Peregrinação, experiência e sentidos: Uma leitura de narrativas sobre o Caminho de Santiago de Compostela1

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Tarcyanie Cajueiro Santos e Míriam Cristina Silva

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    www.e-compos.org.br| E-ISSN 1808-2599 |

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    Peregrinao, experincia e sentidos: Uma leitura de narrativas sobre o

    Caminho de Santiago de Compostela1Tarcyanie Cajueiro Santos e Mriam Cristina Silva

    1 Introduo

    As narrativas produzem parte da cultura,

    assim como so produtos culturais, j que

    materializam singularidades perceptivas acerca

    dos fenmenos experimentados pelo homem, na

    relao com o seu meio e com o seu imaginrio.

    Possuem um importante papel de mediao,

    sobretudo medida que ajudam a identificar,

    selecionar e interpretar os fatos, alm de serem

    uma possibilidade para organizar, analisar,

    criticar, subverter, transformar e at substituir a

    experincia concreta, a partir da simulao, do

    jogo, da fabulao. Narrador, espao, personagens

    e tempo intrincam-se e relacionam-se com a

    finalidade de produzir sentido e memria.

    Narra-se em suportes e linguagens distintos,

    que vo desde as inscries rupestres, passando

    pelas narrativas orais, nas quais a necessidade

    dos corpos presentes, tanto o do narrador quanto

    os dos ouvintes, concedia ao narrar um carter

    ritualstico e essencialmente comunitrio, vinculado

    experincia do estar juntos no aqui e no agora,

    compartilhando o mesmo tempo e o mesmo espao.

    Tarcyanie Cajueiro Santos | [email protected] e doutora em Cincias da Comunicao pela ECA/USP. Professora do Mestrado em Comunicao e Cultura da Universidade de Sorocaba - UNISO.

    Mriam Cristina Silva | [email protected] em Comunicao e Semitica pela PUC-SP. Ps-doutora em Comunicao Social pela PUC-RS. Professora titular do Mestrado em Comunicao e Cultura da Universidade de Sorocaba - UNISO.

    ResumoObjetiva-se refletir sobre as possibilidades

    comunicacionais a partir da experincia da

    peregrinao, registrada nas narrativas do site da

    Associao de Confrades e Amigos do Caminho de

    Santiago de Compostela; assim como investigar o

    modo como se narram estas experincias, discutindo-

    se a produo de sentidos a partir do que narrado.

    Pergunta-se: O que dizem estas narrativas? Qual a

    importncia delas para a experincia da peregrinao?

    Estas narrativas propiciam pistas sobre o mundo

    contemporneo, a experincia da peregrinao, a

    natureza do narrador, os enredos mais narrados

    e suas tramas, o leitor ideal esperado e o que se

    pretende comunicar ao narrar este tipo de experincia.

    Palavras-ChaveNarrativas. Peregrinao. Santiago de Compostela.

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    Benjamin (1982) descreve dois tipos de

    narradores, o tradicional, que conhece em

    profundidade os fatos e as histrias locais, por

    nunca ter deixado a sua comunidade; e o viajante,

    aquele que vem de terras distantes e traz novas

    experincias. Ambos possuem uma relao

    vivencial direta com o fato a ser narrado, porm,

    o narrador tradicional est ligado a uma extenso

    ampla de tempo, pois percorreu perodos distintos

    de um espao restrito para acumular o seu saber,

    enquanto que o narrador viajante se relaciona com

    uma maior amplitude de espao, j que percorreu

    grandes distncias, entre as quais dividiu

    distintas parcelas de tempo, a fim de guardar o

    seu conhecimento. O que ocorre, portanto, que

    a narrativa se faz possvel pela vivncia e pelo

    acmulo da experincia atravs do tempo ou

    atravs do espao.

    Diferentemente das comunidades orais, nas

    sociedades da escrita, possibilita-se um narrador

    de corpo ausente e a sobrevida das histrias

    narradas. J na era do compartilhamento

    e da reproduo frentica de posts, nas

    contemporneas redes sociais digitais, o

    narrar pode se converter em imediatismo,

    instantaneidade e fugacidade, expressas por

    curtidas e comentrios empreendidos por

    indivduos isolados e em constante estado de

    alerta. A memria no se produz apenas a partir

    dos acontecimentos presenciados, mas, tambm,

    da soma de signos ofertados pelas mdias.

    Desta forma, a subjetividade se expe

    potencialmente mais voltil, nmade, mutante

    e mltipla, assim como as identidades e os

    vnculos. Para Guattari (1993), a subjetividade

    humana afetada nuclearmente pelas mquinas

    tecnolgicas de informao e de comunicao,

    tanto no que tange s memrias e inteligncia

    quanto nos aspectos referentes sensibilidade,

    aos afetos e at mesmo em relao aos

    fantasmas inconscientes.

    No cabe aqui polarizar a interferncia das

    novas prticas comunicacionais, regidas pela

    tecnologia digital. O que se pretende discutir

    so as possibilidades comunicacionais a partir

    da experincia da peregrinao, retratada nas

    narrativas publicadas no site da Associao de

    Confrades e Amigos do Caminho de Santiago de

    Compostela no Brasil. Parte destas narrativas

    ocupa as redes sociais, fomentada pelo uso

    das novas tecnologias da comunicao. Pinho

    (2008) discute a necessidade de se superar os

    antagonismos analticos que ora entendem a

    tecnologia como redentora, ora como vil. Porm,

    afirma que imperativo no se inocentar a

    tecnologia, tachando-a como neutra e colocando-a

    como mera ferramenta, e adverte sobre a

    necessidade de se investigar os processos que a

    envolvem em sua complexidade:

    O caos gerador de diversidade na medida em

    que ele explode e vai criando novas ordens,

    mundos novos, associaes e trocas inusitadas.

    1 Verso do trabalho apresentado na XXIV COMPS, 2015.

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    dinmico, processual, no se deixa aprisionar.

    A subjetividade humana, assim como a nature-

    za, tambm no linear; por demais complexa

    e processual, no permitindo reduzir-se ou limi-

    tar-se pela jaula de ferro dos cientificismos; pelo

    contrrio, deve ser entendida na sua dimenso

    de criatividade e contnuo reordenamento. E as

    tecnologias no se situam fora da subjetividade

    humana (PINHO, p. 8, 2008).

    Nas redes sociais digitais, as narrativas sobre

    peregrinao se multiplicam e so acessadas

    tanto por aqueles que j experimentaram a

    prtica de peregrinar quanto pelos que desejam

    obter informaes sobre rotas, o que levar, o que

    esperar, por vontade de se lanar na aventura ou

    simplesmente por curiosidade.

    O Caminho de Santiago de Compostela, uma

    das rotas mais tradicionais da religio catlica,

    tornou-se um dos principais centros de

    peregrinao dos brasileiros no exterior, sendo

    recriada em diversas cidades brasileiras. Trombini

    (2013), ao pesquisar nas fontes de informaes

    de vrias oficinas localizadas no Brasil, constatou

    que o nmero de brasileiros que solicitaram e

    receberam a credencial ou passaporte at 2012 era

    de 22.291. Este nmero prximo ao de Sandra

    Carneiro (2012), ao afirmar que mais de vinte

    mil brasileiros fizeram essa peregrinao (uma

    ou mais vezes) nos ltimos quinze anos. Ainda

    segundo esta pesquisadora, o Brasil foi o terceiro

    pas estrangeiro que contou com o maior nmero

    de peregrinos que recebeu a Compostela, em 2001.

    A credencial de peregrinos uma precondio

    para receber a Compostela, sendo um documento

    gratuito que as organizaes de acolhida fornecem

    s pessoas que a solicitam, como um meio de

    serem facilmente reconhecidos como peregrinos

    e de receber a hospitalidade do Caminho. Apenas

    podem solicitar a credencial os peregrinos que

    vo a p, de bicicleta ou a cavalo, e cumprem as

    condies para poder receb-la. A compostela, por

    sua vez, um documento tradicional que comprova

    a peregrinao Compostela, devotionis causa,

    mediante a apresentao da credencial, e desde

    que tenham cumprido todas as condies que so

    exigidas pela Catedral de Santiago.

    De acordo com Carneiro (2001), diferentemente

    de outras peregrinaes europeias, como a

    de Ftima em Portugal ou a de Lourdes na

    Frana, que so centradas na Virgem Maria, este

    caminho ultrapassa as fronteiras do catolicismo,

    constituindo-se como uma nova forma de

    peregrinao. A nfase na viagem e, como se

    alcana a igreja (a p, de bicicleta ou a cavalo)

    marca a diferena, assumindo um significado

    especial. A longa jornada tem duplo aspecto

    fsico e espiritual.

    neste contexto que se situa o objeto deste

    trabalho, as narrativas produzidas a partir de

    experincias relacionadas peregrinao. So

    narrativas de um universo contemporneo,

    conectado e globalizado. O que se busca aqui

    investigar o modo como se narram estas

    experincias, discutindo-se as possibilidades

    de produo de sentidos a partir daquilo que

    narrado. Entende-se que, a partir de uma

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    leitura destas narrativas, pode-se obter pistas

    sobre o mundo contemporneo e a experincia

    da peregrinao, tambm sobre a natureza

    do narrador, os enredos mais frequentemente

    narrados e suas tramas, bem como o leitor ideal

    esperado e o que se pretende comunicar ao narrar

    a experincia da peregrinao.

    2 A peregrinao

    A peregrinao um fenmeno milenar complexo

    e variado, que agrega histrica e culturalmente

    diversas prticas. H muitos sculos, milhares

    de pessoas se deslocam de seus locais de

    origem, empreendendo principalmente a p, mas

    tambm a cavalo ou de bicicleta, um percurso

    cuja finalidade originalmente estava atrelada

    religiosidade: o cumprimento de uma pena, o

    pagamento de uma promessa, o agradecimento

    por uma graa alcanada, a evangelizao para

    converter novos fiis.

    A peregrinao, enquanto uma jornada fsica e

    espiritual, ultrapassa o mbito do catolicismo,

    estando presente em diversas culturas e

    religies. H nela uma busca que pressupe um

    deslocamento e um ritual, por devoo e culto,

    evocando uma viagem a um local desconhecido ou

    estrangeiro, considerado sagrado.

    Em sua raiz etimolgica, peregrinao se

    relaciona com o aparecimento do outro; o

    estrangeiro que sai em busca de algo e vivencia

    momentos cujo desfecho a transformao de si.

    Steil (2003, p.30) alude a esse duplo movimento.

    Em suas palavras:

    Como se pode observar, se, por um lado, a

    peregrinao se exprime na histria como um

    exerccio de encontro com o outro, o estran-

    geiro, por outro, aponta para uma busca ms-

    tica de si, como uma jornada de santificao

    que encontra seu ponto de chegada no reco-

    nhecimento de uma divindade que se manifes-

    ta no interior de cada devoto.

    Steil (2003), seguindo a corrente interpretativa

    dos estudos antropolgicos sobre peregrinao,

    adverte acerca das diferenas entre elas nesta

    rea, e se ope viso clssica que estuda as

    peregrinaes como sendo reflexo de um sistema

    de representaes sociais nico e coerente. As

    peregrinaes, segundo este autor, agregam

    uma pluralidade de discursos e vises de mundo

    que direcionam e preenchem os seus rituais,

    combinando pessoas, textos e lugares. O que

    pode haver em comum entre os diversos rituais

    de peregrinao diz respeito s formas pelas

    quais as pessoas, os textos e os lugares

    so vivenciados nesses eventos. Ou seja, as

    peregrinaes so compostas de pessoas, lugares

    e textos escritos ou mitos orais sagrados, os

    quais do poder de autoridade a esses eventos.

    O modo como as relaes entre eles ocorre pode

    servir para a anlise comparativa entre diferentes

    tipos de peregrinao, na medida em que levanta

    questes importantes sobre as mesmas:

    Na sua expresso emprica, esses elementos

    pessoa, lugar e texto coincidem nos

    eventos de peregrinao que se apresentam

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    como depositrios de tradies mticas e his-

    tricas atualizadas por seus peregrinos e de-

    mais agentes religiosos mediante a invocao

    de suas crenas, a venerao de suas imagens

    e a performance de seus rituais. Cada peregri-nao, no entanto, pode enfatizar um ou mais

    desses elementos (STEIL, 2003, p.47).

    Ao nos depararmos com o fenmeno das

    peregrinaes nas sociedades contemporneas

    ocidentais, especialmente as do Caminho de

    Santiago de Compostela, percebemos, nessa

    perspectiva, caractersticas que lhes so

    particulares e que permitem questionar conceitos

    clssicos relacionados ao domnio da religio,

    como o caso do sagrado. Uma outra vivncia do

    sagrado nas formas de religiosidade contemporneas

    coexiste com valores e prticas seculares, modernas

    e ps-modernas. A noo ocidental de religio,

    baseada em uma relao transcendente com Deus,

    cede espao para uma concepo imanente, mais

    prxima s religies orientais.

    Hoje, a motivao parece tambm se

    desvincular do propsito religioso das primeiras

    peregrinaes, para se desdobrar na busca por

    aventura, atividade fsica, turismo, transformao

    interior ou apenas para a suspenso do cotidiano,

    como um modo de romper a monotonia.

    A segregao da experincia (GIDDENS, 2002),

    com a expanso da tcnica e dos no lugares

    (AUG, 1994), cria um ambiente assptico

    que, frequentemente, desafiado e burlado

    por aqueles que buscam dar sentido s suas

    vidas. A estetizao do cotidiano no se ope

    sua sacralizao. Os no lugares, locais de

    passagem que podem ser pensados como os

    shopping centers, os aeroportos e o turismo

    podem ser ressignificados e se tornarem locais

    identitrios, com sentidos. O fenmeno da

    peregrinao nas sociedades contemporneas

    ocidentais pode representar um outro modo de

    se vivenciar o sagrado, na medida em que traz

    consigo elementos seculares, que inspiram as

    experincias religiosas. O Caminho de Santiago

    de Compostela, nesta perspectiva, mesmo

    atravessado pelo movimento do turismo, pela

    busca da relao com a natureza, pela prtica

    de exerccios fsicos e do corpo saudvel, ainda

    assim traz consigo a experincia dos sentidos.

    Autores que pesquisam o aumento das

    peregrinaes na sociedade contempornea,

    especialmente a intensa procura pelo Caminho

    de Santiago de Compostela e a construo de

    novas rotas de peregrinao no Brasil, chamam

    a ateno para a autonomia da experincia do

    sagrado em relao s instituies religiosas

    tradicionais. Pesquisadores como Steil e Carneiro

    (2008, p.113) apontam para a reinveno das

    peregrinaes, na medida em que os sujeitos

    religiosos incorporam o turismo como mediao

    da experincia do sagrado, que absorve

    elementos de lazer, de consumo e de marketing.

    Enquanto os peregrinos de outrora objetivavam

    a transcendncia, utilizando seus corpos como

    instrumentos de penitncia e perdo a um Deus

    alm deste mundo, os peregrinos contemporneos

    fazem a jornada no intuito de encontrar o

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    Deus que est neles mesmos. A peregrinao,

    nesse sentido, torna-se uma experincia

    interior. Nesses contextos, as experincias dos

    sujeitos so os prprios princpios geradores de

    autenticidade da relao que se estabelece com

    o sagrado (STEIL & TONIOL, 2010). Nas novas

    peregrinaes, os corpos dos peregrinos e da

    natureza aparecem como lugares privilegiados

    de contato entre o eu e Deus. Os peregrinos as

    veem como uma possibilidade de aperfeioamento

    pessoal e transformao de si. Alm disso, a nova

    modalidade de peregrinao aparece no somente

    como manifestao de uma experincia religiosa,

    mas tambm como expresso cultural (turstica).

    Estudiosos da peregrinao a percebem como

    um sistema abrangente de trocas polticas e

    econmicas, no qual competem simultaneamente

    discursos religiosos e seculares, ortodoxias

    oficiais e interpretaes populares de um mesmo

    cdigo doutrinrio, grupos religiosos estabelecidos

    e seitas profticas de contestao ao status quo

    (STEIL, 2003, p.45). As novas peregrinaes,

    assim, so compostas de interesses tursticos,

    msticos, culturais, histricos e ecolgicos, que

    no se excluem, combinando-se em um contexto

    social amplo, cujas fronteiras tornam-se porosas

    (STEIL E CARNEIRO, 2008). E no se pode

    descartar que essa porosidade comporte, tambm,

    uma forma de comunicao, um acontecimento

    comunicacional, frequentemente relatado nas

    narrativas relacionadas peregrinao. Nela,

    a suspenso do cotidiano, um outro modo de

    vivenciar o tempo, em um espao estranho,

    enseja a promessa de encontros e trocas efetivas,

    do peregrino consigo, com os outros, com a

    natureza e com o sagrado, nomeado como Deus, o

    Inexplicvel, o Intangvel, o Todo-Poderoso, entre

    outros termos.

    3 Peregrinar e Narrar

    As Redes Sociais exercem distintas funes

    relacionadas peregrinao, sobretudo a partir

    da veiculao de narrativas sobre o tema.

    Elas parecem colaborar para o surgimento

    e disseminao de peregrinaes e novas

    modalidades de peregrinos que, cada vez mais,

    precisam do mercado para se realizar. Entre

    um grande nmero de entidades, escolhemos a

    Associao de Confrades e Amigos do Caminho

    de Santiago de Compostela, fundada em 25

    de novembro de 1995, tendo mais de 2.000

    associados, segundo informao do site. O

    nome dessa rede social prope uma associao

    (organizao de pessoas para um fim ou interesse

    comum), formada por confrades (companheiro,

    colega, camarada, scio, cada um dos membros de

    uma sociedade religiosa, etc) e amigos (que tanto

    pode significar aquele que tem gosto por alguma

    coisa, do latim amicu, quanto ter o sentido do

    indivduo ligado a outro por amizade). O interesse

    comum que associa aqueles que participam do site

    o Caminho de Santiago de Compostela.

    Trata-se de uma das muitas associaes

    existentes no mundo, destinadas a promover

    e apoiar as peregrinaes pelo Caminho de

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    Santiago de Compostela, na Espanha. Como

    outras entidades, ela busca promover eventos

    nas reas social, cultural, de esporte e de turismo,

    tendo como principal objetivo incentivar, apoiar,

    auxiliar, informar e preparar as pessoas, futuros

    Peregrinos, a percorrerem em Peregrinao o

    Caminho de Santiago de Compostela. Entre suas

    atribuies, resumidamente, ela emite a credencial

    oficial do peregrino, documento que permite

    ao peregrino utilizar os albergues existentes ao

    longo do percurso; divulga os caminhos no Brasil;

    promove palestras e caminhadas preparatrias;

    vende livros e guias sobre o caminho; realiza

    planto uma vez por ms com peregrinos que j

    fizeram o caminho para passar a sua experincia; e

    promove confraternizao em almoos, jantares ou

    encontros agendados.

    O site da Associao apresenta vrias

    informaes sobre o Caminho de Santiago de

    Compostela. Entre elas: a sua histria; o que o

    caminho; a catedral; a preparao; a necessidade

    de o peregrino ter uma credencial para poder

    dormir nos albergues. H tambm dicas sobre

    as caminhadas dirias; o que levar; como se

    preparar fisicamente; conselhos prticos; aluso

    s melhores pocas para peregrinar; preparao

    fsica; os albergues ao longo do caminho; as

    despesas; os equipamentos necessrios; a tica

    do peregrino. O site ainda apresenta as dez

    principais razes para se percorrer 800 km a p,

    rumo Catedral de Santiago de Compostela, onde,

    supostamente, esto guardados os restos mortais

    de um dos doze apstolos de Jesus, Tiago Maior:

    encontrar-se consigo mesmo; buscar o sentido

    da vida; procurar um ambiente propcio para se

    pensar e refletir; cumprir uma promessa; estar em

    contato com outras pessoas; seguir as indicaes

    que outros foram deixando ao longo dos sculos;

    apreciar os monumentos histricos e conhecer as

    lendas do Caminho; aprofundar um conhecimento

    cultural sobre a arte do Caminho; renovar a f

    de um Apstolo de Jesus. No entanto, no h, de

    acordo com o site, o certo ou o errado, pois o motivo

    que leva peregrinao pessoal, ou seja, aquele

    que verdadeiro para voc. Desta forma, a

    inteno ou a verdadeira motivao o que confere

    a condio de peregrino, segundo as reflexes de

    Santo Agostinho: a inteno que d valor s

    aes humanas. Ressalta-se, tambm, que no

    h, necessariamente, um motivo para se realizar a

    caminhada, que basta atender ao chamado, e que,

    durante a caminhada, as razes surgiro. Este

    chamado, subjetivo, inexplicvel, indefinido,

    mais um dos elementos recorrentes nas narrativas

    sobre a peregrinao. Sugere-se que aquele que

    sente o desejo de realizar a peregrinao atende

    a um chamado, talvez mstico, ou to somente

    subjetivo e pessoal um desejo de encontrar algo

    alm do cotidiano, com vistas a uma transformao

    interior, a qual se refletir exteriormente.

    A Associao considera que o primeiro passo para

    se tornar um peregrino ambientar-se com a rota;

    e, para isso, disponibiliza a Histria do Caminho

    e das peregrinaes. Alm disso, conforme o site,

    o contato com a experincia de outros peregrinos

    tambm pode ajudar bastante. H sugesto de

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    diversos livros sobre quem fez a peregrinao,

    assim como depoimentos e histrias de vrios

    peregrinos sobre o seu caminho. As narrativas so,

    portanto, para muitos, a primeira forma de contato

    com o caminho, que se inicia a partir da leitura da

    experincia relatada pelos narradores-viajantes, no

    necessariamente a partir da prpria experincia.

    Desta forma, a Associao expe em seu site, no link

    Meu caminho, narrativas enviadas por peregrinos

    que desejam compartilhar a sua experincia.

    Uma narrativa, convencionalmente, consiste

    em um texto contendo narrador, tempo, espao,

    personagens e um enredo, sendo fundamentada

    na transformao dos fatos pela ao do tempo.

    comum em muitos dos relatos do site o uso

    da primeira pessoa, o que refora a presena

    da funo emotiva da linguagem, centrada no

    emissor e em sua experincia, ou seja, o narrador

    tambm personagem daquilo que narra,

    de modo que se pode remeter ao narrador viajante

    de Benjamin: algum que tem o que contar, porque

    experimentou a cultura de terras distantes.

    A experincia demonstrada como subjetiva,

    pessoal e nica, o que refora a ideia de que,

    por mais que os interessados leiam os relatos,

    fundamental fazer o caminho, viver a prpria

    experincia. Isso fica patente, a comear

    pelo ttulo, no relato de Zlia Maria Ferreira2:

    Minhas3 impresses sobre o Caminho de

    Santiago. A peregrina conta que fez o caminho

    pela terceira vez, com a diferena de estar

    acompanhada, na terceira. No h meno a

    grandes dificuldades ou problemas, mas se enfatiza

    a superao: Alguns dias a caminhada ultrapassou

    o que era esperado. Teve um dia de 37 e outro de 38

    km. Marca recorde, para mim, uma peregrina que das

    outras vezes se valeu de caronas ou de nibus para

    suportar os ltimos quilmetros do dia a fora da

    palavra suportar sugere um certo sofrimento, no

    explcito, mas que dever ou poder ser percebido

    pelo leitor, quase como um conselho; a emoo:

    A chegada Catedral foi emocionante, revi os

    lugares j passados e me deu certo frenesi

    de me ver mais uma vez por ali, num lugar

    to distante de casa e to familiar. Na missa,

    chorei por me emocionar ao ver o botafumeiroe

    a freira cantando o Hino a Santiago, num tom

    envolvente e inebriante que preenche a alma de

    vida. Vida esta conquistada atravs de esforo e

    muita sade durante o Caminho.

    Aqui, misturam-se elementos relacionados

    experincia fsica e alma; e vem a transformao:

    Para mim, algumas mudanas se apresentaram,

    a viso de que a vida finita e que preciso apro-

    veitar cada minuto que segue com todo o saber e

    atitude. Outra parte que me fez mudar depois do

    Caminho que as emoes so para serem sen-

    tidas e vividas e me sinto mais livre para senti-las

    sem nenhuma crtica, a qualquer hora.

    No relato de Monica Mouri4, a funo emotiva

    da linguagem tambm privilegiada, a comear

    2 http://www.santiago.org.br/noticias-boletins.asp?id=525

    3 Grifo nosso.

    4 http://www.santiago.org.br/noticias-boletins.asp?id=708

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    pelo ttulo: Meu Caminho 5, que repete o nome

    do link. Nesta narrativa, mais uma vez, a nfase

    recai sobre a experincia subjetiva, individual e

    nica, mas ressalta-se o compartilhamento do

    que foi vivido, durante o prprio percurso, pelas

    redes sociais digitais:

    Durante este perodo fiz anotaes e posts no

    Facebook, compartilhando um pouco da enorme

    emoo e encantamento com as experincias vi-

    venciadas. Obtive um retorno alm do esperado

    de pessoas que se emocionaram comigo, muitas

    delas no as conheo pessoalmente (....).

    Neste sentido, o compartilhamento das

    informaes ao longo do percurso, em processo,

    simula as narrativas orais. No h o dividir do

    mesmo espao e tempo, tampouco os corpos

    interagem presencialmente, mas possvel

    ocorrer um maior imediatismo que, inclusive,

    parece converter a narrativa em espetculo.

    O narrador assume um contrato com o leitor,

    entendendo que este realmente se emociona

    com os relatos, vivenciando o caminho

    distncia. O leitor converte-se tambm em

    narrador, e o narrador, em leitor, o que alimenta

    a narrativa. O compartilhamento pelas redes,

    entretanto, no descarta o encontro corpo a

    corpo, com o outro, durante o prprio caminho:

    Fiz amigos, andamos juntos por dias, rimos,

    choramos, cantamos, comemoramos, nos

    perdemos, voltamos a nos encontrar. Essa

    dinmica intensa de cruzar diariamente com

    pessoas de todas as idades, vindas dos qua-

    tro cantos do mundo, uma verdadeira torre de

    Babel de lnguas, cheiros e costumes nos d

    a necessria noo do Todo.

    Outro aspecto de relevo o encontrar-se,

    sobretudo pela vivncia solitria:

    Muitas dessas experincias, imerses profun-

    das e dolorosas desnudaram sentimentos h

    muito guardados. Esse encontro comigo mesma

    foi um dos pontos altos do meu caminho, era

    a minha proposta. Em muitos momentos e at

    por dias inteiros andei completamente s, por

    opo ou por circunstncias.

    Um nico relato parece demonstrar que a

    experincia de peregrinar d vazo a possibilidades

    distintas de interao, no sem a dor e o

    sofrimento, como se estes fossem o tributo a ser

    pago para se alcanar a transformao almejada.

    Em Homens que pedalam montanhas, de Alfredo

    A. Bechara, o breve relato descreve subjetivamente

    a viagem, iniciando-se, no ttulo figurativo, com

    uma referncia ao esforo fsico descomunal para

    se realizar a jornada: H exato um ano tive a

    felicidade de fazer o Camio Francs, de bike, em

    13 dias. Foi uma viagem fantstica, intrnseca,

    cultural e produtiva. Note-se que, neste caso, os

    objetivos desvinculam-se da busca religiosa ou

    mstica. Destacam-se os obstculos, mostrando-se

    a atividade fsica como norteadora:

    Como todo comeo, o mais difcil foi logo de in-

    cio, nos Pirineus, aonde tive que superar as ci-

    bras e contraturas musculares, que terminaram

    5 Grifo nosso.

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    no terceiro dia, quando fui de Villava-Pamplona

    at Estela, subindo o mtico Morro dos Perdes

    (aonde vi que conseguiria o objetivo) e atraves-

    sando a Ponte de La Reina.

    A superao desses obstculos e o papel auxiliar

    do prprio site: Da a viajem (sic) fluiu, com

    adaptao total, muito me ajudou a ACACS-SP, com

    os mapas, as dicas, conselhos e planejamento, que

    foi fundamental para o sucesso da viajem (sic).

    Aparentemente, a superao fsica, associada

    performance atltica, parece ser o objetivo maior

    da viagem, a meta a ser alcanada, no algo

    transcendente e de carter interior, neste caso.

    O contato com a natureza, a beleza das paisagens

    percorridas so elementos que povoam a maior parte

    das narrativas sobre peregrinao, transformando-

    as em descrio, em tempo presente, o que converte

    o prprio caminho em protagonista e que pode

    ampliar a sensao, no leitor, de compartilhar

    o mesmo espao construdo pelo narrador. No

    relato de Cirene de Oliveira Colen de Almeida6, ela

    descreve: Bem cedo um bilho de estrelas e uma lua

    linda iluminando meu caminho, logo em seguida um

    nascer do sol fantstico, transformando o breu em

    um cu mais azul que meus olhos j viram (...). J

    Katia Tolomei Fonseca7 ressalta a importncia de se

    produzir as narrativas enquanto se caminha: Amo

    escrever e articular conhecimento, ideia, sentimento

    e pensamento (...). Ktia tambm descreve a

    paisagem, mas expe no apenas as suas belezas,

    como tambm seus obstculos, concentrando

    protagonista e antagonista no prprio caminho,

    que oferece belezas e perigos:

    (...) Vi montanhas e caminhei com mosquitos.

    Tive paisagens lindssimas e que no imaginava

    que fossem existir ali. As flores me acompanha-

    ram por todos os montes. Eram roxas, amarelas,

    vermelhas e laranjas. O verde era to forte na

    natureza que contrastava com o azul do cu...

    Marchei todo o tempo com muitos mosquitos ao

    meu redor e com dor nas bolhas em meus ps.

    A descida foi difcil entender que era to dura

    de fazer. Senti cada passo de minha descida. As

    pedras atrapalham demais. Marcha solitria e

    doda. Ao escrever estas palavras me emocio-

    no, pois aqueles sentimentos foram fortes em

    mim. Marcha de descida que durou cinco horas

    com trs interrupes para descanso, comida e

    energticos. Neste dia fiquei mais forte (...).

    A descrio no apenas d ao leitor uma ideia das

    dificuldades que enfrentar aquele que se dispuser

    a viver o caminho, mas registra a atualizao da

    experincia pela prpria narradora, que afirma se

    emocionar ao escrever.

    Angelo Lage8 escreve sobre transformao e sobre

    a importncia de se relatar a experincia, a fim de

    compartilh-la com outros:

    Aps a mgica e profunda experincia no Cami-nho de Santiago, eis que cheguei a minha casa e a minha famlia. Como vocs da ACACS-SP mesmo disseram preparado para uma Nova Vida. Literalmente espero dar incio a uma nova etapa em minha vida, recuperando todo o tempo

    que perdi com coisas que no valem a pena... Es-

    6 http://www.santiago.org.br/noticias-boletins.asp?id=637

    7 http://www.santiago.org.br/noticias-boletins.asp?id=231

    8 http://www.santiago.org.br/noticias-boletins.asp?id=623

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    tou repensando tudo e recatalogando cada etapa,

    cada escrito no meu caderno que agrupou cerca

    de 130 pginas de escritos... As experincias que

    l vivi ficou (sic) gravadas em meu corao e em

    minha alma... Ainda estou degustando-as para

    enfim comungar de maneira sbia com todos...

    Afinal para que serve uma luz no candelabro se a

    colocamos embaixo da cama?

    Talvez a experincia de realizar uma peregrinao

    no possa ser substituda por sua narrativa,

    pois o caminhar constri uma histria que se

    experimenta passo a passo, com vivncias,

    interaes, intenes e intensidades distintas para

    cada peregrino. Porm, as narrativas encontradas

    no site da Associao de Confrades e Amigos do

    Caminho de Santiago auxiliam, de forma fcil,

    prtica e rpida, na construo de um repertrio

    prvio que, em alguma medida, fornece conforto

    e segurana para aqueles que pretendem realizar

    a jornada. H muito os peregrinos contam com as

    narrativas sobre peregrinao para auxiliarem o

    seu caminho, mas se outrora esse acesso se dava,

    sobretudo, pelos livros, com seus altos custos de

    produo e de aquisio, hoje, conta-se com uma

    mirade de informaes, as quais correspondem

    multiplicidade de motivos que levam o sujeito

    a aventurar-se como peregrino. Outra mudana

    a de que os livros eram escritos por autoridades,

    especialmente religiosas, fornecendo uma voz

    oficial que alimentava a necessidade de informao.

    Com a presena das narrativas de peregrinao nas

    redes sociais, pelo baixo custo que representam e

    pela quase ausncia de crtica e de censura, d-se

    voz a um imenso nmero de sujeitos e, deste modo,

    evidencia-se a imensa gama de motivaes, idades,

    personalidades, profisses dos peregrinos, o que

    pode vir a ser um elemento motivador para uma

    grande diversidade de leitores.

    Ao entrar em contato com estas narrativas, ao

    repercuti-las e ao interagir com elas, antes mesmo

    de optar por realizar ou no a peregrinao, o

    leitor passa a ser um sujeito da comunicao ou

    em comunicao, como sinalizou Frana:

    Ser sujeito da comunicao ou em comunicao

    significa algo mais especfico, e nomeia um su-

    jeito enredado numa teia de relaes que consti-

    tuem esse sujeito relao com o outro, a rela-

    o com a linguagem e o simblico. Assim, no

    falamos em sujeito no singular, mas no plural; e

    no apenas sujeitos em relaes, mas relaes

    mediadas discursivamente. Trata-se, portanto,

    de uma dupla injuno, de uma triangulao. Tal

    apreenso produz o enquadramento lgico para

    entender seja a sua natureza, seja sua constitui-

    o. So sujeitos interlocutores sujeitos que

    falam um com o outro, produzindo ns e pelos

    laos discursivos que os unem (2006, p. 77).

    Mesmo que opte por no realizar o Caminho, o

    leitor das narrativas sobre a peregrinao poder

    trazer consigo a marca da vieira (concha usada

    pelos peregrinos, pendurada no pescoo, roupas,

    mochila ou cajado, com o significado de busca de

    conhecimento e proteo). Dela se apropriar, ainda

    que invisvel, e tambm de seu discurso simblico,

    para interagir com outros, a partir desta apropriao.

    4 Consideraes Finais

    O fenmeno da peregrinao na sociedade

    contempornea apresenta ligaes com as mdias

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    digitais, colaborando para a disseminao de novas

    formas de se vivenciar o sagrado, em conjunto com

    a produo de novas subjetividades. As modalidades

    de peregrinao, como as do Caminho de Santiago

    de Compostela, aparecem como propiciadoras

    de uma experincia ligada ao projeto de

    autoconhecimento. As narrativas, por sua vez, no

    poderiam deixar de existir, apresentando-se como

    reafirmao e mobilizao das transformaes em

    si, propiciadas pela experimentao do caminhar,

    ou, talvez, por um acontecimento comunicacional,

    a partir do qual haver uma mudana significativa,

    ainda que no definitiva, tal como as subjetividades,

    que se modificam conforme mudam os enredos e os

    atores com os quais se atua.

    Nos relatos presentes no site da Associao de

    Confrades e Amigos do Caminho de Santiago de

    Compostela, a estrutura narrativa convencional

    permanece quase inalterada: h um narrador,

    enredo, tempo, espao, personagens. A diferena

    proporcionada pelo suporte digital que, como

    uma marca da contemporaneidade, so narrativas

    mais sintticas, condensadas e at superficiais,

    o que atende necessidade de agilidade, rapidez

    e leveza da atualidade. Acompanhadas de poucas

    imagens, fotografias de carter ilustrativo, que

    reforam elementos-chave apontados no texto,

    sem excesso de detalhes, estas micronarrativas

    limitam-se ao essencial, a exemplo da mochila

    levada pelo peregrino, que no deve pesar muito,

    mas trazer o suficiente e o necessrio, apenas o que

    interessa ao narrador e o que ele pensa interessar

    a seus leitores. A trama quase sempre se inicia

    com o motivo que levou o peregrino realizao

    do caminho. Na sequncia, comea a jornada,

    descrevem-se as belezas, as emoes positivas,

    os obstculos superados. O desfecho se d com

    a chegada emocionante Catedral de Santiago

    de Compostela tudo em trs, quatro, cinco, no

    mximo oito pargrafos, no mais que doze ou

    quinze linhas. Variam os motivos e a intensidade

    com que se percebem os obstculos: dificuldades

    com o clima, bolhas nos ps, fome, sono, saudades

    de casa e outras privaes. So recorrentes

    as menes natureza, receptividade dos

    hospitaleiros, aos que se tornaram amigos ao longo

    do caminho. Muito embora, por vezes, o Caminho se

    torne o protagonista e at mesmo o antagonista, o

    centro da narrativa o sujeito que narra, com suas

    impresses, seus motivos, sua vivncia e sua busca

    por mudana o centro o eu.

    Em que pesem as diferenas entre as narrativas

    apresentadas pelos peregrinos, quase todas falam

    de um antes e de um depois uma transformao,

    que parece ser tambm o elemento que leva

    prpria narrativa, ao ato de narrar ou seja, no

    basta sentir essa transformao, necessrio

    comunic-la ao mundo, incentivar a outros que

    empreendam as suas jornadas e construam a sua

    prpria narrativa rumo ao encontro com mais

    um entre os muitos eus de que se composto

    o sujeito andarilho, que gastar a sola de seus

    sapatos para ter o que contar.

    Desta forma, as narrativas configuram-se como

    um registro da experincia de peregrinar, cujo

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    objetivo final ser ponte para o outro, em busca

    de compartilhamento, em um irmanar-se em um

    contrato que visa validar aquilo que foi vivido.

    Por isso, no necessariamente o leitor ideal

    seria aquele disposto a realizar a peregrinao,

    mas sim aquele disposto a acreditar que o

    Caminho proporcionou uma transformao da

    subjetividade. Compartilhando a narrativa, vive-

    se mais uma vez a prpria experincia, incitando-

    se uma espcie de conversao. De qualquer

    modo, seja oral, escrita ou compartilhada pelas

    redes sociais, a narrativa segue, operando como

    ponte entre sujeitos que se confraternizam,

    fornecendo parte da realidade, criticando-a e

    criando outros mundos possveis.

    RefernciasAUG, Marc. No lugares: introduo a uma

    antropologia da supermodernidade. Campinas:

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    STEIL, Carlos Alberto; CARNEIRO, Sandra de S.

    Peregrinao, Turismo e Nova Era: caminhos de

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    STEIL, Carlos Alberto; TONIOL, Rodrigo. Ecologia, nova

    era e peregrinao: uma etnografia da experincia de

    caminhadas na Associao dos Amigos do Caminho de

    Santiago de Compostela do Rio Grande do Sul. Debates

    do NER, Porto Alegre, UFRS, v. 11, n. 17, jan./jun., 2010.

    Disponvel em: http://www.seer.ufrgs.br/debatesdoner/

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    TROMBINI. Valdinei. A narrativa dos peregrinos a

    Santiago de Compostela: uma anlise comunicacional.

    Dissertao de Programa de Ps-Graduao

    em Comunicao e Cultura da Universidade de

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    Recebido em:20 de junho de 2015

    Aceito em: 12 de agosto de 2015

    Pilgrimage, experience and meaning: A reading of narratives about Santiago de Compostela WayAbstract This work aims to reflect on the communication

    possibilities from the pilgrimage experience, recorded

    in narratives at the site of Santiago de Compostela

    Way Brotherhood and Friends Association. We

    intend to know how these experiences are narrated,

    discussing the production of sense from the narrative.

    What do these narratives say? What is their relevance

    for the experience of pilgrimage? Reading these

    stories provides clues about the contemporary world

    and the experience of the pilgrimage; on the nature

    of the narrator, on the plots more often narrated and

    their stories; as well as concerning the expected ideal

    reader and what we want to communicate by narrating

    the pilgrimage experience.

    KeywordsNarratives; pilgrimage; Santiago de Compostela,

    Media culture.

    Peregrinaje , experiencia y sentido : Una lectura de las narraciones sobre el Camino de Santiago de CompostelaResumen Objetivamos reflexionar sobre las posibilidades de

    comunicacin de la experiencia de la peregrinacin,

    registrada en las narraciones del sitio de los

    Hermanos y Amigos de la Santiago de Compostela.

    Tambin investigamos cmo se narran estas

    experincias e la produccin de significados de la lo

    que se narra. Preguntamos: qu dicen estos relatos?

    Cul es la importancia de que la experiencia de la

    peregrinacin en el mundo contemporneo? Estas

    narraciones dan pistas sobre la experiencia de la

    peregrinacin , la naturaleza del narrador, las parcelas

    ms narrados, el lector ideal esperado y lo que quiere

    comunicar a narrar este tipo de experiencia.

    Palabras claveNarrativas. Peregrinacin. Santiago de Compostela.

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    www.e-compos.org.br| E-ISSN 1808-2599 |

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    CONSELHO EDITORIAL

    Alexandre Rocha da Silva, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil Alexandre Farbiarz, Universidade Federal Fluminense, Brasil Ana Carolina Damboriarena Escosteguy, Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, Brasil

    Ana Carolina Rocha Pessa Temer, Universidade Federal de Gois, Brasil Ana Regina Barros Rego Leal, Universidade Federal do Piau, Brasil Andr Luiz Martins Lemos, Universidade Federal da Bahia, Brasil Andrea Frana, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, Brasil Antonio Carlos Hohlfeldt, Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, Brasil

    Arthur Ituassu, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, Brasil lvaro Larangeira, Universidade Tuiuti do Paran, Brasil ngela Freire Prysthon, Universidade Federal de Pernambuco, Brasil Csar Geraldo Guimares, Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil Cludio Novaes Pinto Coelho, Faculdade Csper Lbero, Brasil Daisi Irmgard Vogel, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Daniela Zanetti, Universidade Federal do Esprito Santo, Brasil Denize Correa Araujo, Universidade Tuiuti do Paran, Brasil Eduardo Antonio de Jesus, Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais, Brasil

    Eduardo Vicente, Universidade de So Paulo, Brasil Elizabeth Moraes Gonalves, Universidade Metodista de So Paulo, Brasil Erick Felinto de Oliveira, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil Francisco Elinaldo Teixeira, Universidade Estadual de Campinas, Brasil Francisco Paulo Jamil Almeida Marques, Universidade Federal do Cear, Brasil Gabriela Reinaldo, Universidade Federal do Cear, Brasil Gisela Grangeiro da Silva Castro, Escola Superior de Propaganda e Marketing, Brasil

    Goiamrico Felcio Carneiro Santos, Universidade Federal de Gois, Brasil Gustavo Daudt Fischer, Unisinos, Brasil Herom Vargas, Universidade Municipal de So Caetano do Sul, Brasil

    ExpedienteA revista E-Comps a publicao cientfica em formato eletrnico da Associao Nacional dos Programas de Ps-Graduao em Comunicao (Comps). Lanada em 2004, tem como principal finalidade difundir a produo acadmica de pesquisadores da rea de Comunicao, inseridos em instituies do Brasil e do exterior.

    E-COMPS | www.e-compos.org.br | E-ISSN 1808-2599Revista da Associao Nacional dos Programas de Ps-Graduao em Comunicao. Braslia, v.18, n.2, maio/ago. 2015.A identificao das edies, a partir de 2008, passa a ser volume anual com trs nmeros.

    Indexada por Latindex | www.latindex.unam.mx

    COMISSO EDITORIALCristiane Freitas Gutfreind Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, Brasil

    Irene Machado Universidade de So Paulo, Brasil

    Jorge Cardoso Filho Universidade Federal do Reconcavo da Bahia, Brasil

    Universidade Federal da Bahia, Brasil

    EQUIPE TCNICAASSISTENTE EDITORIAL | Mrcio Zanetti NegriniREVISO DE TExTOS | Press RevisoEDITORAO ELETRNICA | Roka Estdio CONTATO | [email protected]

    COMPS | www.compos.org.brAssociao Nacional dos Programas de Ps-Graduao em Comunicao

    PresidenteEdson Fernando Dalmonte Programa de Ps-Graduao em Comunicao e Cultura Contempornea - UFBA [email protected]

    Vice-presidenteCristiane Freitas Gutfreind Programa de Ps-Graduao em Comunicao Social PUC-RS [email protected]

    Secretrio-GeralRogrio FerrarazPrograma de Ps-Graduao em Comunicao Universidade Anhembi Morumbi [email protected]

    Itania Maria Mota Gomes, Universidade Federal da Bahia, Brasil Janice Caiafa, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil Jiani Adriana Bonin, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Brasil Jos Afonso da Silva Junior, Universidade Federal de Pernambuco, Brasil Jos Luiz Aidar Prado, Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, Brasil Kati Caetano, Universidade Tuiuti do Paran, Brasil Lilian Cristina Monteiro Frana, Universidade Federal de Sergipe, Brasil Liziane Soares Guazina, Universidade de Braslia, Brasil Luza Mnica Assis da Silva, Universidade de Caxias do Sul, Brasil Luciana Miranda Costa, Universidade Federal do Par, Brasil Malena Segura Contrera, Universidade Paulista, Brasil Marcel Vieira Barreto Silva, Universidade Federal da Paraba, Brasil Maria Ogcia Drigo, Universidade de Sorocaba, Brasil Maria Ataide Malcher, Universidade Federal do Par, Brasil Maria Clotilde Perez Rodrigues, Universidade de So Paulo, Brasil Maria das Graas Pinto Coelho, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil

    Mauricio Ribeiro da Silva, Universidade Paulista, Brasil Mauro de Souza Ventura, Universidade Estadual Paulista, Brasil Mrcio Souza Gonalves, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil Micael Maiolino Herschmann, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil Mirna Feitoza Pereira, Universidade Federal do Amazonas, Brasil Nsia Martins Rosario, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil Potiguara Mendes Silveira Jr, Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil Regiane Ribeiro, Universidade Federal do Paran, Brasil Rogrio Ferraraz, Universidade Anhembi Morumbi, Brasil Rose Melo Rocha, Escola Superior de Propaganda e Marketing, Brasil Rozinaldo Antonio Miani, Universidade Estadual de Londrina, Brasil Srgio Luiz Gadini, Universidade Estadual de Ponta Grossa, Brasil Simone Maria Andrade Pereira de S, Universidade Federal Fluminense, Brasil Veneza Mayora Ronsini, Universidade Federal de Santa Maria, Brasil Walmir Albuquerque Barbosa, Universidade Federal do Amazonas, Brasil