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Márcia Leitão Pinheiro M ÚSICA, R ELIGIÃO E C OR UMA LEITURA DA PRODUÇÃO DE BLACK MUSIC GOSPEL 1 Em investigação anterior sobre a produção musical, procurei discutir a transformação do meio evangélico brasileiro 2 . Deparei-me com específica prática caracterizada pela apropriação de expressões musicais integrantes do fluxo cultural internacionalizado. As constantes (re)criações entre os evangélicos, que podem ser vislumbradas nas igrejas surgidas nas últimas décadas e também nas formulações de bens religiosos, viabilizam a (re)definição do pertencimento e da participação. No entanto, a tomada e a ressignificação de expressões culturais não são exclusivas da sociedade brasileira, ocorrendo na América Latina dinâmica semelhante e constitutiva de “processos de diferenciação”, fundamentais para a identificação (Gumucio 1999). A dinâmica produtiva compreende a “música gospel ” e apresenta artistas, bandas musicais, empresários, bens e serviços, sendo muitos vinculados às empresas presentes no meio evangélico. Também é encontrada a modalidade black music gospel / “música negra” 3 que caracteriza uma esfera de produção musical e de eventos. Determinadas musicalidades são reinterpretadas e apontadas como componentes de uma comunicação específica entre os fiéis. Então, a atividade musical estimula a discussão sobre a transformação do meio evangélico, pois, de um lado, bens culturais são apropriados e novos modos de participação são encontrados; de outro lado, alguns produtores apresentam reflexões e concepções acerca da “cultura negra” e do “negro” no meio evangélico.

Pinheiro Marcia Leitão Música Religião e Cor

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O artigo busca apresentar novos elementos para discutir a transformação do meio evangélico brasileiro. Para tanto, recorre à produção musical, especificamente à black music gospel / “música negra”

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  • Mrcia Leito Pinheiro

    MSICA, RELIGIO E COR UMALEITURA DA PRODUO DE BLACK MUSICGOSPEL1

    Em investigao anterior sobre a produo musical, procurei discutir atransformao do meio evanglico brasileiro2. Deparei-me com especfica prticacaracterizada pela apropriao de expresses musicais integrantes do fluxo culturalinternacionalizado. As constantes (re)criaes entre os evanglicos, que podem servislumbradas nas igrejas surgidas nas ltimas dcadas e tambm nas formulaes debens religiosos, viabilizam a (re)definio do pertencimento e da participao. Noentanto, a tomada e a ressignificao de expresses culturais no so exclusivas dasociedade brasileira, ocorrendo na Amrica Latina dinmica semelhante e constitutivade processos de diferenciao, fundamentais para a identificao (Gumucio 1999).

    A dinmica produtiva compreende a msica gospel e apresenta artistas,bandas musicais, empresrios, bens e servios, sendo muitos vinculados s empresaspresentes no meio evanglico. Tambm encontrada a modalidade black musicgospel / msica negra3 que caracteriza uma esfera de produo musical e deeventos. Determinadas musicalidades so reinterpretadas e apontadas comocomponentes de uma comunicao especfica entre os fiis. Ento, a atividademusical estimula a discusso sobre a transformao do meio evanglico, pois, deum lado, bens culturais so apropriados e novos modos de participao soencontrados; de outro lado, alguns produtores apresentam reflexes e concepesacerca da cultura negra e do negro no meio evanglico.

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    A atividade musical viabiliza observar as dinmicas religiosas e explicitarque elas ultrapassam os experimentos esttico-musicais. O fazer musical colocaem circulao prticas e concepes que permitem problematizar os modos depertencimento e participao, que no se resumem ao aparecimento de novosprodutores de bens e servios e ao aspecto da moralidade. Assim, o objetivo dotrabalho abordar a black music gospel / msica negra como um mbito depossibilidades para a emergncia de formas de se pensar e ser negro, isto , deconstruir e veicular uma noo de negritude. Focalizarei certa oposio sinovaes musicais e tambm sublinharei as crticas realizadas por fiis diantedo que entendem ser uma restrio e uma viso negativa que atingem a culturanegra e o contingente de adeptos negros. Analisarei ainda os discursos deprodutores musicais e as falas de consumidores para saber que sentido atribuem iniciativa. Buscarei, por fim, destacar o que os produtores entendem porcultura negra e, assim, pontuar o referencial cultural e religioso que informaa atividade produtiva em questo.

    Black music e festas inovaes

    Entre os formuladores de msica gospel encontram-se aqueles queproduzem a black music gospel / msica negra. Fazem parte dela expressescomo o rap, o rhythm and blues (r&b), o drum nbass (db), o reggae, e afirma-seque o pagode e o samba tambm so seus componentes.

    Os produtores de black music so adeptos com algum conhecimento musicale no ocupam cargos nas igrejas ou nas empresas encontradas no mbito da msicagospel. Eles possuem o ensino mdio completo, so negros4, so de igrejas histricas Batista, Presbiteriana e Metodista , mas alguns passaram para as igrejasneopentecostais Renascer e Projeto Vida Nova de Iraj, por exemplo.

    Alm da verso musical, h a festa gospel ou festa, onde os artistas seapresentam e as canes so executadas. As edies da festa so noturnas5,ocorrem em clubes, boates e casas de festas localizados em reas no centraisda cidade (como os bairros de Madureira, Vaz Lobo, Bangu, Campo Grande,Santa Cruz, e tambm os municpios de Duque de Caxias, Nova Iguau e SoGonalo). No entanto, pode ser que a festa acontea em espaos ligados sigrejas ou s empresas encontradas no meio evanglico. Isso ocorre mediante oconvite de alguma igreja6 a um grupo musical, ou ainda a partir da programaode alguma emissora de rdio, mas dificilmente a atividade realizada nosdomnios oficiais.

    Como foi apresentado, a black music gospel / msica negra executadana festa; porm foi constatado, durante o meu trabalho de campo7, o predomniode msica eletrnica, de hip-hop e de rhythm and blues (r&b), conhecido comosoul ou charme, tambm em verso nacional.

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    As iniciativas no esto vinculadas s igrejas e/ou s gravadoras existentese, assim, podem ser consideradas provenientes de aes independentes. Estasinscrevem bens e servios que atraem interessados e integrantes de vrias igrejasevanglicas. Segundo os produtores, no h concorrncia com os fazeres dasigrejas, haja vista apresentarem algo complementar e capaz de converter e deevitar o desligamento do fiel. Observam ser isso possvel porque a mensagemreligiosa contextualizada. Essa viso no estranha aos demais evanglicos,porm os produtores apontam que no recebem apoio de pastores e de empresrios.

    A nfase na msica, na dana e na exaltao emocional evidencia doisaspectos que revelam algo sobre a transformao do meio evanglicocontemporneo. Primeiro, o registro de novos estilos de participao compreendeuma noo de corporalidade e de maleabilidade comportamental. Segundo, assonoridades apropriadas colocam possibilidades de abordar como os formuladoresde black music gospel / msica negra constroem e exprimem a noo de negritude.

    Entende-se negritude como algo no essencial e fechado, sendo umaconstruo reveladora da conscincia da diferena e do pertencimento a umgrupo incluso na dispora africana8. A noo de negritude pode ser formuladae reformulada conforme o local, os interesses e os objetivos em jogo e, portanto,resulta de especificidades temporais e espaciais (Gilroy 2001). A referncia frica pode ser recorrente para falar de uma negritude e, neste caso, destacam-se expresses como o candombl, a capoeira e os orixs (Birman 1989).Igualmente, a reinterpretao local de elementos globais fundamental para aredefinio da noo de negritude entre as juventudes urbanas (Sansone 2003).

    Recorro noo de negritude porque os envolvidos na atividade musical,ao privilegiarem elementos e referenciais culturais especficos e veicularem suasconcepes, fazem da black music gospel / msica negra tambm uma via deatuao poltica. Essa msica integra expresses musicais que podem serconsideradas a partir da noo de Atlntico negro (Gilroy 2001)9. Os produtoresmusicais participam de um circuito que envolve especialistas evanglicos ou no refiro-me aos produtores e divulgadores de hip-hop , compartilham idias,bens e servios e, assim, entendem apresentar algo prprio aos evanglicos afro-descendentes.

    Nota-se que as concepes e as aes de fiis alteram o meio evanglicoe, ento, algumas discusses sobre dinmicas do campo religioso (Novaes 2004;Oro e Steil 2003; Steil 2001; Sanchis 1995) permitem abordar os fazeres musicais.De um certo ponto de vista, a identificao de atuaes empresariais, bens eservios indicam a existncia de novos postos de gestores do sagrado e aproximidade entre religio e economia (Oro e Steil 2003). Nesse sentido, osprodutores contribuem para a vigncia de tipos, estilos e estratgias de afiliao(Brando 2004) que se multiplicam na sociedade brasileira. Os modos depertencimento e participao revelam uma arena religiosa relativamente aberta,

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    pois nela surgem unidades de crenas partilhadas com elementos de imaginriosdiversos. Isso compreende a relao com outros sistemas simblicos (Sanchis1995), viabilizando recomposies esttico-musicais e religiosas.

    Isso no acontece de modo equilibrado porque h tenses em vrios nveis.No caso, as inovaes musicais constituem um espao no qual emergem taisconflitos, pois as iniciativas, as idias e os bens podem ser tomados comoperigosos a partir da interpretao de que aproximam a igreja do plo do mal,atravs da promoo da liberalidade ou de expresses culturais de povos negros.

    Oposio e distncia entre os evanglicos

    Antes de tomar como dado que o meio evanglico avesso etnicidade, manifestao da negritude, deve-se indagar sobre os discursos e prticaspassveis de transitar em tal quadro. H entre os evanglicos, e entre ospentecostais, concepes especficas acerca das tradies africanas que, emgeral, apontam para a sua rejeio10. Por outro lado, h iniciativas que tmestabelecido possibilidades de os evanglicos, e tambm os pentecostais,adquirirem outro posicionamento diante da questo da cor e da etnicidade(Burdick 2001).

    Encontram-se produtores de black music gospel / msica negra que agemcom a finalidade de promover a cultura negra e de alterar o modo como elae os fiis negros so definidos no meio evanglico. Trata-se de (re)elaboraomusical e sonora com alcance limitado porque no escoa pelos canais oficiais deproduo. Apesar da posio perifrica, seus produtores constituem um pblicoespecfico, embora no seja possvel estabelecer que os consumidores igualmentedemonstrem ser a musicalidade promotora de reflexo e de posicionamentocrtico. Este ponto ser visto adiante.

    Em geral, o exerccio musical no meio evanglico instala tenses e coexistecom incentivos e crticas. Isto registrado, no tocante s alteraescomportamentais, com a introduo de danas, da valorizao do corpo, e coma apropriao de expresses musicais distintas dos hinos. As restries pertinentess alteraes sonoras e comportamentais tambm atingem as iniciativas pautadasnas musicalidades de matriz africana/negra. Pode ser tomado como exemplo umtexto sobre a msica contempornea nas igrejas evanglicas. O material estpresente em um stio em que os integrantes se opem ao ecumenismo, aopentecostalismo, msica crist contempornea e qualquer seita, afirmandoque as mensagens bblicas devem ser seguidas literalmente. Apesar doposicionamento restritivo, o contedo do artigo pode ilustrar a viso de outroslderes institucionalizados preocupados com as fronteiras e o perigo dasapropriaes, das inovaes musicais. Sobre isso, o texto enuncia o seguinte:

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    A contextualizao da msica chamada falsamente de contempornea,pois tem sua origem na antiqssima msica de invocao demonacaindgena e africana, tem introduzido na Igreja a sensualidade, opaganismo, o misticismo, a atividade maligna, que, atravs dos ritmos,tambores (bateria) e danas, tm entronizado Satans nas igrejas nolugar de Cristo transformando o culto aparentemente em show,mas o que acontece bem pior a Igreja torna-se um templo deSat (...)H msica que encoraja a atividade demonaca, e h msica queencoraja a atividade do Esprito Santo. H msica que ministra aolado do carnal do homem, e h msica que ministra ao lado espiritualdo homem. Msica rock (e msica popular afro-latinoamericana)sempre tem sido associada com o carnal e o demonaco. Rock (emsica popular afro-latinoamericana) no tem lugar legtimo navida e ministrios cristos11.

    Transita uma concepo acerca do que seja sagrado e assegurador daestabilidade religiosa no questionamento contribuio das chamadas canespopulares afro-latinoamericanas(sic). alocado no plo do mal o que no seenquadra na matriz musical europia, posto que se relacione ao carnal, aoexistente no mundo inferior. Trata-se de uma concepo que define a relaoentre as culturas a partir da polarizao de noes especficas (bem x mal,sagrado x profano, e ainda culto x inculto, erudito x popular). Conforme aelaborao, o mal formado pelo que concerne diverso, ao prazer e/ou aoutras tradies culturais e religiosas. Oposta a isso, estaria a religiosidade pautada em exerccio de reflexo, de abstrao vista como prpria de algomais espiritualizado, superior.

    O texto transmite uma viso determinada, porm outras vozes soencontradas no meio evanglico e descortinam mais tenses. Leigos e pastoresem comunicao no Congresso Brasileiro de Evangelizao (CBE2) defendem areleitura bblica. Propem a reviso de teologias e prticas, principalmentequando se fala em adeptos afro-descendentes ou negros os dois registrosso correntes no meio evanglico. Em seus manifestos, criticam algumas igrejasporque propagam a maldio hereditria (nela, o povo negro possui umamaldio que o faz inferior) e a batalha espiritual (o combate s heranasculturais de ascendncia africana ou negra) que acompanham a teologia daprosperidade (alcana o progresso material quem age com f e combate oscultos de ascendncia africana) (Burdick 2001; Pinheiro 2006)12.

    Apesar dessa reivindicao, h dificuldade em se valorizar as tradiesreligiosas africanas, e isso pode ser um dos fatores de no proximidade com omovimento negro (Burdick 2001), embora ocorram articulaes que visam

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    promover aes afirmativas, de forma a atender aos fiis negros e, tambm,s mulheres negras (Pinheiro 2006).

    possvel encontrar relao entre os citados pastores e leigos e os produtoresde black music gospel / msica negra, com determinada sensibilidade musicale sonora. A prtica dos especialistas musicais registra a valorizao de expressesmusicais entendidas como prprias de povos negros, inscritas em formas culturaisinternacionais. Assim, dialogam com os valores, as concepes e os fazeres dasigrejas evanglicas. Este ponto ser retomado mais adiante.

    Os posicionamentos, como o relacionado s musicalidades afro-latino-americanas, e outros, como o que busca discutir a concepo vigente sobre acultura e o contingente de protestantes no europeus, expem a tenso entreo que se entende como negro, popular e, portanto, perifrico, posto que distantedo sagrado, e a forma cultural considerada branca, erudita e central. Tudo issopermite ver as articulaes e as transformaes que caracterizam o jogo queenvolve eleies em decorrncia de foras mutveis e irregulares (Hall2003:258), que definem o que considerado central e sagrado e o que no .

    Ao privilegiar as concepes encontradas no meio evanglico e queenvolvem a dita musicalidade afro-latino-americana, possvel perguntar: oque inscrito com a produo da black music gospel / msica negra?

    Cultivo de pertencimento musical e religioso

    A pesquisa da musicalidade no meio evanglico permitiu encontrar algunsgrupos de produtores sem vnculos formais com empresas ou igrejas e que, em suasaes independentes, apresentam bens e servios como a black music gospel / msicanegra e a festa. Ambas atraem adeptos de igrejas evanglicas que compem eexteriorizam novos estilos de pertencimento e participao. Os bens e servios musicaisso concebidos como diferentes dos servios formais encontrados nas igrejas e deoutros bens musicais. No entanto, os produtores sublinham que suas iniciativascorroboram o que se realiza na esfera institucional, permitindo-lhes promover aconverso ou o resgate daqueles que estabelecem um vnculo de f frgil. Aindaassim, os produtores apontam para o no reconhecimento de suas iniciativas,terminando por atuar nas margens de seu meio religioso13.

    Sobre o trabalho realizado e as condies enfrentadas, Lton, um dosprodutores musicais e de festa, entende que se realiza um trabalho rduopara a disseminao da black music gospel / msica negra. Srgio, outro produtormusical e de eventos, relata ter enfrentado reaes ao apresentar o projeto defesta ao pastor de sua igreja. Assim fala: (...) Ele chegou e colocou a opiniodele, mas no colocou nenhuma objeo. Desde que eu no vinculasse o queestava fazendo com a Igreja Batista a que eu pertencia (...). Depoiscomplementa: Por no ser um evento comum, um evento conhecido... Pra

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    eles... Eles no gostariam de chegar e, de repente, colocar a mo no fogo poruma coisa que eles no conheciam. Por uma coisa obscura.

    A exposio evidencia a preocupao com as fronteiras, cujoenfraquecimento pode conduzir quebra da diferenciao. Mesmo assim, ficaevidente que a atividade no foi impedida, apesar do temor da possvel associaoentre ela e a instituio. A posio diante da coisa obscura reflete a precauode lderes com os elementos no formulados no interior da arenainstitucionalizada e, portanto, fora de seu campo de influncia. Por esse prisma,os envolvidos parecem agir na contracorrente dos lderes institucionalizados.Estes defendem a ruptura com o mundano e com aquilo considerado prpriode expresses religiosas caracterizadas pela possesso. Apesar dos argumentos edas tentativas de promotores de validar a msica negra e a festa, ressaltandocomo contribuem para a disseminao dos evanglicos e contando com o apoiode determinado pblico, existem crticas e oposies diante do risco de indistinocom o mundo.

    O depoimento de Srgio revela que o aspecto moral demanda cautela,principalmente quando apresenta a oposio entre igreja e coisa obscura. Otexto sobre a msica afro-latino-americana tambm sublinha esse aspecto quandoaproxima atividade maligna da dana, do carnal, da sensualidade, poisa excitao dos sentidos e a nfase dada ao corpo so caractersticas do que seentende como demonaco. Essa dimenso no pode ser descartada porquetambm est associada a uma outra, relativa noo acerca da cultura e dareligiosidade atribuda s populaes negras. Ela aparece diferentemente na falade Lton, produtor de black music gospel / msica negra e de festa. Oentrevistado diz que:

    Em sua maioria, os jovens que vo para essa festa so negros. Porisso, tentamos passar para eles a cultura negra e gospel que no muito difundida no meio evanglico. Como nosso pas foi colonizadopor europeus, o prprio evangelho que foi difundido por eles veionos moldes do homem branco. Por isso, nos bailes tentamos resgataressa cultura que se perdeu. Hoje os jovens e o pblico gospel jcomeam a identificar essa divisa. Mas um trabalho rduo. Porisso, damos preferncia a esse tipo de msica, a nossa msica. Afinal,hoje, os principais produtores de bailes so negros e sabemos o quesofremos para conquistar nosso espao (de chamarem nossa msicade msica mundana, diablica e etc.). O trabalho que fazemos semfalar muito, mas com muito som, clipes e etc., justamente ajudaras pessoas a entender que se louva a Deus com msica negra(charme, hip-hop, samba etc.), assim levantando o negro e colocandoem seu devido lugar dentro das igrejas.

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    Dois impedimentos so apontados: primeiro, a plida valorizao e odesconhecimento da cultura atribuda ao contingente de negros; segundo, o nexoestabelecido entre atividade maligna e cultura negra. Apesar disso, um certopertencimento demarcado com a reconstruo do que se considera especfico aum grupo de crena a partir da relao entre religio e herana cultural.

    O depoimento explicita a proposta de trabalho e esta evidencia o que odepoente considera ser a viso encontrada no meio evanglico da histria e dasexpresses culturais e musicais dos povos negros. Para ele, o resgate da culturanegra depende da (in)formao das novas geraes de ouvintes e de fiis. Issodemarca a recuperao de um plo sem prestgio, a que se atribui uma carganegativa, j que, como o prprio produtor observa, a cultura negra e a msicanegra so vistas como mundanas e diablicas. De modo particular, as idiase as prticas de Lton convergem com as iniciativas que buscam a releiturabblica, a mudana teolgica e a valorizao da herana cultural. Ambasdiscutem o negro evanglico e a cultura negra no interior das igrejas.

    Sobre a especificidade da msica que elabora, Lton fala:

    Para voc ter uma idia, a msica gospel no era a msica evanglicaem geral. Era, sim, a msica evanglica cantada e tocada nas igrejasnegras norte-americanas. Msica que comeou nas lavouras, ondeos negros clamavam a Deus por socorro (Spiritual). Quando os negrosconseguiram montar suas igrejas, a msica dos negros era chamadade godspel que, mais tarde, viraria o gospel. Em sua grande maioria,a msica evanglica americana, cantada por um grupo de brancos, chamada de Christian music. Aqui no Brasil, se copia muito de lde fora, foi passado pelos grandes donos de gravadoras e rdiosevanglicas que a msica brasileira, diga-se de passagem, que erapredominantemente branca, era gospel.

    Segundo Srgio, outro produtor musical, as musicalidades em questoseriam algo peculiar para os ouvintes porque:

    A msica negra apareceu como a msica da alma, o soul mesmo;aquilo que vem de dentro devido ao sofrimento que os negrosantigos passavam relacionado escravido. Aquele canto de lamentoque eles tinham para poder... no momento que eles tinham umpouco de alvio, de repente, no canavial, na plantao de algodoo dia todo...

    As falas destacam o tipo de msica como fundamental para a diferenciaoe a visibilidade de uma parte dos membros evanglicos. Tambm explicitam as

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    sonoridades e musicalidades que compem a espiritualidade e a religiosidadeconsideradas prprias de negros antigos (os escravos), e que diferem daquelaentendida como peculiar religiosidade branca. Os depoimentos indicamque, atravs das atividades musicais, possvel atingir aqueles que, apesar dedesconhecerem as inscries culturais, a espiritualidade negra e ignoraremsua realidade social, consomem as musicalidades de matriz no europia.

    Por caminhos distintos, os produtores musicais buscam colocar em pautaoutra concepo acerca dos fiis e da cultura negra. Isso fundamental paraa organizao de uma prtica que possibilite inscrever a temtica da negritudeno meio evanglico. Mas as iniciativas no esto atreladas somente a questesprprias do meio evanglico. De maneira diferente, participam de um debatemais amplo sobre a populao afro-brasileira, sobre o lugar que lhe atribudoe sobre as imagens tecidas a seu respeito.

    Mar musical os consumidores

    Visto que para alguns evanglicos o trabalho musical e seus eventospromovem especfica exortao da f, fica a pergunta: qual o sentido dado poraqueles que consomem os bens e os servios? Ynah, 25 anos de idade, negra,solteira, adepta da Comunidade Evanglica da Zona Sul, moradora de Iraj,estudante de Turismo e Hotelaria, fala o seguinte:

    Eu chamo de black music o rock, por exemplo, ele veio do Jazz. Blackmusic. Pra mim o soul, o rap... todos fazem parte da black music, quea prpria palavra fala, msica negra. Que esse tipo de som quesurgiu nos Estados Unidos. Em muita igreja era proibido bater palmas.Ento, muitas pessoas ficaram com aquela coisa de que crente nodana. E era um equvoco. Coisa do passado de muito tempo atrs.De uns anos pra c as coisas tm evoludo muito mesmo e teve aconcepo, ela pra ser bonita ela no precisa ser pornogrfica, elano precisa ser vulgar, no precisa agredir ningum. Danar vocexpressar com o corpo o que voc est ouvindo com os ouvidos, euvejo dessa forma. Ento, a maioria das igrejas tem ministrios dedana. Que uma coisa mais recente. Mas ele tem se empenhadomuito disso.

    Tiago, negro, ensino mdio completo, casado, 24 anos de idade, membroda Igreja Batista Renovada, residente na Baixada Fluminense, instrutor demsica, fala sobre a black music e aponta para sonoridades negras ecaractersticas de regies urbanas. Assim diz:

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    A black music hoje, que no caso a msica negra, tem vriasvertentes: tem o hip-hop, que msica negra, tem o prprio charmeque a msica eletrnica, msica batida, mas com muita melodia,melodias elaboradas, vocais harmonizados, que essa base de coral...tem o hip hop, que hoje que a grande coqueluche do momento.Hip-hop hoje, tu vai na Baixada hip-hop, tu vai na zona sul hip-hop... Tem o r&b que mais funk, funk americano, aquela questoque a gente tava falando, n, um arranjo bem trabalhado. A msicablack hoje isso, tem vrias vertentes.

    Por fim, relacionada black music gospel / msica negra est a festa,e sobre ela e sua inscrio no meio evanglico, dois entrevistados, Lus e Maria,negros, cerca de 18 anos de idade, estudantes do ensino mdio, moradores daBaixada Fluminense, da Igreja Evanglica Pentecostal Crist e do Projeto VidaNova de Iraj falam, respectivamente, o seguinte:

    Lus: Olha s. Ns seguimos uma religio. Ns somos evanglicos ea gente, por ser jovem, a gente no gosta de um sbado noiteestar em casa assistindo Zorra Total e A Praa Nossa. A gentegosta de sair tambm, gosta de se divertir. E pra gente no semisturar, porque o mundo tem uma viso da gente, daquele povinhocertinho. A, se por acaso, estiver numa festa do Olimpo agora vodizer: poxa, aquele cara crente, entendeu? Aqui um espaoevanglico, onde todo mundo evanglico. A Palavra que a genteouve aqui a mesma coisa que a gente ouve na igreja que nsfreqentamos. Ento, se a gente comear a ir pra outro tipo de baileou qualquer outro ambiente, que no seja evanglico, algum quenos conhece vai ver e vai dizer: p, aquele cara crente? Tnesse lugar? Aqui, entendeu, um pedacinho da igreja, umacontinuao da igreja.Mrcia: Como pode ser uma continuao da igreja?Lus: Porque, quando a gente vai na igreja, um ambiente umpouco mais diferente. um ambiente um pouco mais formal, vamosdizer assim, cadeira, banco... Aqui no. Aqui a gente tem umambiente um pouco mais livre, entendeu?Maria: Tem mais liberdade pra se soltar, voc pode conversar porquegeralmente na igreja voc tem que ter reverncia, voc no podebater papo dentro da igreja. No que voc no possa se comunicar,mas, enquanto tiver um culto, voc tem que prestar reverncia.Aqui no. J pra isso. um ambiente que voc pode adorar aDeus, que voc pode ouvir a Palavra, mas, ao mesmo tempo, se

  • 173PINHEIRO: Msica, religio e cor uma leitura da produo de black music gospel

    divertir com moderao, na presena de Deus, conhecer outraspessoas, entendeu? um ambiente onde todo mundo se rene comum objetivo s: ouvir a palavra de Deus, receber algo do Senhor,mas tambm se divertir e passar alegria um pro outro.

    Os depoimentos dos consumidores colocam elementos para a discussosobre a participao juvenil e a transformao do meio evanglico. Neles, seestabelece um estilo de pertencimento e participao pautado na diverso e nacorporalidade, componentes considerados fundamentais na relao com o divino.Num jogo eficaz, em que se destacam a liberdade e a equiparao da festa igreja, a moralidade estendida e, ao mesmo tempo, limitada, para que ocrente, o fiel, no seja alocado em esfera marcada pela liberalidade e perca,assim, a sua especificidade. Isso constitui sua diferenciao no meio evanglicoe tambm fora dele, j que precisa no deixar dvidas quanto sua distnciaem relao quilo que est no exterior, no mundo.

    Os depoentes tambm citam as musicalidades surgidas nos Estados Unidosque entendem ser msica negra e sublinham que a diversidade sonora identificaas regies da cidade. Mas ser que isso demonstra que os consumidorescompartilham do mesmo sentido atribudo msica pelos elaboradores de blackmusic gospel / msica negra?

    Como relatado, para os produtores, os consumidores, em um determinadonvel, so tambm os seus interlocutores; eles so pensados como aptos a expandirsuas concepes e prticas de religiosidade e de negritude.

    Por sua vez, os consumidores falam sobre a msica gospel, de seusurgimento entre os negros norte-americanos adeptos do cristianismo. Mas, comofoi apontado acima, suas falas tecem um estilo religioso e de vida antenado coma moda e com nfase nas alternativas de diverso, includa a dimenso corporal.Isso indica que os jovens consumidores de black music gospel / msica negra e defesta interagem com o que est inscrito no fluxo mundial de bens e servios.

    As falas aqui contempladas confirmam a circulao de um conhecimentoentre os consumidores, porm isso no quer dizer que compartilhem do sentidoatribudo pelos produtores atividade musical. Isso no especfico a essembito musical porque podem ser encontrados outros adeptos evanglicos queparticipam de atividades musicais pautadas na musicalidade negra, mas queno incorporam uma reflexo sobre etnicidade (Burdick 2001). No Brasil e emoutros pases, como Holanda e Estados Unidos, bens e smbolos so reinterpretadoslocalmente. Ainda, no Brasil, muitos jovens freqentadores de manifestaesbaseadas na dita cultura negra no necessariamente as entendem comomobilizaes tnicas e ligadas inscrio poltica (Sansone 2003).

    No fluxo de formas musicais, o que se coloca em questo entre os produtores a produo e o consumo de bens e servios. Essas relaes de produo e troca

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    levam participao na criao e na circulao de idias, msicas e eventosque integram possibilidades de se pensar e ser evanglico. A produo musicalcontribui para as (re)composies realizadas pelos adeptos e tambm pelosprodutores musicais. Eles so capazes de apresentar novas prticas, novasconcepes, novos temas e questes, dinamizando, assim, o meio religioso. Issodecorre de rearranjos provisrios feitos por aqueles que, no se prendendo aosritos estabelecidos pelas instituies, recombinam elementos distintos, produzemsua sntese pessoal e intransfervel e assim (...) abrem novas possibilidadessincrticas (Novaes 2004).

    Rota de religiosidades e sons negritude

    Os bens e servios musicais demarcam um modo peculiar de participaono meio evanglico contemporneo. Os produtores consideram que, ao formularalgo direcionado aos evanglicos afro-descendentes, elaboram e divulgam umadeterminada concepo de negritude. E qual a sua especificidade? Vejamos.

    Foi anteriormente mencionada a viso sobre as musicalidades afro-latino-americanas que caracteriza certo posicionamento encontrado na dimensoinstitucional. Existem ainda propostas que estimulam o debate sobre a condiodo afro-descendente no meio evanglico e so apresentadas por leigos e algunspastores. Estes defendem a insero de discursos e prticas que contemplem astradies religiosas africanas (Burdick 2001).

    Como leigos, os produtores musicais apresentam elaboraes que dialogamcom as concepes e prticas oficiais. Eles exprimem a dimenso individual,essencial para a compreenso dos processos de transformao. Neste caso, aafirmativa de Lton sobre as iniciativas que ele e outros efetivam indica queessas atividades so voltadas para os jovens negros. Seu objetivo a transmissoda cultura negra e gospel que, apesar de pouco presente no meio evanglico,com as iniciativas musicais estaria sendo resgatada e percebida pelos jovens.Para Lton, as msicas e os eventos so os alicerces de uma comunicao religiosaque no exclui a dimenso da transformao social. Os ouvintes so consideradoscientes da no valorizao da cultura negra e, tambm, da procura por mudanaempreendida com a msica. Assim, so os participantes preferenciais do debatesobre religiosidade e negritude no meio evanglico.

    A articulao estabelecida coloca em lugar de destaque a cultura negrae a religiosidade. So contempladas uma histria e determinadas musicalidades,explicitando as conexes realizadas para resgatar e evidenciar a cultura negra.Trata-se, no entanto, de uma cultura negra especfica. Na fala de Lton,junto com a definio desta apresentada uma crtica dirigida simultaneamente colonizao e evangelizao do pas, pois seriam as responsveis pelosoterramento da cultura negra e gospel.

  • 175PINHEIRO: Msica, religio e cor uma leitura da produo de black music gospel

    A pauta de construo da negritude e do pertencimento a essa culturapassa pela valorizao de um negro. Os produtores musicais no recorrem asinais considerados prprios da frica, diferentemente do que acontece na Bahia,por exemplo, com a msica eletrnico-percussiva. Esta caracteriza outranegritude ao sublinhar o eixo Salvador-frica (Guerreiro 1997). J as expressesmusicais retomadas no meio evanglico so definidas como prprias de afro-norte-americanos. Essas expresses circunscrevem uma f e uma cultura negrae gospel, e constituem um referencial pautado na rota Rio-Estados Unidosestabelecido a partir de uma relao idealizada entre dispora-escravido-protestantismo.

    A produo de black music gospel / msica negra concede um lugarprivilegiado s expresses musicais de vertente afro-norte-americana. Isso permiteindagar por que o mesmo no feito com as expresses musicais afro-brasileiras14.A eleio das musicalidades pode ser interpretada do ponto de vista do gostodos envolvidos e/ou da formao musical recebida em corais de igrejas, maspode, tambm, ser compreendida como modo de no colidir com as determinaesdo meio evanglico. Essa ausncia aponta para a validao de um determinadonexo entre negritude e religiosidade. Seria este derivado do fato de que no seatribui aos negros norte-americanos uma vinculao com os cultos de possesso,com a atividade maligna, com a licenciosidade, diferentemente do que ocorrecom as msicas afro-latino-americanas? Os produtores no registram isso, masoutros aspectos so apontados e definem a base do distanciamento em relaos religies de possesso ou a uma frica imaginada.

    As formulaes apresentadas destacam o sofrimento, o cativeiro, ocanto nas lavouras e nas igrejas negras. Assim, as canes e os idealizadosnegros das plantaes, bem como as igrejas com adeptos afro-norte-americanosso tomados como referenciais negros e sagrados, pois constituem uma dimensono demonaca e, portanto, prefervel. Dessa forma, so construdas, articuladase sustentadas as iniciativas dos produtores musicais que no elegem asmusicalidades de vertente afro-brasileira, que no estabelecem como parmetroaquilo que encontram no Brasil. Essa uma construo possvel da noo denegritude, calcada numa discusso sobre cultura negra que exclui de suaperspectiva as expresses culturais e religiosas apontadas como de pouca presenae visibilidade15. Para atuar entre as juventudes do meio evanglico brasileiro, fundamental recorrer criao de uma imagem de trabalhadores de elevadaespiritualidade, marcados pelo sofrimento do trabalho escravo e pelo clamordirigido a Deus, imagem sobre a qual se tece a black music gospel / msicanegra como modalidade ligada ao cristianismo, especificamente sua versoafro-norte-americana.

    Os produtores musicais apresentam sua concepo musical e religiosa esustentam que o sagrado pode incluir o que no branco. No conjunto de

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    possibilidades que estabelecem para a formulao de uma noo de negritude,deve-se conceder lugar de destaque s expresses musicais que consideramfazer parte da histria de negros cristos revestidos de moralidade. Assim, repensame redefinem suas prticas, o pertencimento e a participao no meio evanglicocontemporneo.

    Consideraes finais

    Com este trabalho foi possvel focalizar a transformao do meio evanglicobrasileiro, destacando a esfera da black music gospel / msica negra suasarticulaes, produes e sentidos. De um lado, viu-se que a atividade musicalconstitui formas distintas de manifestar a noo de negritude; de outro, queviabiliza discutir o aspecto da moralidade, pois ressalta a corporalidade e aemoo em detrimento do texto escrito e da introspeco. Isso fica explcito nosdepoimentos de consumidores que enfatizam a busca por diferenciao, levandoa movimentos de proximidade-distanciamento com os no evanglicos e com osdemais evanglicos.

    A atividade de black music gospel / msica negra revela que as diferenasno so subsumidas; pelo contrrio, compem possibilidades diversas depertencimento. Nesse caso, as apropriaes configuram mesclas fundamentaispara a identificao (Gumucio 1999). Isso marca os evanglicos brasileiros que,atravs de suas composies, podem recriar pessoalmente seu universo religioso(Sanchis 1995). Tudo isso indica haver no meio evanglico um movimento quecontempla aes, experincias e concepes diversificadas, evidenciando arecomposio de foras internas (Steil 2001). Nesse sentido, faz-se central oconsumo de bens musicais, trocados em escala internacional (Sansone 2003).Basta observar as falas dos consumidores de bens e servios musicais, em que seevidenciam proximidades e distanciamentos de prticas encontradas fora docampo religioso.

    No dinmico meio evanglico brasileiro ocorre a construo da negritudee a valorizao do contingente de afro-descendentes. No caso, isso efetivadocom a apropriao do que se considera prprio aos afro-norte-americanos. Asidealizaes acerca da cultura negra e gospel, do sofrimento decorrente dotrabalho escravo e o distanciamento em relao cultura afro-brasileira, soaspectos que caracterizam as iniciativas de produo e difuso da black musicgospel / msica negra. Assim, observo que os bens e servios musicais no vode encontro aos princpios definidores da identidade evanglica, apesar de,como indicado pelos produtores musicais, estarem voltados para a promoo donegro e da cultura negra no meio evanglico brasileiro.

    No se considera aqui que as inovaes sejam a expresso de uma criseno meio evanglico. Procurou-se discutir, a partir delas, questes e temas,

  • 177PINHEIRO: Msica, religio e cor uma leitura da produo de black music gospel

    presentes no meio evanglico e na sociedade em geral, pertinentes juventudee ao contingente de afro-descendentes. O alinhamento de referenciais religiosose musicais ordena essas questes de modo peculiar. Para os envolvidos, asinovaes, por mais audaciosas que sejam, so entendidas como revestidas demoral porque esto religiosa e historicamente ligadas aos negros escravos,sofredores e fiis a Deus. Fica explcito que a construo musical coloca emcirculao formas culturais que ultrapassam fronteiras, constituem estratgiasde recodificao e, como tudo o mais, tambm no so puras (Hall 2003:343),mas so fundamentais para demarcar as especificidades de pertencimento eparticipao.

    Por fim, cabe indicar que os encontros transformadores (Sanchis 1995)estabelecidos por fiis no caso os produtores e consumidores de bens e serviosmusicais resultam na incorporao de influncias culturais que caracterizamuma certa porosidade do pertencimento. Esta revela a coexistncia de mltiplasformas de ser evanglico e de participar das inscries religiosas. E, desse modo,os fiis integram o jogo do fazer e refazer o ser religioso.

    Referncias Bibliogrficas

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    Notas

    1 Uma verso preliminar deste texto foi apresentada na 9 Semana da Cultura Popular, ocorrida naUniversidade Estadual do Rio de Janeiro, em 2006. Agradeo aos pareceristas pelas sugestes e aoscolegas Srgio Luiz dos Santos Silva (LESCE/UENF) e Wania Amlia Mesquita (LESCE/UENF)pelos comentrios realizados.

    2 Trata-se de minha tese de doutorado, intitulada Na pista da f: msica, festa e outros encontrosculturais entre os evanglicos do Rio de Janeiro, defendida no PPGSA/IFCS, em 2006.

    3 Os dois termos so aplicados por aqueles envolvidos com a atividade musical, mas a minha opo a de utilizar os dois registros. Essa escolha permite evidenciar a diversidade da modalidade musicaloferecida e que decorre de apropriaes e ressignificaes de sonoridades, resultando em versesmusicais nacionais.

    4 Os entrevistados se definem como negros a partir da cor da pele e das relaes familiares, sendoa ascendncia fator preponderante.

    5 O incio da atividade marcado s 20 horas, porm costuma comear s 23 horas e pode terminarperto das 5 horas da manh.

    6 Pode acontecer de alguma igreja realizar o culto dedicado aos jovens, fazendo uma edio da festa,mas no uma constante.

    7 O trabalho de campo durou cerca de dois anos e apresentou algumas etapas. Entre 2002 e 2004,entrevistei pastores, empresrios e cantores; participei de reunies destinadas a divulgar osempreendimentos. Nos anos de 2003 e 2004, estive presente em edies de festa preparadas poralguns grupos em atuao na cidade do Rio de Janeiro. Foram feitas 28 entrevistas com profissionais:artistas, produtores musicais e organizadores de eventos; tambm foram ouvidos lderes religiosose freqentadores. Entre os freqentadores de iniciativas musicais, incluindo a festa, foram ouvidossete deles em entrevistas em profundidade, e cerca de 15 em entrevistas curtas, no formais erealizadas nas entradas dos locais dos eventos. Por fim, recorri a depoimentos disponveis em sitesde cunho religioso ou no. As matrias jornalsticas (oriundas do meio evanglico ou no), osmateriais promocionais visuais e sonoros, elaborados pelos envolvidos com as produes fonogrficas,musicais e de encontros permitiram acessar um outro nvel das suas formulaes.

    8 Gilroy (2001:17-21 e 25) discute dispora como conceito favorvel reflexo sobre identidade epertencimento, pois possvel pensar na idia de circuito comunicativo composto por diversaspopulaes dispersas e em interao. No se trata de falar somente em movimento, mas de processosprodutivos resultantes de diversas formas geopolticas e geoculturais oriundas das comunicaesentre os povos negros.

    9 Segundo Gilroy (2001), a idia de Atlntico negro permite falar e refletir acerca dos fluxos emisturas culturais de matriz africana, mas no a partir de um enrijecido centro irradiador, e, sim,de formas culturais em movimento que trafegam, cruzam mares e originam culturas planetrias maisfluidas e menos fixas, pois no so irradiadas de um centro.

    10 Costuma-se enfatizar que h entre os evanglicos uma noo de irmandade, sendo subsumidasquaisquer diferenas como, por exemplo, as de gnero, de cor e de raa. A vigncia de umaconcepo de que todos so irmos e filhos de Deus enfraqueceria tentativas de colocar empauta a discusso sobre o lugar do negro no meio evanglico (Burdick 2001). A equao entre sernegro e ser evanglico observada por cientistas sociais que analisaram as prticas e as visespresentes em igrejas histricas e pentecostais. Eles indicam ser a converso um momento de

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    separao de um passado histrico, de distanciamento de manifestaes populares e religiosas,principalmente aquelas relacionadas com as populaes negras (Novaes e Floriano 1985; Burdick1998; Burdick 2001).

    11 III Msica contempornea instrumentos barulhentos e mltiplos tambores da bateria e danacomo atrativos para fazer a igreja crescer disponvel em http://solascriptura-tt.org, acessado em20/07/05.

    12 H leigos e pastores, de igrejas histricas, pentecostais e neopentecostais, que tm refletido sobrea condio do negro evanglico, constituindo propostas e prticas como, por exemplo, o Frumde Lideranas Negras Evanglicas. Este apresenta discusses sobre a religiosidade e a cultura negra,colocando a possibilidade do surgimento de um movimento negro evanglico.

    13 A presena da black music no meio evanglico no resulta somente da atividade independente,existindo gravadoras que a divulgam. H empresas que passaram a integrar em seu grupo de cantoresaqueles ambientados com a modalidade musical. Tambm so encontradas iniciativas como o B. UnitFestival, realizado na cidade de So Paulo, pela empresa de divulgao CON-3, ligada empresaAW Produes, especializada na promoo de cantores e bandas de black music. O objetivo dofestival premiar as bandas e os cantores de black music gospel rap, soul, r&b e corais de spirituals.Tambm foi instalado no pas o grupo You Entertainment voltado produo de mdia impressae digital direcionada ao pblico afro-americano. No Brasil, o investimento consiste em reunircantores evanglicos e negros para a produo musical. Maiores informaes, ver: B .Unit Festival,disponvel em www.mundonegro.com.br, acessado em 25/06/05; festival tem como objetivo premiaro melhor da black music nacional, disponvel em www.blackgospelbrasil.yahoo.com/groups/blackgospelbrasil, acessado em 05/08/04. Leal. You entertainment and You gospel, revista ShowGospel, ano 05, n 20, p.22-23; Aziz. Black money, www.terra.com.br/isto.

    14 Essa posio no unnime, e isso transparece no depoimento de uma produtora de festa queelogia as canes gravadas por corais de pases da frica, mas observa o seguinte: A [msica]africana mais complicada. Porque na msica africana, todo mundo toca atabaque, a coisa dodiabo. Entendeu? Porque a tem o Xang, aquele negcio todo no meio evanglico. Eu tenho umafita de um coral africano que... muito show. Alm dela, h no meio evanglico um pastor que citado como tendo canes em umbundo. Tambm so encontrados cantores e bandas que gravamsamba e pagode para segmentos evanglicos.

    15 Considera-se, de forma geral, que as religies de possesso ou as tradies religiosas africanas enegras constituem um elemento que dificulta a proximidade dos evanglicos com os movimentosque tentam alterar a condio dos negros e da cultura negra na sociedade brasileira. Isso decorreda oposio religiosidade e cultura negra e da associao entre cor e algo maligno oudemonaco. Porm, existem registros de discursos e prticas de evanglicos brasileiros que caminhamem sentido inverso, pois apontam para a construo de um discurso pentecostal afro-brasileiro(Burdick 2001).

    Recebido em abril de 2007Aprovado em agosto de 2007

    Mrcia Leito Pinheiro ([email protected])Doutora em Antropologia e professora do Laboratrio de Estudos da SociedadeCivil e do Estado (Lesce/UENF). A autora realiza pesquisas sobre religiosidade,produo musical e grupos juvenis urbanos.

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    Resumo:

    O artigo busca apresentar novos elementos para discutir a transformao do meioevanglico brasileiro. Para tanto, recorre produo musical, especificamente blackmusic gospel / msica negra. Esta baseada em musicalidades contemporneas como, por exemplo, o hip-hop e o reggae , e efetivada por grupos independentes. Elesso formados por fiis e no tm vnculos com empresas especializadas. Seus responsveisapresentam bens e servios que dialogam com as noes religiosas, principalmente comaquelas relacionadas ao contingente de fiis afro-descendentes. Suas prticas econcepes caracterizam determinado estilo de participao e de pertencimento. Paraa abordagem proposta, aplicam-se algumas noes como negritude, Atlntico negroe dispora.

    Palavras-chave: transformao religiosa, meio evanglico, black music gospel, negritude.

    Abstract:

    This article brings some new elements to the discussion of the transformation ofBrazilian evangelical context. For this, the text phocus on black music gospel / msicanegra. This kind of music is supported by contemporary musicalities as hip-hop andreggae musical styles and is produced by independent groups. These groups areconstituted by religious individuals, who are not connected to specialized musicalenterprises. They present goods and services that are in a dialogical link with religiousnotions, particularly those related to afrodescendants religious adepts. Their practicesand conceptions define a specific kind of participation and belonging. This perspectiveof study has as theoretical resources notions like blackness, Black Atlantic anddiaspora.

    Keywords: religious transformation, evangelical milieu, black music gospel, blackness.