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1 PESADELO Texto de Alfredo Mantovani Abeche

PESADELO - ieacen.files.wordpress.com · Bem, vamos ver. Aqui está: câncer, seu dia hoje não será muito mal, mas também não será muito bom. Pode viajar, mas não nos responsabilizamos

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PESADELO Texto de Alfredo Mantovani Abeche

2 PERSONAGENS

Sala de Jantar.

MADALENA – Damião: sente-se aqui, por favor. Precisamos

conversar. A tia Lilinha está muito mal, e eu preciso ir para

Salvador, cuidar dela.

DAMIÃO – Nada mais justo, Madalena, só tem um detalhe:

quem é a tia Lilinha?

MADALENA – Dadá: a tia Lilinha é irmã da minha mãe, casada

com o Eduardo, primo do Fernando, mora na Rua das

Margaridas, em frente ao Pelourinho, vizinha do Carlinhos

Brown, lembra?

DAMIÃO – Tirando o Carlinhos Brown, nunca ouvi falar nestas

pessoas, mas Madalena: para ir a Salvador precisa de dinheiro,

e nossa situação não é das melhores.

MADALENA – Claro: se ao menos você me deixasse trabalhar,

a coisa poderia ser melhor, não acha?

DAMIÃO – Está bem, Madalena. Já que você insiste, pode partir

agora mesmo. (Madalena vai para o quarto.) Afinal de contas,

que tem de mal nisso? Fica o dia inteiro olhando televisão,

3 fofocando com as vizinhas. (Madalena volta toda arrumada.)

Madalena, apenas uma dúvida que me passou pela cabeça:

quem vai fazer os afazeres de casa?

MADALENA – Eu estava pensando em você...

DAMIÃO – Mas...

MADALENA – Além do mais, eu deixo tudo escrito num

caderninho: hora de acordar as crianças, lavar a casa, fazer o

almoço, passar roupas, fazer o jantar, e aproveite para

conversar com os nossos filhos, pois faz tempo que você não

faz isso.

DAMIÃO – Mais alguma coisa, bem?

MADALENA – Só uma coisinha: não se esqueça da mamãe.

Ela gosta muito de você.

DAMIÃO – Mas Madalena, e o meu futebol, a cervejinha depois

do expediente? (Vão saindo de cena.).

MADALENA – Damião: são só dois dias.

DAMIÃO – Não sei onde me deixei enganar. (Datilografando.)

Acho que foi quando ela falou em divórcio. (Damião adormece

sobre a máquina. Acorda-se com o barulho do despertador.)

O caderninho, o caderninho! Crianças: acordem! Já são sete

horas. Vão se atrasar. (Ricardinho se tranca no banheiro.

Lucinha fica impaciente.).

LUCINHA – Anda Ricardo Afonso: estamos atrasados. É prego

ou parafuso?

4 RICARDINHO – Ahn?... Já vou. Já não se pode mais nem

escovar os dentes, sossegado. (Ricardinho sai. Lucinha entra

no banheiro.).

LUCINHA – Socorro! Tem um bicho morto aqui dentro! Vamos

interditar o banheiro!

RICARDINHO – Vai me dizer que o teu é perfumado?

DAMIÃO – Meu filho: já está aí? Bom dia. Eu disse bom dia.

Não, eu acho que não disse nada. (Pega o caderninho. Lê.)

Falar com os filhos. Ah, Ricardinho: eu aposto que você vai

ganhar a rifa que eu comprei pra você no colégio.

RICARDINHO – Pela Lei das Probabilidades, não. São

quinhentas pessoas concorrendo a cinco prêmios. Teoricamente

teremos que participar das rifas do colégio durante cem anos

para ganharmos o prêmio.

DAMIÃO (Embaraçado) – Ah, sim... tem razão, meu filho...

Como sempre... aliás.

RICARDINHO – Quando é que o senhor vai me pagar os

cinqüenta e três com sessenta e oito que eu lhe emprestei no

começo do ano?

DAMIÃO – Mas... não eram cinqüenta?

RICARDINHO – Mas acrescentam-se aí juros e multa.

DAMIÃO – Ora, não se preocupe: no domingo, sem falta, se eu

fizer os treze pontos. Mas veja só: está tudo calculado pela

matemática. No penúltimo teste fiz cinco pontos, no último fiz

nove e, seguindo a Lei das Probabilidades, se continuarem a

5 aumentar quatro pontos por teste, completo os treze esta

semana.

RICARDINHO – Ora, não me venha com sofismas. (Damião

pega o dicionário e vai em direção ao banheiro.).

DAMIÃO – Tudo bem aí, Lucinha?

RICARDINHO – Será que ela não caiu no vaso? (Lucinha sai

do banheiro.).

DAMIÃO – Aí está a minha filhinha. Bom dia.

LUCINHA – Bom por quê? O senhor não foi trabalhar?

DAMIÃO – Não: sua mãe teve que ir para Salvador, cuidar da

tia Lilinha. Ela está louca.

LUCINHA – A mamãe?

DAMIÃO – Não: a tia Lilinha. A propósito, vocês poderiam

almoçar na casa de um amigo. É que eu levo um pouco mais de

tempo para preparar a comida, assim, eu pensei que se

começasse agora, talvez conseguisse aprontar o jantar a tempo.

LUCINHA – Bem feito! Quem mandou você não contratar uma

empregada para a mamãe?

DAMIÃO – Lucinha: eu já discuti mais de mil vezes com sua

mãe, e não quero voltar a discutir com você. Não temos

condições de contratar uma empregada.

LUCINHA – Dadá: deixa de bancar o durão. Olha, a mamãe

estudou muito, ela pode arrumar um bom emprego. Ela sempre

sonhou em trabalhar fora, conhecer pessoas, se sentir

6 importante. Há quanto tempo ela vem falando para você do

emprego de secretária naquela indústria?...

DAMIÃO – Imagine a minha mulher, secretária. Sozinha, o dia

inteiro, com um desses industriais metidos a conquistadores.

LUCINHA – Mas Dadá, você não confia na mamãe?

DAMIÃO – É claro que confio. Sua mãe é a mulher mais correta

do mundo. Mas você já imaginou o que os meus amigos iriam

pensar? Os comentários? Não, definitivamente, não. Além disso,

a profissão de dona-de-casa é tão importante e digna como

qualquer outra.

LUCINHA – Claro que sim. Mas haverá um dia em que as

mulheres se libertarão desta prisão: serão livres, donas do seu

próprio nariz, e aos homens só restará lavar, cozinhar e bajular

suas esposas.

RICARDINHO – E, é claro, cumprir com a obrigação na cama.

DAMIÃO – Basta: os dois! Lucinha, você está me confundindo

todo. Veja as amigas dela: dona Laura, que senhora distinta. A

Dona Lucrécia, esposa de um médico.

LUCINHA – Papai: elas são quase analfabetas.

DAMIÃO – Foram à escola até o Colegial.

LUCINHA – Mas esqueceram tudo nos bancos do colégio. Só

sabem fazer fofocas e falar de novelas, só caretice. Vê se pode?

DAMIÃO – Já disse: lugar de mulher... (Lucinha interrompe.).

7 LUCINHA – É na cozinha. Até logo, machão porco... (Damião

interrompe.).

DAMIÃO – Chauvinista?

LUCINHA – É isto mesmo.

DAMIÃO – Esperem: o que acharam do café?

RICARDINHO – Que café?

DAMIÃO – Não brinca Ricardinho: eu quero sinceridade.

RICARDINHO – Nada mal para um principiante.

DAMIÃO – Vamos ver qual é a próxima missão impossível. Ah,

sim, agora vou acordar a minha querida sogrinha. (Ri.) Espere

um pouco. Estou rindo de quê? Não tem nada mais chato do

que tomar café com aquela velha rabugenta. Também não sei

por que acordá-la às sete e meia. Não faz nada o dia inteiro.

(Damião sai de cena. Ouve-se uma barulheira. Volta Damião

ofegante e cansado.) Acho que ela acordou. (Entra em cena

dona Matilde.).

MATILDE – Bom dia.

DAMIÃO – Bom dia. (Desanimado.).

MATILDE – Por que este desânimo? Deus é grande.

DAMIÃO – A preguiça é maior.

MATILDE – O jornal já chegou meu filho?

DAMIÃO – Já: aqui está!

8 MATILDE – Vamos ver meu horóscopo para hoje. Está

esplêndido! Não é mesmo bom começar o dia assim? Você

nunca lê o seu?

DAMIÃO – Não, nunca prestei atenção. Isto dá certo mesmo?

MATILDE – Não falha. Quer ver? Qual é o seu signo?

DAMIÃO – Câncer... parece.

MATILDE – Câncer: isola! Bem, vamos ver. Aqui está: câncer,

seu dia hoje não será muito mal, mas também não será muito

bom. Pode viajar, mas não nos responsabilizamos pelo que

poderá lhe acontecer. Poderá fazer hoje um bom negócio, mas

não se espante se só lhe der prejuízo.

DAMIÃO – Dona Matilde, a senhora não acha as previsões...

assim, como diria... um pouco... um pouco vagas?

MATILDE – Também não se pode querer tudo.

DAMIÃO – Sabe minha sogrinha: preciso pagar uma dividazinha

para o Ricardinho. Por acaso a senhora não vai jogar na loteria

esta semana?

MATILDE – E eu arrisco o meu dinheiro nestas bobagens? Bem

que dizia o meu finado marido, que Deus o tenha: mais vale um

pássaro voando do que dois na mão. Não se esqueça disto,

meu filho.

DAMIÃO – Dona Matilde: se me permite, por que a senhora quis

levantar cedo? Pelo que me consta não existe nenhuma novela

às sete e meia da manhã.

9 MATILDE – Não é por isto, meu filho. Você não conhece aquele

ditado: Deus madruga a quem cedo ajuda?

DAMIÃO – Não é ‘Deus madruga a quem cedo ajuda’: é ‘Deus

ajuda a quem cedo madruga’.

MATILDE – A ordem do produto não altera o fator.

DAMIÃO – Ih: começou. Mas por que está tomando o café com

tanta pressa?

MATILDE – É que vou fazer uma reunião aqui em casa: estou

esperando umas amigas.

DAMIÃO – Mas por que tão cedo?

MATILDE – É como se diz: pela manhã é que as idéias

florescem.

DAMIÃO – Esse eu não conhecia. (Toca a campainha. Dona

Matilde vai atender.).

MATILDE – Bom dia queridas: entrem. Nossa, Lucrécia, como

você está elegante! Minha bisavó usava um vestido igualzinho,

quando fez cinqüenta anos.

LUCRÉCIA – Não me diga: você também está muito bem para

uma mulher à beira dos oitenta.

MATILDE – Obrigada: se você parar no tempo, daqui a cinco

anos eu te alcanço.

LAURA – Mas vamos deixar de elogios: temos que dar início à

reunião. A pauta de hoje é o último capítulo da novela das oito.

Você viu o Zé Mayer: que homem!

10 LUCRÉCIA - Põe homem nisso, aquele porte atlético, o sorriso

me dá um calor na espinha. Se ele deixasse eu dar meu toque

feminino, meu talento...

MATILDE – Morria de desilusão.

LUCRÉCIA – Você disse alguma coisa, Matilde?

MATILDE – Nem abri a boca.

LAURA – Pensando bem, eu não sinto nada: deve ser porque

em casa eu tenho coisa melhor.

LUCRÉCIA – Será que ela trocou de marido?

LAURA – Eu escutei alguma coisa.

MATILDE – Ninguém falou nada. (Damião varre perto delas.

Elas o observam.).

DAMIÃO – Essa aqui é minha.

LAURA – O que o marido da Madalena faz em casa?

MATILDE – Ficou no lugar da Madalena, pois ela teve que

viajar: foi visitar minha irmã em Salvador. Ela ficou maluca.

LUCRÉCIA – É mal de família.

MATILDE – Alguém disse algo? Mas é bem feito para ele:

Madalena acabou matando uma cajadada com dois coelhos,

assim ele vê tudo o que a Madalena passa nesse regime de

escravidão, esse carrasco. (Damião aproxima-se.) Esse

carrasco, com certeza, vai morrer até o fim da novela. Genro

querido: hoje eu vou almoçar na casa da Laura. Não espere por

mim.

11 DAMIÃO – Por mim pode ficar por lá.

MATILDE – O que você disse?

DAMIÃO – Nada: vá tranqüila, sogrinha. Eu preparo o jantar. E

a Madalena ainda se queixa desta vida. Fica em casa, neste

lugar fresquinho, recebe as amigas, faz tranqüilamente a

comida... O que ela quer é inventar moda. É uma sonhadora.

Hoje vou fazer um jantar modelo. Se a Madalena pensa que eu

vou fazer aquela paçoca que ela faz todo o dia, está muito

enganada. (Pega o caderninho e lê.) Vejam só o que ela

colocou aqui: ‘faça um assado, arroz e batatas’. Se eu sou

cozinheiro de fazer essas porcarias. (Pega um livro.) Um

autêntico livro francês da arte culinária e um dicionário francês-

português. Vamos ver, vamos ver... aqui está uma receita que

me parece boa: ‘Haricot avec riz’, que belo nome: ‘haricot avec

riz’. Deve ser o manjar dos deuses. (Apanha o dicionário e

começa a folheá-lo.) Haricot avec riz é... feijão... com... feijão

com arroz. Bem, certamente não é muito original. Mas não é

problema: eu procuro outra. (Toca a campainha.).

VENDEDOR 1 – Bom dia, minha senhora: eu represento as

indústrias Johan, Johan, Johan & Cia.

DAMIÃO – Mas...

VENDEDOR 1 – Tenho justamente o que a senhora precisa:

seja lá o que precisar.

DAMIÃO – É que...

VENDEDOR 1 – Tenho aqui uma belíssima coleira para cães,

ricamente trabalhada em ouro, uma pechincha.

12 DAMIÃO – É que eu não...

VENDEDOR 1 – Mas por que não quer levar a coleira? Damos

garantia de um ano.

DAMIÃO – É que eu não...

VENDEDOR 1 – Dois anos: mas, queira sentar-se, faça de

conta que está em sua casa.

DAMIÃO – Muito obrigado.

VENDEDOR 1 – Mas como eu dizia: é uma pechincha. Não

compreendo o que a senhora tem contra o nosso produto. Por

que vai privar seu cão dessa belíssima coleira?

DAMIÃO – Por uma pequenina razão: eu não tenho cachorro.

VENDEDOR 1 – Ora, mas não seja por isso: nós também

vendemos cachorro. Temos aqui um catálogo só de cachorros:

dobermann, pastor alemão, vira-lata, com pulgas, sem pulgas...

DAMIÃO – Eu não quero nenhum cachorro: nem coleira para

cachorro.

VENDEDOR 1 – Mas não fique exaltada, minha senhora: temos

aqui um calmante maravilhoso. Até o seu marido vai notar a

diferença.

DAMIÃO – Eu não tenho marido... Eu...

VENDEDOR 1 – Por que não disse isso antes? Temos aqui

várias opções de marido. (Olham um catálogo.).

DAMIÃO – Eu não sou mulher.

13 VENDEDOR 1 – Ah: é um travesti. Temos excelentes produtos

para travestis. Onde está o vibrador? (Damião empurra o

vendedor porta afora.).

DAMIÃO – Travesti, hein? Essa foi demais: era só o que me

faltava. Bem, vamos voltar ao jantar. Eis uma receita: em

primeiro lugar ferva dois litros de água. Deixe ver no índice: aqui

está. ‘Como ferver água’. Garanto que esta água fervida vai ficar

uma delícia, e a Madalena ainda reclama essa vida. Pensando

bem: é preciso algo mais do que água fervida. (Lucrécia entra,

pelos fundos.) Dona Lucrécia, por onde a senhora entrou? A

janela está fechada.

LUCRÉCIA – Eu tenho a chave.

DAMIÃO – Ah, a chave. Bem: é um prazer recebê-la. Sente-se,

por favor.

LUCRÉCIA – Ora: o prazer é todo meu. A Madalena ainda não

chegou?

DAMIÃO – Não, ainda não. A senhora sabe: ela precisou viajar

para Salvador, e eu estou fazendo o jantar.

LUCRÉCIA – Às duas horas da tarde?

DAMIÃO – É que eu não tenho muita prática - nem muita, nem

pouca - a senhora sabe.

LUCRÉCIA – Mas vamos falar de coisas mais sérias, e

esquecer estes imprevistos. O senhor sabe que ontem, o

cadeirudo atacou o chupa-cabra?

14 DAMIÃO – Não me diga: o cadeirudo... este mundo está

perdido. O chupa-cabra... que barbaridade. Mas quem eram os

dois?

LUCRÉCIA – Ora: não vai me dizer que você não vê a novela

das sete?

DAMIÃO – Novela? Ah, foi na novela. Não, eu não assisto,

porque neste horário eu estou trabalhando.

LUCRÉCIA – Quer dizer que não assiste à novela das sete?

DAMIÃO – Não.

LUCRÉCIA – E a das oito?

DAMIÃO – Também não.

LUCRÉCIA – E a das dez?

DAMIÃO – Também não.

LUCRÉCIA – Coitado. Bem, então podemos conversar sobre...

nenhuma novela?

DAMIÃO – Nenhuma. Lamento muito. Sabe: a senhora e a dona

Laura são as melhores amigas da Madalena. Ela sempre diz

isso.

LUCRÉCIA – O que? A Madalena é amiga da Laura, aquela

cascavel fofoqueira? Imagine o senhor que ela deu para

espalhar que o meu marido compra para ele os xampus mais

caros da cidade.

DAMIÃO – Mas o que haveria de mal nisso?

15 LUCRÉCIA – Bem, não haveria nada de mal. Se ele não fosse

careca.

DAMIÃO – Ah, compreendo. É muito embaraçoso.

LUCRÉCIA – Bem, a conversa estava boa, mas eu queria

mesmo era falar com a Madalena. De qualquer modo, foi um

prazer conversar como o senhor. Até logo.

DAMIÃO – O prazer foi meu. Até logo. (Dona Lucrecia vai

saindo, mas volta para buscar a chave. Damião fica

embaraçado.) E a Madalena ainda reclama de suas amigas.

Veja a Dona Lucrécia, uma perfeita dama, educada, incapaz de

magoar alguém, mas vamos ao jantar. (Toca a campainha.)

Íamos ao jantar. (Atende a porta.) Dona Laura, que prazer!

LAURA – E ainda tem a coragem de me bajular?... (Ela corre

atrás de Damião, com um jornal.).

DAMIÃO – Eu não entendo...

LAURA – Hipócrita! Mentiroso!...

DAMIÃO – Mas... Calma, Dona Laura.

LAURA – Saiba que eu encontrei com a dona Lulu na esquina...

DAMIÃO – A Dona Lucrécia?

LAURA – Essa mesma: e ela me contou o que o senhor falou

de mim.

DAMIÃO – Eu?

LAURA – Você sim: ou vai negar? Quer dizer que eu sou uma

cascavel fofoqueira, hein?

16 DAMIÃO – Mas eu não disse isso.

LAURA – Não, não disse só isso. Quer dizer que eu sou careca

e uso xampu? Onde está o respeito, meu rapaz?

DAMIÃO – Dona Laura: pense bem. Eu seria incapaz de falar

isso da senhora, e além do mais, a senhora poderia ser minha

mãe.

LAURA – O que? Você está insinuando que eu sou velha?

DAMIÃO – Não, eu não quis dizer isso, mas... é que depois dos

setenta...

LAURA – Setenta, eu? Você vai ver: meu marido é faixa preta

de caratê.

DAMIÃO – E pelo visto treina com a senhora, pra ter ficado com

essa cara. Tenha paciência dona Laura.

LAURA – Mal educado: você vai ver só. Não perde por esperar.

(Ela sai chorando.).

DAMIÃO – Ora: não me falta mais nada hoje. Bem, vamos

prosseguir com o jantar. Será mesmo um jantar modelo: eu

espero. (Toca o telefone.) Alô? Não, aqui não tem nenhum

burro sentado. O quê? Não, também não tem nenhum burro de

pé. Como qual é o burro que tá falando? É o Damião. De nada!

(Desliga, pensa, volta ao telefone.) Escuta aqui: tá achando

que tem algum idiota aqui? (Ouve-se sinal de ocupado.) Veja

se eu preciso de trote. Esta vida já é um trote para mim, mas

agora eu vou fazer o jantar. (Toca a campainha.) Não, isso não!

(Atende a porta.).

17 VENDEDOR 2 – Bom dia, meu senhor: eu represento as

indústrias Johan, Johan, Johan & Cia. Ltda.

DAMIÃO – Já esteve um vendedor dessa Companhia aqui.

VENDEDOR 2 – Isso é o que todos dizem, mas ficará

deslumbrado quando eu lhe mostrar o nosso novo modelo de

coleiras para cães, ricamente...

DAMIÃO – Trabalhada em ouro.

VENDEDOR 2 – Realmente já esteve mesmo um vendedor

aqui.

DAMIÃO – Já, e se um vendedor estraga o dia da gente,

imagine dois.

VENDEDOR 2 – Realmente: eu concordo. A propósito, tenho

aqui diversos modelos de tabuletas para espantar vendedores.

Veja este.

DAMIÃO – Está muito bom, mas eu tenho um melhor aqui.

(Pega um revólver.).

VENDEDOR 2 – É... é bem mais convincente... Aproveitando a

deixa, eu tenho aqui diversos tipos de lubrificantes para revólver,

uma bagatela.

DAMIÃO – Você está brincando com a morte.

VENDEDOR 2 – Por falar em morte: temos vários tipos de

caixões, grandes, pequenos, a gente nunca sabe.

DAMIÃO – Moço: eu só queria fazer o jantar. A minha mulher

não está em casa.

18 VENDEDOR 2 – Por que não falou antes? Tenho aqui um

novíssimo livro da culinária francesa, acompanhado de um

dicionário francês-português.

DAMIÃO – Não: eu acabei de ter uma idéia. Hoje vou fazer

vendedor à milanesa.

VENDEDOR 2 – Ótima idéia, e para acompanhar tenho um livro

só de molhos, tenho certeza... o senhor falou vendedor à

milanesa?

DAMIÃO – Sim.

VENDEDOR 2 – Sem molho.

DAMIÃO – Odeio molho.

VENDEDOR 2 – Nem uma batatinha?

DAMIÃO – Nenhuma.

VENDEDOR 2 – Eu gostaria de ficar para a janta, mas agora me

lembro: estou atrasado para uma convenção de vendedores. Até

logo. (Toca o telefone.).

DAMIÃO – Deve ser outro trote. (Atendendo.) Escute aqui: eu

vou lhe dizer quem é burro. Madalena?... Como é bom ouvir a

sua voz aveludada. Aqui tudo tranqüilo. Tudo na mais santa paz.

As crianças? Estão ótimas. Adoraram meu café. Os afazeres de

casa? Normal, sem problemas. O quê? Você vem hoje? Mas

meu bem, eu achei que você ia ficar mais alguns dias. Bom,

melhor assim. Mas qual é o seu vôo? Deixa eu anotar. Vôo 933.

Qual é a Companhia? Aerolinhas Jurubeba? Não, nada contra.

Tirando os últimos seis vôos, três explodiram na decolagem,

19 dois na aterrissagem e num faltou combustível, de resto eu acho

uma ótima Companhia. Estarei te esperando, claro, com a janta

pronta. Beijo... de língua! (Desliga.) Eu acabo este jantar nem

que seja a última coisa que eu faça. (Entra Lucinha de cabeça

baixa.). O que foi minha filha? Que cara é esta?

LUCINHA – Briguei com o Serginho.

DAMIÃO – Não me diga: problema de escola?

LUCINHA – Pai: o Serginho é meu namorado há mais de um

ano.

DAMIÃO – Nossa filha: mas vocês se davam bem!

LUCINHA – É. A gente curtia uma transa legal.

DAMIÃO – Transa legal? Se a Madalena estivesse aqui... O que

é que eu faço?... Filha: o que houve, então?

LUCINHA – É que o Serginho não sabe o que é ser uma mulher

livre, os horizontes de uma alma feminina vão muito além dessa

corja machista, e quando a liberdade chegar, os homens estarão

aos nossos pés, servindo e nos adorando.

DAMIÃO – Madalena: quando chegar esse dia me avisa, tá –

que eu quero fugir pra bem longe? Filha: a sua liberdade acaba

onde começa a do Serginho.

LUCINHA – Assim como você e mamãe?

DAMIÃO – Não mude de assunto, e além do mais a sua mãe

me ama.

20 LUCINHA – Como é belo o amor! E, com certeza, ela vai ficar

assim a vida inteira: cozinhando, lavando e servindo o maridão,

e o seu emprego, só sonho!...

DAMIÃO – Talvez você tenha razão: nas últimas 24 horas eu

me incomodei mais que meio ano na redação. Aonde você vai?

LUCINHA – Vou dar umas voltas, machão. Tenho uma reunião

do grupo feminino AMI.

DAMIÃO – AMI?

LUCINHA – Associação das Mulheres Independentes. Tchau!

DAMIÃO – Volta Madalena: as crianças precisam de ti! (Entra

Ricardinho.).

RICARDINHO – Pirou velho?

DAMIÃO – Não filho, mas já que você está aqui, eu queria lhe

fazer uma pergunta: como vão as garotas?

RICARDINHO – Sai dessa, pai. Meu negócio é outro.

DAMIÃO – Como assim, meu negócio é outro?

RICARDINHO – Eu quero acabar com os estudos e segundo a

filosofia metódica da vida, talvez um dia eu até case e tenha

filhos, como o senhor, mas agora tenho uma reunião com o meu

professor de matemática. A gente vai discutir melhor os

problemas da cibernética no espaço irracional. Até logo.

DAMIÃO – Até logo, filho. (Pega o dicionário.) Cibernética

irracional. Sei lá eu o que é isso. Agora vou terminar o jantar. (A

21 sogra entra para olhar televisão. Cena da novela. Vozes

gravadas.).

EMANUEL – Ó, minha granpolinha: eu estou a fim de fazer

coisa com você.

GRANPOLINHA – Emanuel: eu não posso. Tenho que

trabalhar.

EMANUEL – Mas por quê? Eu vi num relâmpago aqui na minha

cabeça, que se nós fizermos coisa, seremos felizes para

sempre.

GRANPOLINHA – Está bem: eu te amo e ficaremos juntos até o

fim da novela.

MATILDE – Droga: odeio parabólica. Não tem comercial. Vou

olhar a minha TV lá do quarto.

DAMIÃO – Poderia, pelo menos, desligar a TV, velha caduca.

(Som de Plantão de TV.).

JORNALISTA (Voz gravada) – Atenção: o Plantão do Jornal

Aqui e na Hora informa – O avião da Empresa Jurubeba que

fazia o vôo 933 explodiu no ar. Foi o 12º acidente em quatorze

vôos, sendo que dois haviam sido cancelados. Segundo o

diretor da Empresa: ‘é uma incrível falta de sorte’. Maiores

detalhes sobre o acidente no outro canal.

DAMIÃO – Madalena: logo agora que eu descobri o quanto você

tinha valor. Como vai ser daqui pra frente: as crianças, quem vai

fazer a comida? Minha sogra, não, Madalena. Isso não pode ser

verdade. (Madalena entra e bate nas costas de Damião.) Só

um pouquinho. Madalena, meu amor! (Madalena bate outra

22 vez.) Só um pouquinho: não vê que estou lembrando a minha...

(Vê Madalena.) Você está viva?

MADALENA – Claro Dadá: eu resolvi antecipar a minha

passagem para chegar mais cedo. O pessoal do hospital está

cuidando bem da tia Lilinha e eu pude voltar logo. Peguei o

primeiro avião.

DAMIÃO – Madalena: eu tenho tanta coisa pra lhe falar, estou

tão arrependido por não...

MADALENA – Não diga nada, Dadá. Eu também estava

preocupada com você. Nunca cozinhou: eu fazia todos os

afazeres da casa, fazia sala para minhas amigas. Essa é a vida

que eu gosto: trabalhar em casa. Você pode achar fácil, mas é

um bocado de trabalho.

DAMIÃO – Madalena: eu tenho a certeza de que não é fácil. A

partir de hoje vamos dividir as responsabilidades. Se você

quiser, pode até arrumar um emprego de meio-turno. Você

precisa realizar seus sonhos, e os nossos filhos precisam muito

de nós. Hoje eu descobri o quanto você é importante.

FIM