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UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI VANISE F. DE ALMEIDA IMAMURA
HOSPITALIDADE, DDIVA E ATENO CUIDADOSA: POTENCIALIZANDO A SOCIABILIDADE NA GESTO DE
PESSOAS
SO PAULO 2008
VANISE F. DE ALMEIDA IMAMURA
HOSPITALIDADE, DDIVA E ATENO CUIDADOSA: POTENCIALIZANDO A SOCIABILIDADE NA GESTO DE
PESSOAS
Dissertao de Mestrado, apresentada como exigncia parcial para a obteno do ttulo de Mestre do Programa de Mestrado em Hospitalidade, rea de concentrao Planejamento e Gesto em Hospitalidade, linha de pesquisa Dimenses Conceituais e Epistemolgicas da Hospitalidade, da Universidade Anhembi Morumbi, sob orientao da Prof . Dr. Marielys Siqueira Bueno.
SO PAULO 2008
VANISE F. DE ALMEIDA IMAMURA
HOSPITALIDADE, DDIVA E ATENO CUIDADOSA: POTENCIALIZANDO A SOCIABILIDADE NA GESTO DE
PESSOAS
Dissertao apresentada como requisito parcial para a obteno do ttulo de mestre em Hospitalidade da Universidade Anhembi Morumbi
_______________________ Orientadora/Presidente
Prof. Dr. Marielys Siqueira Bueno
____________________________________________ Componente da Comisso Convidada (Titular)
Prof. Dr. Rosemeire Aparecida Scopinho
____________________________________________ Componente Comisso da UAM (Titular)
Prof. Dr. Snia Regina Bastos
Aos meus filhos Lukas e Melissa, que me ensinam, todos os dias, sobre o amor incondicional e alegria de viver;
Ao meu marido Leo,
meu anjo, guerreiro e amado companheiro de vida;
Aos meus pais, Virglio e Iracy, meu irmo Renato e minha tia Edna, Pelo privilgio e ddiva de t-los em minha vida.
AGRADECIMENTOS
Agradeo aos queridos professores do Mestrado da Universidade Anhembi Morumbi,
em especial a Snia Bastos, por suas significativas contribuies no meu processo de
amadurecimento acadmico, e por ter me revelado uma surpreendente maneira de olhar a
Histria; a Maria do Rosrio Salles, pelo apoio, carinho e ateno cuidadosa, nos momentos
cruciais de minha jornada; e ao Raul Amaral que me fez seguir em frente.
Alessandra, obrigada por sua ajuda, sempre gentil e carinhosa; que voc tambm possa
encontrar anjos assim em seu caminho.
A minha orientadora Marielys Bueno, verdadeira me acadmica, que soube como
ningum me conduzir por essa desafiante jornada, ora me deixando voar para reavivar meu
sonho, ora me levando pela mo para que eu no me perdesse nele, ora me carregando no
colo quando eu achava que no era mais possvel, ora me fazendo erguer com minhas prprias
pernas, permitindo que acreditasse neste trabalho. Voc me ensinou muito mais do que
imagina.
Agradeo a INDECA, em especial ao CEO Paul Liu, que atravs de uma viso
inovadora, ofereceu todas as condies necessrias para construir uma ambincia que
permitisse que a hospitalidade e a ateno cuidadosa fizessem parte do dia-a-dia da empresa.
A Luiz Mida, Karla e queridos amigos do Patrimnio do Matutu, que com seu
exemplo de vida e trabalho, nos inspiraram a incorporar a hospitalidade estratgica no
Instituto de Inteligncia Estratgica.
A Walter Corra, Washington Fonseca e Tiago Quintela, pela ajuda competente e
gentil, envolta pela ateno cuidadosa, que sempre tiveram comigo.
Ao Instituto de Inteligncia Estratgica e Famlia Moy Yat Sang, por me ensinarem o
que Hospitalidade, Ddiva e Ateno Cuidadosa.
Aos meus pais, Virglio e Iracy, por me darem, desde criana, a ambincia perfeita
para meus estudos.
Lukas e Melissa, agradeo o tempo precioso, que por direito eram seus, e que vocs
to compreensivamente me doaram.
E a Leo Imamura, agradeo profundamente seu apoio incondicional e sua presena
fundamental nos momentos mais difceis dessa jornada, sempre me fazendo acreditar que
valia a pena. Valeu muito a pena e sem voc eu jamais teria conseguido.
Quando um Homem usa a estratgia para favorecer a si prprio, ele um manipulador;
quando a usa em favor do outro, ele um estrategista;
quando a usa em favor da humanidade,
ele um sbio.
(Leo imamura)
RESUMO
O processo acelerado e ininterrupto das conquistas tecnolgicas afeta a produtividade do mundo moderno e, conseqentemente, determina profundas mudanas no mundo do trabalho. O aspecto competitivo, a ameaa do desemprego, a necessidade constante de adequao nas tcnicas produtivas geram, evidentemente, tenses nas relaes entre colaborador-empresa, assim como entre seus pares (colaboradores). Faz-se, portanto, um apelo constante, e cada vez mais necessrio, ao gerenciamento voltado para atenuar/harmonizar essas tenses de carter relacional. Tal demanda, muitas vezes, resulta no auxlio/interveno de empresas especializadas em gesto de pessoas. Dentre essas empresas, focalizou-se o Instituto de Inteligncia Estratgica (IIE), empresa que presta consultorias no segmento do desenvolvimento humano, fundamentado num sistema chins de inteligncia estratgica (Ving Tsun), que se utiliza de recursos que promovem experincias significativas, mediadas pela ateno cuidadosa, privilegiando as relaes interpessoais, buscando melhorar os sistemas de comunicao numa perspectiva transindividual. O objetivo deste estudo foi analisar o papel da hospitalidade, enquanto geradora de uma ambincia favorvel aos processos relacionais e comunicacionais, numa prtica de interveno do IIE, na gesto de pessoas, numa empresa brasileira-americana cuja finalidade foi potencializar as relaes no mbito profissional. O foco desta pesquisa nesta prtica de interveno foi devido incorporao da dimenso da hospitalidade dentre seus recursos de atuao. Trata-se de uma pesquisa exploratria de natureza qualitativa, que utiliza o mtodo da observao participante. Como resultado desse estudo foi possvel constatar que a hospitalidade gera uma ambincia favorvel melhora dos processos relacionais e comunicacionais, atravs da abertura ao dilogo, do acolhimento e reconhecimento mtuo entre os participantes dessa experincia.
Palavras-chave: Hospitalidade. Ddiva. Ateno Cuidadosa. Comunicao nas Organizaes. Eventos Corporativos.
ABSTRACT
The uninterrupted and fast-paced process of technological advances affects the productivity of the modern world and therefore determines deep changes on the work place. The competitiveness, the looming threat of unemployment, and the need to keep up with productive techniques generate tensions in the relationship between employee and organization as well as between employees. It becomes a constant appeal and even more a need the management oriented towards the harmonization of the stress of relationships. Such demand results in the intervention of organizations specialized in management of people. Among those organizations is the Strategic Intelligence Institute that provides consulting for the human development based on the chinese system for strategic intelligence (Ving Tsun), that employs resources that promote meaningful experiences mediated by caring attention, prioritizing the interpersonal relationships, aiming to improve the communication system at the trans-individual level. The objective of this study is to analyze the role of hospitality while generating a favorable environment to foster the processes of relationships and communication for the practice of intervention on people management, in an Brazilian- North-American company, with the purpose of give a new meaning, improve, and enhance the potential of the professional relationships. The focus of this research on this practice of intervention was due to the introduction of the dimension of hospitality among the resources for actuation. It is an exploratory research of qualitative nature that employs the participant-observer method. As a result of this study it was possible to note that the hospitality generates a favorable environment to the improvement of the processes of relationships and communication, through the opening of dialog, mutual acknowledgement and acceptance among the participants of this experience.
Keywords: Hospitality. Gift. Caring Attention. Organizational Communication. Corporate Events.
LISTA DE QUADROS
Quadro1 Compilao das estratgias adotadas, resultados e categorias de anlise..................85
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
(ORDEM ALFABTICA)
CEO - Chief Executive Officer
ICP fuso dos nomes das empresas INDECA e UCP
IIE Instituto de Inteligncia Estratgica
INDECA Indstria de Cacau e Comrcio Ltda. (Brasil) MYVTMI Moy Yat Ving Tsun Martial Intelligence
UCP - United Cocoa Processing (Estados Unidos)
10
SUMRIO
INTRODUO...........................................................................................................11
CAPTULO I GLOBALIZAO E HOSPITALIDADE ...................................22
AS RELAES ORGANIZACIONAIS EM DECORRNCIA DA GLOBALIZAO .......................................24 DDIVA COMO SISTEMA DE RELAES SOCIAIS ................................................................................37 HOSPITALIDADE COMO BASE DA ORGANIZAO SOCIAL ..................................................................41
CAPTULO II OS FUNDAMENTOS DA ATUAO DO INSTITUTO DE
INTELIGNCIA ESTRATGICA ......................................................................................48
INSTITUTO DE INTELIGNCIA ESTRATGICA.....................................................................................48 MOY YAT PONTE COM A CULTURA CHINESA ....................................................................................51 O SISTEMA VING TSUN ........................................................................................................................52 ATENO CUIDADOSA .........................................................................................................................59
CAPTULO III A PRTICA DE INTERVENO ICP JOURNEY NA
PERSPECTIVA DA HOSPITALIDADE E DA ATENO CUIDADOSA....................69
EVENTO ICP JOURNEY I......................................................................................................................70 EVENTO ICP JOURNEY II .......................................................................................................................79 EVENTO ICP JOURNEY III...................................................................................................................81 ANLISE DOS RESULTADOS...................................................................................................................83
CONSIDERAES FINAIS...................................................................................100
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS....................................................................108
BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................116
11
INTRODUO
Modernidade e globalizao, termos que interpenetram o nosso cotidiano, remetem a
movimentos de construo e desconstruo, de emergncias de novidades , desaparecimentos
de tradies e ritualizaes. A sociabilidade humana passa a ser comprometida pela
velocidade das mudanas, em que a inovao tecnolgica adquire propores universais.
Conquistas cientficas, novas tecnologias, a emergncia ininterrupta da novidade, do indito,
demandam permanentemente por eficincia e provocam uma competio agressiva.
O processo acelerado e ininterrupto das conquistas tecnolgicas afeta a produtividade
do mundo moderno e consequentemente determinam profundas mudanas no mundo do
trabalho. O aspecto competitivo, a ameaa do desemprego, a necessidade constante de
adequao nas competncias e novas tcnicas produtivas geram, inevitavelmente, tenses nas
relaes colaboradores-empresa, bem como entre os colaboradores.
Os problemas gerados pela globalizao apontam para a necessidade de gestes
especializadas, onde a gesto de pessoas possa instrumentalizar seus colaboradores no mbito
do desenvolvimento humano, numa perspectiva menos utilitarista.
A comunicao nas organizaes parece ter se tornado o rgo de choque dessas
tenses no mundo do trabalho. Tornando-se necessrio um entendimento cada vez maior entre
as pessoas envolvidas na empresa, para que possam continuar a competir mantendo seus
padres de produtividade e lucratividade. A comunicao nas empresas torna-se ento um
elemento estratgico. Porm, essa ateno voltada a questo da comunicao, quer seja entre
colaborador-empresa, quer seja entre seus pares, conduz perspectiva humana da
comunicao, enquanto relao com o outro, uma vez que o comunicar-se est na base do
relacionamento humano, e quanto maior for o entendimento entre as pessoas, maior ser o
bem-estar entre elas.
Essa nova realidade em que as relaes sociais, polticas e econmicas, marcadas pelo
utilitarismo obrigam as pessoas e as instituies a refletirem sobre seus efeitos na
sociabilidade humana. relevante que indivduos e organizaes estabeleam novos
contornos de relaes, redes e alianas.
Como contraponto a essa realidade utilitarista, destaca-se na Frana um movimento
cultural e intelectual, criado em 1981 introduzindo a idia de que o resgate das relaes
sociais somente surge em condies particulares de doao, confiana e solidariedade. Com
12
essa proposta renovadora, o grupo, que se denominou M.A.U.S.S.1 (movimento antiutilitarista
em cincias sociais) inspirado no clebre socilogo francs Marcel Mauss, mostra como a
descoberta do papel central do dom nas sociedades arcaicas permite iluminar tambm a
modernidade . Com o conceito maussiano de ddiva, retoma-se o estudo da trplice obrigao
de dar, receber e retribuir para a compreenso dos vnculos sociais enfraquecidos pela fora
da ideologia da economia mercantilista sobre o homem moderno.
Nesse sentido Godbout (1999) importncia desse movimento antiutilitarista est em
denunciar o equvoco do modelo economicista que tenta limitar as motivaes humanas
moral do interesse ao eleger o mercado como instncia privilegiada do bem estar social. Ele
afirma que a ddiva serve, em primeira instncia, para estabelecer relaes e constitui um
sistema de relaes sociais na medida em que so irredutveis s relaes de interesse
econmico.
Isabel Baptista (2005) aponta para a importncia da dimenso tica da ddiva e da
hospitalidade, cuja competncia institui linhas de proximidade em diversos planos da
sociedade privado, pblico, organizacional.
A Hospitalidade pode ser considerada como um modo privilegiado de encontro,
marcado por uma atitude de acolhimento do outro (BAPTISTA, 2002; BUENO, 2003). Trata-
se de um ritual bsico do vnculo humano (CAMARGO, 2004), sendo considerada tambm
como uma maneira de se viver pacificamente em sociedade e, como tal, necessitando ser
regida por regras, leis e rituais (MONTANDON, 2004). Para Dencker (2007b) a hospitalidade
a base de toda a organizao social, j que trata do encontro entre estranhos que buscam se
comunicar. Dencker afirma ainda que as regras de hospitalidade atuam evitando conflitos e
possibilitando a formao das alianas fundadoras de vnculos de sociabilidade. Portanto, este
o vnculo terico que inaugura, nesta pesquisa, a reflexo sobre a dimenso da hospitalidade
e da ddiva como razo antiutilitarista nas relaes sociais em especial, as organizacionais.
Face aos desafios contemporneos engendrados pelo fenmeno da globalizao, cujo
impacto sentido principalmente nas relaes e interaes humanas, o meio organizacional
no deve negligenciar a relevncia da gesto de pessoas. Faz-se, portanto um apelo ao
gerenciamento voltado para atenuar/harmonizar tenses de carter relacional. A gesto de
pessoas passa a buscar auxlio/interveno de empresas especializadas em gerenciar e
favorecer os processos comunicacionais e relacionais.
1 Mouvement anti-utilitariste dans les sciences sociales
13
Dessa maneira destaca-se uma experincia apoiada em conceitos da hospitalidade,
ddiva e ateno cuidadosa, protagonizada por uma empresa brasileira, chamada Instituto de
Inteligncia Estratgica (IIE). Essa experincia, pertencente a uma prtica de interveno na
gesto de pessoas de uma indstria alimentcia brasileira e americana (INDECA-UCP), foi
analisada justamente porque incorporou em seu mtodos de atuao, a dimenso da
hospitalidade.
O Instituto de Inteligncia Estratgica (IIE) uma empresa que presta consultoria
atuando em diversos segmentos que envolvem o desenvolvimento humano, fundamentado
num sistema chins de inteligncia estratgica, chamado Ving Tsun. Promove atividades,
seminrios, capacitaes em mbitos pessoais e corporativos, em que se utilizam recursos que
objetivam gerar experincias significativas, valendo-se da tomada contnua de conscincia
de si mesmo atravs do outro. Suas atividades envolvem prticas corporais (dispositivos
corporais de combate simblico) associadas a conceitos filosficos da inteligncia estratgica
chinesa, que podem ser vivenciadas desde a experincia marcial, atravs da prtica do Ving
Tsun, at experincias que envolvem a hospitalidade, o receber/acolher humano em suas
diversas formas de manifestao. Tais vivncias so sempre mediadas pelo conceito de
ateno cuidadosa, enquanto um cuidado com o outro de modo a no interferir
imprudentemente no fluxo natural dos acontecimentos.
O Sistema Ving Tsun, que fundamenta o IIE, chegou ao ocidente atravs de Moy Yat
(1938-2001), um reconhecido gro-mestre2 de Ving Tsun que teve sua divulgao no Brasil
atravs da implantao do Programa Moy Yat de Ving Tsun Martial Intelligence. O Ving Tsun
um sistema de estratgia chinesa, oriundo do sul da China, da primeira metade do sculo
XVIII3, que era ensinado aos herdeiros das famlias prsperas chinesas. Chegou ao ocidente
atravs de Moy Yat em 1973, ano em que se radicou nos Estados Unidos, na cidade de Nova
Iorque. Expandiu-se para o Brasil em 1988 atravs de Lo Imamura, fundador da Moy Yat
Ving Tsun Martial Intelligence (MYVTMI) e diretor principal do Instituto de Inteligncia
Estratgica, em So Paulo (SP).
Em virtude da necessidade de situar a atuao do IIE no mbito deste estudo,
realizaram-se recortes onde se destacam os conceitos de inteligncia estratgica chinesa e da
2 O ttulo de Gro-mestre uma traduo do titulo em chins 'Si Daai', reconhecido pela comunidade marcial chinesa , foi cunhado para designar aquele que conduziu a gerao seguinte a honrar o compromisso de formao completa para a transmisso pura da listagem integral em todas as fases do Sistema Ving Tsun. Como esse ttulo usado para a identificao externa ao crculo marcial (Mo Lam), no costume us-lo em chins. 3 Atribuiu-se a fundao do Sistema Ving Tsun ao ltimo reinado do imperador Yong Zheng da dinastia Qin, ou seja, 1735 d.C. (MORDENTE, 2005).
14
ateno cuidadosa, que buscam suas possveis relaes com a dimenso da hospitalidade,
em seu sentido maussiano, nas relaes com o outro, suas implicaes quantos ao
fortalecimento dos vnculos sociais, comunicao interpessoal e a sociabilidade em ambiente
corporativo
Essa prtica de interveno protagonizada pelo IIE, foi solicitada pela empresa
INDECA-UCP para atuar na sua gesto de pessoas , no intuito de potencializar/harmonizar/
auxiliar nos processos comunicacionais, em primeira instncia, de seu corpo diretivo,
buscando uma ressignificao de suas relaes interpessoais. Tal prtica, que teve seu incio
em 2006 e tem como previso seu encerramento at o final de 2008, foi iniciada atravs de
uma jornada de trs eventos corporativos ICP Journey I, II e III que se destacaram em todo o
processo desenvolvido, por terem incorporado a dimenso da hospitalidade e da ateno
cuidadosa em sua realizao, alm evidentemente do trabalho da inteligncia estratgica,
especialidade da IIE. Portanto, o que foi focalizado nesta pesquisa, diz respeito essa
incorporao da dimenso da hospitalidade enquanto geradora de ambincia
facilitadora/potencializadora da sociabilidade e da comunicao.
A partir da observao participante dessa experincia, buscou-se avaliar a contribuio
da hospitalidade, a ddiva e a ateno cuidadosa, num contexto corporativo, enquanto
espao privilegiado de relaes, no sentido de favorecimento dos processo de harmonizao
de tenses e fortalecimento das relaes do grupo. Espao este em que fosse possvel que seus
participantes pudessem mediar ou at ressignificar suas relaes, se abrirem ao dilogo e
fortalecerem seus vnculos.
O objetivo deste estudo foi, portanto, analisar o papel da hospitalidade, enquanto
geradora de uma ambincia favorvel aos processos relacionais e comunicacionais, na prtica
de interveno do IIE na gesto de pessoas da empresa INDECA-UCP, cuja finalidade foi
auxiliar, favorecer, potencializar as relaes interpessoais no mbito profissional.
A linha geral da argumentao sobre hospitalidade foi desenvolvida a partir dos
estudos de Montandon (2002, 2003, 2004), Gotman (2001), Selwyn (2004), Baptista (2002,
2005), Camargo (2003, 2004, 2006, 2007), Dencker (2003, 2007b) e Bueno (2003, 2006,
2007, 2008).
A questo da ddiva fundamentou-se em Caill (2002a, 2002b), Godbout (1997,
1999), Martins (2002), Martins e Ferreira (2004) e Martins e Campos (2006).
As reflexes a respeito do papel dos rituais e a importncia das ritualizaes na
dimenso da hospitalidade foram favorecidas atravs dos estudos de Peirano (2003) e Segalen
(2002).
15
A fundamentao bibliogrfica que permitiu melhor compreender os conceito de
inteligncia estratgica e da ateno cuidadosa pertencentes ao Sistema Ving Tsun, foi
baseada nas obras dos sinlogos Franois Jullien (1998, 2000, 2001, 2005, 2006) e Anne
Cheng (2008) e, na perspectiva ocidental Comte-Sponville (1995, 2006) e Leonardo Boff
(2000, 2005). J as escassas fontes sobre o sistema Ving Tsun, que a priori so em sua grande
maioria da ordem da tradio oral, em especial as que privilegiaram a linhagem de Moy Yat,
se deram quase que exclusivamente, a partir de Mordente (2005) e Imamura (2006, 2007,
2008).
Os recortes sobre a globalizao e seus efeitos sobre as relaes sociais se apoiaram
nos estudos de Ianni (1997, 1998, 1999) e Santos (2007).
A questo da comunicao nas organizaes, sua importncia e problemtica nas
relaes interpessoais se fundamentaram principalmente em Chanlat e colaboradores (v.1, v.2,
v.3, 2007), mas importantes contribuies advieram tambm de Frana e Leite (2007), Doz e
Hamel (2000), Dencker (2007b) e Dornelles (2006).
Esta pesquisa surgiu a partir da oportunidade da autora em participar dessa prtica de
interveno na INDECA-UCP, no perodo de 2006 a 2007, no estado de So Paulo. Foi ento,
a partir da participao nesta experincia, na prtica de interveno proposta pelo IIE, em
funo do objetivo traado, e aps a observao dos resultados obtidos durante esses trs
eventos corporativos, que surgiram as motivaes (e inquietaes) da pesquisadora a respeito
da contribuio da dimenso da hospitalidade nas ambincias geradas no decorrer da prtica,
como possveis responsveis pelo desencadeamento das mudanas e transformaes,
observadas e relatadas pelos participantes durante esses eventos. Chamou a ateno tambm
da pesquisadora, a abordagem do conceito da ateno cuidadosa dentro da atuao do IIE,
enquanto mediadora nos processos que configuraram a forma de interveno da mesma.
Dessa forma, a partir do objetivo desta pesquisa, a escolha metodolgica recaiu,
portanto, na pesquisa qualitativa.
A pesquisa qualitativa possui, segundo Lakatos e Marconi (2004), as seguintes
caractersticas: fonte direta de dados em um ambiente natural; ser descritiva; analisar
intuitivamente os dados; preocupar com o processo e no s com os resultados. Todas essas
caractersticas foram verificadas nesta pesquisa. Adotou-se a pesquisa qualitativa, afinal, por
acreditar-se, como afirma Chizzotti (2006), que a realidade fluente e muitas vezes
contraditria, e que os processos de investigao dependem tambm da concepo, dos
valores e objetivos do pesquisador. Diferente do que acontece nas pesquisas de cunho
quantitativo. Chizzotti ressalta que a pesquisa qualitativa pretende interpretar o sentido do
16
evento a partir do significado que as pessoas atribuem ao que falam e fazem (CHIZZOTTI,
2006, p.27). Esse convvio e partilha com as pessoas que contriburam como objetos de
estudo desta pesquisa, exigiu uma ateno cuidadosa e sensvel, em no interferir
imprudentemente no fluxo dos acontecimentos, o que se fez refletir quanto a escolha do tipo
de mtodo de observao: pesquisa ao ou observao participativa.
Por ter se tratado de uma pesquisa, baseada numa experincia j configurada
(anteriormente a esta pesquisa), que tinha seus prprios objetivos, optou-se em abord-la
como pesquisa exploratria, o que permitiu extrair, de seu estudo, especulaes e
questionamentos a respeito das possibilidades e limitaes da dimenso da hospitalidade
enquanto criadora de um espao privilegiado de relaes, baseadas na sociabilidade,
acolhimento e abertura ao outro. Buscou-se ainda refletir a respeito das possibilidades e
limitaes da hospitalidade enquanto geradora de ambincias facilitadoras que pudessem, em
ambientes organizacionais, favorecer os processos de harmonizao de tenses e
fortalecimento dos vnculos nas relaes profissionais, mediando e promovendo o dilogo,
auxiliando no processo de consolidao do mtuo reconhecimento.
Segundo a definio de Dencker e Da Vi (2002, p.59) os estudos exploratrios so
investigaes de pesquisa emprica que tm por finalidade formular um problema ou
esclarecer questes para desenvolver hipteses Por ser considerado apropriado para
proporcionar maior familiaridade com o problema e adequado para se acompanhar certas
dinmicas no momento em que elas esto acontecendo, acredita-se tratar de um procedimento
vlido num processo de avaliao da pertinncia de procedimentos e teorias, que nos permite
tambm levantar questionamentos, fazer especulaes e explorar a questo da hospitalidade
numa perspectiva peculiar na rea da gesto de pessoas.
A observao participante foi o mtodo de pesquisa que viabilizou a mesma, atravs
da descrio e anlise dessa experincia, contribuindo de forma primordial para o alcance do
objetivo desta. Tal observao focalizou a hospitalidade e a ateno cuidadosa,
investigando se essas dimenses proporcionariam/gerariam/contribuiriam para a criao de
um espao privilegiado ou ainda, de uma ambincia favorvel aos processos relacionais e
comunicacionais, nesta prtica de interveno. A pesquisa de campo se deu atravs da
observao participante desta prtica, chamada ICP Journey, composta por trs eventos
corporativos, inter-relacionados e complementares. Este conjunto de eventos corporativos que
fazem parte da prtica de interveno nesta empresa, desenvolvido e aplicado pelo Instituto de
Inteligncia Estratgica, compem o cenrio deste estudo, de onde se obtiveram as evidncias
17
empricas que foram analisadas e interpretadas em funo dos objetivos traados nesta
pesquisa.
A observao participante se deu atravs da participao da autora, como membro da
equipe, e responsvel pela coordenao geral da jornada dos trs eventos. O grupo de
participantes no teve conhecimento da realizao da pesquisa, na poca em que se deu a
prtica de interveno. Portanto, tal observao no contou com nenhuma ao direta da
pesquisadora que pudesse configurar uma coleta dirigida ou pr-estabelecida dos dados
observados. Dessa forma, no houve entrevistas nem coleta de depoimentos diretamente
relacionados pesquisa. Todo o material colhido/observado foi fruto de uma observao
participante que no teve a pretenso de intervir nos resultados desta ao. Esse mtodo
excluiu, portanto, a possibilidade de ter-se configurado em uma pesquisa-ao.
O mtodo de observao participante, segundo Silva (1991), permite a participao do
pesquisador, ao estabelecer sua atuao direta dentro do grupo integrante do evento
mencionado, de maneira a reduzir o estranhamento entre os dois plos (investigador e
investigado). Esta participao (pesquisadora) se concentrou, sobretudo, no plo investigador,
e coube ao ministrante do evento atuar diretamente com os participantes do evento (plo
investigado). Essa postura foi deliberadamente adotada tomando-se o cuidado em no
configur-la em uma pesquisa-ao. Thiollent (1998) considera a pesquisa-ao como uma
modalidade de pesquisa participante que se centra no agir, sendo os grupos investigados,
mobilizados em torno de objetivos especficos. O mtodo de observao adotado, portanto,
descarta a pesquisa-ao como mtodo e apia-se na observao participante. Considerou-se
de fundamental importncia que a pesquisadora no se envolvesse com as diretrizes traadas
pelo ministrante do evento, pois isso modificaria o enfoque do estudo. O foco era a
observao dos efeitos, da contribuio, da dimenso da hospitalidade, da ddiva e da
ateno cuidadosa sem que a pesquisadora interferisse nesse processo. A prpria noo da
ateno cuidadosa se fez necessria de modo a no interferir, imprudentemente, no fluxo
dos acontecimentos observados, para que fosse possvel uma anlise desse ponto de vista a
partir da hospitalidade
O fato desta observao, com participao integral da pesquisadora, ter durado dias (e
no apenas horas em sesses semanais, por exemplo), propiciou a familiarizao e interao
com as pessoas e situaes estudadas, o que promoveu uma condio favorvel no sentido de
aquelas se sentirem mais vontade e menos propensas teatralizaes. Thiollent (1989)
observa que quanto maior o tempo dedicado observao participativa, menos provvel que
as pessoas observadas distorcessem/artificializassem suas aes.
18
Yin (2006) considera que atravs da observao participante possvel perceber
determinadas dinmicas vivenciada pelos participantes do evento, do ponto-de-vista de
algum inserido no contexto, o que torna a observao vicria e mais enriquecedora, do que se
tivesse acontecido do exterior. Essa perspectiva, para muitas pessoas, de valor inestimvel
por produzir um retrato acurado do fenmeno observado. Procurou-se, portanto, olhar de
perto e de dentro os eventos ICP Journey I, II e III, de modo a operacionalizar-se a coleta de
importantes evidncias empricas que dificilmente seriam alcanadas atravs de outro
instrumento de coleta.
A determinao das categorias de anlise estabelecidas a partir da observao
participante foi de difcil execuo, por conta da dificuldade em conceder alguma objetividade
dentro da imensa subjetividade que permeia a perspectiva das relaes sociais. Foram
agrupadas conforme a dimenso a que se relacionava:
1. Hospitalidade: gestos e prticas de acolhimento, de abertura ao outro, e rituais de
socializao que remetiam a esta dimenso. Por exemplo: gestos de camaradagem, servir o
outro durante as refeies, incluir o outro atravs de convites verbais ou no-verbais,
expresses e manifestaes verbais/no-verbais a respeito do ambiente objetivo e subjetivo
etc.
2. Circulao da ddiva da palavra: gestos e atitudes que expressavam/significavam a
escuta, a ateno fala do outro, predisposio ao dilogo etc.
3. Ateno cuidadosa: atitudes que expressavam um cuidado com o outro.
Preocupao em no invadir, em no interferir imprudentemente em uma ao do outro.
Fazendo parte dos dados obtidos com a observao participante, levou-se em
considerao as informaes obtidas a partir dos depoimentos solicitados no momento de
avaliao dos resultados desta prtica, sob a ptica de seus participantes. Embora tais
depoimentos tenham sido fornecidos pelos participantes aos ministrantes, e no foram
solicitados nem dirigidos pesquisadora, considerou-se um material importante que trouxe
para a anlise as impresses e percepes relacionadas s mudanas de comportamento,
operadas ou no, relacionadas aos componentes comunicacionais e relacionais que
importavam para a avaliao dos ministrantes. Tais depoimentos constituram-se atravs dos
pareceres das pessoas que participaram de um, dois ou at dos trs eventos, o que trouxeram
dados a partir do olhar dos participantes, para que pudessem ser cruzados com os dados a
partir da observao participante. Optou-se em aproveitar os depoimentos originais,
pertencentes finalizao dos eventos, que tiveram o intuito de servir como instrumento de
avaliao aos ministrantes dos eventos, ao invs de realizarem-se novas entrevistas. Ainda
19
que, dessa forma, no fora possvel abordar diretamente as questes relacionadas
hospitalidade, ddiva e ateno cuidadosa, obteve-se, porm, importantes informaes
relacionadas s mudanas e ressignificaes das relaes interpessoais na perspectiva dos
sujeitos-participantes. Desse modo, privilegiou-se a avaliao de depoimentos espontneos e
no direcionados, e no a aplicao de entrevistas, no intuito de manter a posio de no-
interferncia (no induo) da pesquisadora para com os participantes dos ICP Journey.
Com relao obteno de dados da empresa responsvel pela aplicao desta prtica
de interveno, optou-se pela entrevista em profundidade com seu fundador e diretor
principal. Esse recurso da entrevista visou complementar os dados necessrios para a
caracterizao da empresa, atuao, objetivos, assim como para melhor compreenso da
utilizao do conceito da ateno cuidadosa que se configura num diferencial desta
empresa.
Os depoimentos foram filmados por um dos integrantes da equipe do IIE, ao final de
cada evento, aps o consentimento dos participantes e do presidente da empresa contratante
(inicialmente de forma oral (in loco) e posteriormente atravs de carta de cesso). A
transcrio foi realizada pela pesquisadora, que fez uso de informaes e tcnicas sugeridas
durante um curso de histria oral4, assim como atravs das normas indicadas para transcrio
de fitas sugeridas na obra de Alberti (2005).
Fez-se necessrio uma anlise interpretativa das fontes obtidas atravs da observao
participante e depoimentos. Tal anlise fundamentou-se na descrio densa de Geertz que
segundo o autor interpretativa: o que ela interpreta o fluxo do discurso social e a
interpretao envolvida consiste em tentar salvar o dito num discurso da sua possibilidade
de extinguir-se e fix-lo em formas pesquisveis (1989, p.15). De certa forma, mesmo no se
tratando de uma descrio etnogrfica, o esforo se deu no sentido de tornar o que foi dito
pelos depoentes, em formas pesquisveis, de maneira a confrontar a experincia vivida s
conjunturas do objetivo desta pesquisa.
Ao se referir especificidade e circunstancialidade dos estudos antropolgicos,
Geertz (1989, p.16-17) chama a ateno para o fato de que o que importante justamente
essa espcie de material produzido por um trabalho de campo [...] de peneiramento, a longo prazo, principalmente (embora no exclusivamente) qualitativo, altamente participante e realizado em contextos confinados, que os megaconceitos com os quais se aflige a cincia social contempornea
4 Curso de histria oral ministrado por Verena Alberti, em So Paulo, 2007.
20
legitimidade, modernizao, integrao, conflito, carisma, estrutura... significado podem adquirir toda a espcie de atualidade sensvel que possibilita pensar no apenas realista e concretamente sobre eles, mas, o que mais importante, criativa e imaginativamente com eles [grifos do autor]
Essa citao, de certa forma, refora a escolha metodolgica de procurar extrair da
anlise da observao participativa, fatos/evidncias que puderam ser relacionados s
questes norteadoras desta pesquisa: a hospitalidade, a ddiva e a ateno cuidadosa. Geertz
(1989, p.17) aponta nessa direo ao dizer que: somente pequenos vos de raciocnio tendem
a ser efetivos em antropologia; vos mais longos tendem a se perder em sonhos lgicos, em
embrutecimentos acadmicos com simetria formal.
O Captulo I, intitulado: Globalizao e Hospitalidade, desenvolve a questo da
globalizao enquanto universalizao do capitalismo, especialmente naquilo que afeta as
relaes sociais, no que diz respeito s mudanas de atitude e comportamento de empregados
e empregadores; as demandas e dificuldades organizacionais frente a essas mudanas e a
importncia da comunicao como elemento estratgico ns processos relacionais para a gesto
de pessoas. Discute a importncia das ritualizaes como parte dos processos
comunicacionais e relacionais das organizaes neste contexto. Trata do surgimento do
movimento intelectual e cultural denominado M.A.U.S.S, trazendo para discusso a questo e
importncia da ddiva como reao antiutilitarista.. Estabelece as dimenses e conceitos da
hospitalidade como geradoras de espaos privilegiados para harmonizao e atenuaes das
tenses nas relaes sociais.
O Captulo II trata das caractersticas e fundamentos da atuao do Instituto de
Inteligncia Estratgica (IIE) no Brasil. Apresenta o Ving Tsun enquanto sistema de
inteligncia estratgica que fundamenta a atuao do IIE e traa um breve panorama de sua
trajetria da China, passando pelos Estados Unidos at o Brasil. Apresenta o conceito da
ateno cuidadosa, sua relao com o pensamento clssico chins e seu papel na atuao do
IIE. O intuito deste captulo buscar um entendimento do pensamento filosfico que rege
esse sistema, uma vez que a relao entre seus praticantes se baseia no compromisso de
compartilhamento de um conhecimento ancestral, onde se leva em considerao para quem,
como e em que momento se transfere esse legado. Nesse sentido abordam-se os
elementos fundamentais para o entendimento das relaes entre o conceito de ateno
cuidaosa, da hospitalidade e da ddiva.
O Captulo III, intitulado: A Prtica de Interveno ICP Journey na perspectiva da
hospitalidade e da ateno cuidadosa, relata a experincia promovida pelo IIE atravs da
21
prtica de interveno na gesto de pessoas da empresa INDECA, configurada
fundamentalmente atravs de uma jornada de trs eventos corporativos - ICP Journey I, II e
III. A partir deste relato dos trs eventos, apresenta uma anlise e interpretao dos resultados
obtidos durante esses eventos, e a partir das evidncias empricas observadas, onde se
traaram as contribuies e limitaes da dimenso da hospitalidade, ddiva e ateno
cuidadosa, nos processos da prtica em questo.
22
CAPTULO I Globalizao e Hospitalidade
A modernidade, segundo Ianni (1998, p.165-166) coloca o tempo e o espao como
categorias essenciais, e, enquanto modo de ser de coisas, pessoas e idias, envolve sempre a
filosofia, a cincia e a arte.
Elas permitem articular a historicidade e a territorialidade, a biografia e a histria, o territrio e o planeta, a continuidade e a descontinuidade, a sincronia e a diacronia, a multiplicidade dos espaos e a pluralidade dos tempos, a comunidade e a sociedade, a evoluo e o progresso, a complementariedade e a antinomia, a reforma e a revoluo, o norte e o sul, o leste e o oeste, o centro e a periferia, o Ocidente e o Oriente, o eu e o outro, o local e o global, o mgico e o fantstico.
Ianni (1998) afirma que o tempo e o espao situam-se no centro da problemtica da
modernidade desde que se acelerou o processo de globalizao do mundo, o que vem
provocando uma modificao dessas noes. Ele atribui globalizao a crescente
agilizao das comunicaes, mercados, fluxos de capitais e tecnologias, intercmbios de
idias e imagens, o que vem modificando os parmetros herdados sobre a realidade social.
As fronteiras parecem dissolver-se. As naes integram-se e desintegram-se. Algumas
transformaes sociais, em escalas nacional e mundial, fazem ressurgir fatos que pareciam
esquecidos, porm revelam-se tambm outras realidades e abrem-se novos horizontes
(IANNI, 1998, p.167).
Para Ianni (1997, p.8), ora de maneira lenta e imperceptvel, ora repentinamente, as
fronteiras desaparecem, modificando-se os significados das noes de pases, sejam eles
centrais ou perifricos, do norte ou do sul, industrializados, modernos ou arcaicos, ocidentais
ou orientais. Literalmente, embaralha-se o mapa do mundo, umas vezes parecendo
reestruturar-se sob o signo do neoliberalismo, outras parecendo desfazer-se no caos, mas
tambm prenunciando outros horizontes, onde tudo se move e a histria entra em
movimento, pem-se em causa blocos e alianas, polarizaes ideolgicas e interpretaes
cientficas. Ele destaca que as foras produtivas bsicas (capital, tecnologia, fora de
trabalho e a diviso transnacional do trabalho) ultrapassam as fronteiras geogrficas,
histricas e culturais, multiplicando assim suas formas de se articularem e se contradizerem.
Segundo Ianni (1997) trata-se de um processo civilizatrio uma vez que rompe, subordina,
23
destri ou recria formas sociais de trabalho, compreendendo novos modos de pensar, agir e
ser.
Mas a caracterstica de maior relevncia nas noes de modernidade e globalizao
a questo do poder, da velocidade e extenso dos movimentos por eles engendrados
praticamente toda inovao tecnolgica adquire propores universais. Para Ianni (1997) a
partir dos meios baseados na eletrnica telecomunicao, computador, fax, internet - que o
mundo dos negcios agilizou-se em uma escala desconhecida, desterritorializando coisas,
gentes e idias. Em conseqncia, as relaes de produo, impulsionadas pelo capitalismo,
propiciaram uma acumulao acentuada do capital que se expande em escala cada vez mais
ampla, numa movimentao que envolve, simultaneamente, todas as dimenses do mundo do
trabalho. Ocorre ento a necessidade de reestruturao de empresas grandes, mdias e
pequenas, em conformidade com as exigncias cada vez maiores de produtividade, agilidade e
capacidade de inovao abertas por conta da ampliao dos mercados, em mbito mundial,
nacional e regional. Aos poucos, ou at de repente, a grande maioria da populao assalariada
mundial se v envolvida no mercado global, em transaes que, segundo Ianni (1997)
multiplicam os dinamismos das foras produtivas, o que propicia a essa acumulao de
capital, obrigando a esta populao assalariada a organizarem-se e desenvolverem-se
de modo articulado e contraditrio, as mais diversas formas de capital, tecnologia, fora de trabalho, diviso de trabalho, socializao do processo produtivo, formao de trabalho coletivo, racionalizao, planejamento, disciplina, calculabilidade, publicidade, mercado, alianas estratgicas de empresas, redes de informtica, mdia impressa e eletrnica, campanhas de formao e induo da opinio pblica sobre os mais diversos temas da vida social, econmica, poltica e cultural de uns e outros nos mais diversos cantos e recantos do mundo (IANNI, 1997, p.18-19).
Para Frana e Leite (2007) diante da globalizao surge a necessidade premente de
comunicao das organizaes com o mercado, nacional e internacionalmente. E com ela a
necessidade de entendimento cada vez maior entre as pessoas envolvidas com a empresa. A
concorrncia, local, regional e nacional, tornou-se internacional, podendo afetar a empresa a
qualquer hora, pois o mundo dos negcios ficou sem fronteiras (FRANA; LEITE, 2007,
p.7). Ainda segundo os autores (FRANA; LEITE, 2007), os resultados do processo da
globalizao so acompanhados pelas transformaes da mentalidade dos empregados, o que
os leva mudana de comportamento, e concluem que em vista mudana da mentalidade
dos empregados e suas necessidades de informaes e um processo permanente e eficaz de
24
comunicao, demonstram que os mtodos tradicionais da comunicao organizacional no
tem tido a eficcia desejada. Sem dvida alguma, diante do impacto das mudanas nas
relaes organizao/colaboradores, a comunicao precisa ser repensada, definindo-se com
clareza e objetividade seu papel dentro dos demais processos transformadores das
organizaes. (FRANA; LEITE, 2007, p.14).
A complexidade da produo, resultante do constante aperfeioamento tecnolgico,
leva as empresas a uma busca constante da produtividade do trabalho, ao aumento da
introduo de novos recursos tecnolgicos e conseqente expulso de mo-de-obra. Ianni
(1997) diz que esse o contexto em que se desenvolve a globalizao da questo social, e que
suas diversas manifestaes adquirem significados diversos, alimentando novos movimentos
sociais e suscitando interpretaes desconhecidas. Em contrapartida, Ianni (1997, p.2) chama
a ateno para o fato de que as condies de vida e trabalho, em todos os lugares, esto
sendo revolucionadas pelos processos que provocam, induzem ou comandam a globalizao,
e que a partir dessa movimentao emergem problemas culturais, religiosos, lingsticos e
raciais; simultaneamente, sociais, econmicos e polticos, donde tambm emergem
xenofobias, etnocentrismos, racismos, fundamentalismos, radicalismos e violncias.
As relaes organizacionais em decorrncia da globalizao
Se por um lado globalizao rima com integrao e homogeneizao, ela tambm diz
respeito diferenciao e fragmentao. Para Ianni (1997, p.32) a sociedade global est
sendo tecida por relaes, processos e estruturas de dominao e apropriao, integrao e
antagonismo, soberania e hegemonia. As mesmas relaes de foras que promovem a
integrao suscitam o antagonismo, j que elas envolvem diversidades culturais, alteridades,
desigualdades, tenses e contradies.
Dessa forma a desterritorializao, em suas mltiplas implicaes econmicas,
polticas, culturais e principalmente sociais, tem acentuado e generalizado as condies de
solido. Indivduos, famlias, grupos, classes e demais segmentos sociais tm sido afetados
por esse desconcerto do mundo, como diz Ianni (1999). Para o autor, isso se d devido no s
ao escasso acesso s infindveis informaes, como tambm, simultneo e paradoxalmente,
so continuamente bombardeados por mensagens, recados e interpretaes distantes, muitas
vezes de segunda ou terceira mo: os sistemas mundiais mais ativos e poderosos articulam e
rearticulam interesses e significados relativos apropriao econmica e dominao
25
poltica, s condies de produo e participao na cultura (IANNI, 1999, p.101).
Considerando que a informao, nas condies atuais da vida econmica e social, constitui
um dado essencial e imprescindvel, Milton Santos (2007, p.58) chama a ateno para o papel
desptico da informao, afirmando que o que transmitido maioria da humanidade uma
informao manipulada, que ao invs de esclarecer, confunde.
O abandono da idia de solidariedade est por trs desse entendimento da economia e conduz ao desamparo em que vivemos hoje. Jamais houve na histria um perodo em que o medo fosse to generalizado e alcanasse todas as reas da nossa vida: medo do desemprego, medo da fome, medo da violncia, medo do outro.
fato que a sociedade global est cada vez mais articulada pelo utilitarismo, e
segundo Ianni (1999), as relaes das instituies, organizaes, empresas, mercados, sejam
elas cientficas ou tecnolgicas, materiais ou espirituais, tem-se organizado segundo as
demandas da razo instrumental. Ianni atribui racionalidade tecnolgica o poder da prpria
dominao, e cita Herbert Marcuse que faz uma contundente crtica: ela o carter
compulsivo da sociedade alienada de si mesma (apud IANNI, 1999, p.121).
Ianni (1999) chama a ateno para a burocratizao do mundo, onde tudo tende a
organizar-se com base na razo instrumental, tcnica, na produtividade, lucratividade e
quantidade; onde no s as organizaes pblicas e as empresas privadas esto se
burocratizando, mas tambm igrejas, escolas, partidos e ainda, as prprias famlias, onde os
modos de ser das pessoas marcam-se pelo princpio da quantidade, da produtividade,
lucratividade. Para o autor, tudo se organiza nos termos da razo instrumental, tanto as micro
realidades quanto as macro e meta.
Milton Santos (2007) aponta para uma perversidade sistmica responsvel pelos
comportamentos competitivos que caracterizam as aes hegemnicas, ligadas direta ou
indiretamente ao processo de globalizao. Ao caracterizar os aspectos que envolvem a
questo da competitividade no processo de globalizao, Milton Santos diz:
A atual competitividade entre as empresas uma forma de exerccio de mais-valia universal [...] O exerccio da competitividade torna exponencial a briga entre as empresas e as conduz a alimentar uma demanda diuturna de mais cincia, de mais tecnologia, de melhor organizao, para manter-se frente da corrida (2007, p.30-31).
26
Para Santos (2007), a concorrncia se estabelece como regra, e ela no se parece mais
com a antiga idia de concorrncia, porque agora ela chega eliminando toda a forma de
compaixo a competitividade tem a guerra como norma. H, a todo custo que vencer o
outro, esmagando-o, para tomar seu lugar (SANTOS, 2007, p.46). Para o autor, a
necessidade de competir5 legitimada por uma ideologia aceita e difundida em que a
desobedincia s regras implica perder posies correndo o risco, inclusive, de desaparecer do
cenrio econmico. Desse modo, continua Santos, o outro, seja ele empresa, instituio ou
indivduo, torna-se um obstculo realizao dos objetivos de cada um, devendo ser
removido, por isso sendo considerado uma coisa. Decorre da a celebrao dos egosmos, o
alastramento dos narcisismos, a banalizao da guerra de todos contra todos, com a utilizao
de qualquer que seja o meio para obter o fim o que quer dizer competir e, se possvel, vencer
(SANTOS, 2007, p.60).
Neste cenrio, as condies em que se estruturam o trabalho desfavorecem as
condies de criar e sustentar vnculos interpessoais em contextos corporativos. O
individualismo, a competitividade, as tenses ocasionadas pelo medo do desemprego
trouxeram uma nova dinmica ao mundo do trabalho Mesmo com modelos de gesto voltados
para o trabalho em equipe, a lgica individualista parece prevalecer neutralizando esses
esforos. Criar e manter vnculos entre as pessoas, no mbito profissional, torna-se cada vez
mais difcil. Desse modo parece que a tica individual se sobrepe sociabilidade
(COLOMBO, 2008).
Como contraponto a essa viso individualista, Ianni (1999, p.124) chama a ateno
para a importncia do estar em sociedade, e do quanto o ser humano tem a perder quando se
fecha em seu individualismo:
Mesmo que se iluda em sua auto-suficincia, como se fosse um pequeno deus, est sempre na dependncia das suas relaes com os outros, as coisas, as idias, a natureza e a sociedade. As suas carncias, continuamente recriadas, instituem a trama das relaes sociais, a dialtica indivduo sociedade, um implicando o outro, ambos constituindo-se reciprocamente todo o tempo. E quando a sociedade se torna global, ela nada ganha em refugiar-se no eu, em si, identidade, mesmicidade. Ao contrrio, adquire
5 Para Santos (2007, p.57) concorrer e competir so coisas diferentes. A concorrncia , a seu ver, saudvel, desde que a batalha entre agentes sirva para melhor empreender uma tarefa e obter melhores resultados, exigindo o respeito a certas regras de convivncia preestabelecidas. J a competitividade, compara o autor, se funda na inveno de novas armas de batalha, onde a nica regra conquistar a melhor posio, numa guerra onde tudo vale, provocando assim uma perda/afrouxamento dos valores morais e um convite ao exerccio da violncia.
27
outras possibilidades de realizar-se, emancipar-se, precisamente no mbito da sociedade, da trama das relaes sociais.
Santos (2007) acredita que a globalizao atual no um processo irreversvel, e que
apesar de se tratar de uma materialidade utilizada para construir um mundo confuso e
perverso, pode ainda vir a fazer parte da construo de um mundo mais humano.
Atinge-se aqui um fato/questo de fundamental importncia, a de que o ser humano
no vive em crculo fechado, e justamente na relao com o outro que se constitui a relao
social bsica. Mais do que isso, a alteridade permite que se fundamente a dimenso da
interatividade, das relaes sociais e organizacionais.
Doz e Hamel (2000) dizem que as empresas nem sempre tm tudo quanto precisam
para o sucesso e por isso buscam alianas que as permitem mesclar recursos e capacidades.
Como resultado dessas alianas, ganham capacidades competitivas, mas em contrapartida,
criam relacionamentos complexos, exigindo um gerenciamento dessas relaes cada vez mais
complexo.
Por outro lado, Fiorelli (2007, p.245) afirma que essas transformaes contnuas e
aceleradas da tecnologia requerem da gesto de pessoas procedimentos que assegurem a
manuteno da capacidade de resposta do profissional aos desafios que se sucedero no
futuro: trata-se do desenvolvimento contnuo. Porm, para que esse processo de
desenvolvimento acontea, a gesto desse processo exige uma mudana de comportamento e
conseqente mudana de viso de mundo e de si mesmo (FIORELLI, 2007, p.251)
Nessa nova realidade relevante que as organizaes formem novas redes, que
estabeleam novas alianas mas principalmente, que criem e reforcem os vnculos sociais
prioritariamente nas relaes pertencentes a prpria empresa, sejam elas verticiais,
colaboradores-empregadores/lderes, quanto nas horizontais, colaboradores entre si.
A importncia da comunicao no processo relacional
Em meio a tantas mudanas, qualquer empresa passvel de ser atingida por crises
externas ou internas, e que, se mal gerenciadas, podem afetar em maior ou menor grau, as
28
operaes da organizao e seu conceito na opinio pblica. A crise, para Frana e Leite
(2007, p.76) pode ser definida como um momento de ruptura de uma situao de equilbrio,
que traz tenso, perigo, preocupao, dificuldade em lidar com ele. Na gesto de pessoas
significa: o rompimento da harmonia entre os componentes tradicionais que sustentam as
normas e a tradio da empresa ou a ecloso de fatos supervenientes sobre a ordem
estabelecida (FRANA, LEITE, 2007, p.76).
A comunicao nas organizaes parece ter se tornado o rgo de choque dessas
tenses no mundo do trabalho. A velocidade das mudanas afeta as estruturas organizacionais
na busca incansvel por produtividade, lucratividade e qualidade, fazendo-se necessrias
atualizaes e reestruturaes constantes nos processos de gesto de conhecimento, de
pessoas e governana corporativa. Estes se tornam cada vez mais atentos e dedicados
comunicao como valor estratgico, e passam a perceber sua importncia para que haja um
entendimento cada vez maior entre as pessoas envolvidas na empresa, para que os negcios
prosperem e possam continuar a competir mantendo seus padres de produtividade e
lucratividade.
Leite e Frana (2007) acreditam que, apesar do progresso tecnolgico, deve-se levar
em conta que o homem, para produzir e sobreviver, necessita da comunicao, e que
comunicar-se com seu semelhante est na base de qualquer relacionamento humano.
A comunicao nas empresas torna-se ento um elemento estratgico. Porm, essa
ateno voltada a questo da comunicao, quer seja entre colaborador-empresa, quer seja
entre seus pares, conduz a uma perspectiva humana da comunicao, enquanto relao com o
outro, uma vez que o comunicar-se est na base do relacionamento humano, e quanto maior
for o entendimento entre as pessoas, maior ser o bem-estar entre elas.
Face aos desafios contemporneos engendrados pelo fenmeno da globalizao, cujo
impacto sentido principalmente nas relaes e interaes humanas, o meio organizacional
no pode prescindir ou negar a relevncia da comunicao na gesto de pessoas. Faz-se,
portanto um apelo constante, e cada vez mais necessrio, ao gerenciamento voltado para
atenuar/harmonizar as tenses de carter relaciona e comunicacional. Para Frana e Leite
(2007) a comunicao constitui um elemento de maior relevncia na administrao de crise
A comunicao uma necessidade bsica do ser humano, afirmam Frana e Leite
(2007, p.51). saber comunicar uma arte que envolve no s a maneira como se expressa,
mas principalmente, que haja o entendimento entre as pessoas que procuram se comunicar. A
comunicao de fato s acontece quando a pessoa qual nos dirigimos percebe o que se
deseja comunicar, e precisa para isso dar sua ateno e manifestar, atravs de alguma
29
mudana de atitude, que compreendeu o que lhe foi dito. A comunicao supe portanto uma
interatividade entre a forma de expresso e a recepo da mensagem.
Segundo Chanlat (v.1, 2007a) as interaes com o outro se concentram em trs
categorias. Inicialmente, a relao social bsica, consisti em um face a face com um pequeno
nmero de pessoas (relao self-outro). Depois podem remontar relao que um indivduo
pode manter com a multido (relao ego-massa) e enfim, ela pode se referir relao que
um grupo mantm com outro grupo (relao ns-a-ns), constituindo o universo das
relaes sociais. O primeiro nvel relacional, do face a face, coloca em jogo atores, atividades,
rituais, gestos, convenes, palavras e papis num determinado quadro espao-temporal. Num
contexto organizacional pode-se pensar nas reunies, nos encontros cotidianos, trocas de
informaes entre colegas em conversas nos corredores da empresa. J o tipo de interao que
Chanlat (v.1, 2007a ) denominou relao ego-massa, trata-se de um universo relacional que
pressupe a existncia de uma multido onde as relaes so da ordem da fuso, mais do que
qualquer outro tipo de interao. Como exemplo nas organizaes, o autor cita manifestaes
como greves, assemblias gerais, manifestaes sindicais, polticas, esportivas ou religiosas.
O ltimo nvel, o ns-eles/elas est relacionado esfera das identidades coletivas que
delimitam as origens sociais dos indivduos que, explica o autor, encontra-se onipresente nas
organizaes, representadas pelas relaes direo superior-base, executivo-operrios,
universo masculino-feminino, nacionais-estrangeiros, velhos-jovens etc. Dualidades que
colocam em jogo as relaes de poder que qualificam o que o autor chama de ordem
organizacional. Para existir, este mundo da interao necessita e colocar em jogo certo
nmero de mecanismos ou modos de comunicao, ritos de interao e de processos psquicos
com estreita relao entre si (CHANLAT, 2007a, p.37).
No aspecto que interessa a este estudo, a comunicao e as relaes organizacionais
constituem um nvel de interao que formam um quadro social especfico. Chanlat (2007a)
atribui a dois tipos de subsistemas tais fenmenos humanos: um subsistema estrutural e
material e outro subsistema simblico. O primeiro subsistema, explica o autor, remete aos
meios materiais que asseguram a funo de produo de bens e servios; o segundo
subsistema diz respeito ao universo das representaes individuais e coletivas que do sentido
s aes , interpretando, otimizando e legitimando as atividades e relaes que homens e
mulheres mantm entre si. A ordem organizacional seria, portanto, mediatizada pelas relaes
de poder entre esses dois subsistemas.
30
O fato que essa ordem organizacional , afirma Chanlat (2007a, p.40), sempre
instvel e as tenses, conflitos, a incerteza, a ambigidade, as desigualdades, as contradies
de origem exgenas e endgenas variadas encarregam-se de alimentar esta instabilidade.
Segundo Chanlat (v.1, 2007, p.37) todo o comportamento humano comunicao, e
toda interao, supe um modo de comunicao, entendendo por isso:
Um conjunto de disposies verbais e no-verbais que se encarregam de exprimir, traduzir, registrar, em uma palavra, de dizer o que uns querem comunicar aos outros durante uma relao . Ao mesmo tempo locutor, ouvinte e interlocutor, todo o indivduo exprime no quadro da interao ao mesmo tempo o que ele , o que faz, o que pensa, o que sabe, o que deseja, o que gosta, assim agindo ele se coloca cada vez mais como pessoa.
Porm, a comunicao verbal no o nico modo de comunicao. A comunicao
no verbal constitui um importante modo complementar e simultneo da comunicao;
envolve elementos mimo gestuais (como mmicas, gestos corporais etc.), elementos vocais
(timbre de voz, entonao etc.), distintivos de origem (vesturio, uniformes etc.) e marcadores
relacionais (signos hierrquicos, sobrenomes etc.). Formam-se assim uma associao texto
e contexto que constituem um enunciado total formado pelo verbal, vocal e gestual, que
necessita de um contexto organizacional para ter significado (CHANLAT, v.1, 2007).
O estudos da comunicao corporal/no-verbal, em particular a comunicao gestual,
afirma que os gestos podem ser considerados detentores da propriedade de exprimir as
representaes mentais (pensamento), tanto quanto as palavras. Trata-se de uma linguagem
dos gestos que descrita tanto por lingistas, quanto por antroplogos e socilogos
(FEYEREISEN; DE LANNOY, 2007).
Ao analisarem os gestos na perspectiva da sociologia da conversao, Feyereisen e De
Lannoy afirmam que a conversao constitui sem dvida a interao social mais claramente
estruturada pelas regras (2007, p.23). Tais regras incluem a alternncia da vez de falar, a
coerncia da conversa, envolvendo tambm dispositivos lingsticos e procedimentos no
verbais para assegurar a coerncia dos intercmbios verbais. Observa-se, nessa dinmica, o
papel dos sutis sinais no verbais, especialmente a direo do olhar ou a orientao da cabea
durante a conversao, no estabelecimento da transio da alternncia das falas e no convite
ou nas interrupes destas pelos interlocutores. O desenvolvimento harmonioso da
conversao supe igualmente um ouvinte atento (FEYEREISEN; DE LANNOY, 2007,
p.25), concluem os autores.
31
Portanto, no podemos reduzir a comunicao humana nas empresas a uma mera
transmisso de informao. A comunicao integra o universo do discurso, da palavra e faz da
linguagem um ponto chave para a compreenso humana. A linguagem constitui um objeto de
estudo privilegiado no contexto organizacional, permitindo que se desvendem as condutas, as
aes e as decises (CHANLAT, v.1, 2007).
A funo dos executivos numa organizao vai alm da tomada de decises,
planejamento, gesto e coordenao de sua equipe e funcionrios. Podem passar boa parte de
seu tempo buscando equacionar problemas humanos, porm um estudo clssico de Mintzberg
(apud CHANLAT; BDARD, 2007) confirma que na essncia da funo do executivo est o
envolvimento em mltiplos intercmbios verbais, com seus superiores, subordinados, pares e
com toda a gama de agentes externos empresa, estando imerso em um oceano de palavras, o
qual monopoliza dois teros de sua atividade profissional.
Assim, a palavra, e em especial a prpria fala, torna-se o principal instrumento de ao
do executivo seja para comunicar-se, seja para alcanar resultados. No entanto, por tratar-se
de um instrumento sutil e complexo, no de se surpreender que tantos intercmbios verbais
gerem, inevitavelmente, numerosas tenses psquicas originadas pela enorme variedade de
sentimentos que extrapolam o mbito profissional (CHANLAT; BDARD, 2007).
Chanlat e Bdard afirmam que A fala est para a constituio do indivduo assim
como a linguagem est para a definio da espcie humana, pois atravs dela e de suas
vicissitudes que se constri a existncia pessoal (CHANLAT; BDARD, 2007, p.128, grifo
do autor). Para os autores, toda pessoa necessita do outro vir a ser no mundo e se
desenvolver, pois a identidade de cada um se constri progressivamente no ritmo de suas
interaes, desde o nascimento, com a me, membros de sua famlia, com os amigos e demais
pessoas que encontrar no decorrer de sua vida. A fim de relevar o que dizem se tratar das
extraordinrias implicaes da conversa, intercmbios de palavras, os autores citam Ronald
Laing:
So os outros que nos dizem quem somos. Mais tarde, ou endossamos a definio que fazem de ns, ou tentamos nos desvencilhar dela. difcil no aceitar a verso dos outros. Podemos nos esforar para no sermos aquilo que, no fundo de ns mesmos, sabemos que somos. Podemos nos esforar por extirpar essa identidade estrangeirade que fomos dotados ou a que fomos condenados, e criar com nossos prprios atos uma identidade por si mesma, a qual obstinadamente buscamos fazer confirmar pelos outros. No entanto, quaisquer que seja, posteriormente, as vicissitudes, nossa primeira identidade social j nos foi concedida. Ns aprendemos a ser aquilo que nos disseram que somos (apud CHANLAT; BDARD, 2007, p.128).
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Nota-se a o importante papel da fala na construo do eu e do outro. Cada vez que
uma pessoa toma a palavra, buscando comunicar-se e ao mesmo tempo expressando uma
imagem de si mesma, o outro se torna um recurso fundamental de reconhecimento dessa
identidade. O fato que nem sempre essa comunicao pode ser bem sucedida, pois a
linguagem impe limitaes na construo do sentido que se pretende dar, envolvendo um
grande nmero de regras explcitas e implcitas, cujo desrespeito pode causar desconforto,
sofrimentos psquicos, ou at mesmo fazer as pessoas sofrerem perturbaes psicolgicas
profundas (CHANLAT; BDARD, 2007). No h como desconsiderar a dimenso tica da
fala/linguagem/palavras nas relaes interpessoais.
Essa dimenso tica da fala tambm est associada ao exerccio da violncia, como
afirmam Chanlat e Bdard (2007). Para os autores, seus efeitos so infinitamente mais
perversos do que o da violncia fsica (.134), pois a violncia fsica deixa marcas visveis e
sua cicatrizao acontece segundo as leis da fisiologia. J na violncia verbal e no-verbal a
gravidade dos danos mais difcil de avaliar e geralmente tm conseqncias de longo prazo.
A despeito da psicanlise na atuao de conflitos intrapsquicos, os autores apontam para
estudos sobre os benefcios da nova comunicao em evidenciar os mecanismos da violncia
interpessoal. Goffman revela: parece no haver agente mais eficaz do que uma outra pessoa
por seu olhar, gesto ou comentrio para garantir o desabrochar de um indivduo ou, ao
contrrio, para aniquilar a realidade de sua existncia (apud CHANLAT; BDART, 2007, p.
134). Ao final das consideraes desses autores sobre as limitaes que a lngua e a fala
impem na criao do sentido, na prpria construo do eu/identidade e na relao com os
outros, conclui-se que no possvel dizer qualquer coisa, de qualquer jeito, em qualquer
momento, a qualquer pessoa (ibid., p.137) se quisermos manter a qualidade e a
sustentabilidade da comunicao nas relaes interpessoais, sejam elas na dimenso social,
profissional ou afetiva.
Fiorelli afirma que o sentimento de identidade entre os membros da equipe facilita
aceitar diferenas individuais, reduzindo ou neutralizando conflitos no trabalho, diminuindo a
ansiedade e contribuindo para aumentar a produtividade e a qualidade de vida (2007, p. 175)
e conclui que o trabalho em equipe constitui um instrumento que combate o preconceito
atravs da cooperao, ao invs da competio. No ambiente de equipe aumenta-se o
conhecimento mtuo, reduzindo-se os esteretipos, e desenvolvem-se elos afetivos, com
sentimentos e emoes favorveis compreenso das diferenas (FIORELLI, 2007, p.175).
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Comunicar-se pressupe no s o falar, mas tambm a habilidade para escutar. Fiorelli
(2007, p.214) afirma que a grande dificuldade de escutar encontra-se na falta de modelos
efetivos de escutadores, e que para se obter uma compreenso em profundidade, faz-se
necessrio a escuta em igual profundidade. Ele conclui que escutar aproxima-se de uma arte,
cujo produto consiste em descobrir a mensagem implcita, enviada pelo inconsciente por
meio das palavras, pedindo socorro ou reclamando, na tentativa de aliviar a ansiedade, a
tenso do indivduo. (FIORELLI, 2007, p.217)
Se existem vrios obstculos no ambiente organizacional que dificultam o dilogo, a
comunicao, existem tambm condies que podem facilitar/favorec-las. Chanlat e Bdard
(2007) apontam/mostram a formao de grupos espontneos (informal), no interior das
estruturas organizacionais (formais). Ao examinar a dinmica desses grupos informais
constata-se um interessante e bem sucedido exemplo de intercmbios, no plano de trocas
verbais e no verbais que tornam as condies de dilogo/comunicao muito favorveis. Os
autores observam que nesses grupos informais unidos, em geral, no se srdido, avaro, com
as palavras, cada um sente-se um indivduo e v confirmar no olhar dos outros o sentimento
de sua importncia; o prazer provm de poder falar na primeira pessoa, de dizer eu e de ser
ouvido (CHANLAT; BDARD, 2007, p.144). Eles observam que o que favorece essa
condio a disponibilidade moral para o outro, as narrativas so geralmente marcadas por
um clima caloroso, de afeio, de respeito mtuo e amizade; quando surgem dificuldades nas
relaes entre alguns membros, normalmente os problemas so abordados diretamente numa
metacomunicao o que quer dizer, ser capaz de intercambiar, comentar a respeito da
prpria maneira que se comunicam. Dessa maneira, quando se alcana esse nvel de interao,
supe-se que cada uma das pessoas envolvidas se coloca como parte do problema e
responsvel por sua soluo. Isso traz um sentimento de pertencimento ao grupo e exige de
seus membros comportamentos de solidariedade, colaborao, reciprocidade, fidelidade
palavra, predisposio em auxiliarem-se mutuamente.
Chanlat e Bdard chamam a ateno para os numerosos estudos que, h dezenas de
anos, procuram entender o porqu de algumas empresas de um mesmo setor conseguirem
obter melhores resultados do que outras. Eles atribuem contribuio de prticas mais
humanizadas de gesto, e em especial, aquelas que trabalham melhor com a liberdade da fala,
da palavra, do dilogo:
A impresso que se tem dessas bem-sucedidas experincias que tais empresas souberam criar um estilo de administrao, um clima de trabalho
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e uma tica que, de alguma forma, institucionalizaram as prticas de comportamentos espontneos de qualquer grupo informal (CHANLAT; BDARD, 2007, p. 146).
Foi possvel observar essa condio favorvel ao dilogo, na experincia do evento
ICP Journey, desenvolvido pelo do IIE, onde foi possvel criar, intencionalmente, essa
condio favorvel ao dilogo, com o auxlio da hospitalidade, favorecendo-se do
ambiente/clima que lhe inerente, como foi descrito no captulo III.
O papel da ritualizao no processo relacional
Dada a importncia dos encontros entre as pessoas e do comportamento que elas
devem assumir em tais situaes, a sociedade define/codifica e impe rituais que regem tais
ocasies. Tais rituais envolvem o espao que separa essas pessoas, a escolha do lugar e do
momento, os gestos de cortesia, as atitudes, olhares, maneira que se tratam nominalmente,
onde cada detalhe deve ser regido pelas normas de etiqueta/tradio, ou seja, convenes
sociais. Mas o que est por detrs disto o propsito de estabelecer as condies mais
apropriadas aos primeiros contatos, para vencer o mal-estar recproco que habitualmente os
acompanha (CHANLAT; BDARD, 2007, p.132). Desrespeitar essas regras, por mais
simples e sutis que paream, aumentam as possibilidades de mal-entendidos que podem
interferir negativamente no xito da conversa e da qualidade deste processo
relacional/comunicacional. Interessante notar que ao se tomar conscincia das sutilezas das
conversas/intercmbios verbais, d-se conta que uma parte importante da comunicao
consiste em saber aquilo que no se espera dizer, no se espera pensar, no se espera ouvir e
a coexistncia entre os seres humanos se tornaria impossvel se tais regras no fossem
seguidas (WATZLAWICK, 1981 apud CHANLAT; BDARD, 2007, p.132).
Dessa forma, quando as pessoas conseguem sentir-se vontade, superando a
dificuldade do encontro inicial e estabelecendo um dilogo autntico e verdadeiro, a arte
revela-se portanto menos em afirmar suas posies e preocupaes, mas antes em melhor
elaborar e expressar aquilo que acabou de ser dito. Assim, reforam Chanlat e Bdard,
medida que ficamos atentos ao outro e demonstramos interesse por ele, que ele se interessa
por ns (2007, p.132).
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Se as relaes necessitam de um modo de comunicao, ela tambm coloca em jogo
alguma forma de ritualizao, afirma Chanlat (2007a). Segundo o autor, as sociedades para
se manterem como tais, devem mobilizar seus membros para torn-los participantes de
reencontros autocontrolados, dessa forma o ritual um dos meios de conduzir o indivduo a
este objetivo: sendo ensinado a ser atento, a se prender a seu eu e a expressar este eu atravs
da fisionomia [...] a ser diferente, habilidoso e seguro (CHANLAT, 2007a, p.38).
Comportamentos elementares para que as pessoas possam com ela interagir. Para o autor, a
polidez, a cortesia, so meios universais para exprimir e assegurar o que Devreux (apud
CHANLAT, 2007a, p.39) qualificou de reciprocidade conveniente:
Em um nvel mais ontolgico, nos protegendo e protegendo o outro, tem por funo assegurar a perenidade da confiana mtua. Sem essa ritualizao das relaes cotidianas, a existncia seria insustentvel. As situaes de crise nos confirmam constantemente tanto em nvel das sociedades quanto no nvel das organizaes. Os ritos de interao, como os rituais coletivos, contribuindo manuteno da sociabilidade, transformam-se assim em verdadeiros indicadores do estado qualitativo das relaes humanas.
Para Peirano (2003, p.49), o ritual tornou-se um fenmeno interessante para anlise
porque reconheceu-se que ele tem o poder de ampliar, iluminar e realar uma srie de idias
e valores que, de outra forma, seriam difceis de discernir. Peirano (2003) ainda afirma que
os rituais so um tipo especial de eventos, no muito diferentes daqueles considerados usuais,
e podem servir como um instrumental desenvolvido para analisar eventos cotidianos.
Peirano (2003, p.7) diz que em qualquer tempo ou lugar, a vida social sempre
marcada por rituais. Ela sugere que a natureza dos eventos rituais, sejam eles profanos,
religiosos, festivos, formais ou informais, simples ou sofisticados, no a questo
fundamental, mas o que interessa que eles tenham uma forma especfica, isto , um certo
grau de convencionalidade, formalidade e de certa redundncia. Porm, o que mais chama a
ateno nas definies de Peirano (2003, p.10) , em suas prprias palavras, que rituais so
bons para transmitir valores e conhecimentos e tambm prprios para resolver conflitos e
reproduzir as relaes sociais. Para a autora, o fato de se viver em sociedade implica em que
tudo o que se faz tenha um elemento comunicativo implcito - ao nos vestirmos de
determinada forma, ao assumirmos determinas maneiras mesa, ao escolhermos
determinados lugares para freqentar, estamos comunicando preferncias, status, opes e
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que falar tambm uma forma de agir, como qualquer outro tipo de fenmeno: falar e fazer
tm, cada um, sua prpria eficcia e propsito, mas ambos so aes sociais. (PEIRANO,
2003, p.10). Por fim, para uma definio mais operativa a respeito dos rituais, segue um texto
de Stanley Tambiah (apud PEIRANO, 2003, p.11), antroplogo que se distinguiu por seus
estudos contemporneos sobre rituais:
O ritual um sistema cultural de comunicao simblica. Ele constitudo de seqncias ordenadas e padronizadas de palavras e atos, e, em geral expressos por mltiplos meios. Estas seqncias tm contedo e arranjo caracterizado por graus variados de formalidade (convencionalidade), estereotipia (rigidez), condensao (fuso) e redundncia (repetio). A ao ritual nos seus traos constitutivos pode ser vista como performativa em trs sentidos: 1) no sentido pelo qual dizer tambm fazer alguma coisa como um ato convencional; 2) no sentido pelo qual os participantes experimentam intensamente uma performance que utiliza vrios meios de comunicao e 3), finalmente, no sentido de valores sendo inferidos e criados pelos atores durante a performance. [grifo nosso]
O mais importante nesta breve explanao sobre rituais contemporneos que eles, ao
contrrio do que acredita o senso comum, no so algo fossilizado, imutvel ou definitivo. Ao
contrrio, os rituais podem servir como importante ferramenta para se transmitirem e
fortalecerem valores, sejam eles sociais, da vida privada ou organizacional. Para Peirano
(2003, p.48), o ritual uma forma de ao sobretudo malevel e criativa que, com contedos
diversos, utilizada para vrias finalidades. Nesse sentido, Durkheim (2003) reitera que os
rituais criam um corpo de idias e valores que, por serem socialmente partilhados, assumem
uma conotao religiosa. Vale notar que, para Durkheim, a expresso religiosa aqui no
tem, necessariamente, relao aos deuses ou ao sobrenatural, mas sim sociedade. Sociedade
sagrada na medida em que sua existncia inquestionvel.
As implicaes da idia de que o ritual um sistema de comunicao simblica vem
corroborar com a questo da hospitalidade e sua importncia na comunicao nas
organizaes, em especial em eventos corporativos, como ser discutido no decorrer deste
trabalho. Pode-se perceber a relao existente entre os rituais, presentes na hospitalidade, e se
ter uma idia de como isto pode potencializar os processos comunicacionais num determinado
grupo de pessoas. Haja vista a afirmao de Camargo (2004, p.39) temas como a
hospitalidade, a conversao e a comunicao interpessoal, a identidade cultural, a tradio e
os rituais ganham nova atualidade e interesse.
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Ddiva como sistema de relaes sociais
No clssico Ensaio sobre a ddiva de Marcel Mauss (2001) deu-se incio
alternativa cientfica e filosfica para o utilitarismo, onde se buscou formular a hiptese de
que a ddiva no diz respeito somente s sociedades primitivas, mas tambm, embora de uma
maneira diferente, sociedade contempornea. Ele rene uma grande quantidade de fatos,
mas h uma constante que a noo de aliana, de pacto de apaziguamento e da criao de
vnculos. Godbout (1999, p.28) destaca que, segundo a formulao de Mauss, a ddiva
percebida como um ciclo e no como um ato isolado, analisado sob trs momentos dar,
receber e retribuir o qual o utilitarismo cientfico dominante no levou em conta porque:
Ele isola abstratamente o nico momento do receber e coloca os indivduos como movidos pela nica tentativa do recebimento, deixando assim incompreensveis tanto a ddiva quanto a sua retribuio, tanto o momento da criao e do empreendimento quanto o da obrigao e da dvida.
Godbout (1999), portanto se inspira na idia de que o desejo de dar to importante para
compreender o ser humano quanto o de receber. Para Godbout (1999, p.28) dar, entregar,
compaixo e generosidade so to essenciais quanto tomar, apropriar-se, inveja ou egosmo,
e que portanto to essencial elucidar as suas regras quanto conhecer as leis do mercado ou
da burocracia para a compreender a sociedade moderna.
Godbout (1999) v a ddiva no como objeto de troca, mas como uma relao social
por excelncia. E completa: A ddiva serve antes de mais nada para estabelecer relaes.
uma relao sem esperana de retorno (por parte daquele a quem damos ou de outra pessoa
que o venha a substituir), uma relao de sentido nico, gratuita e sem motivo, no seria uma
relao (GODBOUT, 1999, p.16).
Em contrapartida Godbout (1999) nota que quando o vnculo social est em crise, as
pessoas/agentes passam efetivamente para o modelo mercantil, para a reciprocidade imediata,
o acerto de contas.
O processo que compreende esses trs momentos de dar, receber e retribuir que se
repetem indefinidamente, foram entendidos por Mauss como uma chave explicativa das
relaes sociais, observado inicialmente nas sociedades arcaicas. Neste processo, o contato
humano no se estabele apenas atravs de uma troca contratual, mas comea com uma ddiva,
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de a retribuio uma nova ddiva que implica num novo receber e retribuir, gerando dons e
contradons num processo sem fim (CAMARGO, 2004).
Godbout (1999) considera a fala como talvez o principal dom, pois so as palavras,
frases e discursos que os seres humanos trocam entre si, na maior parte das vezes. Para o
autor,
a arte da conversao deve permitir que cada um fale. Deve portanto conceder a cada um o prazer de dar aquilo que, embora aparentemente no custe nada, no deixa de ser menos precioso: palavras, palavras simples, palavras bonitas ou ento feias, ou idias raras, frmulas bem elaboradas que tenham a chance de permanecer no esprito dos interlocutores. A regra que ningum deve monopolizar a palavra e que, se algum a conservar durante algum tempo, que seja para carreg-la ainda de mais valor quando ela for devolvida (GODBOUT, 1999, p.21).
Allain Caill (2002) em seu texto A ddiva das palavras: o que o dizer pretende
dar?, desenvolve a hiptese de que a palavra a primeira coisa que os sujeitos sociais do,
tomam e retribuem, e que as conversaes funcionam segundo o modelo das trocas
cerimoniais de bens. Sendo assim, pode-se dizer que ela tem em si a prpria essncia da
ddiva. O autor cita Carrol:
[...] o importante estabelecer vnculos, criar uma rede, por mais tnue que seja, entre os conversadores. A palavra que se troca no fioda conversao serve para tecer tais vnculos entre os conversadores. Se imaginarmos a conversao como uma teia de aranha, podemos ver a palavra desempenhar, nesse caso, o papel da aranha, gerar os fios que ligam os participantes. Fabricamos um tecido de relaes do mesmo modo e ao mesmo tempo que conversamos (apud CAILL, 2002, p.114).
Caill (2002) sustenta suas consideraes argumentando que grande parte de nossas
conversas representam trocas de palavras que so pequenos presentes verbais e que,
expressados formalmente, pela obrigao da solicitude, no implicam nenhum compromisso
particular. No entanto, desde que as palavras introduzam um pouco de interesse ou um pouco
mais de solicitude, fica aberta a possibilidade de uma relao interpessoal e mesmo para uma
camaradagem ou amizade.
Assim, vemos nas trocas de palavras toda a dinmica dos atos relacionados
hospitalidade, no sentido de serem formas de articular as estruturas sociais. Ao conceber a
ddiva/hospitalidade enquanto formadora das relaes propriamente sociais volta-se
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diretamente na direo do resgate da solidariedade e de pertencimento social que seria, de
certa forma, um antdoto para a excluso social e das mazelas do individualismo exacerbado.
Nesse sentido pode-se entender Martins (2002, p.12) para quem a ddiva no uma
mera teoria, mas um poderoso recurso paradigmtico para compreender a formao, a
natureza e a permanncia dos vnculos sociais.
Camargo (2004) faz importantes consideraes ao relacionar ddiva e hospitalidade.
Assim como ele, estudiosos da hospitalidade observaram logo no texto de abertura do Ensaio
Mauss (2001), num poema escandinavo, fatos que se referem a hospitalidade. Dentre os
relatos relacionados hospitalidade nesse mesmo texto, ressalta-se sua forma ritual, onde
hspedes e anfitries alternam-se em seus papis, num dar, receber e retribuir, incorporando a
ddiva em sua prtica. Nesse sentido a hospitalidade considerada como o ritual bsico do
vnculo humano, perpetuando-o nessa alternncia de papis.
Portanto, pensar em ddiva e hospitalidade pensar na interao entre as pessoas que,
evidentemente, se d num tempo e num espao determinado. Da decorre a importncia para a
criao de espaos de interao e convivialidade que induzem s trocas, ao contato e aos laos
sociais.
Se levarmos em conta as consideraes de Isabel Baptista (2002) em que as esferas do
cotidiano nos diferentes planos privado, pblico, trabalho, lazer so onde precisamos
instituir linhas de proximidade e que a hospitalidad