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PESCA EM ÁGUAS PROFUNDAS LXXVI EVANGELIZAÇÃO NO TERCEIRO MILÊNIO UM TEMPO DA AMAZÔNIA QUE SE FOI DEUS, A NATUREZA E NÓS

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PESCA EM ÁGUAS PROFUNDAS LXXVIEVANGELIZAÇÃO NO TERCEIRO

MILÊNIO

UM TEMPO DA AMAZÔNIA QUE SE FOI DEUS, A NATUREZA E NÓS

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Poções, Rezas e Milagres

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Nossa vida no sítio Itacarará era unicamente trabalhar. Trabalhar plantando, Caçando, pescando, colhendo, consertando tarrafa, tocando gado para o curral, tirando leite e curando bicheira de gado... Vivíamos isolados do resto do mundo, como desterrados. Não sabíamos quase nada do que se passava fora dali, muitas vezes nem mesmo em que dia estávamos vivendo, pois esquecido o dia do hoje e o número ficava sem importância no calendário pendurado na parede... A gente só fazia questão de não esquecer o dia 25 de dezembro, porque é Natal, dia do nascimento do Menino Deus, e o 13 de junho, que é o dia de Santo Antônio, padroeiro de Alenquer, e a gente tinha que se preparar para eles...

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Na verdade, só ficávamos sabendo de alguma notícia de fora, quando íamos ao sítio Boa Esperança comprar ou vender alguma coisa ou, então, quando passava pelo Itacarará alguma alma caridosa, que contava as novidades das outras paragens. Os padres franciscanos de Alenquer sempre passavam por ali duas a três vezes por ano pregando Jesus Cristo para nós, eram eles: Frei Cirilo, Frei Guido, Frei Venâncio, Frei Ricardo.

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Frei Guido deu a Aurora uma imagenzinha do Menino Jesus numa manjedoura que, inicialmente, foi arrumada numa mesinha no canto de casa. Tempos depois, Florêncio fez um oratório de madeira, colocou-a dentro e em torno dela foi botando miniaturas de barro que fazia dos animais que haviam no sítio, entre outros: carneiro, gado, galo, marreca, garça, jumento, cobra, onça, macacos e passarinhos numa árvore com um ninho de japiim pendurado e uma preguiça subindo no tronco, peixes com cabeça de fora num laguinho, e também imagens de Santa Ana, da Virgem Maria, de São José, Santo Antônio, São Benedito, tudo em barro para lembrar o nascimento do filho de Deus no meio de nós e nossa adoração a Ele. Fora, pendurados numas hastes saindo de cima do oratório, muitos anjinhos balançando em torno de um caroço de tucumã que representava a estrela-guia...

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Hiléia e eu gostávamos de ficar olhando aquela criancinha com os braços levantados querendo abraçar todo mundo. Quando me mudei para o Boa Esperança, o oratório ainda ficava arrumado do mesmo jeito no canto da casa...

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Vivíamos longe de tudo, sempre trabalhando. Trabalhando para poder viver para trabalhar. Todo santo dia era isso naqueles confins. Surgia sol detrás do castanhal e sumia sol detrás da campina explodindo de luz, arriava a noite carregada de estrelas, às vezes fechada de chuva, outras enluaradas, dormíamos, mas quando menos a gente esperava a cantoria da passarinhada avisava que a manhã já estava clareando...

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O importante para nós era saber que estávamos vivos para trabalhar. Não fazíamos diferença entre o sábado e o domingo, nem entre este e a segunda-feira, que era igual à terça, à quarta, e todos os dias tinham as mesmas facilidades e dificuldades de sol, sombra e chuva, nuns mais, noutros menos. Do dia, interessava-nos saber que era manhã, tarde e noite, não nos preocupávamos com a precisão da hora, mas apenas que o sol devia estar em tal ponto para a gente começar a trabalhar, comer e dormir, ou quando a enchente ou a vazante do igarapé, a tempestade do céu, eram carregadas de destruição, nossa pior agonia...

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Levávamos uma vida natural e pacata. Como já disse e torno a dizer, a nossa função era trabalhar para sobreviver e sobreviver para trabalhar e isso fazíamos através dos recursos que Deus botou na terra ao redor de nós. Só. Tínhamos certeza de que Deus olhava por nós e nos ajudava no tempo do plantio e da colheita, na caça e na pesca, na doença, mas ajudava no tempo certo, não adiantava nada apressar. O nosso maior desassossego mesmo, era quando alguém de nós caía doente com doença séria, dessas de derrubar o corpo na rede por bom tempo. Mas até aí Deus estava conosco ajudando-nos, pois Ele mostrava na natureza onde encontrar a cura...

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Que eu me lembre, os únicos remédios da cidade que tinha no Itacarará eram Atebrina, Cibalena, Melhoral, que eram usados para impaludismo, dor de dente e dor de cabeça; Elixir Paregórico para cólica e estancar caganeira, Magnésia para soltar; Iodo e Mercúrio Cromo para curar pereba que não queria sarar. Mas só eram usados em casos especiais. Enquanto isso não acontecesse, ficavam guardados no fundo do baú como um tesouro, esperando por um mal maior, que, como não acontecia, o tratamento era feito com os recursos da mata...

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A preta Zulmira tinha um paneiro onde guardava raízes, cascas e folhas de árvores, com as quais fazia suas poções curativas. Florêncio, pai da Hiléia, chamava-o "paneiro dos remédios". Onde ela ía levava consigo esse bendito paneiro, porque, dizia, “nunca se sabe o que pode acontecer debaixo de uma árvore, na beira do caminho, na roça ou no igarapé, a gente pode precisar”. Ela falava dos perigos que rondavam a gente quando estava trabalhando, por exemplo, um ouriço de castanha que pode cair na cabeça, ser mordido por cobra venenosa, ferrado por arraia. Então, tinha-se que estar preparado para tudo, até mesmo para a malinação de curupira. Além desses cuidados, a preta era ótima benzedeira e conhecia muitas rezas poderosas. Sua benzeção tinha um forte efeito que ajudava a passar dores, a curar qualquer ferida aberta e a espantar os maus espíritos do mato...

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Certa tarde chuvosa, Florêncio cismou de ver se tinha algum peixe no espinhel no lago. Num dos anzóis, um tambaqui dos bitelas. A custo, botou o peixe para dentro da canoa. Entretanto, já na beira do lago, Florêncio desembarcando em pé na proa e com o tambaqui ainda vivo pulando nas mãos, desequilibrou-se e caiu na ribanceira deslocando o cotovelo direito. Em casa, gemendo de dor e o braço inchado, Aurora chamou a preta Zulmira para dar um jeito no marido.

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A preta olhou o braço, fez careta como a dizer que a coisa não era nada boa, e foi buscar o seu paneiro. Quando voltou, pegou o braço do Florêncio e foi massageando suavemente com andiroba, puxando daqui e dali, inesperadamente deu um sacolejo no braço, Florêncio deu um grito, e o que estava fora voltou para o lugar e a preta entalou o braço desmentido. Com o passar do tempo, a dolorência passou, o braço desinchou, as talas de jauari que sustentavam os ossos no lugar foram tiradas, mas Florêncio notou que seu braço não dobrava como antes. Com o trabalho, o braço volta ao normal, pensou. Mas não voltou, continuou sem movê-lo direito. Então, Aurora passou a massageá-lo todo dia, de manhã e de tarde, com banha de sucuriju, como a preta tinha lhe dito que era para fazer, e o braço voltou ao normal.

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Meninos ainda, quando a gente andava mofino pelos cantos da casa, sem vontade de comer, nem brincar de nada, Aurora logo observava: - Acho que estes doiszinhos estão assim de tanto comerem porcaria do mato... A preta Zulmira completava: - Vai ver que estão encharcados de bicho de goiaba e bosta de mosquito e gafanhoto. O remédio para essa mofinagem era uma tal "lavagem", tratamento de Aurora para desempachar barriga. Primeiramente, ela batia com a costa do dedo médio encurvado na nossa barriga e, conforme o som que ouvia, mandava-nos para o quarto esperar.

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Logo mais, ela entrava acompanhada da preta carregando uma vasilha cheia de água, do fundo da qual saía uma mangueirinha comprida que tinha na ponta um bico preto fino, parecido a um bico de pato, e pendurava-a na escápula do esteio central de casa. Era o regador. A seguir, Aurora mandava-nos ficar numa posição esquisita, primeiro Hiléia depois eu, com a bunda nua virada para ela, então, enfiava o bico no nosso fiofote e mandava a preta abrir a válvula da mangueira. A mistura de japana branca e camembeca que estava no regador passava para dentro da nossa barriga, que a gente sentia tufar e doer. Quando ela puxava o bico o que tínhamos na barriga vinha para fora com uma pressão que a gente não podia controlar. Ficávamos limpos, nossa esperteza voltava, prontos para novas frutas do mato. Hoje é Natal porque Deus te ama!...

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A Preta Zulmira

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Sítio Itacarará, Alenquer. Anotações. Aurora acabou de me dizer que se não fosse a benzeção da preta Zulmira, eu não estaria vivo para contar esta história que estou contando, teria morrido com três anos de nascido, no dia em que a preta chegou ao sítio Itacarará, como se ela tivesse sido enviada por Deus.

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Disse que naquele dia amanheci com febre alta e defecando aguado e fedorento e que ela já não sabia o que fazer para baixar a febre e estancar a caganeira, que já tinha perdido as esperanças e que só esperava pela minha hora ou por um milagre. Foi quando a preta Zulmira chegou ao sítio pedindo água para beber, que ao ver a consumição de Aurora e meu estado no fundo da rede, já-mais-pra-lá-do-que-pra-cá, ela foi ao terreiro apanhou um ramo de vassourinha e me benzeu. Que tão logo fui benzido, vomitei uma coisa esverdeada gosmenta e logo a febre baixou...

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A preta disse que minha doença era quebranto, mal-olhado de algum pássaro do mato. Aurora cismou da iraúna, um pássaro preto de bico branco, velhaco que só, que não gosta de fazer ninho e nem criar filhos, põe os ovos malandramente no ninho do japiim justo para criar também seus filhotes - quando as irauninhas crescem, o japiim as não reconhece como filhos por causa do bico branco e joga-os para fora - e o taperebazeiro perto de casa era minado de ninhos de japiim. A Aurora acha que foi desta árvore que a safada me viu brincando no terreiro e me botou seu mal-olhado...

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Certa vez, de tarde, estávamos todos na roça arrancando mandioca. Enquanto isso, o meu cachorro estava deitado no pé de um pau-mulato parecendo muito doente. Babava muito, olhos vidrados e não atendia a chamado algum, só fazia olhar sonolento. Ele vinha dando sinal dessa indisposição desde a manhã, quando ele não quis comer e só queria estar deitado, amofinado. Florêncio achava que ele tinha sido mordido por alguma surucucu durante suas correrias pelo mato, mas a preta Zulmira não encontrou sinal algum de dentada de cobra no corpo.

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Eu andava acabrunhado, porque achava que o meu companheiro de caça e de longas pernadas ía morrer a qualquer momento e eu não podia fazer nada para salvá-lo. Ele estava num estado de dar dó, já quase sem forças. A preta Zulmira, então, largou a saca de mandioca junto da árvore e me chamou: - Se queres ver ele bom, te ajeita aí do lado, disse-me, quando cheguei perto. Prontamente me acocorei, com o cachorro entre nós. A seguir, a preta levantou-o com os braços e o fez ficar apoiado nas patas trazeiras com a bunda no chão como se estivesse sentado. A preta Zulmira abaixou a cabeça e começou a rezar baixinho. Feita a reza, ela bateu levemente no pescoço do cachorro e um osso pulou de dentro da boca. Fiquei espantado, meio amedrontado, com aquilo. - Pronto, isto que estava matando teu cachorro, falou a preta com o osso na mão.

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Hiléia, que tudo assistia atrás de mim, perguntou-lhe o que foi que fizera e a preta respondeu que apenas rezou uma reza e acreditamos. Logo mais o Rompemato estava farejando um rastro que podia ser de tatu, cutia ou, quem sabe, de alguma maracajá. Quando fui para o Boa Esperança, ele foi também, onde morreu de velho, cego e sem forças para andar, se mijando e cagando todo...

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A preta Zulmira fazia um remédio conhecido por "contraveneno", que só ela mesma conhecia o modo de fazer. Ele serve para ferradas de arraia, lacrau, e mordidas de bichos venenosos, principalmente cobras como a surucucu. Ela nunca disse como fazia essa poção. Sua feitura é segredo. Os linguarudos dizem que o seu principal ingrediente é um tajá do mato, mas ninguém sabe que tajá é esse, já que o mato é cheio desse tipo de planta.

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Os pretos do Pacoval de Alenquer de onde a preta é filha, sabem fazer esse remédio, conhecimento que é passado de pai para filho desde quando esse quilombo foi se instalando em Alenquer, antes e depois da abolição do cativeiro no Brasil. É possível que essa cultura seja original da África que veio para o Brasil no tempo da escravidão. Uma coisa é certa, todas as pessoas que tomaram "contraveneno“ do Pacoval tornaram-se imunes aos venenos de bichos, principalmente cobras. Dizem que também protege contra tétano...

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Quando a preta Zulmira estava preocupada com alguma coisa, por exemplo, o bicho que andava comendo suas criações no terreiro, para acalmar-se ela tomava chá de erva-cidreira, capim-santo... Surtia efeito quase imediato, pois deixava de reclamar. Aurora também tomava. Hiléia e eu gostávamos de tomar porque era cheiroso e gostoso com farinha de tapioca. Florêncio achava que aquilo era besteira, que não acalmava coisa nenhuma. Mas tudo o que desdenhava, depois se desdizia, como foi da vez em que um raio caiu quase em cima dele, que chegou a queimar uma touceira de capim perto. Ele ficou tão apavorado com o perigo, que, disse, viu a morte ao lado, quando chegou em casa pediu à preta Zulmira para fazer-lhe um chá forte para acalmar-se. Aurora diz que nesse dia seu marido se salvou por um milagre.

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Florêncio gripou. Gripe dessas que derrubam na rede macho forte. Quando tossia seu peito chiava e já fazia três dias que não saía do fundo da rede. Aurora chegou a pensar que o marido estava tuberculoso, porque viu mancha de sangue no escarro dele. A preta Zulmira, preocupada também, foi ao mato e trouxe uma casa de cupim com os bichinhos andando pelo seu corpo. Quebrou a casa e botou os pedaços numa panela para cozinhar com os bichinhos e tudo. Depois de um certo tempo, tirou um pouco da mistura escura, coou, colocou uma colher de mel de abelha, espremeu limão dentro, deixou esfriar um pouco e deu para o Florêncio tomar. Hiléia com cara de nojo olhava os bichinhos cozidos na borra do coador...

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Isto foi pela manhã. Pela tarde, já se notava que Florêncio estava com a pele corando, já não tossia muito e o peito pouco chiava. No dia seguinte, a tosse tinha ido embora e sua fome retornado. Pela tarde, estava catando cumaru juntamente com Aurora. É Natal, porque Deus te ama!

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AS DOENÇAS DE ONTEM E AS DE HOJE

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Sítio Itacarará, Alenquer. Anotações. Certa manhã, estávamos no castanhal quando Florêncio ouviu um estalo no alto da árvore da qual estava embaixo juntando castanha. Instintivamente, olhou para cima e viu um ouriço vir em sua direção, só deu tempo de abaixar-se protegendo a cabeça, O fruto caiu em sobre suas costas, que o desacordou. Aurora, que estava perto, vendo o marido que nem morto estirado no chão, gritou pedindo ajuda. Hiléia e eu corremos para junto espantados sem saber o que fazer, chorando também. Algum tempo depois, Florêncio recobrou os sentidos, sentindo fortes dores nas costas. A custo arrastamos ele para junto do tronco da castanheira, onde ficou apoiado gemendo...

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A preta Zulmira, como que trazida por Deus, chegou de repente com o seu "paneiro de remédio", que para onde vai leva consigo. Ao ver Florêncio encostado no tronco da árvore e ouvir o acontecido, tirou duas garrafas e uma cuinha do paneiro. De uma das garrafas, que tinha arnica, colocou um pouco na cuinha e deu para Florêncio beber. Da outra, com andiroba, derramou um pouco nas mãos e massageou suavemente as costas do Florêncio, que gemia no tronco da árvore. Isto feito, deixamos Florêncio descansando e voltamos a juntar castanha. Mais tarde, ouvimos o grito do Florêncio, procurando-nos. Ele ainda sentia dor, mas já podia andar...

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Certa tarde, tocava o gado para o curral quando o Mundonovo, meu cavalo de pastoreio, espantou-se com uma cobra à frente, deu um pinote e me derrubou. Nisto que caí, ele pisou no meu peito e saiu em desembestado galope. Ao levantar-me, senti uma forte dor no peito quando respirei, e segui com dificuldade andando pelo campo para casa. Estava todo dolorido parece que um carro de boi cheio de castanha passou por cima de mim. Na porteira do terreiro fui acudido pela Aurora que quase teve um troço quando me viu andando cambaleando. A preta Zulmira, que estava conferindo os patos no terreiro para ver se jacaré não tinha comido alguma, quando me viu apoiado em Aurora, correu em nossa direção para saber do acontecido.

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Respirando com dificuldade, sem quase poder falar, expliquei o que aconteceu. A preta correu à sua casa e trouxe uma garrafa de remédio. Toma, é arnica com compaíba, amanhã estás bom para outra, disse. Tomei aquele remédio meio amargo-travoso três vezes durante a noite e passei também andiroba em cima da pisada. Quando acordei no outro dia, já não sentia muita dor no peito e respirava bem. Pela tarde, estava eu novamente montado no Mundonovo tocando o gado para o curral...

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Fortunato Milléo, o dono do Boa Esperança, tinha um calombo nas costas do tamanho de um ovo de macucaua, que lhe incomodava muito. Um quisto, como chamava Dr. Martins, médico da Aeronáutica que estava de passagem ali. Inicialmente, disse Fortunato, esse quisto tinha sido um cravo que de tanto espremer para tirar a massa sebosa e fedorenta de dentro, virou aquele troço saliente em suas costas.

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Um dia, a preta Zulmira disse-lhe que se passasse andiroba em cima toda noite antes de dormir aquilo sumiria. Fortunato que queria livrar-se daquele incômodo, deixou a preta passar andiroba. Nós já estávamos morando no Boa Esperança. No quarto dia, as costas do Fortunato amanheceram meladas de um líquido pustulento e o quisto tinha se transformado em algo parecido a um tumor de cinco bocas, mas indolor. A preta Zulmira espremeu aquilo e tirou toda a porcaria de dentro. O calombo sumiu de vez da costa do Fortunato. Diz a preta que foi a andiroba que puxou para fora do corpo do italiano toda aquela porcaria sebosa.

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Para Aurora, a copaíba é outro santo remédio. Não deixa inflamar nada e faz sarar qualquer coisa, como feridas e baques frescos, estrepadas de prego e pau, mordidas de cobra, ferradas de arraia, e por aí vai. Em casa, ela usava em nossas gargantas quando estavam inflamadas ou querendo inflamar. Bastava ela passar um pouco da mistura de copaíba, mel de abelha e limão, que a inflamação e a rouquidão acabavam logo. Ela dizia que aquela mistura matava as coisas que estavam fazendo nossa garganta arder e a gente ficar roucos.

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A perna da preta Zulmira era chegada a uma erisipela. Essa doença paresque apareceu uma vez no Florêncio e nenhuma Aurora. Mas na preta a coisa era demais, parecia o ninho dela. Todo ano, várias vezes lhe dava essa inchação. Era uma doença, aparentemente inofensiva, que aparece sem mais nem menos na perna da pessoa e lá se agasalha causando desconforto.

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Quem é chegado a ela, diz que é uma doença quente e dói uma dor ardida. Uma dor de tirar sossego de qualquer um. Não sei se chega a matar, nunca soube que alguém morreu por causa dela. Mas deixava a preta Zulmira muito rabugenta nessas épocas. Irritava-se com qualquer coisa, principalmente com as galinhas que andavam pela cozinha cagando no chão ou com os porcos que fuçavam na lama debaixo do jirau onde ela lavava as panelas e preparava a comida. Mas a zanga mesma era quando chovia, porque a lenha ficava molhada e custava a pegar fogo. Ela ficava sem paciência.

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Teve um dia que um frango catando pela cozinha bicou a perna bem em cima da erisipela, acho que deve ter visto algum mosquito em cima. A reclamação da preta foi um deus-nos-acuda, horrível mesmo. Esses eram dias de sofrimento para nós também, que tínhamos de suportar a rabugice da preta. Queríamos léguas de distância da casa, principalmente da cozinha, mas ela sempre estava nos procurando para fazer as coisas que ela não podia. Para a doença melhorar, ela ía ao mato procurar a planta malvarisco. De posse das folhas, passava-as rapidamente sobre o fogo para murcharem, a seguir, untava-as com banha de galinha ou sebo de carneiro e as colocava na perna em cima da quentura. As folhas, depois de um certo tempo, secavam com a quentura da doença e caíam. A preta dizia que tão logo colocava as folhas, ela sentia um grande alívio e melhorava bastante e, de melhora em melhora, ficava boa.

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É Natal, porque Deus te ama, 2012 com perspectivas eternas!

As mortes por ali geralmente aconteciam mais por velhice, acidentes, desavenças, do que por doenças propriamente e destas as que mais matavam eram a malária, tuberculose, lepra...

Com o advento da modernidade nos cafundós ximangos, entre os jovens agricultores, vaqueiros, pescadores, caçadores, já são comuns casos de stress, avc, tpm, pad, toc, depressão, hipertensão, bipolaridade, e mortes de câncer, diabete, infarto, AIDS, infindas outras.

E que dizer da quantidade de remédios e drogas, vencidos e em vigor, entulhando as prateleiras em cima do oratório do Florêncio, alguns até mesmo guardados dentro? E também que dizer dos efeitos colaterais deles, que curam uma mas provocam inúmeras outras, muitas vezes piores? Por que isso acontece?...Só para lembrar: o tema da Campanha da Fraternidade de 2012 da

Igreja Católica será: Fraternidade e Saúde Publica!... Que tal inteirar-nos de como anda a saúde da Amazônia tanto física como espiritual e lutar realmente pelo saneamento das deficiências?...