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metodologia, Ciencias sociais, epistemologia
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POR UMA EPISTEMOLOGIA DO CUIDADO
NAS CINCIAS SOCIAIS:
Em busca de uma tica alternativa ao paradigma do descuido1
Pmela Marconatto Marques
Introduo
Se partirmos do pressuposto de que a realidade social responde no
idioma em que perguntada, como nos sugere Boaventura de Sousa Santos
(2012), somos levados a imaginar que o idioma em que elaboramos as
perguntas com que interpelamos o social se constitui no somente de nosso
repertrio terico, mas da postura metodolgica/epistemolgica que faz com
que transformemos o material nossa disposio em problema.
Nesse sentido, realizar uma reflexo sobre essa postura implica trazer
evidncia isso , tornar consciente e manifesto o geralmente obscuro,
muitas vezes intuitivo, caminho por meio do qual se faz pesquisa e produz
conhecimento, discutindo os fundamentos epistemolgicos da pesquisa social.
Essa a tarefa a qual ser dedicado o presente estudo: mais do que apontar
molduras prontas s quais ajustar a matria a ser apreendida durante a
pesquisa social, refletir sobre as (des)preocupaes com que se empreende o
caminho da pesquisa, sondando algumas formulaes epistmicas
interessantes que se refletem em posturas tico-metodolgicas mais sensveis,
que aqui propomos chamar pesquisa cuidadosa. sobre seus desafios,
limites e potncias que se destina o presente trabalho.
Pesquisa em Colaborao x Pesquisa em detrimento
Somente um sujeito consciente da complexidade dos mecanismos que
agem sobre si (ou consigo) quando interpela o social capaz de produzir
1 Documento de Trabalho 41, CLACSO, resultado do Seminrio Metodologias em co-labor,
ministrado em sua Plataforma de Formao Virtual no 1 semestre de 2014.
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pesquisa cuidadosa, ou seja, aquela que no descuida do que pesa sobre as
decises que, como cientistas sociais, tomamos antes, durante e depois de ir a
campo, escapando tanto do racionalismo dogmtico quanto do relativismo
ingnuo. Tal atitude pressupe comprometerse en una serie de niveles, no
solamente con la temtica que se investiga, pero con la manera como se
produce esta temtica, se le plantea como problema y se le dan respuestas
(Speed y Solano, 2008). Requer a superao da lgica extrativa de
conhecimento que impera nas investigaes sociais, marcada, por exemplo,
pela imposio de uma agenda que, embora externa comunidade estudada,
espera-se seja atendida por ela com rapidez, coerncia e docilidade; pela
despreocupao com a atribuio de autoria a conhecimentos compartilhados
conosco por autoridades e/ou lideranas populares; pela naturalidade com que
se impe o no retorno comunidade estudada dos resultados a que se
chegou mediante a sua colaborao, ou, ainda, pela incapacidade de sequer
cogitar produtos da investigao alm do texto cientfico, capazes de apoiar as
lutas em que se debatem os grupos pesquisados.
A lucidez sobre o modo como se observa, trata, reflete, evidencia,
descreve o mundo social e se retorna a ele, tudo isso faz parte de uma
investigao cuidadosa em lugar do paradigma de descuido que compe as
tessituras epistemolgicas com as quais fazemos cincia. Poderia mesmo dizer
que essa se trata de uma investigao hiperconsciente de si mesma, de suas
miopias e pontos-cegos, que vem sendo buscada e esboada por inmeros
coletivos latino-americanos dedicados a pensar epistemologias ps-coloniais
nos ltimos anos2. Uma das apostas mais promissoras nesse sentido o
desenvolvimento de metodologias de pesquisa em colaborao. No af de
lanar luz sobre sua emergncia, proponho o movimento de entend-la por sua
inverso: se houve necessidade de falar-se em pesquisa em colaborao
porque o paradigma hegemnico o da pesquisa feita em detrimento. Nesse
2 Apesar de mencionarmos especificamente a Amrica Latina aqui, reforamos, no entanto,
que essas epistemologias se afirmam como desdobramento das possibilidades de autocrtica e no de localizao geogrfica. Ao contrrio, Mignolo (2007) prope a mestiagem discursiva como possibilidade de escavar uma outra linha de construo discursiva a partir de outras linhagens de pensamento. No caso do poscolonialismo essa linhagem no se daria sobre a fixidez de localizaes geogrficas, mas de um acontecimento: a colonialidade.
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sentido, ao falar em pesquisa cuidadosa x pesquisa sem cuidado (ou
descuidada), refiro-me mesma lgica extrativista e unilateral que
denunciada pelas metodologias em colaborao.
O trabalho em co-labor, como vem sendo chamado nos contextos latino-
americanos em que vem sendo desenvolvido, ingressa nesse cenrio como
possibilidade emergente de uma maneira outra de fazer pesquisa. Surge como
quebra seguida de reorganizao de nosso fazer cientfico, interpelando
nossas mais elementares ferramentas, como o tradicional projeto de pesquisa,
seus elementos e as temporalidades em que se enclausura.
As metodologias em co-labor admitem o fardo colonial que pesa sobre
nossas investigaes e a arrogncia acadmica com que costumamos realiza-
las (Speed & Solano, 2008: pg66). Impem a vontade de comprometer-se em
outros nveis com a realidade social que descrevemos e assumir as
dificuldades de um caminho ainda por ser traado nas Cincias Sociais, mais
atento ao outro em todas as suas manifestaes, tendo-o, de fato, como co-
autor do empreendimento que se quer realizar. Sua proposta se insere em um
projeto de descolonizao acadmica que pressupe admitir a diversidade de
experincias levadas a cabo no mundo, fora do cnone cientfico e sem
depender dele, e que resultam de saberes legtimos que seguem regendo a
vida daqueles que pesquisamos ao alvedrio de nossa razo indolente, que
costuma buscar na realidade social apenas o que lhe falta (Santos, 2007).
Aubry (2011) indica o campo de conhecimento da cincia como un muy
pequeo recorte del grande conocimiento de la vida y experiencia. Essa
imagem da cincia como conjunto limitado subverte a lgica de que ela prpria
e outras formas de conhecimento tratem-se de saberes apartados e
incomunicveis e reclama uma postura de humildade do cientista que implica,
em alguma medida, na necessidade de desaprender o aprendido a partir da
comunicao com o grupo investigado. Boaventura de Sousa Santos (2006)
afirma algo semelhante ao mencionar a ignorncia como ponto de chegada,
uma vez que admiti-la essencial para uma postura de abertura e
aprendizagem com o outro.
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Pelo empoderamento epistemolgico do subalterno
Em minha experincia pessoal com a pesquisa no Haiti, que j se
prolonga por sete anos, deparei-me com a grande dificuldade de colocar-me
em contato com meus interlocutores principais na pesquisa sobre a
Universidade Haitiana: os estudantes universitrios daquele pas. Como as
entrevistas que havia projetado realizar durante meu mestrado em Educao
no puderam ser feitas pessoalmente - j que no consegui levantar fundos na
Universidade para uma nova ida ao Haiti - o correio eletrnico me pareceu o
caminho natural para faz-lo sem maiores dificuldades. Aps meses de
tentativa de receber resposta alguma dos alunos que eu j havia conhecido em
minha primeira viagem ao Haiti, e de inmeros e-mails escritos em ingls,
espanhol, francs (porque em algum momento imaginei que o problema
pudesse estar no idioma), passei a refletir sobre as causas do que acontecia.
O primeiro movimento que fiz, inspirada nas lgicas de pesquisa em co-
labor (Speed & Solano, 2008) foi o de compreender o que ocorria no somente
como causalidade ou m sorte, mas como no resposta ativamente executada
pelos alunos contatados. Essa no resposta pensada como ao, me fez
percebe-la como resistncia, ainda que no planejada ou articulada, desses
jovens universitrios. Como recusa colaborao com uma estrangeira em
mais esse nvel, apesar de minhas boas intenes. Metodologicamente,
percebo que estive tentando comunicar-me de maneira assimtrica com esses
sujeitos, j que, o tempo todo, trataram-se das perguntas que formulei
unilateralmente e que deveriam obedecer ao tempo de resposta ditado por
mim, ignorando as lutas e enfrentamentos com os quais se debatiam naquele
momento e as respostas mais urgentes que exigiam:
Los procedimientos de los actores sociales no son los del investigador convencional. Este ltimo irrumpe con sus presupuestos tericos, el tema de su tesis, un encargo acadmico de su institucin; es decir, con preocupaciones abstractas originadas en sus lecturas o sus maestros; como asesor de una agencia oficial, internacional o civil, o por los intereses de quienes le proporcionaron la beca o los fondos para su investigacin. Al contrario, los comisionados por mandato de otros compaeros de lucha cargan con la
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responsabilidad de dar a sus comunidades una respuesta a preguntas endgenas: un conflicto que transformar de manera constructiva, una situacin resentida como problemtica, o un desafo colectivo que resolver; en suma, una respuesta comprometedora a luchas concretas: polticas, ecolgicas, laborales, agrarias, de produccin y comercializacin o de convivencia, etctera, de una realidad local, regional o hasta ms amplia (Aubry, 2011. pg.62).
Percebo, assim, que segui tentando falar por eles, contando com a
legitimidade que sua apario em meu trabalho me conferiria e sem nada a
lhes oferecer em contrapartida, no fazendo outra coisa que lhes invadir a vida
que corria em seu prprio ritmo, com suas temporalidades e exigncias
estranhas pesquisa. Acerca dessa atitude extrativa, Freire (1973) afirma que
toda invasin sugiere, obviamente, un sujeto que invade. Sugere ainda que:
El invasor reduce los hombres del espacio invadido a meros objetos de su accin () el primer acta, los segundos tienen la ilusin de que actan, en la actuacin del primero; ste dice la palabra, los segundos, prohibidos de decir la suya, escuchan la palabra del primero; el invasor piensa, en la mejor de las hiptesis, sobre los segundos, jams como ellos; stos son pensados por aquellos. (Freire, 1973:21).
A construo freiriana dialoga, assim, com os dilemas com que se debate
a investigao em co-labor: possvel ocupar outro lugar na pesquisa que no
aquele de invasor? Para avanar em relao a essa crtica, me parece
interessante um movimento de empoderamento metodolgico dos invadidos.
Freire segue a citao reproduzida acima afirmando que El invasor prescribe,
los invadidos son pasivos frente a su prescripcin. Com base, principalmente,
na experincia que vivi com os estudantes haitianos, proponho dois
movimentos hermenuticos que desafiam a afirmao freiriana: 1) O
entendimento de que os silncios, a no-colaborao, o no entusiasmo, o no
esforo de compreenso mtua, o esquecimento, que tendem a ser assumidos
como passividade dos invadidos, podem constituir resistncia, atitude potente
de rechao ao que imposto verticalmente. 2. A aposta de que os invadidos
no ouvem passivamente a palavra do outro sem que haja, incontinente, ato
mental de valorao, dvida, refutao, oposio, transfigurao do ouvido.
Mais: de que haja, depois da partida do invasor, um momento de subverso
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de sua palavra, em que ela questionada, posta em debate, transformada em
chiste, pardia, entre os invadidos.
Rita Laura Segato admite que, diferente do que afirma Spivak em Pode o
Subalterno falar? de que no, eles no podem no somente podem como
o fazem, mas entre eles3. Assim, no se trata de salv-los da alienao em
que se encontram, mas de criar as condies de possibilidade para que falem
conosco e no somente entre eles. Esse movimento no me parece possvel
de ser empreendido apenas estando entre eles (como o observador total de
Garfinkel), mas necessita de uma postura outra onde os sentidos sobretudo a
audio - sejam elevados a um novo patamar.
A ressignificao dos sentidos na pesquisa cuidadosa
Impe-se, para a realizao de uma pesquisa sob o paradigma do
cuidado, uma escuta aberta surpresa, capaz de ouvir o novo sem reduzi-lo
imediatamente ao j conhecido, de ouvir e lidar com - o que no responde
necessariamente s questes de pesquisa, o que desestabiliza as hipteses
com que vamos a campo, o que coloca arestas em um trabalho cientfico que
se pretende redondo. Trata-se de uma postura ativa e generosa, de respeito e
humildade, em que se houve o outro que fala sem pressa, sem cortes, sem
converso imediata em texto ou concluses, que implica maturao da palavra
ouvida at que, junto dos demais sujeitos de pesquisa, decida-se o que fazer
com ela. H, a, um tempo que se expande como uma coluna de ar, permitindo
o respiro, a distenso, a dilatao do processo mediante o qual se apreende ou
desvenda uma dada narrativa. Tempo para que ela repercuta e produza efeitos
sobre o pesquisador.
Essa postura me parece incorporar de modo potente o debate que vem
sendo realizado pela antroploga britnica Marilyn Strathern. Em Parcial
Conections, Strathern (2004) sugere que o campo de pesquisa constitudo
de partes/partculas que, somadas, no do origem a um todo fechado,
completo, uno. O que est em questo o tipo de conexo que pode ser
3 A fala de Segato integra uma srie de entrevistas realizadas pela antroploga Vernica Gago
(Universidad Nacional de San Martin) por ocasio do aniversrio da obra de Spivak e est disponvel no link: https://www.youtube.com/watch?v=SdYN0yx5Q2Y
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concebida entre essas partes/partculas/entidades que tm diferentes origens,
no obedecem a escalas comuns, no so comparveis, no esto no mesmo
registro, mas trabalham em comunho.
Nesse contexto, admite-se que se um no pode definir completamente o
outro, j que nenhuma posio oferece um contexto em que se verifique
superposio completa de um em relao ao outro, tampouco a perspectiva de
uma parte/partcula pode subsumir-se perspectiva da outra. As conexes
entre as mesmas so, assim, parciais porque nenhuma entidade nica criada
entre as partes. O exemplo dado por Strathern o do organismo e da mquina,
cuja conexo o que define o cyborg, e que, apesar de justapostos, no
podem ser conectados numa relao parte/totalidade, j que um no pode
definir completamente o outro. Strathern aposta nos espaos entre estas
justaposies como o lugar de potncia dessas conexes instveis, onde o
indecifrado/indecifrvel pode se localizar, onde o no traduzido pode seguir
projetando-se sobre os envolvidos nessa constelao (inclusive sobre o leitor),
graas brecha. Esse movimento altera o status epistemolgico da lacuna. Ao
invs de ser percebida como algo que falta e portanto, que fracassa - ela
entendida como lugar de infinita possibilidade de manifestao do devir.
Essa suspenso das certezas que acompanha a proposta de Strathern4
comunica-me com uma recente experincia entre os Mbi Guaran,
comunidade indgena que vive prximo Itapu, na grande Porto Alegre/RS. O
Cacique Vher Poty explicava ao pblico visitante, composto de alunos e
funcionrios da UFRGS, as distintas razes de alma que poderiam ter os seres
humanos (ele prprio vinha do trovo) diante do que acenvamos nossas
cabeas, assentindo. Ao perceber esse movimento, Ver no hesitou em
suspender a fala e dirigir-se a ns mais ou menos nos seguintes termos:
Parem de dizer que entenderam. Estamos falando de algo difcil, profundo,
que no pode ser entendido assim to rpido. Escutem uma vez e pensaro
que entenderam. Escutem outra e vero que h um elemento fora do lugar.
Escutem uma terceira e percebero que h mais coisas que no se encaixam.
Na quarta vez vero que no haviam entendido nada. Talvez na quinta possam
4 A suspenso das certezas tambm aparece em Latour e Stangers como potente caminho
metodolgico.
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comear de novo. Essa experincia entre os Mbi guarani, de modo mais
potente que qualquer teoria, ensinou-me a desconfiana em relao rapidez
com que produzimos ideias-certezas durante nossas pesquisas e a importncia
da atitude com que escutamos falar.
Gladys Tzul, intelectual feminista guatemalteca, trabalha com "escutar
falar" como categoria em seu pensamento5. Ela refere-se, entretanto, ao sujeito
investigado e no ao investigador, em uma atitude de espreita, de averiguao
das condies de possibilidade de sua prpria fala, quando cala o pesquisador.
Trata-se de um clculo a partir da fala do outro hegemnico, do desvelamento
antecipado de sua atitude e expectativa diante da voz subalterna, cujo
resultado conduz ao silenciamento ou vocalizao estratgicos.
Outra dimenso dos silncios que me parece central a uma investigao
que se pretende cuidadosa aquela que se impe entre os sujeitos
investigados, enquanto grupo que tambm se processa assimetricamente. A
antroploga boliviana Slvia Riveira Cusicanqui admite essa dimenso como
uma das limitaes da investigao-ao participativa (IAP) medida que,
ainda que determinado pesquisador se proponha a ouvir um grupo subalterno,
geralmente ouve determinados indivduos em detrimento de outros,
reproduzindo (e mesmo reforando) relaes de poder assimtricas em seu
interior. Isso ganha ainda mais peso se levarmos em conta que a IAP pretende-
se pesquisa em colaborao com pretenso descolonizadora, ou seja: capaz
de produzir empoderamentos, deslocamentos, rotas de fuga de relaes de
poder opressoras no interior dos grupos estudados.
Mais uma vez se coloca, como fantasma6 (Deleuze, 1974) o problema de
Spivak, que conduz aos questionamentos: Quem fala quando um grupo de
pesquisadores se prope a ouvir um grupo subalterno? Quem se escuta falar
e que vozes seguem inauditas, interditadas para a fala? Em que medida entra
5 Para ver mais, sugiro a leitura da entrevista realizada pelo CES com Tzul, disponvel em
http://alice.ces.uc.pt/news/?p=3013 6 Gilles Deleuze aponta que os fantasmas, como prope a psicanlise, seriam efeitos de
realidade e poderiam ultrapass-la. Os fantasmas seriam da natureza do trao, como prope Derrida, e no faria diferena definir o fantasma como verdadeiro ou falso. Os fantasmas so sempre verdadeiros. Eles podem reproduzir os sentimentos que marcaram um acontecimento e perpetu-lo, pois ultrapassam limites temporais e, segundo Gilles Deleuze, nem ativos nem passivos, nem internos nem externos, nem imaginrios nem reais, os fantasmas tm realmente a impassibilidade e a idealidade do acontecimento (DELEUZE, 1988: p. 218)
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ou deve ser incorporada ao nosso repertrio tico enquanto cientistas sociais a
preocupao com a criao de condies de possibilidade para que outras
falas emerjam nesse processo de escuta? /deve ser/pode ser nossa essa
atribuio?
Aubry afirma que el conocimiento cientfico que genera un investigador
tiene una dimensin tica a partir de la implicacin de sus resultados, su uso,
para qu est produciendo conocimiento o a qu tipo de proyecto est
abonando. A preocupao que demonstra, assim como Cusicanqui, me parece
ser a mesma a que me somo: saber como os saberes produzidos em dilogo
com as comunidades investigadas podem auxili-las no mnimo no
prejudic-las - em suas lutas concretas.
No caso de meus sujeitos de pesquisa os universitrios haitianos - esse
cuidado com a dimenso da escuta torna-se ainda mais valioso ao assumir
como hiptese que o modo como empreendemos estudos sobre a pobreza
pressupe-na como espao vazio de sentidos e saberes, pronto a ser
preenchido pela razo hegemnica. Os haitianos (vistos como bloco
homogneo de negros-pobres) situam-se justamente nesse lugar despropriado,
deslegitimado, vazio, interditado para a fala. Nesse sentido, somente
avanamos se ousarmos compreend-los ( pobreza e ao Haiti) fora do
paradigma da incompletude. Avanamos mais se ousarmos ir alm do
ilemorfismo denunciado por Jos Carlos dos Anjos (2014) como processo pelo
qual o pensamento subalterno reduzido matria a ser ajustada no formato
de nossas armaduras tericas hegemnicas. Esse processo, apesar de muitas
vezes emergir de pesquisas que se querem crticas e engajadas, mantm
inalteradas as frmulas hegemnicas de produo de conhecimento, j que o
conhecimento subalterno segue restrito matria, deixando de produzir seus
efeitos enquanto forma. Tambm esse movimento sinaliza a busca de uma
metodologia cuidadosa com a qual fazer pesquisa.
Por fim, a dimenso da escuta tambm se abre como caminho para ser
afetado (Favret-Saada, 1990) em campo e, imerso nesse novo estado de
sensibilidade, ser capaz de produzir de forma distinta, de criar outras
possibilidades para descrever esse encontro. Nesse sentido, Ixtik e Berrio
(2010) propem um mtodo colaborativo de otra manera, levando em
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considerao as limitaes pelas quais passamos em nossas instituies de
pesquisa. As autoras admitem que o mtodo colaborativo seja iniciativa de um
dos lados envolvidos na investigao, podendo ser aceito ou refutado pelo
outro. O captulo de que so autoras na obra Conocimientos y prcticas
polticas: reflexiones desde nuestras prcticas de conocimiento situado
compe um interessante relato de experincia com mulheres indgenas da
regio dos Chiapas, Mxico, que se dobra sobre si, pensando-se crtica e
metodologicamente. Merecem destaque as perguntas sugeridas pelas autoras
para viabilizar a investigao colaborativa con quienes se puede/debe trabajar
de este modo? Sujetos constituidos polticamente y ampliamente
reconocidos? Con luchas prontas con las cuales nos identificamos? Cmo
se plantea la agenda conjunta? (Ixtik; Berrio, 2010:13).
Ademais da contribuio metodolgica do trabalho, ao refletir sobre as
questes postas acima, tambm aparece como novidade o entendimento das
autoras, ao trabalhar com "los dolores del pasado" das mulheres envolvidas na
pesquisa, da afetividade como uma experincia social significativa que pode
emergir da situao de investigao e, quando o faz, mobiliza os envolvidos,
evidenciando que fazer pesquisa tambm pode implicar ser atravessado,
afetado no encontro que se d em campo e que pede escrita cientfica que
ouse e experimente ao comunicar a tica e a esttica desse atravessamento7.
Boaventura de Sousa Santos vem propondo pensarmos em uma
participao observada8 como contraponto observao participante e
que consiste no registro das impresses que emergem ao estar junto desses
atores, cientes de que algo simtrico ao que realizamos em relao a eles se
d em relao a ns, sujeitos estranhos quele espao, cuja presena coloca
em cheque o desenrolar cotidiano da vida e faz emergir tenses e
reorganizaes nos fazeres e discursos.
7 Com efeito, a ideia do pesquisador neutro, assim como a insistncia, tanto a leiga quanto a
acadmica, em perceber a paixo como algo alheio, seno oposto razo e ao fazer cientfico tornam-se problema. Rousseau, em seu Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens, j sugeria que no possvel conceber porque aquele que no tivesse desejo ou medo se daria ao trabalho de pensar. Da a percepo de que sem paixo (temores e desejos), a pesquisa corre o risco de transformar-se num relatrio desencarnado, que nada aposta ou experimenta. 8 Boaventura fez uso desse termo interessante durante a Summer School Epistemologias do
Sul, de que participei em Junho desse ano, em Curia/Portugal.
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Lugar para o silncio da escuta atenta, da maturao rumo ao
entendimento denso, que comporta o ainda no. Lugar para a palavra do
outro capaz de desestabilizar relaes de poder constitudas, afirmar novos
lugares, descolonizar. Espao e tempo dilatados para uma investigao que
assuma seus lugares instveis e seja capaz de viajar, de projetar-se e dobrar-
se sobre si mesma, corrigindo rotas. Esse me parece um caminho cuidadoso.
Um caminho que no se percorre solitariamente e que exige pensar a
investigao cientfica como exerccio tico, compartilhado, mas, sobretudo,
afetivo (capaz de afetar e produzir afetos) que se traa com e em direo ao
outro.
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