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A insustentável leveza do ser em Yi-Yi * Ana Catarina Pereira Índice 1 Mosaico de histórias entrecruzadas 3 2 O conceito de “eterno retorno” em Yi- Yi 5 3 Espaços abertos numa cidade sufo- cante 7 Bibliografia mencionada 8 Filmografia referida 9 Filmografia de Edward Yang 9 Resumo Num filme de quase três horas, tudo acon- tece no ritmo certo, natural e improvisada- mente, como no compasso jazz para que o título nos guia: “a one and a two”, “a one and a two”. Impondo-se como um dos mais interessantes realizadores da “nova vaga” de cinema oriental, Edward Yang provou, com Yi-Yi, ter sido um cineasta da melancolia, da pós-modernidade e da cultura metropolitana. A simplicidade, o reflexo e a identificação do espectador são os seus melhores argumentos. * O presente artigo foi primeiramente publicado nos números 24 e 25 (Jan-Dez 2011) da revista O- lhar/Centro de Educação e Ciências Humanas da Uni- versidade Federal de São Carlos. ISSN 1517-0845. Jornalista, mestre em Direitos Humanos pela Universidade de Salamanca. Doutoranda em Ciências da Comunicação pela Universidade da Beira Interior, investigadora do Labcom e bolseira da Fundação para a Ciência e Tecnologia. Palavras-chave: cinema oriental; narra- tiva entrecruzada; realidade dualista; plano geral; eterno retorno. A simbiose entre filmes que procuram re- tratar a época em que são realizados e a influência que um dado momento evo- lutivo e cultural exerce sobre os próprios filmes é um fenómeno mundial, que acom- panha toda a História do cinema. Exemplos clássicos dessa trajectória seriam o expres- sionismo alemão, o cinema noir americano e o neo-realismo italiano, mas também o ci- nema oriental das décadas de 30 a 50, prati- camente desconhecido no Ocidente. Nesses anos, a milenar cultura chinesa viu-se mer- gulhada em crises profundas, com a invasão da Manchúria em 1931; a posterior ocupação de Xangai, Nankin e do sul da China, pelo Japão, entre 1937 e 1945; e a luta revolu- cionária que levou ao poder o Partido Comu- nista, liderado por Mao Tsé-Tung, em 1949. Nesse mesmo ano, a formação da República da China marcaria uma viragem do cinema deste país para as grandes nar- rativas de “realismo social”. A partir de então, quase todos os filmes passaram a apresentar um fundo histórico que deno- tava, não apenas uma ideologia colectiva imposta, mas também uma emergência e assimilação do estilo realista e socialista russo. Aproveitando o sentimento genera-

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A insustentável leveza do ser em Yi-Yi∗

Ana Catarina Pereira†

Índice1 Mosaico de histórias entrecruzadas 32 O conceito de “eterno retorno” em Yi-

Yi 53 Espaços abertos numa cidade sufo-

cante 7Bibliografia mencionada 8Filmografia referida 9Filmografia de Edward Yang 9

Resumo

Num filme de quase três horas, tudo acon-tece no ritmo certo, natural e improvisada-mente, como no compasso jazz para que otítulo nos guia: “a one and a two”, “a oneand a two”. Impondo-se como um dos maisinteressantes realizadores da “nova vaga” decinema oriental, Edward Yang provou, comYi-Yi, ter sido um cineasta da melancolia, dapós-modernidade e da cultura metropolitana.A simplicidade, o reflexo e a identificação doespectador são os seus melhores argumentos.

∗O presente artigo foi primeiramente publicadonos números 24 e 25 (Jan-Dez 2011) da revista O-lhar/Centro de Educação e Ciências Humanas da Uni-versidade Federal de São Carlos. ISSN 1517-0845.†Jornalista, mestre em Direitos Humanos pela

Universidade de Salamanca. Doutoranda em Ciênciasda Comunicação pela Universidade da Beira Interior,investigadora do Labcom e bolseira da Fundação paraa Ciência e Tecnologia.

Palavras-chave: cinema oriental; narra-tiva entrecruzada; realidade dualista; planogeral; eterno retorno.

A simbiose entre filmes que procuram re-tratar a época em que são realizados

e a influência que um dado momento evo-lutivo e cultural exerce sobre os própriosfilmes é um fenómeno mundial, que acom-panha toda a História do cinema. Exemplosclássicos dessa trajectória seriam o expres-sionismo alemão, o cinema noir americanoe o neo-realismo italiano, mas também o ci-nema oriental das décadas de 30 a 50, prati-camente desconhecido no Ocidente. Nessesanos, a milenar cultura chinesa viu-se mer-gulhada em crises profundas, com a invasãoda Manchúria em 1931; a posterior ocupaçãode Xangai, Nankin e do sul da China, peloJapão, entre 1937 e 1945; e a luta revolu-cionária que levou ao poder o Partido Comu-nista, liderado por Mao Tsé-Tung, em 1949.

Nesse mesmo ano, a formação daRepública da China marcaria uma viragemdo cinema deste país para as grandes nar-rativas de “realismo social”. A partir deentão, quase todos os filmes passaram aapresentar um fundo histórico que deno-tava, não apenas uma ideologia colectivaimposta, mas também uma emergência eassimilação do estilo realista e socialistarusso. Aproveitando o sentimento genera-

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lizado de rebeldia, os cineastas centrarama sua atenção na exploração de classes, nadecadência e corrupção da elite dominantee nos problemas sociais, apelando a umamaior consciência nacional e ao patriotismo.Numa fase que antecedeu a consolidaçãodo neo-realismo, os chineses filmavam jáno exterior, procurando reproduzir o quo-tidiano, aproximando-se das pessoas e dassuas realidades. Três clássicos de 1949, quepoderíamos inserir no género “melodramade propaganda política” são exemplos desteespírito: Crowns and sparrows, de ZhengJunli; This life of mine, de Shi Hui; e Anorphan on the streets, de Yan Gong ZhaoMing.

Já em 1966, a viragem política à extrema-esquerda restringiria ainda mais os círculoscriativos a uma ideologia rígida e inflexível,tendência que viria a ser contrariada nas duasúltimas décadas do século XX. Destruídoo mito da Revolução Cultural, surgiramcineastas como Chen Kaige e Zhang Yimou,determinados a não prosseguir o génerodominante e a buscarem, eles próprios,uma essência do cinema. Apesar disso,filmes como Raise the red lantern/Esposase concubinas (Zhang Yimou, 1991) eFarewell my concubine/Adeus minha concu-bina (Chen Kaige, 1993), então realizados,mantiveram a forma melodramática; outros,como The big parade (Chen Kaige, 1987)e Red sorghum (Zhang Yimou, 1987), nãodeixaram de transparecer a visão política eideológica da época.

É nesta “nova vaga” de cinema orientalque Edward Yang irá surgir, destacando-secomo fervoroso opositor à censura políticada década de 80 e a todo o tipo de uso pro-pagandístico da sétima arte. Da filmografiade Yang (China, 1947 – 2007) fazem parte

That Day, on the Beach (1983), uma nar-rativa modernista centrada em histórias decasais e famílias; Taipei Story (1985), umfilme urbano, passado em Taiwan, The Ter-rorizer (1986), com múltiplas e complexasnarrativas entrecruzadas; A Brighter SummerDay (1991), uma história de gangs de ado-lescentes, influenciados por uma cultura popnorte-americana; A Confucian Confusion(1994) e Mahjong (1996), dois filmes que re-flectem o conflito entre valores tradicionaise modernistas e a relação entre economia earte, no Oriente.

Em 2000 estreia finalmente Yi-Yi, pormuitos considerado o filme mais sereno eacessível da sua carreira. Aplaudido pelacrítica europeia, o cineasta reverteria, comeste filme, o quase desconhecimento a quetinha sido votado pelo velho continente,impondo-se como um dos mais interessantesrepresentantes do cinema asiático, não ape-nas pela universalidade dos temas tratados,mas também, consideramos nós, pela suafluidez formal. Nesse mesmo ano, quatrofilmes orientais entrariam em competição noFestival de Cannes, realizando uma proezasem precedentes: Crouching Tiger, HiddenDragon de Ang Lee, Devils on the Doorsteepde Jiang Wen, In the Mood for Love de WongKar-Wai e Yi-Yi, que valeria a Edward Yanga Palma de Ouro para o melhor realizador.Para além do reconhecimento em Cannes,Yi-Yi foi ainda distinguido com o prémiode melhor filme estrangeiro, pelo New YorkFilm Critics Circle, e o prémio de “Filmedo Ano”, atribuído pela National Society ofFilm Critics dos Estados Unidos. Seria, noentanto, a derradeira obra do realizador.

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1 Mosaico de históriasentrecruzadas

Em Yi-Yi, Edward Yang capta uma existência“a meio” e mostra-nos uma vida inteira. Fil-mando o desencontro, o amor, a dúvida, a es-perança, a saudade e a rotina, Yang justapõeuma série de histórias que, juntas, formamuma espécie de mosaico. Com a lucidez deum espelho, este filme reflecte uma estéticaintrospectiva e uma filosofia dialéctica ori-ginais, transformando Yang em testemunhaprivilegiada da cultura metropolitana. Nadade novo, portanto, se tudo é filmado na suaessência, com a curiosidade de uma criança,a melancolia de um adulto e a episteme deum idoso - as fases representadas nos trêsgrupos de personagens que povoam a narra-tiva.

O primeiro, correspondente à mais jovemgeração da família, é composto pelos irmãosYang-Yang (uma espécie de mascote dofilme) e Ting-Ting. Demonstrando a sensi-bilidade e inquietação da “criança-que-virá-a-ser-cineasta”, Yang-Yang constitui uma es-pécie de alter-ego do realizador, sublinhadapela coincidência dos próprios nomes. Aoelemento mais próximo da infância (e do iní-cio da vida) cabe justamente a tarefa maiscinematográfica e clarividente de todas, daqual o próprio filme poderia ser também em-baixador: constatando que as pessoas nuncase vêem de costas, Yang-Yang fotografa-asdessa perspectiva, para lhes mostrar a suaoutra metade. Com a profundidade existen-cialista de um pequeno génio, o menino desete anos é o guardião naïf, terno e incorrup-tível, da pureza humana de Yi-Yi.

Ting-Ting, a sua irmã, é uma adolescenteque começa a dar-se conta da ordem domundo, sendo, interiormente, a que mais

sofre com o estado de saúde da avó. A sen-sibilidade de uma menina que prefere o sonoe as comédias para não ter de encarar a rea-lidade da vida é bem representada por umaactriz que então se estreava no mundo do ci-nema. Apesar da sua aparente ingenuidade,e da vivência desgostosa do primeiro amor,antevê-se nela uma personalidade forte e de-terminada. Como um reflexo da independên-cia feminina que começa a marcar o Ori-ente, Ting-Ting não transforma o seu des-gosto amoroso num acontecimento trágicopara si, pressentindo-se que, a partir daquelemomento, ela poderá evoluir como Sherry, aex-namorada do seu pai, agora transformadanuma bem-sucedida empresária dos EstadosUnidos da América.

No extremo oposto encontra-se precisa-mente a avó, símbolo da invisibilidade rea-lista deste filme e personificação da morteque se instala no apartamento dos Jian.Como uma espécie de fantasma, ou holo-grama de outra vida, a sua presença torna-se perturbante para toda a família. No finaldo filme, como por magia, acorda do comaem que se encontra para tranquilizar a netae lhe oferecer uma borboleta de papel, prota-gonizando assim uma das cenas mais fortes eintimistas do filme, qual metáfora simbólicado hiper-real e do simulacro preconizadospor Baudrillard.

Entre estes dois grupos de personagensencontra-se um casal cansado, que atra-vessa uma ultra-denominada “crise de meia-idade”. NJ é um homem de negó-cios, com cerca de 50 anos, que trabalhanuma empresa de informática à beira dafalência. O encontro casual com a suaprimeira namorada irá fazê-lo repensar todaa existência, constituindo-se como centromelancólico do filme. Colocando em prática

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um processo de quase simbiose imagética,Yang apresenta pai e filho como a mesmapersonagem, em etapas distintas da vida: se,por um lado, o seu filho atravessa uma fasede questionamento pré-filosófico, NJ viveas situações de uma forma algo distante eirónica. O mesmo processo seria aplicadoa Ting-Ting e a Sherry, completando, destemodo, uma circularidade irreversível e emi-nentemente fatalista que perpassa a totali-dade da narrativa.

Min-Min, por sua vez, é a típicamãe de família, que concilia o híper-profissionalismo dos orientais, o desem-penho das tarefas domésticas e uma perma-nente atenção para com a mãe, o marido eos filhos. Espelho de uma acumulação defunções e expectativas colocadas perante osexo feminino à escala planetária, Min-Minevidencia o triplo papel das mulheres na so-ciedade oriental. Simbolicamente, os adul-tos representam assim um ponto de encontroentre a visibilidade das crianças e a invisi-bilidade da avó. Procurando refúgio fora davida quotidiana que se cansam de viver (namúsica ou em retiros espirituais), NJ e Min-Min constituem o arquétipo da insatisfaçãode outros casais ensombrados pela dúvida epela incerteza do desejável.

Paralelamente, em Yi-Yi, é também sub-linhada a importância dos personagens se-cundários (a cunhada de Min-Min e os vizi-nhos do apartamento ao lado) na formaçãode uma arquitectura de sentido. É atravésdo percurso de cada membro da família, dosamigos ou vizinhos – e do modo como cadahistória comunica e influencia a história dosoutros – que se vai construindo um des-tino que transcende os trajectos individuais.Edward Yang reinventou assim o cinemacomo uma complexa teia de afectos, com

uma simplicidade cinematográfica invulgare profundamente identitária. A narrativaentrecruzada utilizada, ou a arte de filmarsem destacar qualquer elemento ou person-agem, seria o recurso estilístico potenciadordeste efeito, tão caro a Wong Kar-Wai, emChungking Express (1994) e a cineastas oci-dentais como Quentin Tarantino, em Pulpfiction (1994); Paul Thomas Anderson, emMagnólia (1999); e Alexander Iñarritu emAmores Perros (2000).

No que diz respeito ao tratamento dotempo, consideramos importante sublinharque as linhas narrativas de Yi-Yi partemde um acontecimento colectivo festivo (umcasamento), evoluem com as relações entreo presente e o passado das diferentes perso-nagens, passam por um nascimento e termi-nam com a morte. Esta evolução narrativa,semelhante à da própria existência humana,faz transparecer o modo como Edward Yangencara o tempo fílmico, não fornecendo ape-nas espaço para a contemplação, mas tam-bém para a reflexão. Os planos de Yi-Yi têm,de uma forma geral, o tempo necessário paraque o espectador ou espectadora se dê conta,com inteira clareza, do estado de espírito decada um dos personagens. Ao longo de todoo filme, é notória uma oscilação dos mes-mos entre a rotina de um presente conve-niente, mas inquietante, e o misticismo deum passado irresoluto, que insiste em tornar-se presente. Este aspecto é representado, so-bretudo, pelas antigas namoradas de NJ edo seu cunhado, que irrompem inesperada-mente nos momentos festivos, como o casa-mento e a festa em honra do recém-nascido,lançando a perturbação.

Neste tipo de cenas, quando vários acon-tecimentos são simultâneos, constatamosuma opção de Yang por filmar à distância. A

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escolha possibilita ao espectador uma visua-lização total da linguagem corporal do ac-tor e da forma como este interage com o es-paço em que se encontra. Provando possuirum incrível sentido da mise en scéne, Ed-ward Yang transforma ainda cada plano numquadro, chegando a filmar cenas de “quadrodentro do quadro”. Tal como na pintura deBosch, Renoir ou Velázquez, Yi-Yi manifestauma grande profundidade de campo. O es-paço é mostrado de uma perspectiva geral eabrangente, havendo várias panorâmicas doslocais onde a acção vai decorrendo (casa dosJian, escola de Yang-Yang, igreja onde serealiza a cerimónia fúnebre), ao contrário doque acontece em filmes como In the Moodfor Love ou Chungking Express, nos quaisWong Kar-Wai detém o olhar claustrofóbicoda câmara em objectos específicos, comoum relógio de parede, uma jukebox ou umajanela. Para além disso, a capacidade deYang multiplicar as situações no interior decada enquadramento fornece ritmo às quasetrês horas de filme. Como pretendia Bazin1,o cinema não se contenta em conservar o ob-jecto no instante – essa é a função da fo-tografia. Com o cinema, pela primeira vez,a imagem das coisas é também a imagem daduração delas.

2 O conceito de “eterno retorno”em Yi-Yi

O mote que daria origem a este filme, assum-ido por Edward Yang em diversas entrevis-tas, foi o acidente de viação de um amigo e oseu consequente estado de coma. Nesse mo-

1Bazin, A. (2003). “Ontologia da imagem fo-tográfica”. Em Xavier, I. (org). A experiência do ci-nema: antologia. Rio de Janeiro: Graal, Embrafilme.

mento, o realizador tinha experienciado algosemelhante ao que estes personagens vivemno filme, quando o médico pede aos fami-liares que tratem o doente como uma pessoanormal, pois essa seria uma possibilidade dedespertar os seus sentidos. Com elementosassumidamente biográficos, também em Yi-Yi se retrata a problemática da “vida em sus-penso”, uma vez que a avó não se encontramorta, mas a sua forma de vida é estranhapara os familiares. As reacções destes pe-rante o impasse são distintas, focando emprofundidade o desenrolar de uma crise fa-miliar, com que os espectadores facilmentese identificam. Neste caso, e pelo realismorecorrente, consideramos que a ficção podetambém ser mais reveladora do que o docu-mentário puro, concordando com as palavrasde José Luis Guérin ao afirmar: “Creio queexistem muitos cineastas que, trabalhandoem ficção, conseguiram trazer muito maisluz à realidade do que muitos documentaris-tas.”2

Não se tratando de uma crítica social,de Yi-Yi pode, no entanto, extrair-se umcerto tom de comentário sobre a vida pós-moderna, onde a fatalidade e o cansaço sãoinevitáveis. Talvez por essa razão, a al-ternância entre os momentos de introspecçãode alguns personagens (com especial relevopara o caso de Min-Min, cuja depressãolevará a um retiro espiritual num templo bu-

2Fernández, C. et al (2006). Conversacióncom José Luis Guérin Originalmente publicada emCabeza Borradora, no3, Madrid. Disponível em:http://tierradegenistas.blog.com.es/2006/08/19/conversaciasn_con_josac_luis_guerasn~1037627/. Versãooriginal: “Yo creo que existen muchos cineastas quetrabajando en la ficción han arrojado muchísima másluz sobre la realidad que muchos documentalistas”.

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dista) e os episódios cómicos protagonizadospor Yang-Yang (ao fotografar mosquitos naparede com o objectivo de provar a existên-cia destes à mãe, ou ao tentar permanecersem respirar debaixo de água, no lavatório dacasa de banho, para aprender a nadar) sejamuma constante. Tal como a vida, Yi-Yi é umfilme simultaneamente contraditório e linear,sereno e agitado, repetitivo e surpreendente.Nele, as experiências actuais são sempre de-calque ou réplica de uma experiência ante-rior – sensação transmitida através do espaçoem que ocorrem e da própria montagem,como na cena em que o pai, num quarto dehotel, relembra o primeiro encontro amorosocom a ex-namorada. Ao mesmo tempo, a suafilha (re)vive o paralelismo da situação, comos mesmos desenvolvimentos (o namoradoirá deixá-la sozinha noutro quarto de hotel,sem consumar o sentimento que os une, talcomo NJ terá feito há 30 anos atrás).

A repetição da cena, como já referi-mos anteriormente, antecipa uma evoluçãopsicológica de Ting-Ting semelhante à deSherry. A montagem paralela aqui utilizadapermite uma antevisão do futuro e, em si-multâneo, um regresso ao passado que con-firma a noção nietzschiana de “eterno re-torno”. De uma forma algo simplista, o con-ceito consubstancia a ideia de que pólos dis-tintos (criação e destruição, alegria e tristeza,saúde e doença, belo e feio, entre outros) sealternam repetidamente na mesma existên-cia, complementando-se entre si, numa cir-culação impreterível e infinitamente repetidapor todas as coisas, retomada em Yi-Yi. Nestesentido, Nietzsche questiona:

“O maior peso. Como seria, se umdia ou uma noite um demónio im-perceptivelmente se arrastasse até

à tua mais isolada solidão e tedissesse: ‘Esta vida, tal como avives agora e tens vivido, terás devivê-la uma vez mais e mais vezessem conto; e não haverá nela nadade novo, mas sim te hão-de voltarcada dor e cada prazer, e cada pen-samento e suspiro, e tudo o queé indizivelmente pequeno e grandena tua vida, e tudo na mesma or-dem e sequência, e de igual modoesta aranha e este luar entre as ár-vores, e também este instante e eupróprio. A eterna ampulheta da e-xistência está sempre de novo a servirada, e tu com ela, ínfimo grão depó da poeira!’.”3

A ideia perpassa grandes clássicos daliteratura, como Madame Bovary (GustaveFlaubert), Cem anos de solidão (GabrielGarcía Márquez) e A insustentável leveza doser (Milan Kundera). Sendo que a reali-dade, para Nietzsche, não tem uma finali-dade ou objectivo a cumprir, são as alternân-cias de prazer e desprazer que se repetem du-rante a vida que lhe atribuem significado. Talnão implica, porém, que o devir ocorra demodo exactamente igual, mas antes que seexperienciem variações de sentidos já viven-ciados, apresentando várias faces de umamesma realidade. Esta não é uma perspec-tiva pessimista, uma vez que não se traduznuma negação da vida, mas antes na sua afir-mação: o desenvolvimento e crescimento sósão possíveis, tal como Yi-Yi revela, medi-ante a vivência do declínio e do seu con-trário.

3Nietzsche, F. (1998). A gaia ciência. Lisboa:Relógio d’Água, p. 244 e 245.

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A acção é assim, neste filme, uma análisesimplista do comportamento humano, re-duzido a acções e sentimentos fundamen-tais, que constantemente se repetem medi-ante um regresso do passado ao momentopresente. Assumindo-se como figura em-brionária deste vai-e-vem incessante, Yang-Yang, o “velho filósofo” de apenas sete anosde idade, fotografa as nucas das pessoas. Atransparência do título, que em chinês sig-nifica “um a um”, “um depois do outro”, as-sociada a uma repetição dos nomes da maio-ria dos personagens (Min-Min, Yang-Yang,Ting-Ting,...) reforça também esta ideia deuma realidade dualista. Imageticamente, oreflexo pode mesmo ser considerado o mo-tivo estético por excelência de Yi-Yi, visívelnuma das cenas filmadas no Japão, quandoSherry chora no quarto de hotel: o plano éfilmado a partir de fora e reflecte a cidadena janela, tornando-o, de certa forma, menosinvasivo e mais pudico. Noutra cena pas-sada em Taipé, no escritório de Min-Min, en-quanto esta pensa na doença da mãe, o vidroreflecte uma luz vermelha, luminosa e inter-mitente, semelhante a um coração.

Ao longo do filme, assistimos ainda a ou-tras cenas, separados por um vidro, como acolisão de A-Di (irmão de Min-Min) com aex-namorada, o encontro de Ting-Ting como namorado ou o jantar de NJ e Sherry,num restaurante, em Tóquio. A transparên-cia utilizada sublinha uma descrição in-trínseca a Yang, possibilitando, não obstante,o voyeurismo do espectador/a, que pode en-tão esquecer a câmara e encarar o “obs-táculo” como o único que o/a impede de seimiscuir no dia-a-dia destes personagens –como se o próprio vidro os enquadrasse, re-flectisse e diluísse.

3 Espaços abertos numa cidadesufocante

Para além de se afirmar como um cineasta damelancolia pós-moderna, Edward Yang exi-biu também, em Yi-Yi, o seu cepticismo pe-rante as crenças orientais e a existência de se-gundas oportunidades como proporcionado-ras de finais felizes. Se, por um lado, A-Di, quis casar naquele que, de acordo como almanaque chinês, é o “dia mais feliz doano”, por outro, a avó acaba por entrar emcoma precisamente nesse dia. Exibindo umverdadeiro mecanismo de desconstrução desuperstições, Yang filma ainda o fracasso doretiro espiritual de Min-Min (que não lhe de-volve a desejada paz interior) e a rejeiçãode uma nova vivência da antiga história deamor (oportunamente oferecida pelo des-tino numa fase de incerteza de NJ). Con-trariando a tendência do cinema clássico deHollywood, em que a segunda oportunidadeaparece geralmente no final do filme paraproporcionar o happy ending, neste caso, elanão significa um epílogo próspero, nem se-quer trágico: NJ opta pela estabilidade domomento presente (e do futuro), sem queisso seja necessariamente positivo ou nega-tivo.

A esta recusa do monumental associa-se,em Yi-Yi, uma procura da elegância e dasimplicidade e um contornar de cenas deviolência gratuita: em A Brighter SummerDay (1991), Yang tinha filmado um jovem amatar a sua namorada, numa cena demasiadoexplícita e sanguinária. Em Yi-Yi há tambémum assassinato, mas o seu desenrolar é ima-ginário e substituído pelo plano de um video-jogo, o que o torna mais ficcional. Da mesmaforma, nunca chegamos a ver o corpo da avó,depois de morta, uma vez que, em casa dos

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Jian, a câmara permanece fixa na sala, fil-mando apenas os personagens que passam àsua frente: NJ e Yang-Yang estão prostra-dos, diante do corpo, mas só os vemos decostas, à entrada do quarto, respeitando-se asolenidade e a privacidade do momento. Adiscrição de Yang transmite assim a sensaçãode que é o próprio espectador que, cerimo-niosamente, entra na casa de uma família quesó agora começa a conhecer.

Não manifestando intenção de impor qual-quer imagem ou ponto de vista ao espec-tador, o realizador opta essencialmente porplanos gerais, em detrimento dos grandesplanos. Em inúmeras cenas (como na con-versa de NJ, Sherry e Ota na sala do hotel emTóquio, ou no passeio de NJ e Sherry pelosjardins da capital nipónica), não vemos se-quer directamente o rosto dos personagens.Um dos poucos travellings utilizados, àchegada de NJ a Tóquio, mostra uma cidadeindustrializada e triste. Nos restantes mo-mentos, os planos mostram-nos, por diversasvezes, os personagens de costas, sendo que,da discussão de Lili com a mãe e o profes-sor de inglês, só assistimos ao mesmo queTing-Ting, que se encontra no corredor. Domesmo modo, também as discussões e en-contros de Lili com o namorado são semprevistos de um ângulo contra-picado, de cimapara baixo, num plano muito geral. Quandoa cena se concentra num único personagem(Yang-Yang a discutir com o professor naaula, por exemplo), o realizador opta por uti-lizar um plano médio.

Em Yi-Yi, onde tudo parece acontecerlivremente em frente a uma câmara quasesempre fixa, predomina ainda a ausênciade artificialismos técnicos. Nesse sentido,tomando como referência o movimento im-pressionista na sua génese, podemos dizer

que a maioria das cenas se enquadra nesteestilo, na medida em que a luz natural im-pregna tudo, cabendo à câmara a tarefa decaptar a sua cor e essência. Não recor-rendo a qualquer tipo de efeitos especiais,Yang utiliza instrumentos estritamente fílmi-cos e oferece tonalidades puras: o verde dosjardins, o cinzento dos muros e a luminosi-dade dos néons na escuridão da noite.

A mesma escuridão que faz parte in-delével de cada um dos personagens e queleva Yang (Yang) a concluir:

“Desculpe, Avó. Não é que eu nãoquisesse falar consigo. Mas tudo o que lhepodia dizer a Avó já sabia com certeza. Ounão estava sempre a dizer que “ouvisse”?Dizem que se foi embora. Mas não me dizempara onde. Talvez por acharem que eu de-vesse conhecer o lugar. Mas sei tão poucascoisas, Avó...

Sabe o que quero fazer quando forgrande? Quero dizer às pessoas coisas queelas ainda não saibam, mostrar-lhes coisasque nunca viram. Vai ser muito divertido etalvez um dia eu descubra para onde foi. Sedescobrir posso dizer a todos e levá-los paraa visitar? Avó, tenho saudades suas. Espe-cialmente ao ver o meu primo recém-nascidoque ainda nem nome tem. Ele lembra-meque dizia sempre que se sentia velha. Querodizer-lhe que também eu me sinto velho.”.

Bibliografia mencionadaBazin, A. (2003). “Ontologia da imagem fo-

tográfica”. Em Xavier, I. (org). A ex-periência do cinema: antologia. Rio deJaneiro: Graal, Embrafilme.

Fernández, C. et al (2006). Conversacióncom José Luis Guérin Original-

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mente publicada em Cabeza Bor-radora, no3, Madrid. Disponível em:http://tierradegenistas.

blog.com.es/2006/08/19/

conversaciasn_con_josac_

luis_guerasn~1037627/.

Nietzsche, F. (1998). A gaia ciência. Lisboa:Relógio d’Água.

Filmografia referidaCrowns and sparrows (Zheng Junli; 1949)

This life of mine (Shi Hui; 1949)

An orphan on the streets (Yan Gong ZhaoMing; 1949)

The big parade (Chen Kaige; 1987)

Red sorghum (Zhang Yimou; 1987)

Raise the red lantern/Esposas e concubinas(Zhang Yimou; 1991)

Farewell my concubine/Adeus minha concu-bine (Chen Kaige; 1993)

Chungking Express (Wong Kar-Wai; 1994)

Pulp fiction (Quentin Tarantino; 1994)

Magnólia (Paul Thomas Anderson; 1999)

Crouching Tiger, Hidden Dragon (Ang Lee;2000)

Devils on the Doorsteep (Jiang Wen; 2000)

In the Mood for Love (Wong Kar-Wai; 2000)

Amores Perros (Alexander Iñarritu; 2000)

Filmografia de Edward YangThat Day, on the Beach (1983)

Taipei Story (1985)

The Terrorizer (1986)

A Brighter Summer Day (1991)

A Confucian Confusion (1994)

Mahjong (1996)

Yi-Yi (2000)

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