Pierson, Lia. Lacan

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Lacan.

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  • UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

    FACULDADE DE DIREITO

    LIA CRISTINA CAMPOS PIERSON

    LACAN: SUJEITO E DIREITO

    So Paulo 2007

  • LIA CRISTINA CAMPOS PIERSON

    LACAN: SUJEITO E DIREITO

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps Graduao em Direito Poltico e Econmico da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito para obteno do ttulo de Mestre.

    Orientador: Professor Doutor Livre-Docente Alysson Leandro Barbate Mascaro

    So Paulo 2007

  • LIA CRISTINA CAMPOS PIERSON

    LACAN: SUJEITO E DIREITO

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-graduao em Direito Poltico e Econmico do Curso de Direito da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito para obteno do ttulo de Mestre.

    Aprovada em ___/___/ 2007

    BANCA EXAMINADORA

    _______________________________________________ Prof. Dr. Livre-docente Alysson Leandro Barbate Mascaro

    _______________________________________________ Prof. Dr. Mrcio Bilharinho Naves

    _______________________________________________ Prof. Dr. Ari Marcelo Solon

  • minha famlia, Michael, Maria Luiza, Joo Gabriel, Jos Guilherme, Luisa e Alice.

  • AGRADECIMENTOS

    Ao Instituto Presbiteriano Mackenzie, entidade mantenedora da Universidade

    Presbiteriana Mackenzie no apenas pela bolsa de estudos que me permitiu concluir

    o curso do seu Programa de Mestrado, mas tambm e principalmente pela generosa

    acolhida num espao de discusso democrtico e pluralista.

    Ao Prof. Dr. Alysson Leandro Mascaro pelo entusiasmo e pela orientao

    cuidadosa.

    Aos meus amigos professores da Faculdade de Direito de Universidade

    Presbiteriana Mackenzie, Francisco Pedro Juc, Claudia Costa, Luis Rodolfo

    Ararigboia de Souza Dantas e Maria Teresa Stockler Breia pela escuta paciente de

    minhas dvidas e preocupaes.

  • Refletir sobre as formas da vida humana e analis-las cientificamente seguir rota oposta a seu verdadeiro desenvolvimento histrico. Comea-se depois do fato consumado, quando esto concludos os resultados do processo de desenvolvimento. Karl Marx Atualmente, quando se faz histria histria das idias, do conhecimento ou simplesmente histria atemo-nos a esse sujeito de conhecimento, a este sujeito da representao, como produto de origem a partir do qual o conhecimento possvel e a verdade aparece. Seria interessante tentar ver como se d, atravs da histria, a constituio de um sujeito que no dado definitivamente, que no aquilo a partir do que a verdade se d na histria, mas de um sujeito que se constitui no interior mesmo da histria, e que a cada instante fundado e refundado pela histria. Michel Foucault

  • RESUMO

    Estrutura forma e direito abordados a partir da psicanlise revista por Lacan e seus

    desdobramentos que produziram um sujeito filosfico que pode ser compreendido

    em sua re-significao pelo direito, afirmada pelo marxismo e por seu valor de

    discurso produtor de verdades, que no capitalismo tem a finalidade de inventar o

    sujeito de direito. Estudam-se neste trabalho trs categorias: estrutura, forma e

    direito. Se os aborda tendo como ponto de partida a psicanlise, na forma produzida

    pela reviso de Jacques Lacan e seus desdobramentos do que resultou produzir um

    sujeito filosfico. Busca-se a compreenso dele na sua re-significao atribuda pelo

    direito, resgatando a afirmao pelo marxismo, e pelo valor de discurso produtor de

    verdades. Refere-se que esse discurso no capitalismo persegue a finalidade de

    inventar o sujeito de direito. Constata-se a possibilidade de extrair o sujeito filosfico

    da chamada psicanlise lacaniana, enquanto estrutura, para atravs dessa

    abordagem estabelecer uma relao entre o sujeito filosfico lacaniano e o sujeito

    de direito. Essas estruturas sujeito da psicanlise e sujeito de direito so anlogas,

    porm no se confundem.

    Palavras-chave: Estrutura. Forma. Direito. Psicanlise.

  • RESUM

    Labordage de la structure et de la forme du droit partir de la psychanalyse

    lacanienne et ses consequences, produisent um sujet phylosophique qui peut tre

    entendu comme une resignification par le droit. Celui-ci saffirme dans le marxisme et

    par sa valeur comme discours, produit des verits qui dans l capitalisme eut la

    finalit dnventer um sujet du droit . Forme et droit abordes de structure de la

    psychanalyse passe en revue pour Lacan et ses dploiements qui avaient produit

    un sujet philosophique qui peut tre compris dans son resignification pour le droit,

    affirm pour le marxisme et sa valeur de produire le discours des vrits, qui dans le

    capitalisme a le but d'inventer le sujet droit. Trois catgories sont tudies dans ce

    travail: structure, forme et droit. On les approche vers la psychanalyse, ayant en tant

    que point de dpart, sous la forme produite pour la rvision de Jacques Lacan et ses

    dploiements de ce qu'elle a rsult pour produire un sujet philosophique. On le

    recherche dans son resignification attribu pour le droit, sauvant l'affirmation pour le

    marxisme, et la valeur de discours produteur des vrits. On lui mentionne que ce

    discours dans le capitalisme poursuit le but d'inventer le sujet droit. C'est possibilit

    dmontre pour extraire le sujet philosophique de la psychanalyse lacanienne

    d'appel, alors que la structure, arrts par ceci embarquant tablissant une relation

    entre le sujet philosophique lacanien et le sujet de droit. Le sujet de ces structures de

    la psychanalyse et le sujet de droit sont analogues, toutefois ils ne sont pas confus.

    Mots-clef: Structure. Forme. Droit. Psychanalyse.

  • SUMRIO

    Introduo...................................................................................................................09

    Captulo 1 Lacan: Uma abordagem inicial.............................................................. 17

    Captulo 2 O sujeito em Lacan............................................................................... 23

    Captulo 3 - O sujeito de direito: entre o sujeito do jurista e o sujeito da psicanlise

    3.1 O sujeito do jurista ........................................................................ 37

    3.2 O sujeito da psicanlise..................................................................43

    Captulo 4 - Lacan, Foucault e o Direito.....................................................................49

    Captulo 5 - Psicanlise, poltica e cidadania: um excurso

    5.1 Uma abertura ao marxismo .......................................................... 56

    5.2 - Uma abertura ao problema da poltica e da cidadania..................60

    CONCLUSO............................................................................................................65

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS..........................................................................66

  • 9

    INTRODUO

    fato que muito se tem escrito sobre temas relacionados interseco

    direito/psicanlise, tema que norteia o presente trabalho. So inmeras as

    abordagens, mas todas de algum modo acabam tendo como marca a tentativa de se

    estudar temas jurdicos por meio de uma viso psicanaltica circunscrita s

    categorias de pensamento cujo uso s se justifica no interior do exerccio clnico da

    psicanlise.

    O principal equvoco consiste, frequentemente, em se fazer uma pretensiosa e

    temerria interpretao psicanaltica 1 da atividade dos diferentes operadores do

    direito, estabelecendo ligaes, nem sempre acertadas, entre sua ao, sua

    produo e os seus contedos inconscientes ou supostos conflitos pessoais.

    Na tentativa de superar esse esteretipo, acredita-se ser possvel, retirar da

    psicanlise instrumentos conceituais que imprimam uma determinada viso do

    sujeito, filosfico, com as peculiaridades e caractersticas que iro permitir

    consider-lo produto de sua assuno ao mundo humano, cultural, para ento

    verificar as conseqncias dessa condio no sujeito alvo do direito, bem no

    cruzamento dessas duas idias.

    Os conceitos psicanalticos aqui utilizados correspondem ao resultado de alguns

    anos de estudo formal de psicanlise, tanto da obra de Sigmund Freud2 como da de

    1 A expresso interpretao psicanaltica, entre aspas, refere-se quela, popular, que empresta interpretaes com chaves fixas para determinados comportamentos, como os atos falhos e lapsos. Por exemplo: O famoso lapso de trocar a palavra cama pela palavra mesa ou vice versa, a que se empresta forte contedo sexual. A interpretao psicanaltica strictu sensu s acontece em anlise, porque ela contextual, operada a partir do discurso do analisante. 2 A obra de Sigmund Freud, dentre outras edies, disponvel na Standart Edition que no Brasil foi editada pela Imago Editora sob o ttulo Edio Standard Brasileira das Obras Psicolgicas Completas de Sigmund Freud trad. Jos Octavio de Aguiar Abreu.

  • 10

    Jacques Lacan3 e de outros tantos anos de anlise pessoal, o que no

    necessariamente se insere numa leitura estrita dos cnones psicanalticos.

    Para compreender melhor a abrangncia dos termos que sero utilizados ao longo

    desse estudo segue abaixo algum comentrio a respeito dos conceitos que sero

    trabalhados.

    Ainda que haja uma inumervel quantidade de definies encontrveis em diferentes

    setores do conhecimento, classificveis nesta ou naquela orientao, a

    representao de estrutura, forma e direito que se prope aqui operacional, isto ,

    usada nos limites das idias que aqui se pretende desenvolver. Alm disso, a

    concepo filosfica de estruturalismo nunca ser no presente trabalho, conclusiva.

    Trata-se de apontamento provisrio.

    A expresso estrutura, presente em todo o trabalho, refere-se ao uso filosfico do

    termo a partir de sua elaborao por Lvi-Strauss4, e seu reflexo em Lacan, o que

    promoveu a inverso do desenvolvimento do saber sobre o homem para desnudar

    as estruturas que produzem o pensamento. A partir dela no se trata do ser, mas do

    sujeito, enquanto estrutura. Sujeito que, portanto, no pode ser compreendido fora

    da estrutura que o produziu e na qual se encontra imerso.

    Inicialmente, considera-se por estrutura os fundamentos que demonstram a

    disposio das partes de um objeto qualquer, que em se tratando de um conceito, as

    categorias de pensamento que o formam. Giovanni Reale e Dario Antiseri ao tratar

    do uso do termo estrutura trazem baila, no sem cautela, o conceito de estrutura

    cunhado por Piaget: um sistema de transformaes que se auto regulam, para

    depois, a propsito do uso cientfico da palavra estrutura comentar:

    3 A obra de Jacques Lacan foi editada no Brasil por diferentes editoras ao longo dos anos, basicamente ela composta pelos Escritos, conjunto de textos tanto produzidos pelo autor, como notas estenogrficas de suas aulas; alm dos Seminrios, cujos textos, exclusivamente fruto de aulas, foram estabelecido por Jacques Alain Muller. Neste trabalho mencionamos tambm Televiso, entrevista concedida por Lacan televiso francesa. 4 Principalmente em sua obra Antropologia Estrutural, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1975.

  • 11

    Em essncia, uma estrutura um conjunto de leis que definem (e instituem) um mbito de objetos ou de entes (matemticos, psicolgicos, jurdicos, fsicos, econmicos, qumicos, biolgicos, sociais etc.) estabelecendo relaes entre eles e especificando os seus comportamentos e/ou as sua maneiras tpicas de se desenvolverem. isso, em suma, o que se pode dizer sobre o uso do conceito de estrutura dentro das cincias. 5

    Os possveis usos filosficos da expresso estrutura foram desenvolvidos em

    contraposio ao existencialismo, ao subjetivismo, essa inverso do saber sobre o

    homem que proporciona a viso que se pretende nesse trabalho sobre o direito e

    seu sujeito. A palavra proporcionar, enquanto verbo, como se sabe, pode significar

    oferecer, tornar possvel. Caso se pense na expresso como um substantivo, tem-se

    proporo que pode significar dimenso, tamanho. Uma abordagem estruturalista

    compe as duas acepes: busca-se saber como algo se torna possvel e qual a sua

    dimenso. Novamente citando os autores de Histria da Filosofia: para o

    estruturalismo filosfico, a categoria ou idia no o ser, mas a relao; no o

    sujeito, mas a estrutura. 6

    O funcionamento dessa estrutura se d pela forma, que tambm pode ser

    considerada inicialmente como a disposio pela qual algo se torna possvel, que

    pode se concretizar num certo modelo de organizao de relaes.

    A forma jurdica, considerada nos limites dessas consideraes, um modo especial

    de organizao das relaes entre os homens e seus objetos que as legitima e d

    suporte de existncia criando uma forma especial de vnculo, que acaba por isso,

    sendo algo que existe a partir da prtica que a engendra.

    Portanto, no se trata de forma jurdica como palavra que se utiliza em Direito para

    significar a sua linguagem peculiar que exige o uso de certas expresses e certa

    organizao de idias.

    5 REALE,Giovanni ANTISERI, Dario Histria da Filosofia, vol. III So Paulo: Edies Paulinas, 1991 p. 941. 6 Idem p. 943.

  • 12

    O direito, nessa perspectiva, apresenta-se, logo de incio, como um fenmeno de

    explorao social que no incidental, mas sim, estrutural. Dentre outras teorias, o

    marxismo poderia apontar os vnculos estreitos entre o direito estatal moderno e o

    capitalismo. Nesse sentido Mascaro afirma:

    Assim sendo, percebe-se que no importa o que se compra ou o que se vende, mas o sujeito de direitos sempre aquele que transaciona alguma coisa, no mercado. A origem do conceito de sujeito de direito sempre mercantil, capitalista. Basta esta primeira etapa da histria do capitalismo, o capitalismo mercantil, para que j haja a ferramenta tcnica do sujeito de direito.7

    O estruturalismo, que permeia o pensamento dos tericos aqui utilizados, aparece

    como um arcabouo capaz de sustentar os pensamentos que aqui pretende-se

    expor, como um ponto de vista privilegiado a descortinar o que subjaz na

    interseco da psicanlise com o direito.

    O estruturalismo jurdico uma abordagem do direito a partir de uma leitura

    diacrnica de um modo especial de organizao das relaes humanas lato sensu

    de modo a revelar o funcionamento da cultura que o gerou.

    Levando em considerao que o estruturalismo, na psicanlise, examina a infra-

    estrutura inconsciente dos fenmenos culturais, tendo-os como relacionados, a fim

    de compreender a coerncia interna do modo como se organizam tais fenmenos, a

    via adequada para a sua construo jurdica encontra-se no exame do conceito

    radical que implica na existncia do Direito: a forma jurdica.

    Por isso a tarefa de estudar o que veio a se nomear estruturalismo jurdico no pode

    prescindir a investigao daquilo que veio a produzir o que se chama Direito

    enquanto organizador de certas relaes sociais ditas jurdicas8. Prope-se que a

    isso se chame Forma Jurdica.

    7 MASCARO, Alysson Leandro Introduo ao Estudo do Direito. So Paulo: Quartier Latin, 2007 p.113. 8 A expresso relaes ditas jurdicas est usada em contraposio s demais relaes que no estariam alcanadas pelo direito, quando as organiza.

  • 13

    Na psicanlise lacaniana, poder-se-ia apontar que a forma jurdica seria anterior

    idia de direito, produto desse modo de abordar tal fenmeno relacional, que como a

    simbolizao, no pode prescindir a tenso que isso proporciona; quando entra em

    causa a sua linguagem e seu efeito, surge o poder, percebido no tempo e

    (re)calcado na memria.

    A palavra poder, em psicanlise, pode ser considerada de diferentes formas, tanto

    enquanto um verbo: a aptido de realizar alguma coisa no sentido de "ser capaz",

    como no sentido substantivo: o domnio, a supremacia, a autoridade ou, ainda, a

    fora, a pujana. Aqui o sentido que melhor se adapta o de potncia,

    substantivando-se a primeira acepo referida acima. Essa categoria de

    pensamento ser trabalhada a partir de Michel Foucault, no captulo 5.

    O modo por meio do qual aqui se aborda a relao entre o direito e a psicanlise e

    os sujeitos construdo por seus peculiares recortes seria como uma viso

    paradigmtica, numa sucesso de fenmenos, abordada do ponto de vista

    sintagmtico. Ao usar-se tal forma para um discurso que revela essa outra relao,

    surge o sentido dessa linguagem que est na estrutura da cadeia significante, para,

    a partir dessa segunda, significar algo que est alm daquilo que diz.

    Esse fenmeno acontece tanto no direito como na psicanlise. No direito: sempre

    que, nas estruturas sociais, entre pessoas, se d a troca mercantil,; na psicanlise:

    quando o inconsciente irrompe no discurso, dizendo mais do que se pretendeu dizer.

    Produzindo, na ordem: o sujeito de direito e o sujeito da psicanlise, este ltimo que,

    nos limites desse trabalho o sujeito humano. Aquele cujo ingresso na condio

    humana explicado pela psicanlise.

    Considerando-se que o estruturalismo prope instrumentos para uma viso que

    ultrapassa o tratamento da dimenso normativa da questo emprica, desde esse

    ponto de vista possvel analisar tal sujeito (de direito) a partir de uma

    conseqncia de sua existncia: o inconsciente, considerado como produto e

    caracterstica fundante do sujeito da psicanlise (humano): a sua estrutura de

  • 14

    linguagem, o que fornece pistas de como a sua estrutura interfere nas produes

    humanas alcanando o direito a partir daquilo que o antecede: a forma jurdica.

    O direito tambm se apropria das coisas na medida em que as re-significa,

    delimitando-as por meio da forma jurdica, instrumento dessas re-significaes. O

    mesmo acontece com o sujeito humano, os indivduos considerados por Edelman9:

    Os indivduos so interpelados como sujeitos pelo direito. Esta interpelao constitutiva do seu prprio ser jurdico, no sentido de que esta interpelao tu s um sujeito de direito, que lhes d o poder concreto, que lhes permite a prtica concreta.

    Desse modo o direito, efeito daquele modo especial de organizao das relaes,

    aparece como legitimador dessa nova ordem quando o capital, ao transformar os

    meios de produo em um bem de nova categoria combina-os com a fora de

    trabalho assalariado.

    Edelman, assim como Miaille, considera que essa legitimao acontece por meio da

    constituio do sujeito de direito, pela interpelao que, ao atribuir essa condio ao

    sujeito humano, assujeita-o ao poder concreto de praticar a sua condio.

    Fica-se, pois, com a noo de que a categoria jurdica de sujeito de direito no uma categoria racional em si: ela surge num momento relativamente preciso da histria e desenvolve-se como uma das condies da hegemonia de um novo modo de produo... Pela categoria de sujeito de direito, ele mostra-se como parte do sistema social global que triunfa nesse momento: o capitalismo. preciso, pois, recusar todo o ponto de vista idealista que tenderia a confundir esta categoria com aquilo que ela suposta representar (a liberdade real dos indivduos). preciso tom-la por aquilo que ela : uma noo histrica.10

    A prtica dessa condio de sujeito de direito nem sempre acontece de modo que

    esse destinatrio de direitos tenha plena conscincia de seu status, como

    verificado por Tercio Sampaio Ferraz.

    9 EDELMAN, Bernard. O direito captado pela fotografia (Elementos para uma teoria marxista do direito) Coimbra: Centelha, 1976 Trad. Soveral Martins e Pires de Carvalho p.34. 10 MIAILLE, Michel. Introduo Crtica ao Direito. Trad. Ana Prata. 2. ed. Lisboa: Editorial Estampa, 1994. p.119-21

  • 15

    Para o homem comum, o direito por vezes aparece como um conjunto de smbolos incoerentes, que o torna inseguro, por exemplo, quando se v envolvido em uma pendncia processual. Confrontando com os direitos do outro, estes, embora lhe paream legtimos, tambm so afirmados. 11

    O autor demonstra de forma esclarecedora essa idia, ao explicar um aspecto

    funcional da hermenutica que pode obscurecer a verdade pelo do jogo da fico do

    bom poder.

    Pretende-se, ao abordar o tema da estrutura, forma e direito a partir de uma leitura

    de Jacques Lacan, demonstrar as relaes encontrveis entre a criao do direito a

    partir de sua prxis, e a abordagem lacaniana do ser humano enquanto sujeito da

    psicanlise, aplicando essa estratgia para o estudo da noo de sujeito de direito e

    sua significao.

    O direito, cujo primeiro ato (realizado por meio da forma jurdica), ao afirmar que o

    homem naturalmente um sujeito de direito, toma-o desde uma perspectiva que no

    alcana a essncia do que o tornou homem. Tal o fetiche da explicao dos

    juristas.

    Assim como a forma jurdica enreda o sujeito humano nas redes significantes do

    direito, esse mesmo sujeito torna-se humano ao ingressar no mundo simblico, que,

    portanto, inclui as redes significantes. Esse ingresso -nos explicado por meio da

    formao do sujeito pela psicanlise, no apenas enquanto aquele que analisado,

    mas a partir de um recorte que lhe lana novas luzes.

    No contexto desta pesquisa, que faz uso da abordagem psicanaltica do sujeito,

    esclarece-se que se tem em mente uma ampliao de um conceito cunhado nos

    limites da psicanlise. Considera-se, portanto, uma conseqncia filosfica desse

    conceito para se pensar o tema. Sublinha-se ento que se trata de um sujeito

    11 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio, Introduo ao estudo do direito: tcnica, deciso, dominao- 2. ed.: So Paulo: Atlas, 1994 p.285.

  • 16

    descentrado de si mesmo, visto que constitudo numa estrutura que est alm dele

    prprio. Essa afirmao ser trabalhada no captulo referente ao sujeito em Lacan,

    cujo entendimento encaminhar a abordagem do sujeito de direito a partir dessa

    viso.

    Da estrutura, forma e direito, para compreender-se essa relao entre o nascimento

    do sujeito para a psicanlise, estruturado como uma linguagem e que se expressa

    na forma de discurso, e a inveno do sujeito para o direito, que se instaura numa

    estrutura de linguagem e na forma jurdica que, por sua vez, se instaura na prpria

    dinmica da circulao capitalista. Tomando-se como referencial tal peculiaridade

    apresenta-se as relaes legitimadas pelo direito consideradas enquanto uma

    espcie de formao secundria. O discurso enquanto forma revelado pela

    estrutura da linguagem.

  • 17

    1- LACAN: UMA ABORDAGEM INICIAL.

    Poucos pensadores no sculo vinte tiveram uma influncia to intensa na vida

    intelectual de seu tempo como Jacques Lacan. O retorno de Lacan ao sentido de

    Freud no ficou apenas na profunda mudana no feitio institucional do movimento

    psicanaltico. Seus seminrios foram um dos formadores do desenvolvimento da

    corrente de idias filosficas que dominou as letras francesas dos anos 50, 60 e 70.

    Dentro e fora da Frana a obra de Lacan tambm foi muito importante no campo da

    esttica, crtica literria e filosofia. Principalmente por meio do trabalho de Louis

    Althusser, Michel Foucault e Gilles Deleuze, a teoria de lacaniana deixou tambm

    sua marca na teoria poltica, e particularmente a anlise da ideologia e da

    reproduo institucional. Procura-se em seguida esboar, ao trazer uma sucesso

    de fatos da vida de Lacan, algo da herana e da importncia filosfica do seu

    trabalho terico.

    Nascido em Paris, em 13 de abril de 1901, Jacques-Marie-mile Lacan, era filho

    primognito de um casal burgus, Alfred Lacan (1873-1960), representante

    comercial e de milie Baudry (1876-1948), mais intelectual, e inteiramente voltada

    para a religio.

    Os intelectuais de sua poca entre os quais figuram Andr Breton, Andr Gide, Jules

    Romains, James Joyce influenciaram-no, fazendo com que rechaasse os valores

    familiares e cristos nos quais havia sido educado.

    Formou-se em medicina, e entre 1927 e 1931 realizou os estudos necessrios para

    a especializao em psiquiatria, ocasio em que entrou em contato com Henri Ey,

    Pierre Mle. Foi interno de Gatean de Clrambaut, a quem considerava seu nico

    mestre no campo psiquitrico.

  • 18

    Com a tese de doutorado La Psychose paranoaque dans ses rapports avec la

    personnalit (1932; A psicose paranica em suas relaes com a personalidade),

    mostrou grande erudio e simpatia pela psicanlise. Mais tarde Lacan viria a

    declarar que sua tese marcava um posicionamento contrrio ao de Clrambault,

    sinal de diferenas irreconciliveis que desde ento os separou.

    O brilhantismo de sua tese torna-o um especialista em parania, o que atraiu

    pessoas dos mais diferentes crculos, tendo havido uma aproximao mtua entre

    Lacan e Dal.

    Quando iniciava sua carreira mdica, as idias de Freud estavam ganhando cada

    vez mais espao dentro do pensamento francs. Havia sido criada a revista

    "Evolution Psichiatrique", fundada no mesmo dia em que Lacan fazia sua primeira

    apresentao como mdico neurologista, Sociedade Psicanaltica de Paris (SPP).

    Entre 1932 e 1938 fez anlise com Rudolph Loewenstein, ento considerado como o

    melhor analista didtico da SPP. H quem afirme que esta procura por anlise com

    Loewenstein teve uma motivao poltica de forma a qualificar-se a ocupar posies

    de maior nvel dentro da SPP.

    Em 1936 assiste ao congresso da Associao Internacional de Psicanlise em

    Marienbad, onde apresenta pela primeira vez seu trabalho sobre o estdio do

    espelho. Lacan consegue, finalmente em 1938, ser nomeado titular da SPP.

    Aps a visita a Londres em 1945 ele publica: La Psychiatrique anglaise et la guerre,

    em L'Evolution psychiatrique, traduzido por A psiquiatria inglesa e a guerra e

    publicado em Outros Escritos.

    Em 1946, com o fim da 2 Grande Guerra, a SPP recomea sua atividade, Lacan,

    Nacht e Lagache, encarregam-se da formao dos analistas e superviso, e passam

    a representar um importante papel terico e institucional.

  • 19

    Em razo de crticas que diziam respeito sua tcnica de sesses curtas, de tempo

    varivel que se iniciaram em 1951, em 1953 apresenta sua demisso a SPP. Foi

    nesta ocasio que Lacan chamado a relatar na Conferncia de Roma (1953) sobre

    Funo e campo da linguagem em psicanlise.

    Recusando qualquer idia de assimilao da psicanlise a uma psicologia qualquer,

    considerava os estudos de filosofia, de letras ou de psiquiatria como as trs

    melhores vias de acesso formao dos analistas. Reatou assim com o programa

    projetado por Freud, quando do congresso da IPA em Budapeste, em 1918.

    Entre sua designao e a efetiva apresentao em Roma, Lacan, recm eleito

    presidente da SPP, demite-se para, com Daniel Lagache, Franoise Dolto entre

    outros analistas, fundar a Sociedade Francesa de Psicanlise (SFP). Mesmo assim

    profere seu discurso para introduzir o relatrio: "Funo e campo da fala e da

    linguagem em psicanlise".

    Inicia-se uma srie de apresentaes orais, os Seminrios, no Hospital Sainte-Anne,

    que constituiro o ncleo do trabalho terico de Lacan, sendo que no primeiro

    conferencia sobre "O Simblico, o Imaginrio e o Real".

    Lacan realiza tambm, em 1954, o seminrio Os escritos tcnicos de Freud, primeiro

    a ser registrado por estenotipista, possibilitando posterior publicao.

    At 1963 Lacan permanece no hospital Sainte-Anne, perodo em que apresenta os

    primeiros dez seminrios em que trabalha noes fundamentais sobre a tcnica

    psicanaltica, conceitos fundamentais de psicanlise e sua tica. Nesse tempo, em

    razo de uma maior maleabilidade com relao aceitao de uma audincia alm

    dos estudantes nos cursos, grandes nomes freqentam seus seminrios. Koyr,

    Lvi-Strauss, Merleau-Ponty, Griaule, Benveniste.

    Em 1961 no colquio organizado por Jean Wahl em Royaumont, Lacan defende trs

    afirmaes que ainda so pertinentes: a psicanlise, na medida em que, elabora sua

    teoria de uma prxis deve ter um status cientfico; as descobertas freudianas

  • 20

    mudam, radicalmente, os conceitos de sujeito, de conhecimento e de desejo; o

    campo analtico o nico capaz de interrogar com eficincia as lacunas deixadas

    pela cincia e pela filosofia.

    Entre 1962 e 1963 na busca do reconhecimento da SFP pela Sociedade

    Internacional de Psicanlise (IPA), os membros da Sociedade francesa cedem s

    presses e acolhem a sugesto da retirada de Lacan do grupo de analistas didatas,

    o que faz Lacan anunciar o fim de seu ensino no Hospital Sainte-Anne. Dez anos

    aps sua fundao a SFP admitida na Sociedade Internacional de Psicanlise.

    Lacan chamou essa segunda ciso do movimento psicanaltico de excomunho ela

    foi vivida como um desastre por todos os membros da SFP, tanto pelos alunos

    quanto pelos negociadores: Leclaire, Lacan, Granoff, Perrier, e Pierre Turquet pela

    Gr-Bretanha.

    Em 1964 Lacan funda a Escola Freudiana de Paris (L'Ecole Freudienne de Paris -

    E.F.P.) com antigos alunos como Franoise Dolto, Maud e Octave Mannoni, Serge

    Leclaire, Moustapha Safouan e Franois Perrier.

    Em janeiro do mesmo ano, apoiado por Lvi-Strauss e Althusser, indicado como

    conferencista da Ecole Pratique des Hautes Etudes. Ento inicia seu novo

    seminrio sobre os quatro conceitos fundamentais da psicanlise na sala de

    Dussane na Ecole Normale Suprieure. Entre os que aderiram ao seu ensino na

    ENS, encontrava-se Jacques Alain Miller, que se casou com Judith Lacan em 1966.

    Tornou-se redator dos seminrios do sogro e seu executor testamentrio.

    Em outubro de 1966 Lacan foi aos Estados Unidos, convidado para o simpsio

    sobre o estruturalismo organizado por Ren Girard e Eugenio Donato, na

    Universidade Johns Hopkins, de Baltimore.

    Nesse mesmo ano, com a publicao dos Escritos na coleo Champ Freudien

    nas ditions du Seuil, e o grande sucesso editorial que se tornou, Lacan passa a ser

    reconhecido como um importante pensador francs.

  • 21

    O seu interesse no se restringe apenas formao de analistas, Lacan traz

    indagaes a propsito das relaes da psicanlise e seu objeto com questes

    como: A psicanlise uma cincia? Sob quais circunstncias uma cincia? Se for

    - cincia do inconsciente ou uma cincia conjetural do sujeito - o que pode, por

    sua vez, nos ensinar sobre a cincia?

    Durante a maior parte dos anos que se seguiram Lacan segue produzindo por meio

    de seus seminrios. Em 1969, quando mudou seus seminrios para a escola de

    direito de Panthon, Michel Foucault convida-o para criar e dirigir o departamento de

    psicanlise da Universidade de Vincennes- Saint Denis (Paris 8), convite que no

    aceita, indicando para tal Serge Leclaire.

    Em 1974 o departamento de psicanlise de Vincennes passou a se chamar "Le

    Champ freudien;" Lacan o seu diretor, e Jacques-Alain Miller, presidente.

    quele tempo estabelecia a transformao progressiva de sua doutrina em um corpo

    de doutrina fechado, enquanto trabalhava para fazer da psicanlise uma cincia

    exata, baseada na lgica do matema e na topologia dos ns borromeanos.

    Em 1975 Lacan volta aos Estados Unidos, tendo participado de conferncias na

    Universidade de Columbia, na Universidade de Yale e no Instituto de Tecnologia de

    Massachusetts.

    Em 9 de janeiro de 1980, Lacan anuncia a dissoluo da Escola Freudiana de Paris,

    fundada em 1964, e, em 21 de fevereiro anuncia a fundao da Causa Freudiana

    ("La Cause freudienne). Em julho do mesmo ano visita Caracas na Venezuela, onde

    declara estar ali para lanar a sua causa freudiana, dizendo ao auditrio que todos

    poderiam ser lacanianos, mas que ele freudiano.

  • 22

    Depois de vitimado por distrbios neurolgicos que lhe causaram uma afasia parcial,

    morre Lacan, em 9 de setembro de 1981, na Clnica Hartmann de Neuilly, depois de

    uma cirurgia para a ablao de um tumor maligno.

    Jacques Lacan produziu cerca de 50 artigos, quase todos oriundos de conferncias:

    34 deles, os mais importantes, foram reunidos pelo editor Franois Wahl em 1966,

    nos crits.

    Jacques-Alain Miller em 1984 edita em um livro um grande artigo de Lacan,

    publicado em 1938, Les complexes familiaux, outro, Ltourdit, foi publicado na

    revista Scilicet, fundada por Lacan.

    Lacan concedeu duas entrevistas, uma a Robert Georgin para a Rdio Televiso

    Belga (Radiophonie), outra a Jacques-Alain Miller, para um filme do servio de

    pesquisas da ORTF, realizado por Benoit Jacquot (Tlvision).

    Jacques Lacan escreveu apenas um livro, sua tese de medicina de 1932 publicada

    sob o ttulo Da psicose paranica em suas relaes com a personalidade, na qual

    relatou o caso de Marguerite Anzieu.

    H muitos artigos, assim como suas numerosas intervenes em colquios ou na

    cole Freudienne de Paris (EFP) dispersos em vrias revistas. Sua

    correspondncia, um total de 247 cartas, foi recenseada por Elisabeth Roudinesco

    em 1993. A obra de Lacan est traduzida em 16 lnguas.

    Para alm do retorno a Freud, que trouxe maior preciso no trabalho do analista, o

    pensamento de Jacques Lacan introduziu a percepo de um novo sujeito filosfico

    que Freud j anunciara. Abriu-se assim uma nova possibilidade de pensar a histria

    humana.

  • 23

    2 O SUJEITO EM LACAN

    fato que a letra mata, dizem, enquanto o esprito vivifica. No discordamos disso, j tendo tido que saudar aqui, em algum ponto, uma nobre vtima do erro de procurar na letra, mas tambm indagamos como, sem a letra o esprito viveria. No momento, as pretenses do esprito continuam irredutveis, se a letra no houvesse comprovado produzir todos os efeitos de verdade no homem, sem que o esprito tenha que se intrometer minimamente nisso. Essa revelao foi a Freud que ela se fez, e ele deu a sua descoberta o nome de inconsciente. 12

    Impossvel falar de Jacques Lacan sem falar de Sigmund Freud. O criador da

    psicanlise talvez seja o criador de uma das mais poderosas teorias a respeito do

    funcionamento do psiquismo humano. Em algumas poucas dcadas a teoria

    psicanaltica influenciou decisivamente a imagem do homem, seus costumes e

    produtos culturais.

    A partir de ento pode-se contar com um novo olhar sobre nossa condio, mesmo

    os fatos at ento considerados sem qualquer relevncia, como o sonho, torna-se a

    via rgia para o inconsciente, assim chamado por Freud quando de seu estudo dos

    sonhos, ao perceber o trabalho do sonho com contedos relacionados vida de

    viglia dos seus pacientes.

    O conceito de inconsciente sofreu grandes modificaes, mesmo em Freud, que

    dele trata pela primeira vez em Estudos sobre a Histeria (1895), o termo

    inconsciente era utilizado apenas em sentido adjetivo ou adverbial, enquanto uma

    qualidade psquica. Nesse passo o consciente-substantivo quando assim utilizado,

    aparece apenas como uma inteno de constituir uma terminologia prpria

    psicanlise. a partir da Traumdeutung, que conhecida em nosso pas como A

    12 LACAN, Jacques. A instncia da letra no inconsciente in Escritos Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998, p. 512-513.

  • 24

    interpretao dos Sonhos, que Freud efetivamente ingressa na seara daquilo que

    pode-se chamar o inconsciente freudiano.

    O inconsciente de Freud no de modo algum o inconsciente romntico da criao imaginante. No o lugar das divindades da noite. Sem dvida que isto no deixa totalmente de ter relao com o lugar para onde se volta o olhar de Freud- mas o fato de Jung, rel dos termos do inconsciente romntico, ter sido repudiado por Freud, nos indica bastante que a psicanlise introduz outra coisa. 13

    O encaminhamento de Freud na construo do conceito de inconsciente, que

    concerne por certo a um sujeito, parte cartesianamente do sujeito da certeza, no da

    verdade. Logo, afasta-se desse caminho (cartesiano), quando ao estudar os sonhos

    no se funda na certeza do sujeito, ele se prende no campo do inconsciente, Isso

    (a14) pensa antes de entrar na certeza.

    Para Descartes, no cogito inicial- os cartesianos conviro comigo neste ponto, mas eu adianto discusso- o que visa o eu penso no que ele bscula para eu sou, um real mas o verdadeiro fica de tal modo fora que preciso que Descartes em seguida se assegure, de que? seno de um Outro que no seja enganador e que, por cima de tudo, possa garantir, s por sua existncia as bases da verdade, possa lhe garantir que h em sua prpria razo objetiva os fundamentos necessrios para que o real de que ele vem de se assegurar possa encontrar dimenso de verdade. 15

    De fato, Descartes em seu Princpios de Filosofia (1644) quando define idia clara e

    distinta, afirma que Deus no a causa de nossos erros, uma vez que ele muito

    verdadeiro e fonte de toda luz, de maneira que no possvel que nos engane, isto

    , que seja diretamente a causa dos erros a que nos encontramos submetidos e

    experimentamos em ns prprios.

    Freud inverteu o cogito cartesiano ao descentrar o sujeito de si mesmo e afirmar que

    tambm as instncias inconscientes so atuantes e presentes mesmo na vida de 13 LACAN, Jacques O Seminrio Livro 11 Os quatro conceitos fundamentais da psicanlise Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979. p. 29 14 a em francs, pronome demonstrativo, significa isso, traduo da palavra Id, com o mesmo significado em latim, utilizada originalmente, na Psicanlise, por Freud, quando desenvolveu a tpica do Id, Ego e Superego, instncias psquicas, e no lugares, como na primeira tpica (Inconscientes, Pr-Consciente e Conscientes). 15 Idem p. 39.

  • 25

    viglia. O famoso penso, logo existo torna-se sou onde no penso e penso onde

    no sou, promovendo a implicao do sujeito mesmo naquilo que, at ento, estaria

    fora do chamado pensamento consciente. O inconsciente pensa, e quem pensa

    o seu sujeito.

    Lacan nos diz que Freud, ao inverter o cogito cartesiano, e afirmar Wo es war, soll

    Ich werden16, dirige-se a um sujeito l onde estava desde sempre, o sonho.

    a partir do sonho que se toca a rede dos significantes.

    O que nos interessa o tecido que engloba essas mensagens, a rede na qual, eventualmente algo se deixa pegar. Talvez a voz dos deuses se faa ouvir, mas h muito que, a seu respeito, nossas orelhas voltaram ao seu estado original todo mundo sabe que elas no so de modo algum feitas para ouvir. 17

    Aquilo que aqui referido como sujeito lacaniano decorre diretamente das

    formulaes de Lacan a propsito do conceito de Inconsciente. a forma pela qual

    foi trabalhada a idia de um inconsciente estruturado como uma linguagem, que

    descentraliza esse sujeito de si mesmo, que demonstra que o eu (Je) um vazio,

    um efeito radical dessa inaugurao.

    Esse sujeito no corresponde ao maltratado vocbulo: ego, no ele o que

    comanda por meio de uma funo de sntese, mas um sujeito fundamentalmente

    submetido a uma estrutura e que s tem valor como uma varivel, desde a cadeia

    significante que o comanda, tornando conceito fundamental no o ego, mas o

    inconsciente.

    Desde os primeiros escritos Lacan trata do termo Sujeito, sendo inicialmente

    equivalente a ser humano, para chegar at a noo de um sujeito definido por um

    ato de afirmao. O sujeito falado. 16 A traduo dessa frase de Freud, ao longo dos anos, vem sendo objeto de estudos e discusses. H a seu respeito uma pluralidade de tradues, talvez por isso ela esteja aqui no original alemo. A traduo mais recorrente em Lacan : onde Isso era, eu devo advir, em francs: L o ctait, peut-on dire, l o stait, voudrions-nous faire quon entendit, cest mon devoir que je vienne tre. Lacan, dentre outras formas de explorar essa frase, aponta a semelhana entre o termo Es em alemo e o som da letra S em francs, para mostr-la como a designao de um topos, S de sujeito, sujeito do inconsciente. 17 Idem e ibidem p. 47.

  • 26

    A este Sujeito, entendido como o que se define por um ato de afirmao, Lacan o diferencia do Eu, entendido como a sensao de um corpo unificado. Lacan no Seminrio III, (pg.23) diz: Aristteles observava que no convm dizer que o homem pensa, mas que ele pensa com sua alma. Da mesma maneira, eu digo que o Sujeito se fala com o seu Eu. Em diferena do Eu, que para Lacan construdo desde a imagem do outro, o Sujeito decorre do Outro, (com maiscula) que referncia linguagem enquanto efeito da ordem simblica. Por isso o Sujeito conseqncia do significante, e est regido pelas leis do simblico. Para Lacan, portanto, a causa do Sujeito a estrutura do significante. Para Lacan o Sujeito no uma sensao consciente, uma iluso produzida pelo Eu, seno que inconsciente, e por isso no o agente da fala, suporte da estrutura, mas descentrado, acfalo, dividido, evanescente. O Sujeito na psicanlise explicitamente diferente da conscincia, portanto um Sujeito no fenomenolgico, no uma categoria normativa, ele uma categoria clnica, e no remete a uma totalidade. 18

    So inmeras as conseqncias dessa aproximao na prtica analtica e na

    utilizao desses conceitos em outras reas do conhecimento, notadamente, nesse

    trabalho em que se se tem o sujeito como produzido no interior de um discurso, seja

    do outro ou do direito.

    A afirmao de que h um eu, que em princpio, o ser humano identifica como

    sendo ele mesmo, que essa estrutura no a que comanda as aes dos homens,

    abre-se a possibilidade de pensar esse sujeito, no na clnica, mas na filosofia, na

    teoria do conhecimento.

    Quando Lacan busca definir esse conceito a partir de novos recursos, notadamente

    da Lingstica e da Semiologia, pode-se encontrar os elementos inaugurais dessa

    abordagem. Em Sausurre j possvel encontrar indicaes desse inconsciente,

    desde uma leitura lacaniana, engendrado no discurso do Outro que propicia o sujeito

    (da psicanlise) falhado para se constituir.

    Pelo funcionamento das faculdades receptiva e coordenativa, nos indivduos falantes, que se formam as marcas que chegam a

    18 SOUZA LEITE, Marcio Peter. Psicanlise e Neurocincia in www.estadosgerais.org acessado em 15 de janeiro de 2007.

  • 27

    serem sensivelmente as mesmas em todos. De que maneira se deve representar esse produto social para que a lngua aparea perfeitamente desembaraada do restante? Se pudssemos abarcar a totalidade das imagens verbais armazenadas em todos os indivduos, atingiramos o liame social que constitui a lngua. Trata-se de um tesouro depositado pela prtica da fala em todos os indivduos pertencentes mesma comunidade, um sistema gramatical que existe virtualmente em cada crebro ou, mais exatamente, nos crebros dum conjunto de indivduos, pois a lngua no est completa em nenhum, e s na massa ela existe de modo completo. (grifamos) 19

    Para melhor compreender o uso dessa recurso em psicanlise, h que se ter em

    mente que importa aqui a estrutura de linguagem, as cadeias significantes. A massa

    referida por Saussure a prpria estrutura (formal) de linguagem.

    A alteridade presente na construo do conceito de inconsciente encetado por

    Lacan foi por ele construda na abordagem da obra de Freud sob as luzes lanadas

    pela lingstica e tambm pelos trabalhos de Claude Lvi-Strauss. Lacan, j no

    Discurso de Roma, ao indicar o precioso guia da primeira e seu uso pioneiro pelo

    segundo, anuncia esse caminho.

    A lingstica pode servir-nos de guia nesse ponto, j que esse o papel que ela desempenha na vanguarda da antropologia contempornea, e no poderamos ficar-lhe indiferentes.... No patente que um Lvi-Strauss, ao sugerir a implicao das estruturas da linguagem e da parte das leis sociais que rege a aliana e o parentesco, j vai conquistando o terreno mesmo em que Freud assenta o inconsciente? 20

    Em termos, do desenvolvimento humano a afirmao dessa constituio do sujeito

    na alteridade construda na concepo do estdio do espelho, promovida por

    Lacan a partir do trabalho de Baldwin21. O estudo referido demonstra que a partir

    dos seis meses de idade o beb humano, colocado diante de um espelho, ainda

    sem controle motor da postura ereta ou auxiliado por um adulto ou por uma andador,

    19 SAUSSURE, Ferdinand de in Curso De Lingstica Geral Trad. Antnio Chelini, Jos Paulo Paes e Izidro Blikstein, So Paulo. Editora Cultrix, 22 ed. - 2000. 20 LACAN, Jacques Funo e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanlise, in Escritos Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998 p.286 21 BALDWIN, A. L. Teorias do Desenvolvimento So Paulo: Pioneira 1973, obra originalmente publicada em 1967 em New York por John Wiley & Sons.

  • 28

    maravilha-se de sua imagem e tenta reter a sua postura para fixar, ainda por um

    instante a sua imagem l refletida.

    Foi no Congresso Internacional de Psicanlise de 1949, em Zurique, que em sua

    comunicao22, Lacan props o estdio do espelho como um drama, onde

    possvel assistir o percurso do infans (criana que ainda no fala) para resolver a

    insuficincia por meio da antecipao. Essa criana ao final desse perodo torna-se

    prisioneira do engano perpetrado pela identificao especular, que tem como efeito

    promover as fantasias que vo de uma imagem despedaada de um corpo ainda

    neurologicamente incapaz de saber-se, a uma forma ortopdica de sua totalidade.

    Essa experincia de identificao por isso alienante, de modo a produzir uma

    transformao na medida em que a sua forma especular antecipa uma completude

    corprea que ainda no consegue, simbolicamente, experimentar.

    A assuno jubilatria de sua imagem especular por esse ser ainda mergulhado na impotncia motora e na dependncia da amamentao que o filhote do homem nesse estgio de infans parecer-nos- pois manifestar, numa posio exemplar, a matriz simblica em que o [eu] se precipita numa forma primordial, antes de se objetivar na dialtica da identificao com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua funo de sujeito. 23

    A palavra infans rementendo-nos sua acepo de aquele que no fala parece-

    nos paradigmtica nesse contexto de um algum, que em sua imaturidade

    neurolgica apenas pode ver, mas quando puder olhar, no mais o far desde o

    lugar que antes ocupava. Essa ortopedia24 referida no texto lacaniano pode ser

    trabalhada do ponto de vista da vinculao do sujeito humano em relao sua

    condio de sujeito de direito.

    22 O estdio do espelho como formador do eu tal como nos revelada na experincia psicanaltica, in Escritos Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998. 23 Idem p. 97 24 Ortopedia refere-se arte de evitar ou corrigir as deformidades do corpo, que no caso, indica que a viso antecipada do corpo em posio ereta promove uma identificao com essa imagem especular, mesmo que a criana no seja capaz ainda de se manter nessa posio. Em termos psquicos uma antecipao com a qual a criana se identifica e que ser tomada como modelo primordial.

  • 29

    A idia que, em razo dessa incompletude, relacionada ao fato de o homem

    nascer desprovido de condies fsicas para conhecer o mundo - a alteridade

    promove o inconsciente - nosso conhecimento mediado sempre por um outro, um

    adulto cuidador. Por existir um Outro, que para Freud o inconsciente e para Lacan

    o discurso do Outro, pode-se pensar em termos da formao de um sujeito, cuja

    condio de existncia o inconsciente.

    O entendimento de tudo que acima foi afirmado necessita que se busque na

    explicao do Complexo de dipo o fio condutor.

    O conceito Complexo de dipo foi cunhado por Freud em sua obra Trs Ensaios

    sobre a Teoria da Sexualidade25 (1905). Neste trabalho, e nos limites de suas

    consideraes, ser abordado o Complexo de dipo dentro de uma perspectiva de

    mito estruturante do sujeito humano.

    Para construir a teoria do Complexo de dipo, Freud usa a tragdia grega de dipo

    Rei cuja histria contada por Sfocles. Nela o heri das lendas do ciclo tebano,

    dipo tem seu nascimento marcado por uma maldio: o orculo conta a seu pai,

    Laio, que o filho que estava para nascer mataria o pai e se casaria com a prpria

    me.

    Na tentativa de evitar o trgico destino Laio manda abandonar o menino com os ps

    feridos e amarrados nas montanhas prximas a Tebas. Oedipus significa em grego

    ps tortos, ps inchados; bastante freqente a referncia, pelos psicanalistas a

    esse aspecto do nome, que indica o seu destino inexorvel: ps tortos andam por

    caminhos tortos, como e v ao final da tragdia. Para evitar o seu destino dipo

    foge ao seu encontro.

    O empregado encarregado da misso, piedosamente entrega o menino a um casal

    de pastores que o entregam a seu amo, o rei dos corintios, Polbio que o cria como

    filho. Aps acontecimentos que o leva a duvidar de sua origem, o heri procura um

    25 FREUD, Sigmund Edio Standard Brasileira das Obras Psicolgicas Completas de Sigmund Freud vol. VII trad. Jos Octavio de Aguiar Abreu Rio de Janeiro: Imago Editora, s.d.

  • 30

    orculo que lhe declara o seu destino funesto, apavorado dipo vai para Tebas onde

    a maldio se concretiza. a profecia que se auto-realiza, a verdade enunciada

    como futuro atualiza-se, sobredeterminada.

    A compreenso do mito em termos da psicanlise26 inclui que se o leia do ponto de

    vista de um instrumento conceitual que busca explicar a insero do ser humano na

    vida relacional, e no como a verso popular de dio ao pai e amor me. muito

    mais sutil.

    em razo e por meio das diferentes etapas pelas quais um recm-nascido passa

    que ele ir desenvolver o seu modo de ser no mundo, o aspecto dos humanos

    que vulgarmente se chama de personalidade. A primeira inscrio do sujeito feita

    em relao a um sistema simblico que prexiste a ele e que o condiciona desde

    antes de seu nascimento. 27

    O homem ao nascer vive uma experincia de indiferenciao entre ele e o mundo,

    que tem sua origem na incompletude biolgica e na angstia provocada pela

    imerso na realidade, levando-o a negar essa realidade pela fuso absoluta e

    imaginria com sua me ou com quem ocupa a funo materna. 28

    A criana por sua prematurao, no suporta estar separada dos objetos que atendam sua necessidade e ao seu desejo. Ela os instala, alucinatoriamente, em seu mundo interno, e os investe segundo ritmo dessas necessidades e desejos. curioso notar-se aqui que a carncia, seja em funo da necessidade, seja em funo do desejo, vai ser geradora do objeto capaz de preench-la e de aplac-la. No psiquismo primitivo, portanto, regido pelo princpio do prazer, a necessidade ou o desejo aparecem sob a forma dos objetos capazes de satisfaz-los.

    Esse ser, onipotentemente, julga-se amado e desejado, de forma incondicional e

    perene, e tal sentimento surge em razo no apenas dos cuidados intensivos que 26 Mais frente traremos o entendimento de Michel Foucault, em A verdade e as formas jurdicas, do mito de dipo. 27 VALLEJO e MAGALHES in Lacan: Operadores da Leitura. So Paulo, Editora Perspectiva, 1979. 28 Hlio Pellegrino, dipo e Paixo in Os Sentidos da Paixo, Sergio Cardoso et al. So Paulo: Companhia das Letras,1987.

  • 31

    um beb humano requer, mas tambm, porque ele pode realizar a fantasia materna

    desse amor exclusivo.

    Essa vivncia leva-o a supor a existncia e a posse de um objeto mgico (falo), que

    o torna especial e, que causa dessa ateno devotada e inesgotvel; a partir

    desse momento tem-se a primeira etapa da vivncia edpica, quando ele passa a

    perceber, ainda que de forma rudimentar, a existncia de alguma coisa, de algo a

    mais alm dele prprio. A sua relao com a funo materna passa a ser mediada

    por esse objeto mgico.

    A me ou funo materna, no inesgotvel, em algum momento as necessidades

    do beb deixaro de ser atendidas de pronto, mesmo porque a me ou a cuidadora

    tem outros interesses alm da criana. Aqui reside a segunda etapa e o momento

    crucial do processo edpico, a castrao, quando surge a primeira falta, e o

    conseqente sentimento de perda do objeto mgico que, poder e atributo, mediava

    as relaes da criana com o mundo.

    A castrao faz parte do grupo de conceitos basilares na teoria psicanaltica objeto

    de diversas interpretaes tericas por diferentes correntes de pensamento dentro

    do prprio movimento psicanaltico.

    Aqui, castrao, refere-se ruptura de uma relao exclusiva da criana com sua

    me, e, como j afirmado um momento crucial no nascimento do sujeito. a

    primeira experincia de falta, que proporciona um rudimento de pensamento

    abstrato.

    Essa experincia levar o sujeito a perceber a existncia de um proibidor da relao

    exclusiva com a me, o pai ou funo paterna, com quem ele supe estar aquele

    objeto mgico, o falo, capaz de dar conta de todas as suas demandas. A funo

    paterna, portanto, a de trazer a instncia da lei, regradora de sua ao, agora com

    inteno e estratgia, sua possibilidade de ingresso na cultura.

  • 32

    Para a Psicanlise a experincia edpica tem a funo inaugural do sujeito humano,

    promove a passagem da existncia biolgica existncia humana. Althusser em

    Freud e Lacan, num perodo particular de seu relacionamento com a psicanlise,

    comenta: Est a, sem dvida, a parte mais original da obra de Lacan: a sua

    descoberta. Essa passagem da existncia (no puro limite) biolgica existncia

    humana (filho de homem). 29

    Althusser segue comentando que Lacan demonstra que tal passagem se opera sob

    a Lei da Ordem, que ele chama de Lei da Cultura, e que tal fenmeno se confunde

    em sua essncia formal com a ordem da linguagem. Essa passagem, para Althusser

    tem dois grandes momentos:

    1) O momento da relao dual, pr-edipiana, em que a criana, deparando-se apenas com um alter ego, a me, se escande sua vida com sua presena (da!) e com sua ausncia (fort!) vive essa relao dual no modo do fascnio imaginrio do ego, sendo ela prpria este outro, tal outro, qualquer outro, todos os outros da identificao narcsica primria, sem jamais poder tomar, face ao outro ou a si mesmo, a distncia objetivante dio terceiro; 2) o momento do dipo, no qual surge uma estrutura ternria no fundo da estrutura dual, quando o terceiro (pai) se imiscui, como um intruso, na satisfao imaginria do fascnio dual, perturba a sua economia, quebra os seus fascnios, e introduz a criana nisso a que Lacan chama a Ordem Simblica, a linguagem objetivante, que lhe permitir dizer finalmente: eu, tu, ele ou ela, que permitir, pois, ao serzinho situar-se como criana humana num mundo de terceiros adultos.

    O ser humano ao nascer, j encontra um lugar sua espera, pode ser desejado ou

    no, ser depositrio de expectativas diferentes e por vezes contraditrias, desta

    condio no possvel esquivar-se visto que do embate com o seu ser falado ele

    se tornar sujeito. Tudo isso acontece no mbito do discurso do Outro que termina

    por tomar esse sujeito desde sua excentricidade.

    Lacan explica essa estranheza dessa forma: nascemos em um mundo de discurso, um discurso ou linguagem que precede nosso nascimento e que continuar aps nossa morte. Muito antes de uma criana nascer, um lugar j est preparado para ela no universo

    29 ALTHUSSER, Louis. Freud e Lacan Marx e Freud trad. Walter Jos Evangelista Rio de Janeiro: Edies Graal, 4. ed., 2000.

  • 33

    lingstico dos pais: os pais falam da criana que vai nascer, tentam escolher o nome perfeito para ela, preparam-lhe um quarto, e comeam a imaginar como suas vidas sero com uma pessoa a mais no lar.30

    Esse conceito em Lacan basilar, sustenta tudo quanto foi formulado adiante. Essa

    fundao do sujeito numa relao sexual promove a fantasia da cena primria, que

    corresponde percepo de um outro.

    A fantasia sempre se apia no outro, nos outros. Moral da histria: as formaes do inconsciente tm uma ordem de realidade indissocivel da ordem social; digamos simplesmente: o fantasma social e por isso que sempre concerne ao socius.31

    H somente um mito no discurso de Lacan: O complexo de dipo freudiano. Tanto

    para Freud como para Lacan dipo um mito e assim, tenta dar conta de uma

    contradio, por isso Lacan vai mais frente quando demonstra que o complexo de

    dipo no apenas o drama das figuras de pai e me, mas que seus contedos

    podem ter outra significao, que no est atrelado apenas existncia da

    instituio familiar, que transcende as figuras parentais concretas, quando se

    considera a funo materna e funo paterna, que proporcionam a organizao do

    sujeito enquanto sujeito do inconsciente.

    Foi a partir da teoria expressa por Ferdinand de Saussure, compilada32 por seus

    alunos, que inaugura os conceitos de significante e significado, e na fonologia

    estrutural de Roman Jakobson, que Lacan trabalha a idia de um inconsciente

    estruturado como uma linguagem33.

    Essa relao que Lacan encontra entre os conceitos psicanalticos e a lingstica

    indica uma mudana na concepo da linguagem na teoria psicanaltica, qual seja,

    30 FINK, Bruce. O Sujeito Lacaniano entre a linguagem e o gozo. Trad. Maria de Lourdes Sette Cmara. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1998, p. 21 31CABAS, Antonio Godino in Curso e Discurso da Obra de Jacques Lacan, So Paulo, Centauro Editora, 2005, p. 30 e 31. 32 Cours de Linguistique Generale, publicada em 1915. 33 Funo e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanlise, Relatrio ao congresso de Roma realizado no Istituto di Psicologia della Universit di Roma, 1953.

  • 34

    daquela freudiana representacional, para a lacaniana estrutural. Como se em Freud

    a linguagem fosse continente dos afetos e em Lacan o prprio contedo.

    Da a sobredeterminao includa na linguagem pronta que antecipa o sujeito, em

    que os significantes sobredeterminam o encaminhamento das construes

    simblicas humanas. isso uma conseqncia da estratgia que cada sujeito

    estabelece a partir da sua estruturao, ou seja, sempre que ele se encontrar diante

    de uma situao tender a agir dentro do modelo estabelecido anteriormente. Esse

    fenmeno inconsciente, da sua fora.

    Em assim sendo h uma relao de interdependncia fortemente marcada entre a

    realidade do discurso e o Inconsciente, as experincias fundantes da condio

    humana e a estruturao do Inconsciente lacaniano.

    Como j afirmado, o sujeito em Lacan completamente dissociado da idia, algo

    comum, de indivduo, querendo significar mais um assujeitamento a um discurso que

    uma inteireza que possa supor uma posio solipsista.

    esse assujeitamento possvel no deslizamento do significante que proporciona aos

    humanos ocuparem diferentes lugares em diferentes momentos. Como se no

    houvesse um sujeito indivduo mas diferentes lugares que esse sujeito pode

    ocupar, nesse sentido talvez, o idealismo da forma comum de indivduo solapado

    pela relao com o concreto da histria do homem.

    Para trabalhar a questo do sujeito Lacan faz uso de um modelo topolgico,

    emprestado da matemtica, a banda de Moebius34, que serve como metfora para o

    seu entendimento. Na topologia no h o regramento da geometria euclidiana, que

    exige o regime de quantidades, aqui abordam-se os objetos considerando a sua

    relao de aproximao relativa uns em relao aos outros.

    34 A banda de Moebius foi descoberta de forma independente pelos matemticos alemes August Ferdinand Moebius e Johann Benedict Listing em 1858.

  • 35

    A banda de Moebius uma representao de uma seco de um plano projetivo em

    que se tem uma superfcie uniltera, que percorrida sem sair-se da superfcie

    apresenta apenas uma face. Ela pode ser representada por meio de uma meia

    toro em uma fita retangular.

    A banda de Moebius opera uma subverso em nosso espao comum de

    representao. O direito e o avesso dessa fita passam a se achar em continuidade.

    Esse fenmeno, na teoria de Lacan, se refere fala e ao sujeito.

    Nessa topologia o sujeito considerado apenas em relao sua posio enquanto

    significante - que o que representa o sujeito para outro significante. Um significante

    significa algo em um dado momento, em um dado contexto, mas seu significado no

    se inscreve numa simultaneidade.

    Por meio dessa metfora da unilateralidade da superfcie, Lacan aponta que as

    formaes do inconsciente vm na fala, se produzem no discurso sem atravessar

    nenhuma borda.

    Do mesmo modo, e secundariamente o direito consolida uma realidade da qual o

    sujeito no se livra, ela pode ser percorrida pelo sujeito, e mesmo em duas voltas na

    estrutura, ele voltar sempre ao ponto de partida, ele pode estar em diferentes

    lugares, mas a estrutura em que se encontra permanece a mesma e sua condio

    de sujeito est ligada sua posio na estrutura e no a uma caracterstica

    intrnseca sua.

    Importante nessas consideraes assinalar que a possibilidade de se trabalhar o

    sujeito sem se consider-lo como um ser em si, mas enquanto uma estrutura em

  • 36

    relao outra. Essas estruturas sujeito da psicanlise e sujeito de direito so

    anlogas, porm no se confundem.

    De modo semelhante o marxismo capta o sujeito tambm como estrutura, na medida

    em que o produto do seu trabalho se torna portador de valor, no por ele, mas para

    o proprietrio da mercadoria e, no limite, pela prpria mercadoria. O detentor dos

    meios de produo ao alienar a fora de trabalho do homem para produzir

    mercadorias torna o produto do trabalho portador de um valor. Esse homem que

    vendeu sua fora de trabalho passa a existir dentro de uma outra relao, na qual

    sua existncia formal est ancorada em sua posio em relao ao seu trabalho

    alienado ao capital, detentor dos meios de produo, e no h outra possibilidade,

    trata-se sempre de um mesmo plano projetivo, onde no importam medidas, mas

    sim a posio do sujeito, enquanto estrutura, em relao outra estrutura.

    O direito faz o mesmo movimento ao inserir o homem na posio de sujeito de

    direito, tendo o discurso do direito como paradigma, a forma jurdica como estrutura

    de linguagem desse paradigma em que as solues apenas so possveis dentro

    de uma estrutura. Quando o capitalismo opera desta forma, j fez um movimento

    conexo, pelo direito, para afirmar tambm como sujeito de direito aquele que

    proprietrio, que detm bens, que produz. No entanto, ao final de contas, as

    estruturas do capital so maiores do que os sujeitos, sejam trabalhadores ou os

    capitalistas.

  • 37

    3 - O SUJEITO DE DIREITO: ENTRE O SUJEITO DO JURISTA E O SUJEITO DA PSICANLISE.

    3.1 O sujeito do jurista.

    A doutrina tradicional do direito, quando se debrua sobre o tema do sujeito de

    direito raramente questiona a origem dessa categoria de pensamento desde fora do

    fenmeno jurdico, como se existisse desde sempre, raramente examinando as

    conseqncias dessa abordagem na relao do homem com o direito.

    Pontes de Miranda35 discute o conceito de sujeito de direito demonstrando que esse

    s existe a partir do conceito de pessoa - como aquele que apenas tem a

    possibilidade de ser sujeito de direito. Ou seja, essa pessoa, segundo o autor, ser

    sujeito de direito se estiver na posio de titular de direito. Afirma que ser pessoa

    fato jurdico, cujo suporte ftico nascer.

    No mesmo sentido Miguel Reale afirma que todo sujeito de direito tambm uma

    pessoa explicando ser ela a dimenso atributiva do ser humano, dimenso que se

    circunscreve quele que se afirma e se correlaciona no seio da convivncia atravs

    de laos tico-jurdicos 36.

    Esse ponto de vista leva em conta que houve, como a prpria expresso nos indica,

    um recorte especial da realidade, o do Direito com suas peculiaridades, que

    classifica, segundo critrios prprios, esse fato como jurdico e a ele atribui uma

    significao.

    35 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Campinas: Bookseller, 2000. 36 REALE, Miguel Lies Preliminares de Direito. So Paulo: Saraiva, 1996 p. 227.

  • 38

    Para explicar como essa pessoa pode vir a se tornar sujeito de direito lana mo do

    conceito de personalidade possibilidade de se encaixar em suportes fticos, que,

    pela incidncia de regras jurdicas se tornem fatos jurdicos; portanto a possibilidade

    de ser sujeito de direito, para ento afirmar: o ser sujeito de direito entrar no

    suporte ftico e viver nas relaes jurdicas, como um dos termos delas 37.

    Ari Marcelo Solon aponta que possvel perceber na obra de Pontes de Miranda, o

    fato jurdico como um fato da mesma natureza dos fatos naturais, uma vez que se

    estude o direito como processo social de adaptao.

    A regra jurdica , existe, incide. A ela se predica eficcia, no validade, maneira dos escandinavos. Faz entrar no mundo jurdico o suporte ftico. Dirige-se s pessoas, fixando-lhe posies em relaes juridicas... Quanto ao suporte ftico, a regra jurdica tem de nele incidir de modo a torn-lo o fato jurdico e irradiar entre as pessoas de uma relao jurdica, direitos, deveres, obrigaes, aes.38

    Miguel Reale, ao introduzir o conceito de personalidade no plano jurdico, conceitua:

    personalidade a capacidade genrica de ser sujeito de direito, que expresso de

    sua autonomia moral 39. As normas so a expresso de regularidades encontrveis nos fenmenos, mas tais

    regularidades s se tornam jurdicas porque o direito a elas atribuiu um sentido, o

    ser humano ao se tornar sujeito de direito alcanado por essa significao que

    produz justamente essa abstrao de uma personalidade que ingressa naquele

    suporte ftico. Isso fica claro quando Pontes de Miranda afirma:

    O conceito de pessoa surgiu no sistema lgico acima do sistema jurdico que contemplava a esse: de l se viu que A podia ser sujeito de direito; e viu-se isso, porque, no sistema jurdico, de algum fato jurdico emanou efeito, direito ou pretenso, ou direito e pretenso, ou direito, pretenso e ao, em que A apareceu como sujeito de direito, isto , termo ativo de relao jurdica. Poder-seia conceber o sujeito de deveres, nem ser sujeito de direito, e esse sujeito seria pessoa. Posteriormente, os sistemas jurdicos importaram os

    37 MIRANDA, Pontes de. Op. Cit. p. 208 38 SOLON, Ari Marcelo. Dever Jurdico e Teoria Realista do Direito Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2000 p. 129. 39 REALE, Miguel. Op. Cit. p. 208

  • 39

    enunciados do sistema que os contemplava para fazer os enunciados seus; e esses enunciados, por serem acima de seus enunciados sobre efeitos, passaram a ser tratados na Parte Geral. Primeiro havia de se cogitar do possvel, para se poder descer ao concretamente realizado, ao acontecido. 40

    O conceito de sujeito de direito fundamental para o entendimento do modo como a

    forma jurdica, instrumento de controle das relaes, indica inicialmente que os seres

    humanos seriam os portadores dessa condio, para depois, espraiar-se para alm

    do humano e alcanar entes que foram denominados pessoas jurdicas.

    Essa concesso dada a alguns, que necessariamente devem ter alguns atributos,

    coloca-os numa posio que afinal serve apenas perpetuao de uma posio em

    que menos importa a condio de homem e mais a insero desse homem numa

    condio inalienvel.

    Esse movimento revelado por Mascaro por meio do desenvolvimento das relaes

    sociais explicitadas na crescente complexidade das relaes econmicas da

    humanidade: O sujeito de direito considerado, assim, desde o comeo do capitalismo, como aquele que pode portar direitos e deveres, isto , aquele que proprietrio, que detm bens, faz circular mercadorias e servios, estabelece contratos, vincula-se sua declarao de vontade41

    importante frisar que essa vinculao declarao de vontade termina por atingir

    a todos, na medida em que quem determina a vinculao no necessariamente o

    sujeito detentor da vontade, mas sim quem a legitima. Assim toda vontade particular

    contm em si uma aparncia de universal.

    O mesmo ponto de vista em relao a esse aspecto do surgimento do sujeito de

    direito -nos mostrado por Pachukanis, quando comenta esse vnculo entre os

    homens e a apreenso e re-significao, num estgio mais sofisticado do modo de

    40 MIRANDA, Pontes de. Idem p. 208 41 MASCARO, Alysson Leandro Introduo ao Estudo do Direito. So Paulo: Quartier Latin, 2007 p.113.

  • 40

    produo capitalista, em que o vnculo social dos homens estabelecido no processo

    de produo concretiza-se nos produtos do trabalho a que se atribui uma legalidade

    intrnseca, exigindo com isso uma certa relao entre os homens que afinal presume

    que sua vontade habita nestas mesmas coisas, no produto da venda de sua fora

    de trabalho que no lhe pertence.

    porque, ao mesmo tempo em que o produto do trabalho reveste as propriedades da mercadoria e se torna portador de valor, o homem se torna sujeito jurdico e portador de direitos. Ao mesmo tempo, o caminho social se desloca, por uma parte, em uma totalidade de relaes reificadas que nascem espontaneamente, ou seja, de relaes onde os homens no tm outra significao que aquela de coisas, e, por outro lado, em uma totalidade de relaes onde o homem no determinado, que na medida em que se ope a uma coisa, ou seja, definido como sujeito. Tal precisamente a relao jurdica. Tais so as duas formas fundamentais que se distinguem uma da outra em princpio, mas que, ao mesmo tempo, se condicionam mutuamente e so ligadas estreitamente uma outra. O liame social enraizado na produo se apresenta assim simultaneamente sob duas formas absurdas, por um lado, como valor mercantil, pelo outro, como capacidade do homem de ser sujeito de direito42. (grifamos)

    O desenvolvimento das relaes capitalistas, mesmo em sua expresso mais atual,

    produziu, pela forma jurdica, enquanto modelo de organizao das relaes, um

    descompasso cada vez maior entre os sujeitos concretos e o direito, sendo a

    condio de sujeito de direito uma forma de alienao da vontade aos interesses

    polticos e econmicos dos detentores do poder.

    O direito no surgiu do nada. Muitos se debruaram sobre essa questo da origem

    do direito? Muitos deles chegaram, afinal, concluso de que o direito tem origem

    divina ou quntica, talvez.

    Os antigos e os medievais, de diferentes formas, tinham uma representao de

    mundo caracterizada pela imerso numa ordem metafsica, a realidade percebida

    como uma totalidade ordenada sem que os elementos que a compem tivessem

    espao para sua afirmao como tais. 42 PACHUKANIS, Evgeni A Teoria Geral do Direito e o Marxismo Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 1989 p. 102-103

  • 41

    Os antigos eram parte do cosmos, o universal pode ser conceitualmente distinguido

    do indivduo concreto, mas no ontologicamente independente. Isso se reproduzia

    na relao do cidado com a polis grega. J a cidade medieval formou uma elite

    dominante, que por meio de uma poltica fiscal injusta forma uma classe urbana

    empobrecida. Jacques Le Goff assim se manifesta a propsito da cidade e do

    cidado na Europa Medieval:

    Viu-se formar-se uma elite dominante que institui a injustia, sobretudo no domnio fiscal, e que esmaga uma massa, sem cessar crescente, de pobres. a Europa da misria urbana. Mas verdade que o modelo burgus no ideal igualitrio e visa em todo caso, a uma hierarquia horizontal e no vertical, como na sociedade rural e senhorial. Nesse mundo, s o mito da Tvola Redonda fez sonhar num grupo de iguais em torno de uma mesa que abole as hierarquias, com a exceo de um chefe, o rei Arthur. Mas um sonho de igualdade aristocrtica. A igualdade burguesa um princpio violado na realidade, mas o fundamento terico de uma igualdade que leva ao nico modelo medieval igualitrio, ou seja, a comunidade monstica onde cada monge, no captulo, tem uma voz igual, materializada por uma fava branca ou preta para o sim ou para o no. 43

    No mesmo sentido Pachukanis, ao tratar do direito feudal conta que uma certa

    qualidade (jurdica) atribuda a parte de uma terra ou a parte da populao, de

    modo que o direito atribui uma igualdade formal a certos indivduos como sujeitos de

    direitos, excluindo do direito um carter abstrato e universal.

    "a forma habitual do estabelecimento de uma regra ou de uma norma geral o reconhecimento de qualidades jurdicas a um domnio territorial determinado ou a uma parte da populao 44.

    O problema do sujeito de direito encaminha a resposta para a considerao do efeito

    de uma forma de organizao. Para o que hoje se entende por direito, tal forma de

    organizao o capitalismo. Organizao do modus operandi humano, da

    43 LE GOFF, Jacques As razes medievais da Europa trad. de Jaime A. Clasen Petrpolis: Editora Vozes, 2007 p. 159. 44 PACHUKANIS, Evgeni A Teoria Geral do Direito e o Marxismo Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 1989 p.109

  • 42

    linguagem, desse diferencial sofisticado que a espcie humana apresenta em

    relao s demais espcies que se conhece.

    desse sujeito recortado pela viso da psicanlise e alcanado pelo produto da

    forma jurdica que, por meio do estudo dos conceitos de estrutura, forma e direito

    que se trata.

    Aquele tomado a partir do pensamento de Jacques Lacan, um sujeito que nasce da

    clnica psicanaltica, desborda seus limites como na revoluo coperniciana

    promovida por Freud, para o exerccio mesmo de ser aquilo que se tornou, esse

    sujeito da fala, que mudou a perspectiva da relao do homem com si mesmo.

    desse sujeito que se trata, de sua relao com o discurso do direito que o toma

    como seu sujeito sujeito de direito.

    Em continuao a esse raciocnio acrescenta-se a importante contribuio de

    Zarka45, que nos indica um caminho para a compreenso da crise atual do direito

    colocando a questo da subjetividade, freqentemente abordada em funo do eixo

    cartesiano, para alm dessa aproximao, ao considerar a subjetivao do direito o

    caminho para a inveno do sujeito de direito.

    La synthse donne dentre de jeu la clef de lautre voie de la subjectivit par lelucidation la fois philosofique et historique de linvention de la notion dhomme comme sujet de droit. Je tche de montrer que le concept de sujet de droit, que lon considre parfois comme une consquence indirecte de la metaphisique cartsienne hors de son champ dexercice, est en fait le produit de une tradition toute diferente qui part de la subjectivisation du droit naturel, pens comme qualit morale, pour arriv, travers une interrogation sur le status de ltre auquel se rapporte ce droit, linvention de la notion de subjectum juris, sujet de droit, dans son sens proprement moderne.46

    45 Yves Charles Zarka, membro da Escola Doutoral da Universidade de Paris I Panthon Sorbonne, professor de filosofia poltica moderna e contempornea. 46 ZARKA, Ives Charles LAutre Voie de la Subjectivit Six tudes sur le sujet et le droit natural au XVIIe sicle Paris: Beauchesne diteur, 2000 P. VII.

  • 43

    O autor, na obra citada, descola a idia de sujeito de direito da idia de dominao47,

    que aqui afirmada, em um contexto especial, como um efeito indesejvel que

    escapa na relao entre o ser humano e o direito, portanto, no excluda.

    O contexto referido aquele do exerccio dessa condio (de sujeito de direito) em

    que a forma jurdica, explicitada na lei, tem como efeito a insero dos sujeitos

    humanos numa outra relao a partir de uma situao ftica que codifica as

    condies de ingresso em sua esfera de influncia. Tais condies de ingresso so

    manipuladas no exerccio cotidiano do direito por quem as determina, conforme

    acima afirmado.

    Um instrumento para escapar desta condio, por uma nova perspectiva, encontra-

    se na possibilidade de uma reviravolta na figura do sujeito de direito, como o sujeito

    de um direito, o de resistncia, entendido como um direito subjetivo de resistir ao

    poder poltico e econmico e transform-lo.

    3.2 O sujeito da psicanlise

    Para o senso comum o pensamento constri a realidade, mas aqui no se trata

    desse senso, at aqui foi exposta a idia inversa: a realidade constri o pensamento.

    Psicanaliticamente esse sujeito pensante, assim se torna no embate do biolgico

    puro com o mundo que, ao nascer, o envolve. Toda a relao que se construir

    ento vir dessa realidade e todo o pensamento sobre essa realidade ter como

    medida o prprio sujeito nela forjado criando uma iluso de subjetividade. Esse

    sujeito o produto de um conjunto de determinaes objetivas. A realidade social de

    mltiplas determinaes surge assim como produtora desse efeito de

    individualizao.

    Robinson Cruso, personagem de Daniel Defoe, julgava-se s na ilha; ao ver

    aquelas pegadas, l aqueles sinais, aquelas marcas deixadas por outro: o signo em

    47 Idem p. 30 La ide du sujet de droit nenveloppe em aucune faon les obscurs horizons de dcadence, doubli et de domination ou certains on voulu lenfermer.

  • 44

    si, so lidas por ele de acordo com seus prprios significantes. diante das pegadas

    na areia que adivinha Sexta-feira, elas so marcas de uma ausncia, isto , de uma

    presena de ausncia (e ausncia de uma presena) mediante a qual o sujeito se

    identifica como sendo distinto daquele que j no est ali.

    Esta experincia comparvel com o efeito daquela da castrao, quando o infans

    s percebe a me diante da ausncia de seus sinais de presena.

    Logo o personagem trata de emprestar a esse outro nome e lugar, na estrutura

    social que forma a partir do possvel fim da situao de solido em que se encontra,

    mas sempre tendo como referencial a sua linguagem (Sexta-feira ingressou em outro mundo sem sequer se dar conta disso).

    Esse referencial (sobredeterminado) apontado por Marx, no sem certa ironia, ao

    comentar a chegada de Robinson em sua ilha, que, diante da imperiosa

    necessidade de buscar meios de sobrevivncia d-se pressa em fazer uso dos

    salvos do naufrgio, quais sejam: o relgio, o livro razo, tinta e caneta para tomar o

    registro das operaes requeridas para a sua produo e do tempo nelas

    despendido.48

    Nesse sentido, em termos psicanalticos, determinao simblica, que constituinte

    do prprio sujeito, propicia a sobredeterminao, fenmeno que s concebvel na

    estrutura da linguagem, tal sucede porque esse fenmeno inconsciente e est

    colabado ao ingresso na cultura por meio da linguagem. 49

    Da mesma maneira, o sujeito, se parece servo da linguagem, ele o mais ainda de um discurso em cujo movimento universal seu lugar j est inscrito desde seu nascimento, ainda que seja apenas sob a forma de seu nome prprio.

    48 MARX, Karl O Capital (Crtica da Economia Poltica) Livro I: O Processo de Produo Capitalista vol. I trad. Reginaldo SantAnna Rio de Janeiro: Editora Civilizao Brasileira, 1971 p. 85. 49 A Instncia da Letra no Inconsciente ou a Razo desde Freud, In LACAN, Jacques. Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998.

  • 45

    Ela, a linguagem, a articulao das cadeias significantes ao se decifrar o sintoma,

    isto , ao fazer deslizar (deslocamento) e desdobrar (condensao) os significantes

    recalcados que a ele esto ligados.

    A alienao do sujeito ao significante determinada pela natureza do sujeito

    humano e pela sua vivncia edpica que constri uma histria peculiar e

    determinante do modo como ele ir se relacionar com os significantes frente aos

    quais estar.

    Isso justamente o que acontece no automatismo de repetio. O que Freud nos ensina, no texto que comentamos, que o sujeito segue o veio do simblico, mas isso cuja ilustrao vocs tm aqui ainda mais impressionante: no apenas o sujeito, mas os sujeitos, tomados em suas intersubjetividades, que se alinham na fila em outras palavras, nossos avestruzes, aos quais eis-nos de volta, e que, mais dceis que carneiros, modelam seu prprio ser segundo o momento da cadeia significante que os est percorrendo. 50

    O Seminrio sobre A carta roubada traz-nos uma teoria da lgica do significante

    que pode nos conduzir ao entendimento da idia de que o que posiciona o sujeito

    o significante. Nesse seminrio Lacan trabalha com a palavra lettre que em francs

    tanto tem a acepo de carta com a de letra, de acordo com o contexto em que

    aparece.

    Lacan tambm trata, num outro contexto da Carta roubada no Seminrio II,

    demonstrando que a o que est implicado o jogo da significao.51

    Resumidamente, o conto de Poe ali referido, conta a histria de uma carta, escrita

    para a Rainha, possivelmente comprometedora (mas que ningum conhece o seu

    contedo) que concede certos poderes desconhecidos ao seu detentor, para

    diferentes pessoas que a detivessem ela teria um efeito distinto. Em razo de uma

    50 O seminrio sobre A carta roubada, In LACAN, Jacques. Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998, p. 33. O texto comentado o do ttulo do conto escrito por Edgard Alan Poe. 51 LACAN, Jacques O Seminrio Livro II O eu na teoria de Freud e na tcnica da psicanlise, Trad. Marie Christine Lasnik Penot c.c. Antonio Luis Quinet de Andrade, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1985 p. 235-236.

  • 46

    srie de circunstncias, ela acaba nas mos do Primeiro-Ministro e, aps tentativas

    infrutferas de reav-la, a Rainha v-se obrigada a contratar um detetive particular,

    que usando de um ardil, a recupera.

    A carta, aqui uma metfora do significante, e o leitor, do sujeito, mostra como a sua

    posio determinada pela posio em que o significante o coloca.

    O significante exprime uma impresso psquica inapagvel; ele tem historicidade,

    cunhado no sujeito, marcado por uma histria para o sujeito. Mais que isso,

    quando se considera que a carta tambm pode ser uma metfora da lei, produto da

    forma jurdica, que determina o sujeito na medida em que o coloca numa outra

    posio.

    Assim, a crise na compreenso do direito, que no consegue alcanar aquele a

    quem se destina, est na incapacidade de definir, afinal, a quem esse destinatrio.

    At porque essa indefinio amplia ao infinito a capacidade do direito, em sua lgica

    interna, de alcanar a tudo e a todos.

    O sujeito evocado pelo direito est no centro de nossa modernidade marcada por

    uma crise profunda de nossa relao com a lei e com o direito como tal.

    A lei ao se dirigir a um sujeito de direito, codifica as condies de ingresso em sua

    esfera de influncia. Caberia uma indagao: qual esse sujeito? Aquele que

    ingressa nesse raio de alcance da lei corresponde ao sujeito humano que a recebe?

    As condies de ingresso no levam em conta o sujeito em si, mas um sujeito que

    se cria nessa esfera mesma de influncia; a posio do sujeito determinada pela

    posio em que o significante o coloca.

    aqui que se insere a idia do sujeito de direito, repetimos: uma estrutura posicional

    que o criou por meio de uma especial organizao das relaes entre os homens e

    seus objetos, que as legitima e d suporte de existncia criando uma forma especial

  • 47

    de vnculo que, acaba por isso, sendo algo que existe a partir da prtica que a

    engendra. A isso aqui se chama Forma Jurdica.

    A forma jurdica, explicitada na lei, implica os sujeitos humanos numa outra relao a

    partir de uma situao ftica, renomeia-os segundo um corte epistemolgico que os

    considera desde outro lugar, na medida em que codifica as condies de ingresso

    em sua esfera de influncia.

    Ela em si que produz esse efeito: modifica a qualidade de um vnculo entre dois

    sujeitos, ou entre o sujeito e o Estado. Ento se tem o direito que legitima a

    dominao por meio de instrumentos prprios de veridio, seu discurso, constri

    verdades, dentre elas o conceito de cidadania.

    Quanto questo da historicidade desse discurso do direito, h uma etapa anterior,

    aquela que funda as estruturas elementares da cultura, que atuam apenas no nvel

    das permutas possveis na linguagem.

    O sujeito humano tem seu lugar inscrito mais que na linguagem, em um discurso,

    que instaura uma tradio que funda as estruturas elementares da cultura. Lacan52

    chega a afirmar a possibilidade de um novo elemento na estrutura natureza +

    cultura: a sociedade, como um termo provocador do segundo elemento e que

    poderia se reduzir linguagem como aquilo que distingue a sociedade humana das

    sociedades naturais.

    A passagem do biolgico para o cultural no um ato voluntrio conseqncia de

    uma condio. O que vem depois, j parte do fenmeno social que, ao

    desenvolver determinado modo de existncia, ingressa numa conformao que

    privilegia a deteno dos meios pelos quais sobrevivem.

    Mas nisso no tomamos partido nem partida, deixando entregues as suas trevas e relaes originais do significante com o trabalho. E

    52 LACAN, Jacques A Instncia da Letra no Inconsciente in Escritos Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998, p.499.

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    nos contentando, para fazer uma piada com a funo geral da prxis na gnese da histria, em destacar que a prpria sociedade teria estabelecido em seu direito poltico, com o privilegiamento dos produtores, a hierarquia causal das relaes de produo nas superestruturas ideolgicas, nem por isso gerou um esper