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ELEMENTOS VISUAIS DE TRANSGRESSÃO DE GÊNERO E SEXUALIDADE EM VILÕES DE ANIMAÇÕES LONGA METRAGEM DOS ESTÚDIOS DISNEY Luís Paulo Piassi - Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH/USP) Caynnã de Camargo Santos - Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH/USP) 1. INTRODUÇÃO Desde seu surgimento, a enunciação fílmica caracteriza-se como sendo uma forma de manifestação cultural capaz de fascinar crianças e adultos através da ação concomitante entre som, imagem e texto. Com o desenvolvimento e consolidação no decorrer da primeira metade do século XX, os filmes tornaram-se além de produtos de entretenimento extremamente presentes na vida cotidiana, objetos culturais capazes de retratar a realidade e difundir valores e ideologias, figurando assim como instâncias veiculadoras e criadoras de novos sentidos. Apesar da grande atenção dada por pesquisadores às produções cinematográficas em geral, os filmes de animação longa metragem (um dos gêneros cinematográficos de maior aceitação por parte do público), permaneceram durante muito tempo relegados a subprodutos da Indústria Cultural, sendo assim marginalizados por estudiosos da cultura. A partir de propostas inovadoras tais quais as da Escola dos Estudos Culturais, que propõe uma visão mais democrática acerca da cultura, ressaltando a importância da análise das mais diversas formas de expressão cultural visando a compreensão dos fenômenos vivenciados pela sociedade, tal gênero passou a despertar atenção do meio acadêmico, transformando-se em objeto de pesquisa científica. Essa virada deveu-se em grande parte ao reconhecimento acadêmico da importância dos filmes infantis de animação enquanto instrumentos de educação moral não-formal (SABAT, 2003), capazes de veicular discursos ideológicos acerca de padrões estéticos e de conduta, construindo assim o senso de normatividade social, ou seja, apresentando ao público infantil os padrões aceitos e não aceitos pela sociedade em um determinado momento. No presente trabalho, iremos abordar o fenômeno cultural de comunicação, através das mídias, de discursos hegemônicos que prescrevem normas de gênero e sexualidade restritivas

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ELEMENTOS VISUAIS DE TRANSGRESSÃO DE GÊNERO E SEXUALIDADE EM

VILÕES DE ANIMAÇÕES LONGA METRAGEM DOS ESTÚDIOS DISNEY

Luís Paulo Piassi - Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São

Paulo (EACH/USP)

Caynnã de Camargo Santos - Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade

de São Paulo (EACH/USP)

1. INTRODUÇÃO

Desde seu surgimento, a enunciação fílmica caracteriza-se como sendo uma forma de

manifestação cultural capaz de fascinar crianças e adultos através da ação concomitante entre

som, imagem e texto. Com o desenvolvimento e consolidação no decorrer da primeira metade

do século XX, os filmes tornaram-se além de produtos de entretenimento extremamente

presentes na vida cotidiana, objetos culturais capazes de retratar a realidade e difundir valores

e ideologias, figurando assim como instâncias veiculadoras e criadoras de novos sentidos.

Apesar da grande atenção dada por pesquisadores às produções cinematográficas em

geral, os filmes de animação longa metragem (um dos gêneros cinematográficos de maior

aceitação por parte do público), permaneceram durante muito tempo relegados a subprodutos

da Indústria Cultural, sendo assim marginalizados por estudiosos da cultura. A partir de

propostas inovadoras tais quais as da Escola dos Estudos Culturais, que propõe uma visão

mais democrática acerca da cultura, ressaltando a importância da análise das mais diversas

formas de expressão cultural visando a compreensão dos fenômenos vivenciados pela

sociedade, tal gênero passou a despertar atenção do meio acadêmico, transformando-se em

objeto de pesquisa científica. Essa virada deveu-se em grande parte ao reconhecimento

acadêmico da importância dos filmes infantis de animação enquanto instrumentos de

educação moral não-formal (SABAT, 2003), capazes de veicular discursos ideológicos acerca

de padrões estéticos e de conduta, construindo assim o senso de normatividade social, ou seja,

apresentando ao público infantil os padrões aceitos e não aceitos pela sociedade em um

determinado momento.

No presente trabalho, iremos abordar o fenômeno cultural de comunicação, através das

mídias, de discursos hegemônicos que prescrevem normas de gênero e sexualidade restritivas

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e que reiteram preconceitos tradicionais em relação a determinados grupos. Entendemos aqui

as identidades de gênero socialmente aceitas e a heterossexualidade não como elementos

naturais, mas sim como condições histórica e culturalmente construídas. Dessa forma,

concebemos que diferentes mecanismos são utilizados constantemente na tentativa de garanti-

las como condições normativas. Em meio a tantos mecanismos, tomaremos como objeto de

análise os filmes de animação longa metragem dos estúdios Disney, observando

especificamente o processo pelo qual os filmes infantis veiculam discursos ideológicos que

atribuem teor de negatividade a identidades de gênero e sexuais1 alternativas, através da

atribuição à figura do vilão - alegoricamente representante do “socialmente indesejado” - de

elementos que remetem à homossexualidade ou à ambigüidade sexual.

A homofobia é um fenômeno particularmente em voga e que se opõe radicalmente aos

discursos políticos e culturais da pós-modernidade, baseados na emancipação individual e na

promoção da diversidade (LIPOVETSKY, 2005). Neste cenário pós-moderno, as mídias

atuam diretamente sobre as definições e atitudes do indivíduo acerca do que significa ser

masculino ou feminino e seu senso de sexualidade, principalmente quando tratamos de

artefatos culturais direcionados ao público infantil. As imagens expostas pelos meios de

comunicação contribuem para a elaboração de visões de mundo e dos valores mais profundos

da criança, demonstrando à mesma quais grupos sociais detêm poder e quais são desprovidos

do mesmo, assim como demarcando claramente espaços socialmente aceitos e espaços de

negação (KELLNER; 2011 p.7). Sendo assim, vislumbramos a importância social de estudos

que buscam analisar a presença, em artefatos culturais centrais para a cultura popular

contemporânea e para o público infantil em específico, de discursos que atuam de forma a

contribuir com a marginalização de determinados grupos e identidades.

2. IDENTIDADES, MÍDIAS E OS ESTUDOS CULTURAIS

De acordo com Nancy Fraser (1997), a partir da década de 1960 vivenciou-se o

movimento de transposição das temáticas culturais para os espaços de centralidade nas

discussões políticas e sociais, de forma que questões de gênero, reconhecimento, sexualidade,

religiosas, étnicas e estéticas passaram a suplantar o antigo aparato unicamente econômico

com o qual estudiosos abordavam os mecanismos de dominação social. 1 Apesar de intimamente relacionadas, as identidades de gênero e sexuais não são uma “coisa” única. Como

aponta Guacira Louro (1997), enquanto a identidade de gênero refere-se à identificação histórica e social dos

sujeitos, que se reconhecem como femininos ou masculinos, a identidade sexual diz respeito às diversas formas

pelas quais os indivíduos vivenciam seus desejos corporais: com parceiros do mesmo sexo ou não, sozinhos, etc.

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Como parte desse processo pode-se apontar o surgimento, no mesmo período, de

novas propostas teóricas e políticas pautadas pela ampliação do conceito de cultura. Dentre

tais propostas destacam-se os Estudos Culturais, que desde seu surgimento enquanto campo

de estudos organizado2, a partir da fundação do Centre for Contemporary Cultural Studies em

1964, têm atribuído especial relevância às práticas midiáticas de representação de classe,

gênero, raça, etnia e nacionalidade, tomando-as enquanto objetos de estudo centrais para o

entendimento das dinâmicas e conflitos entre discursos dominantes e marginais.

Como aponta Maria Manuel Baptista (2009, p.24), ao analisar as principais linhas de

desenvolvimento da investigação em Estudos Culturais, os estudos relativos aos modos de

construção política e social das “identidades” - concernentes às questões de nação, raça,

etnicidade, sexo, gênero, etc - têm sido das temáticas mais presentes nos últimos anos no

campo dos estudos da cultura, originando uma “importante massa de resultados de grande

qualidade e importância fora e dentro das academias” (idem).

O crescimento da importância atribuída às temáticas de gênero e sexualidade dentro do

campo dos Estudos Culturais remonta a meados da década de 70, sendo este processo

profundamente influenciado pela expansão do movimento feminista para além de seu sentido

reivindicatório, não só exigindo a igualdade de direitos políticos e sociais, mas constituindo-

se também em crítica teórica (ESCOSTEGUY, 2008). Como aponta Stuart Hall (1997), os

estudos de gênero introduziram aspectos totalmente novos no campo dos Estudos Culturais ao

questionarem a explicação dos comportamentos de homens e mulheres com base no

determinismo biológico. Sob a nova perspectiva das relações de gênero, o importante é o

entendimento dos processos de construção histórica, lingüística e social dos papéis atribuídos

a homens e mulheres, meninos e meninas.

Visando reconstituir uma narrativa histórica acerca dos interesses e temáticas

predominantes no campo dos Estudos Culturais, Escosteguy (2008) aponta a segunda metade

da década de 70 como o período a partir do qual se percebe a importância crescente dos meios

de comunicação de massa, vistos não apenas como entretenimento, mas como aparelhos

ideológicos centrais para o entendimento do processo de construção de identidades, sejam

2 Apesar de utilizarmos o termo “campo de estudos organizado”, vale ressaltar o caráter diverso, heterogêneo e

muitas vezes conflitante dos Estudos Culturais, aproximando-o mais de uma noção de “campo gravitacional” do

que da idéia de uma disciplina academicamente “policiada”, com paradigmas consensualmente estabelecidos

(BAPTISTA, 2009).

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estas de gênero, sexuais, classe, etc. A visão dos estudiosos da cultura acerca das inter-

relações entre mídias e identidades é explicitada por Kellner (2011, p.7):

[…] media provides materials out of which we forge our very identities: […] our

notion of what it means to be male or female; our sense of class, of ethnicity and

race, of nationality, of sexuality. […] Media images help shape our view of the

world and our deepest values: what we consider good or bad, positive or negative,

moral or evil. Media stories provide the symbols, myths, and resources through

which we constitute a common culture and through the appropriation of which we

insert ourselves into this culture. Media spectacles demonstrate who has power

and who is powerless, who is allowed to exercise force and violence, and who is

not.

Kellner (2001) aponta para a existência nas sociedades de consumo (posteriores à

Segunda Guerra) de um processo de identificação mediado pelas produções de massa da

mídia contemporânea. Para tanto, primeiramente o autor contrapõe a noção essencialista e

racionalista de identidade, própria da modernidade, de uma noção construtivista, mais

adequada para o cenário pós-moderno. Kellner (2001, p. 296) coloca que as identidades do

sujeito moderno eram pautadas por uma noção clara do “eu” centrado, de forma a se

mostrarem relativamente substanciais e fixas, sendo elaboradas com base em grupos

previamente definidos de papéis sociais com os quais o indivíduo poderia se identificar.

Já na pós-modernidade, a problemática da identidade é radicalizada. Por conta das

grandes mudanças e o aumento das complexidades vivenciadas pelas sociedades, as

identidades tornam-se cada vez mais instáveis e frágeis. Nas sociedades da informação e da

mídia, o processo constante de formulação e reformulação das identidades do individuo se dá

de forma dialógica, entre sujeitos e os meios de comunicação de massa que o cercam. Para

Kellner, a cultura da mídia - neste cenário pós-moderno de fragmentação e instabilidade

identitária (HALL, 1997) -, é uma fonte eficiente de novas identidades, substituindo espaços

tradicionais de ancoragem do indivíduo como a nação, religião, etc. Dessa forma, o autor

afirma ainda o caráter educativo e normativo da mídia que, ao fornecer modernas fábulas

morais, apresenta “qual é o comportamento certo e o errado, o que deve ou não ser feito, o

que é ou não „a coisa certa‟” (KELLNER, 2001, p.212)

Tendo em mente a extrema importância dos meios de comunicação de massa no

processo de ensinar papéis sociais e posições-de-sujeito na contemporaneidade, focamos

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nossas análises nos filmes infantis de animação longa metragem produzidos pelos estúdios

Disney. Tal opção se deu devido a diversos fatores, dentre eles o grande apelo que estes

exercem sobre o público infantil. Outro fator importante refere-se ao fato de tais instrumentos

de “pedagogia cultural” anularem em suas construções cinematográficas questões complexas,

como diferenças culturais e questões sociais, apresentando uma visão de mundo conservadora

que pode influir de forma negativa sobre o processo de constituição da identidade da criança e

suas impressões acerca de determinados grupos (GIROUX, 1995, p.52). Aprofundaremos

nossas discussões acerca destes temas a seguir.

3. O CINEMA E O PÚBLICO INFANTIL: Novas máquinas de ensinar

De acordo com Sabat (2003 p.27), as animações infantis caracterizam-se como

importantes espaços perpassados pelas relações de poder, onde ocorrem “lutas e contestações

dos processos de significação produzidos pelo conhecimento hegemônico”. Para Giroux

(1995), tais artefatos culturais contribuem significativamente com o processo de constituição

de identidades e posições-de-sujeito, sendo estas elaboradas a partir de discursos sobre raça,

classe, gênero e sexualidade presentes nas animações, em um processo que o autor chama de

“pedagogia da inocência”. Giroux acentua ainda o papel das animações enquanto

instrumentos de aprendizagem persuasiva junto ao público infantil. Segundo o autor,

É desnecessário dizer que a importância dos filmes animados opera em muitos

registros, mas um dos mais persuasivos é o papel que eles exercem como novas

“máquinas de ensinar”. (...) Esses filmes inspiram no mínimo tanta autoridade

cultural e legitimidade para ensinar papéis específicos, valores e ideais quanto

locais mais tradicionais de aprendizagem, tais como escolas públicas, instituições

religiosas e a família. (GIROUX, 1995, p. 50)

Observada assim a natureza “eminentemente pedagógica” dos filmes infantis, cabe

problematizarmos os conteúdos expostos por tais artefatos culturais. No tocante

especificamente aos discursos sobre gênero e sexualidade, que caracterizam as preocupações

centrais do presente estudo, observamos um claro tradicionalismo, que atua de forma a

reforçar normas socialmente aceitas, sobre as quais são sustentados preconceitos. Como

aponta Sabat (2003, p.14):

[...] os filmes infantis têm cumprido a função de ensinar modos de ser masculino e

feminino, de reiterar a heterossexualidade como norma e, desse modo, tornar

anormal o que não se enquadra nesse campo.

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Ao tratarmos de filmes infantis, invariavelmente nos vêm à mente as produções

Disney, objetos culturais quase onipresentes no imaginário infantil que, revestidos de

autoridade e legitimidade, ensinam o que é supostamente “bom, correto e justo” desde o início

do século XX a gerações de crianças em todo o mundo.

As animações Disney constituem-se em sua maioria de narrativas de romances

invariavelmente heterossexuais, onde as definições de “masculino” e “feminino” são

apresentadas de forma clara e restritiva, desvalorizando identidades de gênero e sexuais que

não se reconhecem em um destes pólos (COCA, 2000). Estudos anteriores encontraram nas

animações Disney a forte prevalência de estereótipos de gênero, sendo mulheres retratadas

como submissas e voltadas para o lar, enquanto personagens masculinos são apresentados

como sociáveis e provedores (WIERSMA, 2001; BERES, 1999). No que diz respeito à

sexualidade, estudos mostram que as animações dos estúdios Disney tendem a representar

negativamente transgressores de gênero, relacionando a presença de comportamentos

tradicionalmente atribuídos ao sexo oposto com vilania.

3.1.Disney e Homonegativismo:“Nobody likes a sissy” 3

Diversos estudos analisaram a presença de “homonegativismo” nas animações dos

estúdios Disney. Li-Vollmer e LaPointe (2003) definem o termo enquanto um processo de

representação de homossexuais como estereotipados, maus e unidimensionais, criando

imagens negativas acerca do grupo no imaginário do público.

Devido à imagem tradicional dos estúdios Disney enquanto repositório dos bons-

costumes e valores éticos próprios da classe-média branca e heterossexual norte-americana

(GIROUX,1995), em suas animações longa metragem os personagens transgressores de

padrões de gênero não são diretamente identificados como homossexuais, porém

performatizam o gênero de forma a, como definido pelos trabalhos vinculados à Teoria

Queer 4 , desestabilizar as normas socialmente aceitas. Enquanto heróis e heroínas são

apresentados como “tipos ideais” de masculinidade e feminilidade, há elementos visuais e de

3 RUSSO, V. The celluloid closet. New York: Harper & Row. 1987

4 De forma geral, a Teoria Queer trata-se de uma corrente de pesquisa acadêmica originada na Inglaterra e

Estados Unidos na década de 1990, que busca transpor as teorias baseadas na oposição homens/mulheres e

também aprofundar os estudos sobre minorias sexuais (gays, lésbicas, transgêneros), dando maior atenção aos

processos sociais amplos que reforçam a heterossexualidade como norma.

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conduta que não condizem com os papéis de gênero tradicionalmente aceitos em quase todos

os vilões dos filmes Disney (COCA, 2000). De acordo com a mesma autora, existe uma

tendência dos anti-heróis apresentarem características visuais e de comportamento

normalmente atribuídas ao gênero oposto ou super-representarem seus papéis de gênero.

Diversos outros estudos acentuaram o potencial de determinados personagens Disney para

uma leitura queer (BYRNE e MCQUILLAN, 1999; GRIFFIN, 2000).

Tratando especificamente de vilões do gênero masculino (foco de análise deste

estudo), pesquisas sugeriram a existência de um processo de criação do arquétipo de “vilão

afeminado5”. Os anti-heróis Disney apresentam características comportamentais e estéticas

socialmente atribuídas às mulheres, como sofisticação, fraqueza física, estruturas faciais

femininas, indumentárias e gestualidade afeminada, sugerindo assim a homossexualidade dos

mesmos.

No presente estudo, norteados pelos pressupostos pós-estruturalistas que privilegiam a

instabilidade de sentido e a centralidade do discurso para entendimento das relações sociais,

iremos nos dedicar à análise dos vilões Jafar e Scar, anti-heróis das animações longa

metragem dos estúdios Disney Aladdin (1992) e O Rei Leão (1994), respectivamente.

4. METODOLOGIA

Visando analisar o processo de desvalorização de identidades de gênero e sexuais

transgressoras dos padrões socialmente aceitos com base na caracterização visual dos vilões

Disney, empregamos a metodologia de análise de discurso, mais especificamente a

abordagem da semiótica discursiva de linha francesa, derivada dos trabalhos de Greimas

(1973).

Analisamos os personagens Jafar e Scar, vilões das animações longa metragem

Aladdin (1992) e O Rei Leão (1994), respectivamente. A escolha de dois personagens

masculinos se deve ao fato das produções Disney mais recentes terem evitado antagonistas do

gênero feminino (LI-VOLLMER; LAPOINTE, 2003). Dessa forma, os resultados alcançados

no presente estudo serão mais representativos dos padrões gerais apresentados pelos vilões

Disney nas últimas décadas. Além disso, analisamos apenas a homossexualidade masculina,

5 Tradução livre do termo “villain-as-sissy”, empregado por Li-Vollmer e LaPointe (2003) para nomear tal

fenômeno.

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dada a especial desvalorização social da mesma, em comparação com a homossexualidade

feminina (CARRARA; SIMÕES, 2007).

Cabe ressaltar ainda que optamos propositalmente por analisar um personagem

“humano” (Jafar) e um personagem “animal” (o leão Scar), buscando assim observar a

permanência de padrões de feminilidade nos diversos formatos de vilões Disney.

A semiótica greimasiana considera que todo texto pode ser analisado a partir de três

níveis: discursivo, narrativo e fundamental, sendo que a articulação entre estes níveis dá

origem ao chamado “percurso gerativo de sentido”.

No nível discursivo, considerado mais superficial e diretamente atingível pelo leitor,

ocorre a actorialização, a espacialização e a temporalização (PIASSI, 2012), sendo que tais

elementos caracterizam a materialização do projeto narrativo do texto. Como aponta Piassi

(2011), o nível discursivo trata-se do mais concreto e também do mais complexo dentre os

três níveis do texto.

No nível narrativo, mais abstrato e profundo que o anterior, há a construção de um

modelo narrativo no qual um actante busca algo de valor. O actante não se refere à figura do

personagem, sendo que este último trata-se de uma materialização específica, ao passo que o

actante pode ser qualquer agente que realiza ou sofre uma ação.

Finalmente, o nível fundamental do discurso é o mais abstrato dentre todos. Nele são

consideradas as aproximações e afastamentos entre o sujeito e seu objeto de valor,

considerando as oposições de sentido profundas do texto e o trajeto entre os pólos dessas

dicotomias (PIASSI, 2011).

No presente estudo, enfatizamos a análise das características visuais dos vilões, sendo

estes elementos mais diretamente relacionados com o nível discursivo do texto.

Aprofundamo-nos em três dimensões do discurso: (1) os figurinos dos personagens; (2) seus

códigos de gestualidade e; (3) suas conformações físicas.

Os figurinos dos personagens caracterizam uma importante dimensão do discurso. Os

trajes de indumentária, de acordo com Barthes (2006), constituem uma sintagma, ou seja, uma

articulação de elementos que visam expressão. A opção do autor por determinadas peças e

não outras, em um conjunto amplo de vestimentas possíveis, mostra que suas escolhas não são

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arbitrárias, reforçando a noção de que a opção por determinados trajes é parte integrante da

mensagem que se pretende passar.

No âmbito da análise gestual, temos que como os gestos utilizados por personagens

não são aleatórios, é possível perceber que, assim como o figurino e os atributos físicos, a

gestualidade é pensada visando transmitir conceitos sobre o personagem. Como coloca

Greimas, “a gestualidade estabelece diferenças entre culturas, sexos e grupos sociais,

funcionando como uma dimensão semiótica da cultura” (BARROS, 2010, p. 2-5). Barros

(2010) distingue duas formas de gestualidade: a práxis gestual e a comunicação gestual. No

âmbito do enunciado, tanto a práxis quanto a comunicação gestual são vistas como processos

narrativos. Dessa forma, a gestualidade prática caracteriza-se como uma tradução figurativa

de uma narração. Por outro lado, a comunicação gestual se mostra como uma tradução

figurativa das relações de comunicação ou manipulação entre sujeitos e de suas respectivas

interações (BARROS, 2010, p. 2-5).

Por fim, no tocante à aparência física dos personagens, temos que há um potencial

simbólico em suas fisionomias e atributos. No caso das animações longa metragem, os

autores têm uma grande liberdade na escolha de atributos físicos dos personagens visando

comunicar determinados conceitos sobre estes. Isso se deve ao fato de não ser necessário

limitar-se a fisionomias estritamente verossímeis e humanas nas animações, de forma que as

intencionalidades do autor na construção física dos personagens tornam-se ainda mais

explícitas e seus corpos, ainda mais carregados de significados.

5. ANÁLISE DOS PERSONAGENS

5.1. Conformação Física

A transgressão de gênero na caracterização visual de ambos os vilões pode ser

observada através de suas características físicas, que evocam padrões tradicionais de beleza

feminina. Contrastando com a estrutura facial larga e retilínea dos heróis, os antagonistas

apresentam maxilares e mandíbulas estreitos, rostos finos e queixos pontiagudos. As

características faciais afeminadas dos vilões são acentuadas através do uso de cores e

sombras, que em conjunto atuam de forma a aparentar uso de cosméticos. Tanto Jafar quanto

Scar apresentam pálpebras coloridas em roxo e sobrancelhas bem delineadas, elementos

encontrados apenas nos demais personagens femininos das animações (Ver Figura 1).

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Figura 1 – A caracterização facial dos vilões Scar e Jafar.

O personagem Scar apresenta ainda uma espécie de “penteado” que difere dos padrões

tradicionalmente atribuídos a indivíduos do sexo masculino. Sua juba apresenta grande

movimento e fluidez, ao passo que as jubas de Mufasa e Simba, os heróis da trama, quase não

se movimentam.

As demais partes do corpo dos vilões também conotam formas afeminadas. Jafar

apresenta corpo alto e esbelto, com graciosos membros longos e cintura fina, em consonância

com os atuais padrões de beleza feminina. Um elemento importante a ser salientado diz

respeito às mãos dos antagonistas. No caso de Jafar, temos mãos longas e pulsos finos. Como

nenhum dos personagens de Aladdin têm unhas, os animadores atribuíram ao vilão dedos

pontudos que sugerem unhas longas. Por se tratar de um vilão animal, Scar não tem mãos,

porém as unhas de suas patas são excepcionalmente longas e mantêm-se à mostra durante

todo o tempo, em oposição às garras dos heróis Simba e Mufasa, mostradas apenas em

situações de luta.

A estrutura corpórea de ambos os personagens estudados é particularmente magra, em

oposição aos corpos robustos dos protagonistas masculinos. Jafar, em especial, é uma figura

extremamente franzina, sugerindo uma fraqueza física tradicionalmente relacionada a

estereótipos femininos.

5.2. Figurinos

Por se tratar de um personagem animal, Scar não apresenta vestimentas, de forma que

a dimensão de indumentária, em seu caso, está indissociavelmente relacionada às suas

características corporais, estas quais já analisadas na seção anterior.

No concernente às vestimentas de Jafar (Figura 2), observamos roupas longas,

similares a vestidos femininos, em oposição à indumentária mais simples e inequivocamente

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masculina do herói Aladdin. Destacamos ainda o fato de Jafar ser o único personagem

masculino a não usar calças, um dos elementos mais tradicionalmente relacionados à

masculinidade.

Figura 2 – As vestimentas de Jafar.

A presença de uma exuberante capa e a impecável ornamentação do chapéu sugerem

seu zelo estético e uma inerente vaidade, características estas tradicionalmente atribuídas às

mulheres, contribuindo assim para a materialização, no nível discursivo, de sua sexualidade

ambígua.

5.3. Gestualidade

Os movimentos corporais e posições de ambos os vilões comunicam suas

feminilidades transgressoras. Hollander (1998 apud LI-VOLLMER; LAPOINTE, 2003)

aponta em seu estudo acerca de performances de gênero na televisão que a gestualidade das

mulheres se dá através de movimentos contidos e sutis. Tanto Jafar quanto Scar

movimentam-se de forma contida, sendo que o anti-herói de Aladdin raramente gesticula de

forma a movimentar seus ombros. As partes inferiores de seu corpo também apresentam

movimentos mínimos, escondidos sob suas vestes longas.

A postura de Jafar é ereta, com costas retas e ombros para trás, se assemelhando ao

posicionamento corporal tradicional sugerido pelas regras de etiqueta feminina.

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Scar apresenta o mesmo padrão de movimentação suave, contrastando com os gestos

firmes e expansivos dos protagonistas masculinos. É interessante observarmos que para

comunicar uma imagem afeminada, ao sentar Scar mantém seus ombros eretos e

cuidadosamente cruza as patas dianteiras. (ver Figura 3)

Figura 3 – A gestualidade afeminada de Scar ao sentar.

As partes do corpo mais expressivas em ambos os personagens são suas mãos ou

patas. Os antagonistas apresentam mãos moles, gesticulando sem firmeza nos pulsos, em

oposição aos gestos dos protagonistas.

6. CONCLUSÃO

Os resultados do estudo apontam para a existência de uma tendência nas animações

Disney à representação do vilão enquanto transgressor dos padrões tradicionais de

masculinidade, apresentando em suas caracterizações visuais elementos que sugerem traços

de homossexualidade ou sexualidade ambígua. As vestimentas, corpos e gestos dos vilões de

sexo masculino contribuem para a construção do arquétipo de “vilão-afeminado” (LI-

VOLLMER; LAPOINTE, 2003)

Com base nestes resultados, podemos argumentar que as animações Disney atuam de

forma a reiterar o negativismo atribuído à homossexualidade ao relacioná-la com os

antagonistas das tramas. Podemos afirmar ainda que as animações estudadas tomam como

parâmetros para “afeminar” seus vilões, estereótipos femininos. Dessa forma, ao sugerir

fraqueza física e excesso de vaidade enquanto características próprias de mulheres, os filmes

reforçam uma imagem estereotipada de feminilidade que, em última instância, contribui com

o mantimento de hierarquias sociais que privilegiam qualidades masculinas.

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O presente estudo teve como um de seus objetivos centrais motivar análises mais

profundas das animações infantis, em detrimento de visões acríticas que usualmente tomam

tais artefatos culturais enquanto construções inocentes e essencialmente benéficas para a

formação das crianças. Como coloca Giroux (1995 apud KINDEL, 2003), tendo em vista o

caráter pedagógico das animações Disney, cabe aos estudiosos da cultura questionar os

significados que estas produzem, os papéis que legitimam e as narrativas que constróem. Os

presentes resultados apontam para uma potencial influencia negativa desses artefatos culturais

junto ao público infantil, em especial no processo de construção de visões acerca de

identidades de gênero alternativas.

Por fim, salientamos a importância de estudos críticos futuros dedicados à análise de mais

personagens - em especial antagonistas femininas -, buscando assim observar de maneira mais

ampla se o homonegativismo permeia as demais produções dos estúdios Disney.

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BAPTISTA, Maria Manuel (org.) Cultura: Metodologias e Investigação. Lisboa: Ver o

Verso Edições, 2009.

BARROS D.L.P. Os Sentidos da Gestualidade: Transposição e Representação Gestual

Cadernos de Semiótica Aplicada São Paulo, v. 8, n. 2, dez. 2010.

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BERES, L. Beauty and the Beast: The romanticization of abuse in popular culture. European

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BYRNE, Eleanor e MCQUILLAN, Martin. Deconstructing Disney. London:Pluto Press,

1999.

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