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Destino O tempo passa e cura todas as feridas passa mais um tempo e as cicatrizes se apagam e vai-se a lembrança daquela tarde fatal agora que ele está em outra cidade, num outro clima, num outro fuso horário e assim quando ele senta no deque para observar o mar, o próprio ar parece saturado de luz e um pólen dourado de promessa induz a um torpor como o do lótus, uma distensão mesmo na pessoa mais mal-humorada, quanto mais neste homem, um otimista inveterado que acredita que, aha, chegou a hora dele finalmente, que seu navio chegou ao porto quando às escondidas, naturalmente, um agente maligno se movimenta e uma nuvem escura está prestes a esconder seu sol. plástico bolha aparentemente insólito... Ano 2 - Número 16 - Setembro/2007 Distribuição Gratuita NESTA EDIÇÃO armando nogueira ana chiara clÁudia castro rafael huguenin lucas viriato joÃo lima nastassja pugliese heinz langer gustavo paes andrÉ sigaud mauro gaspar fred coelho gregÓrio duvivier isabel wilker angelo abu joÃo francisco c. ribeiro marcela s. rosa henry pablo juliana cesar marilena moraes paulo h. motta lasana lukata luiz coelho rodrigo n.c. chiara di axox ricardo sternberg chloe paisley isabel diegues regina pombo Parte, sim, de uma vontade de que o acaso não seja em vão. Toma a forma de tra- balho, passos árduos de uma penosa peregrina- ção. Uma breve respira- ção entre as braçadas: o caminho é longo, o problema insolúvel e, no momento, só há uma saída: a próxima edição. Ricardo Sternberg Deixe eu deliciar esse cotovelo que tu tens. Cotovelo concreto e com- pleto que tu tens, onde guardas ainda um pouco de simplicidade. O resto do teu corpo é todo complicado, uma confusão de dentes e cabelos, cérebro úmido e mal-entendido amarrado no nó dos intestinos. Amarrado à barriga, amarrado ao útero inútil. Deixa eu tocar-te o cotovelo. Cotovelo belo como aquela torta macieira que subias nos verões da tua infância. A macieira tinha a mesma pele seca e umas cicatrizes que vocês deram uma à outra. E tu ficavas escondida nos braços dela, e tu matavas as formigas. E comias as maçãs, e comias as sementes das maçãs porque a tua mãe te disse que uma pequena macieira cresceria dentro de ti se tu comesses as sementes das maçãs. Era uma mentira de mãe, mas tornou-se verdade da filha quando ar- rancaram tua macieira numa tarde de raízes súbitas. Deixaram só as pétalas caídas na bacia. Eu quero despetalar-te. Deixa eu ver este teu cotovelo, maçaneta do teu ser. Deixa eu entrar e assim entrando entender, talvez, a tua insistência nas coisas que não existem. Chloe Paisley Com solo, Consolo No número passado, publicamos o primeiro poema que o poeta Ricardo Sternberg, professor de Literatura Portuguesa e Brasileira da Universidade de Toronto, enviou para o Plástico Bolha. Nesta edição, trazemos o segundo poema de Ricardo, que, junto com o anterior, são parte da série These Stories (Estas Histórias). Ambos foram traduzidos por Marilena Moraes, com a supervisão de Paulo Henriques Britto. Fate Time passes and heals all wounds then passes some more and scars are effaced and the memory gone of that most fateful afternoon now that he is in a different city, under a different climate and time zone so that as he sits on the deck to survey this coast, the very air seems saturated with light, a golden pollen of promise inducing a lotus-like torpor, a letting go on the most curmudgeon of spirits, never mind this man, inveterate optimist who believes, ha ha ha his time has come at last, his ship has sailed into port when off camera, of course, some malignant agent is moving and a dark cloud is about to blot out his sun. Essa necessidade — uma procura Por definir o que é literatura — É uma aventura mais uma tortura, É pendurar o que não se pendura, É tentar passar a limpo a rasura De uma pintura numa sala escura. Só o que há, na verdade, é a frescura Das tintas, e, claro, a inútil moldura. É loucura tentar numa leitura Abarcar, da mistura, uma postura Única, quase uma figura pura Que se censura só numa estrutura. Para alguns a cura da sepultura É essa clausura que não perdura. A capa dura Gustavo Paes Heinz Langer Chegou!

plástico bolha · na rua com a pergunta “você curte poesia?”. Também está ... a pergunta, sem resposta, sobre o sentido de nossas vidas. por Gregório Duvivier Subjetivas

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Page 1: plástico bolha · na rua com a pergunta “você curte poesia?”. Também está ... a pergunta, sem resposta, sobre o sentido de nossas vidas. por Gregório Duvivier Subjetivas

Destino

O tempo passa e cura todas as feridaspassa mais um tempo e as cicatrizesse apagam e vai-se a lembrança daquela tarde fatalagora que ele está em outra cidade,num outro clima, num outro fuso horárioe assim quando ele senta no deque para observaro mar, o próprio ar parece saturadode luz e um pólen dourado de promessainduz a um torpor como o do lótus, uma distensãomesmo na pessoa mais mal-humorada,quanto mais neste homem, um otimista inveteradoque acredita que, aha, chegou a hora delefinalmente, que seu navio chegou ao portoquando às escondidas, naturalmente, um agente malignose movimenta e uma nuvem escuraestá prestes a esconder seu sol.

plástico bolhaaparentemente insólito...

Ano 2 - Número 16 - Setembro/2007Distribuição Gratuita

NESTA EDIÇÃOarmando nogueira ana chiara clÁudia castro rafael huguenin lucas viriato joÃo lima

nastassja pugliese heinz langer gustavo paes andrÉ sigaud mauro gaspar fred coelho

gregÓrio duvivier isabel wilker angelo abu joÃo francisco c. ribeiro marcela s. rosa

henry pablo juliana cesar marilena moraes paulo h. motta lasana lukata luiz coelho

rodrigo n.c. chiara di axox ricardo sternberg chloe paisley isabel diegues regina pombo

Parte, sim, de uma vontade de que o acaso não seja em vão.

Toma a forma de tra-balho, passos árduos de uma penosa peregrina-ção.

Uma breve respira-ção entre as braçadas: o caminho é longo, o problema insolúvel e, no momento, só há uma saída: a próxima edição.

Ricardo Sternberg

Deixe eu deliciar esse cotovelo que tu tens. Cotovelo concreto e com-pleto que tu tens, onde guardas ainda um pouco de simplicidade. O resto do teu corpo é todo complicado, uma confusão de dentes e cabelos, cérebro úmido e mal-entendido amarrado no nó dos intestinos. Amarrado à barriga, amarrado ao útero inútil. Deixa eu tocar-te o cotovelo. Cotovelo belo como aquela torta macieira que subias nos verões da tua infância. A macieira tinha a mesma pele seca e umas cicatrizes que vocês deram uma à outra. E tu ficavas escondida nos braços dela, e tu matavas as formigas. E comias as maçãs, e comias as sementes das maçãs porque a tua mãe te disse que uma pequena macieira cresceria dentro de ti se tu comesses as sementes das maçãs. Era uma mentira de mãe, mas tornou-se verdade da filha quando ar-rancaram tua macieira numa tarde de raízes súbitas. Deixaram só as pétalas caídas na bacia.

Eu quero despetalar-te. Deixa eu ver este teu cotovelo, maçaneta do teu ser. Deixa eu entrar e assim entrando entender, talvez, a tua insistência nas coisas que não existem.

Chloe Paisley

Com solo, Consolo

No número passado, publicamos o primeiro poema que o poeta Ricardo Sternberg, professor de Literatura Portuguesa e Brasileira da Universidade de Toronto, enviou para o Plástico Bolha. Nesta edição, trazemos o segundo poema de Ricardo, que, junto com o anterior, são parte da série These Stories (Estas Histórias). Ambos foram traduzidos por Marilena Moraes, com a supervisão de Paulo Henriques Britto.

Fate Time passes and heals all woundsthen passes some more and scarsare effaced and the memory goneof that most fateful afternoonnow that he is in a different city,under a different climate and time zoneso that as he sits on the deck to surveythis coast, the very air seems saturatedwith light, a golden pollen of promiseinducing a lotus-like torpor, a letting goon the most curmudgeon of spirits,never mind this man, inveterate optimistwho believes, ha ha ha his time has comeat last, his ship has sailed into portwhen off camera, of course, some malignantagent is moving and a dark cloudis about to blot out his sun.

Essa necessidade — uma procuraPor definir o que é literatura —É uma aventura mais uma tortura,É pendurar o que não se pendura,

É tentar passar a limpo a rasuraDe uma pintura numa sala escura.Só o que há, na verdade, é a frescuraDas tintas, e, claro, a inútil moldura.

É loucura tentar numa leituraAbarcar, da mistura, uma posturaÚnica, quase uma figura pura

Que se censura só numa estrutura.Para alguns a cura da sepulturaÉ essa clausura que não perdura.

A capa dura

Gustavo Paes

Heinz Langer

C h e g o u !

Page 2: plástico bolha · na rua com a pergunta “você curte poesia?”. Também está ... a pergunta, sem resposta, sobre o sentido de nossas vidas. por Gregório Duvivier Subjetivas

1. Está proibido a qualquer outro poeta senão o autor deste manifesto aderir ao movimento idiossincrático. Caso contrário, o movimento deixará de ser idiossincrático.2. Na poesia idiossincrática estão proibidas as palavras “castelo”, “querubim”, “alma”, “mente” e a palavra “vaso”, esta última sendo permitida quando com a acepção de vaso sanitário.3. Estão abolidas as reticências, por serem estas cafonas.4. O poema-piada só é permitido no caso da piada ser, de fato, engraçada.5. Está proibido ao poeta idiossincrático abordar desconhecidos na rua com a pergunta “você curte poesia?”. Também está proibido ao mesmo distribuir filipetas, de qualquer tipo.6. A apresentações em recitais de poesia também está proibida pelo simples fato do autor deste manifesto achá-los um porre.7. O verbo “poetar” ou qualquer neologismo do tipo é considerado lamentável.8. Os óculos de aro grosso são dispensáveis, assim como as gravatas coloridas ou qualquer coisa que tenha como objetivo fazer o poeta ter cara de poeta.9. Por fim, é considerada detestável a escrita de manifestos, sendo este, obviamente, uma exceção.

Como poema transpiro e transformo a imagemsonoratranspassoo limite transfiro a meta-terreno transporto o somem círculostransversostranstorno novoo caminhode quem transcorre o espaçorumo à lógica transfigurada datranscodificaçãode umaidéia-somtransubstanciotransposicionoo percurso etransatodestranso o poema

Comecei a ensinar ainda menina. Primeiro, para as almofadas de meu quarto de criança. Depois, quando apenas alguns anos me separavam dos olhos curiosos que tinha a minha frente. Passados quinze anos como professora nesta universidade, talvez possa perguntar: o que é ensinar filosofia? Há uma grande diferença entre o ensino que hoje realizo e minha brincadeira infantil de falar com as almofa-das? Não seria esse prazer primevo a antecipação, já a elaboração da tarefa que um dia iria realizar e à qual dedicaria minha vida inteiramente? Hoje vejo que sim. Porque no trabalho de formação filosó-fica não é o conteúdo o que mais importa, aquilo que podemos chamar de saber e que traz consigo, freqüentemente, um poder mutilante e nefasto. Em seu sentido mais elevado, ensinar filosofia (se isto é possível) é, ao mesmo tempo, ter o privilégio de viver e suscitar uma experiência de parada, de interrupção no curso das atividades práticas e automáticas de nossas vidas, para que um pouco de ar fresco, livre, possa atravessar.

Desde sua origem, os grandes pensadores concluíram que o pensamento puro é desprovido de utilidade. Ele é um momento de crítica, de indagação sobre o que somos e desejamos profundamente. E o professor enfrenta, a cada aula, o desafio de despertar esse sutil questionamento.

Ensinar é, antes de tudo, amar. Entrar num movimento em que nos despojamos de tudo que nos caracteriza como um sujeito pequeno, “humano demasiado humano”, nas palavras de Nietzsche, e, nessa abertura, pensar-com, pensar junto aos espíri-tos com os quais o acaso nos colocou em relação. Espíritos que também se abrem para o pensamento que, de fora, os transforma, irreversivelmente.

Assim, o trabalho do professor – que se inicia do zero a cada vez que ele adentra o espaço sagrado da sala, com as carteiras e a sua mesa, o quadro e o giz – se assemelha ao de um baloeiro que ensaia fazer subir um balão. Pois uma aula é como um balão. Se é boa, nos leva ao céu, para além de nós mesmos, até o reino mais perfeito da liberdade. Quando o balão consegue subir? Ele sobe se, inex-plicavelmente, tanto o professor quanto os alunos, encantados com a magia misteriosa das palavras, tocam o insondável: a pergunta, sem resposta, sobre o sentido de nossas vidas.

por Gregório DuvivierSubjetivas

Aos alunos com carinho

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Manifesto idiossincrático

Envie seus textos para: [email protected]

plástico bolhaproduzido pelos alunos de Letras da PUC-Rio

Tiragem: 8.000Impresso na CUT Graf

Distribuído no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte

CoordenaçãoPaulo GravinaLucas Viriato

RevisãoMarilena MoraesRubiane ValérioRafael AnselméGabriel Matos

EditorLucas Viriato

Editora AssistenteMarilena Moraes

Conselho EditorialLuiz CoelhoGregório DuvivierIsabel Diegues

ComissãoConstanza de CórdovaGregório DuvivierMauro RebelloJulia BarbosaIsabel WilkerEdson Santana

Projeto GráficoJoana Petersen

EquipeMárcia BritoEsthér OliverBeatriz PedrasPaloma EspínolaFernando Fernandes

ApoiadoresLuisa NoronhaMarília Rothier

Lasana Lukata

Cláudia CastroProfessora do departamento de Filosofia da PUC-Rio

O impossível coice de um cavalo-marinhoAbriu a ostra onde havia pérolaE se eu não tivesse naufragadoJamais veria esta cenaE não teria este colar de ilusões para aliviarA aspereza dessas noites nervosas em que o poema não vemOu rebenta ao mínimo ruído como se fosse solitáriaE o que poderia ser tudo metros mais de quinzeNo papel é pouco milímetros quase nadaE em mim fica presa uma enorme madrugadaInefável indizível cá por dentro deformada

Inefável

Isabel Diegues

PSICOLOGIARosana de Oliveira Guia

CRP: 05-32053

Psicóloga clínica: individual, casal e família.

Rua Maria Quitéria 74, conj. 202, sala 9 - Ipanema, Rio de Janeirotel.: 7817-3502 e-mail: [email protected]

para você que sempre quis ter um movimento literário só seu e de mais ninguém

Transrepetição

O fato é que agora vôo alémSou um feto retrocedente à vidaE fito daqui com muito desdémA foto do esboço já distorcida

André Sigaud

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Que frio estava fazendo! E aquelas portas de madeira prensada não ajudavam a manter o clima dentro do armário mais aconchegante. Ainda mais por se tratar de um armário de cozinha, onde tudo é azulejado e frio. E, cá pra nós, aquelas dobradiças já deveriam ter sido trocadas havia um bom tempo, a porta mal fechava. E isso só agravava em muito o frio que os produtos guardados no armário sentiam naquelas longas noites de outono – que estavam mais para noites de inverno.

Tudo começou após uma ida ao supermer-cado. Compras do mês. Ele sabia muito bem como era aquilo. De repente, a prateleira que estava quase vazia, privativa para aqueles produtos que não foram consumidos, se enchia de novidades. E ele sempre sobrava. Para falar a verdade, ele não sabia nem por que havia sido comprado. Ninguém naquela casa gostava de cereal de aveia, e isso era certeza.

Biscoitos diversos, fermento em pó, alguns produtos de compota, torradas, adoçante líquido, palitos; Nescau era na prateleira de baixo... Em meio àquele redemoinho de novos colegas, algo em especial havia lhe chamado a atenção: aquela pequenina caixinha vermelha de uvas passas. Como era graciosa aquela rapariga da embalagem! Cabelos morenos longos, pele alva, bem vestida. Muito nova para ele, pensou, e provavelmente deveria ser de consumo rápido. Se ficassem uma semana juntos naquela prateleira seria muito.

Em poucos minutos, todos os produtos fo-ram guardados em seus devidos lugares para serem esquecidos ali até a hora que alguém sentisse fome ou a empregada resolvesse fazer um bolo.

Naquela mesma noite, algo inusitado, ou nem tanto, sucedeu. Uma barata das grandes entrou junto com o frio pela porta mal fechada. A rapariga, como toda rapariga, se assustou. Ao perceber o nervosismo da donzela, ele, velho de armário, se pôs a acalmá-la:

— Acalme-se. Isso acontece de vez em quando. Não tem com o que se preocupar. Você está bem fechada?

— Estou... Quer dizer, acho que estou — res-pondeu aflita.

— Estou certo de que deve estar. Produtos recém-chegados raramente vêm abertos — disse, tentando abrandar o nervosismo da moça.

— Mas... Mas... Ela está em cima de mim...— Isso é porque você provavelmente deve

ser docinha. Deve ter ficado junto de alguma amiga aberta no supermercado e pegou o cheiro. Acontece. Não há com o que se preocupar; logo, logo ela vai embora.

Eles ficaram juntos durante toda a noite. Uma hora a barata se foi, mas eles continuaram um com o outro até adormecerem.

No dia seguinte, acordaram bem cedo, devido à claridade que entrava pela abertura da porta.

— É claro aqui — disse a moça com voz de quem acaba de acordar.

— Claro pela manhã e frio à noite! Esta porta já devia ter sido trocada há muito tempo, mas aqui eles não dão muita atenção a esses detalhes.

Depois de algum tempo, ela continuou:— Obrigada por ontem à noite. Você foi...

muito gentil.— Que isso! Não fiz mais do que a minha

obrigação. Eu sei como são essas coisas. Já estive

numa prateleira de supermercado uma vez, mas isso faz muito tempo. Sei como é difícil esse período de adaptação. Estamos acostumados a vida inteira a ver e interagir com produtos que são milimetricamente idênticos a nós. Mas aí, de repente, alguém nos tira de nossa prateleira, nos joga num carrinho. Daí pra frente é esteira, leitura ótica no nosso código de barra (constrangedor!), saco plástico, mala do carro sacudindo e, sem mais nem menos, caímos aqui, nesta prateleira fria, repleta de produtos que nunca imaginamos existir...

— Repleta de baratas também!— Elas não costumam vir muito aqui — disse,

sorrindo — mas, de qualquer forma, uma hora nos acostumamos com elas.

— Tudo é tão traumático. Se não fosse você ontem à noite, eu não sei como teria agüentado. E eu não sei nem o seu nome.

— Pode me chamar de Quaker. E você? Como se chama?

— Bem, quando fui retirada de minha pratelei-ra, falaram “Há quanto tempo não via essas passas!”. Acho que meu nome é Passas.

— Não, “passas” é o que você é. Do mesmo jeito que eu sou um cereal de aveia. O que tem escrito na sua embalagem? – A forma como Quaker falava era culta e explicativa, como se fosse portador de grandes conhecimentos. E como isso encantava a insegura rapariga.

— Deixe-me ver... Sunrise Raisains Secs, não sei se é assim que se pronuncia.

— Um nome em francês! Encantador!Quaker e Sunrise continuaram conversando

por muito tempo. Falavam sobre tudo: experiências pessoais, memórias do supermercado, a vida naquela prateleira. Quaker contava para ela os hábitos da família e juntos ficavam imaginando o que haveria nas outras prateleiras.

Uma hora, já de noitinha, o já esperado acon-teceu. Eles estavam juntos, da mesma forma como tinham sido guardados. Pela porta mal fechada, avistavam a janela da cozinha e, através dela, um magnífico céu estrelado. O frio também contribuía para uma atmosfera bem romântica.

— Posso te perguntar uma coisa? — titubeou Sunrise com sua voz graciosa.

— Claro.— Você acredita em reciclagem?— Não sei. Não costumo pensar muito nessas

coisas.— Me acha boba? — perguntou, insegura.— De modo algum. Acho que o bobo devo

ser eu, por ser tão objetivo e divagar pouco sobre a vida. Você acredita?

— Acredito, sim. Eu acho que não pode tudo acabar assim, simplesmente indo pro lixo. Imagino que deve ter algo mais, algo além de tudo isso que conhecemos.

— É capaz. Não costumo pensar muito sobre isso... — Do mesmo jeito que ela se encantava com toda a sabedoria de Quaker, ele era fisgado pelo ar misterioso que ela exalava em suas palavras.

— Sabe, ontem à noite você me chamou de docinha... — disse em tom apaixonado.

— Chamei? Desculpe a indeli...— Não precisa se desculpar. (pequena pausa)

— Eu gostei.E, daí em diante, eles se amaram como um

casal em lua-de-mel. Ficaram se amando, olhando

para as estrelas e, enquanto todos os produtos daquele armário sentiam um frio danado, eles reclamavam do calor. Ela pouco se importava com a idade avançada dele, até gostava de seus cabelos brancos. E ele nunca havia imaginado que conseguiria moça tão bela em toda a sua vida.

O tempo foi passando e os dois consolidavam a relação. Mesmo aparentemente não tendo nada em comum, descobriram juntos que ambos eram ricos em fibras. Mas não era só isso que os unia. Os gostos musicais e artísticos também. Apesar de que o sonho da vida de Sunrise era se tornar uma latinha de sopa Campbell de Andy Warhol. Já Quaker não apreciava muito o artista, achava que ele os expunha demais e, assim, deturpava a condição de produto, inerente a todos eles. Mas não era Warhol o maior motivador das brigas do casal:

— Você acha que eu não percebo como você olha pra Gina dos palitos??? — revelou um dia, em tom irritado.

— Como? Ah, pelo amor de Deus! Deixe de ser ciumenta dessa maneira! Você enxerga situações que não existem!

— Não existem?!? Quaker, eu te conheço. É só passar uma loirinha que você se assanha todo.

— E você? Já reparou como aqueles “monges” do chocolate em pó te comem com os olhos? De monges não têm é nada. São uns safados, isso sim!

— Ei, fale baixo. Não queremos criar um clima ruim na prateleira.

Mas essas discussões eram passageiras e, na verdade, só adicionavam aquele ciúme normal, que apimenta e estimula os relacionamentos. E por falar em apimentado...

— E aí, garotão? Não tem caloria pra noite toda não? — disse com um sorrisinho na boca.

— Vou te mostrar quantas gramas tem aqui nessa embalagem!

— Levadinho!A idade avançada de Quaker não atrapalhava

em nada a vida sexual do casal. Ele era uma máquina e ela, insaciável.

De vez em quando, alguém abria o armário e pegava um biscoito ou o adoçante. E foi numa dessas vezes que passou pela primeira vez na cabeça de Quaker o que ele sempre soube: aquele amor, a vida a dois, não iria durar para sempre. Ele sempre soube, desde a primeira vez que viu Sunrise, que uma hora ela seria consumida e ele ficaria ali, esquecido no armário, como sempre. Isso já havia ocorrido diver-sas vezes. Nenhum produto das compras dele ainda estava ali. Foram todos embora aos pouquinhos, ou comidos no almoço, ou num lanchinho rápido. E ele ali, resignado a permanecer esquecido na prateleira. Por vezes, pensava que tinha sido comprado por engano e que iria passar da validade ali, sem que ninguém o notasse.

Como seria difícil suportar a solidão no armário sem ela! E depois que ela se fosse, também iriam todos os que conviveram com eles naquele armário. Chegariam novos produtos, que não fariam a menor idéia de quem era Sunrise e do que o amor deles tinha representado. Chegaria o dia em que só ele saberia que esse amor tinha existido, e — quem sabe — ele não tivesse existido só na sua cabeça, já que ninguém mais partilharia com ele essas memórias. Ficaria velho e perturbado.

Chegará o dia — porque um dia todos os dias chegarão, até este — em que consertarão a dobradiça

da porta. Ou — quem sabe — comprarão armários novos? E ele se lembrará dela, do frio que sentiam, das estrelas que viam através da janela. E sentirá um aperto forte no fundo do peito, uma vontade apenas de poder contar pra ela essa novidade. Chorará por horas, dias sem fim. Chegará até mesmo — veja só que besteira — a desejar nunca tê-la conhecido, para não ficar condenado a uma vida posterior de saudades e sofrimento. Mas, no fundo, sabia que só conhecera o que é a vida naquele dia de compras, quando avistou pela primeira vez aquela menina ainda sem nome. Aquela menina apavorada com a barata em cima dela.

Só de imaginar isso tudo, Quaker emudecia.— O que houve, amor? Por que você está

com essa cara?— Nada não, querida. Pensando. Será mesmo

que existe aquela história de reciclagem? Será que no passado a gente não pode ter sido um produto só?

— Às vezes, eu penso nisso. Quem sabe, no futuro, nós não nos tornaremos os dois uma só embalagem, guardando o mesmo produto?

Pensar no futuro era fatal para Quaker. Todos os fantasmas da separação voltavam à sua cabeça e, ao seu rosto, voltava aquela expressão que tanto incomodava Sunrise.

Quando ela ia perguntar novamente sobre o que ele estava pensando dentro daquele chapéu, foi interrompida. A porta se abriu e a empregada enfiou o rosto na frente da prateleira. A primeira a ir embora foi Sunrise, quando ainda estava pensando no que afligia o companheiro. Depois, foi a vez do pote de açúcar — mas este sabia que iria retornar. E, por fim, nosso querido Quaker, que também faria parte da receita!

É, por essa ele não esperava. Nunca imaginou que chegaria o dia em que seria consumido. E ainda mais: não foi preciso se separar de Sunrise. Seriam consumidos juntos, tendo seu amor eternizado.

Ingredientes: 200g de flocos de aveia 200ml de água Uma casca de laranja ou de limão Duas maçãs descascadas e picadas Uma colher de chá de açúcar Uma colher de chá de erva-doce 50g de passas de uvas

Modo de preparo: 1. Cozinhe os flocos de aveia em água fer-

vendo com uma casca de limão. 2. Junte as maçãs picadas, as passas de uva

e a erva-doce. 3. Misture, adicione açúcar e introduza numa

forma untada. 4. Asse em forno moderado durante 20

minutos.

Esta é a história do amor entre Quaker e Sunrise, que tiveram o seu conteúdo unido numa deliciosa receita de bolo de aveia com passas. Suas embalagens foram jogadas juntas na lata de lixo. Se foram reciclados ou não, ninguém sabe. E, mesmo se alguém soubesse, não viria ao caso estragar os mistérios da vida.

3

Amor de armário

Lucas Viriato

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Dizem que temos sorte por vivermos em uma época em que a filosofia é considerada um trabalho inofensivo. No outono de 1676, Benedito de Spinoza tinha motivos suficientes para temer por sua própria vida. Um de seus amigos tinha sido executado cruelmente não fazia muito tempo, e outro, morrera na prisão. Spinoza, “o judeu ateu”, era “o homem mais ímpio e mais perigoso de todo o século”.

Ele vivia na Holanda, numa casa de tijolos vermelhos a beira do canal Paviljoensgracht, numa cidade povoada de moinhos de vento. Seus amigos e os curiosos que faziam visitas diziam ver nele algo profundamente enigmático e o descreviam como possuidor de uma personalidade que misturava estranhamente cuidado, coragem, modéstia e arrogância. Aparentava uma frieza lógica e tinha uma força apaixonadamente revolucionária. Ele era um herege com percepções de um verdadeiro beato, era um santo sem religião. Mas, apesar de seu carisma, Spinoza tinha uma facilidade tremenda de fazer inimigos.

Com sete anos de idade, no ano da morte de sua mãe, Spinoza entrou na escola judaica, onde teve uma educação tão profunda quanto estreita. Memorizava a Bíblia, estudava hebreu, aprendia sobre os costumes judaicos. Ele era um estudante excepcionalmente dotado em suas capacidades intelectuais, e logo atraiu a atenção dos líderes da comunidade, principalmente, de Saul Morteira, rabino mais consagrado de Amsterdam. Morteira via Spinoza como o pupilo que, um dia, herdaria seu cargo. Mas o pequeno estudante não procurava um mestre. Decidido a ler a Bíblia por conta própria, passou a não sentir mais a necessidade de ouvir as interpre-tações de Morteira. Spinoza, depois de ter afirmado publicamente que as escrituras tinham intenção não de educar, mas de fazer os homens fiéis e obedientes ao poder das autoridades religiosas, perdeu não só a admiração de Morteira como também ganhou muitos adversários. Ele afirmava sem balbucios que Deus era um ser corpóreo, e que não havia nada na Bíblia provando o contrário.

No dia 27 de julho de 1656, na sinagoga de Amsterdam era lida sua sentença de excomunhão: “...sabendo das diabólicas opiniões de Spinoza, depois de termos tentado, sem sucesso, livrá-lo deste caminho do mal... nós decidimos que Spinoza deve ser excomungado e expulso do povo de Israel. Ele deve ser maldito de dia, e de noite. Maldito quando se deita e quando se levanta... inflame-se o furor de Adonai contra esse homem...advertindo que ninguém pode falar, nem escrever a ele, nem conceder-lhe nenhum favor. Não se pode estar, dele, uma distância menor do que quatro côvados, nem se pode ler papel algum escrito por ele.” Spinoza tinha, neste dia, 23 anos e uma desculpa a mais para ir na direção de sua própria liberdade de pensar.

Tamanha era a pressão contra o filósofo que, um dia, um judeu fanático tenta esfaqueá-lo. Spinoza sai ileso do ataque e com um corte nas costas de seu paletó. Ardiloso, ele continua a usar a vestimenta, mesmo rasgada, e quando o perguntam por que não o costura, responde acidamente: é para que vocês possam ver como é perigoso pensar... Em 1661, ele se muda para Rijnsburg e começa a polir lentes para sobreviver. Torna-se famoso por esse trabalho, que o consagrou como capaz de produzir, nas lentes, uma geometria perfeita. Quando seu pai faleceu, Benedito deixou toda herança para a irmã, tendo pegado para si apenas uma cama. Ele parecia não ter avareza nem desejo de riqueza e honrarias. Era movido por suas próprias regras de vida e pelo desejo intenso de pensar.

As cartas entre Spinoza e seus correspondentes formavam os ciclos clandestinos. Elas eram fechadas com a cera, onde se podia ler a marca do carimbo “cuidado” e as iniciais de Spinoza. Nelas estavam sendo escritos conceitos revolucionários para a história da filosofia e do mundo. Dentre os correspondentes estavam o filósofo Leibniz, o cientista Huygens, o secretário da Royal Society de Londres – Henrich Oldenburg, e o médico Lodewijik Meijer, grandes intelectuais do século XVII.

Além de escrever cartas e fumar cachimbo, um dos passatempos prediletos de Spinoza era colocar duas aranhas num vaso e vê-las lutarem, brigando até a morte. Brincadeira sar-cástica que mostrava seu sangue frio frente à finitude e ao fatalismo das leis naturais. Spinoza também arriscava na pintura. Os últimos anos de sua vida foram vividos em Haia, na casa do pintor Hendrik van der Spyck. Talvez inspirado pelo ambiente, nessa época Spinoza pintou uma série de croquis representando um personagem da lenda de Masaniello que conta a história de Tommaso, um pescador italiano que é assassinado na rua enquanto lutava numa revolução. Colerus, responsável pela biografia do filósofo, conta que os desenhos reproduziam a iconografia da lenda, com redes de pesca e elementos deste tipo, mas que o rosto não era o de Tommaso, mas de Spinoza ele mesmo – era uma série de auto-retratos.

Na tarde do dia 21 de fevereiro de 1677, enquanto Hendrik vai com sua esposa à igreja, Spinoza recebe a visita de um médico desconhecido. Na volta da missa, o casal encontra-o sozinho, morto. O “doutor”, que alguns historiadores pensavam ser Lodewijk Meyer, amigo de Spinoza, era Schüller - indivíduo mandado à Haia por Leibniz. As análises das cartas entre Leibniz e Schüller denunciam o médico, que tinha conhecimentos de alquimia. Schüller es-creve a Leibniz contando que após ter vasculhado todos os papéis de Spinoza, destruíra alguns, mas não fora capaz de encontrar o manuscrito de suas obras. Apesar das evidências, elas não passam de especulações e a única coisa que se sabe é o fato de Leibniz ter tido ciência de que Schüller iria visitar Spinoza que, por coincidência ou não, morrera no dia da visita. Spinoza, que sabia dos perigos que corria, havia escrito um testamento onde deixava uma escrivaninha de madeira, trancada com chave, para um amigo. O móvel então, depois de atravessar silen-ciosamente os canais de Amsterdam, chegou às mãos do editor.

Alguns anos depois, celebra-se o pensamento de Benedito, que sai da clandestinidade. Inclusive Hegel chega a dizer que “ser Spinozista é o ponto de partida essencial para toda filosofia.” E, depois que liberdade de expressão já tinha sido conquistada como um direito fundamental, Einstein, quando o perguntam sobre sua fé, responde: “eu acredito no Deus de Spinoza.” Eternizando-se junto à filosofia na luta por pensar, a história de vida de Spinoza é uma herança preciosa. Herança dele, que viveu com três paletós, dois pares de sapato, sete camisas, um retrato, um pequeno jogo de xadrez, um travesseiro, uma manta e cento e sessenta livros.

porAna Chiara

Puzzles

OridesOridesBebo pouco em tua fonteSenhoraDas ferasE esferasAgora vou enfiar a línguano céu da tua pouca palavrada tua economiafazer carnaval...

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Aquela lâmpada no teto espreita-me.Meus pensamentos vão borboletearfora, em torno delacomo um estouvado besourogirandosemelhante a não sei que ritualpitoresco, profano. A cabeça pesadaque os ombros não suportampendurada ao corpo.O papel intacto,destemido.A inspiração prostradanum uníssono copo de outono. Experimento a tênue ampulheta:cinza primevabrinca nos olhos secretos.Quase inverno e estiofim da linha,desvio. Mas na paisagem enviesadana geometria infalível do quartobem ali, está a primavera que recendee se evola num pradoque se sobreporánum outro viésonde quase posso veras esfinges e pirâmides de Pessoa.

Nastassja de Saramago A. PuglieseAluna da Pós-Graduação de Filosofia da PUC-Rio

Bendito seja o Benedito, de Spinoza

João Lima

Você começou a nascer no dia em que me dei um presente. E agora desanda desanda e nada estanca. Escrevo na parede de pe-dra. Texto.Teso. Tudo. e logo saio. O alívio ocupa o que me aflige. Chego em casa às quatro. No ar-mário café, pão e queijo. O relógio de ponteiro parado às doze. Mudo como a sala. escrevo escrevo es-crevo e nada pára. Meu Deus não pára. Na mesa o caderno guarda todas as palavras a lápis, caneta. São muitas e estão soltas. Folhas agora marcadas por palavras pala-vras palavras. Guardei pra você por todos esses anos. A boca sem voz. Aqui ao lado da sua cama procuro seu lábio. Desenho com o dedo o sorriso que me lembro. E me levo ao jardim onde brincava. E rodava rodava rodava quando a vida nada me custava. Só soava e se anun-ciava. Um mar de palavras palavras

Sem palavras

Regina Pombo

m u l h e r e s - d a m a s

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INVASORES DE CORPOS: MANIFESTO SAMPLER

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As palavras se movem, a música se move. A base da escrita sampler está calcada na idéia de que literatura é movimento, de que a literatura está em movimento contínuo, em relação de interferência e reflexão permanente de vida e do seu tempo. Tradição e memória estão inscritas em determinado momento histórico, mas estão “acontecendo” agora, no instante da escrita.

A literatura é, a música é. Sou, logo não serei mais, apenas outro remix de deus perdido na espécie, solto no ar, flutuando no texto do homem, fluindo no som da música que não retorna, porque é eternamente, é. Um novo procedimento, que não é novo. Uma nova estética, que não é propriamente nova. Uma nova pos-sibilidade, que nova também não é. Mas, sim, um âni-mo novo, um novo ar, uma nova respiração, não mais artificial, fora dos aparelhos da morte. Conectado mas desligado, antenado mas descorporativado, incorpora-do mas desenraizado, ativado mas des-hierarquizado.

A linguagem não indica o sentido, ela está no lugar do sentido.

O paralelo da escrita com a música tem como base a revolução causada pelos novos meios eletrônicos de produção musical. Abrem-se sulcos no paradigma da criação musical. Isso, é claro, desconsiderando purismos, preconceitos, pudores e hierarquias que pressupõem que a linguagem pára onde nossos ou-vidos alcançam, ou seja, no limite da nossa recepção. O elemento mais importante desse novo sistema de produção é o sampler: um gravador em que se arma-zena qualquer espécie de som e que permite repro-duzir a gravação da forma que convier, no tom dese-jado, seja ela um ruído, uma música, um latido. Se é uma música, pode-se utilizar um trecho determinado e repeti-lo em loops incessantes, ou silenciar instru-mentos para deixar apenas uma batida específica da bateria de Stewart Copeland ou um riff de guitarra de Jards Macalé ou uma linha do baixo de Bootsy Colins, ou um fraseado do sax de John Coltrane.

A partir desse novo horizonte, ganha força a cul-tura hip-hop, que emerge das periferias e que tem no rap o seu veio musical. Ganha força a música eletrôni-ca. Ganha força quem está interessado na linguagem como possibilidade. E, fundamentalmente, ganha força a idéia de que é possível combater o poder das corporações através de comunidades que hoje são co-munidades locais no sentido de afinidade, espaço de interesse e afeto comum, não mais no sentido geográ-fico. Mesmo sem propriedade, rappers e DJs se apro-priam dos meios de produção tecnológicos.

Em 96, DJ Shadow lança “Endtroducing...” (in-troduzindo o final), disco que é o marco da música eletrônica recente, baseado na estética sampler. Uma obra feita como uma colcha de retalhos que se torna, através de sua construção, um tecido entrelaçado, dando forma e corpo a uma outra colcha. Uma colcha em que os retalhos estão presentes, integrados e ativos num material que se desprende do material anterior e da pressuposta individualidade de cada fragmento.

Shadow propõe, e consegue, criar uma nova impressão, um corpo fundado na invasão do outro.

Escrita e música se movimentam em temporali-dades simultâneas, num fluxo fragmentado e sensorial constante.

Em 1964, um aspirante a sampleador flerta, através da poesia, com o procedimento sampler via computa-dor. Ele pensa: é honesto com os outros poetas e com os mestres mortos usar o sampler para escrever? Ouve música montada com ruídos eletrônicos, estalidos, ba-rulhos de rua, trechos de velhas gravações e fragmentos de discursos. Faz uma aproximação da escrita com a música eletrônica em sua vertente erudita e experimen-tal. Stockhausen é seu escritor predileto. Eliot e Pound, seus músicos de cabeceira.

O argumento: se a música traz os “cortes” da vida, o que está fora, ruídos, barulhos, máquinas, silêncios que não são “traduzidos” pela linguagem, e sim incor-porados, por que não operá-los na escrita? Não é tempo de a poesia se equiparar à música?

Não há corpos intactos para a escrita sampler.

O FIM É O MEIO

Esqueça o que foi dito, o que já está escrito. Es-queça para lembrar. Escrever é esquecer.

Este texto não é meu, não tem posse nem origem.É preciso aprender todos os movimentos para es-

quecê-los. A música toca sozinha, através (de mim).Falamos através, com e a partir de irmãos de es-

pírito, invasores de corpos também invadidos aqui e sempre: Walter Benjamin, Ricardo Piglia, Helio Oiti-cica, Jorge Luis Borges, Silviano Santiago, DJ Shadow, Samuel Beckett, Gilles Deleuze, Friedrich Nietzsche, Thomas Bernhard, Fernando Pessoa, Artur Miró & Matafina, Glauber Rocha, Antonin Artaud, Bruce Chatwin, T.S. Eliot, Franz Kafka.

INSPIRAÇÃO: todos os artistas sampleados pela escrita sampler — essa é a homenagem literária supre-ma, não importa o que digam os seus advogados.

Além dos já citados, esta invasão de corpos con-tém samples de:

Ana Paula Kiffer, Artur Omar, Bertolt Brecht, Claude Lévi-Strauss, Eneida Maria de Souza, Hans Ul-rich Gumbrecht, Jacques Derrida, Jacques Rancière, Jean Baudrillard, Jean-François Lyotard, J.M. Coetzee, Karl Kraus, Marília Rothier Cardoso, Michel de Cer-teau, Michel Foucault, Michel Schneider, Pierre Joseph Proudhon.

NOSSA NATUREZA ESTÁ NO MOVIMEN-TO; A CALMA COMPLETA É A MORTE. ESTE TEXTO NÃO ACABA AQUI.

Os invasores: Frederico Coelho & Mauro Gaspar

Safeganistão/Dar es Salaam-Cabana, 31 de maio de um 2005 sem fim.

FOTOGRAMA VI: A ESCRITA COMO MÚSICA

Marcela Sperandio Rosa

Tem uma força forte que me prende ao chão desta minha casa. Como um apaixonado deita em cima do seu objeto de paixão, eu deito sobre a minha cama ou me estendo pelo chão, fazendo uma verdadeira ode existencial à vida horizontal. Me deleito ao sentir o roçar das almofa-das de veludo entre as coxas, ou ao perceber o quão macios são os travesseiros de penas. Ao ler, estudar ou jogar videogame, fico sempre de bruços, com a barriga apoiada no chão. Quando tomo banho, sento no box e lavo a cabeça deixando a água do chuveiro cair em minha barriga. Outro dia eu resolvi sair de casa, estava com muita saudade das gaivotas da praia e pre-tendia me estender até lá para vê-las voarem em V. Me vesti como sempre, sentada no chão, primeiro uma perna depois a outra , levantando os quadris, apoiada nos ombros e pés. Coloco calça depois blusa. Após calçar os sapatos, na intenção de me levantar para abrir a fechadura de cima da por-ta, caio desajeitosamente, o que me rende uma enorme fenda sanguinolenta na testa. Passada a tonteira, faço uma nova tenta-tiva e me rendo. Parece que desaprendi de andar.

Crawling

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ALGO NOVO NA HISTÓRIA DO TEATRO NO BRASIL E EM PORTUGAL

Pensei que sentiria faltaDaquele nosso tempo açucaradoDaquele tempo arrumado, arranjadoDe um cigarro tragado, apagado

Pensei que estava tristeMas somente não estavaSua ausência nunca foi maior que minha própria ausência

A lã que nos segurava, que nos atavaNa verdade nunca esteve amarradaSolta no ar ela pairava sobre nossas cabeças tão mal elaboradas.

Sem nome, mas com motivo

Juliana Cesar

Livros:

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No ventre do verão sem calma ou vento,não tive a quem gritar. O sol queimante,o suor, a febre, o espasmo delirantesecava em todo peito todo intento.Era dezembro, o mês do fingimento.As ruas, eu cruzava em pranto andante,espremido entre a massa e o cru cimento,sem ninguém que me ouvisse o grito arfante.Em meio à gente tanta, solitário,no ventre do verão incinerárioqueimava os pés no solo e a pele no ar.E em todos os rostos um sorriso,tão belo, tão bonito e tão precisocom prazo até Janeiro pra pagar.

O ano todo enfurnado nestas salas,dissolvido no lodo comunal,ouvindo toda sorte de cavalasrelinchando em discurso doutoral!O ano todo enfurnado nestas valas,eu massa amorfa em baço lodaçal,ouvindo à força de novela e balaschafurdo na burrice universal!Entre sons sempre os mesmos como seralguém que vive, sente, quer e toca,enveredando em rumo do saber,se o que confere o ganho é ser boboca?Mais vale então o soco que desmontaque este lugar comum, que não afronta.

Deixe-me num buteco,numa mesa de ébano e açopra viajar no guardanapopreso pelo copo de cerveja.

Deixe-me em pazdebaixo da TV lendo novas teorias.

Deixe-me cachaçano final desta tarde.As tristezas foram diluídas

Deixe-me. O volume da TV está alto.E o controle não está emminhas mãos.

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Parto astrológico Bolhas Geraes

Henry Pablo

Dois poemas de Rafael Huguenin

– Amor, tô com dificuldades de engravidar.– Eu também.– Hã?– Quer dizer, tô com dificuldades de engravidar você.– Mas a culpa não é sua.– Com certeza!– Como assim, é minha?!– Hã! Não, não é minha nem sua.– Pois é.– Pois é... Vamos adotar?– Não. Não é a mesma coisa. Eu quero um bebê que

saia das minhas entranhas, entende?– Eu também. Eu também gostaria. Você já ouviu

falar em inseminação artificial?– Nem me venha com esses chás malucos da sua

mãe! Da última vez, posei de rainha por duas semanas com aquele tal de “chá de sena”. Nem lembro pra que aquela porcaria servia.

– Você tava meio gordinha.– Gordo é você! Eu tava um pouquinho acima do

meu peso.– Tudo bem. Não vamos mudar de assunto. Vamos

falar do meu filho.– Seu filho! Você tem um filho?– Não meu amor, o nosso filho, o filho que queremos ter.– Ah! Então tá, então. Mas você quis dizer filha.– Não, eu tenho certeza do que falei. Mas esse é

outro assunto. Pois então, inseminação artificial é quando inseminam artificialmente o bebê em você.

– Já grande? Que estranho!– Não. Eles inseminam o espermatozóide no seu óvu-

lo, sei lá, alguma coisa assim. Coisas da ciência.– Não sei não, eu prefiro da forma tradicional.– Eu também. Até porque fica a cargo de Deus escolher

como será nosso bebê.– Como assim, eu posso escolher?– Sim, nós podemos escolher o sexo.– Estou começando a gostar.– Que bom. Então agora já podemos discutir o sexo.– Como discutir? Já está decidido. Vai ser menina.– É melhor tirarmos na sorte para não brigarmos.

Desse jeito, escolher o sexo vai ser complicado. Olha só, mudando de assunto, já que estamos em outubro, se fizer-mos logo, o bebê poderá nascer em junho.

– Que bom, então vai ser pro dia 21 de junho!– Mas você é sistemática mesmo, né? Que diferença

faz 20, 21...? E como você vai escolher a data? Tá louca!– Em vez de eu fazer parto normal, quero fazer cesariana.– E se o médico disser que você terá de fazer o parto dia 20?– Ué, eu espero mais um dia.– E pra que isso tudo?– Bom, se ele nascer dia 20, será de gêmeos, mas, se ele

nascer dia 21, será de câncer. Um dia faz toda a diferença, amorzinho.

UERJ

Paulo Henrique Motta

Fim de Tarde

Banca da PUCTel.: 2512-7109

No ventre do verão Uai?! Tá sabendo não? A coluna Bolhas Geraes é dedicada aos nossos leitores e colaboradores mineiros, que, desde a edição número 13, recebem o Plástico Bolhas em diversos pontos de Belo Horizonte. Envie também os seus trabalhos para [email protected].

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Armando Nogueira já trabalhou ao lado de grandes figuras do jornalismo impresso, como Nelson Rodrigues e Clarisse Lispector. Na rede Globo, foi o criador dos programas Jornal Nacional e Globo Repórter. Hoje, dedica a vida às suas paixões: o esporte e o ofício da escrita.Considerado o maior cronista esportivo do Brasil, Armando arrumou um tempinho para um bate-papo com a equipe do jornal.

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Literatura, jornalismo e futebolEntrevista por Luiz Coelho e Isabel Diegues

Entre suas milhões de atividades está o ofício da escrita, mais especificamente, a escrita sobre o futebol. O que une as duas paixões?

Tem a paixão em si, do esporte, e tem a paixão pelo ato de escrever; você fica de certa maneira dependente da palavra, porque não pode deixar de escrever. Existe o respeito pela palavra, embora seja muito penoso mantê-lo; é uma das raras profissões em que você tem a chance de fazer e refazer. Na verdade, a palavra é um ser vivo que fica pulsando na gaveta, te incomodando; você bota na gaveta, no computador, onde quiser, mas, de noite, na cama, fica pensando que tem um ser te aporrinhando, enchendo teu saco. Você não se livra da palavra. Às vezes você é salvo por uma leitura. Você pode estar empacado numa palavra e ter uma insônia e, de repente, acorda com aquela palavra na ponta da língua. Isso já me aconteceu. Eu estava escrevendo um texto um pouco poético, “as bolas murcham no campo como as flores...”. Precisava de um trissílabo e não havia jeito de achar essa palavra, atravessada na garganta. Um dia, lia Machado de Assis, à uma hora da manhã, e uma palavra surgiu como se cintilasse na pá-gina; era a palavra “campina”, que dava certinho na minha métrica. Era a palavra que eu queria. “As bolas murcham no campo como as flores na campina”. Até então, faltava alguma coisa para completar o verso. E, quando é assim, a cabeça fica funcionando, você fica refém daquela busca. É aí que vem a recompensa: do fato de você ler; porque, se eu não gostasse de ler, talvez essa palavra não cintilasse na página, não ficasse piscando, como vi piscar. Há uma máxima que diz: escrever é reescrever. Escrever é cortar palavras. Mesmo que seja um bilhete para a namorada, não goste, desconfie sempre da primeira versão. Às vezes, falar menos é melhor. É preciso exercer o desapego para com a palavra; ao contrário do que se pensa, isso é uma forma de valo-rizar e não menosprezar a palavra; de buscar a palavra essencial, a palavra inevitável, a palavra irrecusável. Me parece que, sendo esta a premissa do ponto de vista da forma — e considerando sempre que a primeira versão do texto não é boa —, você tem um bom começo, um bom caminho. Então vem o mais complicado da história, que ainda não contei, que é você ter a capacidade de mentir. No meu caso, entro de maneira meio marginal nessa história, porque meus personagens todos são da vida real. Eu escrevo, mas, literariamente, não sou escritor, escritor é quem cria seus personagens.

Mas quando você retrata um personagem real , não o está recriando? Eu recrio o personagem, mas ele já existe. Posso até retocar, melho-rar ou piorar o personagem, mas ele precede a minha obra. Então minha obra não é de criação, é de recriação. Um dia, Clarice Lispec-tor, que trabalhava no mesmo jornal que eu, O Diário Carioca, es-creveu uma crônica muito simpática sobre o meu trabalho; ela dizia que eu deveria escrever um romance. Foi aí que me dei conta de que havia um grande equívoco entre os meus amigos, a começar por ela, mas também do Paulo Mendes Campos e outros: achavam que eu era um escritor. Romancista, contista e até poeta era o Nelson Rodrigues, que inventa personagens que não existem. Embora ele recrie alguns personagens, outros ele cria, como o “Gravatinha” e o “Sobrenatural de Almeida”. Estas são características do escritor; eu sou cronista. Tenho consciência de que pertenço a uma categoria, hoje, quase fora do jornalismo. Me dei conta disso não só quando comecei a escrever crônica, mas porque como eu lia muito Nelson Rodrigues, e como ele era um grande cronista, eu percebia que ele era capaz de melhorar ou piorar os jogos sobre os quais escrevia, ficava a critério dele, coisa que o jornalista não pode fazer, somente o cronista pode. Então, acho que temos, nas nossas categorias pro-fissionais, o repórter, que tem o comprometimento com o fato, o analista/comentarista, que comenta o fato, mas não necessariamente opinando, apenas analisando, e temos o cronista, que tem liberdade absoluta. O cronista não precisa ir ao jogo para gostar ou não do jogo. Passa-se a ter a liberdade (a que hoje me permito) de não ver o jogo todo; um pequeno episódio de uma partida de futebol pode me dar uma crônica. Costumo dizer que mais importante que o jogo é o jogador, mais importante que o jogador é a jogada, mais importante do que a jogada é o gesto. Posso, de um gesto, escrever uma crônica,

o repórter não. O cronista viaja. Fico, então, nessa fronteira. Pelo fato de eu ter uma forma requintada, trabalhada e sofrida, as pes-soas me consideram um literato, mas eu não me considero um literato. Os livros que escrevo são apenas livros de crônica.

Há alguns meses, você passou a ter o Blog do Armando Nogueira. Como é escrever para a internet?

Eu me dei muito bem com a internet, porque a internet é o reen-contro com a palavra escrita. Comecei a tentar entender o meio e vi que, escrevendo da maneira que eu escrevo, tradicional, passo a minha mensagem com muito ardor, com muito calor, e as pessoas respondem imediatamente. A grande surpresa que tive com a in-ternet foi que eu pensava que essa era uma ferramenta virtual, mas ela não é virtual, é absolutamente carnal. Ela chega a provocar um corpo a corpo, é atritada. Você põe um texto e, um minuto depois, tem uma resposta para o texto. É uma coisa que aproxima demais as pessoas, e isso me deu uma alegria muito grande.

Há novos talentos se revelando hoje na crônica esportiva?

Eu acho que sim. Mas este é um meio cruel, porque os jornais não abrem espaço para a pouca objetividade. Acho que o que me distingue dos outros é que, desde muito cedo, entrei pelo veio da poesia. Percebi — e não fui o primeiro — que a poesia está muito próxima do esporte, na medida em que o esporte é uma coisa lúdica, uma forma de brincar. A poesia te permite fantasias que a prosa não te permite. Então, de quando em quando, faço in-cursões na poesia. Tenho a impressão de que, com essa superdose, overdose, de realismo que baixou no jornalismo de um modo geral, e na vida das pessoas, ninguém tem muito tempo para ficar recriando palavras, inventando metáforas. Além da matéria-prima estar escasseando. No futebol, por exemplo, você vê um Robinho despontando, que te permite refazer a recriação de um gesto, mas tem dez que não te permitem escrever uma linha. O futebol não era assim, o futebol, nos primórdios, se chamava o Jogo do drible. Aí, primeiro acabaram com o ponta, que era o exímio driblador, porque o ponta sempre teve um espaço melhor para driblar do que quem está na faixa central do campo, sempre muito congestionada. Ao extinguirem o ponta, extinguiram praticamente o drible, porque o drible mal dado na faixa central do campo pode representar um contra-ataque brutal. Então, os treinadores não querem correr riscos; e o futebol, com isso, se empobreceu. Aí, começou a aparecer um outro universo ligado à ludicidade do esporte, que é muito próxima da poesia. Foi a atenção com os Jogos Olímpicos. Lembro que o primeiro gesto olímpico que inspirou um poema meu foi da Nadia Comaneci, nos Jogos de 76, em Montreal. Tem outro dado, também, que contribui muito para instigar a inspiração poética:

o esporte é uma coisa épica. Nos jogos olímpicos da antiguidade, já havia grande exaltação poética — Píndaro e tantos outros es-creveram odes maravilhosas aos grandes heróis —, o que permite realmente aproximar o esporte da arte. Seja da arte da dança, ou do gestual do esporte, que nos salva um pouco desse excesso de realismo do futebol.

Não haveria um certo saudosismo seu de um futebol mais aristocrático?

Nesse sentido, há dois aspectos. Um aspecto puramente estético, que fascina a gente, como o gestual do Robinho, que mistura um pouco de finta com drible e jogo de cintura, e alude às raízes de uma cultura. Por exemplo, existe um texto do Pasolini sobre a seleção de 70 que vale a pena ler. Ninguém podia ficar indiferente à seleção de 70 do ponto de vista estético. Coincidia também com todo o charme que a televisão estava inaugurando para o corpo — isso enriquecia muito o espetáculo. Quando se diz que o Bra-sil tem o melhor futebol do mundo, não é porque ele ganha; é porque ele tem o melhor futebol do mundo. E o que é o melhor futebol do mundo? É o futebol mais bem jogado, esteticamente. A experiência da Copa de 1994, em que o Parreira mandou para os Estados Unidos uma equipe européia — com exceção de Bebeto e Romário — era de uma chatice inominável, porque, fora esses dois jogadores, não havia um gesto que ficasse. Isso não é você romper com as raízes? Porque a raiz é o Leônidas da Silva, que eu não vi jogar, mas adorei. Você também não viu, mas adora, porque ele faz um apelo à sua fantasia. Ele inventou a bicicleta. Costumo dizer que o que distingue o futebol brasileiro, quando ele é fiel às suas raízes, é isso. O inglês inventou o futebol e o brasileiro inventou as delícias do futebol. (risos). No momento em que você não tem as delícias no campo, vira o futebol inglês, o futebol europeu. O fato é que ninguém tolera esse tipo de jogo, porque, se você não respeita as raízes, daqui a pouco você vai mandar para um festival inter-nacional de música como representante do Brasil um sujeito que compôs bons boleros. Temos compromissos com a música popu-lar brasileira, com o samba. Se nós transportarmos o fenômeno do Ari Barroso, do Noel Rosa, do Bide, do Armando Marçal, enfim, dos grandes compositores brasileiros para o futebol, o nosso com-promisso passa a ser buscar o Garrincha, o Didi, o Pelé. Porque, nas obras de arte que você cria para identificar um povo, você cria impressões digitais, que precisam ser respeitadas. Por que tanto se lutou para se implantar o Cinema Novo no Brasil? Porque era um cinema brasileiro, autenticamente nacional. Não é o chauvinismo, não é o nacionalismo não, é o compromisso que nós temos com a identidade do povo brasileiro. Porque senão, você pega a camisa da seleção brasileira e coloca na seleção italiana. Nos agrada? Não. Só porque ganhou? Só porque venceu? O objetivo não é esse. É preservar as raízes e, conseguir juntar isso ao lado estético, ao lado técnico, e produzir equipes como tivemos em 58, como tivemos em 70, e que ficaram na história. Os europeus não vieram buscar aqui um jogador — e continuam levando num arrastão monumental deles — por ele ser atlético, vêm buscar aqui a habilidade individual do jogador brasileiro, que é a nossa marca, nossa característica. Então, a essência da nossa escola futebolística são as delícias do futebol, um esporte que tem a capacidade de criar espaço no reino da fantasia, não necessariamente à custa de um bate-estaca.

Quando entrevistamos o poeta Adriano Espínola, ele propôs que os leitores praticassem mais esportes, que a poesia agradeceria. Você concorda?

O importante é ter uma vida saudável. Gostar efetivamente de al-guns esportes, como eu, por exemplo, que gosto muito de tênis. Tenho até uma crônica em que me defino entre esses dois amores, o amor do esporte individual e o amor do esporte coletivo. Mas tem o momento em que o esporte coletivo pode virar individual, como é o caso típico do Robinho. Tem uma máxima no futebol que diz que o futebol é um por todos e todos por um. O Robinho prova que não é bem assim: é um por todos, e nem sempre todos por um. (risos).

Arquivo Pessoal

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Notas Cáusticas

Sua idiota, tá rindo do quê? Qual é a graça? Esses dentes aí à mostra, engolindo poeira — que coisa mais nojenta... É lindo, sim. É lindo esse teu sorriso, essa felicidade que te enfiaram no meio da fuça, isso daí que não é nada, essa conjuntura de carne, de tecido, de dente. É lindo, sim, e triste... triste porque é só carne, é só tecido, e essa fantasia que você tá me atirando na cara, sem querer. Você ri, e eu choro... outra besta, outra fantasia (outra manifestação do nada). Mas a tua boca vai murchar, essa boca gorda, esses teus dentes. Vai ficar só osso, o osso vai chupar a tua cara, o teu sorriso, e até a graça que você viu — não sei em quê... E aí, quem é que vai te chamar de bonita? Sua idiota... Quando você ficar velha e feia, e ninguém mais quiser olhar para a tua cara... quem vai saber? Quem vai lembrar que você riu, e eu chorei? Ninguém! Há-Há-Há-Há-Há-Há!

por Indolêncio FanfarrãoRISUS SARDONICUS

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Room with a viewA senhora tem a minha atenção, agora se cale. Mais aprazível ainda seria se esses seus pêlos brancos e nasais se

quedassem imóveis. E esses fiapos de cabelos que escapam do chapéu e que o vento leva. Atravancam. Se é por isso, que se mate, mumifique-se, mas não tire esses seus olhos de cima de mim. Não, você se engana, não tenho a menor intenção de ser afável; os óculos escuros, a barba e as rugas eu conservo comigo durante todo o processo, não tiro por toda a simpatia do mundo. De resto, não lhe devo satisfações e afirmo, por nós dois, não haver titubeios quanto à cons-tatação de a senhora ser perfeitamente ridícula (aos sessenta e tantos anos, isso deve lhe ocorrer pelo menos três vezes ao dia, quando se pilha de soslaio — o espelho atrás servindo de filmadora — a pegar uma bolsa, na ponta dos pés, no topo da estante). É ridícula até mesmo do outro lado da calçada, entre palhaços de rua e cachorrinhos de madame, até mesmo da forma que a senhora está: um mal-ajambrado triunvirato de pernas, barrigas e carapinha num banco da Praça Nossa Senhora da Paz.

Mas aprecio justamente a comprovação imediata de que você é algo muito próximo da argamassa do lugar-co-mum. Gosto de saber que posso atravessá-la, incólume, com os olhares mais canhestros, mais fora-de-mão. No afã ju-venil da minha idade, me bato constantemente com meus companheiros, uns tipos meio gordos e sebosos, que sonham diariamente com imensos projetos sociais e infalivelmente acordam molhados no dia seguinte. Praguejam a favor da mudança do mundo com um descaramento depravado. Pois bem, minha senhora, em toda essa lama na qual sempre chafurdo minha atenção, sua existência é o único seguro maternal de que tudo permanecerá exatamente como está. Os arautos, transatlânticos dos reveses, a percorrem como se você fosse besta água lacustre. Não sabe o quanto isso me vai bem. Aliás, delicia-me tanto a idéia que agora até descumpro minha promessa e desando a esboçar um sorriso, a mente ansiando para que sua pele se desgaste no ar, bem devagar.

Seria de suma pertinência se nesse instante você se mexesse e fizesse uma panorâmica de si mesma, esquadrinhan-do a vida, paixão e morte de todas as traças que tiveram sua vez nesse seu vestidinho azul. E, allegro, ma non troppo, um ricto fechado — sei que não tem mais dentes, não cometo abusos — casando com esses olhos de papel reciclado, ficaria agradecido, talvez extasiado.

Não, você não faz idéia do que esse seu corpo realmente seja. Um olhar de si mesma, montado no vigésimo andar de um edifício comercial, nunca lhe passou pela cabeça. Na sua contumácia imbecil de viver debaixo de uma lente de aumento, você nunca atinou para seu potencial geográfico. Estudo-o há cinco minutos, pela primeira vez, e já posso lhe advertir que há grandes desperdícios. Muitas contrações e expansões despropositadas. Mesmo assim, não a troco por toda essa Ipanema. Daqui do alto, senhora, você ainda é o ponto mais elegante da cidade.

João Francisco Costa Ribeiro vale o clique!

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Exéquias foram tomadasabaixo do cipreste negro fui enterradoo silêncio e a escuridão adornam-mea morte respira fúnebre sobre a minha face friaa cada inseto que me vê como o prato do diaalguém descobre a verdade sobre mimvivo pouco minha vida vil e materialistasem amor, sem dignidadeagora, com uma bala em meio peito,jazo na terra friainfeliz e solitárioapenas contempladopor um cipreste solidário.

Cipreste

Chiara di Axox

Meu marido me confundiu com seu chapéuBotou as mãos na minha cabeça etentou me arrancar do meu pescoço

Meu marido me confundiu com seu chapéuChegou em casa fechou a porta eTentou me pendurar na parede

Meu marido me confundiu com seu chapéuAcordou, olhou pra minha cabeça ese perguntou como o dito cujo foi parar em sua cama

Meu marido me confundiu com seu chapéuE não brigamos maisNão nos falamos mais

Meu marido me confundiu com seu chapéuE não me toca maisnão me conhece mais

Meu marido me confundiu com seu chapéuE não me ama maisNão me deseja mais

Desde de que meu marido me confundiu com seu chapéume acostumei a ser esquecidana solidão de ser chapéu

Isabel Wilker

The man who mistook his wife for a hatA Oliver Sacks