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1 PERSPECTIVA DE ANÁLISE DO ACESSO À LEITURA PARA ALÉM DOS MUROS ESCOLARES Josilene Conceição 1 Telma Ferraz Leal 2 A maior riqueza do homem É a sua incompletude. Nesse ponto sou abastado. Palavras que me aceitam como sou eu não aceito. Não aguento ser um sujeito que apenas abre portas, Que puxa válvulas, que olha o relógio, Que compra pão às seis horas da tarde, Que vai lá fora, Que aponta lápis. Que vê a uva, etc. etc. Perdoai Mas eu preciso ser outros. Eu penso renovar o homem usando borboletas. (Manoel de Barros, poeta) Resumo: O tema relativo à formação de leitor em espaços não escolares ainda é pouco discutido no Brasil, apesar de ser fora desse ambiente onde vivenciamos nossas primeiras experiências de leitura de mundo antes mesmo de lermos as palavras, como observou Paulo Freire (2003). Essa pesquisa se configura como um estudo de caso do Livros Andantes, projeto de fomento à leitura realizado em comunidades rurais, em espaços não escolares. 1 Graduanda em Pedagogia – UFPE. 2 Professora Doutora, do Departamento de Métodos e Técnicas do Ensino – CE - UFPE.

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1

PERSPECTIVA DE ANÁLISE DO ACESSO À LEITURA PARA ALÉM DOS

MUROS ESCOLARES

Josilene Conceição1

Telma Ferraz Leal2

A maior riqueza do homem

É a sua incompletude.

Nesse ponto sou abastado.

Palavras que me aceitam como sou – eu não aceito.

Não aguento ser um sujeito que apenas abre portas,

Que puxa válvulas, que olha o relógio,

Que compra pão às seis horas da tarde,

Que vai lá fora,

Que aponta lápis.

Que vê a uva, etc. etc.

Perdoai

Mas eu preciso ser outros.

Eu penso renovar o homem usando borboletas.

(Manoel de Barros, poeta)

Resumo: O tema relativo à formação de leitor em espaços não escolares ainda

é pouco discutido no Brasil, apesar de ser fora desse ambiente onde

vivenciamos nossas primeiras experiências de leitura de mundo antes mesmo

de lermos as palavras, como observou Paulo Freire (2003). Essa pesquisa se

configura como um estudo de caso do Livros Andantes, projeto de fomento à

leitura realizado em comunidades rurais, em espaços não escolares.

1 Graduanda em Pedagogia – UFPE. 2 Professora Doutora, do Departamento de Métodos e Técnicas do Ensino – CE - UFPE.

2

Utilizamos, nesse estudo, a metodologia qualitativa, com foco na observação

de campo, entrevistas semiestruturadas e análise documental. Para tanto,

consideramos as experiências de leitura de textos literários dos partícipes do

projeto, buscando investigar efeitos dessa experiência de incentivo à leitura em

uma das quatro comunidades onde o projeto foi desenvolvido. A partir das

análises concluímos que o projeto desperta pertencimento e o desejo de “ler” o

mundo, bem como a necessidade de políticas públicas de Estado específicas

para essa população invisibilizada.

Palavras Chaves: Leitura; Letramento; Biblioteca; Formação de leitor;

Comunidade rural.

1. Introdução

Nesta pesquisa analisamos experiências de leitura de textos literários no

âmbito do projeto Livros Andantes, buscando investigar se houve alguma

mudança na comunidade que tenha sido influenciada pelo projeto “Livros

Andantes”. Analisamos se o projeto contribuiu socialmente para a comunidade

e examinamos se o mesmo incentivou a formação de leitores.

A pesquisa aconteceu na cidade de Amaraji, especificamente na zona

rural, onde o projeto é desenvolvido. O Livros Andantes é um projeto aprovado

pelo Funcultura (Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura), com orçamento

projetado para seis meses de duração, planejado com a seguinte estrutura: um

mês de pré-produção/preparação; quatro meses de vivência (desenvolvimento

do projeto) e um mês de pós-produção (relatórios e prestação de contas).

Todo o acervo utilizado no projeto é doado à comunidade onde o mesmo

é vivenciado, formando uma pequena biblioteca comunitária, ou absorvido pela

biblioteca da escola da comunidade, que toma para si a responsabilidade de

preservar as obras e dar continuidade aos empréstimos dos livros.

Pode-se considerar a análise do projeto Livros Andantes importante,

pois o mesmo tem como intenção a reflexão sobre estratégias de inserção

social, cultural e educativa de grupos sociais do campo, tradicionalmente

colocados à margem de variadas práticas de letramento da sociedade, a

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exemplo de práticas onde circulam os textos literários. A tais grupos são

negados bens culturais, que podem ser disponibilizados por meio de políticas

como a desenvolvida pelo projeto em análise.

O estudo foi realizado por meio de uma pesquisa qualitativa, que

envolve observações e entrevistas, conforme está descrito a seguir.

2. Metodologia

A pesquisa foi desenvolvida na cidade de Amaraji, especificamente na

área rural. O município está situado na região da Mata Sul, em uma das áreas

mais pobres do Estado de Pernambuco. Tem cerca de 20 mil habitantes,

destes, sete mil moradores encontram-se na área rural.

A investigação empírica foi desenvolvida por meio de procedimentos

qualitativos vivenciados em atividades de visitas às comunidades

contempladas com o projeto, com a finalidade de compreender os fenômenos

segundo a perspectiva dos próprios participantes do caso em estudo, sem fugir

da realidade dos mesmos. Sobre isso, GODOY (1995, p,21) pondera que:

Para tanto, o pesquisador vai a campo buscando “captar" o fenômeno em estudo a partir da perspectiva das pessoas nele envolvidas, considerando todos os pontos de vista relevantes.

Dessa forma, optou-se por esse procedimento metodológico, tendo em

vista que ele possibilita adentrar o espaço social onde se desenvolve a

pesquisa para obter informações, coletar o maior número possível de dados e

documentos que podem auxiliar a obtenção dos resultados a partir dos

diálogos com os participantes e dos materiais coletados.

Um dos instrumentos utilizados foi a observação de campo. Com o

objetivo de ouvir os sujeitos, colher informações e através de suas falas,

mapear o funcionamento dos acervos literários do projeto Livros Andantes;

investigar a relevância do projeto na comunidade a partir dos sentidos que os

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sujeitos atribuem ao mesmo. Após as observações de campo foram elaborados

relatórios com base em anotações feitas durante as visitas.

Foram realizadas 04 visitas de observação em dias úteis e domingos,

das 13h às 17h, com duração de quatro horas cada, somando carga horária de

16 horas. Dos quatro povoados que receberam o projeto, foi possível a

observação mais sistemática em dois povoados: o de Estivas onde fica uma

das escolas que recebeu o acervo literário, integrando-o à sua biblioteca, e o

povoado de Estivinhas, onde se localiza uma biblioteca comunitária que

recebeu o acervo do projeto. Também foram realizadas visitas às casas dos

respondentes dessa pesquisa.

Pudemos observar que a maioria dos moradores dessas comunidades

têm em comum uma certa organização do cotidiano. Eles levantam de

madrugada. Às 06h já estão em atividade laboral no campo, às 11h, almoçam.

De segunda à sexta trabalham na roça ou no canavial, pois a cultura da cana–

de– açúcar ainda é muito forte na região. Aos sábados vão à feira e nos dias

de domingo participam de reunião nas associações dos pequenos agricultores,

do engenho, ou realizam alguma atividade na sua própria roça e participam de

atividades da igreja (a maioria é evangélico), à noite.

As observações também foram realizadas com o objetivo de colher

dados a respeito das memórias dos participantes sobre as ações que o projeto

realizou. Aplicamos entrevistas individuais semiestruturadas, por se tratar de

uma abordagem mais aberta, que possibilita elaborar outras questões além das

que foram previamente definidas. Nessa abordagem, de acordo com Triviños

(1987, p.146):

Podemos entender como entrevista semi-estruturada, em geral, aquela que parte de certos questionamentos básicos, apoiados em teorias e hipóteses que interessam à pesquisa, e que, em seguida, oferecem amplo campo de interrogativas, fruto de novas hipóteses que vão surgindo à medida que se recebem as respostas do informante. Desta maneira, o informante seguindo espontaneamente a linha de seu pensamento e de suas experiências dentro do foco principal colocado pelo investigador, começa a participar na elaboração do conteúdo da pesquisa.

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As entrevistas gravadas em áudio e vídeo foram transcritas para as análises.

Nesse processo, o objetivo inicialmente foi de entrevistar 18 pessoas entre

participantes do projeto e pessoas da comunidade. No entanto, houve uma

certa dificuldade de encontrar algumas pessoas, por motivos diversos, como o

falecimento de uma, distância entre as comunidades, dificuldades de

comunicação, pois a maioria passa o dia trabalhando no campo em ambiente

rural, onde o celular não funciona.

Entrevistamos um total de 17 pessoas, entre colaboradores do projeto e

pessoas participantes dos eventos de leitura. Faremos aqui uma breve

descrição, iniciando com a primeira entrevistada: a idealizadora do projeto,

Clara Angélica. Ela nasceu na cidade de Amaraji, reside na capital Recife - PE.

É Mestre em Gestão Pública pela UFPE, atua como diretora de produção na

TV Universitária – Universidade Federal de Pernambuco. Ela é a pessoa

responsável pela coordenação geral do projeto L.A.

A segunda entrevistada foi a ex-secretária de educação (à época da

implantação do projeto), Rosana Queiroz. Ela possui graduação em letras, é

pós-graduada em psicopedagogia e coordenação pedagógica. Atua como

coordenadora pedagógica e como professora de Língua Portuguesa em duas

escolas de Amaraji.

Em seguida, entrevistamos 04 mediadores de leitura do projeto: José

Gonzaga Lopes, coordenador local e mediador de leitura. Ele mora na cidade,

tem 58 anos, formação em pedagogia, é professor na área rural em sala

multisseriada. Maria Helena Lopes, 49 anos, mora na cidade de Amaraji, é

formada em Pedagogia, tem formação em mediação de leitura, atuou em

escolas da área rural e atualmente está aposentada; Manoel Antônio da Silva

tem 45 anos, mora no Engenho Refrigério, tem formação em psicopedagogia,

atualmente está como coordenador das escolas da área rural; Marta Maria

Lima da Silva, 32 anos, reside na área rural no Sítio São José Duas Pedras.

Ela tem formação em pedagogia com pós-graduação em psicopedagogia. Atua

na área rural, mas atualmente está desempregada.

Entre as pessoas da comunidade que foram atendidas pelo projeto,

conversamos com Sandra, 27 anos, que mora na cidade, tem formação em

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Pedagogia. Enquanto professora da Escola Municipal Vital Brasil, da

comunidade Engenho Raiz de Dentro, ela participou junto com seus alunos e

ficou responsável pelo acervo do Livros Andantes na escola; Joseni Cosme, 53

anos, estudou até a 7ª série, mora no Engenho Estivinhas, no Sítio Bondosa

Terra. Trabalha na lavoura e comercializa os produtos da terra na feira. Joseni

cedeu espaço em seu sítio duas vezes para atividades do projeto e ficou

responsável pelo acervo na comunidade, junto com sua esposa Ângela, que

logo tornou-se voluntária. Ela é formada em pedagogia, dona de casa e

professora de reforço na comunidade. É a pessoa que cuida do acervo literário

do projeto, numa pequenina biblioteca de sapê.

Entrevistamos ainda duas meninas, Sabrina e Gabrielly, ambas de 9

anos, três meninos: Jemerson, 13 anos, Gabriel e Alexsandro, 15 anos. Todos

estudantes; três adultos: Maria de Lourdes, 58 anos, agricultora e dona de

casa, não é alfabetizada; Edivane, 32, ela diz que sabe ler um pouco, mas não

entende muito bem o que lê. É agricultora e dona de casa. Por fim, Heleno, 41

anos, é agricultor, estudou até a 4ª série, é o dono de um dos burrinhos, que

atua no projeto como biblioteca jumento.

Os entrevistados responderam questões referentes à participação

específica no projeto. As questões foram diferenciadas, de acordo com a

atuação e envolvimento dos entrevistados, conforme pode ser verificado nos

anexos.

Considerando a necessidade de avançar mais na pesquisa,

ponderamos ser oportuno analisar documentos pertinentes ao funcionamento

do projeto e aos eventos de leitura. Pois, assim como GODOY, acreditamos

que “podem ser considerados uma fonte natural de informações” (1995, p. 21).

Além disso, a pesquisa qualitativa permite a flexibilização em sua dinâmica.

Analisamos documentos como: planejamento, atas, relatórios escritos,

imagens, vídeos, listas de empréstimos.

3. Fundamentos teóricos do estudo

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Para melhor explicitar os pressupostos adotados nesta pesquisa,

faremos, a seguir, algumas reflexões sobre conceitos fundantes do Projeto. No

primeiro tópico traremos algumas abordagens teóricas que explicam o

processo de leitura e seus diferentes aspectos, a partir de teóricos que tratam

do tema. O segundo tópico discorre sobre mediação de leitura e a importância

do mediador na formação do leitor. Em seguida, no terceiro tópico, a formação

do leitor literário. Por fim, no quarto tópico, bibliotecas e espaços de leitura. São

enunciadas aqui a origem da biblioteca e seus significados a partir do

dicionário, do MEC (Ministério da Educação), bem como os tipos de bibliotecas,

incluindo a biblioteca comunitária e sua importância na formação do leitor.

3.1. A Leitura

Pode-se considerar a leitura como atividade que tem funções diversas.

Por meio da leitura é possível ter acesso a informações específicas, refletir

sobre a sociedade, a humanidade, a natureza, auto interrogar-se, fugir da

realidade, divertir-se, apropriar-se de conhecimentos, viajar, criar personagens,

elaborar hipóteses sobre determinadas coisas ou lugares, aprimorar a

linguagem tanto oral quanto escrita. A leitura, para Prado (1999), proporciona o

poder de compreender o mundo e posicionar-se nele. Para esse autor, “A

leitura dá poder porque é um meio para compreender o mundo e essa

compreensão é uma condição de cidadania — além do que, lendo, podemos

nos tornar, cada vez mais, também cidadãos da cultura escrita”. Nesse sentido,

a leitura tem o poder de transformar pessoas, de agir sobre elas.

Porém, para tornar-se leitor, é preciso ler. E ler se aprende lendo, assim

como se aprende a escrever escrevendo, a falar falando.

A primeira leitura do sujeito se estabelece na relação entre o indivíduo e

o seu mundo, na interação social, mediada primeiramente pela convivência

com a família e pessoas que participam de atividades do âmbito privado.

Segundo Freire (1989), esse primeiro contato com a leitura dá-se através da

vivência com o mundo que nos rodeia. “A leitura do mundo precede a leitura da

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palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade

da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente”

(FREIRE,1989). Antes mesmo de se começar a frequentar a escola, antes de

se aprender o sistema notacional, as pessoas aprendem a fazer a leitura do

mundo que vive, do que toca as pessoas, a exemplo dos sons, cheiros,

sabores e experiências vivenciadas nas interações sociais. Dessa forma, o ato

de ler se inicia ainda na primeira infância, quando é percebido o pertencimento

ao mundo e interação com o ambiente onde cada um está inserido.

Mesmo considerando que há essas diferentes leituras, nesta pesquisa, o

foco recai sobre a leitura em stricto senso: a leitura da palavra escrita. Desse

modo, é fundamental que explicitemos a concepção de leitura adotada aqui.

Sabe-se que existem diferentes perspectivas teóricas que explicam o

processo da leitura, como a teoria da decodificação, a cognitiva, a interacional

e a discursiva.

Na teoria da decodificação, a leitura é entendida como uma mera

atividade de identificação dos códigos linguísticos e de informações explícitas

no texto. De acordo com Coracini (2002), essa concepção aponta o texto como

fonte única do sentido e, nessa direção, ler consiste em uma atividade em que

o leitor faz decifração do código linguístico e relaciona a ele o significado.

Dessa forma, o foco da leitura é o texto e não o leitor.

A abordagem cognitiva é contrária à vertente da decodificação, pois

defende que o processo de leitura é uma tarefa cognitiva que tem como

prioridade a ação mental do leitor. Tal concepção defende que:

O bom leitor seria aquele que, diante dos dados do texto, fosse capaz de acionar o que Rumelhart chama de esquemas, verdadeiros pacotes de conhecimentos estruturados, acompanhados de instruções para seu uso. (CORACINI, 2002, p.14).

Para a concepção cognitiva, ler é uma atividade de compreensão, onde

o leitor lança mão de seus esquemas mentais para apreender as ideias do

texto. Assim, o leitor é um sujeito ativo nesse processo porque antecipa

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conteúdos do texto, compara hipóteses, ativa a bagagem de conhecimento de

mundo, faz inferências, chega a conclusões.

Outra teoria referente ao processo de leitura sinaliza que a construção

do sentido do texto vai além dos conhecimentos linguísticos do leitor e, sendo

assim, são necessários outros conhecimentos que possam interagir na busca

da significação do texto. Trata-se da concepção interacionista, que “não centra

exclusivamente no texto nem no leitor, embora atribua grande importância ao

uso que este faz dos seus conhecimentos prévios para a compreensão do

texto” (Solé,1998, p24). Dessa forma, o processo de construção do significado

do texto demanda tanto conhecimentos linguísticos, quanto outros

conhecimentos do leitor. E, ainda, acontece a interação entre leitor e autor que

se relacionam na busca dos sentidos do texto.

Ainda é possível verificar outra forma de conceber a leitura, a partir da

perspectiva discursiva. Neste âmbito, a base está alicerçada em conceitos

sociológicos e antropológicos, apontando que na busca pelos sentidos do texto

são estabelecidos diálogos, encontros, confrontos que desencadeiam nas

significações ou ressignificações do texto. Nesse sentido, a leitura é:

Uma ação, um trabalho do leitor no texto. Que sem dúvida envolve a

recuperação da lógica posta pelo seu autor, da história contada, do

argumento alinhavado, da ideia defendida, mas que não para aí. O

leitor lê mais do que isso. Lê também o modo pelo qual essas ideias

se produziram e aí lê o texto na sua relação com o autor, com a

história. (GUEDES, 2006, p. 74).

Em tal concepção, o leitor explora o discurso e o contexto em que a

produção do texto foi realizada. É um leitor crítico que interroga o texto e

explora os múltiplos sentidos dele.

É importante ressaltar que cada abordagem teórica serviu de base para

as práticas educacionais de leitura ao longo da história. Nesta pesquisa,

estamos assumindo a concepção de que o processo de leitura não é natural

tampouco simples, e sim, algo construído pelo indivíduo. É necessário destacar

que o indivíduo não constrói sozinho, há mediadores que participam dessa

construção.

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3.2 Mediação de Leitura

A leitura é uma atividade que serve tanto para deleitar, distrair, quanto

para instruir, fazer refletir, auto interrogar-se. Mas, acima de tudo, é interação.

Ao ler, o indivíduo interage com o autor do texto, mas, também, com as

pessoas à sua volta. E, muitas vezes, há, na história pessoal, presença de

pessoas que mediaram o contato com textos, como os pais, amigos, membros

da igreja, professores. Os mediadores que estão presentes em espaços

destinados à formação de leitores são foco dessa pesquisa.

Alguns programas de fomento à leitura realizam-se em espaços sociais

diversos como bibliotecas, igrejas, escolas, praças, entre outros. Em cada um

desses espaços ocorrem interações e existem diferentes mediadores de leitura.

O mediador de leitura é aquele que gosta de ler e seduz o outro a gostar

também de ler, ele busca despertar no outro o prazer pelo livro através da

leitura, da disponibilização do livro. É aquele que lê, discute sobre a leitura de

um livro de forma a facilitar a compreensão do que foi lido, atuando entre o

leitor e o livro, compartilha trocas e experiências a ponto de inserir o outro no

mundo da leitura. “A mediação de leitura, entendida como ato de ler para o

outro de forma a despertar seu gosto pela narrativa, é uma estratégia chave na

formação de novos leitores” (RUSSO,2013).

Como foi dito, a iniciação e a vivência da leitura ocorrem em vários

espaços sociais extraescolares, como as famílias, as bibliotecas, as igrejas, os

clubes. Porém, é na escola que o indivíduo é conduzido de forma mais

sistemática na cultura da esfera literária. Tal processo se dá por intermédio da

mediação entre professor, texto, autor, aluno. Neste contexto, a função do

professor mediador de leitura é mais do que ensinar o aluno, a aluna, a

decodificar os símbolos gráficos das palavras escritas, mas antes de tudo

seduzir, conquistar esse ouvinte a despertar o interesse pelo livro, e pela

leitura, e dar sentido à leitura no contexto de desenvolvimento de imaginação e

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de sentidos, para que ela se configure como um processo natural para a

criança aprendiz.

A criança participa do processo de leitura desde a idade mais tenra, a

partir do momento em que o mundo se apresenta em volta dela. Os sons, a

música, os primeiros livros infantis presenteados pelos pais e o manuseio dos

mesmos, a escuta das contações de histórias, os cheiros, os nomes das

pessoas e das coisas, num contexto visual e sensorial permitem à criança

agregar conhecimentos, desenvolver os sentidos e realizar essa primeira leitura

- a leitura do seu mundo. Paulo Freire (1989), ao descrever a sua experiência

de leitura, oferece o relato:

Ao ir escrevendo este texto, ia "tomando distância” dos diferentes momentos em que o ato de ler se veio dando na minha experiência existencial. Primeiro, a “leitura” do mundo, do pequeno mundo em que me movia. (FREIRE,1989).

No contexto da contação de histórias, o canto de ninar, as leituras dos

livros que os pais leem para os bebês, pais e familiares são configurados como

os primeiros mediadores de leitura na vida da criança, sendo condutores do

despertar de emoções. Dessa forma, a introdução da criança no mundo da

leitura acontece fora dos muros escolares, antes mesmo dela iniciar o processo

de escolarização. Na escola, durante o processo de alfabetização, o professor

é o agente mediador da leitura que se põe entre o aluno e o texto.

Outros mediadores de leitura que podem ser identificados são aqueles

contadores de histórias que atuam como ativistas sociais, que disponibilizam

seu tempo para dedicarem-se a ações de mediações de leitura em hospitais,

nas ruas ou em comunidades, levando o acesso aos livros na busca de formar

novos leitores e estimular o interesse pela leitura em eventos de letramentos

fora dos muros escolares.

Para os eventos de letramento, os agentes mediadores também podem

utilizar planejamentos que contemplem estratégias de forma pensada,

elaborada e sistematizada para vivenciar a leitura e a escrita, a contação de

histórias, leitura oralizada, manuseio do livro, a exploração do mesmo como um

todo, capa, imagens, palavras e o enredo. Dessa forma, os mediadores têm a

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oportunidade de compartilhar significados e ressignificar outros, juntamente

com a pessoa ou o grupo de pessoas com as quais estiverem envolvidos no

processo de mediação. Nessa perspectiva, Street faz seguinte afirmativa:

Nós trazemos para um evento de letramento conceitos, modelos sociais, relativos ao que é a natureza do evento e o que o faz funcionar e dar-lhe significado (Street, 2013 apud, 1988).

Dessa forma, a atuação de agentes mediadores extrapola o espaço

escolar, configurando-se como modo de interação em diferentes esferas

sociais. Em cada um, sentidos específicos e modos de relacionar-se são

produzidos.

Nessa abordagem, Street (2013) relata que:

Embora eu tenha posteriormente elaborado o termo para considerar tanto os “eventos”, no sentido de Heath (op. cit.), como os modelos sociais de letramento que os participantes trazem para esses eventos e que lhes conferem sentido (STREET, 2013, apud 1988).

Sobre o termo letramentos sociais, Street pondera:

O argumento sobre letramentos sociais (STREET,2013 apud, 2001,) sugere que engajar-se com o letramento é sempre um ato social, desde a sua gênese (STREET, 2 013, P.54).

Na concepção de mediação de leitura numa perspectiva do letramento

social, o mediador de leitura possibilita a aproximação de indivíduos com o livro

e a leitura, sem abrir mão de relacionar a leitura e a escrita, as formas de fazer

e entender o enredo a partir do contexto sociocultural onde o evento acontece,

pois suscita emoções e facilita o acesso à literatura. Desse modo, os

mediadores são agentes fundamentais na formação de leitores, tema tratado a

seguir.

3.3. Formação do leitor literário

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O mediador de leitura tem papel importante na formação do leitor,

despertando o desejo e a vontade de ler o mundo. Mas para que isso ocorra é

necessário que o mediador tenha a noção da importância e da riqueza dos

textos literários na formação de leitores.

Para que se possa conhecer a importância dos textos literários para a

formação de leitores é importante que, inicialmente, identifiquemos o que vem

a ser literatura e o que configura um texto literário. No entanto definir o que é

literatura é tão difícil quanto identificar o conceito de leitura, pois

É uma pergunta complicada justamente porque tem várias respostas. E não se trata de respostas que vão se aproximando cada vez mais de uma grande verdade da verdade-verdadeira. Cada tempo e, dentro de cada tempo, cada grupo social tem sua resposta, sua definição (LAJOLO, 2001, p.25)

A leitura literária é alvo de questionamentos por não ser considerada

necessária ou objetiva. Nesse sentido é importante afirmar que:

A literatura é mais que diversão, entretenimento. Isso porque, pela lógica da produtividade moderna o tempo do entretenimento é um tempo de consumo ligeiro, um tempo em que hipoteticamente ficamos sem responsabilidades. Tempo de distração, evasão e gozo imediato. O texto e a leitura literária também se supõem irresponsáveis, mas não no sentido do esquecimento de si e dos problemas da vida para poder continuar vivendo-os naturalmente, mas no sentido de pensar para nada, pensar para ser, ler para ser, inventar para viver, ler para inventar, num movimento contínuo, sempre a estimular e a incomodar. (BRITO, 2012)

O texto literário não é somente diversão ou entretenimento, pois ele

pode ajudar no desenvolvimento pessoal do leitor, já que permite a reflexão e

questionamentos. Assim, é preciso que nos debrucemos sobre tal tema, para

que possamos refletir sobre as políticas públicas de formação de leitores, tais

como as que criam espaços de leitura. Sobre tal tema discorreremos a seguir.

4. Bibliotecas e espaços de leitura

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Historicamente, a palavra biblioteca tem sua origem nos termos gregos

biblíon (livro) e theka (caixa), que significam o móvel ou lugar onde se guardam

livros. No antigo Egito existiu desde o século IV a.C., a mais célebre e

grandiosa biblioteca da Antiguidade, a de Alexandria, que tinha como ambição

reunir em um só lugar todo o conhecimento humano. Seu acervo era

constituído de rolos de papiro manuscritos – aproximadamente 60 mil,

contendo literatura grega, egípcia, assíria e babilônica (Pimentel, 2007, p. 22).

No dicionário Larousse (2001, p.115), a palavra biblioteca é definida

como coleção de livros classificados em determinada ordem; Edifício ou

aposento onde se guardam livros. Nessas definições, a biblioteca configura-se

como espaço físico, organizado ordenadamente para guardar livros para

estudo e consultas, enciclopédias, literaturas de gêneros diversos, trabalhos

científicos dicionários, etc.

De acordo com o MEC (Ministério da Educação), considera-se como

biblioteca toda unidade de informação que disponha de coleção organizada de

livros, publicações periódicas, material gráfico ou audiovisual, assim como

pessoal para promover e orientar o usuário quanto à utilização desse acervo,

de maneira a atender às suas necessidades.

Desse modo, o conceito de biblioteca vem se transformando e se

modificando por meio da própria história das bibliotecas e atuações delas. Para

Fonseca (1992, p.50), um novo conceito “é o de biblioteca menos como

coleção de livros e outros documentos, devidamente classificados e

catalogados do que como assembleia de usuários da informação”. Em outras

palavras, as bibliotecas não devem ser vistas como simples depósitos de livros

e documentos, elas devem ter o foco voltado para as pessoas e para o uso que

elas fazem da informação, com atuação de forma mais dinâmica possível.

Dessa forma, a biblioteca tem um sentido socialmente mais amplo.

Portanto, falar em biblioteca é falar de um assunto amplo. A biblioteca

tem várias possibilidades de uso, desde um espaço para leitura quanto para o

entretenimento, diálogo, formação e informação, trocas e aprendizagens, e,

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sobretudo, um espaço de prazer da leitura. Outrora, a biblioteca era concebida

como um espaço frio, estático, silencioso. Hoje, sob uma nova ótica, a

biblioteca é vista como um espaço compartilhado com a sociedade.

Existem tipos diferentes de bibliotecas: escolares, públicas (estaduais ou

municipais), bibliotecas comunitárias, acervos particulares além de espaços de

leitura que também podem se configurar como bibliotecas.

As bibliotecas escolares são em grande número na sociedade atual.

Segundo a Lei Nº 12.244 de 24 de maio de 2010, “Art. 1o - As instituições de

ensino públicas e privadas de todos os sistemas de ensino do País contarão

com bibliotecas, nos termos desta Lei”. Ainda no Art. 2o é dito que “Para os

fins desta Lei, considera-se biblioteca escolar a coleção de livros, materiais

videográficos e documentos registrados em qualquer suporte destinados a

consulta, pesquisa, estudo ou leitura”.

Dessa forma, a inclusão de bibliotecas nas escolas brasileiras implica

também a formação de pessoas preparadas para atuar na biblioteca como

mediadoras, além de serem pessoas que organizam, catalogam os livros,

orientam os visitantes como encontrar os títulos desejados.

No entanto, nas escolas nem sempre a biblioteca é um espaço

democrático. Existem regras, dias e horário para que o aluno possa visitar a

biblioteca, e muitas vezes guiada pelo professor, principalmente se o aluno

ainda não domina as técnicas de leitura.

Em bibliotecas públicas (estaduais e municipais), o bibliotecário nem

sempre atua no processo de mediação de leitura, aquela que falamos que se

põe entre o livro e o leitor, que busca provocar sensações, despertar emoções.

Ele é o bibliotecário responsável pelo acervo e pela biblioteca de modo geral.

Porém, existem ainda as bibliotecas comunitárias, criadas e gerenciadas

por pessoas da sociedade civil independente de políticas públicas

governamentais. Essas bibliotecas têm em si características diferentes de

outros tipos de biblioteca já citados aqui. Da implantação à organização do

acervo, gerenciamento e participação da comunidade nas ações e deliberações

da biblioteca.

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Sob a ótica de Guedes (2011, p.1)

As bibliotecas comunitárias são ambientes físicos criados e mantidos por iniciativa das comunidades civis, geralmente sem a intervenção do poder público. Estes centros comunitários possuem um acervo bibliográfico multidisciplinar, abarcando diversas tipologias documentais. Suas coleções, por vezes, possuem organização improvisada ou intuitiva, pois o objetivo principal desses espaços é ampliar o acesso da comunidade à informação (GUEDES, 2011).

A biblioteca comunitária é um espaço vivo de movimento de pessoas, de

ações que proporcionam a troca de ideias, diálogos, tem a missão de

divulgação e fruição do livro e da leitura, contribui para a redução da

desigualdade de acesso a bens culturais como o livro. Várias ações podem ser

desenvolvidas, como eventos de leitura, contação de histórias, reforço escolar,

ações culturais que fomentem a interação da comunidade com a gestão da

biblioteca de forma horizontalizada, onde todos têm vez e voz. Dessa forma,

algumas bibliotecas comunitárias têm dado importante contribuição na

comunidade onde ela está inserida, permite a formação de novos leitores,

através de ações que envolvem a comunidade, fazendo o papel de

aproximação de crianças, jovens e adultos com a leitura e com o livro literário.

5. Análise dos dados

Essa pesquisa propôs a análise do projeto Livros Andantes. Buscou

investigar, a partir das falas dos entrevistados, efeitos dessa experiência, se

houve alguma mudança na comunidade que tenha sido influenciada pelo

projeto; analisar se o projeto contribuiu socialmente para a comunidade e

examinar se o projeto incentivou a formação de leitores.

5.1 Caracterização do projeto Livros Andantes

17

Para saber como começou o projeto, entrevistamos a mentora do

projeto, Clara Angélica. Ela nos falou que sua preocupação quanto a escassez

de políticas públicas de inserção cultural e educação voltadas para moradores

do campo foi o que a motivou a pensar o projeto: “Esse público é

absolutamente esquecido pelas políticas públicas. Então tive a oportunidade de

apresentar um projeto que pensasse a inclusão dessas pessoas; que

despertasse o sentimento de pertencimento delas; que provocasse as

melhores lembranças”. (Clara Angélica, mentora e coordenadora do projeto).

O projeto Livros Andantes participa de edital público de cultura, o

Funcultura (Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura), do governo do

Estado de Pernambuco, desde o ano de 2009, quando foi aprovado pela

primeira vez. O edital acontece anualmente e o projeto é inscrito todos os anos

nesse edital. Porém, às vezes é aprovado, às vezes, não. “Quando é aprovado,

a primeira ação que fazemos é procurar a Secretaria de Educação do

Município, para construção do cronograma dos eventos, alinhado com o

calendário escolar e indicação de dois povoados para receber o projeto. Em

seguida procuramos a associação dos pequenos agricultores das comunidades

indicadas, para explicar o projeto à população, combinar o melhor dia e horário

para realização dos eventos e convidar todos para a participar”. (Clara

Angélica, mentora e coordenadora do projeto).

O Livros Andantes é um projeto de fomento à leitura vivenciado na

comunidade rural do município de Amaraji, Zona da Mata Sul, do Estado de

Pernambuco (cerca de 100 Km do Recife), em espaços não convencionais,

portanto, para além dos muros escolares, cujo principal meio de transporte dos

livros são os caçuás dos jumentos. Os livros chegam até a população rural

através de bibliotecas andantes, utilizando jumentos com caçuás customizados

especialmente para esta finalidade e que também transportam uma tenda

impermeável para “montar” os espaços de leitura. Cada “biblioteca-jumento”

conta com 200 livros, além de dezenas de cordéis, sendo a maioria de autores

pernambucanos. Também tem muitos títulos nacionais. Estes exemplares

poderão ser o início de uma biblioteca naquele povoado ou integrar o acervo da

escola da comunidade. Nos documentos analisados foi possível verificar que

18

na comunidade de Estivinhas, dos 200 exemplares iniciais, o acervo conta com

mais de mil livros, 995 estão catalogados em um caderno (lá não tem

computador), outros em caixas, ainda por catalogar. “A biblioteca sempre

recebe muitas obras literárias doadas por amigos e visitantes da biblioteca”,

revela Ângela, responsável pelo acervo local”.

Quanto às pessoas envolvidas, o projeto prevê a contratação de uma

equipe base: Coordenação geral; Coordenação de Produção; Coordenação

Pedagógica; Oficineiro formador de mediadores; 04 mediadores de leitura;

Produção local; Donos dos animais; Assistentes de produção.

O Livros Andantes tem cronograma de trabalho definido previamente,

com sistematização das estratégias de ações e cronograma de desembolso.

Tudo é seguido passo a passo.

Para os eventos de letramento, os mediadores se juntam com a equipe

de coordenação do projeto para escolha e definição dos livros a serem

adquiridos e trabalhados.

Ao responderem o questionário sobre o planejamento dos eventos de

letramento, os mediadores foram unânimes. Eles adotam a mesma dinâmica e

o mesmo processo: “Toda semana se escolhe um tema. Se a gente escolhe o

tema meio ambiente, a gente separa aqueles livros de meio ambiente e o

coloca como destaque da apresentação. As apresentações são sempre com

dança, música, paródia, poesia... não deixando de levar os outros”, disse Marta

Lima, mediadora.

Manoel Antônio, mediador da segunda edição do projeto, diz que a

escolha desse tema pode também estar relacionada a alguma celebração:

“Podemos escolher um temos dependendo da época e a gente vê como vai ser

essa mediação para que envolva toda a comunidade. “Sempre marcamos um

dia na semana para escolhermos um livro, ou livros a serem trabalhados

naquela semana”, diz Maria Helena Lopes, mediadora dos Livros Andantes

nas duas edições do Projeto.

Nas falas dos mediadores, observa-se a importância do planejamento das

ações de mediação, também quando elas acontecem fora dos espaços escolares, sem

deixar de levar em consideração as especificidades da comunidade, e a relevância

19

dos temas a serem abordados nas mediações, assim como a intencionalidade na

escolha dos livros escolhidos. Para Leal, (2010),

O planejamento deve ser visto como uma atividade frequente, que antecede qualquer ato intencional. Procedimentos a serem executados durante um período letivo por meio de uma organização sequencial vivenciada por atores sociais que têm objetivos partilhados: a aprendizagem (LEAL, 2010, p.97).

Nos eventos de Letramento, os mediadores, com uniformes do projeto,

perucas ou chapéus na cabeça, portando megafones, convocam a população

do povoado onde será vivenciado o Livros Andantes. São acompanhados pelos

moradores do povoado. Um jumento “biblioteca andante”, enfeitado com panos

coloridos, peruca e muitos cordéis pendurados em forma de varal acima do

lombo é conduzido pelo seu proprietário. Crianças, jovens e adultos

acompanham a caminhada pela estrada de barro. No local pré-determinado,

os mediadores iniciam o trabalho, com leitura interpretada de algum trecho ou

capítulo ou até mesmo leitura do livro inteiro. Em seguida, convidam os

participantes a escolherem um livro a ser lido individualmente ou em grupo

naquele momento (trecho, capítulo, completo). Após uma hora desta dinâmica

(leitura acompanhada, de imagens, dos livros), a atividade é retomada pelos

mediadores, que falam da importância da leitura; do prazer que o livro

proporciona. Neste momento, há uma interação, com provocação para que os

participantes relatam a experiência do que observaram nesta leitura recente. E,

também, os agentes oferecem empréstimo dos livros.

Aos que se habilitarem e concordarem, solicita-se que escolham algum

trecho da obra emprestada para ser partilhada com todos no próximo encontro,

quando o livro deverá ser devolvido, caso a leitura tenha sido concluída. Por

fim, é o momento dos participantes escolherem os livros que levarão para casa.

5.2. Mapeamento das atividades do projeto

No projeto são realizadas diversas atividades. Inicialmente, os

mediadores, junto com o dono do burrinho, ornamentam o “jumento biblioteca”

20

com tecidos coloridos por cima da cela, colocam os livros e cordéis nos caçuás

customizados, acionam o megafone e fazem um passeio pela estrada,

chamando todos para participar. “A gente vai chegando já vai atraindo o

público, porque a gente já chega com o lúdico”, lembra Maria Helena

mediadora.

Pessoas vão se juntando aos demais à medida que a caminhada

avança. Ao chegar no local combinado, os mediadores forram o chão e

espalham esteiras. Todos sentam. Após as boas–vindas, iniciam-se as

atividades. Participantes, a exemplo de professores e alunos da escola

próxima, mediadores com jovens caracterizados de personagens da história

fazem dramatização artística envolvendo os presentes. A história dramatizada

é escrita em um cartaz e exposta em lugar visível. Depois, os mediadores

dialogam com os interagentes sobre o título, o autor, e o conteúdo. A partir do

primeiro encontro são realizadas atividades de empréstimo dos livros, para no

próximo momento acontecer a escuta das histórias dos livros que o público

levou para casa na semana anterior.

Na sequência tem-se a livre escolha dos livros. Nessa ocasião, há a

leitura individual, enquanto os mediadores leem para os que não sabem ler o

livro escolhido por esse ouvinte. Após, os mediadores incentivam o

empréstimo, falam do cuidado que se deve dispensar ao livro; da importância

da leitura; sugerem livros aos participantes. Aquele que tiver interesse em levar

alguma obra para casa, precisa dar os dados para o mediador fazer anotação

na ata de empréstimos e devoluções.

Outra atividade desenvolvida é o chamamento à participação. Os

mediadores seguem com um burrinho de um dos moradores da comunidade

com os livros nos caçuás. Até chegar ao local pré-acordado – a sombra de um

jambeiro, à frente da casa de algum morador – um caminho é percorrido e um

dos mediadores faz o chamamento à população, utilizando um alto-falante.

Após toda dinâmica e vivência do projeto, todo o material do projeto fica sob a

responsabilidade do morador que acolheu o Livros Andantes naquela semana.

Na semana seguinte, a biblioteca-jumento, junto com os mediadores e os

moradores deste sítio, saem em caminhada até o próximo local onde

21

acontecerá o evento de leitura, e assim sucessivamente, até o fim desse ciclo

do projeto, quando o acervo é entregue à comunidade. Por isso, o projeto

recebeu o nome de Livros Andantes, e, dessa forma também se justifica o

acervo continuar na comunidade, na perspectiva de que os moradores por já

terem contato com os livros, despertem interesse pela leitura.

A preparação do ambiente de leitura também é um estágio do projeto.

Os mediadores revestem o chão com uma lona azul, abrem esteiras como

assentos, descarregam a “biblioteca – jumento”, espalham livros, penduram

cordéis nos galhos mais baixos das árvores e nos arames das cercas, expõem

em cartazes a história que será interpretada. Essa pratica possibilita que

todos os partícipes visualizem o texto.

Na sequência, vem a dramatização da obra escolhida pelos mediadores

- essa interpretação tem também a participação de jovens estudantes que se

caracterizam como os personagens dos livros, encurtando as distâncias entre a

ficção e a realidade e proporcionando encantamento, colaborando, assim, com

o despertar para a leitura. Há, em seguida, a leitura. Após a apresentação da

dramatização, um mediador explica o que foi apresentado, fala do livro

adaptado à história, mostra-o para os presentes, aponta o cartaz. Outro

mediador lê a mesma história no cartaz.

Na sequência, há a devolução dos livros emprestados anteriormente, de

forma dinâmica: após a apresentação solicita-se de quem levou o livro para

casa na semana anterior, a partilha de maneira espontânea desse conteúdo

com os participantes presentes.

Observamos que os mediadores apenas incentivam a participação sem

o compromisso com a avaliação. As crianças são quem mais participam, lendo

em voz alta no megafone. Aquelas pessoas que ainda não sabem ler o fazem

com as imagens, garantindo também essa interação.

Há, ainda, o estimulo ao registro oral, a contação de histórias por parte

da comunidade, principalmente pela população mais velha, guardiã da

memória local.

22

A leitura livre e o manuseio dos livros, atividades que também integram o

projeto, são feitas com a participação da comunidade. Esse momento é bem

interessante. O ambiente fica repleto de pessoas lendo, trocando impressões

sobre o que leram, transformando a leitura em momento de interação e de

troca entre várias gerações. “Funciona como uma espécie de intercâmbio.

Quando um lê uma história, diz: olha, você leu essa? Aí o outro diz: Eu vou

levar esse”, comenta Marta Lima.

Esse é um momento de intensa interação em que todos os participantes

manuseiam os livros, abrem, olham, pessoas se juntam em duplas ou em

pequenos grupos de três, quatro, para ler ou folhear os livros, ver as imagens.

Os mediadores sentam com os participantes, uns leem para crianças, outros

para adultos. O livro e a leitura em todos os momentos são os protagonistas do

evento literário.

Na socialização dentro do projeto Livros Andantes há integração de

diferentes gerações. São desenvolvidas estratégias pelo agente de letramento

- agente social -, que provoca a ampliação dos horizontes do grupo. Kleiman,

(2005, p,52) enfatiza também a importância de o professor, mediador, focalizar

no que o grupo sabe em vez daquilo que não sabe. Para, ela, assim como para

o mestre Paulo Freire, isso é uma tarefa de ordem política.

Verificamos nas atas de empréstimos que 286 livros foram emprestados

no período de 03 meses de vivência do projeto. Nas atas do Engenho Raiz de

Dentro somam um total de 155 livros emprestados. Em Estivinhas, houve 131

empréstimos. Porém essa segunda comunidade continua a emprestar os livros

do acervo, junto com outros que recebeu sob o sistema de doações.

Em entrevista, Joseni, responsável pelo acervo, define o Livros

Andantes como “um projeto maravilhoso para quem mora na área rural, e não

tem conhecimento da leitura. Porque levou a leitura para muita gente que não

sabia nem o que era isso!”.

Nessa pesquisa, ao analisar as atividades desenvolvidas nos eventos de

letramento do projeto Livros Andantes, verificamos como se dão as atividades

e participações dos mediadores e público partícipe. Mediadores de leitura e

23

equipe chegam à comunidade em um veículo Toyota, transporte cedido pela

Prefeitura Municipal de Amaraji, através da Secretaria de Educação do

município. Servem para transportar os mediadores aos domingos, mas também

levam os moradores dos sítios do entorno que vão caminhando participar do

projeto. Os partícipes chegam também a cavalo, de bicicleta, moto ou a pé..

Entre animação e ação, iniciam-se as atividades.

Uma das dificuldades para realização apontada pela mentora do projeto

é o financiamento. Já para os mediadores, a dificuldade é o deslocamento,

como pontua Marta. “ A dificuldade também é o acesso, a locomoção, porque

no sítio, as casas têm uma distância grande umas das outras.

5.3. Análise dos impactos do projeto

No percurso de investigação aqui proposto descobrimos que os acervos

das quatro comunidades contempladas pelo Livro Andantes estão

conservados. Em duas dessas comunidades, as obras estão nas escolas rurais

por onde o Livros Andantes aconteceu. No engenho Raiz de Dentro, o acervo

está na Escola Municipal Vital Brasil.

No Engenho Estivas, o acervo encontra-se na Escola Maria da

Conceição Barbosa Lins e Silva. No engenho Prata Grande, o acervo

inicialmente ficou na Associação dos Pequenos Agricultores da comunidade,

depois, em consequência das chuvas, o galpão precisou ser reformado. O

acervo foi encaminhado para a escola da comunidade.

Na comunidade de Estivinhas, os livros permanecem na Biblioteca

Bondosa Terra. Essa pequena biblioteca de sapê foi erguida na e pela

comunidade. “A gente montou e todos levaram barro, as varas, compramos

pregos. Nós trabalhamos juntos e em conjunto e fizemos a biblioteca” diz

Joseni.

Na Escola Municipal Vital Brasil, a professora Sandra declarou que seus

alunos se acostumaram a pegar livros emprestados e debater sobre eles na

24

sala de aula. Hoje ela não trabalha mais nesta escola, mas confessa que “era

do acervo dos Livros andantes os livros que levava para debate em sala de

aula”

Na comunidade de Estivinhas, a organização, cuidados com o espaço, e

os empréstimos são realizados por Ângela, que dá aulas de reforço na

biblioteca. No espaço também acontece exibição de filmes uma vez por mês

para os moradores. Nesse processo de interação comunitária, tanto a

construção quanto a utilização da biblioteca remetem ao pensamento do

educador Paulo Freire (2003)

(...) a biblioteca popular como centro cultural, e não como um depósito silencioso de livros, é vista como fator fundamental para o aperfeiçoamento e a intensificação de uma forma em relação correta de ler o texto em direção ao contexto (FREIRE, 2003, p. 33).

A biblioteca introduzida na área do campo, pelos camponeses, pode ser

entendida como um ato político de transformação da sua realidade local como

instrumento de exercício da cidadania e autonomia.

Os dados, portanto, evidenciam que o projeto deixou marcas nessas

comunidades e possibilitou que as ações de leitura das obras pudessem

continuar acontecendo.

6. Considerações Finais

Por meio dessa investigação, observamos que o projeto Livros Andantes

causou impactos na comunidade. Houve dinâmicas de leituras diferenciadas,

em eventos de letramento com livros literários de gêneros diversos. Diferentes

práticas de leituras, através da interação social, da inclusão de pessoas no

mundo da leitura e do livro literário, de forma dinâmica, lúdica e prazerosa,

foram observadas.

Desta forma, foi possível perceber que o projeto Livros Andantes

possibilitou transformações na comunidade, impactos de caráter social, e

25

espacial, coberto de significados para a comunidade, como o acesso aos

livros, a construção de uma biblioteca comunitária, como processo social e de

apropriação cultural, espaço democrático, para moradores e visitantes, para

fins de estudos, leitura, consulta e empréstimos de livros.

As bibliotecas comunitárias podem ser consideradas espaços públicos

de informação em sua ação de reação da própria comunidade no combate às

desigualdades de acesso à informação. Projetos e espaços de incentivo à

leitura podem ser instrumento para formação de um público leitor, podem

despertar o desejo de jovens a voltar a estudar; podem ser instrumentos de

registro da história oral. Entendemos que são ferramentas de estímulo à

mudança de consciência e atitude das pessoas em relação aos livros e à leitura

de mundo.

É necessário um trabalho efetivo de políticas públicas de combate ao

analfabetismo de jovens e adultos daquela e de outras tantas comunidades

rurais, para que todos sintam-se contemplados, inseridos na sociedade.

Este trabalho contribui para a reflexão e estudos na área de formação de

leitores em espaços não escolares, visto que a literatura sobre leitor, leitura e

mediação de leitura que ultrapassam o trabalho pedagógico de letramento

escolar ainda é restrito. É preciso voltar o olhar também para moradores de

áreas rurais, uma população invisibilizada e sem acesso a bens culturais.

7. Referências

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