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77 Este artigo tem como objetivo reconstruir a trajetória dos programas de estabilização da economia elaborados no contexto da crise do início dos anos sessenta no Brasil. Na conjuntura compreendida entre o final dos anos cinqüenta e a queda do governo João Goulart (abril de 1964), ao menos três programas mais ambiciosos de estabilização monetária foram tentados pelos governos do período, todos sem êxito. Iremos nos ater nas reações políticas dos diferentes atores, naquela conjuntura crítica, em relação ao Plano de Estabilização Monetária (1958-1959) do governo Kubitschek, à Reforma Cambial (1961) do governo Quadros e, com mais detalhe, ao Plano Trienal (1963-1965) do governo Goulart. Ver-se-á que tais reações decorrem da dissolução do consenso ideológico em torno das políticas desenvolvimentistas e da negativa dos principais grupos sócio-econômicos à submissão aos “sacrifícios” impostos pelos planejadores para a consecução da estabilidade monetária. PALAVRAS-CHAVE: planejamento econômico; políticas de estabilização; crise política; crise institucional; desenvolvimento; estabilidade; anos sessenta. Ricardo Silva Universidade Federal de Santa Catarina RESUMO Rev. Sociol. Polít. , Curitiba, 14: p. 77-101, jun. 2000 PLANEJAMENTO ECONÔMICO E CRISE POLÍTICA: DO ESGOTAMENTO DO PLANO DE DESENVOLVIMENTO AO MALOGRO DOS PROGRAMAS DE ESTABILIZAÇÃO I. INTRODUÇÃO No final dos anos cinqüenta, quando o Brasil ainda experimentava um intenso processo de crescimento industrial embalado pelos projetos governamentais da década, a política econômica oficial passou a apresentar uma importante inflexão. Os problemas relacionados à estabilidade monetária interna e ao desequilíbrio das contas externas passam a assumir a primazia nas preo- cupações dos planejadores e gestores da política econômica, em substituição à orientação desen- volvimentista e industrializante predominante até então. Tal inflexão evidenciou-se nas sucessivas tentativas de planejamento econômico realizadas entre o final dos anos cinqüenta e o golpe de março de 1964. A aceleração do processo inflacionário combinada com a deterioração das contas externas transformou-se no principal problema colocado não somente para os planejadores como também para as mais influentes vozes no debate técnico- econômico. A questão já não era tanto como incrementar o crescimento econômico e a indus- trialização, mas de que modo assegurar o controle da inflação e o equilíbrio das contas externas. O fenômeno da inflação deixou de ser considerado como um mero subproduto (ainda que não dese- jável) da industrialização brasileira, autono- mizando-se como problema teórico e prático e assumindo prioridade nos debates dos círculos dominantes. A reorientação da política econômica, de uma estratégia desenvolvimentista para uma estratégia de estabilização, resultou principalmente no surgi- mento de um novo quadro de reações políticas às tentativas de implementação dos planos econô- micos do período. Como é óbvio, políticas de desenvolvimento tendem a enfrentar reações me- nos vigorosas e a contar com apoios mais consis- tentes do que políticas de estabilização. A distri- buição desigual de novos recursos gerados tende a ser menos conflituosa do que a distribuição de “sacrifícios”. Este artigo pretende reconstruir a trajetória dos programas de estabilização econômica formulados na esteira da crise do “desenvolvimentismo”, dando ênfase à dimensão propriamente política do processo de elaboração e sobretudo de implemen- tação de tais programas. Tentaremos observar o comportamento de diversos atores relevantes tais

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 14: 77-101 JUN. 2000

Este artigo tem como objetivo reconstruir a trajetória dos programas de estabilização da economia elaboradosno contexto da crise do início dos anos sessenta no Brasil. Na conjuntura compreendida entre o final dosanos cinqüenta e a queda do governo João Goulart (abril de 1964), ao menos três programas mais ambiciososde estabilização monetária foram tentados pelos governos do período, todos sem êxito. Iremos nos ater nasreações políticas dos diferentes atores, naquela conjuntura crítica, em relação ao Plano de EstabilizaçãoMonetária (1958-1959) do governo Kubitschek, à Reforma Cambial (1961) do governo Quadros e, com maisdetalhe, ao Plano Trienal (1963-1965) do governo Goulart. Ver-se-á que tais reações decorrem da dissoluçãodo consenso ideológico em torno das políticas desenvolvimentistas e da negativa dos principais grupossócio-econômicos à submissão aos “sacrifícios” impostos pelos planejadores para a consecução daestabilidade monetária.

PALAVRAS-CHAVE: planejamento econômico; políticas de estabilização; crise política; crise institucional;desenvolvimento; estabilidade; anos sessenta.

Ricardo SilvaUniversidade Federal de Santa Catarina

RESUMO

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 14: p. 77-101, jun. 2000

PLANEJAMENTO ECONÔMICO E CRISE POLÍTICA:DO ESGOTAMENTO DO PLANO DE DESENVOLVIMENTO AO MALOGRO DOS PROGRAMAS DE ESTABILIZAÇÃO

I. INTRODUÇÃO

No final dos anos cinqüenta, quando o Brasilainda experimentava um intenso processo decrescimento industrial embalado pelos projetosgovernamentais da década, a política econômicaoficial passou a apresentar uma importanteinflexão. Os problemas relacionados à estabilidademonetária interna e ao desequilíbrio das contasexternas passam a assumir a primazia nas preo-cupações dos planejadores e gestores da políticaeconômica, em substituição à orientação desen-volvimentista e industrializante predominante atéentão.

Tal inflexão evidenciou-se nas sucessivastentativas de planejamento econômico realizadasentre o final dos anos cinqüenta e o golpe de marçode 1964. A aceleração do processo inflacionáriocombinada com a deterioração das contas externastransformou-se no principal problema colocadonão somente para os planejadores como tambémpara as mais influentes vozes no debate técnico-econômico. A questão já não era tanto comoincrementar o crescimento econômico e a indus-trialização, mas de que modo assegurar o controleda inflação e o equilíbrio das contas externas. O

fenômeno da inflação deixou de ser consideradocomo um mero subproduto (ainda que não dese-jável) da industrialização brasileira, autono-mizando-se como problema teórico e prático eassumindo prioridade nos debates dos círculosdominantes.

A reorientação da política econômica, de umaestratégia desenvolvimentista para uma estratégiade estabilização, resultou principalmente no surgi-mento de um novo quadro de reações políticas àstentativas de implementação dos planos econô-micos do período. Como é óbvio, políticas dedesenvolvimento tendem a enfrentar reações me-nos vigorosas e a contar com apoios mais consis-tentes do que políticas de estabilização. A distri-buição desigual de novos recursos gerados tendea ser menos conflituosa do que a distribuição de“sacrifícios”.

Este artigo pretende reconstruir a trajetória dosprogramas de estabilização econômica formuladosna esteira da crise do “desenvolvimentismo”,dando ênfase à dimensão propriamente política doprocesso de elaboração e sobretudo de implemen-tação de tais programas. Tentaremos observar ocomportamento de diversos atores relevantes tais

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como técnicos, políticos, empresários e trabalha-dores em relação às diferentes medidas contidasnos principais programas de estabilização doperíodo. Vale lembrar que tais programas vieramà luz em um momento bastante especial da históriapolítica brasileira, que combinou, como nenhumoutro, uma forte mobilização política e social comuma profunda crise institucional, agravado aindapela intensa radicalização e polarização ideo-lógica. Momento que se encerrou tragicamente em1964 pela via da desmobilização com repressão.

Inicialmente, observaremos as condições quepermitiram o impressionante êxito da políticadesenvolvimentista de Juscelino Kubitschekconsubstanciada no célebre Plano de Metas.Daremos destaque às condições de administraçãoe financiamento do Plano, chamando a atençãopara os principais problemas econômicos deriva-dos da experiência da “euforia desenvol-vimentista”. Esses problemas iriam balizar astentativas de planejamento econômico subse-qüentes. Em seguida, em grau crescente de deta-lhamento, analisaremos a recepção política dosprogramas de estabilização mais relevantes doperíodo. Após uma breve análise do Plano de Esta-bilização Monetária (1958-1959) do GovernoKubitschek e da Reforma Cambial (1961) doGoverno Quadros, aprofundaremos a análise daexperiência do Plano Trienal do Governo Goulart,o qual representou a última tentativa de plane-jamento econômico nos marcos do regime políticoda Constituição de 1946.

II. O PLANO DE METAS (1957-1961) E ASBASES FRÁGEIS DO DESENVOLVIMEN-TO

Durante a segunda metade dos anos cinqüenta,a economia brasileira experimentou um cres-cimento bastante intenso, com especial destaquepara o setor industrial. De 1957 a 1961, o ProdutoReal expandiu-se à taxa média anual de 8,3%,sendo que, enquanto o setor agrícola cresceu, nestemesmo período, 5,8% em média por ano, aindústria registrou um crescimento médio anualde 10,8%, chegando a atingir, em 1958, aimpressionante taxa de 16,2% de crescimento realcontra apenas 2,1% de crescimento agrícola.

Esses números significaram sem dúvida umaprofunda mudança no estilo de desenvolvimentoda economia brasileira, que até o ano de 1955apresentava o valor total da produção agrícolaacima do valor da produção industrial e que, ainda

em 1950, contava com 57,8% da população (acimade 10 anos) empregada na agricultura.

Viveu-se nesses anos – que coincidiram emboa parte com o período de Governo de JuscelinoKubitschek – o momento de auge do desenvolvi-mentismo, ideologia que nucleou o debate técnicoe político entre as elites autodeclaradas compro-metidas com a “construção da nação”. O desenvol-vimentismo forneceu a base (sobretudo duranteKubitschek) para a organização do discurso e, emboa medida, das práticas das autoridades governa-mentais.

Em sua forma mais pura, o desenvolvimen-tismo pode ser concebido como uma ideologia cujaproposição política básica é a industrializaçãocapitalista planejada e coordenada pelo Estado.Mesmo atribuindo ao planejamento estatal umafunção apenas indicativa, cabendo portanto à ini-ciativa privada as decisões finais de investimento,é inquestionável o papel-chave assumido peloEstado nesse sistema ideológico. Isso decorre prin-cipalmente da constatação de que a livre movi-mentação dos mecanismos de mercado não pos-suía a virtuosidade de desencadear um processovigoroso de industrialização, ainda mais nos paísespertencentes à periferia do capitalismo mundial.Ao Estado (ou, mais precisamente, às suas elites)caberia a tarefa de encontrar e seguir o caminhoda industrialização. Para isso, seriam indispensá-veis as técnicas e conhecimentos produzidos pelaciência econômica, o principal manancial de idéiaspara os planos de desenvolvimento.

Estamos assim diante de três pressupostos bási-cos que constituem os alicerces da ideologia desen-volvimentista. Primeiro, o pressuposto de que aindustrialização, per se, levaria o país a um estágiode desenvolvimento no qual seriam superados osproblemas de desigualdades tanto sociais quantoregionais. Segundo, o pressuposto de que a açãoestatal far-se-ia pautada em critérios de racionali-dade técnica, concebendo, portanto, o Estado comum considerável (talvez excessivo) grau de auto-nomia em relação aos interesses e valores dos dife-rentes grupos e classes sociais. Por último, o pres-suposto de que através das técnicas e conheci-mentos produzidos pela ciência econômica chegar-se-ia ao reconhecimento das necessidades do de-senvolvimento e dos meios pelos quais o atingir1.

1 Até o início dos anos sessenta, esses três pressupostospermaneceram praticamente sem questionamento, o que

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Os anos do Governo Kubitschek refletiram omomento no qual mais intensamente se manifestoua crença na efetividade desses pressupostos.Tivemos o Plano, o Estado ativo e empreendedore o saber dos economistas influenciando os rumosda ação estatal. E tudo isso aparece cristalizadona forma de um documento que viria a ser oprograma oficial de Governo de Kubitschek, oconhecido Plano de Metas.

Formulado por uma equipe chefiada peloengenheiro Lucas Lopes, que viria a tornar-se em1958 Ministro da Fazenda, e pelo economistaRoberto Campos, superintendente do BNDE, oPlano partia de uma série de análises sobre aeconomia brasileira formuladas no âmbito demissões técnicas, dentre as quais se destaca aComissão Mista Brasil-Estados Unidos, realizadaentre 1951 e 1953. O diagnóstico do Plano deMetas partia da idéia de que havia no sistemaeconômico brasileiro determinados “pontos deestrangulamento”, que configuravam a existênciade certas áreas de demanda insatisfeitas einibidoras do crescimento econômico. Os setoresde energia, transportes e alimentação eram con-siderados os principais pontos de estrangulamentona economia brasileira a requererem maciçosinvestimentos.

A programação prevista no Plano de Metasseguia um planejamento de tipo setorial. Essacaracterística o distinguia de propostas de pla-nejamento mais globalizantes, como aquelas advo-gadas pela CEPAL2. Na verdade, apenas algo em

torno da quarta parte da economia estava sujeita àação do Plano, o que facilitava a tarefa política desua implementação, já que o restante do sistemaeconômico poderia acomodar-se segundo os meiostradicionais de alocação de recursos (LAFER,1975, p. 36).

O Plano atuava basicamente em cinco setores:energia, transportes, alimentação, indústrias debase e educação. Entretanto, foram os setores deenergia, transportes e indústrias de base quereceberam maior atenção dos planejadores. Nadamenos que 93,4% dos investimentos inicialmenteprevistos destinavam-se a esses setores. Para osetor de energia, o Plano previa 43,4% doinvestimento total; os de transportes e indústriasde base recebiam 29,6% e 20,4%, respectiva-mente. Cada um dos setores contemplados peloPlano decompunha-se numa série determinada demetas específicas, num total de trinta metas, assimdistribuídas: setor energia – energia elétrica,energia nuclear, carvão mineral, produção depetróleo e refino de petróleo; setor transportes –reaparelhamento de ferrovias, construção deferrovias, pavimentação e construção de rodovias,serviços portuários e de drenagem, marinhamercante e transportes aeroviários; setor alimen-tação – trigo, armazéns e silos, armazéns frigorí-ficos, matadouros industriais, mecanização daagricultura e fertilizantes; setor indústrias de base– siderurgia, alumínio, metais não-ferrosos, cimen-to, álcalis, papel e celulose, borracha, exportaçãode minérios de ferro, indústria automobilística,indústria de construção naval e indústria mecânicae de material elétrico pesado; setor educação –formação de pessoal técnico. Além de todas essasmetas, o Plano destacava, como meta-síntese, aconstrução de Brasília, que mobilizou cerca de 300bilhões de cruzeiros, em preços de 1961.

Pode-se afirmar, enfaticamente, que a pro-gramação prevista no Plano para cada uma dessasmetas foi realizada com êxito. Em alguns casos,como o refino e produção de petróleo, por exem-plo, a meta inicial foi inclusive revista e fixadanum patamar bem mais elevado.

Isso posto, cabe a seguinte pergunta: quefatores permitiram tão surpreendente êxito àimplementação do Plano de Metas? É importante,para começarmos a respondê-la, considerarmosdois aspectos essenciais envolvidos na implemen-tação de qualquer plano de desenvolvimento, quaissejam, a administração e o financiamento do plano.

reflete a intensa hegemonia da ideologia desenvolvimen-tista até então. Para maiores detalhes das diversas fases deevolução da ideologia desenvolvimentista, consultarBIELSCHOWSKY (1988). Este autor percebe três mo-mentos na evolução da ideologia desenvolvimentista: de1930 a 1944, a origem do desenvolvimentismo; de 1945 a1955, o período de amadurecimento da ideologia; de 1956a 1964, o auge e a crise do desenvolvimentismo.

2 Isso, entretanto, não significa que o Plano não teveinfluência de conceitos e técnicas elaborados no âmbitodessa instituição. Basta mencionar a importância dosescritórios BNDE-CEPAL, na formação de quadros parao setor público, cuja atribuição precípua era a formulaçãoe gestão do processo de planejamento. Ademais, não édesconhecida a influência desses escritórios na elaboraçãodo próprio Plano de Metas, que tinha como um de seusprincipais mentores Roberto Campos, presidente doBNDE e um dos diretores do programa conjunto com aCEPAL.

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Com relação ao primeiro aspecto, no que tangeao Plano de Metas, não se pode afirmar que foirequerida qualquer grande reforma administrativacom vistas à sua implementação. Mesmo porqueisso certamente provocaria, se tentado, umpoderoso foco de reação ao Plano, provindo dossetores clientelistas encastelados na máquinaestatal, já que uma reforma nesse sentido im-plicaria uma racionalização do aparelho estatalcontrária às práticas administrativas tradicionais.De resto, não podemos deixar de considerar queessas práticas estavam solidamente arraigadas nosistema político, sendo inclusive, em grande parte,responsáveis pela vitória eleitoral de Kubitschek.Em nenhum outro partido político tais práticaseram tão difundidas quanto no PSD, maior partidodo Congresso e no qual militava Kubitschek.

Na impossibilidade de uma profunda reformaadministrativa que deslocasse os interessesclientelistas, optou-se por seguir uma linha demenor resistência. Enquanto se deixava prati-camente intacta a estrutura administrativa exis-tente, mobilizava-se, na medida das necessidades,uma espécie de administração paralela, formadapela criação de novos órgãos administrativos, taiscomo os Grupos de Trabalho e os Grupos Exe-cutivos, bem como pela maximização das funçõese prerrogativas de órgãos já existentes na estruturaadministrativa, porém considerados “ilhas deracionalidade” no conjunto do aparelho estatal,como o BNDE (Banco Nacional de Desenvol-vimento Econômico) e a SUMOC (Superinten-dência da Moeda e do Crédito). Conforme obser-vou Maria Victória Benevides, em seu estudosobre o Governo Kubitschek, “a administraçãoparalela era um esquema racional dentro da lógicado sistema – evitando o imobilismo do sistemasem ter que contestá-lo radicalmente –, uma vezque os novos órgãos funcionavam como centrosde assessoria e de execução, enquanto que osantigos continuavam a corresponder aos interessesda política de clientela ainda vigente” (BENEVI-DES, 1976, p. 224-225).

Nas funções de coordenação do Plano de Metasjunto ao setor privado, nenhuma instituiçãodesempenhou papel mais relevante que os diversosGrupos Executivos. O caso paradigmático, não sópor se tratar do primeiro Grupo Executivo a sercriado, mas também pela importância do setor aoqual se dirigia, foi o GEIA (Grupo Executivo daIndústria Automobilística), cujas atribuições eramas seguintes: “a) elaborar e submeter ao Presidente

da República os planos nacionais para a fabricaçãode diversos tipos de veículos (caminhões, jeeps,furgões e automóveis); b) examinar, negociar eaprovar os projetos de empresas e providenciar,com os organismos competentes da administração,a adoção de medidas comerciais e de câmbionecessárias à sua realização; c) supervisionar aexecução dos projetos aprovados; d) recomendaràs instituições de crédito a concessão dos financia-mentos necessários; e) promover e coordenar asmedidas complementares para a implantação daindústria” (MARTINS, 1976, p. 419). O grupo erapresidido pelo Ministro dos Transportes e incluíaainda um representante da SUMOC, dois repre-sentantes do Banco do Brasil e um do BNDE.Participavam também do GEIA, desempenhandofunções apenas consultivas (sem direito a voto),representantes empresariais dos diversos setoresda indústria, escolhidos pelo Presidente da Repú-blica a partir de uma lista tríplice enviada pelasassociações de classe.

Se os Grupos Executivos desempenharam umpapel fundamental na coordenação do Plano juntoao setor privado, no que diz respeito ao setorpúblico, esse papel de coordenação coube basi-camente ao BNDE e à SUMOC. Enquanto oBNDE exercia as funções de outorgar emprés-timos estrangeiros, a SUMOC possuía a prerro-gativa de abrir acesso aos favores especiais deimportação e captação de recursos externos3.

Como aponta LAFER (1975, p. 40-41), essesórgãos da administração paralela, incluindo aCACEX e o Conselho de Política Aduaneira, cons-tituíam-se em “órgãos de ponta” da administraçãofederal, possuindo o controle de certas zonas deincerteza geralmente associadas à oferta de tecno-logia e de recursos financeiros, o que aumentavaconsideravelmente os recursos de poder de quemos ocupava.

3 A importância do BNDE na implementação do Planode Metas é assinalada por LESSA (1982, p. 105): “Estebanco de investimento, ponto de passagem praticamenteobrigatório dos programas governamentais, previa,igualmente, uma melhor compatibilidade dos programase decisões assumidos setorialmente, ao manipular suamassa de poderes segundo critérios econômicos superioresaos alcançáveis nas unidades isoladas. Preencheu, assim,o BNDE, de forma não declarada, a função de centro deanálise de programas governamentais, constituindo-se,por mais esta razão, na peça básica da filosofia do Planode Metas”.

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Para melhor avaliar as condições que viabili-zaram o êxito do Plano no que se refere à execuçãode suas metas físicas, e, ao mesmo tempo, para aconsideração de algumas de suas conseqüênciasnão desejadas no plano financeiro, é importanteconsiderarmos as principais características daestratégia de financiamento do Plano de Metas.

O primeiro aspecto a ser destacado é a impor-tância do capital estrangeiro. Desde 1953, as au-toridades governamentais mudaram sua políticaem relação ao capital estrangeiro. Isso se deubasicamente devido a uma maior vinculação daregulação das taxas de câmbio em consonânciacom as necessidades do desenvolvimento eco-nômico, abandonando-se a estratégia de vinculartal regulação à correção do desequilíbrio do ba-lanço de pagamentos, como ocorrera na políticacambial de 1947 a 1953.

A Lei nº 1807 – de janeiro de 1953 – criou ummercado livre de câmbio acessível àquelasexportações que o Governo pretendia estimular.Em outubro do mesmo ano, através de Instruçãonº 70 da SUMOC, foi realizada uma profundareforma no sistema cambial. Essa Instrução e aLei nº 2145 “estabeleceram o sistema de taxasmúltiplas de câmbio, eliminado-se os controlesquantitativos diretos e introduzindo-se o sistemade leilões de câmbio. As importações foramclassificadas em cinco categorias, dependendo doseu grau de essencialidade e a cada uma delascorrespondendo uma taxa de câmbio específica, aser fixada através de leilões dos certificadosemitidos para cada categoria” (BAER, 1985, p.45). Alguns produtos foram enquadrados nacategoria preferencial, podendo sua importação serfeita à taxa de câmbio oficial com o acréscimo deuma sobretaxa determinada pela SUMOC. Era ocaso de produtos como o petróleo e seus derivados,papel de imprensa e uma série de equipamentosconsiderados indispensáveis para a manutençãodo processo de industrialização em curso.

Com a Instrução nº 70, o Banco do Brasilreadquiriu o monopólio de compra e venda demoeda estrangeira. Para todos os produtosexportados, o Banco do Brasil pagava a taxa oficialde câmbio com um acréscimo de 10 cruzeiros pordólar, exceto para o café, cujo acréscimo por dólarera de 5 cruzeiros. Particularmente estimulantepara o ingresso de capitais estrangeiros era a me-dida que estabelecia que “a remessa de lucros, ju-ros e amortizações de investimentos estrangeiros

considerados essenciais ao desenvolvimentoeconômico do país, subordinada à Lei nº 1807,podia ser convertida à taxa oficial acrescida deuma sobretaxa fixada pela SUMOC” (BAER,1985, p. 46).

Porém, a medida de maior impacto no que serelaciona aos estímulos concedidos à entrada decapitais estrangeiros foi a Instrução nº 113 daSUMOC. Baixada durante interregno de CaféFilho, por determinação de Eugênio Gudin, àépoca Ministro da Fazenda, essa medida possibi-litava aos investidores estrangeiros a importaçãode bens de capital sem a necessidade de coberturacambial. Desse privilégio não participavam osinvestidores nacionais. A medida foi mantida elargamente utilizada na administração do Planode Metas. Os projetos eram examinados e apro-vados pela CACEX que, além disso, possuía a fa-culdade de conceder câmbio de custo para a re-messa de rendimentos e amortizações das inver-sões diretas do exterior, até o limite de 10% docapital registrado da empresa, aos empreendimen-tos julgados de interesse para o desenvolvimentoda economia nacional.

Complementando esses instrumentos legaisestimulantes para o ingresso de capitais es-trangeiros, verificou-se a importante atuação doBNDE como avalista, junto às instituições finan-ceiras internacionais, para os empresários dispos-tos a seguir as diretrizes do Plano.

Para se ter uma idéia do que representaram osrecursos estrangeiros para o financiamento doPlano de Metas, basta lembrar que, em 1955,aqueles setores contemplados no Plano receberamfinanciamentos externos num total de 79,4 milhõesde dólares. Esses recursos alcançaram 253,4milhões, em 1956; 234,7 milhões, em 1957; 392,4milhões, em 1958; 354,7 milhões, em 1959; 242,1milhões, em 1960. Os investimentos diretos licen-ciados pela CACEX tiveram a seguinte evolução:31,3 milhões de dólares, em 1955; 57,7 milhões,em 1956; 108,2 milhões, em 1957; 82,5 milhões,em 1958; 65,8 milhões, em 1959; e 106,8 milhões,em 1960 (cf. LESSA, 1982). Cabe notar que essesfinanciamentos e investimentos diretos eram pre-dominantemente norte-americanos, seguidos doscapitais da Alemanha Ocidental, França e Ingla-terra. Somente em 1958, ano de maior dinamismono Plano de Metas, os capitais norte-americanospara financiamento atingiram a quantia de 285,9milhões de dólares, enquanto os investimentos

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diretos foram de 55,4 milhões.

Além dos recursos externos, outra importantefonte de financiamento para o Plano de Metas

encontrava-se no setor público. O quadro abaixomostra a evolução da participação do setor públicono dispêndio total.

Como se pode observar, a participação dosinvestimentos do setor público mais do que du-plicou entre os extremos do período, refletindo,sobretudo nos anos de implementação do Planode Metas, o grande esforço realizado pelo Estadona formação bruta de capital fixo, que teriacrescido, segundo estimativas da FGV, de 25,6%no período de 1953/56 para 37,1% durante os anosde implementação do Plano.

DISCRIMINAÇÃO 1947 1950 1955 1956 1957 1958 1959 1960

Consumo Público 10,7 12,7 13,6 14,7 14,5 13,8 13,6 14,2

Transferências 3,6 3,9 4,7 5,4 5,6 5,1 5,4 5,3

Subsídios 0,1 0,2 0,2 0,5 0,5 1,1 0,7 0,7

Investimentos 2,7 4,6 3,4 3,3 4,8 5,6 5,2 5,7

TOTAL 17,1 21,5 21,9 23,9 25,4 25,6 24,9 25,9

Tabela 1. Participação percentual do setor público no dispêndio total

Fonte: Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social (1963-1965)

A questão, entretanto, que no momento maisnos interessa, é a seguinte: qual a origem dosrecursos que possibilitaram ao setor público arealização de tal esforço de investimento? Desdejá cabe frisar que o total da arrecadação tributáriasequer foi suficiente para cobrir os gastos com oconsumo público, subsídios e transferênciasdurante o período, como pode ser observado noquadro abaixo.

Tabela 2. Participação, no produto, da arrecadação tributária e dos gastos públicos, exclusive investimentos

Fonte: Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social (1963-1965)

DISCRIMINAÇÃO 1950 1955 1956 1957 1958 1959 1960

A) Arrecadaçãotributária

14,3 16,5 20,0 18,4 19,6 20,0 18,8

B) Consumopúblico, subsídios etransferências

15,8 18,5 20,6 20,6 20,0 19,7 20,2

Porcentagem A/B 90 89 97 90 98 101 93

Parece claro que, do ponto de vista fiscal, oEstado estava desaparelhado para os investimentosprevistos no Plano de Metas. A saída teria de seroutra.

A forma de financiamento dos investimentosdo setor público, durante os anos de euforiadesenvolvimentista, explica, em grande medida,a deterioração da situação financeira do país jános últimos anos do Governo Kubitschek. A debi-lidade da base tributária, de um lado, e a ausênciade um mercado de capitais que permitisse, juntoao setor privado, a captação do montante derecursos financeiros exigidos pelo crescimento dasinversões estatais, de outro, levaram o Governo a

uma saída não muito ortodoxa para o financia-mento dos crescentes déficits de caixa: as emissõesde papel-moeda.

O recurso a esse expediente fazia-se ainda maisnecessário em decorrência das constantes refor-mulações operadas no mecanismo cambial comvistas a estimular o setor exportador. É que o Go-verno foi progressivamente eliminando o sistemade taxas múltiplas de câmbio e, junto com ele,uma importante fonte de recursos fiscais para osetor público, proveniente das receitas líquidasobtidas através das diferenças de câmbio. Para seter uma idéia do que isso significou em termos deperda de arrecadação para o caixa do Tesouro, bas-

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ta mencionar que, em 1956, esses recursosrepresentavam 42% da receita orçamentária,caindo para 2%, em 1960, e desaparecendocompletamente em 1961.

Assim, as emissões monetárias acabavam por

se constituírem na única forma disponível de oGoverno atuar no sentido de cobrir os seus déficitsde caixa. O quadro abaixo resume a dramaticidadecrescente da situação, nos anos relativos àimplementação do Plano de Metas.

Tabela 3. Déficit de caixa orçamentário do governo federal e emissões de papel moeda (em Cr$ bilhões)

Fonte: Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social (1963-1965)

DISCRIMINAÇÃO/ANO 1956 1957 1958 1959 1960 1961

A) Déficit de caixa orçamentário doGoverno Federal 27,8 39,8 26,5 53,7 77,7 130,4

B) Emissões de papel-moeda 11,5 15,8 23,2 34,8 51,5 107,8

PORCENTAGENS

B/A 41,4 39,7 87,5 64,8 66,3 82,7

A/B 3,1 3,8 2,1 3,0 3,2 3,7

Feitas essas breves considerações sobre a for-ma pela qual se logrou obter recursos para ofinanciamento do ambicioso Plano de Metas,cabem agora alguns comentários acerca dasconseqüências derivadas da utilização dessesesquemas de financiamento.

No que diz respeito às fontes originárias docapital estrangeiro, era de se esperar um crescentegrau de endividamento externo, bem como umaconstante elevação da remessa de lucros e divi-dendos dos capitais forâneos que aqui se insta-laram durante o período do Plano de Metas. Foi oque de fato ocorreu. Isso redundaria, nos anos deimplementação do Plano, num progressivoagravamento da situação do balanço de paga-mentos, que, após 1956, apresentou-se deficitárioem todos os anos restantes do Governo Ku-bitschek, obrigando o Governo a lançar mão deexpedientes de regularização de curtíssimo prazoque apenas transferiam de maneira ampliada osproblemas para os anos imediatamente seguintes.

Entretanto, é no front interno que se concentra-ram os principais desequilíbrios gerados. Estes,além de refletirem o agravamento da situaçãoexterna, eram também decorrentes do esquema definanciamento dos déficits estatais, oriundos doesforço de investimento realizado para a imple-mentação do Plano de Metas. Tais desequilíbriosencontram sua síntese no fenômeno inflacionário.No primeiro ano de implementação do Plano deMetas, a taxa de inflação registrou um crescimentode apenas 7%. Contudo, nos anos posteriores, aevolução foi a seguinte: 24,3%, em 1958; 39,5%,em 1959; 30,5%, em 1960; 47,7%, em 1961;

51,3%, em 1962; e 81,3%, em 1963.

Se o recurso à administração paralela repre-sentou a opção do Governo por uma linha demenor resistência diante das previsíveis dificul-dades de uma ampla reforma administrativa, ofenômeno inflacionário foi o resultado também deuma opção por uma linha de menor resistência nadimensão do financiamento do Plano. Aindaconforme o já citado estudo de Benevides, “a in-flação foi a alternativa mais viável para financiaro Programa de Metas e a construção de Brasília,uma vez que a reforma tributária (o que significariameios coercitivos para levantar por vias fiscaisamplos recursos de investimentos) seria politi-camente impossível” (BENEVIDES, 1976, p.236).

O agravamento da situação inflacionária apartir de 1958 colocou um grande problema paraos formuladores e gestores da política econômicado Governo. Como obter a redução das taxas deinflação sem comprometer a implementação doPlano de Metas? Em que medida é possívelconciliar um programa de estabilização com umapolítica de intenso desenvolvimento econômico?

III. O PLANO DE ESTABILIZAÇÃO MONE-TÁRIA (1958-1959) E A ASCENSÃO DAMETA DA ESTABILIDADE

Concebido por uma equipe chefiada por LucasLopes e Roberto Campos, os mesmos formu-ladores do Plano de Metas, o Plano de Estabi-lização Monetária (PEM) pode ser considerado aprimeira tentativa de guinada na concepção dapolítica econômica oficial. Ainda que tenha sido

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abandonado por força de reações políticas várias(como veremos a seguir), o fato é que esse Planotrazia para o âmbito do Governo o conflito, já en-tão amplamente debatido nos meios técnicos, entreestabilidade e desenvolvimento. Mesmo que seadmitisse correta a hipótese de que o PEM pro-curava a estabilização sem comprometer aspolíticas de desenvolvimento do Plano de Metas,não resta dúvida de que a sua proposição repre-sentou uma ascensão do objetivo “estabilidade”na escala de prioridades dos formuladores e ges-tores da política econômica. E sua trajetóriamostrou as grandes dificuldades da conciliaçãodesse objetivo com o até então predominanteobjetivo de desenvolvimento econômico.

Poucos meses antes do surgimento do PEM,ainda na gestão de José Maria Alkimin no Mi-nistério da Fazenda, as autoridades governa-mentais brasileiras, através do referido Ministro,estabeleceram um acordo com o Fundo MonetárioInternacional comprometendo-se com umapolítica antiinflacionária concebida dentro dosmoldes estritos dos esquemas do Fundo. Emcontrapartida à liberação de créditos stand-by doFMI, do EXIMBANK e de bancos privados norte-americanos, Alkimin comprometia-se a imple-mentar uma política antiinflacionária de corte niti-damente ortodoxo, com as seguintes caracte-rísticas: cortes indiscriminados dos gastos públicos(tanto nos gastos com o consumo corrente quantonos gastos com investimentos), restrição salarial,reversão na política de financiamento dos estoquesinvendáveis de café4, suspensão dos créditos su-plementares europeus e desmantelamento do sis-tema cambial adotado em 1956. Todas essaspolíticas eram evidentemente contrárias ao espíritodo Plano de Metas. Como salienta SOLA (1982,p. 154), é até provável que Alkimin desconfiassedessa incompatibilidade, mas também era in-contestável o seu despreparo técnico, o que expli-caria, juntamente com a grave situação externado Brasil naquele momento, a efetivação do acor-do como um ato de desespero em busca dos cré-ditos externos.

Em junho de 1958, cercado de críticas por terfracassado na tarefa de obter novos financiamentosexternos, além de ter agravado os problemasinflacionários e do balanço de pagamentos, JoséMaria Alkimin foi substituído pelo engenheiroLucas Lopes.

O novo Ministro da Fazenda imediatamentepercebeu a impossibilidade do cumprimento doacordo feito pelo seu predecessor sem o conse-qüente abandono do Plano de Metas. Entretanto,o problema da estabilidade estava colocado e exi-gia uma resposta imediata das autoridades. Alémdas visíveis perturbações ocasionadas pela infla-ção no plano interno, havia a necessidade de daruma resposta, no plano externo, à comunidade fi-nanceira internacional - representada principal-mente pelo FMI - caso se pretendesse obter os fi-nanciamentos necessários à continuidade doprograma desenvolvimentista de Kubitschek. Poruma e outra razão, os novos gestores da políticaeconômica não podiam dispensar a tentativa deimplementação de um plano de estabilização. OPEM (1958-1959) deveria cumprir essa função.

Do ponto de vista técnico, em que diferia oPEM do esquema de estabilidade firmado noacordo com o FMI? Basicamente no seu gra-dualismo. Como se sabe, os programas de esta-bilização do FMI eram invariavelmente baseadosem “tratamentos de choque”, ou seja, propunhamuma redução abrupta da demanda global, atravésde expedientes como o corte indiscriminado nogasto público, forte restrição salarial, elevadacontenção de crédito ao setor privado etc. NoPEM, todos esses expedientes estão presentes decerta forma. Entretanto, a dosagem imposta àcontenção da demanda global era bem menor ediluída no tempo. Essa terapia antiinflacionária éque caracteriza o chamado “gradualismo” nocombate à inflação. Assim, ao invés do cortedrástico nas emissões monetárias, proposto peloFundo, o PEM previa uma redução paulatinadessas emissões, de modo que de 15,3% previstospara 1958, estas deveriam reduzir-se a 10% em1959, e a 5% em 1960. As razões para essa terapiagradualista estão ligadas à convicção firmada naépoca de que o tratamento de choque seriaextremamente danoso ao processo de desenvol-vimento. Esse é, por exemplo, o conteúdo dacrítica feita por Roberto Campos às políticas doFMI, quando esse economista se referia à faláciaagregativa apregoada por essa instituição. Haveria,segundo Campos, a necessidade de diferenciar

4 Vale lembrar que a partir de 1956 iniciou-se um novociclo de superprodução de café, obrigando o Governo aseguir uma política de garantia dos preços do produtocuja conseqüência principal foi a geração de um im-portante foco de pressão inflacionária.

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dentre os gastos públicos aqueles destinados aoinvestimento dos gastos com consumo. Se era ver-dade que os gastos excessivos com consumopoderiam levar a uma elevação inflacionária dademanda global, também não se poderia descon-siderar a importância dos gastos do Estado cominvestimentos, sobretudo nos chamados “pontosde estrangulamento”, para a continuidade dodesenvolvimento. Sendo assim, qualquer políticaantiinflacionária que concebesse o gasto públicoagregadamente, isto é, sem a distinção salientadapor Campos, estaria inevitavelmente impondo sa-crifícios desnecessários ao crescimento econô-mico.

Embora as diferenças do PEM em relação aoprograma do FMI fossem visíveis, a ponto do FMIter adotado uma política de “esperar para ver”, aoinvés de apoiá-lo definitivamente, atendendoassim ao apelo dos formuladores do programa, taisdiferenças não devem ser superdimensionadas,pois, “despite the gradualist strategy for com-batting inflation and the balance of paymentsdeficit, intented to deflect possible politicalresistence on the domestic front, the nature andthe extent of the measures proposed seemed tomeet the requirements of the IMF” (SOLA, 1982,p. 168). Em contrapartida, os formuladores doPEM esperavam o aval do Fundo para um novoempréstimo norte-americano de 300 milhões dedólares.

Contudo, justamente devido a esse seu caráterconciliador para com o capital estrangeiro re-presentado pelo FMI, o PEM passou a sofrer umagrande reação, no plano interno, principalmentedos setores identificados com o nacionalismo.Skidmore resume bem o clima político daquelaconjuntura: “a reação à pressão estrangeira estavamuito disseminada. Augusto Frederico Schmidt,que Kubitschek enviou a Washington em 1958, afim de auxiliar as negociações de um financia-mento adicional, e que não era de modo algumesquerdista (defendia veementemente o inves-timento privado estrangeiro, por exemplo), atacouviolentamente as exigências irrealistas do FMI.Entre alguns dos conselheiros de Kubitschek pai-rava um forte ressentimento quanto à recusa doGoverno dos Estados Unidos em responder àOperação Pan-Americana, proposta um ano antes.[...] A reação antiamericana era compartilhada portoda a imprensa brasileira, inclusive entre ele-mentos não exclusivamente ‘nacionalistas’. Emmaio de 1959, o vice-Presidente Goulart acusou

os lucros excessivos das firmas de propriedade es-trangeira de provocarem os problemas econômicosno Brasil, dando com isso novo reforço dentro doPTB à posição nacionalista extrema que Vargastinha sempre endossado durante sua própria criseanti-inflacionária” (SKIDMORE, 1979, p. 222).

Além dessas reações mais difusas, movidas porprincípios ideológicos, o PEM sofreu também areação daqueles setores imediatamente afetados,em seus interesses econômicos e corporativos,com as políticas restritivas do Plano. Era o casodos cafeicultores, que tiveram seus interesses feri-dos com a mudança da política protecionista decompra de excedentes de café para uma políticade proteção mais austera. A maior demonstraçãode descontentamento desse setor em relação à novapolítica econômica foi planejada para serexecutada em outubro de 1958, episódio que ficouconhecido como a “marcha da produção”. Foi atentativa dos cafeicultores paulistas de promoveruma passeata motorizada, envolvendo milhares deveículos, que só não foi realizada devido à açãode bloqueio executada pelo Exército, cumprindodeterminação do Ministro da Fazenda (SOLA,1999, p. 205). O descontentamento desse setorfazia-se presente ainda em órgãos da grandeimprensa, como no jornal O Estado de São Paulo,e sobretudo no Congresso Nacional, composto porinúmeros representantes dos cafeicultores.

Também os industriais opuseram-se às me-didas impostas pelo PEM. A restrição do créditobancário foi a principal fonte de descontentamentodesse setor, que veiculava suas críticas à políticaeconômica de Lopes e Campos através de perió-dicos como a revista Desenvolvimento e Conjun-tura, órgão da Confederação Nacional da Indús-tria, no qual se propunha um programa de esta-bilidade com desenvolvimento, seguindo um ca-minho alternativo ao proposto pelo PEM.

Já os periódicos de caráter mais liberal como arevista Conjuntura Econômica e o Digesto Eco-nômico – este último uma publicação técnica daFederação Comercial de São Paulo – passaram amover uma campanha contra a “estatização”,criticando sobretudo o grande poder atribuído aoBNDE no direcionamento das verbas do Plano deMetas, que dava prioridade aos investimentospúblicos, fato que causava certo descontentamentono setor privado, ainda mais diante da restriçãocreditícia imposta pelo PEM.

Em face de todas essas formas de reação ao

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Plano de Estabilização Monetária, é compreen-sível que Kubitschek, um político com muitos in-teresses em jogo, mudasse sua posição em relaçãoao mesmo. A troco de que, afinal, comprometeriaseus dois últimos anos de mandato presidencialcom um programa de estabilização que até entãosó lhe tinha trazido dificuldades? Certamente, essanão seria a atitude mais aconselhável para umpolítico que tinha a pretensão de, em breve, re-tornar à Presidência da República. Deveria evitarser visto pela “Nação” como um fraco diante dos“interesses estrangeiros”. E ainda assim, com elecorrendo todos esses riscos políticos, o FMIcontinuava “esperando para ver”, a Operação Pan-Americana continuava sem resposta... Kubitscheknão hesitou. Em junho de 1959, determinou quese encerrassem as negociações com o FMI,rompendo oficialmente com aquela instituição.Pouco depois, em agosto, desferia o golpe fatalno PEM, demitindo a equipe responsável pelaelaboração e implementação do Plano. LucasLopes dava lugar a Sebastião Pais de Almeida, noMinistério da Fazenda, enquanto Roberto Camposera substituído por Lúcio Meira, no BNDE.

IV. O INTERREGNO QUADROS E A REFOR-MA CAMBIAL DE 1961

Em janeiro de 1961, a UDN, principal partidode oposição à política varguista, saiu vitoriosa,pela primeira vez desde sua criação, de umaeleição presidencial. Endossando a candidatura deum político carismático e com forte apelo popu-lista, filiado ao inexpressivo PTN (PartidoTrabalhista Nacional), o eterno “Partido daOposição” parecia disposto a riscos e sacrifíciospara a conquista do poder. Porém, para a preo-cupação dos udenistas, Jânio Quadros, o novoPresidente, não era o que se poderia chamar deum “homem de partido”. Sua carreira política foimarcada pelo seu espírito populista, temperadocom uma grande dose de imprevisibilidade emseus atos. Irreverente e intempestivo, elegeu-secom o discurso de moralização do país, apoiadopor políticos como Carlos Lacerda e MagalhãesPinto, que certamente sabiam os riscos de apoiartal candidatura. As palavras de Magalhães Pinto,na convenção da UDN que homologou o nomede Quadros, deixam transparecer a preocupaçãodesse líder udenista em relação à imprevisibilidadede Quadros: “O deputado Jânio Quadros, aoaceitar sua candidatura pela legenda do partidode Eduardo Gomes [...] assume, perante a Nação,graves responsabilidades. Responsabilidade que

lhe põe nas mãos o maior partido de homens livresdo Brasil - o Partido da Oposição. A responsa-bilidade de enfrentar como líder popular umacampanha que se travará num ambiente deperplexidade e de crise. Crise institucional. Crisepolítica. Crise econômico-financeira. Crise dedesenvolvimento. Crise social” (VICTOR, 1965,p. 53). A responsabilidade na qual tanto insisteMagalhães Pinto reflete, a nosso ver, o receio àimprevisibilidade de Quadros. Em seu curto perío-do de Governo, ele apenas confirmou esse seucaráter imprevisível, conseguindo rapidamentetransformar seus aliados de campanha em inimigospolíticos.

Com a negativa de Kubitschek em seguirqualquer programa antiinflacionário após afalência do PEM, a situação econômico-financeiradeteriorou-se bastante nos dois últimos anos deseu Governo. Devido à redução da entrada de cré-ditos externos com longos prazos de amortizaçãoque se seguiu à ruptura entre o Governo e o FMI,passou a predominar, como vimos, a contraçãode empréstimos a serem amortizados no curtíssimoprazo, grande parte dos quais vencendo no pri-meiro ano de Governo de Jânio Quadros. O Presi-dente eleito não deixou passar despercebida aresponsabilidade de seu antecessor na geração dagrande crise econômico-financeira que ele teriade enfrentar. Em seu discurso de posse, realizadoem 31 de janeiro de 1961, Quadros esboça oquadro financeiro que herdara: “É terrível a situa-ção financeira do Brasil. Nos últimos cinco anos,o meio circulante passou de 57 bilhões para 206bilhões de cruzeiros [...] devemos ao estrangeiro3 bilhões e 802 milhões de dólares, o que marca,só a este título e naquele período, a elevação de 1bilhão e 435 milhões de dólares sobre o passivoanterior. E a situação é tanto mais séria quando sesabe que, somente durante o meu Governo, deve-mos saldar compromissos em moeda estrangeirano total de cerca de 2 bilhões de dólares” (apudVICTOR, 1965, p. 80-81).

Jânio Quadros, que negava qualquer papelpositivo à inflação, estando suas concepçõeseconômicas mais próximas dos “monetaristas” doque dos “estruturalistas”5, comprometia-se, já em

5 Na conjuntura do início dos anos sessenta, o controlesobre a política econômica oficial, principalmente sobrea política antiinflacionária, era disputado por basicamente

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sua campanha eleitoral, com a restituição da“verdade cambial” como principal expediente paraacabar com a inflação. Coincidentemente (ou não),a reforma cambial era um dos requisitos semprerecorrentes do FMI para a efetivação de seusacordos com o Brasil. Seguramente, naquelemomento, o reatamento das relações brasileirascom aquela instituição passaria pelo cumprimentoda exigência de mudança no mecanismo de câm-bio.

A opinião da elite empresarial passou a forta-lecer as intenções de Quadros a esse respeito. Noinício de março, uma delegação do CONCLAP(Conselho das Classes Produtoras) entregou aoPresidente um documento contendo sugestões paraum plano de desenvolvimento, no qual se destacaa necessidade imperiosa de liberalização do câm-bio (CORREIO DA MANHÃ, 07/03/1961). Logoem seguida, o Correio da Manhã, importante jor-nal carioca, publicou editorial incentivando Qua-dros a tomar tal atitude (CORREIO DA MANHÃ,08/03/1961).

Finalmente, no fim da primeira quinzena demarço, Quadros apareceu em cadeia de rádio eTV para apresentar as novas medidas ao público.Inicialmente, fez um resgate das medidas deeconomia que já estava colocando em prática: “Asduas jornadas do funcionalismo, o corte de 30%nas despesas ministeriais e autárquicas, o rigor im-

posto nas despesas industriais do Governo e, porisso, do povo, a redução dos gastos das forças ar-madas, inclusive em sua representação no exterior,a diminuição dos vencimentos dos diplomatas e asupressão dos escritórios comerciais são exemplosde economia”. Em seguida Quadros acrescentou:“Mas a volta à realidade salarial deve ser com-plementada pela eliminação da mentira do câmbio.O problema cambial de longo prazo no Brasil é oda insuficiência crônica das nossas exportações -que até diminuem - ao passo que cresce continua-mente a necessidade de importar quantidades cadavez maiores de combustível, matérias-primas emesmo de alimentos. O problema imediato desteano e do próximo será insolúvel sem a cooperaçãoou ajuda financeira internacional” (CORREIO DAMANHÃ, 14/03/1961). Vejamos em que consistiabasicamente a Reforma.

Implementada pela Instrução nº 204 daSUMOC, a Reforma eliminou o sistema de taxasmúltiplas de câmbio e instituiu uma taxa única demercado para todas as transações comerciais (ex-cetuando-se apenas café e cacau). O câmbio decusto (taxa cambial subsidiada) dobrou seu valor,passando de 100 para 200 cruzeiros por dólar, oque reduzia em muito o subsídio àquelas importa-ções que permaneciam na categoria preferencial,como trigo, petróleo, papel de imprensa, fertili-zantes, inseticidas e bens de capital não produzidosinternamente. “A reforma, por outra parte, desti-nava-se a reequacionar as condições de financia-mento do setor público, cujos déficits eram vistoscomo um dos principais responsáveis pelas eleva-das taxas de inflação observadas no período. Nestesentido foi instituído o depósito prévio às impor-tações que, ademais de operar como instrumentode discriminação, representava uma fonte adicio-nal de recursos para o setor público. Além disso,foi criado o recolhimento obrigatório sobre expor-tações que significava, na prática, a formalizaçãode um esquema de tributação sobre as exportações.Por fim, o simples reajustamento da taxa de câm-bio dava origem a uma maior arrecadação do im-posto de exportação” (CRUZ, 1980, p. 15). Assim,apesar da Reforma eliminar uma importante fontede recursos para o Tesouro, proveniente do sistemade leilões de cambiais, o efeito imediato tanto parao orçamento público quanto para o balanço de pa-gamentos parece ter sido positivo6.

duas correntes do pensamento econômico da época. Deum lado, os “monetaristas”, afirmando que as causas dainflação eram essencialmente de ordem monetária, resu-mindo-se, em última análise, ao crescimento da ofertamonetária em proporção superior ao crescimento da pro-dução real. Desse modo, a terapia preconizada pelos“monetaristas” centrava-se na idéia de um comportamentorigoroso das autoridades monetárias em relação ao déficitpúblico, à oferta de crédito, à expansão do meio circu-lante, além da política de compressão dos salários. Os“estruturalistas”, por outro lado, sustentavam que tais me-didas representavam apenas expedientes superficiais nocombate às reais causas da inflação. Para esta corrente deeconomistas, em geral ligados à escola da CEPAL, a in-flação seria, para além de um fenômeno puramentemonetário, um fenômeno decorrente de desajustamentosestruturais inerentes ao desenvolvimento econômico dospaíses subdesenvolvidos. Assim, a única terapia antiinfla-cionária capaz de combater as causas da inflação seria arealização de um conjunto de “reformas estruturais”,destacando-se a reforma agrária, a reforma fiscal pro-gressiva, a reforma administrativa e a reforma bancária.Para maiores detalhes sobre esta controvérsia ver:HIRSCHMAN (1967), CRUZ (1980), SILVA (1992). 6 “The elimination of the auction system, which had

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No plano externo, as medidas efetuadas porJânio Quadros foram vistas com bons olhos pelacomunidade financeira internacional. Prova dissofoi o sucesso das negociações que se realizavamcom os bancos americanos e europeus, pelosembaixadores Walter Moreira Sales e RobertoCampos, respectivamente. A missão norte-ame-ricana foi particularmente bem-sucedida, apre-sentando, segundo Sochaczewski, os seguintesresultados: “From the IMF Brazil was granted astand-by credit of US$ 160 million and roll-overof previous compensatory loans due in 1961. Fromthe EXIMBANK a US$ 168 million credit wasobtained together with the re-scheduling of US$212 million of compensatory loans and US$ 92million debts from Banco do Brasil with theAmerican bank. A US$ 100 million credit waseven granted by IDA which wasn’t yet entirelyestablished. From private banks Brazil got a US$48 million credit apart from rolling-over US$ 200million from the 1954 loan and consolidatingcommercial arrears to oil suppliers to the amountof US$ 45 million” (SOCHACZEWSKI, 1980,p. 193; grifo no original).

A missão européia, por seu turno, emboramenos produtiva, ainda obteve créditos stand-byno montante de 110 milhões de dólares, além deconseguir uma rolagem de dívidas anteriores novalor de 170 milhões de dólares.

O resultado dessas negociações, conjugadocom o incremento das exportações devido àsmedidas da Reforma Cambial, foi a sensívelmelhora do balanço de pagamentos que se mostrousuperavitário em 1961.

Também imediatamente após a promulgaçãoda Instrução nº 204, a elite empresarial parece tertido uma reação bastante favorável às novasmedidas. Rui Gomes de Almeida, presidente daAssociação Comercial do Rio de Janeiro, defendeua medida dizendo que eram “velhas aspirações das

classes produtoras”. Enquanto isso, o presidentedo CONCLAP, Enéas Almeida Fontes, dizia oseguinte sobre a medida: “Aplaudo, comoPresidente do CONCLAP, a Instrução 204, e estoucerto de que as classes produtoras - comércio,indústria, bancos, seguradoras, das categorias deempregados e empregadores, enfim, todos quantossão representados pelo CONCLAP - encontram-se dispostos a formar na primeira linha paraassegurar, na área do livre empreendimento, oêxito das medidas contidas na Instrução”(CORREIO DA MANHÃ, 15/03/1961).

Entretanto, a reação da elite política não foidas mais positivas com relação à Reforma,sobretudo entre aqueles situados no camponacionalista. A medida foi vista como uma inteirasubmissão aos interesses do FMI, despertandoreações críticas mesmo de políticos não tãoradicais em seu nacionalismo como José MariaAlkimin, que teria dito na ocasião em que tomouconhecimento da medida: “Este Governo nãodurará muito” (apud SOLA, 1982, p. 219).Inclusive os militares publicaram um manifestocriticando a política de Quadros, dentre outrascoisas, por ser lesiva aos “interesses da Nação”.

Porém, o mais contundente golpe na políticade estabilização de Quadros adveio dos própriosefeitos adversos que a Reforma gerou no ritmoinflacionário. Com a eliminação dos subsídios àimportação de trigo e petróleo, os preços internosdesses produtos subiram imediatamente,depreciando muito a popularidade do Presidente.

Quadros procurava neutralizar essas reaçõesque se esboçavam no campo nacionalista epopular, executando a chamada “política externaindependente”. Esta consistia em um não-alinhamento automático no conflito que opunhaos blocos capitalista e socialista. Essa orientaçãodo Itamarati provocou, em diversos momentos, airritação do Governo norte-americano, como naquestão cubana, ao mesmo tempo em que,internamente, desencadeou as reações da direitacivil e militar, que via na aproximação do Brasilcom os países socialistas a traição de seus “ideaiscristãos e democráticos”.

Atacando “valores” e “interesses” da esquerdae da direita, Quadros parecia querer colocar-seacima desses extremos do espectro político. Aomesmo tempo em que realizava a política eco-nômico-financeira ortodoxa, cuja expressão má-xima, além dos apertos creditício e salarial, foi a

generated financial resources for the government in thepast, was counter-balanced by the fiscal measures linkedto the exchange reforms. The compulsory sale of importbills produced an additional Cr$ 67 m in 1961, and theincrease of 100 per cent in the price of foreign exchangefor subsidized imports meant that taxes on importsgenerated Cr$ 37,7m in 1961, in comparison with Cr$22m in 1960; an increase of 64 per cent compared withan increase of only 34 per cent in external taxes” (SOLA,1982, p. 216).

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Instrução nº 204, despertando a reação à esquerda,Quadros chegava mesmo ao limite da provocaçãogratuita para com a direita, como no episódio dacondecoração do líder revolucionário ErnestoGuevara, com a Ordem do Cruzeiro do Sul. Pa-recia querer travar seus embates políticos somentena arena internacional. Aos políticos locais nadateria a dizer. Depositava extremada confiança nosquase seis milhões de votos que obtivera. Mas nãose perguntou, senão quando já era tarde demais,se o “povo” ainda estava com ele. A verdade éque por detrás da aparente fortaleza que suasatitudes sugeriam, ocultava-se uma situação, defato, de extrema fragilidade política. A supostavocação para o diálogo com as demais nações eraapenas reflexo invertido de uma incapacidadequase absoluta para o diálogo com as forças po-líticas na arena interna. Conforme notou umanalista político na época: “Durante todo o seuGoverno, e antes mesmo dele, o Sr. Jânio Quadrosinsistiu em se colocar acima da direita e da es-querda, numa posição de árbitro a distribuir justiçasalomônica [...], mas sem contar com uma forçapolítica própria ou com um dispositivo militarconvertido às suas idéias e à sua ação. Seu equi-líbrio político era, portanto, extremamente instá-vel” (MARTINS, 1962, p. 10). E o ponto críticodessa instabilidade manifestou-se no episódio desua renúncia. Independentemente de suasveleidades conspiratórias, o ato de Quadros deveser entendido como o resultado da debilidade desua situação política. Praticou, de fato, um “suicí-dio sem sangue”. Mas o “povo”, acostumado aemoções mais intensas, não se sentiu estimuladoa sair às ruas clamando por seu nome7.

V. O PLANO TRIENAL E A TENTATIVAFRUSTRADA DE CONCILIAÇÃO

A renúncia do Presidente Quadros, em agostode 1961, abriu um período de crise que só seriaencerrado com o golpe militar de 1964. O paísingressava em uma conjuntura que combinaria,em doses crescentes, radicalização e polarizaçãopolítica e ideológica com o aprofundamento dacrise econômica.

A conseqüência imediata da renúncia foi umagrave crise política e institucional que lançou o

país à beira de uma guerra civil. Talvez emoposição às reais intenções de Quadros, o Con-gresso aceitou imediatamente seu pedido derenúncia e o povo não saiu às ruas clamando porseu nome. Tendo em vista o fato de que, naquelemomento, o vice-Presidente João Goulart encon-trava-se em visita à China comunista, o Congressoempossou Ranieri Mazzili, Presidente da Câmarados Deputados e sucessor constitucional naausência do vice-Presidente.

No mesmo momento em que Goulart decidiuretornar rapidamente ao Brasil para assumir ocargo que a Constituição lhe conferia, os Ministrosmilitares divulgam um manifesto ao país no qualprocuram apresentar as razões da “absolutainconveniência, na atual situação, do regresso aopaís do vice-Presidente” (apud VICTOR, 1965,p. 348). Abriu-se com isso o episódio que ficoudenominado a “crise da legalidade”. Dispuseram-se em lados opostos os favoráveis e os radical-mente contrários à posse de Jango. Desafiandofrontalmente as intenções da alta hierarquiamilitar, um amplo conjunto de organizações eforças políticas articularam-se para garantir oapoio ao cumprimento da Constituição e a possede Goulart. Leonel Brizola, governador do RioGrande do Sul, cunhado e correligionário deJango, orquestrava a “rede da legalidade”, quetransmitia, via rádio, discursos inflamadosincitando a população a garantir, com armas senecessário, a posse do vice-Presidente.

O Palácio Piratini, sede do Governo gaúcho,tornou-se o foco da resistência legalista. PortoAlegre era uma cidade sitiada naqueles dias dofim de agosto de 1961, uma cidade preparada paraa guerra civil. A campanha pela legalidade con-quistava um crescente número de adeptos entreintelectuais, governadores de estados, estudantes,trabalhadores urbanos, camponeses etc. Mas aprincipal adesão foi a do comando do III Exército,chefiado pelo General José Machado Lopes.

O III Exército, que comandava as tropassituadas nos três estados da região sul, declarou-se insubordinado às ordens do Ministro da Guerra.Isto ocorreu no exato momento em que o ministrodeu ordens de bombardear o Palácio Piratini comvistas ao desmantelamento da resistência encabe-çada por Brizola. O general Machado Lopes reagiuprontamente, afirmando que não mais cumpririaas ordens de seus superiores hierárquicos. E aindamais: resistiria lutando ao lado do povo e do gover-

7 Sobre a evolução dos acontecimentos que se ante-ciparam à renúncia de Quadros, ver: VICTOR (1965);BANDEIRA (1979); AFFONSO (1988).

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nador Brizola e só obedeceria as ordens do chefeconstitucional das forças armadas, o PresidenteGoulart.

Imediatamente o Ministério da Guerra divul-gou uma nota à imprensa na qual se afirmava que“o Exército está coeso em torno da autoridade doMinistro da Guerra e conta com o apoio unânimedas outras Forças Armadas”. Mas de fato o queocorria era um processo de cisão crescente nointerior das Forças Armadas. Além do III Exército,as forças legalistas ganhavam a adesão de umasérie de outras forças militares dissidentes docomando geral das forças armadas, como foi ocaso dos oficiais do 2o Batalhão de Caçadores deSão Paulo. Estava, assim, aberta a possibilidadede o conflito explodir no campo militar, o quesignificaria, de fato, o estopim de uma guerra civilcujas conseqüências seriam imprevisíveis.

O temor da imprevisibilidade e das soluçõesradicais ou sangrentas, típico da elite políticabrasileira, fez que, uma vez mais, se pusesse emprática o mecanismo da conciliação interelites. Talmecanismo consubstanciou-se no Ato Adicionalque alterava o sistema de Governo definido naConstituição de 1946. Em rigor, a possibilidadede uma solução de compromisso em torno daalteração do sistema de Governo já havia sidoencaminhada, implicitamente, pelos mesmosministros militares que se opuseram à posse deGoulart. Pode-se ler no manifesto por elesdivulgado que a ameaça representada por Jangoligava-se ao lugar que este ocuparia na Presidênciada República, “em regime que atribui amplaautoridade e poder pessoal ao Chefe de Governo”(apud VICTOR, 1965, p. 348). Goulart assumiriaa Presidência, mas com os poderes ceifados osuficiente para, na visão dos militares, amenizarsua presença ameaçadora.

A solução encontrada para crise resolvia umproblema mas criava outro. De que fonte poderiasurgir a legitimidade do Primeiro Ministro e deseu gabinete para encaminhar as difíceis soluçõespara os problemas econômicos e sociais daquelaconjuntura crítica? Nascido de uma manobraconservadora, o “gabinete de união nacional”encabeçado pelo Primeiro-Ministro TancredoNeves não pôde fazer mais do que cumprir seudestino, experimentando um final melancólicoapós alguns meses de ingovernabilidade. Iguaisdestinos tiveram os outros dois gabinetes que osucederam. A letargia era tamanha no processo

decisório que levou Hermes de Lima, últimoPremiê do interregno parlamentarista, a referir-seda seguinte maneira ao Governo de seu antecessorBrochado da Rocha: “Este Governo não é deextrema direita nem de extrema esquerda, mas deextrema-unção” (apud CASTELLO BRANCO,1975, p. 26).

Em face da indisfarçável inoperância dosGovernos parlamentaristas, o congresso viu-secompelido a ceder às pressões que se intensi-ficavam para a realização de um plebiscito sobreo sistema de Governo. Assim, em janeiro de 1962,Goulart recuperou todos os poderes de Presidenteda República, respaldado na vitória esmagadorada opção presidencialista. Foi nesse contexto queapareceu a derradeira tentativa de planejamentoeconômico nos marcos do regime democrático daConstituição de 1946: o Plano Trienal de Desen-volvimento Econômico e Social (1963-1965).

O Plano Trienal, obra de uma equipe de técni-cos chefiada pelo economista Celso Furtado, tevesua inspiração inicial durante a campanha deGoulart para o plebiscito. Durante a vigência doparlamentarismo, a política econômica nãoapresentou maiores alterações, não indo além demedidas isoladas como o congelamento do depó-sito prévio de importação, a elevação do compul-sório dos bancos comerciais etc. Foram tambéminiciadas tentativas de retomada das negociaçõescom o Governo dos EUA. Na verdade, os trêsgabinetes que se sucederam no interregno parla-mentarista jamais reuniram força política o bas-tante para ir além desses expedientes de políticaeconômica.

Em setembro de 1962, Goulart procurou CelsoFurtado, então Superintendente da SUDENE,dirigindo-se a ele com as seguintes palavras:“Quero que você assuma o Ministério Extraor-dinário do Planejamento. Vamos ter de nos pre-parar para o plebiscito, que devolverá os poderesao Presidente, e quero me apresentar aos eleitorescom um plano de Governo nas mãos” (apudFURTADO, 1989, p. 153).

A situação econômica com a qual se defrontaraCelso Furtado era bastante preocupante. No anode 1962, a taxa de crescimento do PIB reduziu-sea praticamente metade da obtida no ano anterior,caindo de 10,3% para 5,2%. Paralelamente, a taxade inflação saltara para além de 50%, confirmandouma tendência de crescimento que se apresentavadesde 1958.

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Todavia, a manutenção do crescimento eco-nômico e a conquista da estabilidade monetárianão eram os únicos desafios postos à imaginaçãodos planejadores naquela conjuntura. Cada vezmais freqüentes e intensas eram as mobilizaçõespelas chamadas “reformas de base”. A reformaagrária era a bandeira que possuía maior poder demobilização dos setores populares, mas tambémmobilizavam a opinião pública as demandas porreformas no sistema de tributação, no sistemabancário, na administração pública, nas univer-sidades etc.

O Plano Trienal representa a primeira tentativade tratar de maneira integrada e global as de-mandas conflitantes de desenvolvimento, estabili-dade e reformas de base. Conforme assinala Ianni,“o Plano Trienal [...] foi o primeiro instrumentode política econômica global e globalizante, dentretodos os formulados até então pelos diversos Go-vernos do Brasil. Em comparação com os planos,programas, comissões, institutos, departamentose superintendências criados pelos Governosanteriores, o Plano Trienal correspondeu a umafase mais avançada de elaboração conceptual eanalítica” (IANNI, 1986, p. 209).

Mas os avanços “técnicos” do Plano não seriamo bastante para preencher a lacuna deixada porsua fragilidade política. Não poderia ser maior adistância entre o caráter ambicioso da soluçãoglobal proposta pelo Plano Trienal e a escassezde recursos de poder do Governo Goulart. A estra-tégia posta em prática no Plano parecia sustentar-se num apelo à conciliação entre forças políticase sociais já àquela altura suficientemente polari-zadas para que a estratégia dos planejadores caíssenum vazio político.

Não obstante, os planejadores tiveram o cui-dado de formular um conjunto de medidas de curtoe médio prazo para o tratamento de cada um dostrês grandes problemas da crise do início dos anossessenta. A tarefa mais imediata, segundo os plane-jadores, era “planejar a estabilização em condiçõesde desenvolvimento”, ficando para “uma fasesubseqüente, planejar a intensificação do desen-volvimento sem comprometer a estabilidade”(PLANO TRIENAL, 1962, p. 18). Tal prece-dência cronológica da meta de estabilidade con-duziu o Governo a comprometer-se com umapolítica econômica antiinflacionária que previa,dentre outras medidas, a restrição creditícia, aeliminação de subsídios ao consumo, sobretudo

de trigo e petróleo, e a redução do gasto público,sobretudo pela via da contenção dos reajustes sa-lariais dos funcionários. Medidas dessa naturezarepresentariam o teste de fogo do Plano Trienal.Ou se alcançava os resultados almejados nessaárea, ou o Plano Trienal não conseguiria dar seuprimeiro passo, comprometendo-se toda a estra-tégia.

A anterioridade estabelecida para o cumpri-mento da meta da estabilização era decorrente deuma situação que rapidamente fugia ao controledo Governo. A taxa de inflação, que chegara amais de 50% em 1962, era projetada para algosuperior a 100% no ano de 1964. Um cenáriopreocupante, tendo em vista o fato de que aredução do ritmo inflacionário não somente erauma demanda da população que protestava quantoao aumento da “carestia”, como também, eprincipalmente, uma exigência das agências finan-ceiras internacionais para a retomada dos fluxosde capitais estrangeiros ao país, preocupaçãocentral na estratégia dos planejadores.

Aqui é necessário que nos detenhamos breve-mente em algumas interpretações relevantes sobreo significado político do Plano Trienal. A tesepredominante, que vê o Plano Trienal como umautêntico ensaio de pacto social de orientaçãosocial-democrata, deve ser consideravelmentematizada. Sem dúvida, como se depreende, porexemplo, dos estudos de SOLA (1998) e FIGUEI-REDO (1993), o Plano Trienal pode ser interpreta-do como uma tentativa de alcançar uma saídadentro do marco institucional da democraciapopulista para a crise do início dos anos sessenta,acenando para o atendimento parcial das de-mandas dos diferentes grupos sócio-econômicosem conflito naquela conjuntura crítica. “O PlanoTrienal pode ser visto como uma tentativa porparte do Governo de promover um acordo (e even-tualmente um pacto) entre grupos comerciais eindustriais, por um lado, e trabalhadores, por ou-tro” (FIGUEIREDO, 1993, p. 92). Assim, o su-cesso do Plano dependeria “da habilidade doGoverno em formar uma coalizão multiclassistabaseada em concessões e acordos mútuos” (idem,p. 93).

Mas é preciso qualificar a estratégia concilia-dora do Plano Trienal. Se é verdade que osplanejadores tiveram de indicar para os diferentesgrupos sociais estratégias de realização de suasprincipais demandas, também deve-se considerar

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o fato de que tais demandas foram contempladasde modo desigual e conflitante no Plano Trienal.Assim, não nos parece aceitável a afirmação deque “os objetivos contemplados no Plano Trienaleram consensuais” (FIGUEIREDO, 1993, p. 92).É certo que o problema da inflação incomodava atodos, mas não da mesma maneira e nem namesma intensidade. Já no que diz respeito àaceitação do objetivo de realização das reformasde base, o que a conjuntura do início dos anossessenta evidencia é um radical desentendimentoentre as forças políticas em conflito. Não faltava,dentre as vozes mais influentes no debate político-econômico, quem considerasse o assunto uma“balela”, como o “decano dos economistas bra-sileiros”, Eugênio Gudin, que afirmava, com o in-tuito de desqualificação dos defensores das re-formas, que “é preciso ser integralmente (nãoparcialmente) imbecil para acreditar que essasreformas, quase todas desaconselháveis, aliás,possam ter qualquer influência sobre o progressoeconômico e social do País” (GUDIN, 1965, p.128). E acrescentava que “planejar o combate àinflação é o único planejamento por que anseia oPaís” (idem, p. 437).

Assim, longe de serem consensuais, os obje-tivos expostos no Plano Trienal eram conflitantes.Os setores que vocalizavam mais enfaticamente ademanda de estabilidade não eram os mesmos queempunhavam a bandeira das reformas de base.Frente a esse conflito, como interpretar a estratégiacontida no Plano Trienal? A ênfase no caráterconciliador dessa estratégia não deveria encobriro fato de que tal conciliação fazia-se em benefíciodos setores conservadores do espectro político eideológico, incondicionais defensores da estabili-dade monetária, tendo em vista que, quer na di-mensão do discurso técnico exposto no docu-mento, quer na dimensão da ação efetiva dos pla-nejadores com vistas à sua implementação, o PlanoTrienal reduzira-se a um plano de estabilização.Tal constatação não pretende renunciar à tese queadvoga o caráter conciliador do Plano, mas sugerea qualificação dessa tese.

Ao proceder-se à leitura do documento-síntesedo Plano Trienal, é difícil escapar à conclusão deque as demandas pelas reformas de base, vei-culadas mais intensamente pelas organizações dasclasses populares e por setores nacionalistas e deesquerda, receberam um tratamento apenas su-perficial, permanecendo muito aquém de constituí-rem-se como objeto de um planejamento detalhado

e viável, diferentemente do que ocorrera com ademanda pela estabilidade monetária. No docu-mento de quase 200 páginas, pouco mais do queseis páginas são dedicadas às “Diretrizes para asReformas de Base Requeridas pelo Desenvol-vimento Econômico”. Como destacou o econo-mista Werner Baer, ao analisar o Plano quandode sua publicação, em dezembro de 1962: “Adecepção mais grave ocorre no final do plano,quando o leitor espera encontrar um grande clí-max, ou seja, as recomendações sobre a política aser adotada. As reformas bancária, administrativae agrícola são objetos de recomendações simbó-licas e jornalísticas, nuns poucos parágrafos super-ficiais” (BAER, 1962, p. 111).

Além disso, é necessário lembrar que asautoridades dos Ministérios do Planejamento e daFazenda, responsáveis pelo Plano Trienal, nãopossuíam prerrogativas decisórias em torno dasquestões atinentes às reformas de base. Cabia aoCongresso Nacional e não ao poder Executivodeliberar sobre o assunto. Os instrumentos de po-lítica econômica sob o controle direto do Execu-tivo limitavam-se às políticas monetária, cambiale, em menor medida, fiscal. Com tais instru-mentos, tudo o que o Governo poderia almejarera uma política antiinflacionária de estilo tra-dicional, inspirada, quase inteiramente, no recei-tuário monetarista de combate à inflação. É certoque as medidas propostas, sobretudo no que dizrespeito à contenção do crédito e do gasto público,estavam ainda distantes do “tratamento de choque”advogado à época pelo FMI, principal centro dedifusão do pensamento monetarista. Entretanto, o“gradualismo” no combate à inflação já havia sidoexperimentado no PEM e seria novamente postoem prática pelo PAEG (Plano de Ação Econômicado Governo 1964-1966), ambos elaborados sob ocomando do “monetarista” Roberto Campos.

Em seu aprofundado estudo sobre o significadopolítico da política econômica do Plano Trienal,Lourdes Sola procura minimizar as semelhançasentre o PEM e o PAEG, de um lado, e o PlanoTrienal, de outro. Afirma que “apesar das seme-lhanças com os planos de 1958 e 1965, tanto odiagnóstico da crise brasileira quanto a estratégiaeconômica subjacente ao Plano Trienal, o cre-denciam como um produto genuíno da tradiçãocepalina. [...] ele é indicativo do compromissoexplícito dos estruturalistas com objetivos de cu-nho social e com o desempenho da função refor-madora do Estado, isto é, com objetivos social-

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democratas” (SOLA, 1998, p. 259-260).

Tal interpretação tende a ver no Plano Trienalalgo mais do que ele de fato representou. O fatodo Plano ter sido formulado sob a liderança doeconomista Celso Furtado, um dos mais expres-sivos representantes da “tradição cepalina”, nãonos parece evidência o suficiente para demonstrara fidelidade do Plano Trienal à estratégia estru-turalista de desenvolvimento econômico e com-bate à inflação. De modo algum pretendemos afir-mar que a presença de Furtado no comando daequipe de elaboração do Plano fora de todo su-pérflua na sua definição, como aliás fica evidentena linguagem em que se produz o diagnóstico dosproblemas que o Plano pretendia enfrentar. A forteênfase dada aos obstáculos estruturais ao desenvol-vimento econômico brasileiro, a exemplo da “defi-ciente estrutura agrária do País” (PLANO TRIE-NAL, 1962, p. 140), é um aspecto que diferenciao Plano Trienal das experiências de estabilizaçãoencabeçadas por Roberto Campos, antes e depoisdo experimento de Furtado. Porém, o que é de-cisivo é saber a medida em que o diagnóstico setraduz em políticas. E mais: saber em que medidao diagnóstico estruturalista conformaria a primeirafase do Plano, voltada para as políticas de esta-bilização.

É preciso ainda destacar que, em momentosde crise política, a percepção de tempo dos atorespolíticos é profundamente alterada. A aceleraçãodo tempo político fortalece ainda mais a predis-posição natural dos atores de orientarem suasações no horizonte do curto prazo, voltando aoscálculos de médio prazo uma preocupação remotae aos de longo prazo, o esquecimento. Portanto,na avaliação do significado político do PlanoTrienal, a precedência cronológica do atendimentoda meta da estabilidade não é de menor im-portância. O que a maioria dos grupos sociaispodia perceber diante de si, naquela conjunturade crise, era um plano de estabilização commedidas que lhes exigiam mais “sacrifícios” nummomento de profunda recessão.

Embora o diagnóstico da economia brasileiraapresentado no Plano fosse pautado pelas prin-cipais teses estruturalistas, parece-nos que aspolíticas antiinflacionárias não puderam dispensaros recursos terapêuticos desenvolvidos pelosmonetaristas. Negar que o resultado da imple-mentação parcial das políticas de estabilização foia contração da demanda global e o aprofun-

damento da recessão seria entrar em guerra inútilcontra as estatísticas. Conforme observou JohnWells, “the cycle of expansion in Brazilianeconomy, begun in mid-fifities, was brought toan abrupt end by the Furtado-Dantas Plano Trienalimplemented in early 63; the industrial recessionbegan no earlier than 1963, but once it ocurred itaffected all sectors of activity simultaneously”(WELLS, 1977, p. 226).

A estratégia de estabilização centrada na re-dução da demanda global não era típica da correnteestruturalista de abordagem da inflação. Aocontrário, eram os monetaristas que insistiam nainevitabilidade da terapia recessionista. No intensodebate que se travou no início dos anos sessentaem torno das causas do fenômeno inflacionário edas terapias recomendadas para seu tratamento,os estruturalistas inovaram por recusarem todoprograma de estabilização que se ativesse somenteaos fenômenos superficiais do processo inflacio-nário. Advogavam que as reais causas da inflaçãooriginavam-se em desajustamentos e inelasti-cidades da estrutura econômica e social típica dospaíses subdesenvolvidos e que a inflação somentepoderia ser definitivamente vencida se fossem rea-lizadas reformas estruturais de caráter redistri-butivo, tais como uma reforma fiscal progressivae a reforma agrária. Ainda mais: advogavam queseria menos prejudicial conviver com um certonível de inflação do que a submissão às políticasrestritivas geradoras de recessão recomendadasentão pelo FMI.

Quanto à importância de se considerar os de-sajustamentos e as inelasticidades da estruturaeconômica dos países subdesenvolvidos nodiagnóstico das causas da inflação, tarefa tão bemexecutada no Plano Trienal, devemos consideraro que pensavam os monetaristas. Estes, atravésde seu expoente, o economista Roberto Campos,propunham uma saída conciliatória para o debateem torno da inflação, a qual se resumia na incor-poração da capacidade analítica desenvolvidapelos estruturalistas em benefício da terapiaantiinflacionária ortodoxa. Campos argumentavaque “a identificação de pontos de estrangula-mentos é evidentemente de grande utilidade paraque a política fiscal e monetária tenha um papelativo ainda mais útil; e esta é a linha de re-conciliação entre monetaristas e estruturalistas”(CAMPOS, 1967, p. 92). Enquanto os mone-taristas cediam no plano do diagnóstico da infla-

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ção, mantendo intacto o cerne de suas terapiasantiinflacionárias, os estruturalistas, a julgar peloPlano Trienal, contentavam-se em ver suas idéiascompondo a parte analítica dos programas deestabilização, retrocedendo imediatamente emfavor da ortodoxia monetarista quando se tratavada formulação de políticas. Não era à toa quecorria, na época, o irônico chiste, segundo o qual“um monetarista é um estruturalista no poder”.

O Plano, de fato, reduzira-se a um plano deestabilização. E é precisamente essa a chave paracompreendermos a lógica política das reações dediferentes atores ao Plano Trienal. Não foi qual-quer tentativa de implementar políticas desenvol-vimentistas, nem tampouco qualquer esforço paraa realização das reformas de base os fatores queselaram seu destino. Tais dimensões do PlanoTrienal ficaram, na prática, esquecidas, com a es-tratégia de estabilização consumindo todas asenergias dos gestores da política econômica.

No primeiro semestre de 1963, os ministrosda área econômica – Celso Furtado, no Plane-jamento, e San Tiago Dantas, na Fazenda – traba-lharam em sintonia e com determinação para pôrem prática o Plano Trienal. Ao fim do semestre,porém, o Plano estava completamente aban-donado.

Inicialmente se observou um conjunto deataques provenientes de setores polarizados doespectro político e ideológico. De um lado, ossetores nacionalistas radicais; de outro, os setoresconservadores de direita. Para os primeiros, oPlano não era suficientemente nacionalista,fazendo concessões indevidas ao “imperialismo”e ao capital estrangeiro. Intelectuais ligados aoISEB – Instituto Superior de Estudos Brasileiros,órgão de elaboração ideológica nacionalista –, porexemplo, chegaram a considerar o Plano como“solução típica” na “estratégia imperialista” devincular o financiamento da expansão industrialbrasileira à “assimilação de capital estrangeiro emritmo mais acentuado do que o observado até aqui”(SANTOS, 1963, p. 66). Repugnava aos setoresnacionalistas as negociações realizadas por SanTiago Dantas e Celso Furtado junto ao Governonorte-americano. A “missão Dantas”, realizada emmarço de 1963, em Washington, tendo comoobjetivo a renegociação da dívida externa e aobtenção de empréstimos emergenciais para opaís, foi a gota d’água para as forças nacionalistas.As condições impostas pelo Governo norte-

americano, tais como a revisão dos processos deencampações de empresas estrangeiras conces-sionárias do serviço público e a condução de umapolítica de estabilização austera, foram tomadascomo uma afronta à “política externa indepen-dente” que orientava o Governo brasileiro nasrelações internacionais desde 1961.

Os setores conservadores de direita, por seuturno, consideravam o Plano excessivamentenacionalista, estatista e mesmo socialista. CarlosLacerda, liderança máxima da oposição a Goulart,fornece-nos um exemplo do teor dessas reações:“O Sr. Celso Furtado ainda confunde o enri-quecimento do povo com o enriquecimento doEstado e pensa que Governo cria riqueza. E parececonsiderar possível improvisar, em pouco mais deum mês, um plano para três anos, sem acontraprova decisiva da vivência dos problemas.Nós queremos planejar para construir a liberdade,os autores do Plano Trienal querem planejar paradestruí-la” (CORREIO DA MANHÃ, 04/01/1963). Argumento idêntico encontra-se em artigodo economista Eugênio Gudin, um dos principaisopositores, na área “técnica”, do Plano Trienal:“Se o Sr. Celso Furtado quer, de fato, como parece,preparar a revolução totalitária da esquerda,através da pré-revolução em marcha, ao menosprocure fazê-lo sem agredir os princípios maiscomezinhos da análise econômica” (O GLOBO,28/11/1962).

Essas reações iniciais pautadas por princípiosideológicos são seguidas pelas reações prove-nientes dos setores diretamente afetados pelaspolíticas restritivas da estratégia de estabilizaçãodo Plano Trienal.

A tentativa de implementação das políticasrestritivas ocasionou forte mobilização contrária,tanto de setores da classe trabalhadora, quanto deimportantes setores empresariais. A política sala-rial, por um lado, e a política de crédito, por outro,foram os fatores geradores deste tipo de reação aoPlano Trienal. Examinemos mais detidamentecomo se processaram essas reações decisivas parao abandono do Plano.

Com relação à política salarial, uma das prin-cipiais medidas previstas na estratégia de estabili-zação foi o estabelecimento de um teto de apenas40% para o reajuste dos salários dos funcionáriospúblicos civis e militares. Para a viabilização dessapolítica salarial, o Governo pretendia contar comuma atitude de colaboração das organizações sin-

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dicais. Para realizar a difícil missão de conquistara aquiescência dessas organizações, o PresidenteGoulart viu-se compelido a nomear, para o Minis-tério do Trabalho (cargo pelo qual ele mesmoprojetara-se nacionalmente), uma liderança pete-bista em ascensão e com grande prestígio junto aimportantes organizações dos trabalhadores comoo CGT (Comando Geral dos Trabalhadores) e oPUA (Pacto de Unidade e Ação). O Deputado Al-mino Afonso pertencia a uma ala radicalizada doPTB, conhecida como o “Grupo Compacto”, quepretendia superar a orientação pragmática e“ministerialista”, representada, no partido, pelaliderança de Goulart.

Num primeiro momento de sua gestão, AlminoAfonso comprometeu-se com uma ação sin-tonizada com as políticas do Plano Trienal, em-bora, cautelosamente, não tenha assumido de mo-do muito enfático essa posição de apoio ao Plano.De qualquer modo, seu apoio pode ser depreen-dido dos pronunciamentos do novo Ministroimediatamente após sua posse, que ocorreu emum momento em que os trabalhadores de trans-portes marítimos estavam em greve há mais deum mês e havia ameaças de greves em setoresimportantes como os de energia elétrica, telefonese transportes urbanos. Almino Afonso solicitouum crédito de confiança aos trabalhadores,convidando-os a reavaliarem o ímpeto grevistadiante da difícil situação nacional. Tal atitude foiinterpretada por Prestes, líder máximo do PCB,como um pedido aos trabalhadores para queabandonassem seu direito de greve. Na verdade,como salientou Erickson, “o jovem ministroprometeu aos trabalhadores que não tinhaintenções de congelar salários ou reprimir greves,mas defendeu o ponto de vista de que asreivindicações salariais não resolveriam os pro-blemas da classe trabalhadora enquanto a econo-mia estivesse enfraquecida. A seguir solicitou aostrabalhadores que vissem seus interesses de classeda perspectiva do interesse nacional. Operandodentro das limitações financeiras do momento,procurou, a princípio, servir aos trabalhadoreseliminando a corrupção e desenvolvendo a eficiên-cia das organizações ministeriais e previdenciáriasmais próximas deles” (ERICKSON, 1979, p. 120).

Mas o fato é que essa posição de AlminoAfonso tornava-se progressivamente desgastantepara sua liderança política, começando a pôr emrisco seu prestígio junto às esquerdas e ao movi-mento sindical. Desde o final de janeiro de 1963,

esses setores vinham realizando manifestaçõescontra a política econômico-financeira do PlanoTrienal. A primeira investida desses setores contrao Plano foi feita pelo Partido Comunista, atravésde Prestes. Logo em seguida, no início de feve-reiro, foi a vez do CGT posicionar-se. A mais in-fluente organização sindical daquele períodoentregou um documento ao Presidente, no qualfez duros ataques ao Plano e à sua política salarial.O documento afirmava que “os novos níveis desalário mínimo já estão absorvidos pela especu-lação, estimulada, entre outras coisas, pela supres-são dos subsídios do trigo e dos combustíveis [...].Os trabalhadores não podem concordar com apolítica financeira que impõem maiores sacrifíciosàs massas consumidoras e deixa intactos lucrosfabulosos ao capital estrangeiro, vultosas subven-ções aos latifundiários e plantadores de café”.Declararam-se, ainda, solidários aos funcionáriospúblicos civis e militares “que lutam por umaelevação dos vencimentos em proporção com aalta do custo de vida”. E finalizaram afirmandoque “o ministério organizado pelo presidente JoãoGoulart não pode inspirar confiança aos traba-lhadores e ao povo. Expressa ainda uma políticade conciliação com as cúpulas partidárias ligadasa interesses antinacionais e antipopulares” (COR-REIO DA MANHÃ, 06/02/1963).

Vale lembrar que o teto de 40% para o reajustedos salários dos funcionários soava realmentecomo uma discriminação, pois o salário mínimojá havia sido reajustado no final de 1962 e muitasempresas privadas estavam concedendo reajustesmuito acima desse índice. Assim, os funcionáriospúblicos iniciaram as mobilizações para que nãose cumprissem as determinações do Plano Trienalneste particular. Já em meados de fevereiro, oPresidente da Federação Nacional dos ServidoresPúblicos declarou que “não tem cabimento queassistamos a concessão de aumento a empresasprivadas em bases superiores a 70%, em acordosalariais patrocinados pelos órgãos do Governo,com vigência a partir de janeiro, e nos curvemosa aceitar os irrisórios 40% referidos pelos poderespúblicos” (CORREIO DA MANHÃ, 20/02/1963).

Entretanto, foi a partir de meados de abril quea questão salarial tornou-se mais explosiva e umobstáculo intransponível à execução do PlanoTrienal. Até então as reações mantinham-se dentrode limites controláveis pelo Governo. Comoassinala SOLA: “Aware of the unpopularity of themeasures, Goulart had sought early March to make

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personal contact with leaders of civil servants,representative of the military and party politicalfigures. At this stage prospects for a negotiatedsettlement looked good, particularly as the militarywere satisfied with the promise of better treatmentfor lower-ranking officers. The impression wasconfirmed by the statements of the Heads of theCivil and Military Households in favour of thePlan, and against the various pressures beingbrought to bear on them” (SOLA, 1982, p. 360).

Foi em meados de abril que Goulart enviou aoCongresso o projeto de aumento salarial para ofuncionalismo público. Porém, conforme observouSola, quando da apresentação do projeto, Goulartcometeu dois erros táticos que iriam comprometerdefinitivamente a estratégia de contençãoorçamentária prevista no Plano Trienal. O primeirodeles foi não ter renovado seus contatos com aslideranças dos funcionários, tanto dos civis quantodos militares, apesar dos preços continuaremsubindo além das expectativas do Plano Trienal.Mas foi o segundo erro, relacionado com o próprioteor do projeto, que complicou ainda mais aimplementação da proposta. Além da fixação doteto de 40% para os reajustes, o projeto continhauma série de medidas destinadas à distribuição derenda dentro da categoria do funcionalismopúblico. Assim, embora o aumento proposto paraos salários básicos fosse limitado a 40%, asvariações iriam de 40% a 56% para os civis e de25% a 55% para os militares (cf. SKIDMORE,1979, p. 296). A intenção do Governo era diminuira distância entre os maiores e os menores saláriosno conjunto do funcionalismo, cuja razão era de18 por 1. A proposta feria poderosos interessesencastelados na administração pública e, sobre-tudo, os interesses da alta oficialidade militar, queteria seus proventos relativamente diminuídos emfavor dos escalões mais baixos da corporação.

A proposta do Governo acabou gerando umareação conjunta dos mais diversos setores. Enfi-leiraram-se contra o projeto inúmeras organi-zações com múltiplos canais de acesso ao sistemapolítico. No Congresso, o movimento dos fun-cionários obteve o apoio do PTB e da FrenteParlamentar Nacionalista, conseguindo, alémdisso, a adesão do PSD e da UDN, formando assimuma coalizão extremamente rara naquela con-juntura. O movimento contava também com oapoio de associações profissionais como a Asso-ciação de Sargentos e Marinheiros, a Associaçãode Oficiais e a Associação dos Funcionários

Públicos (coordenada pela Confederação Nacionaldos Servidores).

O golpe de misericórdia na política salarial doPlano Trienal foi desferido pelo Ministro AlminoAfonso, quando este abandonou sua posiçãoinicial de apoio discreto ao Plano e passou a atacá-lo publicamente. Sua mudança de posição esteverelacionada à realização da “Missão Dantas” nosEUA, episódio que incrementou as reações dossetores nacionalistas ao Plano Trienal (cf. PAR-KER, 1977). O Ministro do Trabalho despontavacomo uma liderança emergente dentro do PTB e,ademais, desfrutava de grande prestígio junto aomovimento sindical, fato que ameaçava dupla-mente a liderança de Goulart. A crise que entãose abriu nas relações entre o Ministro do Trabalhoe o Presidente da República só se encerrou quando,em junho de 1963, Goulart dissolveu seu primeiroministério presidencialista, sepultando também aspossibilidades de implementação do Plano Trienal.

Se a política salarial do Plano Trienal foi sufi-ciente para colocar em movimento uma série dereações ao Plano provenientes do front trabalhistae dos setores nacionalistas, um outro conjunto depolíticas restritivas seria o motivo para reaçõesadvindas das elites empresariais.

No campo das organizações empresariais maisinfluentes do período podia-se distinguir dois tiposde atitudes iniciais com relação ao Plano Trienal.Para organizações empresariais como a Asso-ciação Comercial do Rio de Janeiro, a AssociaçãoComercial de São Paulo e a Federação das In-dústrias da Guanabara, o Plano constituía-se comoameaça à “liberdade econômica”, tendo em vistasuas tendências “estatistas” e supostamente “socia-lizantes”. Eram reações de combate imediato aoPlano embaladas por uma argumentaçãosolidamente amparada nos princípios doutrináriosdo liberalismo econômico.

Porém, o mais interessante, a nosso ver, é ob-servar o comportamento dos setores empresariaisque manifestaram inicialmente uma posição deapoio ao Plano Trienal e as razões pelas quais,em seguida, retiraram tal apoio. As mais influentesorganizações empresariais a emprestarem apoioimediato ao Plano eram provenientes do setorindustrial, como a Confederação Nacional daIndústria (CNI), a Federação das Indústrias doEstado de São Paulo (FIESP) e a Federação dasIndústrias do Rio Grande do Sul (FIRGS).

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Em sua parte relativa às políticas monetária ede crédito, o Plano Trienal garantia que, apesarda austeridade prevista no tratamento da expansãomonetária, “o crédito ao setor privado deverá cres-cer em montante correspondente à elevação donível de preços adicionado ao aumento do produtoreal” (PLANO TRIENAL, 1963, p. 10). Devidoa essa ressalva, as elites industriais saudaram oPlano como uma real alternativa às tradicionaispolíticas de estabilização de caráter ortodoxo.

Em fevereiro de 1962, a revista técnica da CNIafirmava que o Plano Trienal teria todas as con-dições para tornar-se uma força dominante na evo-lução econômica do país. Louvava-se, particu-larmente, o fato de que “a política de crédito garan-te que o setor privado não sofrerá pressões queforcem a retração dos investimentos” (DESEN-VOLVIMENTO E CONJUNTURA, fev.1963, p.12). Logo em seguida, no início de março, a CNIenviou um memorandum a Goulart, no qualgarantia que iria tomar uma série de medidas deapoio ao Plano Trienal. A elite industrial com-prometia-se a persuadir os membros de sua basepara que não praticassem aumentos de preçosacima dos aumentos dos custos, não formassemestoques especulativos e para que trabalhassemcom vistas a aumentar a produtividade, emcolaboração com os trabalhadores.

Havia, porém, no referido memorandum, umaoutra preocupação dos empresários transmitida aoPresidente. Tal preocupação soava, na verdade,como condição do apoio dos industriais ao Planoe se relacionava à questão salarial.

Já em fevereiro, no mesmo número em quesaldava o Plano, a revista da CNI dizia que o PlanoTrienal falhava em não prever as linhas de umapolítica salarial abrangente, resumindo-se, nesteponto, à fixação de um teto de 40% para o aumentodos funcionários públicos. Consideravam equivo-cada a concepção de Furtado de que a reduçãodas diferenças salariais e a dificuldade de acabarcom os salários privilegiados seriam os principaisproblemas neste campo. Argumentavam que talabordagem, ao destruir a escala salarial, eracontraditória com o objetivo de aumentar a produ-tividade, pois retiraria os estímulos à especia-lização e à aquisição de conhecimento técnico. Osindustriais preocupavam-se, ainda, com umapossível orientação política na questão salarial,decorrente de uma presumível inaptidão doGoverno para lidar com “pressões demagógicas”

(cf. FIGUEIREDO, 1987, p. 117).

Observe-se que o apoio ao Plano por parte daselites industriais não era uma adesão incon-dicional. Tampouco o fizeram por colocar supos-tos interesses nacionais acima dos seus próprios.O apoio foi emprestado sob a dupla condição deque não lhe faltasse crédito e que fosse contida aescalada reivindicatória dos trabalhadores. Aevidência disso é que, a partir do segundo trimestrede 1963, a posição desse setor empresarial mudoudo apoio à crítica, quando os empresários passarama sentir os efeitos do aperto de liquidez ocasionadopela restrição do crédito e, além disso, constataramque o Governo não dispunha de meios para conteras reivindicações salariais, como ficou explícitono caso dos funcionários públicos.

O impacto das medidas antiinflacionárias doPlano Trienal só seria plenamente sentido nosegundo semestre. Mas a deterioração das con-dições econômicas e as medidas tomadas peloGoverno ao longo do primeiro semestre de exe-cução já configuravam o cenário para a retiradagradativa do apoio dos setores empresariais. Naverdade, os indicadores do primeiro trimestre de1963 já apontavam para o fracasso do Plano Trie-nal. “Em janeiro de 1963 houve um aumento dosalário mínimo de 56,25%. Em fevereiro, as tarifasde transportes urbanos foram corrigidas entre 22e 29%. Em março eliminou-se o subsídio ao trigoimportado, o que elevou seu preço em 100%, e aopetróleo importado, o que elevou seu preçodoméstico em 70%. Em abril, o cruzeiro foi desva-lorizado em 30,4%. O resultado dessas e outrasmedidas do processo de ‘inflação corretiva’, toma-das no primeiro trimestre de 1963, repercutiu ime-diatamente na taxa de inflação [...]. Simultanea-mente o Governo embarcava numa política delimitação da expansão do crédito. Através das ins-truções 234 e 235, o crescimento dos empréstimosao setor privado, tanto do Banco do Brasil comodos bancos comerciais, foi limitado em 35% emtermos nominais, durante o ano, enquanto a taxade inflação do primeiro trimestre ficava em tornode 60% em termos anuais. O compulsório dos ban-cos comerciais foi elevado de 24 para 28%, com-pletando o pacote de medidas restritivas na áreamonetária” (RESENDE, 1982, p. 763).

Ante a nova conjuntura que emergia no se-gundo trimestre de 1963, a CNI, em abril inten-sificou sua crítica à ausência de uma políticasalarial definida e passou a reivindicar mais

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flexibilidade do Governo na liberação de créditoao setor privado. No mesmo documento em quereivindicava aumento de crédito, a CNI sugeriauma política global de redução do salário real:“Nós obviamente não esperaríamos que o Ministroda Fazenda fizesse uma declaração pública de quepretende relaxar os limites de crédito no Plano.Isso seria um erro pois ameaçaria o clima psico-lógico de contenção de preços que tem sido tãoduramente conseguido [...]. Ele poderia porémelevar os tetos para prover com maiores facilidadesde crédito os setores que tenham provado ser maissensíveis às políticas restritivas”. E em seguidaataca a questão salarial: “as medidas requeridaspela contenção de preços com desenvolvimentoteriam mais chances de sucesso se fossem esten-didas para todas as categorias de assalariados enão somente aos funcionários públicos. Assim, oreajuste de salários deveria ser feito ao nível de10% abaixo do incremento do custo de vida”(DESENVOLVIMENTO E CONJUNTURA,abril.1963, p. 3-4).

A posição dos empresários industriais comrelação à questão salarial vai se tornando, cadavez mais, politicamente orientada, criando maisum obstáculo às veleidades conciliatórias do PlanoTrienal. A reação dos empresários refletia a mo-vimentação dos trabalhadores via CGT. A FIESPtemia e passou a denunciar os planos de uma grevegeral que teria o objetivo de solapar a autoridadedo Governo e levar à bancarrota o Plano Trienal.Tanto a FIESP quanto a CNI condenaram vio-lentamente, por exemplo, a escalada das demandasdos trabalhadores de transportes por melhoressalários. Essa categoria de assalariados constituía-se na coluna dorsal das greves gerais ocorridasem 1962, fato que reforçava os temores dos em-presários. A poderosa FIESP afirmava em seuBoletim informativo, do mês de maio, que as de-mandas dos trabalhadores de transportes por maio-res salários ultrapassava “os limites do inconcebí-vel, da ignomínia e da absoluta insensibilidadepara com o interesse nacional [...] constituem-senuma autêntica gangue [...] sugando o sangue danação em vantagem própria” (apud FIGUEI-REDO, 1987, p. 120).

Assim, o Plano Trienal perdeu sua mais in-fluente base de apoio entre os grupos sócio-econô-micos. Após uma fase de apoio condicional du-rante o primeiro trimestre de 1963, a elite industrialpassou a fazer oposição ao Plano, em razão de oGoverno não ter obtido as condições estabelecidas

como contrapartida ao apoio: nem o crédito acessí-vel à indústria foi garantido, nem o movimentosindical foi controlado pelo Governo. Foi o fimdo Plano Trienal e o começo do fim do GovernoGoulart.

VI. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O exame das experiências de planejamentoeconômico ocorridas entre o final do anos cinqüen-ta e o golpe militar de 1964 revelou uma profundainflexão em relação à estratégia da política eco-nômica adotada durante os anos de auge do de-senvolvimentismo. É possível afirmar que umnovo consenso ideológico estava se formando en-tre os principais atores responsáveis pela formula-ção e implementação da política econômica ofi-cial. A meta da estabilidade monetária sobre-punha-se à meta do desenvolvimento industrial dopaís, apresentada, até então, como verdadeira pa-nacéia para a superação do subdesenvolvimentoe da desigualdade, sobretudo durante os anos cin-qüenta, nos Governos de Vargas e de Kubitschek.Embora o país tenha apresentado um impres-sionante salto no processo de industrialização, emgrande medida devido à bem sucedida implemen-tação do Plano de Metas, o subdesenvolvimentoe as desigualdades sociais e regionais persistiam.Além disso, novos problemas surgiam, como aaceleração do processo inflacionário e a deteriora-ção das contas externas, problemas em parte de-correntes da própria estratégia desenvolvimentistade Kubitschek.

O esgotamento da força aglutinadora da ideo-logia desenvolvimentista, expressão do malogroda promessa da industrialização como panacéia,cedeu lugar a idéias e movimentos políticos dasmais variadas tendências. À esquerda fortalecia-se o movimento pela realização das reformas debase de caráter distributivista e nacionalista, en-quanto à direita crescia o apelo à recomposiçãoda ordem econômica (fim da inflação) e da ordempolítica (contenção das mobilizações sociais). Noque se refere à evolução da política econômica, oque se observa é a crescente aceitação, pelos go-vernantes e tecnocratas, da idéia de que o combateà inflação deveria ser prioritário e precedente aqualquer outro objetivo político-econômico. Issofica evidente não somente nos experimentos doPEM do Governo Kubitschek e da Reforma Cam-bial do Governo Quadros, mas também, emborade modo menos evidente, no Plano Trienal doGoverno Goulart.

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O malogro das tentativas de planejamento daeconomia, naquele momento de crise, deve serexplicado pelas reações dos atores políticos e dosagentes econômicos aos efeitos adversosprovocados pelas políticas de estabilização. Éverdade que o clima de radicalização e polarizaçãoideológica da época impunha sérias restrições àaceitação das medidas contidas nos diferentesexperimentos de estabilização. O Plano Trienal,por exemplo, tanto foi acusado de pró-imperialistae “entreguista”, quanto de pró-comunista. Mas ofato é que não havia nenhum motivo, ao menosno horizonte de curto prazo imposto pela crise,para que os principais grupos sócio-econômicosse resignassem aos “sacrifícios” que as políticasortodoxas de estabilização impunham.

Na conjuntura do início dos anos sessenta,romperam-se irreversivelmente as alianças sócio-políticas que vinham dando sustentação àestratégia político-econômica desenvolvimentista.As mobilizações crescentes dos setores orga-nizados das classes populares pelas reformas debase encerravam um longo ciclo de ação tuteladapelo Estado populista. Trabalhadores urbanos ecamponeses afirmavam sua autonomia frente àsdecisões das elites estatais e passavam a vocalizardemandas cujo atendimento implicaria umaprofunda redistribuição de riqueza e de poder entreas classes sociais e, conseqüentemente, a rea-lização de um novo pacto de poder. Aos setorespopulares já não era mais convincente o argumentode que seus problemas seriam resolvidos com aindustrialização do país. Qualquer medida querepresentasse protelação na realização dasreformas de base era interpretada como expressãodo desejo de setores conservadores.

Na contramão das demandas dos trabalhadoresrealizaram-se os ensaios de política econômica doperíodo. Aquilo que as elites técnicas interpre-

tavam como “necessidade econômica”, ou seja, aconcentração imediata de esforços para o controleda inflação, apresentava-se como incompatívelcom a realização das reformas de base. E issoporque a maior parte das terapias antiinflacio-nárias, cristalizadas nos programas de estabili-zação, permanecia nos quadros de referência deuma ideologia econômica ortodoxa, que associavaa busca da estabilidade econômica com aimposição de sacrifícios ao consumo. Contençãode reajustes salariais, limitação do crédito aoconsumidor, eliminação de subsídios ao consumo,corte nos gastos públicos etc. passavam a constituiro eixo dos programas de estabilização.

A tônica antiinflacionária e o desdém àsreformas distributivistas estiveram presentes atémesmo no Plano Trienal do Governo Goulart.Mesmo tendo ficado sob o comando de CelsoFurtado, principal expressão do pensamentoreformista da Cepal, o Plano Trienal não escapouaos imperativos da “necessidade econômica” domomento. Elegeu a inflação como o problemamais grave e imediato a ser tratado, relegando oplanejamento das reformas a um futuro sem dataprevista. Mais uma vez, o que as elites estataispediam ao povo era o sacrifício do presente parao suposto regozijo do futuro. Mas esse era umargumento político pouco convincente no quadroda crise. O Plano Trienal não obteve o apoio dostrabalhadores e o Governo Goulart não conquistoua confiança das classes dominantes, que espe-ravam a contenção da inflação e o controle gover-namental das greves e das mobilizações sociais.A frustração da tentativa de conciliação de classes,presente no Plano Trienal, agravou o isolamentodo Governo Goulart e, de alguma maneira, con-tribuiu para o trágico desfecho da crise em marçode 1964.

Recebido para publicação em 12 de setembro de 1999.

Ricardo Silva ([email protected]) é Mestre em Ciência Política na Universidade Estadual de Campinas(UNICAMP), Doutor em Ciências Sociais pela mesma universidade e Professor do Departamento deSociologia e Ciência Política na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

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