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Com a ajuda de tapumes de obras, quase cem famílias ergueram lares no prédio abandonado: hoje, um espaço lá chega a custar R$ 300 meses, o pernambucano Alexandro da Silva enche e carrega galões de água para outros moradores, que pagam até R$ 10 pelo serviço No Rio há cinco 32 • REVISTA O GLOBO • 23 DE NOVEMBRO DE 2008 •
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de tapumes de obras,quase cem famílias
ergueram lares noprédio abandonado:
hoje, um espaço láchega a custar R$ 300
No Rio há cinco meses, o pernambucanoAlexandro da Silva enchee carrega galões deágua para outrosmoradores, que pagamaté R$ 10 pelo serviço
Épreciso ter estômago forte paracruzar o pátio e subir os seis an-dares do número 511 da Rua FreiCaneca, no Estácio. Faz alguns me-
ses, o esgoto entupiu e escorre até ocorredor da entrada. O lixo acumula-senuma pilha sem fim, ao lado da escada. Ea única fonte de água é uma bica notérreo, perto de um chiqueiro ocupadopor dois porcos. Eles — os porcos —devem sair até o fim do ano, o dono jáprometeu. O destino dos outros mora-dores é incerto. Atualmente, quase cemfamílias vivem ali, entre o Presídio HélioGomes e a Primeira Igreja Batista do Riode Janeiro, numa área em ruínas, que jáabrigou a sede da Bloch Editores e há 11anos foi dada como pagamento de dívidaspara o Banco do Brasil. O lugar estava
fechado, sem uso algum, até que umgrupo de sem-teto forçou a entrada. De-pois, chegou outro. E mais outro. E maisoutro. Até que não houvesse espaço.
Cristina Mariano da Silva, 30 anos deidade e seis de ocupação, foi para láassim. Morava com a mãe no Morro doDendê, na Ilha do Governador, quandosaiu de casa para viver com um com-panheiro. Sem condições de pagar alu-guel, eles conseguiram uma casa paramorar “de favor” no Estácio. Meses de-pois, a dona da casa pediu o imóvel devolta e o casal teve que sair. Cristina jáestava grávida do primeiro filho. E foi aíque ouviu falar da antiga “Manchete”.
— Meu marido conhecia uma pessoaque morava aqui — ela diz.
Quando Cristina pisou pela primeiravez no prédio, não havia porcos, va-zamento de esgoto, lixo ou barracos.Apenas uma pequena construção na en-trada, o pátio e o edifício de seis andaresno fundo do terreno, diante do Morro deSão Carlos. Cristina tirou o entulho docaminho e se instalou no quarto piso.Teto ela já tinha. Por R$ 10 comprou asparedes — um conjunto de tapumes deobra. Por mais R$ 30 conseguiu que lhe
construíssem um portão. Puxou a luz,ganhou uma geladeira na igreja, descolouum fogão velho, catou um sofá no lixo,comprou uma TV de segunda mão ecolocou cadeado na porta.
Hoje, um lugar no prédio chega acustar R$ 300. Mas freqüentemente dá-seabrigo de graça a um amigo ou parente.Como Alexandro Patrício da Silva, de 22anos, garçom desempregado há quasetrês anos, pernambucano de Abreu Lima,cidadezinha a 20 quilômetros de Recife.Alexandro veio para o Rio há cinco me-ses, atrás do primo que vive no imóvel daFrei Caneca. Depois de três dias andando,outros três pegando carona em cami-nhões, mais algumas horas batendo per-na e duas viagens de van, ele chegou aoprédio. Foi parar no quarto andar, ao ladodo primo e de Cristina. Levou um sustoquando viu o estado do imóvel, mas juraque não se arrepende:
— Pernambuco era bom de morar, masmuito difícil pra ganhar dinheiro. Aqui émelhor. No momento, eu estou garim-pando. Trabalho na reciclagem: papel,papelão, alumínio, cobre. O bom do Rio deJaneiro é que em cada esquina tem al-guma coisa. Aí dá pra ir levando. O
problema é que o preço do materialbaixou muito. O ferro estava a R$ 35 e foipra R$ 10, o quilo. O papelão tava R$ 17 efoi pra R$ 14. O cobre, que tava R$ 10,60,caiu pra R$ 8. Numa semana ganhei R$150. Mas não sobra nada.
Dependendo de quanto fatura no dia,Alexandro compra comida e álcool pracozinhar. Às vezes um vizinho do prédiodivide o que tem. E, quando sobra re-feição no presídio, ele vai buscar. Comotoda a água do prédio vem do pátio, eletambém presta um serviço essencial ládentro: enche e carrega galões de águapara outros moradores. Como Cristina,que estoca os galões para usar na co-zinha, no banho dos filhos, na arrumaçãoda casa. E Darcy Nunes dos Santos, de 43anos, a tia Russa, cozinheira famosa noprédio. O problema, para ele, não écarregar galões de até 20 litros escadaacima por três, quatro, cinco andares. Háquem pague até R$ 10 pelo serviço. Oproblema é esperar o galão encher.
— Quando a água está fraca, levo atéuma hora pra completar cinco litros —diz Alexandro. — E, depois, tem a fila.Todo mundo usa essa bica.
Variados detalhes sobre bicas, aco-
modações, lixo e esgoto, o que acon-tece no prédio da Frei Caneca repete-se em muitos cantos da cidade. So-mente na região do Estácio, Rio Com-prido, Cidade Nova e Catumbi estima-se que mais de 40 construções aban-donadas tenham sido invadidas nosúltimos anos. No Centro, o Sindicatoda Construção Civil contou 60 imóveisvazios já ocupados por sem-teto. NaZona Norte, um levantamento da Se-cretaria municipal de Urbanismo lis-tou 17 fábricas desativadas e galpõesociosos na antiga zona industrial quevai de Benfica a Acari.
— O Rio foi perdendo vocações aolongo de décadas — lembra o eco-nomista André Urani, conselheiro doInstituto de Estudos do Trabalho eSociedade. — Primeiro a cidade perdeua capital, depois as indústrias, as agên-cias de publicidade, o setor financeiro.O ambiente de negócios deixou de seratraente, houve uma sucessão de go-vernos ruins, a violência aumentou.Muita gente preferiu levar suas em-presas para outros cantos do Brasil. Ouquebrou. E isso foi deixando um rastrode abandono.a