se tratede consolidar uma economiade mercado, oprincipal fator de sucessoé o estabelecimento da confiança nointerior; confiança no exterior (MauriceAllais, apud Peyrefitte, 1999, p. 449),

Weberchamou de 'publicana' a corren-te religiosa(essencialmente a católica ro-mana) que mostrou preferência pelos

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-pobres, e de farisaica' a corrente quepreferiu os ricos e os bem-sucedidos(essencialmente a protestante).Onde a religião publica na é dominante,o desenvolvimento econômico será difí-cil, porque o pobre se sentirá justificadoem sua pobreza, e o rico se sentirádesconfortáuel porque enxergará a sipróprio como pecador. Em comparação,os ricos nas religiões farisaicas come-moram seu sucesso como prova dabênção divina, e os pobres têm um forteincentivo para melhorar sua condiçãode vida, pela acumulação epelo investi-mento" (Grondona, 2002, p. 93),

Começando com esta observação sobre asreligiões, Mariano Grondona, professor daFaculdade de Direito da Universidade Nacionalde Buenos Aires, aponta mais dezenove fatoresculturais do desenvolvimento. Sua conclusão,como ele mesmo diz, é "controvertida: em últimaanálise, desenvolvimento e subdesenvolvimentonão são impostos a uma sociedade de fora paradentro; é a sociedade que escolhe o desenvol-vimento ou o subdesenvolvimento". Vale a penarelacionar alguns fatores:

- fé no indivíduo, na sua criatividade, e nasua capacidade de trabalho;

- o imperativo moral: leis e normas quenão exigem o impossível são obedecidas; docontrário, predominam a imoralidade furtiva e ahipocrisia generalizada;

- o conceito de riqueza: aquilo que aindanào existe e que será criado nos promissoresprocessos de inovação;

- a competição: ela é fundamental para osucesso da empresa, do político, do intelectual,do profissional. Sua condenação leva à inveja eao sonho de uma igualdade utópica;

- a noção de justiça: é preciso pensar nasgerações futuras e não apenas nos que estãovivos; só assim é possível reduzir o consumo eaumentar a poupança;

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- o valor do trabalho: o trabalho deve estarno topo da escala de prestígio;

- o papel da heresia: a mente indagadoraé a que cria a inovação e esta é o motor dodesenvolvimento;

- a educação: nos sistemas de valoresresistentes ao desenvolvimento, a educação é umprocesso de transmissão de dogmas, produzindoconformistas e seguidores;

- a pontualidade, a cortesia e o asseio:hábitos valorizados nas sociedades avançadas;

- o futuro imediato: é o único tempo parao qual se pode planejar;

- a racionalidade: o mundo moderno secaractetiza pela ênfase na racionalidade. O progressoé a conseqüência de LImavasta soma de pequenasrealizações;

- autoridade: nas sociedades racionais,o poder vem da lei e não de um caudilho ou deum deus irascível e imprevisível;

- visão do mundo: o mundo é um cenáriopara a ação e não o resultado de forças misteriosase irresistíveis,

- a salvação: o símbolo da visão católica éo monge; o da visão protestante é o empresário;

- o otimismo: o otimista não é aquele queespera a sorte ou os favores dos poderosos maso que faz o necessário para assegurar um destinomelhor;

- a democracia: o poder político deve serdisperso por diferentes setores e a lei é suprema.

Esta lista pode ser alongada a partir doconhecimento das diversas realidades, mas o queinteressa no momento é imaginar as formas deação que podem alterar essas característicasculturais de um país, de uma região ou até deuma cidade, visando a uma maior compatibilidadeentre a cultura predominante e a prosperidadeeconômica. Deixemos de lado a discussão sobrea legitimidade da proposta - debate tão caro aosadeptos do relativismo cultural. Devemosexaminar o que está sendo ensinado nas escolas,colégios e universidades; nas famílias, natelevisão e nas igrejas. Fundamentalmente,

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A R T'. G O

reciso saber se as crianças e os jovens estão. estimulados a assumirem a responsabilidadere seu futuro ou se estão aprendendo apenasos políticos não prestam, que os problemas

sileiros não têm solução, que a origem dissoestá na colonização e que somos dominados

o capital estrangeiro.Este diagnóstico - certo ou errado - leva

pessimismo, à baixa auto-estima, à inação, e,que é pior: justifica a atitude passiva e oentimento improdutivo uma vez que a fonte

.• nossas desgraças estaria fora do nossobiente temporal e espacial. Não seria melhorixá-Io de lado ainda que contivesse alguma

erdade?Uma agenda de valores positivos deveria

xistir no setor público e nas empresas,articularrnente nos setores formadores de

_pinião (escolas, colégios, meios de comunicaçãoc). A insistência exclusiva na luta por maisireitos supõe que tudo já está construído e queguém deve ceder parte do que está em suas

mãos em benefício de outros menos afortunados.Ora, um país como o Brasil, com seu vastoerritório e sua grande população, tem que seconsiderar bastante atrasado em seu processo deconstrução e a luta por uma melhor distribuiçãodo produto deve ser orientada justamente por umesforço conjunto em torno de um projeto comum.Pode parecer contraditório, mas o projeto comumé a prosperidade de cada indivíduo. Quando cadabrasileiro desejar sua própria prosperidade, o paísestará pronto para acelerar seu crescimento.Deixo de lado conscientemente a discussão sobreas noções de prosperidade ou desenvolvimentoeconômico. Creio haver consenso em torno deaspirações tais como saúde, conforto, liberdade,educação, segurança e justiça. Para haverdesenvolvimento, no entanto, não basta adotaruma política econômica adequada ou promoveruma maior entrada de poupança externa; éindispensável que todos desejem alcançar umavida melhor a partir de seus próprios talentos.O desenvolvimento é o resultado do esforço de cadaindivíduo. Sejam empresários, sejam empregados,

sejam autônomos, todos têm um potencial a serrevelado, a ser externado. Cada membro dasociedade (inclusive as crianças) pode fazermelhor o que vem fazendo. Nisto não há nenhumesquecimento da miséria em que se encontra boaparte da população, pelo contrário; é o únicocaminho para uma situação melhor. Vivemoscomo se, um dia, alguém viesse salvar-nos. Bastaobservar o comportamento de importantesgrupos que chegam ao sistema de ensino, a únicachance que têm para garantir dias melhores.Desprezam oportunidades e se queixam daqualidade do ensino; criticam tudo e nada fazemde concreto para melhorar o ambiente em queatuam. Esperam tudo do Estado, do PoderPúblico, sem pensar que os recursos do Estadosaem dos bolsos dos cidadãos. Sem considerarque quanto maiores forem as reivindicações pormais serviços públicos, maiores serão osimpostos. Parecem sonhar com uma situação emque tudo fosse provido por este ente todo-poderoso, ao preço da renúncia às suas própriaspreferências, à sua individualidade, à diversidadede escolhas, sem mercado, sem dinheiro, semopinião, sem gosto. Uns, movidos por ideologiasmal assimiladas; outros, ainda vítimas da herançamaldita da escravidão; passivos, céticos emrelação as suas próprias forças. Esta gente precisadespertar e assumir a responsabilidade pelo seupróprio destino, o que vale dizer, pelo destinodo Brasil.

Notas

1 Para o acesso a este autor fundamentalno estudo da questão, recorri à biblioteca domeu caro amigo, professor Eduardo Diatahy B.de Menezes, a quem consigno aqui os meusagradecimentos.

Referências Bibliográficas

FANFANI, Amintore. Catolicismo y protestantis-mo en Ia genesis dei capitalismo. Madrid:Ediciones Rialp, 1953.

GARCIA, CÉSAR. 113A CULTURA PODE SER UM OBSTÁCULO AO DESENVOLVIMENTO? p.107 A 114.

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