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Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco

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O escritor César Leal é o destaque e capa desta edição do Per-nambuco. Intelectual de idéias amplas e renovadoras, reconheci-damente um poeta de notável padrão intelectual, com raízes nos estudos clássicos, o autor de “Dimensões temporais da poesia” apa-rece em matéria assinada por Anco Márcio Tenório Vieira, professor da Universidade Federal de Pernambuco, e no Saber +, em estudo da poeta e mestra Lucila Nogueira, também ela um dos expoentes de sua geração.

“Mas afora as especializações que nos embrutecem e são de-nunciadas por César Leal, sua obra crítica vem também nos redimir de um certo pudor que se instalou na Academia, que é o de ter receio em louvar quem de fato deve ser louvado”, afirma Anco Már-cio, a que acrescenta Lucila Nogueira ressaltando que a sua obra poética “é uma viagem de resgate à unidade cósmica da condição humana. Adentra-se na atmosfera de seus versos pelas veredas da imaginação e do sonho”.

Outro dado importante do homenageado desta edição é o em-penho que fez para revelar e analisar a Geração 65, que marcou de forma definitiva a literatura pernambucana na segunda metade do século XX. “Publiquei – revela – através da “Revista universitá-ria” duas antologias da poesia pernambucana em que inclui vários poetas novos. Mas a geração não tem só poetas, tem narradores, historiadores, críticos, romancistas”.

Ainda no Saber +, este jornal homenageia o escritor Luiz Arra-es, em estudo exemplar de Everardo Norões que adverte: “Tenham medo dos contos de Luiz Arraes. Não são apenas as narrativas edul-coradas, que tratam de algum passado épico, ou de amores bem-sucedidos. Sobretudo se querem esquecer, no aconchego de vossos quartos congelados de um último andar, que existe uma outra cida-de: a que sonha em assaltar nossos sonhos”. Destaque-se, ainda, no espaço dedicado à nova literatura pernambucana, o conto de Joana Rozowykwiat, e os poemas de Luciane Silva.

No corpo do jornal, a montagem de Rodrigo Sotero, na segun-da página, desperta a atenção pela qualidade e inventividade, num trabalho que une a técnica ao sensível. Na terceira página, Rodrigo Carreiro identifica a palavra que define a obra do cineasta Stanley Kubrick: obsessão. Ela está em oposição clara a outra palavra que não deve assustar o verdadeiro artista: impossível. O autor do texto mostra, por exemplo, que não se pode identificar, como em outros autores, uma linha divisória e clara da atividade fílmica do diretor.

A jornalista Carolina Leão dá continuidade, nas terceira e quarta páginas, à série sobre o Recife e a Região Metropolitana, revelando, desta vez, os segredos do Janga e de Candeias, em pólos opostos, tanto na vivência quanto na distância geográfica. “Nem tão longe, mas não tão perto, as praias urbanas do litoral norte e sul da Região Metropolitana do Recife se oferecem convidativas à exploração do isolamento social bem à moda brasileira: sombra, água fresca, pe-tiscaria e sensualidade”, afirma.

“Esse corpo não te pertence” é a matéria de Fabiana Moraes, com entrevista do sociólogo Jonatas Ferreira, que aborda as ênfa-ses e as exigências do corpo contemporâneo, assunto que desperta enorme interesse por tudo o que tem de científico e de mágico, levando multidões a comprar medicamentos e fazer exercícios em academias. Valmir Costa assina o texto sobre a obsessão da ana-tomia do homem., seguido de Roberto Melo. O assunto ocupa as nona, décima e décima-primeira páginas. Na décima-segunda pági-na, Alfredo Cordiviola escreve sobre a Argentina.

Boa leitura,Raimundo Carrero (Editor)[email protected]

EDITORIAL

GOVERNADOR DO ESTADO

Eduardo CamposVICE-GOVERNADOR

João Lyra NetoSECRETÁRIO DA CASA CIVIL

Ricardo Leitão

PRESIDENTE

Leda AlvesDIRETOR DE GESTÃO Bráulio Mendonça Meneses

DIRETOR INDUSTRIAL Ricardo Melo

GESTOR GRÁFICO

Júlio Gonçalves

EQUIPE DE PRODUÇÃO

Débora Lobo, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Lígia Régis

Circulação mensal. Parte integrante do Diário Oficial do Estado de Pernambuco. Distribuído exclusivamente pela Companhia Editora de Pernambuco - CEPE Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro CEP 50100-140 Fone: (81) 3217.2500 FAX: (81) 3222.5126

EDITOR

Raimundo CarreroEDITOR EXECUTIVO

Schneider Carpeggiani

EDIÇÃO DE ARTE

Jaíne Cintra

TRATAMENTO DE IMAGEM

Roberto Bandeira SECRETÁRIO GRÁFICO

Militão Marques

REVISÃO

Gilson Oliveira

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Rodrigo Sotero

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ara alguns abnegados, “impossível” não passa de uma palavra qualquer num dicionário. O cineasta Stanley Kubrick era assim. O projeto de cinema que o

cineasta nascido em Nova York levou a cabo, em treze longas-metragens, não tem paralelo. Normalmente, a obra de todo grande diretor de cinema possui um fio condutor, um tema ou característica estética que se desdobra por diversos filmes. Kubrick subiu ao panteão máximo da atividade sem obedecer a este postulado. A rigor, o único elo entre os trabalhos que ele dirigiu na maturidade está na vontade obsessiva de ir mais longe do que qualquer outro cineasta que o antecedeu.

Obsessão é a palavra-chave para entender quem foi Stanley Kubrick. No docu-mentário “Imagens de uma vida”, o veterinário da família conta uma história que dá a medida exata de como o cineasta era maníaco por detalhes. Ele diz que certa vez pediu a Kubrick que medisse a quantidade de água bebida por um dos gatos da casa, então doente. O diretor respondeu ser impossível, já que todos os felinos – ele tinha vários – bebiam da mesma tigela. No dia seguinte, quando o médico já esquecera o incidente, recebeu um telefonema de Kubrick. Ele descobrira uma maneira de conseguir a informação: passara o dia inteiro na cozinha, a contar quantas lambidas o gato doente dava na água. Calculando também a quantidade de água absorvida por cada lambida, chegara à quantidade correta.

Kubrick passeou pelos gêneros mais díspares. Fez filmes de guerra (“Glória feita de sangue”, “Nascido para matar”), noir (“O grande golpe”), ficção científica (“2001 – Uma odisséia no espaço”), comédia (“Dr. Fantástico”), aventura futurista (“Laranja mecânica”), de época (“Barry Lyndon”) e até horror (“O iluminado”). O objetivo era sempre o mesmo: produzir a obra-prima – o filme perfeito – de cada gênero. Qualquer pessoa comum que outorgasse a si próprio tal projeto pareceria arrogante e megalomaníaca. Só que Kubrick não tinha nada de comum. Ele foi, talvez, o único cineasta de todos os tempos a justificar tamanha megalomania com o mesmo tanto de talento.

Desde criança, o cineasta tinha consciência do tamanho do talento que possuía. Como um autêntico superdotado, a escola lhe dava tédio. Abandonou as salas de aula antes de completar o segundo grau, e foi ganhar a vida jogando xadrez no Central Park, em Nova York. Sua paixão, no entanto, era a imagem. Kubrick vendeu sua primeira foto para a revista “Look” aos 16 anos. Um ano mais tarde, estava no staff fixo da revista. Mas a carreira de fotógrafo não lhe entusiasmava tanto quanto o cinema. Fez o primeiro curta-metragem aos vinte e dois anos. Em 1953, aos vinte e cinco, dirigiu o primeiro longa, “Fear and desire”. O pai, sempre botando fé no gênio do filho, penhorou uma casa para bancar a película. O resultado, porém, não agradou a Kubrick, que retirou o filme de circulação um ano depois.

Dois anos depois, ainda no sistema independente, Kubrick fez “A Morte pas-sou por perto”, um autêntico noir. Foi com “O grande golpe” (1956), porém, que o diretor chamou a atenção de Hollywood. A narrativa labiríntica sobre um grupo de ladrões espertos que arma assalto sofisticado a um hipódromo mostrou ao mundo que ali estava um cineasta completo. Kubrick, porém, ensaiava vôos mais altos. Ele usou os três filmes como aprendizado, fazendo de tudo. Além de dirigir, também escreveu os roteiros, fez a direção de arte, fotografou, montou e editou o som dos longas. Tudo isso lhe permitiria, futuramente, inovar em virtualmente todas as áreas do cinema, da produção de cenários às técnicas avançadas de efeitos especiais.

“Glória feita de sangue” (1957) é considerado o primeiro grande filme de Stanley Kubrick. Trata-se de um drama de guerra estrelado por Kirk Douglas e ambientado nas batalhas do primeiro grande conflito mundial (1914-1918). Era o início do projeto de cinema de Kubrick. Pela primeira vez, o cineasta se sentia sufi-cientemente seguro para desobedecer às convenções de um gênero e reinventá-lo por completo. Até então, todo filme de guerra que se preze narrava a história de um herói. “Glória feita de sangue”, pelo contrário, usava a covardia para analisar as ambições políticas e as tendências destrutivas do comportamento humano. O resultado levou Kirk Douglas a convidar Kubrick para assumir seu filme seguinte, “Spartacus” (1960).

O primeiro épico sobre o Império Romano sem a presença de Jesus Cristo como coadjuvante elevou o nome de Kubrick ao posto de gênio do cinema. A experiência, porém, desagradou ao cineasta. Nos sets, demitiu atores e teve uma briga homérica com o experiente fotógrafo Russell Metty. Este último pediu para ter o nome retirado dos créditos porque Kubrick, teimoso e dominador, o obrigava a usar lentes e iluminar as cenas de um modo que Metty considerava inadequado. Meses depois da estréia, acabou empunhando o Oscar de melhor fotografia, com um dos maiores sorrisos amarelos da história do prêmio. Esta briga, contudo, não foi a mais famosa entre as diversas travadas durante as filmagens.

Na pós-produção, Kubrick deu uma demonstração definitiva de que não tinha limites, nem mesmo éticos, para atingir objetivos. Sabedor de que o roteirista

Dalton Trumbo não podia assinar a obra, pois estava proibido de trabalhar em Hollywood, o diretor sugeriu ao astro e produtor, Kirk Douglas, que o deixasse levar crédito pelo roteiro. Douglas, furioso, recusou – e contribuiu para derrubar a censura em Hollywood ao pôr o nome de Trumbo na abertura. Depois do episó-dio, Douglas e Kubrick cortaram relações. Anos depois, ao ser questionado sobre o cineasta, o ator foi incisivo: “Você não precisa ser boa pessoa para ser um gênio. Stanley Kubrick é um gênio e um idiota”.

Insatisfeito com a falta de liberdade, o diretor prometeu a si mesmo que jamais faria um filme sem ter controle criativo total sobre o processo. Deu, então, uma reviravolta definitiva na carreira. Mudou-se para uma casa de campo na Ingla-terra, tornou-se um recluso – raramente fazia aparições públicas – e assinou um contrato de exclusividade com a Warner. O estúdio, reconhecendo o gênio inova-dor de Kubrick, lhe oferecia carta branca para fazer qualquer filme que desejasse. Até o fim da vida, Kubrick jamais trabalharia para outro estúdio, desfrutando de uma liberdade criativa que nenhum outro cineasta de sua época obteve. Também jamais deixaria a Inglaterra.

O primeiro projeto dentro deste contrato, porém, deixou os executivos da War-ner de cabelo em pé. “Lolita” (1962) adaptava o polêmico romance de Vladimir Nabokov, sobre um professor que nutre uma paixão explosiva por uma menina de doze anos. Kubrick foi obrigado a aumentar a idade da personagem, e escalar uma atriz para o papel que não tivesse seios desenvolvidos. Qualquer referência à prática de sexo entre os personagens deveria ser sumariamente excluída. Ao final das filmagens, o diretor reclamaria do resultado, julgando que as imposições o haviam impedido de fazer o filme que desejava. Mesmo assim, criou uma cena de erotismo antológica, em que o professor, siderado de desejo, pinta as unhas do pé da ninfeta, babando na gravata.

A seguir, Kubrick partiu para a comédia. “Dr. Fantástico” (1964) satiriza a Guerra Fria ao mostrar como um militar de miolo mole podia, sozinho, dar início a um apocalipse nuclear. A interpretação magistral de Peter Sellers (em três papéis diferentes) e o clímax impagável, com o piloto caubói que “monta” a bomba atômica como se fosse um cavalo, dão o tom de ironia feroz. Era a preparação para a maior ousadia do cineasta. O épico sci-fi “2001 – Uma odisséia no espaço” tinha a pouco singela ambição de discutir o lugar do homem no universo. As reações foram, como se hábito, polêmicas. Pauline Kael, maior autoridade entre os críticos da época, liderou o bombardeio, chamando-o de “filme amador mais caro já feito”.

Woddy Allen, que detestou o longa ao vê-lo pela primeira vez, mudou de opi-nião após a terceira revisão, anos depois: “É uma das raras vezes em que tenho que engolir que um diretor está muito à frente de mim”, anuncia, no documen-tário “Imagens de uma vida”. Com “2001”, além da fama de polêmico, Kubrick ganhava também o rótulo de visionário. Afinal de contas, ele havia feito um filme sobre o espaço antes que o homem saísse da atmosfera terrestre. Quando isso aconteceu, meses depois, o mundo viu que Kubrick havia previsto o espaço com impressionante riqueza de detalhes. A visão da Terra que se tinha de lá, por exem-plo, era exatamente aquilo que se vê na tela.

“Laranja mecânica” (1971) não contribuiu em nada para melhorar a fama de polêmico do diretor. A sátira futurista escancara de vez o pessimismo de Kubrick em relação ao futuro – e as radicais alterações na trama do romance de Anthony Burgess levaram o escritor a declarar ódio mortal ao cineasta, algo que já havia acontecido também com Nabokov. Kubrick não deu bola. Em “Barry Lyndon” (1975), aplicou ao passado a mesma abordagem meticulosa que havia dedicado ao futuro. Sua obsessão em detalhes chegou ao auge. Kubrick obrigou a figurinis-ta Milena Canonero a passar dois anos freqüentando leilões de roupas do século XVI, de forma que todos os figurinos usados pelos atores fossem mesmo roupas reais de trezentos anos antes. Para poder filmar à noite usando apenas a luz de velas, o diretor usou uma lente do telescópio Hubble, emprestada pela Nasa, ca-paz de captar imagens em condições mínimas de iluminação.

Por tudo isso, a fama de excêntrico só crescia. Para “O iluminado” (1980), tratava aos berros a atriz principal, Shelley Duvall, porque queria que ela estivesse permanentemente sob tensão, com os nervos em frangalhos, já que era assim que a personagem permanecia durante quase toda a narrativa. Kubrick ainda voltaria à guerra (“Nascido para matar”, de 1987) e faria uma incursão sombria pelas obsessões sexuais de um burguês (“De olhos bem fechados”, de 1999), antes de morrer de ataque cardíaco, durante o sono, em 7 de março de 1999. Fazia apenas três dias que acabara de editar o último filme. É bem possível que tenha usado sua habilidade no xadrez para jogar uma partidinha com a Morte, de modo a ganhar tempo e conseguir finalizar o trabalho. Para Stanley Kubrick, é bom lembrar, nada era impossível.

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Obsessão é a palavra mágica que define Stanley Kubrick

Dr. FantásticoRodrigo Carreiro

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odo os anos, durante o carnaval, os recifenses constatam como a cidade dispõe de instrumentistas que, amadores ou não, se reúnem sem compromisso para tocar e

animar os foliões. São centenas de músicos que tiram o pó dos tradicionais instrumentos de sopro e percussão para os dias de folia, em sua maioria, egressos das escolas de música e, especialmente, das bandas marciais que mantêm acesa a chama do centenário frevo. Por outro lado, aos que desejam enveredar em outros caminhos musicais que não neces-sariamente os da música popular, a estrada continua sendo muito difícil.

É certo que, atualmente, a cidade conta com festivais de música erudita de ponta, além de instrumentistas de alto quilate, oriundos do trabalho profissional efetivado pelo Conservatório Pernambucano de Música (CPM) e o Departamento de Música da UFPE. Mas quem se aventura a tocar (ou simplesmente ouvir) instrumentos que já foram popu-lares – e hoje constituem trabalho de gente especializada – como o alaúde, transverso, viola da gamba, cravo, vihuela e tantos outros que fazem a alegria dos apreciadores da chamada música antiga (em resumo, o repertório da Idade Média, Renascimento e seg-mentos do Barroco), precisa esperar muito tempo por isso, ou melhor, eventos especiali-zados e apresentações bem esparsas.

A cidade já dispôs de grupos muito bons de música antiga, como a Camerata Ad Libi-tum, Incontri, Temperamentos, Gruppo, Orquestra de Música Barroca, entre outros, que não sobreviveram por conta da falta de apoio, fato que é ainda mais problemático devido ao Recife ter sido, na década de 1970, uma referência nacional neste gênero musical, com o sucesso do Quinteto Armorial, que valorizava a união entre a música medieval e a popular nordestina, mesclando as sonoridades de instrumentos como o cravo e o pífano, a rabeca e o violino.

Atualmente, mesmo contra todas as tendências, dois grupos de música antiga ainda estão em atuação na cidade: o Allegretto e o Trio Sonata, oriundos do Conservatório Pernambucano de Música. Segundo o flautista e diretor artístico do Allegretto, Alberto Guerra, os dois principais problemas para quem deseja ingressar numa carreira baseada em repertório e instrumentos antigos, são a falta de cursos especializados e os custos para aquisição do material básico. “A primeira dificuldade para quem quer aprender um instrumento antigo é financeira: uma viola da gamba custa, em média, cerca de dez mil reais; um alaúde simples, de dois a quatro mil; um cravo, mais de vinte mil; e são feitos por luthiers especializados que trabalham de forma artesanal”, explica Guerra.

Outro problema é a falta de um curso efetivo que ensine as técnicas de instrumentos antigos na cidade, à semelhança do Departamento de Música da ECA-USP, que conta desde 2001 com um Núcleo de Música Antiga, e da Escola de Música de Brasília (EMB), onde também há uma Coordenação de Música Antiga, entre inúmeros outros exemplos existentes nas regiões Sul e Sudeste. No Recife, raríssimas vezes são oferecidos cursos de alaúde ou flauta transversal barroca e, quando ocorrem, constituem esforços voluntários de professores do Conservatório ou do Departamento de Música da UFPE.

Por exemplo, a professora Marta Gondim, do Allegretto, iniciou um curso de viola da gamba no CPM utilizando seu próprio instrumento, mas, graças a um pequeno acidente ocorrido com este, as aulas tiveram de ser suspensas e a professora voltou às aulas tradi-cionais de flauta. Da mesma forma, um alaudista profissional, como Guilherme Calzavara, ensina apenas violão clássico.

De acordo com a professora de violino e diretora da extinta Orquestra de Música Barroca, Viviane Pimentel, que ensina no Conservatório, muitos profissionais esperam que a instituição volte a se transformar numa autarquia e, dessa forma, possa organizar novos cursos e núcleos, como jazz e música antiga. “Pelo regimento atual, não se pode fazer muito; quando um professor se aposenta, ou a sua cátedra se extingue, ou espera-se muito por novo concurso”, afirma. Atualmente, mesmo contando com instrumentos, faltam professores de cravo e viola.

Há, também, entre os grupos remanescentes de música antiga, a dificuldade em con-seguir partituras e atrair “mão de obra” nova. “Quando um músico viaja para o exterior, para estudar ou mesmo para encontrar terreno mais propício, fica geralmente uma lacu-na difícil de ser preenchida”, diz Alberto Guerra. “Mesmo assim, o interesse pela música antiga vem aumentando a cada dia entre o público recifense, especialmente o grande público, como constatamos durante as apresentações do Allegretto”, completa o músico, que se interessou pelo estilo em inícios da década de 1990, após a vinda de professores intercambistas europeus e norte-americanos ao CPM, os quais trouxeram na bagagem muitas partituras antigas.

Atualmente, Guerra é um dos músicos que mais possuem partituras da área, graças à colaboração inicial de Ilma Lira, professora de música da UFPE, que fez pós-graduação na Inglaterra e é uma das grandes incentivadoras desta arte no Recife.

Enquanto se espera a criação efetiva de núcleos de música antiga, com apoio do Go-verno, no CPM e no Departamento de Música da UFPE – já que os baixos salários ainda impedem a contratação de mão-de-obra profissional –, a professora Viviane Pimentel anuncia, em primeira mão, a realização do “6º Encontro de Música Antiga do Recife”, a ser realizado entre os dias 30 de junho e 05 de julho, que contará com a presença de instrumentistas de todo o país e da Europa, os quais também oferecerão cursos de viola da gamba, violino barroco, cravo, entre outros. Evento de suma importância que mos-trará novamente todo o potencial da área em nossa cidade. Da mesma forma, o grupo Allegretto, que recentemente tocou na reabertura da Igreja Madre de Deus e possui dez membros, estará se apresentando no Castelo de Brennand, no dia 18 de maio.

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oda cidade tem a sua “saída” mais próxima rumo ao refúgio da civilização. O espírito de Thoreau (“eu fui para os bosques porque queria viver deliberada-

mente”) hiberna nos corações dos urbanóides mais apaixonados que hoje desper-tam metodicamente para seus esconderijos citadinos nos providenciais veraneios familiares. Não temos lago com patos e pontezinhas singelas cortando paisagens bucólicas. Nem tão longe, mas não tão perto, as praias urbanas do litoral norte e sul da Região Metropolitana do Recife se oferecem convidativas à exploração do isolamento social bem à moda brasileira: sombra, água fresca, petiscaria e sensuali-dade. Nelas, é sempre o tempo dos excessos do corpo. Abastecer direito a dispensa, arrumar os meninos – com calção de banho, maiô, biquíni, pé de pato e máscara de mergulhar –, fazer a listas dos materiais necessários (que sempre estão incom-pletos), atolar o carro de gente e rumar em direção ao território da contemplação de nosso resgate de intimidade com a natureza da qual tanto nos afastamos. Duas dessas praias, Janga e Candeias, localizadas nas extremidades de nossa geografia metropolitana, fizeram história e história pop.

Antes das modas e temporadas de badalações pelas raves patrocinadas por mar-cas de cerveja; antes dos trios elétricos de forró e axé nos balneários do litoral norte do Estado; bem antes da exibição das nossas pequeninas maravilhas praieiras nas novelas das oito, existiu Dona Duda. Na virada dos 60 e início dos 70, o Janga se tornou uma Shangrilá comportadinha com requintes de tradição bem ao gosto da intelectualidade regionalista. Para ela, Capiba compôs “Frevo e ciranda” (1974): “Eu fui à Praia do Janga/ pra ver a ciranda/ e o seu cirandar./ O mar estava tão belo/ e um peixe amarelo/ eu vi navegar..Não era peixe,/ não era./ Era Iemanjá, a rainha./ Dançando a ciranda,/ ciranda.../ No meio do mar..”

A cidade se modernizava, abrindo mais estradas e facilitando o acesso da elite recifense às praias urbanas do litoral norte pelas perimetrais. Era um frisson para os veranistas e cobiça para a classe média da cidade que pegava carona com o vizinho ou economizava um bocadinho para comprar seu terreninho e levantar sua casa própria também na praia. A tertúlia popular de Vitalina Alberta de Souza, Dona Duda, atraía gente fina que se enfeitava de moda praieira (colares, turbantes e vestidões no estilo pós-hippie de butique) e dançava até a madrugada a cantoria da ciranda urbana. Em plena ditadura militar, na política a ferro e fogo de Médi-ci, quando aglomerados de gente engalfinhada num mesmo espaço significava confusão, a comunhão com Dionísio se instalava na praia do Janga onde se comia peixe frito e se dançava de mãos dadas sem indícios de subversão. Durou pouco. Por cinco anos, Dona Duda angariou seus fãs; de festival participou e disco de vinil gravou. A fama foi além. Hoje, o Janga, por Dona Duda, até no Dicionário Cravo Albin dá o ar de sua graça. Já a praia, ficou para trás na pressa da história.

Atualmente virou opção de moradia “em conta” com os financiamentos dos con-juntos residenciais e um daqueles fantasmas lendários que rondam o simbolismo urbano.

As casinhas com varandas que entrecortavam a paisagem litorânea à beira-mar logo passaram a dividir a atenção com os prédios-caixão ou os edifícios conjugados construídos ao longo do vasto terreno ocioso do bairro. Não demorou para que a Shangrilá do litoral norte ganhasse contornos de uma mini-cidade com suas maze-las urbanas. Assim como Candeias, a Ilha Grande dos mangueboys, citada nas músi-cas da banda Mundo Livre (o regionalismo revisto pela ótica do trabalhador/usuário de transporte urbano – “Rio Doce/Piedade – Barra de Jangada até Casa Caiada”) e pólo de encontro da geração Mangue beat. A penúltima praia urbana do município de Jaboatão dos Guararapes, que apóia sua glória cívica no que se chama institu-cionalmente do “nascimento da pátria”, também deve sua ocupação às facilidades do mercado imobiliário. As boas possibilidades de financiamento dos apartamentos e o barateamento dos aluguéis, devido às condições locais de distanciamento/iso-lamento do bairro, fisgaram o bom pechincheiro. Nos 80, Candeias era o sonho de moradia própria da RMR. Era o fetiche de morar bem da “cidade grande”: longe do burburinho; perto da comunhão bucólica com o nosso paraíso de coqueiros e águas brandas.

Quem acompanhou de perto o seu crescimento viu terrenos esparsos serem invadidos pelos pré-sem terra e por acampamentos sazonais de ciganos a rigor.

Ao contrário do Janga, que fez sua fama pelo veraneio, Candeias logo se colocou como alternativa residencial. No entanto, sua urbanização carregou uma caracterís-tica muita peculiar da cultura pernambucana: o nomadismo. A exploração do bairro como opção de moradia foi lenta e não tardou para que a vizinha Piedade saísse na frente em construção civil e turismo. Não é raro, até hoje, ver casas e edifícios incompletos, deixados pela metade. Os terrenos ociosos se estendem quilometrica-mente deixando a paisagem com cara de local mal-assombrado pela solidão, lugar de despacho de galinha preta e ponto de “desova”.

Mas o pior não é o caminho tortuoso da urbanização. A fúria da natureza faz jus, no Janga e Candeias, ao bom e velho ditado “água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”. Casas, restaurantes, edifícios, condomínios. Construções ainda recentes marcadas pelas intempéries. Não há tecnologia ou manutenção que resista ao clima temperamental de uma cidade que testa a todo e sempre a capacidade de se poder “fixar” – como exige a regra da modernidade. Longe de parecer uma boca banguela, como diria Lévi-Strauss, eles, esses bairros de veraneios tradicionais ou refúgios, parecem lábios carnudos que a qualquer momento mundo vão mostrar seus dentes careados.

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Antes das modas, das badalações e longe de tudo, para sempre Janga e Candeias Carolina Leão

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Assessores municiam a imprensa que nem sempre confere ou questiona a informaçãoAdriana Santana

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monumento da cidade é o rio. Não qualquer rio. O dramático Capibaribe. Não temos obelisco, farol, forte, casario colonial, construção arquitetônica mais imponente do que o Capibaribe que existe solenemente re-

cortando a cidade em todo o seu trajeto. Na Rua da Aurora, as pontes que o atravessam se constituem cartões-postais poéticos para o reconhecimento do Recife pelo Brasil; enquanto outro rio, não menos importante, o Beberibe, amarga o esquecimento estético, o isolamento simbólico. Pela sua opulência, o fidalgo Capibaribe se colocou protagonista da tradição e da arte pernambucana. Consta em conto, poesias, crônicas, artigos, lendas, superstições. Beberibe acabou ficando com cara de operário excluído da história. Não é exagero, aliás, dizer que geografia, classe e espaço social, como local de antagonismos econômicos, revela-se na própria ocupação da cidade que sela o destino de sua hegemonia.

Foi Gilberto Freyre quem melhor definiu a função dos dois rios para a cultura recifense (“Nada mais natural que o fato de no Recife haver gente que adora a água. A cidade pode-se dizer que saiu de dentro d’água como uma Iara”) e como um bom apaixonado por Olinda dedicou atenção ao curso do rio Beberibe. “Ele adoça como nenhum outro elemento da natureza tropical a fisionomia do trecho de terra brasileira que os indígenas cha-mavam de Marins ou Mirim e os portugueses denominaram de Olinda”, diz o escritor. Capibaribe e Beberibe, já demonstra Freyre, são rios arbitrários, aliás. Da definição tupi deste último, talvez venha a inspiração freyreana que o considerou “menos oficial e mais lírico” que seu antagonista. Beberibe, há controvérsias etimológicas, quer dizer voar em bando, em referência aos pássaros que povoam suas margens repletas de pés de fruta para serem, ainda hoje, pasmem, comidas no pé. “O Rio Beberibe desce até Olinda de um pequeno olho-d’água do lugar Cabeça de Cavalo. Antes de chegar a Olinda banha vários sítios, outrora cheios de matas, de frutas e de passarinhos”. Sítios inteiros de árvores com frutas típicas da região cortam a formação do Beberibe, que se dá ao norte da cidade – região marcada pela forte presença negra em seus bairros. Espaços territoriais cuja composição, pelas bandas de Água Fria, Fundão, Beberibe, Cajueiro, e até o comecinho de Olinda, ainda hoje se mantêm vinculada às tradições religiosas africanas que pelas suas margens prestam homenagens às deidades das águas: sensuais e voluptuosas.

São quatro mil, oitocentos e quarenta quilômetros quadrados contra cinco mil, oitocentos e oitenta do Capi-baribe, democrático em seu percurso, mas aristocrático em sua relação histórica. “O Beberibe mais lírico: ligados menos a engenhos grandes que a sítios e baixas de capim, que a troças e banhos de estudantes de Olinda; que a passeios alegres de rapazes do Recife com atrizes, cantoras e cômicas. Um desses rapazes diz a tradição que foi Castro Alves”, revela Freyre, em sua lembrança juvenil. Beberibe, que para Freyre era boêmio pela proximidade com a dionisíaca Olinda, marca um Recife realmente sem “plumas”: o Recife de uma ocupação marginal – feita pelas classes pobres e desprovidas de capital simbólico necessário para a legitimação da tradição.

Comparado ao Capibaribe, o Beberibe, rio negro, é elitista. O Capibaribe se afasta da cidade e segue ba-nhando trinta e dois municípios do interior do Estado, inclusive regiões de seca. Antes de se encontrar com o Beberibe no centro da cidade, atrás do Palácio do Campo das Princesas, ele segue pelas áreas mais tradicionais do Recife dos tempos da colonização de casa grande e senzala: Várzea, Caxangá, Apipucos, Monteiro, Poço da Panela etc. Bairros brancos e pardos que cresceram com engenhos e sobrados e adaptaram lendas e mitos mouros e lisboetas para as margens do Capibaribe. “Mais ligado a engenhos grandes, canaviais, ao esplendor das casas senhoriais, a senzalas, aos horrores da escravidão, ao abolicionismo, a crimes, a cheia, a raptos de moças, a revoluções”, conceitua o mestre de Apipucos, com propriedade de quem conviveu com as mais as-sombradas histórias das águas doces do Capibaribe. No século XIX, a aristocracia descobriu em suas águas não apenas um recurso de oferendas e mandingas para conseguir namorado ou arrumar a vida das tias solteironas. A elite fazia das suas margens, ocupada por canoeiros, pescadores e lavadeiras, casa de banhos terapêuticos, lá pelas bandas da Várzea, Poço da Panela e Caxangá. Bairros até hoje povoados de angústias quase eróticas. Mas Dionísio deve estar mesmo é sorrindo, sem culpa cristã, em algum sítio do sorrateiro Beberibe.

OAs fortes personalidades dos rios que cruzam os bairros do Recife

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As diversas iluminações que emanam da obra de César Leal Anco Márcio Tenório Vieira

publicação, em 2005, dos dois volumes que compõem “Dimensões temporais na poesia”, dá-nos a real dimensão da crítica de idéias que foi produzida, em mais de

meio século, por César Leal. Falo crítica de idéias, porque reduzir a produção ensaística do autor de “Dante e os modernos” ao universo literário, é restringir sua obra apenas ao campo de um dos seus saberes. Nestes dois volumes, vemos César Leal caminhar da literatura às artes plásticas, passando pelas reflexões sobre obras memorialísticas, históricas, de economia e filosofia, e, coisa rara entre os homens das humanidades, se embrenhar no campo das chamadas ciências “duras”: a física e a matemática. Toda essa vasta e erudita produção intelectual filia nosso crítico numa tradição de homens de saber que vem desde o Dr. Samuel Johnson, no século XVIII, passa pelo crítico oito-centista francês Sainte-Beuve, e no século XX encontra em Erich Auerbach, Leo Spitzer, Octávio Paz, Ernst Robert Curtius, Lezama Lima, Albin Leski e um Luiz Costa Lima seus exemplos mais acabados. Podemos dizer de César Leal o que escreveu um outro poeta e crítico — Jorge Wanderley — a propósito do citado Auerbach: é “[...] um crítico com a disciplina do cientista, reúne saberes e sensibilidades que vão resultar em cintilações e áreas de luz contínua em sua produção intelectual”.

Em uma época em que as especializações tornam-nos embrutecidos, incapazes de lermos os signos que nos cercam, os ensaios de César Leal são alentos para aqueles que acatam a atividade intelectual como uma infinita e incansável saga em busca do tentar compreender os diversos caminhos que urdem as obras e as idéias que, desde a Antiguidade Clássica até os dias que correm, foram sendo construídas pelos filhos do Éden perdido, nós, condenados que estamos a habitar um solo maldito: a terra. E nada é mais instigante — e é isso o que penso — do que acompanhar e tentar entender com Razão e generosidade a árdua epopéia intelectual do Homem sobre a Terra. Epopéia feita de êxitos e de fracassos, de momentos sublimes, mas também de períodos negros, de sonhos e de lágrimas e, principalmente, de tentar entender, como já disse um outro poeta, João Cabral de Melo Neto, que a medida do homem não é a morte, e sim a vida. Infelizmente, a cada dia que vamos vivendo descobrimos que o conhecimento é maior do que o tempo que dispomos em uma só existência para apreendê-lo e redimensioná-lo. Também descobrimos que não podemos dedicar todas as horas da nossa existência apenas ao conhecimento formal, pois a vida não é feita só de pesquisas, leituras e produção intelectual, mas também de amores, dos amigos que vamos cultivando ao correr do tempo, das agradáveis conversas que jogamos fora, e da festa — que, ao lado do saber, é a melhor maneira de celebrar a vida. “[...] tudo passa/ não sabe o tempo ter firmeza em nada;/ e nossa vida escassa/ foge tão apressa-da/ que quando se começa é acabada”, alerta-nos Camões.

Mas afora as especializações que nos embrutecem e são denunciadas por César Leal, quando nos lembra “[...] que a obra de arte literária é apenas parte de minhas preocupações com a literatura e suas relações com as outras artes”, sua obra crítica vem também nos redimir de um certo pudor que se instalou na Academia, que é o de ter receio em louvar quem de fato deve ser louvado. A crítica de Leal oferece-nos fer-

ramentas para entendermos porque tal ou qual obra é representativa do pensamento humano, indiferente das latitudes ou longitudes do planeta em que ela foi produzida. Lendo o autor de “Dimensões temporais na poesia”, entendemos cada vez mais que um fino e delicado fio unem os homens e suas produções culturais. E quando falo de obras representativas, estou falando de livros que perduram no tempo tanto pela sua “eficácia estética” quanto pelo seu “potencial semântico”. É por essa “eficácia estética” e por esse “potencial semântico” que César Leal nos revela tanto o valor atual de um T. S. Eliot quanto o do hoje esquecido Jorge de Lima, de um William Blake e de um não menos obliterado Joaquim Cardozo. Poeta, este, que assim como nosso crítico, também era um homem multidisciplinar.

Mas César nos diz mais: ele nos ensina “[...] que o erro dos críticos de periódicos é escrever apenas sobre livros novos, como se a verdade não fosse antiga”. Ou seja, o novo não é uma novidade em si, ele está inserido numa longa tradição, uma tradição que constantemente tem que ser renovada, re-oxigenada. É este renovar que dá vida e fôlego à sua perenidade: a perenidade do novo e do antigo, num contínuo processo de retroalimentação mútua. E aqui temos um ponto importante a refletir. Não podemos dissociar o César crítico do César poeta. Lendo atentamente sua poesia e sua crítica, constatamos que ambas se filiam a uma mesma tradição intelectual, a uma mesma família espiritual ou, para usarmos uma terminologia cunhada por um poeta que lhe é tão caro — Ezra Pound — a um mesmo “paideuma”. Se, por exemplo, César Leal é um leitor atento e crítico de T.S. Eliot, é porque tanto a poesia quanto a critica do po-eta norte-americano falam e abordam poetas que são também apreciados por César. O mesmo se dá com críticos e poetas como Octávio Paz, o mesmo Paz que defende pressupostos que são, certamente, acatados pelo autor de “Dimensões temporais na poesia”: ou seja, que “o moderno é uma tradição”, que todo grande poeta e crítico se insere dentro da “tradição da ruptura” e, principalmente, que “o poema é uma máqui-na que produz anti-história, ainda que o poeta não tenha essa intenção”.

É dentro dessa perspectiva (a perspectiva do poeta que é crítico do seu tempo e da linguagem que tomou para si para traduzir seus sentimentos e sua visão de mundo), que Leal vai defender o estudo das chamadas ciências “duras” — a Física em particular — para que possamos entender a poesia do século XX. Segundo nosso poeta, a ciên-cia lhe preocupa porque ele sabe “[...] que o mundo mudou no século XX, ao ruir o universo de Euclides e a física clássica, construída quase toda por Newton, diante do novo universo de quatro dimensões criado por Planck, Einstein, Heisenberg, Schrödin-ger, Dirac e muitos outros físicos tão fortes quanto eles. Saímos de uma geometria do próximo, a de Euclides, mais ou menos assim definida por Ortega y Gasset, para uma outra, a de Riemann, que se estende, com Einstein, ao Universo inteiro. “[...] Como sou poeta cuja preocupação maior tem sido a Cosmologia, interesso-me pelo tema, sem deixar de reconhecer a superioridade do mito e do sonho quando se é obrigado a colocar de lado a experimentação e a verdade para romper ‘os limites da expansão’ [..]”. Ou seja, assim como Eliot e Paz, e poderíamos também evocar Lezama Lima e Jor-

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ge Luís Borges, o poeta César Leal quando se debruça criticamente sobre a obra dos seus pares — sejam eles do passado ou os seus contemporâneos — está, na verdade, falando, de modo diverso, sobre a sua própria poesia, suas crenças e verdades. Não é à toa que os críticos que lhe são mais caros — falo dos críticos que nunca arriscaram também ser poetas, mas apenas e somente críticos —, a exemplo de Erich Auerbach, Leo Spitzer, Ernst Robert Curtius, Karl Vossler, são pensadores que escolheram obras que também são relevantes para o crítico e poeta César Leal.

Por fim, nessa breve e sucinta análise da sua obra ensaística, lembro que assim como no magistério — e eu fui aluno do professor César Leal (não sei se um bom aluno, mas tentei me esforçar para não ser apenas um aluno mediano) — o crítico César Leal sempre pautou suas análises por uma abertura de escolas teóricas. Como ele próprio já escreveu: “Um otimismo quase ilimitado deu a certos estudiosos uma falsa noção dos poderes do ‘New Criticism’, do Formalismo Russo, do Estruturalismo, da Estética da recepção, da Semiótica, da Psicanálise etc. Esses métodos contribuíram muito para a perfeição dos meios empregados para o conhecimento da literatura. Mas todos revelaram suas falhas, seus subuniversos de mistificações e enganos”. Ou seja: César, como qualquer grande intelectual que faz jus à missão que tomou para si, ensina-nos que nenhuma escola teórica encerra um valor e uma verdade em si, elas são apenas ferramentas que nos ajudam a pensar. E como ferramentas, nenhuma Escola Teórica perde de todo, com o passar dos anos, sua validade. Se muitas das suas verdades caducam com o tempo, outras tantas permanecem como contribuições de fato para os estudos da crítica — a literária em particular —, muitas vezes nos fornecendo elementos para que possamos alargar pontos que não foram tão bem explorados pelo teórico ou crítico que criou determinado conceito ou metodologia. O problema é que na ânsia de nos filiarmos ao derradeiro modelo teórico da moda (e Deus sabe como isso é uma angústia para tantos mestrandos, doutorandos, e pro-fessores universitários), jogamos a água da banheira com a criança. Resultado: nem verticalizamos criticamente as ferramentas teóricas que por ventura adotamos, nem as que nos precederam. É assim que abandonamos determinados conceitos como se eles não nos falassem mais, fossem ferramentas enferrujadas pelo tempo. Verdade tão difícil de ser entendida por aqueles que são pesquisadores e estudiosos no campo das humanidades. Tão difícil porque é muito mais fácil nos apossarmos de uma deter-minada escola teórica como a panacéia de todos os males, do que a utilizarmos como ferramenta que vai nos ajudar a pensar sobre nosso objeto de estudo.

E como podemos ser críticos da crítica, crítico da teoria que abraçamos? César Leal indica o caminho mais óbvio, mas que de tão óbvio já não conseguimos divisar: a ênfase no estudo. Diz César que “Ninguém pode ser efetivamente um crítico se vive ocupado com toda sorte de leituras livres. Um crítico assim revelaria uma tolerância, uma secreta complacência e falta de responsabilidade tão edificantes que ninguém seria capaz de perdoá-lo deste pecado de adoração religiosa, asiática e fetichista a valores despidos de mínima singularidade no plano dos estudos teóricos de literatura.

Os livros não são fáceis de escrever”. Com isso César não está negando o que disse-mos no início da nossa exposição, o de que sua crítica se caracteriza pelo alargamento dos temas por ele abordados, mas que devemos saber escolher o que vamos ler para que possamos construir um raciocínio crítico sobre o objeto que vamos nos debruçar. Ou seja, não adianta ler dez livros sobre a “Poética”, de Aristóteles, se desconhecemos o próprio texto da “Poética”. Só podemos criticar a fortuna crítica da “Poética” se conhecemos, epistemologicamente, a fonte que é objeto dessa fortuna crítica. Temos um tempo limitado na Terra, uma determinada quantidade de livros que podemos ler. Diante dessa verdade inexorável, temos que saber escolher. Mas não só: saber escolher e ler sempre com espírito investigativo e indagador. Daí que toda idéia nova está inserida numa tradição de pensamento, pensamento que se renova com a crítica inteligente, instigante, com a crítica que nos incomoda.

Foi com esse espírito que César Leal escreveu as centenas e centenas de páginas que formam sua “Dimensões temporais na poesia”. Nestas páginas entendemos melhor o valor da obra de um Dante, de um Gil Vicente, de um Camões, de um Machado de As-sis e de um Shakespeare, mas também saímos iluminados por suas análises e reflexões sobre as obras de Fernando Pessoa, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Carlos Pena Filho, San Juan de la Cruz, Elizabeth Bishop, Débora Brennand, Giacomo Leopardi, Wallace Stevens, Joaquim Nabuco, Cícero Dias, Francisco Brennand e tantos outros nomes que encheríamos páginas e páginas. Enfim: o que a obra “Dimensões temporais na poesia” nos oferece é o eterno prazer de continuarmos aprendendo com César Leal como podemos ler, apreciar e entender a literatura, as artes plásticas e tantas outras formas de conhecimento produzidas pelo homem. Ler “Dimensões temporais na poesia” é nos reencontrarmos com o professor que tanto nos ensinou, só que agora através dos seus textos, no recolhimento do nosso gabinete de trabalho. Mais: é nos reencontrarmos com um dos maiores críticos de sua geração, um crítico que a partir do Recife — o Recife que ele adotou para morar, trabalhar, casar e construir sua obra — leu de maneira arguta a literatura do seu tempo e de outros tempos não vividos. Assim, nesta cidade e neste Estado que deram tantos nomes relevantes para a cultura brasileira, a exemplo de Joaquim Nabuco, Gilberto Freyre, Manuel Bandeira, Joaquim Cardozo, João Cabral, Evaldo Cabral de Melo, José Antônio Gonsalves de Mello, Evaldo Coutinho, José Lopes Leite, Hermilo Borba Filho, Nelson Rodrigues, Mário Schemberg, Mário Pedrosa, João Alexandre Barbosa, Sebastião Uchoa Leite, Jorge Wanderley, Paulo Freire, Aloísio Magalhães, Mauro Mota, Osman Lins, Vicente do Rego Monteiro, Álvaro Lins, Francisco Brennand, Samico, Cícero Dias e tantos outros, César se sobressai como um dos seus maiores nomes: tanto na poesia, como na crítica. Só posso agradecer por ter sido seu aluno, e por ser um professor de uma Pós-Graduação criada por ele há quase trinta e dois anos e, principalmente, por eu me tornar, cada vez que leio sua obra, um pouco menos intelectualmente tacanho, entendendo outros homens e mu-lheres que viveram antes de mim ou os que são meus contemporâneos e, por sua vez, alargando minha pobre humanidade. Saber+

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Pernambuco - O Brasil é um dos campeões em cirurgias plásticas realizadas anualmente. Também somos líderes, de acordo com a ONU, em uso de remédios para emagrecer (entre 2002 e 2004, chegamos a 9,1 doses diárias por mil habitantes no consumo de drogas à base de anfetaminas, um aumento de mais de vinte por cento em relação ao período de 1992 a 1994). Como explicar tais fenômenos em um País com problemas estruturais/sociais precariamente resolvidos?

Jonatas Ferreira - A primeira coisa a dizer é concordar com você: esse é um país com um dos maiores índices de concentração de renda do mundo. Apesar de uma melhoria significativa que tivemos no final da década de 90 e, sobretudo, entre 2001 e 2005, o décimo mais rico da população brasileira ainda se apropria de metade da riqueza gera-da pelo país enquanto que a metade mais pobre da população ganha aproximadamente 14% da riqueza gerada. O dado importante acerca das cirurgias plásticas, no entanto, não é o fato de que ela seja uma possibilidade apenas dos mais ricos, mas tenha se tornado uma possi-bilidade também das classes B e C. E estamos falando aqui, obviamen-te, de cirurgias plásticas cosméticas. Essas junto com os regimes para emagrecer, tratamentos cosméticos menos invasivos que uma cirurgia têm se tornado uma realidade não apenas dos mais ricos, mas da classe média também. A verdade é que a transformação corporal é uma preo-cupação do mundo contemporâneo e alcança uma penetração cultural realmente importante no Brasil. Se você for a Boa Viagem, Casa Forte encontrará lá academias de ginástica e com elas todo um aparato que visa a tornar os corpos magros, funcionais, músculos etc. Mas você também encontra academias de ginástica na Mustardinha, San Martin, bairros mais pobres. As ênfases aqui são outras, os cuidados são outros, mas a idéia básica é de que você é responsável por seu corpo; que ser careca é um desleixo, que ser gordo é imoral etc. A esse respeito, eu poderia dizer, numa sociedade veloz, numa sociedade da inovação, da aceleração corporal, o corpo, a aparência física, é algo que comunica rapidamente. Em geral, eu não tenho tempo no meu dia-a-dia agitado de dizer como sou um cara legal, ou responsável, ou criativo, ou bom amante, mas o meu corpo bem vestido, esbelto, belo, está ali para passar todas essas informações rapidamente. A cirurgia, a ansiedade por controlar nossos fluidos, secreções etc. Além disso, falam de um indivíduo no pleno controle de si, um indivíduo responsável por sua saúde, aparência etc. Esse auto-controle parece ter se tornado um atri-buto moral nas sociedades contemporâneas. A idealização de um corpo perfeito seria muito mais uma imposição do próprio indivíduo e não uma condição necessariamente ligada ao espaço social no qual ele vive? Como falei, é preciso perceber uma grande tendência e uma materiali-zação local desta tendência nas sociedades contemporâneas. O terrível do capitalismo contemporâneo é que ele não precisa sempre operar por imposições. Bush e sua política externa não são a única possibilidade do capitalismo, pelo contrário. O terrível mesmo é ver o capitalismo operar não por restrição, pela repressão, mas pela promessa do prazer. No grande regime de visibilidade que o capitalismo opera, é interessante perceber não apenas a paranóia diante desse olhar, mas no preparar-se para os prazeres de ser visto. Bem, a segunda parte da questão é naturalmente que estamos falando aqui de grandes tendências que se entrecruzam com dinâmicas culturais locais. Mais uma vez, essa ten-dência não se manifesta, nem é negociada e apropriada, de igual modo em San Martin e em Casa Forte; em uma mulher ou um homem de Casa Forte; em um homem de 20 ou 70 anos neste mesmo bairro.

Pernambuco - Tomamos ansiolíticos para nos acalmarmos, anti-

depressivos para sorrir, calmantes para dormir, Viagra para mantermos relações sexuais com nossos parceiros. Na sociedade contemporânea, podemos dizer que este corpo nos pertence?

Jonatas Ferreira - Bem, como dizia um filósofo muito simpático, sempre que estabelecemos em relação ao nosso corpo uma relação de propriedade, estamos no caminho errado. Nós não temos o nosso corpo, nós somos o nosso corpo. Não estamos acima de nós monito-rando o nosso corpo, nós somos as possibilidades do nosso corpo. O mesmo filósofo dizia que esse corpo abre-se para o mundo também a partir de suas próteses, de suas muletas técnicas. Roupas são muletas, neste sentido, carros, e de algum modo nós tornamos tudo isso parte de nosso corpo quando guiamos um carro competentemente, quando vamos ao trabalho vestidos etc. As muletas técnicas tornam-se parte de nossa existência, de nossa abertura fenomenológica para o mundo.

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scarificações, aborto, piercings, plásticas, redução de estômago, aumento dos olhos, retirada de costelas para garantir uma silhue-

ta delgada. Musculação, descolorimento dos cabelos, inseminação, re-tirada de tatuagens. Prozac e Viagra por um futuro melhor. Parece que hoje já podemos adaptar nosso corpo a qualquer intempérie social. Um bisturi aqui, uma esticada acolá, um comprimido a cada doze horas e nos tornamos aquilo o que imaginamos ser. Mas nem sempre o antibió-tico mais recente da Pfizer pode reparar o buraco sangrento que apare-ce na alma, nem mesmo aquele blush com efeito lifting anunciado pela L`Oreal. Assombro: quem manda nesse terreno de enormes sutilezas, triste verdade, não é você. Um dos pesquisadores brasileiros mais atu-antes nos estudos em relação às transformações do corpo e à contem-

poraneidade, o professor e sociólogo Jonatas Ferreira, da Universidade Federal de Pernambuco, diz que somos primeiramente as possibilidades do nosso corpo, não seus senhores absolutos. Para o coordenador de um grupo que hoje estuda desde cirurgias plásticas mal-sucedidas até as implicações culturais da nanotecnologia, nós perdemos, ao estabele-cermos uma relação possessiva com essa máquina de carne, osso e se-creções, boa parte de contato com o mundo. Ao contrário de diversos colegas, o sociólogo não vê o uso de drogas como ansiolíticos ou anti-depressivos de maneira apocalíptica: em uma sociedade onde é exigida a alta performance do ser humano, o uso de tais “muletas técnicas”, como ele define, pode ser a via para poupar o indivíduo de sofrimentos excessivos. “Tragédia demais, dor demais, sofrimento demais, podem ser também aquilo que eu entendo como nossa possibilidade mais ín-tima: a vida.”

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Não tenho um problema com os ansiolíticos, com os antidepressivos. Ainda não usei o Viagra, mas talvez um dia, se continuar tendo sorte em minha vida afetiva, precise usar. O problema, no meu entender, reside no fato de que algumas pessoas tratam de si próprios, isto é, de seus próprios corpos como se fossem possessões. De algum modo estaríamos acima de nossos corpos controlando cirurgias, performances sexuais, as ansiedades que eles, nossos corpos-objetos, produzem. Quando agimos deste modo, perdemos uma dimensão importante de nossa dignidade: entender que o nosso corpo é a nossa única possibilidade de abertura para o mundo e não um objeto de que possamos, sabe-se lá como, dispor.

Pernambuco - Há uma imensa polêmica em torno de assuntos como células-tronco, testes genéticos em humanos, clonagem. Ao mesmo tempo em que a ciência e a tecnologia avançam nestes campos, uma parcela da sociedade mostra-se assombrada com tais possibilidades. Estamos prepara-dos para o que parece ser uma realidade cada vez mais próxima – as mo-dificações no corpo humano geradas pela própria biogenética – ou serão tais indivíduos excluídos, cotidianamente, justamente do que é entendido como humano?

Jonatas Ferreira - Acho que você juntou as peças do quebra-cabeças que se coloca com os avanços recentes das tecnologias da vida. O que está em questão quando aqueles que se colocam favoravelmente ou em oposi-ção às pesquisas com células-tronco embrionárias, ou seja, células capazes de gerar um ser humano? Primeiro, e muito claramente, basta que acom-panhemos o debate na mídia, é saber onde principia o ser humano: na concepção, quando o sistema nervoso central está constituído, após tantas semanas? Acredito, todavia, que o debate gira em torno de uma pergunta milenar: existe algo essencial no ser humano, existe algo em nós que não pode ser negociado? Em sua questão você recoloca essa questão da seguin-te forma: o que é entendido como humano ou o que é o humano? Desta perspectiva, acho que estamos nos preparando há séculos para a realidade que temos diante de nós. Essa tem sido a pergunta fundamental que acom-panha a metafísica ocidental. Creio que temos de nós a negociação de uma resposta quando falamos nas dificuldades de legislar sobre células-tronco embrionárias. Por tudo o que eu disse anteriormente, por todo esse proces-so de objetificação, de comodificação do corpo, e da vida biológica de um modo geral, eu só poderia estar bastante inquieto diante das respostas que estão sendo dadas.

Pernambuco - Drogas como o Prozac passaram a ser extremamente

comuns nos dias atuais, tão toleráveis quando um simples remédio contra dor de cabeça. Somos hoje menos tolerantes a sentimentos como a dor, a tristeza e a rejeição? Ou esse panorama seria uma resposta natural a uma necessidade maior de “alta performance”?

Jonatas Ferreira - Acho que uma pergunta responde em alguma medi-da à outra. Somos menos tolerantes à dor porque temos de ter alta perfor-mance. Como posso ser funcional e deprimido ao mesmo tempo, criativo, comunicativo no trabalho com síndrome de pânico? A tristeza é parte da vida e do amadurecimento subjetivo, embora eu não seja exatamente um apologeta do sofrimento. Georges Bataille dizia que nos desacostumamos com o lado trágico da vida e, portanto, com a nossa finitude. Tentamos através de tudo quanto é remédio esquecer que somos mortais – procura-mos esquecer nossa possibilidade mais íntima, como diria Heidegger. Ago-ra, tragédia demais, dor demais, sofrimento demais, podem ser também aquilo que eu entendo como nossa possibilidade mais íntima: a vida. Um bom antidepressivo pode também ser condição de elaboração de nossas possibilidades.

Pernambuco - Até que ponto, ao assumirmos uma experiência sintética

com o mundo (através do uso de medicamentos) podemos considerar que, de fato, estamos aqui?

Jonatas Ferreira - Essa é uma forma engraçada de se colocar o drama cartesiano. Acho que não existe um ser humano que não dependa daquilo que chamei “muletas técnicas”. Descartes, antes de encontrar o fundamen-to de si próprio no ato de pensar, teve que estudar lógica, aprender gramá-tica, aprender francês etc. Isso tudo é “muleta”. Não existimos como seres naturais plenos, mas como seres que descobrem a natureza e a si próprios através de um mundo que sempre é técnico. Estamos aqui, com o álcool que tomamos, com o ansiolítico que possamos vir a necessitar, com as ci-rurgias plásticas cosméticas que venhamos a fazer. O grande problema é a qualidade deste “estar aqui”. yy

O sociólogo da UFPE Jonatas Ferreira explica as ênfases e exigências do corpo contemporâneo Fabiana Moraes

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A revista “Men’s helth” divulga o novo ponto de obsessão da anatomia do homem Valmir Costa

m 1908 a revista humorística “Careta” fazia crítica à nova vaidade masculina. Chamava o homem vai-doso de “representante desse sexo que se diz barbado e vive a depilar-se agora”. Cem anos depois, este

homem raspa não só a barba, mas outras partes do corpo como peito, abdômen e, quiçá, as pernas. Tudo para exibir o que os pêlos escondiam: os músculos. É exatamente este modelo representado pela revista “Men’s helth” (“Saúde dos homens”), lançada nos Estados Unidos em 1986. Hoje é veiculada em quarenta e oito países.

A versão brasileira foi lançada em maio de 2006. De lá para cá, pode-se perceber qual o local que a alma deste homem moderno deve ocupar: o corpo sarado. Nas 25 edições da “Men’s helth” (maio de 2006 a maio de 2008), seis deram destaque na chamada para o abdômen. “Tchau barriga”, dizia a primeira edição. Outras cinco para os músculos, quatro sobre emagrecimento, três sobre a boa forma, três sobre sexo, duas sobre a mudança de hábitos para um corpo ideal e duas para a perda do pneu, ou seja, mais uma vez a região da barriga.

Não é à toa que os homens da capa da “Men’s helth” ostentam uma barriga, ou melhor, um abdômen sarado, rasgado e cheio de gominhos. A barriga tanquinho, que se tornou símbolo da revista, é metonímica. É a parte pelo todo, pois pressupõe que se a barriga é “tanquinho” o homem é uma Brastemp. Também é metafórico porque revela a virilidade inflada – muitas vezes estimulada por anabolizantes – numa relação fálica. O pênis é o único órgão externo que se modifica por conta própria. Logo, pressupõe-se nessa repre-sentação viril na musculatura como se belos corpos são dotados de belos pênis. Uma correlação erotizada do macho.

Mas como o falo causa desconforto, é preciso demonstrá-lo de forma metafórica. Mas nem sempre o pênis cresce ao ponto de satisfazer o “dono” dele. O que não ocorre com os músculos. Estes sim, se traba-lhados com toda a maquinaria das academias, podem crescer. É um processo afirmativo e superlativo de ser homem ou mais do que os outros. Também ocorre no meio gay com aqueles que cultivam os músculos in-flados. Receberam a alcunha de “barbie”. Tudo isso por conta do slogan da boneca: “O que você vai querer ser quando crescer? Barbie!”. Enfim, o corpo marombado, mas a alma de boneca. No entanto, tal modelo viril impera no meio gay.

No final da década de 60 aos anos 70, o modelo viril era outro. Os bigodões e os pêlos corporais ditavam tal estética, também de forma ambivalente na relação da sexualidade e satirizada na música “Macho man”, do Village People. Naquela época, como agora, há um constante apelo masculino de uma nova identida-de. O homem procura um lugar que o comporte depois dos movimentos feminista e gay a partir dos anos

60. Hoje a mulher saiu da cozinha, o gay do armário, e se juntaram aos homens nas academias de musculação. Todos habitam o local da “ma-lhação”, que tem início no final dos anos 80 e perpetua-se até hoje. É a época do corpo torneado à máquina.

Alguns teóricos classificam tal comportamento como o “pós-hu-mano”. É o novo estatuto do corpo, que extrapola o orgânico através do uso da maquinaria que supervaloriza a matéria orgânica. É a era do “materialismo”, no qual o corpo é mais valorizado do que a mente. Esta é uma forma diferenciada da arquitetura do modelo do homem gre-go. Toda parte do corpo se voltava para a mente do homem racional proposto por Platão. Mas essa musculatura estava sempre associada ao “poder”, representado pelo falo como o “algo mais” se comparado à mulher castrada.

No entanto, este pênis grego era decoroso, sublime e pequeno. E deveria ter a proporção áurea entre a cabeça (razão) e o resto do corpo. Até a concepção renascentista de “David de Michelangelo” adotava tal modelo. Isto é, a “consciência”, pois ela é a função de um organismo, não de um órgão. A consciência também não é função única do cérebro. Porém, essa consciência se deslocou e se alojou no abdômen, no cen-tro do corpo masculino. Ficou mais próximo ao pênis e mais longe do cérebro, como mostra a “Men’s helth”. É um falocentrismo deslocado e circunscrito, pois Narciso acha feio o que não é tanquinho.

No meio disso, a indústria cultural lança o termo metrossexual para o homem moderno com estilo estético arrojado. Atitudes antes atribuídas às mulheres ou a “homens suspeitos”. Disse o editor da revista Airton

Seligman na edição de março: “Você, leitor, já sabe que a ‘Men’s helth’ é uma revista que funciona, que é para ser usada mesmo, manipulada, carregada na mochila, da casa para a academia, da banca para o café na padaria, para o parque... O problema é que nossos amigos folheiam a ‘Men’s’, mas não a lêem a fundo”. Quem seriam estes “amigos”? Os machos? E quem lê a revista são os “suspeitos”? Sabe-se lá!

O que se sabe é que há um estranhamento, por parte dos homens, na linguagem adotada pela revista, que segue o estilo da revista “Nova”. Como exemplo, os verbos imperativos: “Perca a barriga já!”, “Troque gorduras por músculos”, “Ganhe potência no sexo”, “Ganhe músculos na boa”, “Aumente os músculos agora!”, “Fique forte para o sexo – ganhe vigor, flexibilidade e força nos músculos que são mais exigidos na hora H. Ela vai sentir a diferença”. Funde-se e confunde-se homem e pênis numa coisa só, representado apenas pelos músculos. É como se os músculos sejam a principal ferramenta na “hora H”.

A virilidade vem da fala e dos procedimentos que homens têm em relação à mulher. O homem tem tanta auto-estima que não se acanha em dar uma cantada numa bela mulher, ainda que ele seja muito feio. Se ela o esnoba, na consciência masculina, ela é uma vadia. Isso porque vai “dar” para qualquer outro e não para ele. É sempre ela a culpada. No caso feminino, a mulher toma para si a “culpa”. Será que sou feia? Tenho celulites e estrias? Estou gorda? São neuroses que estamos acostumados a ver na revista “Nova” e que, su-postamente, atrapalham o orgasmo. A insegurança dessa castração é representada no ponto G.

Imaginário, é ele tratado como se fosse um “ponto de ônibus”, no qual a mulher embarca e chega aonde ela quiser. Os músculos encobrem as inseguranças do masculino como a preocupação da virilidade atribuída antes ao tamanho do pênis. Mas os homens sempre se safaram desse “trauma” com a piadinha “melhor um pequeno brincalhão do que um grande bobão”, ou então, “tamanho não é documento”. Dis-curso adotado até por muitas mulheres. Então, se piadinha alivia traumas, para os desprovidos de barriga tanquinho e os providos de uma baita pança uma pergunta: Do que adianta uma barriga tanquinho se a torneira é pequena?

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m meio ao tom cinzento e a toda sorte de concretos que caracterizam as grandes metrópoles, eis que se re-

vela, por meio de vários artefatos visuais, “o fator carnal”, a pele sensível e manipulável que nos reveste: seja nos ou-tdoors, nas tendências das vitrines de lojas ou nas acade-mias de ginástica em que os freqüentadores praticam suas atividades físicas aos olhos do público passante, o corpo humano deixa de ser o mero suporte físico no caos urbano para ser sinalizado enquanto objeto a ser investido de cuidados pelo seu proprietário, tornando-se seu elemento de diferenciação diante dos demais anônimos. Colaborando com esse projeto, todo um aparato tecnológico se reelabora para satisfazer as novas necessida-des e anseios criados em torno da estética corporal.

As estatísticas advindas do estudo do mercado consumidor brasileiro corroboram o crescente investimento de tecnologias sobre o corpo. Nesse contexto de aliança entre o desenvolvimento tecnológico e a melhoria estética, tem destaque o mercado de cosméticos e suas propostas de eficácia e inovação no trato corporal. Nesse contexto, destaca-se a participação da Avon, tradicional marca de produtos de higiene pessoal e em-belezamento. Sua proposta parece convergir com a lógica segundo a qual o corpo não mais precisa esperar passivamente pelos sinais do tempo ou pelo destino anatômico. Ao invés disso, surgem novas possibilidades de manipular o corpo e ultrapassar alguns limites outrora presentes em nosso trato com a pele. Ao que parece, Tal subversão não diz respeito apenas a limitações biológicas, mas também a códigos culturais que orientavam até onde nosso corpo poderia ir.

A Avon é líder mundial em venda direta de cosméticos e produtos de beleza, contando atualmente com mais de cinco milhões de revendedoras, atuando em cento e quarenta países, de acordo com o site da empre-sa. No Brasil, estima-se que exista, em média, um milhão de vendedoras dos produtos. A empresa possui cen-tro próprio de pesquisa e desenvolvimento, prezando por constantes inovações em suas linhas de produtos. Seu apelo publicitário faz forte referência ao seu diferencial de eficácia tecnológica, atrelado principalmente a investimentos em pesquisas para a utilização de novos insumos que venham manter a qualidade e confia-bilidade da marca.

Ao mesmo tempo em que se define como uma empresa reconhecidamente importante no setor farmacêu-tico de higiene e cosméticos, promulga “ser a companhia que melhor entende e satisfaz as necessidades de produtos, serviços e auto-realização das mulheres no mundo todo” (vide site da revista). Autoridade técnica e os “desejos do corpo e da alma” parecem se mesclar claramente nesse contexto. É assim que tais produtos se dispõem a satisfazer as “fantasias” das consumidoras, relacionando-se intimamente à idéia liberal de corpo individual, bem como às motivações subjetivas, corroborando a noção de uma identidade individual com ên-fase na identidade corporal. Além disso, a Avon prega um discurso de autonomia individual das mulheres ao veicular um modelo de feminilidade que diz respeito tanto à esfera econômica, por possibilitar oportunidades de trabalho e obtenção de renda, quanto à esfera afetiva. Quanto a esse último aspecto, privilegia a vaidade feminina e se oferece como um recurso que pode contribuir para a construção do corpo dos seus sonhos. Com isso, a empresa busca se adequar ao que considera o “modelo da mulher atual”, oferecendo intervenções tec-nológicas que, além de agirem no corpo das mulheres, desejam agir nas perspectivas acerca de sua subjetivi-dade: satisfação, bem-estar, amor-próprio e cuidados de si são elementos propulsores deste processo. Apesar de estarem relacionados à esfera da intimidade e da pessoalidade, tais elementos são valorizados no âmbito público: a mulher moderna se ama, se cuida, é bem-resolvida e isso deve ser refletido, seja no trabalho, seja nos relacionamentos afetivos e sociais. Esta lógica está bastante presente em nosso cotidiano. Basta lembrar-mos, por exemplo, da necessidade de nos apresentarmos bem para uma entrevista de emprego (isso envolve desde uma boa postura até um vestuário adequado, aliado ao aspecto saudável da pele). A boa apresentação corporal, nesse caso, é um requisito fundamental. Do mesmo modo, somos acostumados a tecer ou a ouvir, em nossos momentos de descontração, comentários que associam uma pele bonita a um bom momento afetivo-sexual da vida. Tudo isso é bastante incitado, de modo que perder alguns minutos do dia em frente ao espelho passando o creme rejuvenescedor ou o anti-estrias não significa meramente conseguir a pele da mo-delo da propaganda da revista, nem seguir à risca os truques de beleza da atriz global: significa, também, dar uma pausa no ritmo frenético do cotidiano e eliminar da pele todos os efeitos nocivos da atmosfera urbana: poluição, sujeira, manchas causadas pelo sol e outros elementos agressores de nosso invólucro.

A difusão do consumo de tais produtos reforça a busca constante pela preservação do vigor, da juventude e da beleza, busca esta que conta com as constantes descobertas aliadas a um discurso de avanço tecnoló-gico que parece caracterizar o contexto das práticas corporais na contemporaneidade. O desenvolvimento das técnicas, de acordo com a lógica do mercado da beleza, se faz para que a mulher dê uma “mãozinha” à natureza e consiga ressaltar aquilo que lhe é inerente: a sua beleza. Essa possibilidade é estendida a todas as consumidoras, e, mesmo para aquelas cujo efeito do tempo se mostra mais fortemente na pele de seu rosto, a Avon oferece a alternativa de suavizar os sinais da idade e reinventar sua aparência, suavizando a relação entre a “idade biológica” e a “idade do corpo”.

Para além de ser o lugar das nossas pulsões, o corpo se revela, principalmente, como instrumento para a realização de nossos desejos, expectativas e afetos. Para tanto, cosméticos são lançados de modo a se adequar a diversos modos de apresentação corporal, que variam desde a faixa etária da consumidora até o seu tipo de pele. Assim, os produtos Avon alimentam o sonho de reinventar e de reelaborar os corpos, num processo em que a supremacia técnica com seu respaldo tecnológico se dispõe a realizar as fantasias afetivas das consumi-doras, produzindo e administrando emoções.

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Avon nos ensina que é preciso agir antes, contra e nunca a favor das demandas do tempoRoberta Melo

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m 1516, em pleno auge das grandes navegações atlân-ticas, uma ilha surge na imaginação ocidental. Não

se trata de uma dessas ilhas do Caribe que Colombo tinha percorrido com ambiciosa perplexidade mais de vinte anos antes, sem saber ainda que estava navegando pela quarta região do mundo. Também não era uma dessas ilhas que seriam o palco das conturbadas experiências iniciais de um incipiente domínio espanhol que em breve se estenderia por grande parte do continente. Essa outra ilha, que aparece no horizonte em 1516, era quiçá mais poderosa ainda, porque era totalmente imaginária, e não estava em nenhum lugar. Chamava-se “Utopia”.

“Utopia”, a obra de Thomas More publicada naquele ano, descrevia uma sociedade ideal, livre do estigma da pro-priedade privada, e caracterizada pela tolerância religiosa e a ausência de tiranias e despotismos. “Utopia” era um espelho invertido da sociedade inglesa, que mostrava aqui-lo que não existia ou devia ser corrigido, mas era também um sonho de um humanismo que instalava no futuro e nas terras distantes a possibilidade de uma convivência harmo-niosa que na Europa da época parecia remota ou impossí-vel. O espaço propício para essa hipotética convivência era uma ilha, um lugar que já tinha sua presença estabelecida no imaginário ocidental desde a tradição clássica como ló-cus seguro, fechado e portanto adequado para realizar uma felicidade coletiva que garantisse o fim da violência e da exclusão como padrões de organização social.

De uma ou de outra forma, as experimentações utópicas aparecem recorrentemente atreladas à idéia da ilha, enten-dida esta como território delimitado e enclausurado. Das cidades ideais pacientemente vislumbradas pelos renascen-tistas italianos, baseadas nos princípios de sistematização e de abstração que criam traçados urbanos simétricos e hie-rarquizados, até os falanstérios de Fourier e as comunidades socialistas do século XIX, estabelecer fronteiras naturais ou artificiais parece ser condição indispensável para situar um projeto capaz de apontar para outro tipo de vida. Mas essa condição libertária e reformista da ilha como espaço con-sagrado para a transformação social vai adquirindo com o tempo outros sentidos. Na contemporaneidade latino-ame-ricana, a ilha passa a servir como modelo de refúgio e de auto-exclusão diante das incertezas das metrópoles e da ins-tabilidade crescente originada pela marginalização de capas cada vez mais numerosas da população. Este fenômeno se multiplica pelas grandes cidades do continente, mas talvez um dos exemplos mais claros desta mais recente configu-ração esteja representado pelos condomínios fechados, os chamados countries, que se multiplicam vertiginosamente nos anos 90 na periferia da cidade de Buenos Aires.

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Na década do neoliberalismo triunfante e das privatizações desenfreadas, a especulação imobiliária promove uma fuga rumo a uma conjetural zona rural sub-urbana situada a algu-mas dezenas de quilômetros do centro da cidade Mas não se trata de uma ode à vida retirada, nem muito menos de um tardio revival desse desejo de voltar à natureza da contracultura dos anos sessenta e setenta. Também não se trata propriamen-te de uma zona rural, já que estão situados na ampla franja dos arrabaldes que rodeiam à urbe e se confundem com ela. O auge dos countries redefine os usos da periferia, e em particular a periferia das zonas norte e oeste, criando áreas residenciais exclusivas de acesso restrito e vigiado, hipoteticamente livres do delito que assola o mundo exterior, e que se complementam com outras micro-ilhas destinadas ao consumo desses novos moradores, como shoppings, hipermercados, cinemas e hotéis de luxo.

O florescimento desses arquipélagos privatizados, cuja con-traparte urbana são as torres de alto padrão e a transformação paulatina de certos bairros, como Puerto Madero ou Palermo, em guetos cada vez mais valorizados, diz respeito não apenas a novas formas de ocupação do subúrbio, mas também às bru-tais transformações sofridas pela sociedade argentina durante essa década de noventa, que desembocariam na histórica crise de 2001-2002. Reflete também uma violenta ressignificação do espaço público, conseqüência dessas políticas devastadoras do tecido social. Se a cidade de Buenos Aires se firma nas primeiras décadas do século XX, a partir da presença de grandes fluxos migratórios, como território cosmopolita por onde se transita livremente, espelhando na geografia uma mobilidade social possível e crescente, no final desse século a lógica da privatiza-ção opera em sentido inverso, fragmentando, homogeneizan-do, excluindo e colocando barreiras intransponíveis. Diante da percepção da cidade como espaço caótico e imprevisível, estas ilhas de clausura pretendem oferecer no plano simbólico a se-gurança perdida. Mas, amparadas por uma lógica do assédio (o outro visto sempre como ameaça), acabam desagregando ainda mais a noção de cidadania, e tornando ainda mais remota a possibilidade de uma convivência menos tensa. Se a supos-ta e tão desejada liberdade interior prometida pelos countries acaba submetendo aos seus próprios moradores às regras do panóptico e da vigilância disciplinar, a proliferação dessas ur-banizações supõe, no contexto mais amplo, um processo que alguns autores chamam de “refeudalização”, de conseqüências nefastas para o conjunto da sociedade. Reverter essa situação hoje parece improvável, mas formular essa intenção quiçá pos-sa servir pelo menos para alimentar uma nova pulsão utópica, que pretenda reconstruir os elos perdidos, e já não pense as tensões sociais como uma mera e inesgotável luta entre vitimas e vitimários.

Dicen que la distancia es el olvido

Os guetos supervalorizados de Buenos Aires criam curiosa utopia

Alfredo Cordiviola

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